0% acharam este documento útil (0 voto)
81 visualizações17 páginas

Cântico Negro

Análise interpretativa do poema Cântico negro
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato DOCX, PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
81 visualizações17 páginas

Cântico Negro

Análise interpretativa do poema Cântico negro
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato DOCX, PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 17

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,


E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,


Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!

Análise interpretativa do poema "Cântico Negro" de José


Régio
O poema "Cântico Negro" foi escrito por José Régio, pseudónimo literário de José Maria
dos Reis Pereira, nascido em Vila do Conde em 1901 e falecido aos sessenta e oito anos de
idade, em 1969. Foi um poeta, escritor, professor e jornalista português, tendo sido a poesia
que primeiramente se impôs e que lhe deu maior fama.
O poema tem como temas centrais a oposição entre o coletivo e o individual; a autonomia e
liberdade; e a rejeição às regras, ordens e costumes. O sujeito poético, numa reflexão
evidentemente intrínseca, assume uma atitude independente e inquieta perante o mundo,
sujeitando-se aos perigos do caminho que escolheu para fugir às regras que a sociedade
impõe. O eu poético procura a originalidade, negando o apelo social feito com um tom
imperativo (“Vem por aqui”), e cria uma visão individualista do ser no mundo, revoltando-se,
desprezando e ironizando a suposta “verdade” universal. Toma como principal objetivo
conhecer o desconhecido.
As ideias do poema desenvolvem-se de uma forma adversa: oposição entre o sujeito
poético e a sociedade. Inicialmente, os “alguns” aconselham o eu poético a ir pelo caminho que
indicam, insistindo na partilha e transmissão dos costumes. A sociedade tenta aliciá-lo a
fraquejar perante o conselho, abordando-o com os “olhos doces” e estendendo-lhe os braços; o
sujeito poético, contrariamente, olha-os com os “olhos lassos”, cruza os braços e recusa aquele
caminho. Nesta ideia, a antítese é a figura de estilo presente. A ideia de “E nunca vou por ali…”
revela uma posição de distância ou vontade de se distanciar dos outros por causa do advérbio
“ali” que é reforçada no verso 21, com outro advérbio: “aí”.
O sujeito lírico afirma que a sua glória é “Criar desumanidade”, ou seja, desunir a
humanidade, tornando cada indivíduo autónomo e independente, promovendo deste modo a
individualidade.
Nos versos “Que eu vivo com o mesmo sem-vontade/Com que rasguei o ventre à minha
mãe”, a antítese e a hipérbole são figuras de estilo presentes, tendo em conta a afirmação do
primeiro verso que se contradiz no segundo, e o exagero figurado do momento do parto do
sujeito poético.
Quando o eu poético afirma que prefere “escorregar nos becos lamacentos,/Redemoinhar
aos ventos,/Como farrapos, arrastar os pés sangrentos” a ir pelo caminho que lhe indicaram,
revela um tom irónico, evidenciando a sua opinião quanto à visão dos outros relativamente ao
facto de ele ter escolhido outro caminho, consequentemente mais perigoso (uma ideia de
caminhos turbulentos, sujos, tenebrosos, escuros). Nos versos acima indicados, o autor do
texto recorre aos recursos estilísticos da metáfora e do disfemismo.
Na sexta estância do poema de José Régio, o sujeito poético realça a sua realidade que é
descobrir o que nunca foi descoberto, mostrando a sua autonomia e pertinência quanto à sua
vontade de inovação no mundo (“Só para desflorar florestas virgens,/E desenhar
meus próprios pés na areia inexplorada!”), recorrendo à figura de retórica da metáfora para
produzir sentidos figurados por meio de comparações implícitas. Mostra também, recorrendo à
aliteração da letra “s”, um cenário de velocidade que provoca uma leitura mais acelerada por
parte do leitor.
O eu lírico justifica a sua repulsa em seguir o caminho indicado com a ausência de
“impulsos, ferramentas e coragem” para as adversidades futuras. Nos versos “Corre,
nas vossas veias, sangue velho dos avós,/E vós amais o que é fácil!”, o sujeito poético
evidencia através de uma metáfora em “sangue velho dos avós” que os que procuram ditar o
que o sujeito deve fazer são conservadores e sem originalidade (seguidores do mesmo
estereótipo). A aliteração da letra “v” é também usada e representa a arrogância do eu poético
relativamente aos outros.
Uma outra conceção do poema também discordante entre o ser individual e o ser coletivo é
que, enquanto que a sociedade em geral segue o mesmo modelo de vida de terem “estradas”,
“jardins”, “canteiros”, “pátrias”, “tectos”, “regras”, “tratados”, “filósofos” e “sábios”, o sujeito
poético rege-se de criações pré-estabelecidas como o vento (“vendaval”), o mar (“onda”) e as
minuciosidades como um pequeno “átomo”. Na oitava estrofe do poema, são evidenciadas as
figuras de estilo: anáfora (“Tendes”(…)), a enumeração e o polissíndeto (“E tendes regras, e
tratados, e filósofos, e sábios…”), e a comparação (“como um facho”).
Seguindo a sequência poética, o autor faz referência a Deus e ao Diabo, criando-se um
contraste fortíssimo que relaciona o “bem” e o “mal”. O sujeito poético considera que todos
tiveram quem os guiasse (“pai” e “mãe”), mas que ele nasceu de um amor impossível entre
Deus e o Diabo, tornando-se alpha e omega. Nos últimos dois versos da estrofe em questão,
está presente uma comparação hiperbólica.
O sujeito poético rejeita firmemente o dogmatismo e a coletividade humana, considerando
que a sociedade não sai do lugar de conforto e de segurança, procurando sempre seguir os
conselhos dos outros, optando por uma visão objetiva (contrariamente à posição
do eu poético), defendendo sempre a razão, as regras e a realidade que conhecem. A revolta e
loucura do sujeito lírico são evidentes, reforçando, a cada estrofe, a vontade insaciável dele em
seguir o seu próprio caminho no desconhecido. Os últimos três versos do poema demonstram
que, embora o sujeito poético não tenha traçado ainda o seu caminho de vida, não seguirá
certamente o caminho que os outros lhe indicaram (“Não sei por onde vou,/Não sei para onde
vou/Sei que não vou por aí!”).
Exteriormente, o poema é constituído por 52 versos livres, rima irregular e misturada.
Observa-se da parte do sujeito lírico desprezo pela estrutura do poema.

