HISTÓRIA E MEMÓRIA DA UMBANDA: O MITO DE FUNDAÇÃO NA
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE UMBANDISTA
André Luiz Freire Pereira
Dissertação apresentada à banca examinadora
composta no âmbito do Programa de Pós-
Graduação em Relações Étnico-raciais (PPRER),
do Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Relações Étnico-raciais.
Orientador: Prof. Dr. Samuel Silva Rodrigues de
Oliveira
Coorientador: Prof. Dr. Felipe Wircker Machado
Rio de Janeiro/RJ
2023
HISTÓRIA E MEMÓRIA DA UMBANDA: O MITO DE FUNDAÇÃO NA
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE UMBANDISTA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-raciais
(PPRER), do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ),
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Relações Étnico-
raciais.
André Luiz Freire Pereira
Banca Examinadora:
____________________________________________________________________
Presidente, Professora Drª. Aline da Fonseca Sá e Silveira (CEFET/RJ)
____________________________________________________________________
Professor Dr. Samuel Silva Rodrigues de Oliveira (CEFET/RJ) (Orientador)
______________________________________________________________
Professor Dr. Felipe Wircker Machado (CEFET/RJ) (Coorientador)
_____________________________________________________________
Professor Dr. Eduardo Quintana (UFF)
______________________________________________________________
Professora Drª. Mariana Renou (CEFET/RJ)
______________________________________________________________
Professor Dr. Roberto Carlos da Silva Borges (CEFET/RJ)
SUPLENTES
______________________________________________________________
Professor Dr. Renan Ribeiro Moutinho (CEFET/RJ)
______________________________________________________________
Professora Drª. Maria Renilda Nery Barreto (UEBA)
Rio de Janeiro/RJ
2023
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do CEFET/RJ
P436 Pereira, André Luiz Freire
História e memória da umbanda: o mito de fundação na
construção da identidade umbandista / André Luiz Freire
Pereira – 2023.
236f. il. (algumas color.) + [anexos], enc.
Dissertação (Mestrado). Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, 2023.
Bibliografia: f. 229-236.
Orientador: Samuel Silva Rodrigues de Oliveira.
Coorientador: Felipe Wircker Machado.
1. Umbanda. 2. Cultos afro-brasileiros – História.
3. Religiosidade. 4. Relações étnicorraciais. 5. Brasil – Relações
raciais. I. Oliveira, Samuel Silva Rodrigues de (Orient.).
II. Felipe Wircker Machado (Coorient.). III. Título.
CDD 299.8
Elaborada pelo bibliotecário Leandro Mota de Menezes – CRB/7 nº 5281
Dedico este trabalho à Maria José (in
memoriam) por me ensinar as letras, e a Maria
do Socorro (in memoriam) e Severino Dadá por
me ensinarem o gosto pelas letras.
AGRADECIMENTOS
Chegar para agradecer e louvar.
Louvar o ventre que me gerou
O orixá que me tomou,
E a mão da doçura de Oxum que consagrou.
Louvar a água de minha terra
O chão que me sustenta, o palco, o massapê,
A beira do abismo,
O punhal do susto de cada dia.
Agradecer as nuvens que logo são chuva,
Sereniza os sentidos
E ensina a vida a reviver.
Agradecer os amigos que fiz
E que mantém a coragem de gostar de mim, apesar de mim…
Agradecer a alegria das crianças,
As borboletas que brincam em meus quintais, reais ou não.
Agradecer a cada folha, a toda raiz, as pedras majestosas
E as pequeninas como eu, em Aruanda.
Agradecer o sol que raia o dia,
A lua que como o menino Deus espraia luz
E vira os meus sonhos de pernas pro ar.
Agradecer as marés altas
E também aquelas que levam para outros costados todos os males.
Agradecer a tudo que canta no ar,
Dentro do mato sobre o mar,
As vozes que soam de cordas tênues e partem cristais.
Agradecer os senhores que acolhem e aplaudem esse milagre.
Agradecer,
Ter o que agradecer.
Louvar e abraçar!
Maria Bethânia
Agradecer aos guias e entidades espirituais que de alguma maneira me fazem crer que
estou no caminho certo. À Maria Padilha das Sete Encruzilhadas que, muito antes de tudo isso,
me dizia que o meu caminho era “com papéis” e à vovó Maria Conga, minha madrinha na
Umbanda, que sempre me faz pensar.
À Maria do Carmo, dirigente da Casa de Samir, por toda colaboração e amizade. À
ialorixá Carmem de Iemanjá, ao ogã Fernando e à Tia Dina pela colaboração e recepção
calorosa. Ao Babalorixá Brenno de Xangô por todos os ensinamentos e pela amizade.
Aos meus amigos, Alexandre, Carlos Santos, Fábio Ribeiro, Jordão Miguel da Silva,
Marcos Josephino, Mateus Torres, Maurício Margalho, Natália Fernandes, Raquel Nascimento,
Samanta Cunha, Viviane de Oliveira Lima por toda contribuição lendo e comentando o projeto,
fazendo sugestões, tirando dúvidas, fornecendo bibliografia e ajudando a pensar diferentes
passos do processo.
Aos meus familiares: minha mãe Ademilta Pereira, meu pai Fernando Pereira, minha
irmã Janaízy Souza, meu cunhado Fabrício Souza, meus sobrinhos Luiz Fernando e Milena.
À Irmandade Fraternidade Casa de Iemanjá pela atenção e disponibilidade em ajudar.
Ao Pai Fernando de Oxum da Tenda Espírita São Lázaro, um dos responsáveis pelo
projeto Museu Umbanda; e ao Bruno, secretário-geral da União Espiritista de Umbanda do
Brasil (UEUB), pelas informações prestadas e pelo trabalho que têm feito em defesa da religião.
Ao orientador Samuel de Oliveira pelo entusiasmo com que sempre abordou o meu
trabalho, pelas valiosas lições e por todo o seu profissionalismo e dedicação. E ao coorientador
Felipe Wircker por suas observações e sugestões.
RESUMO
História e memória da Umbanda: o mito de fundação na construção da identidade
umbandista
O mito de fundação da Umbanda e a figura de Zélio Fernandino de Moraes têm sido
centrais nos debates sobre o surgimento da religião e sobre seu processo de branqueamento. As
críticas a essa centralidade questionam o fato de tal debate se concentrar no discurso e na
produção literária de um grupo umbandista específico, branco e de classe média. Esta
dissertação busca ampliar o debate e incluir a oralidade dos terreiros. Após realizar uma
reconstrução da formação do mito, parte-se da distinção entre memória enquadrada e memória
subterrânea de Michel Pollak para analisar duas casas de Umbanda. A Casa de Samir, centro
kardecista convertido em Umbanda, e o Ilê Asé Yá Togun Benã, casa de Candomblé e
Umbanda. Por meio de entrevistas semiestruturadas com as lideranças, a dirigente Maria do
Carmo e a ialorixá Carmem de Iemanjá, analisa-se a aceitação de tal mito e da figura de Zélio
Fernandino, tentando compreender os elementos que permitem o sucesso do trabalho de
enquadramento da memória e seus limites.
Palavras-chave: Umbanda; branqueamento; memória
ABSTRACT
History and memory of Umbanda: the founding myth in the construction of Umbanda
identity
Umbanda's founding myth and the figure of Zélio Fernandino de Moraes have been
central to debates about the emergence of religion and its whitening process. Criticisms of this
centrality question the fact that such a debate focuses on the discourse and literary production
of a specific, white, middle-class Umbanda group. This dissertation seeks to broaden the debate
and include the orality of the terreiros. After carrying out a reconstruction of the formation of
the myth, we start with the distinction between framed memory and underground memory by
Michel Pollak to analyze two Umbanda houses. Casa de Samir, a Kardecist center converted
into Umbanda and Ilê Asé Yá Togun Benã, home of Candomblé and Umbanda. Through semi-
structured interviews with the leaders, the leader Maria do Carmo and the ialorixá Carmem de
Iemanjá, the acceptance of such a myth and the figure of Zélio Fernandino is analyzed, trying
to understand the elements that allow the success of the work of framing the memory and its
limits.
