0% acharam este documento útil (0 voto)
16 visualizações13 páginas

AResponsabilidade Social Do Jornalista EOPensamento de Paulo Freire

Enviado por

qc8y2knfkz
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
16 visualizações13 páginas

AResponsabilidade Social Do Jornalista EOPensamento de Paulo Freire

Enviado por

qc8y2knfkz
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 13

A Responsabilidade

social do jornalista e o
pensamento de Paulo
Freire
Jorge Kanehide Ijuim

RESUMO
Neste trabalho, de caráter ensaístico, pretendo discutir alguns
aspectos sobre a responsabilidade social do jornalista a partir
de algumas ideias de Paulo Freire. Tal preocupação vem de meu
entendimento de que o jornalismo não é um simples conjunto
de técnicas, nem tampouco aceito ao jornalista o papel de mero
produtor de notícias. Para tanto, tomarei como ponto de partida
um de seus textos clássicos, intitulado O compromisso do pro-
fissional com a sociedade e, através do seu pensamento, refletir
sobre determinados dilemas do profissional – e da profissão –,
além de dialogar com outros pensadores contemporâneos que
possam contribuir para a compreensão do tema.
PALAVRAS–CHAVE: Fundamentos do jornalismo. Ética jornalís-
tica. Responsabilidade social. Paulo Freire.

.Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

31
1 Óbvio, mas nem tanto
A questão da responsabilidade social parece ser algo con-
sagrado no meio jornalístico. A expressão, que carrega força e
impacto, é comumente usada como bordão de campanhas insti-
tucionais e/ou mercadológicas de empresas de comunicação. Tal
consagração talvez advenha do papel histórico da imprensa de
ser tribuna para debates e instrumento de movimentos decisivos
que culminaram em conquistas expressivas para a sociedade. O
respeito a este papel histórico faz com que tenha destaque em
documentos fundamentais dos profissionais de imprensa, como
nos Princípios Internacionais da Ética Profissional no Jornalismo.
O texto obtido em debates promovidos pela Unesco, na década
de 1980, foi subscritado por várias organizações internacionais de
jornalistas, inclusive a Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Seu Princípio III assinala:
Informação em jornalismo é compreendida como bem social e não
como uma comodidade, o que significa que os jornalistas não estão
isentos de responsabilidade em relação à informação transmitida
e isso vale não só para aqueles que estão controlando a mídia,
mas em última instância para o grande público, incluindo vários
interesses sociais. A responsabilidade social do jornalista requer
que ele ou ela agirão debaixo de todas as circunstâncias em con-
formidade com uma consciência ética pessoal. (ASSOCIAÇÃO...,)1 1
Documento eletrônico.

O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, reexaminado nos


últimos anos e aprovado em assembléia da Federação Nacional dos
Jornalistas, em agosto de 2007, também atribui especial atenção
ao tema. O Artigo 2º explicita:

Art. 2º - Como o acesso à informação de relevante interesse público


é um direito fundamental, os jornalistas não podem admitir que ele
seja impedido por nenhum tipo de interesse, razão por que: [...]
III - a liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do
jornalismo, implica compromisso com a responsabilidade social
inerente à profissão. (CÓDIGO..., 2007)2 2
Documento eletrônico.

Ambos os documentos caracterizam o jornalismo como


atividade social e, de forma explícita ou implícita, estabelecem
uma relação entre esta responsabilidade social e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
.
Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

