Atividade epilinguística em sala de aula:
uma proposta possível
(Epilinguistic activities in classroom: a feasible strategy)
Camila Arndt Wamser1, Letícia Marcondes Rezende2
1, 2
Faculdade de Ciências e Letras, campus de Araraquara, Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (Unesp)
[email protected],
[email protected] Abstract: The aim of this paper is to present a proposal for mother tongue teaching through
the use of epilinguistic activities. To this end, we describe an exercise performed with a class of
seventh graders on the Portuguese marker ‘mas’ (‘but’). We worked orally, manipulating utterances
which included the marker, encouraging the students to develop the concept of conjunction and
to recognize the multiple meanings operated by ‘mas’ (‘but’), thus exceeding the classifications
outlined by grammar rules. We thereby proved the importance of including epilinguistic activities
in mother tongue teaching. This study is based in the Theory of Predicative and Enunciative
Operations.
Keywords: Epilinguistic activities; language; mother tongue teaching, the marker ‘mas’ (‘but’).
Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar uma proposta de ensino de língua materna
por meio das atividades epilinguísticas. Para isso, descrevemos uma atividade realizada com
uma turma de sétimo ano do ensino fundamental sobre a marca ‘mas’. Trabalhamos oralmente,
manipulando enunciados em que a marca figurava, motivando os alunos a construírem o conceito
de conjunção e reconhecerem os variados contextos em que ‘mas’ opera, extrapolando assim
as classificações expostas pela gramática normativa. Dessa forma, provamos a importância de
se incluir as atividades epilinguísticas no ensino de língua materna. A teoria na qual se baseia o
estudo é a Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas.
Palavras-chave: Atividades epilinguísticas; linguagem; ensino de língua materna, a marca ‘mas’.
Introdução
O texto que segue é resultado de uma pesquisa de mestrado defendida em 2013
e trata do ensino de língua materna por meio das atividades epilinguísticas (WAMSER,
2013). Construímos uma ponte entre a Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas,
do linguista francês Antoine Culioli (1990), e o ensino. Esse quadro teórico não se dedica
diretamente às questões relacionadas ao ensino e aprendizado da língua, porém seus con-
ceitos e metodologias são muitos pertinentes nesse contexto.
Nossa prática foi movida pela constatação de que pouco se trabalha com a linguagem
no ensino de língua e, desse modo, não são levadas em consideração partes importantes
da elaboração, do amadurecimento e da organização do pensamento dos alunos. Ou seja,
o foco do ensino, hoje, está na repetição de uma metalinguagem previamente definida
pelo material didático utilizado nas aulas. Dessa forma, consideramos que o aprendizado
da língua materna pode ser mais relevante se os próprios aprendizes forem responsáveis
pela construção do seu conhecimento. Essa autonomia é conquistada por meio das ativi-
dades epilinguísticas.
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Por defender o uso da atividade epilinguística no ensino de língua materna, colo-
camos a existência de uma variação radical de experiência, seja dos aprendizes entre si,
seja dos aprendizes e professor. Mais do que isso, assumimos tal variação como parte
do processo de apropriação da língua. Essa postura diante da linguagem define-a como
indeterminada e ambígua, o que garante ao sujeito um papel central na elaboração dos
processos constitutivos da língua, principalmente na desambiguização dos enunciados. O
entendimento dos enunciados dá-se pela sua desambiguização, uma operação de linguagem
que movimenta os aspectos formais da língua e as experiências do indivíduo.
Nesse quadro teórico, assumir a importância do trabalho com a linguagem, com a
atividade epilinguística, no ensino de língua, implica acessar os processos invariantes da
língua e, consequentemente, da linguagem, não apenas a descrição dos seus fatos.
Além de discussões sobre atividade epilinguística e o ensino de língua materna,
este texto traz um modelo de atividade aplicada a uma turma do sétimo ano do ensino
fundamental da escola Professor Doutor Joaquim Batista, da cidade de Jaboticabal/SP.
Trata-se de uma aula na qual trabalhamos com os alunos os vários contextos em que a
marca mas figura, priorizando o uso da oralidade, por meio de discussões e exposição do
pensamento, na construção do conhecimento dos alunos.
O ensino de língua portuguesa e a gramática
Parafraseamos Franchi (1988) com o intuito de exemplificar o cenário do ensino
de língua materna e da gramática que tomamos como pressuposto para nossa discussão.
Segundo o autor, não há conexões entre os diferentes campos da gramática: análise sintá-
tica, semântica, produção textual, etc. Além disso, as inúmeras falhas nas definições, que
muitas vezes são vagas, e a limitação da criatividade do aluno com joguinhos de regras
gramaticais criaram um cenário de aversão por parte, não somente dos alunos, mas dos
professores por terem de lidar com o desgosto daqueles que deveriam aprender a manusear
sua língua de maneira adequada e consciente, tornando-a ferramenta de transformação da
sua realidade.