Em conclusão, este poema de José Régio integra-se na poesia do século XX,


nomeadamente pelo facto de incidir na importância do conteúdo, na riqueza do seu texto e na
mensagem que o poeta deseja transmitir, desprezando a estrutura formal do poema.

DUALIDADE, CONFLITO EM

“CÂNTICO NEGRO”

Leia o poema e ouça a declamação

Sônia Maria van Dijck Lima

INTRODUÇÃO
"Cântico Negro", poema de José Régio, contido em POEMAS DE DEUS E DO DIABO, aborda a
problemática do indivíduo que anseia por sua afirmação a partir da contestação da norma e do
afastamento da vivência coletiva despersonalizadora.

O posicionamento rebelde do "eu" o conduz à afirmação de sua individualidade, partindo da


contestação da norma coletiva, que se lhe oferece como um convite, até que, tendo
estabelecido uma comparação entre os dois elementos opostos, em torno dos quais se
desenvolve o texto - a individualidade e a coletividade —, culmina na decisão final de
insubordinação à norma.

INTERPRETAÇÃO

1 Inicialmente, consideremos o título, composto por dois elementos: "cântico" e "negro". O


primeiro deixa transparecer a idéia de hino em homenagem a um ente de natureza divina ou
levado a esta categoria, e assim remete à lembrança dos cantos religiosos do Velho
Testamento em louvor à divindade, dos quais sobressai o "Cântico dos Cânticos", atribuído ao
rei Salomão; além do mais, o vocábulo "cântico", independentemente de ser entendido como
poema, lembra voz, ato de falar. O segundo elemento pode ser interpretado como "escuro",
"sombrio", "maldito", "condenado", e os dois últimos sentidos parecem ser os mais cabíveis ao
texto em questão.