A bibliografia no campo do Jornalismo, seja em abordagens


sobre as teorias e as técnicas ou focadas na ética profissional,
reflete a preocupação constante com o assunto. Luiz Amaral, em
Técnica de jornal e periódico, em 1969 – justamente o ano em que
a profissão fora regulamentada no País –, já dedicava um capítulo
ao papel e à responsabilidade da imprensa. Ali já ressaltava as
múltiplas possibilidades de interpretação de preceitos que regem
a instituição imprensa e, por consequência, seus profissionais.
O alerta de Amaral era pertinente. Qual pode ser o espírito
deste preceito da responsabilidade social? Carrega a inspiração
modernista que imaginava a imprensa capaz de levar as luzes a
todos os recantos e, por isso, a função social da elevação cultural?
32
Ou traz consigo a concepção gramisciana do intelectual orgânico
responsável pela informação e pela formação da população? Ou é
expressão do capitalismo norte-americano pelo qual a sociedade
delega à imprensa o poder de fiscalizar as instituições em seu
nome? (AMARAL, 1969).
O pesquisador Fábio Henrique Pereira frisa que muitas dessas
interpretações referem-se a concepções românticas do jornalismo.
Para o autor, é notório o processo de transformação pelo qual a
atividade passou, desde sua fase artesanal e instrumento de lutas
ao jornalismo industrial e de mercado. Alicerçado em pensadores
como Medina, Néveu, Lipimann e Schudson, o pesquisador
promove uma discussão sobre o jornalismo enquanto ação social
e o jornalista como um intelectual, na qual constata que “a evo-
lução da identidade do jornalista se forma a partir de um duplo
discurso – a fala humanista e a fala tecnológico-metodológica”
(PEREIRA, 2004a). Em outro trabalho, Pereira especifica as
razões dessa situação virtualmente conflitante:
O jornalista é, ao mesmo tempo, funcionário de uma empresa
capitalista, responsável pela produção de uma mercadoria (a notí-
cia) submetida às leis de mercado; e uma espécie de contra-poder,
cuja autoridade, delegada pela sociedade, lhe permite fiscalizar
3
Documento eletrônico. as instituições em nome do interesse público. (PEREIRA, 2004b)3

Sem a pretensão de esgotar o tema e, portanto, sem a preocu-


pação de ser conclusivo, Pereira aponta em seus estudos um mo-
mento de transição por que passa a instituição imprensa – e seus
profissionais. Tal reflexão permite-nos inferir que, nessa transição,
certos preceitos que nos regem – inclusive o da responsabilidade
social – caminham sobre um fio tênue, além de ofuscados pelo
brilho e pela pressa das tecnologias de informação.
Esse estado de indefinição talvez advenha de um sentido
macro. Ciro Marcondes Filho, ao analisar a chamada sociedade
tecnológica, aponta uma série de fragilidades proporcionadas por
esse “período tecnocêntrico”. Enquanto o mundo teocêntrico tinha
Deus como figura dominante, a fase antropocêntrica elegeu para
tanto o homem e o mundo material, ao passo que a recente era
.Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

tecnológica tem a racionalidade da máquina como imagem e refe-


rência. Com relação ao saber, Marcondes destaca que, no modelo
anterior, as luzes da razão controlavam a ciência e o progresso, ao
passo que atualmente a luz é fracionada, especialmente via MCM.
meios de comunicação de massa
Ao passo que o antropocentrismo buscava uma utopia terrena,
movida por uma força vinculante – ideológica –, e sua meta era a
construção da história, o pensamento predominante entre os tecno-
centristas leva a uma busca virtual, sem qualquer força vinculante
e, por isso mesmo, sem meta nitidamente definida. A imprensa e
seus profissionais, como membros desse mesmo conjunto social,
convivem, atuam e servem a esta sociedade virtualizada, indefinida
e ideologicamente pulverizada (MARCONDES FILHO, 1994).
33
Portanto, aquilo que está consagrado, e possa parecer mesmo
óbvio, a rigor não é tão óbvio. E merece reflexão contínua. É o
que pretendo neste trabalho: contribuir com a necessária reflexão
sobre o que “parece óbvio”, a partir do pensamento de Paulo Freire.

2 Responsabilidade social = compromisso


Paulo Freire costumava construir seus ensaios de forma pro-
vocativa. Perguntas e mais perguntas, que respondia de forma
densa no decorrer do texto. Sobre a responsabilidade social, em
seu período de exílio [de 15 anos], escreveu O Compromisso do
profissional com a sociedade, publicado em português pela primeira
vez em 1979. Tornou-se um clássico e uma referência indispensável
ao campo da educação, mas também iluminador para outras áreas
do conhecimento, como pretendo demonstrar.