A prática de ensino da língua materna por meio de uma gramática simplista de regras
e classificações caracteriza-se primordialmente como prescritiva. As regras que norma-
tizam esse tipo de ensino pregam incessantemente, segundo Travaglia (2006), o modo
de falar e escrever da tradição literária clássica. Por meio da repetição dessas formas,
tenta-se introduzir nos alunos a ideia do que seria a língua “correta”, anulando, assim, as
experiências e a diversidade (não nos referimos apenas à diversidade social, econômica,
mas cultural, intelectual, etc.) trazida pelo aluno.
Ao adotar uma postura prescritiva, os livros de gramática ignoram o caráter dinâ-
mico da língua. O trabalho com estruturas fixas coloca a língua como um objeto estático,
dando aos aprendizes a falsa impressão de que, se souberem classificar as formas em estudo,
terão o domínio do que seria a verdadeira língua. Verificamos isso na classificação dos
advérbios fornecida pelo livro didático utilizado pelos alunos da escola, com a qual rea-
lizamos a parte prática da presente pesquisa. O livro traz as seguintes classificações sob
o título de “Principais advérbios”: dúvida, intensidade, modo, lugar, tempo, afirmação e
negação (COSTA et al., 2009, p. 107), além de um número restrito de formas para cada
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uma delas. Quanto aos advérbios, essa classificação é extremamente limitante, pois as
circunstâncias são as mais variadas possíveis, não apenas essas expressas no livro.
De acordo com Rezende (1988), ao se exigir uma língua homogênea, estática, não
se permite que diferentes universos extralinguísticos e modos de percepções desses uni-
versos existam. Essa afirmação ratifica a ideia de que esse tipo de ensino vem carregado
de uma análise de valores. Valores sociais moldados a partir de uma classe privilegiada
e que não correspondem aos da maioria das crianças e adolescentes de nossas escolas.
Ou seja, prioriza-se a variável linguística de uma minoria, colocando para o aluno, que
utiliza uma diferente, menos privilegiada, questões de identificação dele com o mundo.
O reconhecimento da variação como constitutiva da linguagem elimina as questões de
cunho social ou relativas à identidade, não por ignorá-las, mas por tratá-las como centrais.
Outro fator que acarreta o descrédito da gramática diz respeito às suas definições
que são baseadas em um grupo prototípico de elementos. O caso do gênero do substantivo,
comentado por Franchi (1988), é um exemplo disso. Explica o autor que a definição de
gênero como “a variação do substantivo que indica o sexo real ou o sexo convencional
dos seres” (FRANCHI, 1988, p. 21) contempla a identificação apenas dos substantivos
que designam seres humanos ou animais, assim tem-se a ideia de sexo real. Ainda segundo
Franchi (1988), a termos como “porta”, “porto”, “sol”, “lua” deve-se aplicar a ideia de
sexo convencional, o que, convenhamos, é bem difícil para qualquer um. Assim, quando
há casos que não se encaixam perfeitamente como peças de um quebra-cabeça nas defini-
ções, surgem as exceções, ou tais exemplos são convenientemente desconsiderados.
Para que se alcance um estudo gramatical significativo, propomos o ensino de uma
gramática articulada, na qual não há espaço para a divisão da disciplina em duas (gramática
e produção de textos), ou até em três (leitura, gramática e produção de textos). Esse quadro
caracteriza desarticulação. Uma língua faz-se articulando não somente esses três domínios,
mas também considerando o sujeito no processo com todas as suas faces (social, psicológico,
histórico), visto que, em momento algum é possível retirar qualquer dessas características
do indivíduo, bem como retirá-lo dos processos que envolvem a língua e a linguagem. Se
aceitarmos que a língua se concretiza no texto, o ensino deve pautar-se nele, pois esse é o
lugar no qual os fenômenos linguísticos ou gramaticais se realizam.
Atividade epilinguística e o ensino de língua materna
Iniciamos a discussão acerca da importância da linguagem no ensino por meio de
uma afirmação: não há trabalho com a linguagem no ensino de línguas. Isso porque ainda
é utilizada uma prática de perpetuação do que seria a boa língua, ou seja, a transmissão
das regras gramaticais. Até mesmo a produção textual, que deveria ser o momento da
expressão metalinguística consciente, fica condicionada a esses parâmetros. Enquanto
adotarmos, como professores, uma postura de repetidores da tradição gramatical e exi-
girmos dos alunos textos higienizados a ponto de não apresentarem autoria, apenas boas
construções gramaticais, o ensino da língua materna não promoverá a apropriação da
língua e o desenvolvimento da linguagem pelo indivíduo.
A importância do trabalho com o texto em sala de aula é muito clara em docu-
mentos oficiais, diretrizes e publicações ligadas ao ensino, que estipulam que o objetivo
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do ensino é formar indivíduos capazes de produzir textos coesos e coerentes. Ocorre que
essa formação será bem sucedida quanto mais se manipular a linguagem, quanto mais se
trabalhar o nível epilinguístico dos alunos. Esse processo formativo deve ser incrementado
gradativamente, de forma que se torne a cada série escolar mais complexo. Entendemos que,
justamente pela concepção de linguagem que adotamos, tal complexidade deve acompa-
nhar o desenvolvimento psicossociológico do aluno. Segundo Rezende (2011, p. 711),
nesse contexto “a gramática a ser ensinada será tanto melhor quanto mais ela contribuir
para este grande objetivo da produção textual”.
