AResponsabilidade Social Do Jornalista EOPensamento de Paulo Freire
AResponsabilidade Social Do Jornalista EOPensamento de Paulo Freire
social do jornalista e o
pensamento de Paulo
Freire
Jorge Kanehide Ijuim
RESUMO
Neste trabalho, de caráter ensaístico, pretendo discutir alguns
aspectos sobre a responsabilidade social do jornalista a partir
de algumas ideias de Paulo Freire. Tal preocupação vem de meu
entendimento de que o jornalismo não é um simples conjunto
de técnicas, nem tampouco aceito ao jornalista o papel de mero
produtor de notícias. Para tanto, tomarei como ponto de partida
um de seus textos clássicos, intitulado O compromisso do pro-
fissional com a sociedade e, através do seu pensamento, refletir
sobre determinados dilemas do profissional – e da profissão –,
além de dialogar com outros pensadores contemporâneos que
possam contribuir para a compreensão do tema.
PALAVRAS–CHAVE: Fundamentos do jornalismo. Ética jornalís-
tica. Responsabilidade social. Paulo Freire.
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1 Óbvio, mas nem tanto
A questão da responsabilidade social parece ser algo con-
sagrado no meio jornalístico. A expressão, que carrega força e
impacto, é comumente usada como bordão de campanhas insti-
tucionais e/ou mercadológicas de empresas de comunicação. Tal
consagração talvez advenha do papel histórico da imprensa de
ser tribuna para debates e instrumento de movimentos decisivos
que culminaram em conquistas expressivas para a sociedade. O
respeito a este papel histórico faz com que tenha destaque em
documentos fundamentais dos profissionais de imprensa, como
nos Princípios Internacionais da Ética Profissional no Jornalismo.
O texto obtido em debates promovidos pela Unesco, na década
de 1980, foi subscritado por várias organizações internacionais de
jornalistas, inclusive a Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Seu Princípio III assinala:
Informação em jornalismo é compreendida como bem social e não
como uma comodidade, o que significa que os jornalistas não estão
isentos de responsabilidade em relação à informação transmitida
e isso vale não só para aqueles que estão controlando a mídia,
mas em última instância para o grande público, incluindo vários
interesses sociais. A responsabilidade social do jornalista requer
que ele ou ela agirão debaixo de todas as circunstâncias em con-
formidade com uma consciência ética pessoal. (ASSOCIAÇÃO...,)1 1
Documento eletrônico.
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Por isso, ação e reflexão são constituintes inseparáveis e a
própria maneira humana de existir. E existir é algo mais profundo
do que, descuidadamente, possamos imaginar, como enfatiza
Paulo Freire:
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com a cultura – que ele contribui com sua construção, assim como a
cultura contribui com a sua construção. Esta relação se dá de forma
vertical – domínio dos objetos e do conhecimento historicamente
acumulados [prático-utilitário]; e no nível horizontal – na relação
homem/homem [colaboração] (SAVIANI, 1993, p. 53-55). Em
outros termos, humanização para Saviani abriga o mesmo sentido
de solidariedade também invocado por Freire.
Por isso mesmo, o compromisso com a humanização dos
homens, que implica uma responsabilidade histórica, segundo o
autor, não pode realizar-se através do palavrório, nem de nenhuma
outra forma de fuga do mundo, pois:
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–, o comentarista parece ter confundido solidariedade com mora-
lismo. Neste episódio, em detrimento de seu papel de mediador
social – que poderia ser o de provocar uma reflexão –, assumiu
uma posição de promotor e de juiz.
2.3 Humanização, solidariedade com quem?
Cabe também questionar a quem a imprensa e seus profissio-
nais devem solidariedade. Como ler/compreender a pauta? Como
transformar a pauta numa narrativa que crie identificação com a
audiência? Destacamos outro episódio ilustrando esse caso.
O IBGE divulga periodicamente os resultados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). O relatório, dis-
ponibilizado em setembro de 2008, apresentou a evolução do país
em aspectos como população ativa, trabalho com carteira assinada,
trabalho infantil, acesso à educação formal, entre outros. Dois
grupos de comunicação de grande abrangência cobriram o tema
de formas bem distintas.
O jornal Folha de S. Paulo publicou, no dia seguinte à divul-
gação, uma série de matérias sobre o assunto, destacando o que
chamou de “Retrato do Brasil”. Vale ressaltar que as treze matérias
se basearam fundamentalmente no relatório do IBGE; além disso,
foram ouvidas as fontes oficiais, em especial o diretor que coorde-
nou a pesquisa, os Ministros do Trabalho e da Previdência.
O segundo jornal analisado, O Estado de São Paulo, também
no dia seguinte, publicou um caderno de seis páginas, intitulado
PNAD Especial. As pautas, aparentemente semelhantes, foram
desenvolvidas de forma diversa. Além do relatório do IBGE e das
fontes oficiais, O Estadão preocupou-se em ouvir os beneficiados
com as carteiras assinadas, as pessoas que tiveram maior acesso aos
bens de consumo, os novos alfabetizados, os trabalhadores infantis.
As diferenças na construção das reportagens podem parecer
sutilezas, mas não são. O primeiro jornal foi competente para ana-
lisar o “retrato do Brasil” num ponto de vista macro: o que cresceu,
como, por quê. O segundo, além disso, lembrou que tais números
são constituídos por pessoas que têm nome, endereço, identidade.