2.1 Quem pode se comprometer?


A primeira preocupação do autor é esclarecer a relevância e a
seriedade dos termos que compõem o enunciado contido no título
de seu trabalho. Julga necessário explicitar que o compromisso
proposto não pode ser encarado como uma abstração, mas algo
assumido por uma decisão lúcida, no plano concreto. O ato com-
prometido pode ser assumido quando compreendemos a natureza
do ser que é capaz de se comprometer. Dessa forma, “a primeira
condição para que um ser possa assumir um ato comprometido
está em ser capaz de agir e refletir.” (FREIRE, 1983, p. 16).
A capacidade de agir e refletir, um dos pontos primordiais da
dialética marxista, implica na consciência do ser de não apenas estar
no mundo, mas estar com o mundo. “É preciso que seja capaz de,
estando no mundo, saber-se nele.” (FREIRE, 1983, p. 16). Esta
aptidão para estar no e com o mundo suscita a possibilidade de,
pela reflexão, ter consciência de si e, por um olhar crítico diante
do mundo, ter consciência da realidade concreta. O olhar crítico
diante do mundo, porém, não admite uma postura de admiração,
ou contemplação. Ao contrário, supõe a ação para a transformação.
.
Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

2.2 Que transformação?


A transformação proposta por Freire é justamente uma das
máximas marxistas [devir] que sugere a transformação daquilo
que é naquilo que deve ser. O ser da práxis é aquele capaz de
transformar. Em outros termos, é aquele que pode exercer um ato
comprometido, como sustenta o autor:

É exatamente esta capacidade de atuar, operar, de transformar a


realidade de acordo com finalidades propostas pelo homem, qual
está associada sua capacidade de refletir, que o faz um ser da práxis.
(FREIRE, 1983, p. 17)

34
Por isso, ação e reflexão são constituintes inseparáveis e a
própria maneira humana de existir. E existir é algo mais profundo
do que, descuidadamente, possamos imaginar, como enfatiza
Paulo Freire:

Existir ultrapassa viver, porque é mais do que estar no mundo. É


estar nele e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de liga-
ção comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na
própria etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de
criticidade que não há no simples viver. Transcender, discernir, dia-
logar (comunicar e participar) são exclusividades do existir. O existir
é individual, contudo só se realiza em relação com outros existires.
Em comunicação com eles. (FREIRE, 1982, p. 48-49)

Dessa forma, não pode haver reflexão e ação fora da relação


homem-realidade. Ao profissional de jornalismo, que não vê em seu
trabalho apenas a mera execução de técnicas, cabe desenvolver-se
nessas habilidades de agir e refletir. Agir e refletir sobre a realidade
concreta, sobre o mundo, pois, conforme Cremilda Medina, pelo
papel social que está investido, “[...] sua função é estabelecer pontes
na realidade dividida, estratificada em grupos de interesse, classes
sociais, extratos culturais e faixas até mesmo etárias.” (MEDINA,
1982, p. 22).
No exercício desse papel social, ao sair para a sociedade “[...]
para rastrear o maior número possível de versões, na busca incessan-
te de uma verdade inatingível, na solidariedade aberta a todos que
tenham alguma coisa a falar” (MEDINA, 1982, p. 23), o jornalista
constrói a realidade. E constrói a realidade, conforme ensinam as
teorias construcionistas, no sentido de “[...] não permitir que os
acontecimentos permaneçam no limbo do aleatório, mas sejam
trazidos aos horizontes do significativo” (HALL apud TRAQUINA,
2005, p. 171). Se é assim, o jornalista não executa simples técnicas
de investigação e redação, mas desenvolve apurada e cuidadosa
habilidade de ver o mundo [sentir-se com o mundo]. Da mesma
forma, ao concluir sua reportagem, o profissional não apresenta
apenas um relato sobre fatos, pois o que viu, ouviu, sentiu e viven-
ciou foi processado pela sua inteligência e pelos seus sentimentos
– um processo de atribuição de significados. Ele apresenta uma
.Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

narrativa viva, uma construção da realidade, mediada pelo social.


Qualquer jornalista atua desta forma? Paulo Freire alerta que a
relação homem-realidade, ou homem-mundo, implica a transfor-
mação de mundo, cujo produto, por sua vez, condiciona ambas,
ação e reflexão. “Os homens que a criam são os mesmos que podem
prosseguir transformando-a.” (FREIRE, 1983, p. 18). Em outros
termos, firmar o compromisso com o mundo tanto requer como
é decorrência de um processo humanizador – humanização dos
outros homens, como de si mesmo.
Sobre esse processo, Dermeval Saviani apresenta uma opinião
relevante. Para ele, a humanização acontece pela relação do homem