Ora, a qualidade de "negro" ("maldito", "condenado") não parece ser própria da natureza de
"cântico" ("hino"), mas antes advém daquilo que é exaltado; assim, o título como que
denuncia a natureza do poema; para que algo seja "maldito" ou "condenado", é preciso que
seja encarado a partir da contestação ou negação de um preceito ou ponto de vista vigentes,
livres de tal adjetivação. A significação geral do poema diz respeito, portanto, à exaltação de
algo ao tempo em que contesta e nega valores vigentes.
2 A abertura da primeira estrofe ("Vem por aqui") tem, evidentemente, um tom imperativo; o
verbo dizer ("dizem-me") empregado em seguida deixa que compreendamos a expressão
destacada pelo travessão como uma norma a ser obedecida enquanto a sua repetição em
outros momentos do poema (4º e 17º versos: 'Vem por aqui") define o seu caráter de fórmula
pronta e acabada que se oferece impositivamente ao "eu".

A indeterminação do sujeito, contida na forma verbal ("dizem—...") e reforçada com o


emprego do indefinido ("alguns"), faz-nos pensar em elementos sem definição individual, que
têm como ponto comum e objetivo o "Vem por aqui"; em verdade, a norma é o dado concreto
no que toca ao sujeito indeterminado, como se todos se tivessem esfumado e diluído como
individualidades; outrossim, a pluralidade de "alguns" revela um sentido coletivo; a norma
existe enquanto aceita e mantida pela coletividade, que por sua vez baseia sua existência na
normatividade, isto é, norma e coletividade mantêm uma relação de dependência recíproca.
Por outro lado, a função de objeto exercida pela primeira pessoa deixa-nos entrever que a
subordinação à ordem estabelecida pela normatividade coletiva anula a individualidade.

A norma configura-se um convite persuasivo e aliciante, em decorrência do modo como é


apresentada ("com olhos doces" — 1º verso) e uma proposta de participação e convivência
("Estendendo-me os braços," — 2º verso). A segurança pressentida na coletividade ("e
seguros" — 2º verso) é acompanhada da expectativa de adesão e da dúvida quanto à validade
da obediência ("De que seria bom que eu os ouvisse" – 3º verso).

Ao convite à aceitação da norma coletiva, que aparece nos quatro primeiros versos, nos quais
verbalização e comportamento se conjugam, segue-se a resposta da primeira pessoa na
atitude de enervamento e indiferença ("Eu olho-os com olhos lassos" — 5º verso), ironia e
crítica, em "(Há, nos meus, olhos, ironias e cansaços)" — 6º verso, negativa da convivência ("E
cruzo os braços" — 7º verso) e de insubordinação e afastamento da norma ("E nunca vou por
ali..." — 8º verso).
Contudo, a atitude rebelde do "eu" é assumida a partir do modo de agir da coletividade;
contrapondo "olhos lassos" (5º verso) a "olhos doces" (1º verso), e "E cruzo os braços" (7º
verso) a "Estendendo-me os braços" (2º verso) e "nunca vou por ali" (8º verso) a "vem por
aqui'" (1º e 4º versos), o "eu" revela que seus estímulos não são buscados no íntimo de sua
natureza, uma vez que são encontrados no comportamento coletivo, transparecendo assim
que sua atitude contrária aos outros, em essência, consiste apenas em não ser os outros.

3 O "eu" justifica a opção "nunca vou por ali" na definição e imposição do seu caráter
individual, desde o 9º verso, onde "minha glória" anuncia e exalta uma natureza cuja
existência exige a não participação no coletivo ("Criar desumanidade / Não acompanhar
ninguém." – 10º e 11º versos), até o final da quarta estrofe.

Negando-se à diluição de sua individualidade no seio da vivência coletiva, o "eu" pretende um


programa existencial não orientado pela norma vigente, mas, antes guiado por impulsos que
preexistem ao próprio ser (" - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade / Com que rasguei o
ventre a minha Mãe." – 12º e 13º versos).