Insistimos na ideia de que é nesse trabalho contínuo com o texto, também com a
atividade epilinguística, que o sujeito modula suas representações das mais variadas formas.
Rezende (2011) explica que esse processo permite aos seres, bem como às línguas, traçar
sua trajetória evolutiva.
As modulações a que nos referimos, que também podemos chamar de atividade
de equilibração ou regulação, acontecem norteadas pelas experiências, pelo empírico.
Na sala de aula, muitas vezes esse aspecto é esquecido em favor dos aspectos formais
da produção. Aceitando aquilo que está posto na forma da língua como estável, tira-se
do aprendiz a oportunidade de rever seus conceitos em outro momento, sob outro ponto
vista, já que o certo ou o errado já foram marcados em seu texto com um número qualquer
de zero a dez. Como as opiniões e formas de expressão não coincidem de indivíduo para
indivíduo, incorrem nas dúbias noções de erro incrustadas no ensino e aprendizagem da
língua materna. Sobre o erro, Rezende (2011, p. 711) questiona: “Se valorizamos os pro-
cessos construtivos que organizam as experiências singulares e colocamos a atividade do
sujeito no centro desse processo, podemos avaliar o resultado e rotular de acerto ou erro?”
Utilizando ainda as ideias da autora, entendemos que o ser humano nunca está
totalmente pronto, polarizado; ou está “entre” uma coisa e outra ou está “quase” algo.
Assim também acontece com os enunciados da língua que são parte constituinte de suas
atividades psicológica e social. Para a autora, “trata-se de valorizar o estado de indiferença
anterior ao verdadeiro e ao falso, ao positivo e ao negativo”.
Os processos de estabilização e desestabilização de conceitos e ideias, que podem
ser chamados de atividades epilinguísticas, abrem um gigante leque de oportunidades
para o ensino. Além de ajudar a detectar os pontos da gramática com os quais os alunos
têm menos intimidade, o professor tem acesso à atividade criativa e criadora dos alunos,
podendo a partir daí organizar suas aulas de modo mais dinâmico e próximo de suas reali-
dades.
Quando defendemos o ensino de língua por meio das atividades epilinguísticas,
estamos defendendo um ensino articulado com a linguagem, que implica abrir mão de
trabalhar com o aluno ideal e assumir a função de levar o aluno real a encarar a própria
língua como sua propriedade. “O estudante deve perceber os mecanismos que ele próprio
utiliza – independentemente da intervenção de pais ou professores – para compreender e
formular enunciados do cotidiano” (SILVA, 2007, p. 21). Ainda segundo a autora, é pre-
ciso levá-lo (o aluno) a rever sua relação com a língua que desde muito cedo na escola foi
de adversidade, de inimizade, para passar a ser de propriedade, de liberdade.
Trazendo a atividade de linguagem para a sala de aula, é possível, a partir do mate-
rial construído pelas línguas, abrir espaço para diversas formas de expressão linguística.
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Além de, validando as experiências e as contribuições dos alunos, conduzi-los a uma dife-
rente visão do significado posto em contexto. Dessa forma, podemos falar em trabalho
com respeito à variação.
Linguagem e língua são parte uma da outra, constituem-se como um todo extre-
mamente imbricado. De acordo com Culioli (1990), a língua e a linguagem, como duas
instâncias, precisam estar muito claras, porém apenas temos acesso à segunda pelas marcas
que essa deixa na primeira. Essa relação também precisa estar clara ao professor de língua,
para que a ponte entre ambas seja construída.
Quando falamos de atividade de linguagem, referimo-nos também à atividade
epilinguística, pois, como veremos a seguir, de acordo com a teoria em que se baseia este
trabalho, os processos de produção e reconhecimento de textos que compõem a atividade
da linguagem são intrinsecamente ligados aos processos formativos do discurso. Nesse
lugar, encontram-se os arranjos léxico-gramaticais organizados a partir de um esforço
anterior à verbalização – a atividade epilinguística.
Na prática do ensino de línguas, encontramos frequentemente atividades que prio-
rizam as análises tidas como linguísticas e metalinguísticas. Cumpre-nos ressaltar que
nessa última modalidade, nem sempre os alunos têm o aproveitamento esperado, visto
que a separação das atividades de léxico, gramática e produção textual dá a falsa impressão
de que a língua é composta de partes independentes. Dessa forma, nenhuma reflexão do
professor fica completa, deixando lacunas nos alunos que tendem a aumentar com o passar
dos anos escolares.
Possenti (2007, p. 92), quando nos diz que “aprender uma língua é aprender a dizer
a mesma coisa de muitas formas”, já adentra os domínios da atividade epilinguística,
pois visa a levar o aluno a manipular o texto de diversas maneiras e de forma consciente,
numa já metalinguagem. Tais atividades não têm a necessidade de serem técnicas, mas
significativas, de modo que a cada mudança do texto o aprendiz identifique os elementos
que proporcionaram tal mudança, bem como os significados surgidos no texto.