35
com a cultura – que ele contribui com sua construção, assim como a
cultura contribui com a sua construção. Esta relação se dá de forma
vertical – domínio dos objetos e do conhecimento historicamente
acumulados [prático-utilitário]; e no nível horizontal – na relação
homem/homem [colaboração] (SAVIANI, 1993, p. 53-55). Em
outros termos, humanização para Saviani abriga o mesmo sentido
de solidariedade também invocado por Freire.
Por isso mesmo, o compromisso com a humanização dos
homens, que implica uma responsabilidade histórica, segundo o
autor, não pode realizar-se através do palavrório, nem de nenhuma
outra forma de fuga do mundo, pois:

O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engaja-


mento com a realidade, de cujas ‘águas’ os homens verdadeiramente
comprometidos ficam ‘molhados’, ensopados (FEIRE, 1983, p. 19)
.

Tal engajamento, que é um ato corajoso, decidido e conscien-


te, o impede que seja neu-tro. “A neutralidade frente ao mundo,
frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que
se tem de revelar o compromisso... o verdadeiro compromisso
é a soli-dariedade” (FREIRE, 1983, p. 19). Esse compromisso,
esse engajamento, no entanto, não pode ser confundido com
militância. Um ser-jornalista engajado não é necessariamente um
jornalista militante de causas, ideologias ou segmentos políticos.
Nesse caso, como lembra Alberto Dines, seria o mal-entendido
de adotar a postura de “partisan ou torcedor” (DINES, 1986, p.
62). O engajamento a que nos referimos pode ser o que Cremilda
Medina chama “solidariedade às dores universais”.
Esta solidariedade – cumplicidade ao outro –, no entanto, por
vezes é mal compreendida por profissionais, por falta de sensibilida-
de ou por permitir que sua larga experiência tenha se transformado
em arrogância. Vejamos o episódio a seguir relatado.
Florianópolis, fevereiro de 2009 - O telejornal anuncia
mais um caso de mulher que abandona o filho. A reportagem
relata como um vigia de uma empresa encontrou o bebê recém-
nascido num galpão abandonado, os procedimentos da polícia
.
Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

para acolhimento da criança e as tentativas para a localização da


mãe. Enfim, uma matéria não conclusiva, como não poderia ser
diferente. Em seguida, entra o comentarista, ao vivo, e relembra
os vários casos semelhantes recentes. Sem ter ideia de quem seja a
mulher que abandonara o bebê, muito menos suas motivações, sem
ter qualquer informação concreta das investigações, o comentarista
julga e condena a “mãe desnaturada”.
Não raro podemos encontrar pelo país exemplos como este,
em que a postura de ‘obser-vador privilegiado’ é confundida com
a de ‘déspota’, que se considera no direito de acusar e julgar. Sob a
justificativa de ter opinião – e ser encarregado de formar opinião

36
–, o comentarista parece ter confundido solidariedade com mora-
lismo. Neste episódio, em detrimento de seu papel de mediador
social – que poderia ser o de provocar uma reflexão –, assumiu
uma posição de promotor e de juiz.
2.3 Humanização, solidariedade com quem?
Cabe também questionar a quem a imprensa e seus profissio-
nais devem solidariedade. Como ler/compreender a pauta? Como
transformar a pauta numa narrativa que crie identificação com a
audiência? Destacamos outro episódio ilustrando esse caso.
O IBGE divulga periodicamente os resultados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). O relatório, dis-
ponibilizado em setembro de 2008, apresentou a evolução do país
em aspectos como população ativa, trabalho com carteira assinada,
trabalho infantil, acesso à educação formal, entre outros. Dois
grupos de comunicação de grande abrangência cobriram o tema
de formas bem distintas.
O jornal Folha de S. Paulo publicou, no dia seguinte à divul-
gação, uma série de matérias sobre o assunto, destacando o que
chamou de “Retrato do Brasil”. Vale ressaltar que as treze matérias
se basearam fundamentalmente no relatório do IBGE; além disso,
foram ouvidas as fontes oficiais, em especial o diretor que coorde-
nou a pesquisa, os Ministros do Trabalho e da Previdência.
O segundo jornal analisado, O Estado de São Paulo, também
no dia seguinte, publicou um caderno de seis páginas, intitulado
PNAD Especial. As pautas, aparentemente semelhantes, foram
desenvolvidas de forma diversa. Além do relatório do IBGE e das
fontes oficiais, O Estadão preocupou-se em ouvir os beneficiados
com as carteiras assinadas, as pessoas que tiveram maior acesso aos
bens de consumo, os novos alfabetizados, os trabalhadores infantis.
As diferenças na construção das reportagens podem parecer
sutilezas, mas não são. O primeiro jornal foi competente para ana-
lisar o “retrato do Brasil” num ponto de vista macro: o que cresceu,
como, por quê. O segundo, além disso, lembrou que tais números
são constituídos por pessoas que têm nome, endereço, identidade.
.Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