Keywords: Umbanda; whitening; memory
Lista de Figuras
Figura 1................................................................................................................80
Figura 2................................................................................................................85
Figura 3................................................................................................................94
Figura 4..............................................................................................................108
Figura 5..............................................................................................................142
Figura 6..............................................................................................................144
Figura 7..............................................................................................................175
Figura 8..............................................................................................................194
Lista de tabelas
Tabela 1..............................................................................................................111
Tabela 2..............................................................................................................151
Tabela 3..............................................................................................................152
SUMÁRIO
Introdução 12
1. Umbanda e branqueamento 31
1.1 As Ciências Sociais e as religiões afro-brasileiras 38
1.2 Umbanda e branqueamento 43
2. Umbanda e espiritismo 61
2.1 Umbanda como religião 70
2.2 Leal de Souza e a Linha branca de umbanda e demanda 77
2.3 O espiritismo africano ou afro-espiritismo 89
2.4 Caboclos, pretos-velhos e exus 98
3. O Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda 105
3.1 A origem oriental 115
3.2 A origem africana 123
3.3 Caboclos e pretos-velhos 129
3.4 A religião Umbanda 137
4. De religião brasileira ao mito fundador 143
4.1 O mercado religioso 158
4.2 Tatá Tancredo e o africanismo na Umbanda 163
4.3 A construção do mito de fundação 166
4.4 Zélio Fernandino de Moraes 173
5. Memórias de terreiro, para além do mito 181
5.1 A inserção 185
5.2 Técnica de pesquisa: história de vida 191
5.3 A Casa de Samir e a dirigente Maria do Carmo 193
5.4 Ialorixá Carmem de Iemanjá e o Ilê Asé Yá Togun Benã 205
5.5 O mito de fundação nos terreiros 220
Considerações finais 223
Referências bibliográficas 228
Anexos 236
12
Introdução
- Eu estava paralítico, desenganado pelos médicos. Certo dia, para
surpresa de minha família, sentei-me na cama e disse que no dia
seguinte estaria curado. Isso foi a 14 de novembro de 1908. Eu tinha 18
anos. No dia 15, amanheci bom. Meus pais eram católicos, mas diante
dessa cura inexplicável, resolveram levar-me a Federação Espírita de
Niterói, cujo presidente era o senhor José de Souza. Foi ele mesmo que
me chamou para que ocupasse um lugar à mesa de trabalhos, à sua
direita. Senti-me deslocado, constrangido, no meio daqueles senhores.
E causei logo um pequeno tumulto. Sem saber por quê, em dado
momento, eu disse: “Falta uma flor nesta mesa, vou busca-la.” E, apesar
da advertência de que não poderia me afastar, levantei-me fui ao jardim
e voltei com uma flor que coloquei no centro da mesa. Serenado o
ambiente e iniciado os trabalhos, verifiquei que os espíritos que se
apresentavam aos videntes, como índios e pretos, eram convidados a se
afastar. Foi então que, impelido por uma força estranha, levantei-me
outra vez e perguntei por que não podiam se manifestar esses espíritos
que, embora de aspecto humilde, eram trabalhadores. Estabeleceu-se
um debate e um dos videntes, tomando a palavra indagou:
- O irmão é um padre jesuíta. Por que fala dessa maneira e qual é o seu
nome?
Respondi sem querer:
- Amanhã estarei na casa deste aparelho, simbolizando a humildade e a
igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e
desencarnados. E se querem um nome, que seja este: sou o Caboclo das
Sete Encruzilhadas.
Minha família ficou apavorada. No dia seguinte, verdadeira romaria
formou-se na rua Floriano Peixoto, onde eu morava, no número 30.
Parentes, desconhecidos, os tios, que eram sacerdotes católicos, e quase
todos os membros da Federação Espírita, naturalmente, em busca de
uma comprovação. O Caboclo das Sete Encruzilhadas manifestou-se,
dando-nos a primeira sessão de Umbanda na forma em que, daí para
frente, realizaria os seus trabalhos. Como primeira prova de sua
presença, através do passe, curou um paralítico, entregando a conclusão
da cura ao Preto-Velho Pai Antônio, que nesse mesmo dia se
apresentou. Estava criada a primeira Tenda de Umbanda, com o nome
de Nossa senhora da Piedade, porque assim como a imagem de Maria
ampara em seus braços o Filho, seria o amparo de todos que a ela
recorressem.1
No ano de 1972, era inaugurada a revista Gira da Umbanda. Em seu primeiro
número trouxe a matéria “Eu fundei a Umbanda”, na qual o relato acima transcrito, foi o
ponto de partida para a construção de uma nova memória sobre a origem da religião.
Segundo essa interpretação, a religião foi fundada no dia 15 de novembro de 1908 pelo
1
Entrevista de Lilia Ribeira publicado na revista Gira de Umbanda, 1972 apud CUMINO, Alexandre.
História da Umbanda: uma religião brasileira. [São Paulo: Madras, 2010]
13
Caboclo das Sete Encruzilhadas através do médium Zélio Fernandino de Moraes como
uma resposta ao preconceito existente entre os kardecistas que não permitiam a
manifestação dos espíritos de indígenas e pretos.
Uma rápida pesquisa na internet relevará livros, sites, redes sociais e vídeos
reproduzindo essa história, sejam estas mídias umbandistas ou não. Fato que faz com que
autores como Artur Cesar Isaia (1999) e André de Oliveira Pinheiro (2012) assumam que
a narrativa de Zélio Fernandino, como o fundador da religião, seja aceita pela maioria dos
adeptos. Sendo verdade ou não, a representação da Umbanda como o produto de uma
revelação do Caboclo das Sete Encruzilhadas se tornou central na reflexão sobre seu
surgimento, como atesta Bruno Faria Rhode:
Tal marco-mito já foi narrado ou mencionado inúmeras vezes nos mais
diversos contextos, como livros de umbandistas e estudiosos da religião
(duas categorias que obviamente podem se sobrepor), revistas
umbandistas, sites diversos e apostilas formuladas por terreiros e
federações. É difícil encontrar um texto, acadêmico ou não, sobre a
umbanda (a não ser quando trata de questões muito específicas) que não
faça uma referência direta ou indireta a ele, tratando-o como mito
propriamente dito ou como marco histórico (ROHDE 2009, p. 79).
O objetivo desta dissertação é refletir sobre o que Michael Pollak (1989) chama
de “trabalho de enquadramento da memória” e seus limites a partir do debate em torno
das origens da Umbanda. Como se verá, a construção da memória e da representação da
religião entre adeptos e acadêmicos reflete os debates em torno da ideologia do
branqueamento no Brasil.
A fim de perceber a reprodução ou não da história de Zélio Fernandino de Moraes
e buscar possíveis memórias subterrâneas se analisará duas casas que praticam a
Umbanda, porém seguem tradições diferentes. Por meio de entrevistas com as lideranças
dos terreiros, analisamos elementos da construção das representações da umbanda. A
primeira entrevistada foi a dirigente Maria do Carmo da Casa de Samir, centro
umbandista de origem kardecista fundado em 1952 no bairro Rio do Ouro, São Gonçalo.
A segunda foi a ialorixá Carmem de Iemanjá do Ilê Asé Yá Togun Benã no bairro do
Zumbi, na mesma cidade. Uma casa de Candomblé e Umbanda.
14
A formação da Umbanda
É no contexto das décadas de 1920 e 1930 que se tem pensado a formação da
Umbanda. Parte da historiografia toma como sua origem o início do século XX. Renato
Ortiz (1999), Reginaldo Prandi (1990), José Henrique M. Oliveira (2006) e outros
associam a religião e sua formação às transformações sociais do período, particularmente
aquelas ligadas à fase republicana, e as ideologias a ela relacionadas, especialmente, a
ideologia do branqueamento e da democracia racial.