A obediência aos impulsos interiores é reiterada ao longo do poema, onde cada metáfora
como que aprofunda ou acrescenta novas nuanças. Assim é que em "Só vou por onde / Me
levam meus próprios passos..." (14º e 15º versos) a oposição não se esgota ao nível da norma
vs impulsos, mas se amplia conhecido vs desconhecido. Ora, vendo-se na norma o princípio
disciplinador da vivência coletiva, a obediência a forças incoercíveis (do 12º ao 15º verso)
amplifica o caráter contrário do "eu" em relação à coletividade, através da antinomia razão vs
instintos. Porém, a insubordinação à norma quando revelada nos versos citados tem um
caráter ambíguo: insubmisso à regra, como produto da razão coletiva, o "eu" torna-se sujeito
aos impulsos, passando à condição de objeto de seus instintos ("Me levam meus próprios
passos..." — 15º verso).

Pretendendo confirmar sua decisão pela obediência aos impulsos, o sujeito afirma "Prefiro
escorregar nos becos lamacentos" (18º verso) e "Como farrapos, arrastar os pés sangrentos"
(20º verso), como que tendo consciência da virtualidade de dificuldades, graças à
singularidade de sua experiência que não lhe permite apoiar-se em vivências alheias, numa
disposição viril de enfrentamento da opção. Todavia, a ambigüidade das expressões usadas
pelo "eu" deixa admitir outras interpretações; assim, os próprios vocábulos selecionados na
composição do 18º verso lembram riscos, quedas, profundidade, metaforicamente remetendo
ao mundo interior; por sua vez, o 20º verso tem toda uma significação de desgaste, de
aspectos negativos; desta forma, o sentido desses versos está não só ligado à sondagem
interior, mas pode ser associado aos resultados negativos da obediência aos instintos.

Dentro de uma perspectiva individualista, capaz de conduzir o discurso poético ao emprego


enfático de "meus próprios...", repetidamente ("meus próprios passos" – 15º verso, "meus
próprios pés" – 24º verso), o "eu" PREFERE "Redemoinhar aos ventos" (19º verso), explicitando
que a natureza de seu programa de vida não é apenas inspirada em forças subjetivas e
transcendentes, mas também voltada centripetamente para si mesmo.

A consciência individual comporta, porém, a compreensão de duas dimensões: a do "eu" e a


dimensão do mundo onde se coloca ("Se vim ao mundo" — 22º verso). O vir ao mundo,
significando viver, é interpretado metaforicamente como "desflorar florestas virgens" (23º
verso) e "desenhar meus próprios pés na areia inexplorada" (24º verso), insistindo na
unicidade existencial do sujeito, que deve construir sua existência imprimindo-lhe um cunho
particular. Entretanto "meus próprios pés" retoma a idéia de ir "por onde me levam meus
próprios passos", que, como já vimos, é a expressão da sujeição aos impulsos; sendo assim do
ponto de vista do "eu", a razão e a vontade são encaradas como incapazes de criar novas
perspectivas existenciais, cabendo às forças incoercíveis esta possibilidade de criar novos
rumos ("florestas virgens" e "areia inexplorada"), reiterando a antinomia razão vs impulsos.

"Se ao que busco saber nenhum de vós responde" (16º verso) evidencia a incompatibilidade
entre coletivo e consciência individual, em razão da certeza de que sua significação existencial
como indivíduo não está na vivência coletiva, que, no entanto, se configura uma programação
pronta que lhe é insistentemente oferecida, a ponto de gerar o estranhamento presente em
"Por que me repetis: vem por aqui?" (l 7º verso)
A presença impositiva da coletividade é de tal porte que é diante dela que o "eu" se
insubordina, pretende tornar-se independente, tentando afirmar-se como indivíduo a partir da
dualidade outros vs "eu", e não partindo inicialmente de sua própria natureza ímpar: este
conflito traduz-se em repetidas ocasiões no texto, como por exemplo quando o sujeito se
dirige a “Vós" (16º, 17º, 26º, e outros versos) como que se definindo diante de um interlocutor
coletivo, como se precisasse desses ouvintes de sua insubordinação e afirmação individual
para alcançar a veemência necessária; a negativa repetida ("E nunca vou por ali..." –8º verso,
"Não acompanhar ninguém," – 11º verso) e enfática em "Não, não vou por aí" (14º verso)
demonstra um esforço em direção à imposição da sua unicidade a partir do distanciamento da
convivência regida pela norma ("aí", "ali" indicam a visão à distância do "aqui" coletivo),
entretanto em todos esses momentos a atenção continua voltada para o objeto de sua crítica
e contestação como se a ele estivesse presa: podemos concluir, pois, que se a norma e a
coletividade fossem realmente indiferentes ao "eu" não seriam capazes de provocar ironia,
crítica, insubordinação.