A atividade epilinguística explicitada já é atividade metalinguística. Cabe ao professor
ser/estar sensível às minúcias presentes nos enunciados dos alunos para, a partir delas,
conduzir à construção de seus conhecimentos linguísticos. Também cabe ao professor
aceitar as variadas formas elaboradas pelos alunos e estar atento para perceber os momentos
em que essa atividade está se manifestando para então trazer a reflexão do aluno ao nível
da metalinguagem.
Segundo Franchi (1988), no trabalho com as atividades epilinguísticas, as classifi-
cações, morfológicas ou sintáticas, são dispensáveis; assim, não se tem o termo “gramática”
remetendo ao sistema e à ideia de uma metalinguagem representativa da nomenclatura
gramatical. Conhecer o sistema, sua nomenclatura e organização, é função do professor
que deve ser capaz de fazer a ponte entre o material linguístico trazido pelos alunos e a
norma, fazendo multiplicar as formas de expressão de que os alunos têm conhecimento.
Segundo o autor citado acima, “nem sempre se trata de ‘aprender’ novas formas de cons-
trução e transformação das expressões; muitas vezes se trata de tornar operacional e ativo
um sistema ao qual o aluno já teve acesso fora da escola” (FRANCHI, 1998, p. 37).
Geraldi (2002, p. 64) defende que “quem aprendeu a refletir sobre a linguagem é
capaz de compreender uma gramática [...], aquele que nunca refletiu sobre a linguagem
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pode decorar uma gramática, mas jamais compreenderá seu sentido”. O autor ainda alerta
para o fato de que as atividades epilinguísticas são de extrema importância por tratar das
aplicações que os falantes fazem das formas linguísticas, constituindo assim sua própria
metalinguagem, e não uma metalinguagem cristalizada pela reflexão de outros.
A teoria culioliana apresenta uma proposta que traz para o ensino a oportunidade
da elaboração de um projeto pedagógico significativo e relevante de aprendizagem da
língua materna. Um ensino/aprendizagem que se faça presente na vida dos alunos, não
apenas na sala de aula durante a aula de gramática.
Atividades de reconstrução e transformação textual evidenciam os processos forma-
tivos presentes na base da produção linguística do indivíduo. A abordagem epilinguística
propõe uma reflexão sobre o texto, trazendo as sutilezas da atividade de representação
mental para o nível da metalinguagem.
Travaglia (2006), citando Geraldi (1993), indica que é possível identificar resquí-
cios da atividade epilinguística em hesitações, correções (auto ou heteroiniciadas), pausas
longas, repetições, antecipações, lapsos, etc. Ressaltamos, porém, que o conceito que
adotamos é mais complexo e amplo que o exposto pelo autor acima. Concebemos atividade
epilinguística como a própria atividade da linguagem, manifestada por meio das marcas
da língua, e operada exclusivamente pelo indivíduo, que é criativo e complexo.
Como consequência do ensino por meio das atividades epilinguísticas, chegamos
a uma teoria gramatical consciente e operada exclusivamente pelos seus falantes, a ativi-
dade metalinguística. Isso proporciona, segundo Franchi (1988), um trabalho inteligente
de sistematização gramatical. Podemos acrescentar que constrói ainda a habilidade de
levantar hipóteses sobre a natureza da linguagem, do seu próprio discurso e das categori-
zações sintáticas.
Esse mesmo autor esclarece que não é possível saber quando, em que ano escolar,
os alunos terão essa consciência acerca da linguagem, mas o autor nos dá o como fazer.
Trata-se do resultado de uma intensa manipulação dos fatos da língua, com vistas a
sistematizar um “saber linguístico” do qual o indivíduo (aluno) se aprimorou e se tornou
consciente. O foco dessa prática é sempre a questão da significação, não apenas numa
representação do mundo, mas também numa ação pela linguagem por meio dos interlo-
cutores e sobre eles, relacionando diretamente o modo e o estilo com que usamos seus
múltiplos recursos de expressão.
Tendo em vista que o objetivo do ensino de língua é levar o aluno a trabalhar com
qualidade no nível da metalinguagem, as atividades epilinguísticas garantem exatamente
a base de sustentação para a realização de tal trabalho, pois tornam conscientes os ele-
mentos em uso, no seu aspecto funcional.
À luz dessas considerações sobre a linguagem, as atividades epilinguísticas e o
ensino de língua materna, apresentamos a seguir um modelo didático para o trabalho com
as atividades epilinguísticas em sala de aula.
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Metodologia
A atividade discutida a seguir foi trabalhada com uma turma de sétimo ano, na
modalidade oral. Optamos pela oralidade por considerar que ela proporciona maior fluidez
e liberdade ao discurso dos alunos. Esclarecemos que não se trata de uma discussão entre
a oposição fala e escrita, mas da fala enquanto operação de linguagem e que poderia ser
a escrita também.
