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O Que É Erro

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O que é erro?

Outro modo interessante de romper com o círculo vicioso do


preconceito lingüístico é reavaliar a noção de erro. A noção
tradicional (eu diria até folclórica) de erro é que permite que pessoas
como Sacconi escrevam livros absurdos como. Não erre mais! e
vendam milhares de exemplares deles.
Como vimos na primeira parte do livro, o Mito 6 expressa a
prática milenar de confundir língua em geral com escrita e, mais
reduzidamente ainda, com ortografia oficial. A tal ponto que uma
elevada porcentagem do que se rotula de “erro de português” é, na
verdade, mero desvio da ortografia oficial. O vigor desse mito se
depreende, por exemplo, num exercício de pesquisa sugerido por um
livro didático de publicação recente (Carvalho & Ribeiro, 1998: 125).

Após apresentar o poema [pg. 122] “Erro de português”, de Oswald


de Andrade, os autores pedem ao aluno:

1. Procure localizar erros de português em cartazes, placas, ou até


mesmo na fala
de pessoas que você conhece.
Transcreva-os em seu caderno.
Ora, em cartazes e placas não aparecem “erros de português” e,
sim, “erros” de ortografia. Escrever, digamos, LOGINHA DE
ARTEZANATO onde a lei obriga a escrever LOJINHA DE ARTESANATO
em nada vai prejudicar a intenção do autor da placa: informar que
ali se vende objetos de artesanato. Neste caso, nem mesmo a
realização fonética da placa “certa” e da placa “errada” vai
apresentar diferença.
O fato também de haver “erro” na placa não
significa de forma nenhuma que os objetos ali vendidos sejam de
qualidade inferior, “errados” ou “feios”.
Se mais acima escrevi “lei” é porque se trata exatamente disso.
A ortografia oficial é fruto de um gesto político, é determinada por
decreto, é resultado de negociações e pressões de toda ordem
(geopolíticas, econômicas, ideológicas). No início do século XX o
“certo” era escrever: EM NICTHEROY ELLE POUDE ESTUDAR
SCIENCIAS
NATURAES, CHIMICA E PHYSICA. Se hoje o “certo” é escrever: EM
NITERÓI ELE PÔDE ESTUDAR CIÊNCIAS NATURAIS, QUÍMICA E
FÍSICA,
isso não altera a sintaxe nem a semântica do enunciado: o que
mudou foi só a ortografia.

O exercício proposto por Carvalho & Ribeiro, além de confundir


português com ortografia do português, também admite
implicitamente a existência de “erros” na [pg. 123] “fala de pessoas
que você conhece”. O problema aqui é ainda mais grave porque, do
ponto de vista científico, simplesmente não existe erro de português.

Todo falante nativo de uma língua é um falante plenamente


competente dessa língua, capaz de discernir intuitivamente a
gramaticalidade ou agramaticalidade de um enunciado, isto é, se
um enunciado obedece ou não às regras de funcionamento da
língua.
Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna,
assim como ninguém comete erros ao andar ou ao respirar. Só se
erra naquilo que é aprendido, naquilo que constitui um saber
secundário, obtido por meio de treinamento, prática e memorização:
erra-se ao tocar piano, erra-se ao dar um comando ao computador,
erra-se ao falar/escrever uma língua estrangeira. A língua materna
não é um saber desse tipo: ela é adquirida pela criança desde o
útero, é absorvida junto com o leite materno. Por isso qualquer
criança entre os 3 e 4 anos de idade (se não menos) já domina
plenamente a gramática de sua língua. O resultado disso é, como
diz Perini (1997:11), que “nosso conhecimento da língua é ao mesmo
tempo altamente complexo, incrivelmente exato e extremamente
seguro”.