Diana Brown (1985) designa a história de fundação dessa religião por meio de
Zélio de Morais como “mito de origem (ou de fundação) da Umbanda”, expressão
reutilizada por pesquisadores posteriores. Acredita que seu advento se deu por volta dos
anos 1920 por uma classe média branca descontente com o kardecismo.
Ao analisar a atuação da sociedade branca sobre os cultos afro-brasileiros, Renato
Ortiz (1999) a entende como o resultado direto das transformações sociais na sociedade
brasileira no final do século XIX e início do século XX. A abolição da escravatura, a
Proclamação da República, e a incipiente e relativa integração de negros a uma sociedade
urbana e de classes propiciaram o encontro entre a macumba e o espiritismo kardecista
que foram sintetizadas na Umbanda por volta dos anos 1930. O seu surgimento
representa, portanto, um processo de incorporação seletiva de elementos ritualísticos das
chamadas macumbas cariocas por membros de uma classe média branca kardecista. O
embranquecimento para Renato Ortiz significa a negação de tudo o que, na prática
daqueles cultos, contrariasse a moral e os costumes cristãos, o cientificismo, a
modernidade e a urbanidade.
No mesmo sentido, Reginaldo Prandi (1990) pensa a história das religiões afro-
brasileiras em três momentos: o sincretismo, formação das modalidades tradicionais até
1930; branqueamento, a formação da Umbanda entre 1930 e 1960; e africanização,
negação do sincretismo, adoção do aprendizado não oral, e mudança ritual e doutrinária
a partir dos anos 1960. A Umbanda seria o resultado do esforço de apagamento das
origens africanas e ajustamento à sociedade branca que possui como principais
características, a valorização da cultura europeia, da organização burocrática, do
conhecimento escolar e do capitalismo. Além disso, já reconhecia o Kardecismo como
religião tomada como parâmetro na elaboração do novo culto.
15
Os intelectuais umbandistas tiveram um papel de destaque nesse esforço. Seus
objetivos eram conferir à Umbanda o status de religião e garantir o seu reconhecimento
social. Nesse sentido, duas estratégias refletem a liderança desses intelectuais no período
de sua formação. A primeira delas é a fundação da Federação Espírita de Umbanda em
1939 visando negociar o fim da perseguição policial intensificada com a criação da Sessão
de Tóxicos e Mistificações da polícia. A segunda estratégia foi a realização do Primeiro
Congresso de Espiritismo de Umbanda, em 1941, com duas funções na visão de José
Oliveira (2006): unificar o culto estabelecendo uma doutrina pautada na caridade e
desmistificar os rituais mágicos para a sociedade laica via explicações científicas.
Nesse congresso seriam ainda elaboradas explicações para as origens da religião
correlacionando-a a antigas civilizações como Índia, Egito ou ainda continentes míticos
como a Lemúria ou Atlântida. No afã de legitimar o culto para que pudessem professá-la
livremente, os intelectuais umbandistas vão buscar uma doutrina mínima que fosse capaz
de atenuar o preconceito. Da mesma maneira que os trabalhadores na Era Vargas, os
umbandistas ao invés de adotarem uma política de enfrentamento preferiram assimilar o
projeto político-ideológico estado-novista. Assim, sua estratégia de legitimação seguiu a
construção de uma identidade próxima à cientificidade kardecista e distante das práticas
religiosas de matriz africana.
Portanto, quando a nova religião foi apresentada como brasileira, os
intelectuais queriam dizer à sociedade que a umbanda não era apenas
uma religião de origem afro-indígena, mas o resultado da evolução
cultural do povo brasileiro. A estratégia era aproximá-la de uma
representação mestiça da nacionalidade, tão apreciada pelos ideólogos
do Estado varguista.” (OLIVEIRA, José 2006, p. 138)
Nesse sentido, a filiação ao espiritismo francês e às filosofias orientais
configuram-se em estratégia para desmontar uma tradição africana que era vista como
permanência de um atraso que se erigia como obstáculo à modernização do país. Marco
Paulo Amorim dos Santos (2016) ressalta que essa filiação reflete uma visão de
civilização ligada ao pensamento de intelectuais franceses em fins do século XIX e início
do XX. Essa visão assentia a cultura como o resultado de uma civilização em moldes
universalistas e ocidentais e afirmava o primitivismo das sociedades africanas vendo em
suas manifestações artísticas e culturais uma “infância” da humanidade. Corrobora essa
leitura o discurso de Marta Justina no Primeiro Congresso
16
Isto no Brasil já dista de mais de meio século; e como nada estaciona
no mundo, obedecendo a lei imutável do Criador, a Lei de Umbanda
também segue seu curso evolutivo, saindo das grotas, das furnas, das
matas, abandonando os anciões alquebrados, fugindo dos ignorantes,
quebrando as lanças nas mãos dos perversos, vem nessa vertigem louca
de progresso, infiltrando-se nas cidades para receber o banho de luz
da civilização2, e em troca nos oferece a sua utilidade que não é mais
do que suas obras de Caridade praticadas pêlos espíritos que formam as
grandes falanges dos africanos, digo, os que tiveram por berço material
a África; eles trabalham no grande laboratório do Universo,
manipulando os fortes remédios para curar as terríveis enfermidades da
humanidade. (JUSTINA 1941: s/p)
Apesar das diferenças, a Umbanda era vista como uma corruptela africana de
cultos milenares. O trabalho destes intelectuais seria justamente devolver a dignidade de
tais cultos mediante uma unificação que estabelecesse critérios racionais e científicos para
a organização dos ritos. Parte dos textos apresentados levantaram questões sobre que
práticas deveriam se manter ou ser excluídas.
Da mesma maneira que José Oliveira (2006), Santos (2016) destaca a intrínseca
relação entre a estratégia de legitimação da Umbanda no Primeiro Congresso e a ideologia
estado-novista. A incorporação de espíritos ancestrais negros e índios mais aculturados,
a aglutinação com as categorias espíritas, as referências às religiões afro-brasileiras como
elemento de atraso e primitivismo, a associação da origem da religião com a então capital
da República, a valorização dos pressupostos do Estado laico presentes nas Constituições
de 1934 e 1937, o fato de ignorar a inclusão da Umbanda no controle do Departamento
de Tóxicos e Mistificações da Polícia no Rio de Janeiro (1934-1950), a relativização da
perseguição pautada em pressupostos de obediência, a aglutinação da Umbanda em três
raças, o apagamento da diversidade em prol de uma ideologia do conjunto e da
nacionalidade e, por fim, a ideia de disciplina que se completa com o pensamento
kardecista e com o pensamento do Estado-Novo acerca do trabalho. Todos esses
elementos configuram o que o autor chama de “gramática da repressão”.
Emerson Giumbelli para saber qual seria o papel efetivo de Zélio de Moraes na
organização da Umbanda, no Rio de Janeiro, analisou livros e jornais acadêmicos e
umbandistas a partir da década de 1920. Concluiu que as referências à sua centralidade
se dão após 1960, sobretudo na década de 1970. O mito de fundação da Umbanda é,
2
Grifo meu.
17
portanto, uma construção tardia (RHODE, 2009). Enquanto construção tardia, os esforços
de um grupo específico, assinalados pelos autores como brancos e de classe média, para
construir determinada versão da origem se apresenta enquanto um projeto hegemônico de
memória tanto na apresentação do Primeiro Congresso Umbandista de 1941:
Fundada a Federação Espírita de Umbanda há cerca de dois anos, o seu
primeiro trabalho consistiu na preparação deste Congresso,
precisamente para nele se estudar, debater e codificar esta empolgante
modalidade de trabalho espiritual, a fim de varrer de uma vez o que por
aí se praticava com o nome de Espiritismo de Umbanda3, e que no nível
de civilização a que atingimos não tem mais razão de ser.4
Quanto na produção de autores umbandistas contemporâneos. A exemplo do texto
de apresentação da obra História da Umbanda: uma religião brasileira do umbandista
Alexandre Cumino:
Quem quiser negar que a Umbanda é uma religião brasileira, que negue.