Outro esclarecimento necessário diz respeito à escolha do tópico gramatical traba-
lhado com os alunos – a conjunção adversativa mas. Mais que uma escolha, o trabalho
com o mas consiste numa delimitação da análise a que procedemos. A atividade epilin-
guística está presente em todos os enunciados da língua; dessa forma, foi preciso limitar
nosso foco de atenção, para conferir maior rigor à pesquisa.
O trabalho foi realizado com uma turma denominada (A), em uma sequência de
aulas. Nessas aulas, os alunos trabalharam oralmente com enunciados em que figurava a
marca mas. Com o auxílio da professora/pesquisadora, foram levados a perceber caracte-
rísticas que diferenciavam e que aproximavam os valores semântico, sintático e enuncia-
tivo atribuídos à marca nos enunciados.
Utilizamos enunciados retirados de duas fábulas que os alunos haviam discutido
em outros momentos: “O burrico cantor” e “O castigo da preguiça”, ambas do autor Pedro
Bandeira (2007). Os exemplos retirados dessas obras constituíam os contextos mais formais
e explicitados pela gramática ensinada na escola. Outros enunciados representavam contextos
mais informais, não previstos pela norma. Dessa forma, e por meio do diálogo presente
na aula, os alunos tiveram condições de construir o estatuto da marca mas, porém compre-
endendo que os termos da língua não são estáticos.
Considerando os preceitos da atividade epilinguística, apresentamos os enunciados
aos alunos e solicitamos que operassem substituições da marca, sugerissem continuações
lógicas, reconhecessem preconstrutos e, acima de tudo, observassem e externassem os
sentidos surgidos em cada manipulação.
O trabalho do professor, quando há opção pelo ensino por meio das atividades
epilinguísticas, é de suma importância, pois cabe a ele conduzir o discurso dos alunos na
construção do seu próprio conhecimento, sem, contudo, rotular seus comentários em certo
ou errado. Desse modo, é possível tornar consciente os processos epilinguísticos dos alunos,
de modo a torná-los metalinguísticos.
Os contextos em que a marca é utilizada nos enunciados são variados e extrapolam
as classificações apresentadas pela gramática escolar. Isso serve para ilustrar a ineficiên-
cia de basear o ensino da língua materna apenas nos conceitos e listas de classificações.
Durante a aula, o conceito de conjunção não foi mencionado, pois nosso interesse estava
nas operações desencadeadas pela marca mas, isso, porém, não impediu que tal conceito
surgisse naturalmente nos comentários dos alunos, como veremos a seguir.
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Trabalho dos alunos com os enunciados: uma proposta de atividade
epilinguística
Iniciamos a aula apresentando os enunciados aos alunos um a um, de modo que
os discentes pudessem comentar sobre cada um deles separadamente; mas, conforme a
aula progredia, os alunos faziam pontes entre os enunciados aproximando-os e/ou distan-
ciando-os. No decorrer da atividade, tentamos construir com eles o estatuto invariante da
marca mas; isso se deu por meio das discussões, substituições e preconstrutos levantados
pelos aprendizes.
A primeira característica observada pelos alunos quanto aos enunciados apresen-
tados foi o distanciamento das ideias contidas neles. Esse distanciamento também pode
ser chamado de complementaridade e implica a presença da negação, fator preponderante
nos enunciados analisados. Dessa forma, os alunos foram questionados sobre a proxi-
midade ou distanciamento dos termos “seca” e “molhada” no enunciado “Uma esponja,
quando seca, é bem leve, pesa nada, mas, ao encher-se de água, fica muito mais pesada”.
A tal questionamento responderam que são termos próximos semanticamente, se relacio-
nados de alguma forma. Esse comentário ilustra um posicionamento extremamente com-
petente diante da língua, pois, além da consciência de que os termos da língua precisam
ser relacionados, há ainda a consciência de que a língua nos fornece inúmeras possibili-
dades de dizer. Com esse posicionamento, dão o primeiro passo para a construção de uma
gramática própria, operada por eles próprios.
Trabalhando com o enunciado “Mas que grande ideia eu tive!”, os alunos rapi-
damente perceberam o valor exclamativo da marca mas, propondo sua substituição por
termos como “Nossa!” e “Ah!”. Em seguida, levantaram preconstrutos que sustentariam
o enunciado. Nesse momento, surgiu o comentário de um aluno sobre a não existência de
“ter uma grande ideia”, ou seja, a negação desse fato. Os alunos perceberam que, mesmo
estando o burro1 pensando, ele não estava conseguindo ter ideias, pelo menos não grandes
ideias. Assim, colocaram em jogo dois polos distintos: a ausência e a presença de grandes
ideias. Essa alteridade (negação/afirmação) relacionada por meio da marca mas, é recor-
rente nos enunciados que analisamos com os alunos.
Quando solicitados a substituírem o termo mas por porém no enunciado em ques-
tão, eles prontamente verificaram a não equivalência desses termos, muitas vezes colo-
cados como iguais (conjunções adversativas) pela gramática. Um aluno sugeriu a forma
“Porém, eu tive uma grande ideia”, mas reconheceu que a atribuição da formalidade ao
enunciado o impediria de ter a expressividade da exclamação no discurso direto. Tal
mudança também foi percebida pelos alunos, que reconheceram a validade do enunciado
parafraseado pelo colega, e a impossibilidade do uso de porém juntamente com a excla-
mação.