E o mesmo autor prossegue, afirmando (p. 13) que


qualquer falante de português possui um conhecimento implícito
altamente
elaborado da língua, muito embora não seja capaz de explicitar esse
conhecimento. E [...] esse conhecimento não é fruto de instrução
recebida na
escola, mas foi adquirido de maneira tão natural e espontânea quanto a
nossa
habilidade de andar. Mesmo pessoas que nunca estudaram [pg. 124]
gramática
chegam a um conhecimento implícito perfeitamente adequado da
língua. São
como pessoas que não conhecem a anatomia e a fisiologia das pernas,
mas que
andam, dançam, nadam e pedalam sem problemas.
Assim, podemos até dizer que existem “erros de português”, só
que nenhum falante nativo da língua os comete! Por exemplo,
seriam “errados” os enunciados abaixo (o asterisco indica construção
agramatical):

(1) *Aquela garoto me xingou


(2) *Eu nos vimos ontem na escola
(3) *Júlia chegou semana que vem
(4) *Não duvido que ele não queira não vir aqui
(5) *Que o livro que a moça que Luís que trabalha comigo me
apresentou
escreveu é bom não nego.

Esses enunciados, precisamente por serem agramaticais, isto é,


por não respeitarem as regras de funcionamento da nossa língua,
não aparecem na fala espontânea e natural de falantes nativos do
português do Brasil, mesmo que sejam crianças pequenas que ainda
não freqüentam escola ou adultos totalmente iletrados.

O que está em jogo aqui, evidentemente, é a noção de erro e seu


estreito vínculo com o que tradicionalmente é chamado de
português. Como já mostrei, existe, no nível da língua escrita, a
confusão entre português e ortografia oficial da língua portuguesa.

No nível da língua falada, os termos que se confundem, ou que são


tomados como equivalentes, são português, gramática normativa e
variedade padrão. [pg. 125]
Em relação à língua escrita, seria pedagogicamente proveitoso
substituir a noção de erro pela de tentativa de acerto. Afinal, a
língua escrita é uma tentativa de analisar a língua falada, e essa
análise será feita, pelo usuário da escrita no momento de grafar sua
mensagem, de acordo com seu perfil sociolingüístico.

Uma pessoa com poucos anos de escolarização, pouco habituada à


prática da
leitura e da escrita, tendo como quadro de referência apenas uma
suposta equivalência unívoca entre som e letra, fará uma análise
dotada de reduzido instrumental teórico, empregando como
ferramenta básica a analogia. Assim, quem escreveu CHÍCARA em
vez de XÍCARA não fez isso porque quis errar, mas sim porque quis
acertar. Se existe CHINELO, CHICOTE, CHIQUEIRO, CHICLETE, por
analogia se chega à possibilidade de também haver CHÍCARA. É
importante notar que os “erros” de ortografia são constantes: troca
de J por G, de S por Z, de CH por X e assim por diante — justamente
por serem casos em que é necessário fazer uma análise da relação
fala-escrita que ultrapassa os limites teóricos da suposta
equivalência som-letra. Dificilmente alguém vai tentar escrever
XÍCARA usando um J, um G, um S no lugar do X oficial, porque
faltam dados de experiência para uma analogia razoável. Por outro
lado, uma pessoa que tenha freqüentado a escola por muitos anos,
que leia e escreva assiduamente, que se tenha familiarizado com o
uso do dicionário, que tenha sido despertada para a existência das
regularidades e irregularidades da língua escrita, saberá que a
simples analogia não será suficiente como guia no momento de
escrever — outros quadros de referência terão de ser acessados: a
cultura [pg. 126] erudita, a etimologia das palavras, as reformas
ortográficas, os critérios de normativização da ortografia etc.

Quanto à língua falada, fica óbvio que o rótulo de erro é


aplicado a toda e qualquer manifestação lingüística (fonética,
morfológica e sintática, principalmente) que se diferencie das regras
prescritas pela gramática normativa, que se apresenta como
codificação da “língua culta”, embora na verdade seja a codificação
de um padrão idealizado, que não coincide com a verdadeira
variedade culta objetiva.