4 O questionamento crítico que aparece nos três primeiros versos da quinta estrofe introduz a
comparação entre os outros ('Vós") e o "eu", que ressalta a incompatibilidade entre esses
elementos. A coletividade é acusada de compromisso com o passado ("Corre, nas vossas veias,
sangue velho dos avós", — 29º verso) e de acomodação em face da tradição ("E vós amais o
que é fácil!" — 30º verso), enquanto o "eu" está voltado para o absoluto, o metafísico ("Eu
amo o Longe e a Miragem," — 31º verso) e para a sondagem interior, para o desafiador ("Amo
os abismos, as torrentes, os desertos..." — 32º verso).

Por seu turno, a citação dos elementos componentes do universo e do espírito da coletividade,
do 33º ao 36º verso, define o caráter relativo e extrínseco dos valores existenciais, numa
evidente oposição a "Loucura", como elemento metafísico, e "espuma, e sangue, e cânticos
nos lábios..." — expressões do interesse pelo absoluto e pelos impulsos e valores intrínsecos,
estabelecendo, assim, uma nova antinomia: relativo vs absoluto.

5 Em "Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém." (40º verso) o significado do


experienciar é colocado mais uma vez num plano metafísico; "Deus e o Diabo", forças
indestrutíveis e absolutas, significando Bem e Mal, são anteriores a "regras", "tratados,"
"filósofos", "sábios", etc. que se constituíram na tentativa de aceitar uma (Bem -"Deus") e
excluir, ou talvez simplesmente disciplinar, a outra (Mal — "Diabo"); tentativa esta que se
revela inútil pois essas entidades (Deus, Diabo) coexistem, apesar de serem contrárias. A
aceitação de forças absolutas como guias existenciais reitera a precariedade dos valores
relativos aceitos pela coletividade ("pátrias", "tectos", "regras", etc.). Por sua vez os elementos
"pai" e "mãe" (41º verso), como transmissores da vida e tradição, têm o seu caráter físico e
relativo ressaltado graças aos versos seguintes (42º e 43º versos). A ambigüidade de "Mas eu,
que nunca principio nem acabo, / Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo" (42º e 43º
versos) leva-nos a pensar em um primeiro momento na oposição que aí se estabelece em
relação a ter nascido de "pai" e "mãe"; ora, o "eu" como ser humano também provém de pai e
mãe, portanto o entendimento não pode ser esgotado neste nível; outra idéia nos ocorre
quando levamos em conta o "eu", nascido de "Deus" e do "Diabo", como síntese desses
elementos contrários, por conseguinte guardando características de ambos, revela-se como
algo novo, cuja natureza opositiva em relação ao velho é uma constante. Outrossim, a sétima
estrofe amplifica a antinomia relativo vs absoluto de modo a fornecer a expressão mais
veemente da dimensão do indivíduo, cujas natureza e existências são regidas por forças
transcendentes, capazes de gerar impulsos da maior nobreza ("Deus") e da maior velhacaria
("Diabo")

O conhecimento e a aceitação de forças absolutas como impulsionadoras do existir conduzem


o "eu" à decisão final por uma experiência de vida cujo caráter individual é impossível de ser
cerceado ("A minha vida é um vendaval que se soltou. / É uma onda que se alevantou. / É um
átomo a mais que se animou..." -do 47º ao 49º verso), e é intransferível ("Ninguém me peça
definições '." — 45º verso), retomando assim sua insubordinação à norma coletiva na
verbalização — "Sei que não vou por aí!" (52º verso).