Iniciando o trabalho com outro enunciado “Uma esponja, quando seca, é bem
leve, pesa nada, mas, ao encher-se de água, fica muito mais pesada”, os alunos observa-
ram que naquele contexto a substituição de mas por porém era uma possibilidade bastante
viável. Além disso, perceberam que estão em jogo duas propriedades estabilizadas do
objeto esponja: a) Ser leve, quando seca. b) Ser pesada, quando molhada. Nas palavras do
aluno: “Porque qualquer uma pode ficar seca ou molhada. Você compra ela seca depois
1 O termo burro refere-se ao personagem da fábula de onde foi retirado o enunciado.
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você molha ela”. Trata-se de uma mudança qualitativa dada pela variação espaço-temporal
que gera para o mesmo objeto propriedades diferenciadas.
Entre os enunciados 1 e 2, as crianças constataram uma diferença de sentido: no
enunciado exclamativo, a marca em questão é substituída por termos de ordem também
exclamativa; já no segundo, a substituição é possível apenas por outro termo adversativo
(porém). Vejamos a transcrição abaixo:
P.2: Olhem bem, o que vocês disseram sobre esse MAS aqui [Mas que grande ideia
eu tive!] que ele nem precisa estar aqui, e naquele [Uma esponja, quando seca, é
bem leve, pesa nada, / mas, ao encher-se de água, fica muito mais pesada!] vocês
disseram que ele tem que estar ali.
A.: Não é parecido.
A.: Se não tiver o MAS tem o PORÉM.
A.: Aí [Mas que grande ideia eu tive!] vai ter o mesmo sentido, mas aqui [Uma
esponja, quando seca, é bem leve, pesa nada, / mas, ao encher-se de água, fica
muito mais pesada!] tem que ter.
A.: Se não tiver nada aqui [Uma esponja, quando seca, é bem leve, pesa nada, / mas,
ao encher-se de água, fica muito mais pesada!] muda o sentido da frase.
Com o enunciado (2), a relação do marcador mas com a negação foi verificada
pelos alunos. Foi apontado que <ser leve> e <ser pesada> são características opostas uma
à outra. Os alunos, porém, rapidamente, perceberam a proximidade e a possibilidade de
coexistência desses dois elementos expressando-se por meio da máxima “os opostos se
atraem”. Assim é construída a complementaridade das propriedades presentes no enun-
ciado “Uma esponja seca não é pesada, assim como uma esponja molhada não é leve”.
Quando viram o enunciado de número 3 “Mas o que é folgada mesmo?”, os alunos
comentaram que tinha o sentido mais parecido com o primeiro “Mas que grande ideia eu
tive!”, porém, como justificativa, deram apenas a posição do termo mas na frase, ou seja,
no início. Quando questionados sobre a substituição de mas por porém, eles argumentaram
que, na realidade, ninguém começa uma pergunta dessa forma “Ninguém usa porém no
começo da frase. Nem quando a gente vai falar com outra pessoa a gente diz porém”.
No entanto, em seguida, criaram preconstrutos que sustentavam essa forma, validando-a.
Nesses preconstrutos, os alunos resgataram a negação sustentada pelo enunciado “Alguém
não entendeu alguma coisa”, “Alguém falou pra ele: Você é folgado. Aí ele perguntou:
Mas o que é folgado, mesmo?” “Mas não sabia o que era”.
Quando trabalhamos almejando acessar o nível epilinguístico dos alunos, temos a
oportunidade de visualizar os esforços feitos por eles para a compreensão dos enunciados.
Nesse momento, eles testavam outros conectores para o enunciado “Meus irmãos têm a
vida atribulada, mas eu tenho a vida folgada”. Quando pensaram no uso do termo porque,
a estranheza foi prontamente percebida e rejeitada, porém a seguinte modalidade é sugerida
por um dos alunos: “Se colocar o porque fica em forma de pergunta: Meus irmãos têm
a vida atribulada, porque eu tenho a vida folgada?”, que, nesse caso, deveria ser grafado
separadamente, pois trata-se de um pronome interrogativo, e não da conjunção, como
havíamos previsto.
2 A letra P indica a fala da professora; já a letra A indica a fala dos alunos.
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É interessante observar o processo de regulação intersubjetiva elaborado pelo aluno,
provavelmente ele não se deu conta da diferença da grafia de um porque e outro, nem
precisaria, pois na oralidade as diferenças gráficas e classificatórias deixam de existir.
Vejamos que, mesmo se tratando do pronome interrogativo, a relação de causalidade
atribuída à conjunção porque é construída na paráfrase do aluno alterando simplesmente
a entonação do enunciado: Meus irmãos têm a vida atribulada porque eu tenho a vida
folgada. Sendo que a vida folgada do sujeito enunciador eu é a causa da atribulação na
vida dos irmãos. Essa construção deve também ter ocorrido ao aluno, porém o não reconheci-
mento do porque em enunciados que não elaborem um questionamento o fez operar uma
interrogação com tal termo.