Quem quiser negar que foi Pai Zélio que fundou-a, que o negue. Mas
ninguém seja enganado por esses “infiéis”, porque as provas estão
dentro deste livro, que, espero, torne-se fundamental para o estudo,
tanto da história da Umbanda quanto dela própria como uma religião
brasileira, fundada por um brasileiro.
Inclusive, foi por sugestão minha que Alexandre retirou parte de suas
pesquisas deste livro, pois acredito que autores que tudo fizerem para
negar que a Umbanda é uma religião brasileira e que o seu fundador
foi Pai Zélio de Moraes, um brasileiro, não merecem sequer ser
lembrados ou citados5.
Não foram poucos os que se esforçaram para negar essa verdade
histórica, e o fizeram por puro egoísmo, uma vez que não foram eles
que receberam a árdua missão de fundarem uma religião em meio a
tantos cultos miscigenados já existentes no Brasil de 1908.
(SARACENI 2010, p. 19-20)
O debate sobre o branqueamento na Umbanda não pode se dar sem levar em
consideração os projetos dos fiéis para sua própria religião. Existe uma dimensão
consciente na produção de uma identidade e de uma memória. Verdadeiros ideólogos, os
intelectuais umbandistas buscam a legitimidade social e a adequação de suas práticas aos
seus próprios valores sociais refletidos em suas condições raciais e de classe. Assumi-la
3
Grifo meu.
4
CONGRESSO BRASILEIRO DO ESPIRITISMO DE UMBANDA, 1, 1941, Rio de Janeiro. Anais... Rio
de Janeiro: Federação Espírita de Umbanda, 1942.
5
Grifo meu.
18
como religião é garantir o direito à liberdade religiosa e assumi-la como espiritismo é
ressignificar as práticas negras a partir de valores e conceitos ocidentais.
Na visão de José Oliveira (2006) a associação da Umbanda aos valores correntes
da sociedade do período e a sua autoidentificação como religião brasileira foi uma
estratégia para se alcançar maior liberdade de culto. Rohde (2009), entretanto, não deixa
de salientar o racismo existente na construção de uma Umbanda que só se considera
verdadeira e pura, a chamada “Umbanda branca”, na oposição com qualquer religião de
matriz africana.
Mas, dentro desse debate sobre as origens da religião, Rohde (2009) se coloca
crítico à centralidade que se dá a esse grupo de intelectuais. Argumenta que a ideia de que
a Umbanda nasceu desse movimento de base kardecista no início do século XX não leva
em consideração o processo longo e complexo de formação de um universo religioso.
Reforça seu ponto de vista apontando o exemplo de Luiza Pinta e seu calundu em Minas
Gerais, que já no século XVIII apresentava várias práticas rituais hoje atribuídas a
Umbanda.
Ainda segundo Rohde (2009), há uma tendência generalizada em se tratar da
história, do processo de constituição da religião como um todo a partir das referências
que se tem em relação à origem de uma de suas partes constitutivas. Um movimento
específico que, ao ser considerado fundador, acaba por condicionar as interpretações
feitas sobre a religião por adeptos e estudiosos e o modo de vivenciar o universo das
práticas e crenças umbandistas.
A diversidade ritualística no meio umbandista e seu distanciamento da Umbanda
de Zélio Fernandino foram constatados em estudos mais recentes (Fernandes, S. 2013,
2014; Gonçalves, 2019). Este último reflete sobre uma formação longa e complexa da
Umbanda dividindo sua história em cinco partes: fase “pré-tráfico negreiro”, quando os
cultos indígenas e africanos eram independentes da influência portuguesa; a
“sincretização”, da efetiva colonização a fins no século XIX; a “institucionalização”, de
1908 até a década de 1970; o “paralelismo institucional” que se desenvolve durante o
mesmo período da institucionalização, mas se refere a uma pluralização dos ritos dentro
da Umbanda; e, por fim, a “sedimentação” de 1975 até hoje.
Dessa forma, ao se localizar a origem da Umbanda no início do século XX, toma-
se como fundamento o discurso e a atuação política de um grupo de umbandistas
19
específicos. Em geral, brancos, de classe média e com recursos suficientes para
empreenderem a construção de uma memória hegemônica através dos meios de
comunicação. Mas dada a diversidade ritualísticas e sociais entre os membros da religião,
será esta compreensão unânime entre seus adeptos? É preciso levar em consideração a
possibilidade da existência de representações do passado alternativas. Investigar as
memórias coletivas presentes em terreiros e transmitidas oralmente possibilitam refletir
sobre a questão e quiçá, encontrar “memórias subterrâneas”.
História e Memória
Enquanto noção vulgar, a memória individual refere-se ao processo parcial e
limitado de lembrar ou representar fatos passados. Processo que não permite precisão,
uma vez que é envolvido por esquecimentos, distorções, reconstruções, omissões,
parcialidades e hesitações. Constitui-se em categoria estática relacionada à imagem de
“depósito de dados”.
Obra pioneira no estudo do tema, Matéria e Memória (1896) de Henri Bergson,
oferece uma rica fenomenologia da lembrança e uma série de distinções de caráter
analítico. Compõe o centro dos debates sobre o tempo e memória provocando reações
que ajudaram a Psicologia Social a repensar os liames que unem lembranças e consciência
atual e, por extensão a lembrança e a ideologia (Bosi, 1979). Interroga-se sobre a
passagem da percepção das coisas para o nível da consciência. Sugere que a memória é a
“conservação dos fatos já vividos” que permite escolher entre alternativas que um novo
estímulo pode oferecer. A memória teria a função de limitar a indeterminação do
pensamento e da ação e de levar à reprodução de formas de comportamento que já deram
certo. Ela “constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção, o
lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas” (Bergson, 1999). A memória é o
processo que parte de uma imagem e por meio de associações de similaridade ou de
contiguidade vai tocando outras até formar um sistema. Assim, a recordação seria uma
organização extremamente móvel cuja base varia levando a diversidade de sistemas que
a memória pode produzir. Segundo Ecléa Bosi (1979), o que singulariza e distingue
Bergson das abordagens psicossociais posteriores é sua tentativa de provar a
espontaneidade e a liberdade da memória em oposição aos esquemas mecanicistas que a
20
alojam em algum canto do cérebro. Quer mostrar que o passado se conserva inteiro e
independente no espírito e que seu modo próprio de existência é um modo inconsciente.
Seu ponto central é a memória como “conservação do passado”.
Essa concepção de memória individual influenciou na concepção de memória
coletiva dentro das ciências humanas. A partir dela se permitiu uma oposição radical entre
memória e história, em que a primeira é um depósito de informações de dados e
lembranças passivas não problematizadas, e a segunda é um campo de conhecimento
necessariamente problematizador. Dentro da historiografia, esta noção encontra defesa
em Filosofia e História (1981) de José Honório Rodrigues, para o qual memória e história
não se confundem. A primeira seria lembrança, reminiscência, recordação, relato,
narração. A segunda, disciplina de análise e de crítica.
Em conclusão: a memória é depósito de dados, naturalmente estática,
pois configura um princípio de conservação, uma simples reprodução
dos sucessos anteriores existentes na vida animal superior; a tradição é
o respeito à continuidade de hábitos, costumes e ideias, é também
estática e contém contra si muitos aspectos negativos, ao lado de alguns
positivos; só a história é a análise crítica, dinâmica, dialética, julgadora
do processo de mudança e desenvolvimento da sociedade.