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para tomar decisões. E no caso de O Estado, teria sido num sentido
mais amplo [no varejo], pelo qual mais pessoas puderam “se ver”,
se identificar nas matérias. De certa forma, essa polifonia não teria
conseguido produzir mais sentido à audiência? Por estas razões, me
parece que a solidariedade também depende de estratégias e abor-
dagens pelas quais cumprimos nossos anseios de transformação.
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interligar fragmentações, através da conquista de ferramentas
de trabalho de amplo alcance e de códigos pluralistas, e não o
retrocesso de platéias fechadas, incomunicadas com a maioria dos
estratos sociais (MEDINA, 1982, p. 134).
Como sublinha a autora, como um agente cultural, ao jorna-
lista cabe “[...] produzir narrativas atravessadas por contradições,
embates de visões de mundo, incertezas e interrogações[...] ” – não
as “certezas” que o impele a acusar e julgar. Se sua legítima especia-
lização é a de produzir sentidos, o uso de uma “[...] linguagem
dialógica enfrenta não apenas a polifonia, mas a complexidade
conflitiva dos diferentes.” (MEDINA, 2006, p. 81-82).
Por essas razões, o enfrentamento ao risco da especialização
profissional requer o constante aperfeiçoamento técnico, intelec-
tual, ético – a capacidade de refletir para agir.
4 Considerações finais
Ao reexaminar O Compromisso do profissional com a sociedade,
proposto por Paulo Freire, a intenção não é retomar teorias como
a da “Ação política” – na versão da esquerda – que contestavam a
atuação da mídia como maneira unicamente de manutenção do
establishment. Mesmo porque estas aludiam aos profissionais um
papel “passivo”, uma vez que os consideravam, de certa forma,
impotentes diante do poder instituído. Adelmo Genro Filho
já havia refutado tais versões ao constatar que o jornalismo de-
sempenha função muito maior que a contestação à hegemonia
capitalista. Para ele, um de seus papéis relevantes é a produção
social do conhecimento (GENRO FILHO, 1987).
O propósito, no entanto, é reconhecer que vivemos um mo-
mento de transição – na soci-edade e no jornalismo – marcado
pelo estado de indefinição com relação ao papel do profissional,
como bem alertou Fábio Henrique Pereira. O quadro desenhado
pelo pesquisador dá conta que esta identidade do jornalista se
forma a partir de um duplo discurso – a fala humanista e a fala
tecnológico-metodológica.
.
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mais ágeis, dinâmicas, práticas para grande faixa de público. Assim
também, tais tecnologias proporcionaram opções de convergên-
cia de mídias, que podem oferecer, com maior versatilidade,
informações variadas, em menor tempo, com mais abrangência,
conforme o gosto e a necessidade da audiência. Como decorrên-
cia, no entanto, pode-se averiguar que, quanto maior a agilidade e
a eficiência desses “novos meios”, mais aumenta a pressa, o desejo
pelo furo, a ansiedade por maior cobertura... maior concorrên-
cia... entre algumas outras consequências.
Esse quadro, muito rapidamente esboçado, nos leva a inferir
algo preocupante: redações menores, todos com menor tempo
para produção em alta escala... menos tempo para pensar.
Por outro lado, o sociólogo Octávio Ianni assinala o esta-
belecimento de um cenário que possibilita o aparecimento da
mídia como o “príncipe eletrônico” (IANNI, 1998). Ele destaca
alguns indícios que apontam para o “envelhecimento” dos antigos
príncipes [Maquiavel] nas atuais condições históricas. Seriam eles:
a) o processo de formação de uma sociedade civil mundial;
b) o surgimento de novas tecnologias que agilizam os
processos sócio-culturais e político-sociais em todo o
mundo, e
c) a emergência de uma nova configuração histórico-social
da vida, trabalho e cul-tura.
O “príncipe eletrônico” subordina, recria e absorve ou
simplesmente ultrapassa os outros príncipes. Como entidade
hegemônica, expressa formas e visões alternativas do que acon-
tece no mundo – seja com a postura humanizadora, solidária,
ou a de déspota, que se vê no direito de acusar e julgar. Como
salienta Ianni:
Ao lado das suas atividades pluralistas e democráticas, fa-
vorecendo o debate, a controvérsia e a mudança social em geral,
é inegável que a mídia influencia mais ou menos decisivamente
a integração, isto é, a articulação sistêmica de uns e outros, con-
4
Documento eletrônico. tingentes e idéias, em escala local, nacional, regional e mundial
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(IANNI, 1998)4.
E é justamente nesse contexto que aflora o grande e funda-
mental desafio – persistir no princípio, e na postura, da human-
ização, pela ação e reflexão sobre a realidade.
Os postulados de Paulo Freire são incisivos. As aspirações e
os interesses globais da sociedade devem se sobrepor aos inter-
esses de grupos, sejam políticos, econômicos ou pessoais. A defesa
última de Paulo Freire em prol da resistência invoca o “projeto
histórico” em permanente construção: “Fugir da concretização
deste compromisso é não só negar-se a si mesmo como negar o
próprio projeto nacional.” (FREIRE, 1983, p. 25).
Como argumento final, recorro a um pensamento de Me-
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dina: “Na dura estratificação social, verdadeira muralha muitas
vezes instransponível, o jornalista precisa cavar sua trincheira e
avançar, gradativa e firmemente.” (MEDINA, 1982, p. 23). Por
outras pala-vras, pessoalmente, assumo meu dever de persistir
no compromisso aqui debatido. Senão com a imprudência do
“peito aberto na linha de frente”, mas buscando as “brechas” do
sistema geralmente fechado para, dia após dia, concretizar nosso
projeto – de vida e profissional.
Referências
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.Em Questão, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 31 - 43, jul./dez. 2009
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