Dentro dessa conceituação, são igualmente


“errados” os enunciados abaixo
(6) A Joana é uma menina que ela sabe o que faz
(7) *A Joana que ela sabe é uma menina o que faz,
muito embora (6) seja perfeitamente inteligível, decodificável,
interpretável e, portanto, gramatical, aceitável, enquanto (7) é
claramente agramatical e, por conseguinte, não ocorre na fala
normal de nenhum brasileiro. No entanto, (6) é considerado tão
“errado” quanto
(7) porque nenhum dos dois enunciados se
enquadra nas prescrições da gramática normativa (e de seus
autoproclamados defensores, os comandos paragramaticais). O
enunciado
(6), porém, tem uma sintaxe, uma semântica e uma
pragmática que qualquer falante nativo do português do Brasil (sem
preocupações normativistas) aceita com tranqüilidade, e a prova
disso é que enunciados desse tipo são proferidos aos milhões
diariamente em todos os cantos do país, por pessoas de todas as
classes sociais, inclusive as consideradas cultas. (É certo que
construções [pg. 127] desse tipo não aparecem em textos cultos
escritos, mas é preciso distinguir as variedades cultas faladas das
variedades cultas escritas, coisa que os prescritivistas em geral não
fazem.) Trata-se, aqui, de uma regramaticalização do pronome que,
de toda uma complexa perda de casos gramaticais, fenômeno que
vem sendo estudado há bastante tempo, tendo sido já tema de
muitos ensaios, dissertações e teses científicas. Mas a prova
oferecida pelo uso intenso de construções sintáticas como a de (6)
não convence os defensores da gramática normativa e os membros
dos comandos paragramaticais, que não conseguiriam sobreviver
sem a noção de erro.
É preciso ter sempre em mente que tudo aquilo que é
considerado erro ou desvio pela gramática tradicional tem uma
explicação lógica, científica, perfeitamente demonstrável. Só por
isso é que os agentes dos comandos paragramaticais podem falar de
“erros comuns”.

Os gramáticos conservadores não se dão conta de


que o próprio adjetivo “comum” usado por eles mostra que se trata
de um fenômeno amplo de variação, de uma transformação que está
se processando nos mecanismos de funcionamento geral da língua.
Em sua cegueira dogmática, eles falam de “vício comum”, “erro
vulgar”, “praga”, “corrupção muito difundida”, sem perceber que
estão, na verdade, reconhecendo que aquilo que eles consideram
“certo” é que deve apresentar algum problema, alguma disfunção,
alguma impossibilidade de uso que impede que a maioria das
pessoas obedeça àquela regra. A única explicação inaceitável
(embora seja a preferida dos conservadores) é a de que essas
pessoas são “asnos”, “ignorantes” ou “idiotas”. [pg. 128]
A nova postura teórica e prática consiste em procurar conhecer
as regras que estão levando os falantes da língua a usar X onde se
esperaria Y, identificar essas regras, descrevê-las, pesquisar
explicações científicas para elas, e, se possível, apresentá-las a seus
alunos. Foi o que tentei fazer em meu livro A língua de Eulália, e
foi também o que fiz neste livro ao contestar a explicação paleozóica
de Dad Squarisi para a alta freqüência de Vende-se casas em lugar
de Vendem-se casas.

O bom professor age como o filósofo Spinoza, que escreveu:


Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-
las nem odiálas, mas por entendê-las.
Pessoas como Napoleão Mendes de Almeida, Luiz Antonio
Sacconi e Dad Squarisi agem exatamente ao contrário de Spinoza.
Sacconi, ao recorrer a um humor de gosto duvidoso, chega mesmo a
escrever, preto no branco:”Eu, porém, odeio gente que só diz
asneiras...” (p. 43). De um verdadeiro professor devemos sempre
esperar compaixão, solidariedade, empatia, nunca o ódio — muito
menos o riso deplorador.

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