(RODRIGUES 1981, p. 48)
A memória seria fenômeno natural, uma forma elementar de história. Tradição,
memória e história implicariam posicionamentos diferentes com que o presente vê o
passado. A tradição mistificaria o passado, garantiria a autoridade, defenderia a situação
dominante, consolaria os saudosistas, e santificaria os erros e máculas da história. A
tradição estaria, irremediavelmente, atrelada à opressão e ao autoritarismo. Em oposição,
a história seria essencialmente crítica. Ela deveria explicar o passado conforme a
compreensão humana e os problemas do presente, pois, para o historiador, são as
inquietações do presente que levantam perguntas novas para documentos antigos. Como
a relação passado-presente-futuro é existencial, surgiria a necessidade de engajamento do
historiador com o presente e o futuro e a necessidade de conscientização desse
relacionamento. A história consistiria em ver o passado a luz dos problemas do presente
e seu trabalho, mais do que registrar, tratar-se-ia de avaliar. Sob essa perspectiva, a função
do historiador seria revelar o sentido da história. Ao contrário da tradição, não santificaria
nenhuma autoridade ou moralidade. Seu dever seria revelar a complexidade da conduta
21
humana e seu propósito de investigação seria produzir respostas para os problemas
fundamentais das mudanças nas atividades sociopolíticas e econômicas.
A relação memória-história é de condicionalidade, para o autor. Crítico à
tendência de se substituir a história pela memória no sentido de preservar o patrimônio
histórico e artístico, argumenta que a partir do momento em que palácios, igrejas,
imagens, fortalezas, monumentos e obras de arte em geral não podem ser separados das
situações e ideias históricas que permitiram sua representação estética, não se trataria de
memória, mas sim, de história. Alega não haver preservação sem uma cultura histórica
que lhe analise o valor. Ou seja, não há memória sem história. É somente a partir de uma
cultura histórica que pode existir uma memória de grandes fatos e de grandes figuras.
Jacques Le Goff (1990) explica que se utilizar do conceito de cultura histórica é
supor um "espírito do tempo" (Zeitgeist), um inconsciente coletivo. É abordar os
sentimentos da opinião pública sobre seu passado e considerar a atitude dominante em
uma sociedade histórica perante seu passado e sua história. Este conceito abarca tanto a
produção histórica profissional, quanto os fenômenos que constituem a mentalidade
histórica de uma época. Conforme este ponto de vista, os historiadores são os principais
intérpretes da opinião coletiva. Seu desenvolvimento enquanto fenômeno é
fundamentalmente moderno, sendo impulsionado pela Revolução Francesa através da
valorização do ensino da história e difundido nas massas pelo progresso do ensino escolar.
Sendo assim, a cultura histórica está imediatamente ligada à cultura escrita.
No tocante a relação história-memória, Le Goff (1990) afirma existir pelo menos
duas histórias. Uma, seria aquela produzida pela memória coletiva. Nas palavras do autor,
essencialmente mítica, deformada, anacrônica, porém, constituinte do vivido na relação
constante entre o passado e o presente. A segunda seria aquela produzida pelos
historiadores. A qual caberia a função de esclarecer a memória e retificar seus erros. Mas
se essas duas histórias são diferentes, elas, porém, tem um aspecto em comum. Ambas
são processos de reconstrução do passado a partir dos problemas do presente e de
perspectivas de futuro, sendo desejável, entretanto, “que a informação histórica, fornecida
pelos historiadores de ofício, vulgarizada pela escola (ou pelo menos deveria sê-lo) e os mass
media, corrija esta história tradicional falseada. A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a
retificar os seus erros” (op.cit: 29).
Entretanto, essa noção da memória como “depósito de dados ou atualização dos
vestígios” não resiste mais nas ciências humanas. José D’Assunção Barros (2009) afirma
22
que isso se dá pela criação do campo de estudos em Memória Social, iniciado com a
publicação do ensaio Memória Coletiva (1950) de Maurice Halbwachs; pelas mudanças
na concepção de memória individual entre psicólogos, biólogos e neurologistas; pelo
desenvolvimento das noções de “memória computacional” e “memória hereditária”; e
pela compreensão de que a memória individual sempre envolve dimensões coletivas.
O conceito de memória coletiva foi utilizado por Maurice Halbwachs para
entender a memória como um fenômeno coletivo e social. Para o autor ela é estruturada
a partir de pontos de referência que criam hierarquias e classificações; e reforçam
sentimentos de pertencimento e de fronteiras socioculturais. Entre estes pontos de
referência estão as “datas e personagens históricas de cuja importância somos
incessantemente relembrados” (POLLAK 1989, p. 3).
Para Halbwachs as lembranças individuais estão sempre inseridas em grupos de
referência, são resultados de um processo coletivo e fazem parte de um contexto social
específico. Elas são ao mesmo tempo, reconhecimento e reconstrução. Reconhecimento
porque porta o sentimento de já visto e reconstrução por dois motivos. Primeiro por ser
um resgate dos acontecimentos do passado a partir de um quadro de preocupações e
interesses atuais. Segundo, por ser localizada em um tempo, espaço e conjunto de relações
sociais específicas, “quadros sociais reais que servem de ponto de referência”
(HALBWACHS 1990, p. 9–10). A memória é, portanto, o trabalho de reconhecimento e
reconstrução de quadros sociais que permitem a permanência e a articulação dessas
lembranças.
Dessa maneira o autor faz a distinção entre memória individual e memória
coletiva. Esta é a memória de um grupo social. Aquela é um ponto de vista dessa memória,
não sendo possível uma memória individual deslocada e descontextualizada do seu grupo
de referência. Logo, toda lembrança individual é um produto social, visto que um
indivíduo sempre está inserido em um grupo. Por esse motivo o esquecimento está
associado a desagregação do grupo. A perca do grupo de referência enfraquece os
testemunhos que dão vitalidade as lembranças e garantem o seu compartilhamento.
Outra distinção feita por Halbwachs é entre memória coletiva e memória histórica.
A primeira diz respeito a memória viva de um grupo tendo sua manutenção na
convivência, estando diretamente ligada as experiências individuais. A memória
histórica, menos importante para a preservação da memória, vai ser responsável, no
23
entanto, por deixar marcas exteriores a vida coletiva, que poderão ser rememoradas. Ela
é responsável por selecionar e reunir acontecimentos que quando organizados em uma
narrativa produzem uma imagem uníssona do passado. Assim, a memória e o processo
mnemônico se dão de maneira ativa e dinâmica envolvendo especialmente um
“comportamento narrativo”. Pierre Janet considera o “comportamento narrativo” como
ato mnemônico fundamental caracterizado por sua função social, pois é a comunicação
ao outro que constitui seu motivo. Diante da intervenção da linguagem, produto da
sociedade, Henri Atlan estuda sistemas auto-organizadores aproximando linguagem e
memória. A utilização da linguagem permite que a memória extrapole os limites do corpo.
Se a memória envolve um comportamento narrativo, e a “narratividade”
é necessariamente um processo mediado pela Linguagem – esta que em
última instância é produto da Sociedade – tem-se aqui maior clareza de
como a dimensão coletiva também interfere na Memória individual.
Para além disso, com a consubstanciação da Memória através da
linguagem – falada ou escrita – a Memória abandona o campo da
experiência perceptiva individual e adquire a possibilidade de ser
comunicada, isto é, socializada. (BARROS, José 2009, p. 41)
Nessa perspectiva, a memória é concebida como campo de criação e dinamismo.
Para Pierre Nora, a memória está aberta a uma dialética de lembrança e esquecimento.
Seu interesse está em como ela surge e qual a sua relação dentro da história. Defende que
esta é responsável por presentificar a memória e dar a ela um sentido. Quando
rememoramos olhamos para o passado com os olhos do presente. É o ato de lembrar que
o presentifica. A memória sempre está viva, inerte na consciência até a ação de algum
estímulo. É ao mesmo tempo, individual e coletiva, atemporal e necessita de suportes da
história e da temporalidade para se legitimar enquanto fator histórico-social. Ela é
representação do passado, portanto, é registro.