As diferenças na construção das reportagens podem parecer


sutilezas, mas não são. O primeiro jornal foi competente para ana-
lisar o “retrato do Brasil” num ponto de vista macro: o que cresceu,
como, por quê. O segundo, além disso, lembrou que tais números
são constituídos por pessoas que têm nome, endereço, identidade.
Solidariedade, portanto, também se refere à possibilidade que
um fazer – jornalístico – de criar identidade entre o que se propõe
a divulgar e a criação de identidade com a audiência. Por isso,
cabe a questão: solidariedade com quem? Num sentido macro [no
atacado], como o da Folha, com um público que quer, sim, estar
informado; provavelmente uma elite que precisa desses números

37
para tomar decisões. E no caso de O Estado, teria sido num sentido
mais amplo [no varejo], pelo qual mais pessoas puderam “se ver”,
se identificar nas matérias. De certa forma, essa polifonia não teria
conseguido produzir mais sentido à audiência? Por estas razões, me
parece que a solidariedade também depende de estratégias e abor-
dagens pelas quais cumprimos nossos anseios de transformação.

2.4 Transformar o quê? E quem?


A esse compromisso e transformação, cabe refletir ainda mais
sobre o que transformar e a quem transformar. Paulo Freire con-
sidera indispensável reconhecer que um profissio-nal, antes de ser
profissional, é homem. Deve ser comprometido por si mesmo. Ou
seja, independentemente do seu ofício ou de sua categoria profis-
sional, de suas particularidades e/ou de seus códigos deontológicos,
suas responsabilidades como profissional não são (ou não podem)
dicotomizar-se de seu compromisso original de homem. Por isso,
um jornalista é, antes de tudo, um homem (ser humano).
Como entende Manuel Carlos Chaparro, o Jornalismo é um
processo social de ações conscientes, controladas ou controláveis.
Se é assim, “[...] cada jornalista é responsável moral pelos seus
fazeres” (CHAPARRO, 1994, p. 22). Bertrand Russell, em seus
estu-dos sobre a ética e a moralidade, enfatiza que as escolhas do
ser humano para suas aspirações de liberdade e bem-estar decorrem
de um quadro de referência determinado pelas condições histórico-
sociais. O certo ou o errado, o bem ou o mal são definidos por uma
comunidade com a atribuição de valores, segundo uma ideologia,
de conceitos de louvor ou censura, estabelecendo uma consciência
que orienta as ações do indivíduo. Uma ação objetivamente certa,
para Russell, é a que melhor serve aos interesses do grupo etica-
mente dominante – desejadas pelo grupo. O quadro de referência,
portanto, pode ser ampliado e/ou reformulado de acordo com a
vivência, do exercício do debate, da reflexão do indivíduo e do
grupo. Esse exercício ético, ou seja, o debate e a reflexão contínua
sobre o desejável para si e para os outros podem refletir na elevação
.
Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

do nível de consciência – a visão de mundo que orienta as ações


dos indivíduos, seus propósitos e intenções (RUSSELL, 1977).
Essa postura reflexiva parece-me, portanto, um aspecto indis-
pensável ao jornalista para a sua tarefa de atribuir significados aos
fenômenos. Pelo exercício ético, com a elevação do seu nível de
consciência poderá melhor pensar-expressar, compreender e levar
a compreensão à audiência, como autor e responsável moral por
seus fazeres e compro-missos.
Com a ampliação contínua do seu quadro de referência – seu
nível de consciência – seus fazeres poderão constituir, mais que
“notícias”, os relatos humanizados e humanizadores que promovam
o debate, que contribuam com a inter-relação de pessoas com qua-
38
dros de referências diferentes. Esta postura colabora com a reflexão
de outros seres humanos – da audiência –, com o alargamento da
visão de mundo e a elevação do nível de compreensão, de cumpli-
cidade e solidariedade entre seres humanos. Se este compromis-so
constituir um propósito e um dever e querer-fazer do jornalista,
ele estará contribuindo para estender ao seu público o exercício
ético do qual pratica/participa diuturnamente. Em outros termos,
podemos ratificar a argumentação já proposta: o ser que, pela ação
e reflexão, contribui com a transformação da sociedade, como a
sociedade contribui com a sua transformação.