CONCLUSÃO

O processo evidenciado em todo o poema resulta da incompatibilidade entre vivência coletiva


e consciência individual, e seus valores respectivos, como atitudes existenciais que coexistem,
mas que se excluem; o que pode ser assim demonstrado:
COLETIVO

"Vem por aqui"

"alguns" / "ninguém" / 'Vós"

"dizem-..."

"olhos doces"

"Estendendo—... os braços"

"Seguros/ De que seria bom que (...) os ouvisse"

"nenhum de vós responde"

"repetis: ‘vem por aqui?' "

"sangue velho dos avós"

"amais o que é fácil!"


"tendes estradas, jardins, canteiros, pátrias, tectos, regras, tratados, filósofos, sábios"

"pai", "mãe"

INDIVIDUAL

"me"/ "eu"

"olhos lassos"

"ironias", "cansaços"

"cruzo os braços"

"nunca vou por ali"

"Criar desumanidade"

"Não acompanhar ninguém"'

"Vivo com o mesmo sem-vontade /Com que rasguei o ventre a minha Mãe"

"Não, não vou por aí!"


"Me levam meus próprios passos"

"busco saber"

“Prefiro escorregamos becos lamacentos, /Redemoinhar aos ventos, / Como farrapos, arrastar
os pés sangrentos, / A ir por aí..."'

"Se vim ao mundo, foi / Só para desflorar florestas virgens, / E desenhar meus próprios pés na
areia inexplorada!"

"meus obstáculos"

"Eu amo o Longe e a Miragem,"

"Amo os abismos, as torrentes, os desertos..."

"Eu tenho a minha Loucura!"

"como um facho"

"noite escura"

"sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios..."


"Deus e o Diabo é que me guiam"

"nunca principio nem acabo"

"Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo"

"A minha vida é um vendaval que se soltou,"

"uma onda que se alevantou"

"um átomo a mais que se animou"

"Não sei por onde vou"

"Não sei para onde vou"

" - Sei que não vou por aí!"

As duas colunas mostram as referências que o texto faz aos aspectos coletivo e individual,
verificando-se que, na oposição estabelecida, o "eu" merece ênfase não só pela insistência de
sua afirmação mas até mesmo pelo número de vezes em que sua idéia aparece no poema,
impregnando-o de individualismo.
A leitura esquemática permite que verifiquemos o desenvolvimento do poema dentro da
dualidade outros vs "eu", e valores existenciais respectivos, e, abstraindo das referências
textuais, assim podemos ver:

O OUTRO ("eu")

Aceitação da norma

Coletividade

Acomodação / Tradição

Razão / Regras

Segurança (o conhecido)

Persuasão

Realidade

O "EU"

Não aceitação da norma


Individualidade

Busca / Renovação (futuro)

Instintos

Risco (o desconhecido)

Crítica / Ironia

Subjetividade

Retomando a última estrofe do poema, vemos que a definição de vida como "onda", como
"átomo", possui na ambigüidade de sua significação não só o sentido de unidade, mas também
o de parte de um todo. Ora, desta forma, o sujeito do poema deixa-se trair na sua definição de
indivíduo, pois termina por admitir-se parte de um todo, aqui entendido como coletividade; a
parte guarda características do todo a que pertence e do qual é destacada, assim é que os
elementos contidos em "onda" estão contidos em "mar", e a estrutura do "átomo" conserva a
estrutura do "universo". Portanto, a dualidade que o sujeito pretende expressar como uma
oposição em dois planos (o do "eu" e os dos outros) fica reduzida ao plano da sua própria
natureza (o "eu" e os outros = "eu") onde os valores e tendências conflitantes coexistem.
Coube-lhe a perspectiva da opção e esta foi alcançada no conflito de tendências contrárias,
resultando na eleição de um tipo de inclinação na proposição do programa existencial
pretendido, de caráter nitidamente individualista.

Você também pode gostar