Esses registros compreendem a apropriação de imagens e símbolos que
a memória agrega, se modificando a todo o instante, logo ela seleciona
aquilo que acredita ser importante registrar. Ela compreende uma rede
de processos biológicos e sociais (identidade, papéis sociais, vida
pública e vida privada, etc.) que desencadeiam uma teia de
acontecimentos importantes para a vivência dos sujeitos. Ela é um
repositório daquilo que vivenciamos, das nossas experiências sociais
coletivas e individuais (GARCIA 2015, p. 1364).
24
Ao mesmo tempo, a memória é conjunto de códigos que compreendem a
identidade, pois faz refletir sobre si, e a consciência que entende o homem a partir de sua
autorreflexão desenvolvendo seu papel crítico-social. Além do registro pertence ao fluxo
do tempo. É na memória que observamos as dimensões de tempo. É o tempo que lhe dá
significado. Ela só existe porque estamos cientes do passado. Ela também é experiência,
evocamos a nossas experiências. A memória, por fim, é identidade. Existe uma relação
dialética entre os dois conceitos. É a partir da reflexão sobre seu passado que o sujeito
constrói sua identidade.
Como colocado, a memória é sempre uma construção. Se refere não apenas ao
registro de acontecimentos, mas a elaboração de referenciais sobre o passado e sobre o
presente de diferentes grupos, sob suas diversas perspectivas, ancorados a tradições e
associados a mudanças culturais. Deve-se, então,
pensar na Memória como instância criativa, como uma forma de
produção simbólica, como dimensão fundamental que institui
identidades e com isto assegura a permanência de grupos. A Memória,
portanto, já não pode mais nos dias de hoje ser associada
metaforicamente a um “espaço inerte” no qual se depositam
lembranças, devendo ser antes compreendida como “território”, como
espaço vivo, político e simbólico no qual se lida de maneira dinâmica e
criativa com as lembranças e com os esquecimentos que reinstituem o
Ser Social a cada instante.
Na verdade, a Memória não é nem mesmo esse espaço ou território, mas
uma atividade que simultaneamente o institui e que continua a se
exercer sobre ele, re-territorializando-o diuturnamente, por assim dizer.
(...) Mais especificamente com relação à Memória Social (mas também
com relação à memória de maneira geral), pode-se dizer que essa se
estabelece em um espaço-tempo que se relaciona ao mundo humano e
no qual se afirmam poderes da Comunidade e dos indivíduos sobre si
mesmos e sobre os outros. Daí a metáfora do território e da atividade
que se exerce sobre esse território. (BARROS, José 2009, p. 37)
Baseado em todas essas dimensões da memória brevemente expostas, é possível
afirmá-la como fenômeno social. Enquanto tal, não se pode esquecer de seu aspecto
político. José Barros (2009) já sinalizou para essa propriedade ao caracterizar a memória
como território, um espaço de disputas. Le Goff (1990) ressalta a importância da memória
coletiva nas lutas sociais pelo poder.
Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os
25
silêncios da história são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva. (op. Cit. p. 426)
Neste mesmo sentido, Pollak (1989) desenvolve suas reflexões sobre o fenômeno
da memória coletiva em torno de duas categorias opostas: a memória oficial ou
constituída e a memória subterrânea. A primeira formada pela sociedade englobante ou
majoritária é fruto da dominação ideológica. Sua função é reforçar o sentimento de
pertencimento e as fronteiras socioculturais. É formada por meio de um trabalho de
enquadramento que cria pontos de referência como a datas, acontecimentos e personagens
que não devem ser esquecidos. A exemplo, o mito de origem da Umbanda, que
apresentando estes três elementos, estabelece uma memória enquadrada sobre a sua
formação. Este trabalho é executado por agentes (os intelectuais de Umbanda) e é
perceptível por meio de traços materiais.
Por outro lado, as memórias subterrâneas sobrevivem nas sociedades dominadas
ou em grupos específicos. São transmitidas oralmente através do quadro familiar,
associações e redes de sociabilidade afetiva ou política. Geralmente, passam
despercebidas pela sociedade englobante, mas representam os limites do trabalho de
enquadramento da memória. De difícil localização seu estudo parte das memórias
individuais captadas por meio da história oral. É, portanto, foco deste trabalho as
memórias subterrâneas sobre a origem da Umbanda e os limites do trabalho de
enquadramento da memória dos intelectuais.
No que se refere a relação entre memória e história na Umbanda, há dois pontos a
se destacar. O primeiro deles é de que os umbandistas não só produzem memória, no
exercício de suas vivências religiosas, mas também história, ao produzirem obras
historiográficas, acadêmicas ou não, havendo ainda entre eles, alguns que se esforcem na
constituição de uma “cultura histórica umbandista”. O segundo ponto é que os
acadêmicos, muitas vezes, produzem história a partir das memórias de um grupo
específico de adeptos. Nesta relação os umbandistas e seu discurso ora se apresentam
como fonte e objeto de pesquisa, ora como produtores de conhecimentos e sentidos. O
estudo das memórias neste trabalho encontra-se na interseção do acadêmico e do “nativo”,
da memória e da história, da escrita e da oralidade.
26
Metodologia
O estudo das memórias, como coloca Pollak (1989), passa por dois caminhos
metodológicos. Um utilizado para pensar o trabalho de enquadramento de memória e, por
conseguinte, a memória histórica ou oficial; e outro para investigar as memórias
subterrâneas. No primeiro caso, estudam-se os atores profissionais responsáveis pelo
processo e os grupos aos quais fazem parte e os objetos materiais produzidos por estes
como monumentos, museus, bibliotecas, etc. No segundo caso, de mais difícil
localização, as memórias subterrâneas exigem os instrumentos da história oral.
Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus traços
materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as
memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o
procedimento inverso, aquele que, com os instrumentos da história oral,
parte das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse
trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho
psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e
contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças
pessoais. (POLLAK 1989, p.13)
A visão dualista e hierarquia de Pollak restringe a memória a dois campos opostos.
Um, o universo oficial, institucional e profissional da memória histórica que se impõe e
se hegemoniza. Um espaço de racionalidade e de predominância da escrita. O outro,
oficioso e oculto, exclusivamente oral, comporta uma memória “não-histórica” que se
reprime até que condições históricas determinadas o permita se exprimir. Esta dicotomia
entre escrita e oralidade, entre público e privado esteve presente durante todo a concepção
e produção desta dissertação. A literatura umbandista foi concebida como oposta à
oralidade dos terreiros. Entretanto, ao aplicá-la ao universo umbandista há de se fazer
algumas reflexões.
O oficial pode ser definido como aquilo que é “preposto por uma autoridade ou
emanado dela; conforme as ordens legais; solene, obrigatório” (BUENO 1981, p. 792).
Ora, a literatura umbandista surge em resposta ao discurso oficial do Estado, expresso no
Código Penal, que a criminaliza e a define como charlatanismo e feitiçaria. Ao mesmo
tempo, não há instituição umbandista que consiga se colocar enquanto autoridade sobre
os terreiros. Nessa medida, nem em sentido legal, nem enquanto autoridade reconhecida
é possível falar em uma história oficial da Umbanda. O que existe é o esforço de um grupo
27
de adeptos em criar uma representação do passado que atenda as exigências de uma
racionalidade e de valores outros da moderna sociedade brasileira. A historicização foi o
caminho encontrado. Ela se caracteriza pela visão de linearidade do tempo, de uma lei de
progresso, com a construção de marcos históricos e divisão em etapas sucessivas. É na
medida em que essa história se difunde e se reproduz entre camadas não intelectuais de
umbandistas que se pode falar em uma “memória histórica”, mas não oficial. Há aqui uma
aproximação com a ideia de uma “cultura histórica”, explanada anteriormente.