3 Riscos da especialização profissional


Exatamente neste momento em que tantos estão “encan-
tados” com o brilho das tecnologias de comunicação, vale
destacar que a responsabilidade deste compromisso não permite
ao profissional, enquanto um especialista, cair na “vala comum”
do especialismo. Como enfatiza Paulo Freire, isto seria julgar-se
“[...] habitante de um mundo estranho, mundo de técnicos e
especialistas salvadores dos demais, donos da verdade, proprie-
tários do saber, que devem ser doados aos ignorantes incapazes”
(FREIRE, 1983, p. 20-21).
Para o autor, “profissional” é atributo de homem e, por isso,
este não pode, quando exerce um quefazer atributivo, negar o
sentido profundo do quefazer substantivo original. Ou seja, não
cabe a inversão de valores de servir mais aos meios que ao fim
do homem. Não cabe reduzir o homem a um simples objeto da
técnica, a um autômato manipulável. Como contraponto, Paulo
Freire sublinha:
Quanto mais me capacito como profissional, quanto mais
sistematizo minhas experiências, quanto mais me utilizo do
patrimônio cultural, que é patrimônio de todos a ao qual todos
devem servir, mais aumenta minha responsabilidade com os
homens (FREIRE, 1983, p. 20).
Por outro lado, frisa a importância da superação do especialis-
.Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

mo por uma denotação mais apropriada ao termo especialização.


Se o compromisso não pode ser um ato passivo, mas práxis – ação
e reflexão sobre a realidade –, isso implica em inserção, em co-
nhecimento da realidade. Para tanto, um compromisso carregado
de humanismo deve ser fundamentado cientificamente, ou seja,
a este profissional é exigido constante aperfeiçoamento.
A maior e melhor qualificação supõe o domínio, mas ao
mesmo tempo, a abertura para a experimentação de técnicas de
reportagem, das formas de elaboração de mensagens, da edição,
de maneira que consiga ser tradutor de linguagens para audiências
amplas ou específicas. Como alerta Medina, o jornalista deve

39
interligar fragmentações, através da conquista de ferramentas
de trabalho de amplo alcance e de códigos pluralistas, e não o
retrocesso de platéias fechadas, incomunicadas com a maioria dos
estratos sociais (MEDINA, 1982, p. 134).
Como sublinha a autora, como um agente cultural, ao jorna-
lista cabe “[...] produzir narrativas atravessadas por contradições,
embates de visões de mundo, incertezas e interrogações[...] ” – não
as “certezas” que o impele a acusar e julgar. Se sua legítima especia-
lização é a de produzir sentidos, o uso de uma “[...] linguagem
dialógica enfrenta não apenas a polifonia, mas a complexidade
conflitiva dos diferentes.” (MEDINA, 2006, p. 81-82).
Por essas razões, o enfrentamento ao risco da especialização
profissional requer o constante aperfeiçoamento técnico, intelec-
tual, ético – a capacidade de refletir para agir.

4 Considerações finais
Ao reexaminar O Compromisso do profissional com a sociedade,
proposto por Paulo Freire, a intenção não é retomar teorias como
a da “Ação política” – na versão da esquerda – que contestavam a
atuação da mídia como maneira unicamente de manutenção do
establishment. Mesmo porque estas aludiam aos profissionais um
papel “passivo”, uma vez que os consideravam, de certa forma,
impotentes diante do poder instituído. Adelmo Genro Filho
já havia refutado tais versões ao constatar que o jornalismo de-
sempenha função muito maior que a contestação à hegemonia
capitalista. Para ele, um de seus papéis relevantes é a produção
social do conhecimento (GENRO FILHO, 1987).
O propósito, no entanto, é reconhecer que vivemos um mo-
mento de transição – na soci-edade e no jornalismo – marcado
pelo estado de indefinição com relação ao papel do profissional,
como bem alertou Fábio Henrique Pereira. O quadro desenhado
pelo pesquisador dá conta que esta identidade do jornalista se
forma a partir de um duplo discurso – a fala humanista e a fala
tecnológico-metodológica.
.
Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