Esse exercício do aluno atribui uma modalização de dúvida ao enunciado apenas
pela entonação, pois a sua compreensão é perfeitamente possível com base nessa marca.
Além das substituições, os alunos foram questionados sobre a informação que é
implicitamente negada no enunciado: “a vida atribulada”, construindo, de certa forma, uma
paráfrase do tipo “Meus irmãos têm a vida atribulada, mas eu não tenho a vida atribulada”.
O seguinte enunciado analisado com os alunos foi “O burrico preparou-se para
cantar, mas conseguiu só zurrar”. Nesse caso, o termo zurrar foi visto como resultado da
ação de preparar, porém, com um resultado bastante negativo, que estabelece a relação
de complementaridade entre as duas noções <cantar> e <zurrar>. De modo que “zurrar”
figura como um “quase canto”, um “canto muito ruim”, um “não canto”. A marca “mas”
e a operação de negação constroem uma oposição de natureza aspecto-modal.
Até esse momento, os alunos haviam observado que a marca mas está relacio-
nada a ideias contraditórias, opostas, excetuando o caso da interrogação (Mas, o que é
folgada mesmo?) e da exclamação (Mas, que grande ideia eu tive!). Nessas ideias que
estabelecem oposição, há normalmente uma negação preconstruída, que pode facilmente
ser encontrada por meio de paráfrases que remontem aos preconstrutos que lhe formam
a base. Os alunos percorreram esse caminho sem muito esforço, remontando a ideia de
que zurrar, para a classe de burros, pode ser uma forma de canto. Da mesma forma que
a uma pessoa que cante muito mal pode ser atribuída a forma zurrar “Parece que ele está
zurrando e não cantando”, o que não impede a existência de uma forma de canto.
Isso fez com que, no enunciado “Ele estava feliz, mas não estava satisfeito”, o fato
de haver duas noções semelhantes semanticamente (feliz e satisfeito) chamasse a atenção
dos alunos: “Podem ser parecidas só que... é estranho”. Nesse caso, eles observaram que
estar feliz, mas não satisfeito indica que a felicidade não é completa, “Ele queria mais
alguma coisa”. Quando questionados sobre a falta de termos opostos, disseram que havia no
enunciado “um não”, fazendo o papel de complementar. Assim, trata-se de feliz, não feli-
císsimo, não verdadeiramente feliz. Tanto que apontaram que a expressão “não satisfeito”
poderia ser substituída por “insatisfeito”, explicitando o complementar com a presença da
negação como prefixo. Essa situação, aparentemente contraditória de se estar feliz, mas
não satisfeito, é explicada por um dos alunos: “É como quando você está num lugar e está
feliz, mas está com fome, aí fica insatisfeito”.
Com o penúltimo enunciado, “Canário cantar bem não é novidade, mas um burro
ser cantor é mais que novidade”, foi enfatizado pelos alunos o termo novidade. Os alunos
verificaram o que é e o que não é uma novidade, movimentando o complementar do termo,
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ou seja, construíram os valores que não representam uma novidade, juntamente com os
que representam.
P.: Por que canário cantar não é novidade?
A.: Porque todo canário canta.
P.: E então porque um burro cantor é mais que novidade?
A.: Porque burro não canta.
Novidade é isso, e não é aquilo. No caso, canário cantar não é novidade, mas
burro cantor é, justamente porque burros não cantam, ou cantam muito mal. Os alunos
observaram a presença de cantar, como medidor da definição de novidade, nos seus dois
polos: cantar bem e cantar mal.
Quanto ao último enunciado, “Ele está atribulado no trabalho, mas não está cansado”,
foi possível verificar com os alunos a expectativa gerada pela primeira parte do enunciado
e a sua quebra, a partir da marca mas. Conforme podemos observar na transcrição abaixo:
A.: Tem uma oposição entre atribulado e cansado.
A.: Não tem. É “mas não está cansado”.
P.: O que seria o mais lógico para esta primeira parte aqui? “Ele está atribulado no
trabalho”.
A.: “mas não está bem cansado”.
P.: Esqueçam o MAS e o PORÉM, o resultado de estar atribulado, qual seria o resul-
tado esperado?
A.: Cansado.
Analisando o material produzido durante a aula, pudemos perceber que os alunos
verificaram que a marca mas tem na função de inversor, juntamente com a negação susten-
tada pelos preconstrutos e a negação explícita, suas características invariantes. Sendo que
a inversão consiste na forma de negação do resultado esperado, assim, o que se mantém
como invariante em todos os enunciados analisados é a forte relação da marca mas com a
negação. Essas percepções vão muito além dos critérios trazidos pela gramática escolar,
que, de modo geral, limita-se a apontar a função de relacionar ideias adversas, ou opostas,
por meio da conjunção adversativa mas.
Além de todas as nuances das relações estabelecidas pelo marcador mas, a atividade
epilinguística dos alunos permitiu que construíssem o conceito de conjunção, mesmo que
tal termo não tenha sido mencionado nas aulas. Não era nosso objetivo apresentar catego-
rizações de palavras, mas viabilizar a construção de uma metalinguagem consciente e
relevante para os aprendizes. Trata-se de uma gramática operada pelos próprios alunos.