Talvez seja mais correto pensar em uma multiplicidade de memórias em conflito
no campo umbandista. Isto porque, como se verá na segunda parte, a origem do culto foi
um ponto de intenso e constante debate entre seus intelectuais. Apesar de não se limitar a
elas, duas são as perspectivas sob as quais o nascimento da Umbanda é tematizado. A
perspectiva africanista e a perspectiva não-africanista. Portanto, não se pode falar em uma
univocidade da visão histórica dos intelectuais umbandistas, tal qual um discurso oficial.
Outros elementos da dualidade da memória oficial ou histórica e da memória
subterrânea, como propõe Pollak, são as separações público-privado e escrita-oralidade.
A construção do mito de fundação e de outras memórias são também vinculadas em
programas de rádio e outros meios de comunicação que tem a oralidade e outros
elementos não escritos como forma de transmissão do conhecimento. Além disso, se
percebeu, ao longo desta pesquisa, que, seja através de jornais, livros e revistas, seja por
manifestações artísticas como as composições musicais, sempre estiverem presentes no
espaço público diferentes representações do passado umbandista.
Para ilustrar, o samba enredo de 1994, “Os santos que a África não viu” da
Acadêmicos da Grande Rio, causou polêmica. Alguns umbandistas fizeram questão de
negar que escola estaria cantando a história da Umbanda, mas sim da macumba. A
identificação da Umbanda com a macumba bem como a sua recusa, andam paralelamente
desde o início do século passado. Em 1930, Elói Antero Dias e Getúlio Marinho, com o
Conjunto Africano gravaram a música “Macumba (Ponto de Ogum)”, onde se encontra o
primeiro registro fonográfico da palavra umbanda. Em 1955, Heitor dos Prazeres gravou
o álbum “Macumba” com a faixa “Quem é filho de Umbanda?” (Simas, 2022).
Concomitantemente, como se verá, desenvolveu-se um intenso debate sobre as origens
da religião em que sua questão principal era a relação da Umbanda com os outros cultos
africanos. Assim, não se pode falar em uma dicotomia entre uma memória pública e outra
28
ou outras privadas. O que se encontrou foi sempre o debate e a existência de diferentes
memórias em conflito no espaço público. Consequentemente, não é possível, a princípio,
afirmar a hegemonia de uma memória umbandista. Exceto se se considere meios de
comunicação e grupos muito específicos.
Nos limites deste trabalho não foram inclusas as análises de produções artísticas
e outros meios de comunicação, sem, entretanto, negar a sua importância. A dicotomia
que se traz entre escrita e oralidade se faz por meio da seleção do material estudado que
se restringe, de um lado, a publicações de livros e artigos de jornais dos intelectuais de
Umbanda, e de outro, de entrevistas realizadas com lideranças religiosas.
O que se esperava no início dessa investigação era demonstrar a construção do
mito de fundação a partir de suas mudanças ao longo do tempo e refletir sobre sua
recepção nos terreiros diante de um discurso hegemônico. O que se encontrou foi um
contínuo debate na literatura umbandista sobre suas origens e se pretendeu, a partir de
então, fazer uma análise do seu impacto sobre as representações de passado nos terreiros
a partir do caso das duas casas. A dicotomia que subjaz é entre as tentativas de formulação
de uma “memória histórica” construída racionalmente no espaço público para além dos
terreiros e uma memória “espontânea” e privada no interior deles.
Apesar de não se filiar integralmente à divisão de Pollak entre uma memória
oficial e outra subterrânea, diante da proposta de pesquisa, do material selecionado, e das
manifestações escritas e orais, tal qual descritas nos parágrafos anteriores, mantiveram-
se suas sugestões de caminhos metodológicos. A análise de documentos produzidos por
aqueles que pretendem realizar um trabalho de enquadramento da memória (os
intelectuais de Umbanda) e a história de vida como meio de se buscar na oralidade
memórias que fogem ao debate público.
Antes de imiscuir-se no campo, fez-se imprescindível uma revisão bibliográfica
dos estudos da sociologia e antropologia da religião que tomam a origem da Umbanda
como objeto. Na primeira parte deste trabalho, compreende-se como essa questão foi
construída e abordada pelos acadêmicos. A partir de uma análise que considera o
surgimento da religião de acordo com seu contexto social e político, duas são as categorias
básicas que norteiam as interpretações científicas: raça e classe social. Diante da
edificação de uma sociedade de classes e do problema da integração da população negra
29
a ela, a Umbanda é compreendida enquanto o resultado de um processo de branqueamento
de práticas religiosas afro-brasileiras.
Na esteira da análise sócio-histórica, a segunda parte se debruça sobre como o
problema do início se apresentou para os intelectuais umbandistas e quais foram as suas
respostas. Não é preciso dizer que não se deu conta, e nem se pretendeu, de toda literatura.
Mas cabe dizer que a seleção destes documentos foi realizada a partir da relevância dada
a eles por acadêmicos e umbandistas em seus textos e pela própria pesquisa que levou a
descoberta de novas referências. Outro critério de seleção foi o acesso. Assim, os anais
dos congressos umbandistas de 1961 e 1973 (que também não têm gerados grandes
debates) bem como outras obras, por não serem encontradas ou por requererem um
altíssimo investimento, ou não foram incluídas, ou foram tratadas indiretamente.
A análise da produção literária umbandista permitiu reconstruir as situações
sociais e históricas sob os quais se deu o processo de elaboração de diferentes teses sobre
as origens da religião e uma compreensão das relações que permitiram a exaltação de
Zélio Fernandino e do Caboclo das Sete Encruzilhadas como fundadores. Foi possível
compreender como estas teses incorporaram elementos sociais tanto estruturais quanto
contextuais e apresentaram atualizações diante das transformações da sociedade brasileira
em geral, e fluminense, em particular.
Em sua configuração textual e esquemática esta análise se divide em três
momentos organizados em três capítulos. O primeiro capítulo da segunda parte promove
uma reflexão sobre o contexto e o embate que circunda aquela que é hoje considerada a
mais antiga obra umbandista, O Espiritismo, a magia e as sete linhas de Umbanda (1933)
de Leal de Souza. Trabalho exaltado por aqueles que defendem a primazia de Zélio e que
entendem os escritos dele como evidência desse primado e descrição da “verdadeira”
Umbanda. Comparando-o com outros autores do mesmo período, principalmente João de
Freitas, é possível colocar sua obra em perspectiva e entender o campo em que ele se
insere.
No capítulo seguinte, é realizado o exame dos anais do Primeiro Congresso do
Espiritismo de Umbanda (1941), no qual se pode perceber o esforço de
embranquecimento da Umbanda diante de seu reconhecimento público, na época, como
religião negra e africana. Sua relação com Zélio Fernandino é atestada pelo fato de a
organização ser realizada pela mesma federação que ele fazia parte, pela literatura
30
acadêmica e umbandista, e pelo registro nos anais do congresso da influência do Caboclo
das Sete Encruzilhadas em sua realização.
Estes dois capítulos revelam dois momentos de construção da identidade religiosa
umbandista. No primeiro período, de Leal de Souza, é debatido o status de espiritismo da
Umbanda. O segundo momento, do congresso, existe a busca pela legitimação da mesma
como uma religião independente, com uma histórica própria e com garantias legais de
funcionamento. É somente no último momento, posterior ao Estado Novo que se erige a
ideia de uma religião brasileira, e somente muito tempo depois, a partir das décadas de
1960 e 1970, que se elabora um ato de fundação centrado nas figuras de Zélio Fernandino
de Moraes e do Caboclo das Sete Encruzilha.
Analisando temporalmente, a organização do grupo vinculado a Zélio Fernandino
na fundação da Federação Espírita de Umbanda, nas realizações do Primeiro Congresso
Brasileiro de Espiritismo de Umbanda e do Jornal de Umbanda (1949) demonstra-se
como, nas palavras de Emerson Guimbelli, a formulação do mito de fundação é uma
“construção tardia”. A contextualização das produções deste grupo demonstra que a sua
história e as suas concepções não representam a história ou a origem da religião, mas
simplesmente as trajetórias e elaborações de um segmento.