Do jornalismo artesanal ao jornalismo de mercado, realmente


as empresas de comunicação estão reconfiguradas. Os modernos
modelos de administração se preocuparam com a otimização
de recursos, o que acarretou, de imediato, numa virtual profis-
sionalização das redações e, certamente, as tornou mais enxutas.
As chamadas novas tecnologias de informação – ferramentas
importantes e aliadas na produção e divulgação do noticiário –
muitas vezes, equivocadamente, constituem argumentos para a
diminuição de quadros.
Essas novas tecnologias também promoveram avanços com a
criação de novas plataformas para a disseminação de informações,

40
mais ágeis, dinâmicas, práticas para grande faixa de público. Assim
também, tais tecnologias proporcionaram opções de convergên-
cia de mídias, que podem oferecer, com maior versatilidade,
informações variadas, em menor tempo, com mais abrangência,
conforme o gosto e a necessidade da audiência. Como decorrên-
cia, no entanto, pode-se averiguar que, quanto maior a agilidade e
a eficiência desses “novos meios”, mais aumenta a pressa, o desejo
pelo furo, a ansiedade por maior cobertura... maior concorrên-
cia... entre algumas outras consequências.
Esse quadro, muito rapidamente esboçado, nos leva a inferir
algo preocupante: redações menores, todos com menor tempo
para produção em alta escala... menos tempo para pensar.
Por outro lado, o sociólogo Octávio Ianni assinala o esta-
belecimento de um cenário que possibilita o aparecimento da
mídia como o “príncipe eletrônico” (IANNI, 1998). Ele destaca
alguns indícios que apontam para o “envelhecimento” dos antigos
príncipes [Maquiavel] nas atuais condições históricas. Seriam eles:
a) o processo de formação de uma sociedade civil mundial;
b) o surgimento de novas tecnologias que agilizam os
processos sócio-culturais e político-sociais em todo o
mundo, e
c) a emergência de uma nova configuração histórico-social
da vida, trabalho e cul-tura.
O “príncipe eletrônico” subordina, recria e absorve ou
simplesmente ultrapassa os outros príncipes. Como entidade
hegemônica, expressa formas e visões alternativas do que acon-
tece no mundo – seja com a postura humanizadora, solidária,
ou a de déspota, que se vê no direito de acusar e julgar. Como
salienta Ianni:
Ao lado das suas atividades pluralistas e democráticas, fa-
vorecendo o debate, a controvérsia e a mudança social em geral,
é inegável que a mídia influencia mais ou menos decisivamente
a integração, isto é, a articulação sistêmica de uns e outros, con-
4
Documento eletrônico. tingentes e idéias, em escala local, nacional, regional e mundial
.Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

(IANNI, 1998)4.
E é justamente nesse contexto que aflora o grande e funda-
mental desafio – persistir no princípio, e na postura, da human-
ização, pela ação e reflexão sobre a realidade.
Os postulados de Paulo Freire são incisivos. As aspirações e
os interesses globais da sociedade devem se sobrepor aos inter-
esses de grupos, sejam políticos, econômicos ou pessoais. A defesa
última de Paulo Freire em prol da resistência invoca o “projeto
histórico” em permanente construção: “Fugir da concretização
deste compromisso é não só negar-se a si mesmo como negar o
próprio projeto nacional.” (FREIRE, 1983, p. 25).
Como argumento final, recorro a um pensamento de Me-
41
dina: “Na dura estratificação social, verdadeira muralha muitas
vezes instransponível, o jornalista precisa cavar sua trincheira e
avançar, gradativa e firmemente.” (MEDINA, 1982, p. 23). Por
outras pala-vras, pessoalmente, assumo meu dever de persistir
no compromisso aqui debatido. Senão com a imprudência do
“peito aberto na linha de frente”, mas buscando as “brechas” do
sistema geralmente fechado para, dia após dia, concretizar nosso
projeto – de vida e profissional.