Encontramos o primeiro indício do processo de construção do conhecimento de
tal conceito quando os alunos foram questionados sobre a possibilidade de se retirar o
elemento conector do enunciado “Uma esponja quando seca é bem leve, pesa nada, mas
ao encher-se de água fica muito mais pesada” e responderam que isso não seria possível
“por que fica faltando uma coisa no meio”. Essa resposta sinaliza o reconhecimento da
importância dos elementos conectores, que são elementos coesivos. A mesma percepção
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se repetiu quando estudaram o enunciado “Meus irmãos têm a vida atribulada, mas eu tenho
a vida folgada”, segundo um dos alunos “nem dá para pronunciar sem nada no meio”. É
claro que reconhecemos que também é possível a relação desses enunciados por meio de
pausas, porém as pausas como mecanismos de relação de ideias são mais frequentes na
oralidade. Percebemos que os alunos identificaram a impossibilidade da relação primeira-
mente por meio da escrita, pois apresentamos os enunciados no quadro-negro.
Retomando a construção do conceito de conjunção, vejamos a discussão do enun-
ciado “O burro preparou-se para cantar, mas conseguia só zurrar”, foi nesse momento que
o conceito de conjunção, antes ensaiado, surgiu. Vejamos a seguir:
A.: O MAS é todas as palavras juntas então?
A.: Ele une as palavras.
A.: Não, assim os sentidos.
Mesmo sem o uso da terminologia e transferindo a ideia de conjunção apenas para
o termo mas, a função de conector foi percebida e construída pelos alunos. A construção
do conceito a partir das atividades epilinguísticas é mais significativo e operacional, já
que surgiu de uma necessidade linguística reconhecida e experienciada por eles próprios.
Diferentemente do conceito pronto trazido pela gramática, que parte de uma definição
e busca exemplos idealizados que se encaixem perfeitamente; dessa forma, procuramos
trabalhar a experiência linguística dos alunos.
As conclusões às quais os alunos chegaram durante essa aula vão muito além da
matéria trazida pelo livro didático e pela gramática, pensando apenas nos aspectos gramati-
cais da aula – os significados e as funções da conjunção adversativa mas. O trabalho oral
possibilitou a eles articular o léxico com a gramática e exercitar sua capacidade expressiva,
conferindo-lhes mais autonomia diante da atividade de ensino à qual estavam expostos,
bem como ao próprio processo de aprendizagem, que passa a ser de sua responsabilidade
também. Trata-se da construção de uma gramática e de uma metalinguagem operada pelos
próprios falantes da língua.
Considerações finais
Nas aulas que descrevemos, observamos um melhor desenvolvimento linguístico
da classe, bem como sua participação efetiva na construção e no desenvolvimento da
atividade. A atividade oral instaurou, na sala de aula, o diálogo entre professor e alunos
e entre os alunos, criando um ambiente propício para a aprendizagem e desenvolvimento
linguístico. Também tornou possível identificar os pontos de maiores dúvidas dos alunos,
e auxiliá-los nos ajustamentos necessários para as suas soluções. Assim, eles construíam
seu próprio aprendizado, que certamente terá um valor mais significativo e operacional.
Discutindo sobre os enunciados com a marca mas, os aprendizes perceberam a sua
importância nos diferentes contextos apresentados, reconhecendo seus vários significados.
O conceito de conjunção explicitado pela gramática foi construído durante a aula, sem a
necessidade da memorização de um conceito ou de uma classificação. Como construtores
do próprio conhecimento, os alunos avaliaram a qualidade e adequação dos enunciados
que criavam, rejeitando algumas formas e aceitando outras, num intenso processo de
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centralização e descentralização que permite o conhecimento de si próprio e do outro, o
processo de apropriação da língua, objeto último do ensino de línguas.
Um dos principais objetivos da nossa pesquisa é sugerir uma nova forma de se
ensinar a língua. Desse modo, gostaríamos de ratificar a importância de se trabalhar com
as atividades epilinguísticas. Porém, esclarecemos que não se trata de abandonar o ensino
de gramática e olhar apenas para os processos em uso nos enunciados; trata-se de, a partir
das regras dessa gramática (já quase não mais estudada), ampliar a visão do aluno a ponto
de torná-lo sensível para avaliar a pertinência de uma forma linguística ou de outra. E o
que é isso senão os processos que sustentam a produção de textos?
Vemos, nas atividades epilinguísticas, uma oportunidade de renovar o ensino da
língua materna, deixando de lado a pretensão de ensinar a língua para seus próprios falantes, e
passar a ensinar os falantes a refletir sobre ela e usá-la de modo mais competente. Assim,
propomos um trabalho que articule língua e linguagem, fazendo do livro didático um
meio de levar o aluno a uma reflexão metalinguística relevante, e não a um fim em si mesmo.
Um trabalho em que a oralidade, por meio de exposição do pensamento e do esforço para
materializá-lo, seja um dos caminhos para o aprendizado da língua.
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