The social responsibility of the journalist


and the thought of Paulo Freire
ABSTRACT
In this essay I plan to discuss some aspects of the journalist’s
social responsibility based on some of Paulo Freire’s ideas. This
concern comes from my understanding that jour-nalism is not
only a set of techniques, neither do I accept that a journalist
plays the role of a simple news producer. To fulfill my intent, my
starting point will be one of his most classical works, entitled “The
commitment of the professional with society” and, through his
thinking, I will reflect about certain dilemmas of a professional
– and of the profession itself –, in addition to having dialogues
with other contemporary thinkers who could contribute to the
understanding of the subject.
KEYWORDS: Fundaments of journalism. Journalistic ethics. Social
responsibility. Paulo Freire.

La responsabilidad social del periodista y el


pensamiento de Paulo Freire
RESUMEN
En este trabajo, de carácter ensayístico, tengo la intención de
discutir algunos aspectos acerca de la responsabilidad social del
periodista a partir de algunas ideas de Paulo Frei-re. Esta preocu-
pación tiene origen en mi entendimiento de que el periodismo
no es un simple conjunto de técnicas, ni tampoco yo acepto el
papel del periodista como un mero productor de noticias. En ese
sentido, voy a tomar como punto de partida su texto clásico, “El
compromiso del profesional con la sociedad” y, a través de su
pensamiento, presentar la reflexión sobre algunos dilemas del
profesional - y de la profesión -, así como establecer el diálogo
con otros pensadores contemporáneos que puedan contribuir
para la comprensión de la materia.
PALABRAS-CLAVE: Fundamentos del periodismo. Ética periodís-
tica. Responsabilidad social. Paulo Freire.
.
Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

Referências

AMARAL, Luiz. Técnica de jornal e periódico. Rio de


Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969..
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA. Princípios
internacionais da ética profissional no jornalismo.
Disponível em: <http://www.abi.org.br/paginaindividual.
asp?id=455> Acesso em: 13 abr. 2009.
CHAPARRO, Manuel Carlos. Pragmática do jornalismo.
São Paulo: Summus, 1994.

42
CÓDIGO de Ética dos Jornalistas Brasileiros. 2007.
Disponível em: http://www.fenaj.org.br/federacao/cometica/
codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros..pdf Acesso em:
13 abr. 2009.
DINES, Alberto. O Papel do jornal: uma releitura. 2.ed. São
Paulo: Summus, 1986.
FREIRE, Paulo. O Compromisso do profissional com a
sociedade. In: _____. Educação e mudança. 10.ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1983.
_____. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982.
GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da pirâmide: para uma
teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Tchê!, 1987.
IANNI, Octávio. O Príncipe eletrônico. In: ENCONTRO
ANUAL DA ANPOCS, 21., 1998, Caxambu. [Anais...]
Caxambu, 1998. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.
clacso.org.ar/ar/libros/anpocs/ianni.rtf> Acesso em: 14 maio
2009.
MARCONDES FILHO, Ciro. Sociedade tecnológica. São
Paulo: Scipione, 1994.
MEDINA, Cremilda. Profissão jornalista: responsabilidade
social. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
_____. O Signo da relação: comunicação e pedagogia dos
afetos. São Paulo: Paulus, 2006.
PEREIRA, Fábio Henrique. Da responsabilidade social ao
jornalismo de mercado: o jornalismo como profissão. Lisboa:
Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2004a.
Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/pereira-fabio-
responsabilidade-jornalista.pdf> Acesso em: 13 abr. 2009.
_____. De Gramsci a Ianni: condições histórico-estruturais
para a emergência do “intelectual jornalista”. Lisboa:
Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2004a.
Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/pereira-fabio-de-
gramsci-a-ianni.pdf> Acesso em: 13 abr. 2009.
RUSSELL, Bertrand. Ética e política na sociedade humana.
Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à
consciência filosófica. 11.ed. Campinas: Autores Associados,
1993.
TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: porque as
notícias são como são. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2005. V.1.
.Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009

Jorge Kanehide Ijuim


Doutor de Ciências da Comunicação/Jornalismo
pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade Federal de São Paulo (USP).
Professor do Programa de Mestrado em Jornalismo
da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
Email: [email protected]

43

Você também pode gostar