No afã de aprofundar essa relativização e a compreensão da complexidade do
campo, a terceira parte, busca verificar a receptividade desse debate nos terreiros e
procurar concepções concorrentes sobre a identidade e a origem da religião. Como já
mencionado, se utilizou da técnica da história de vida para se chegar as memórias e
representações de duas lideranças religiosas. Esta parte exigiu uma maior reflexividade e
se construiu a partir de minha “dupla-pertença” ao universo umbandista e ao universo
acadêmico. Sem deixar de refletir sobre a problemática metodológica da relação de
pesquisa, a maior dificuldade, e, ao mesmo tempo, a questão central desta última parte,
foi pensar as relações entre as categorias elaboradas em três segmentos sociais diferentes:
os acadêmicos, os intelectuais umbandistas e os adeptos. Perceber as diferenças e as
maneiras como elas se retroalimentam foi o maior desafio dessa pesquisa e mais do que
função conclusiva, ela revela a necessidade novas pesquisas que levem em consideração
a complexidade do campo.
31
1. Umbanda e branqueamento
Quando se vê a história assim, as virtudes do povo e a deliberada maldade da
minoria dominante, a verdadeira missão da história torna-se subversiva, no
sentido de combater pela transformação desse quadro repressivo e deformado.
Uma liderança que detesta seu povo, que o oprime, que lhe nega tudo, que
desejaria ter outro povo – branco, educado, culto - não tem o direito de liderá-
lo. Assim, a missão do historiador é mostrar a necessidade de derrotar a
opressão, as ditaduras, as minorias elitistas, que querem tudo para si e nada dar
ao povo.
José Honório Rodrigues
Neste capítulo, busca-se analisar como a origem da Umbanda é pensada,
academicamente, enquanto resultado de um processo de branqueamento. Esse processo
diz respeito aos esforços para que o Brasil se torne uma sociedade moderna, ocidental e
branca, tanto na população quanto na cultura. A ideologia do branqueamento é, portanto,
o discurso que não só justifica esses esforços, mas também instaura o “desejo de se tornar
branco”. Cabe ressaltar que, “tornar-se branco” significa adequar-se aos padrões culturais
da sociedade moderna ocidental e colonizadora. Essa adequação revelou-se ao longo do
tempo uma estratégia de ascensão social de indivíduos não-brancos.
Característico do racismo à brasileira (MUNANGA 1999; PEREIRA 2019), a
ideologia do branqueamento nasce como projeto de uma elite, mas se difunde nos mais
diferentes estratos da sociedade. Dela se produz duas consequências. Uma é a apropriação
de características culturais étnicas pela sociedade dominante. Tais características são
convertidas em elementos de uma cultura nacional com o consequente apagamento de
suas origens. Outra é a tendência a se negar tais origens vistas como obstáculo da
modernização e da ascensão social de indivíduos negros. O que leva a perda de uma
identidade étnica. Em resumo, o branqueamento refere-se à assimilação cultural e à
integração social do negro à sociedade urbana e de classes com o consequente
apagamento de uma memória coletiva africana.
A noção de branqueamento apareceu no debate das relações raciais dos anos 1950,
nos estudos patrocinados pela UNESCO, e questiona a forma de integração dos afro-
brasileiros no pós-abolição. No processo de desintegração da sociedade escravista no
32
século XIX, nas configurações do Império e da República, o Brasil incorporou e produziu
ideologias raciais traçando projetos de modernização balizados pela noção de
branqueamento do povo e da nação. Esse processo pode ser visto nas políticas públicas
de imigração, que priorizam a vinda de grupos étnicos-nacionais do continente europeu,
nas práticas sociais e simbólicas do espaço público, que passam a associar o negro e a
cultura africana como signo do atraso, e nas sociabilidades forjadas por linhas de cor, que
hierarquizaram os espaços, etiquetas e costumes.
Vários autores problematizaram o que seria a ideologia do branqueamento e seu
impacto na formação da sociedade brasileira, a partir da discussão sobre a imaginação de
uma identidade nacional entre os anos 1870 e 1930. No livro Preto no Branco (2012), o
brasilianista Thomas Skidmore analisa as principais correntes intelectuais da época e faz
um exame pormenorizado do pensamento racial brasileiro. Concentrando-se nas
concepções e aspirações da elite, seu principal argumento é a estreita relação entre o juízo
sobre a raça e as reflexões sobre a identidade nacional. Com relação a essa alta-roda
afirma que
Suas ideais e sua formação eram europeias, moldadas pelas tradições
culturais jesuíticas e humanistas de Portugal, mas cada vez mais
modificadas, durante o século XIX, pela cultura francesa, que trazia a
mensagem do Iluminismo, com seus pressupostos laicos e materialistas.
A seguir deu-se o florescimento do liberalismo, alimentado
principalmente pela Igreja e pelos Estados Unidos. (SKIDMORE,
2012, p. 32)
Esta elite é definida pelo autor como o “estrato de literatos que controlava os
instrumentos da cultura 'superior'.” (SKIDMORE, 2012, p. 18). Este exclusivíssimo
grupo buscava dar respostas, entre 1870 e 1930, aos problemas teóricos levantados pela
teoria racista da Europa e Estados Unidos levando em consideração as características
raciais da sociedade brasileira. Reconhecendo o Brasil como uma sociedade mestiça, a
ideologia do branqueamento foi uma alternativa para construção de um projeto de
identidade nacional que preservasse as hierarquias entre brancos e não-brancos, e
aproximasse o acesso da sociedade brasileira ao ideal de civilização ocidental.
Lilia Schwarcz em O Espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial (1993), que também analisa o pensamento racial entre 1870 e 1930, traz outras
informações sobre essa elite. Até a década de 1870 os intelectuais tinham um perfil
33
bastante homogêneo de formação e carreira. Em geral, eram formados em Coimbra com
uma formação burocrática. Mas a partir desse momento começam a aparecer diferenças
regionais e profissionais. Com o fortalecimento da produção cafeeira e a mudança do eixo
econômico do país nos anos 1850, ocorre uma diversificação das instituições científicas.
Essa diversificação implicou também uma diversificação nas áreas de atuação
profissional das elites nacionais. Essa elite, que busca se legitimar no campo da ciência,
vai incorporar todo um novo ideário positivo-evolucionista em que os modelos raciais de
análise cumprem um papel fundamental.
Isto é, se essa elite ilustrada não era, em sua maioria, originária das
camadas mais pobres, também não pode ser entendida como totalmente
oriunda ou até mesmo porta-voz exclusiva dos interesses das classes
dominantes. Por outro lado, se é certo que sua composição social os
situaria como membros das camadas mais altas da sociedade, sua
atuação não pode ser exclusivamente explicada em termos de
pertinência de classe. Por fim, apesar dos estreitos laços de parentesco
que atavam certos intelectuais a famílias de proprietários de terra, sua
atuação se dá em um contexto urbano, o que já os diferencia de seu
grupo de origem (Corrêa, op. cit.: 23). Assim, o que se pretende
demonstrar é que esses intelectuais da ciência, a despeito de sua origem
social, procuravam legitimar ou respaldar cientificamente suas posições
nas instituições de saber de que participavam e por meio delas.”
(SCHWARCZ, 1993, p. 23)
Resumidamente, a teoria racial europeia e estadunidense se baseava em alguns
pressupostos: a realidade das raças; a correlação entre as características físicas e a
inferioridade; a superioridade branca; a inferioridade negra inata e permanente; e a
degenerescência dos latinos e mestiços. Em 1860 estas teorias tinham alcançado o status
de ciência e eram amplamente aceitas nos ambientes acadêmicos e nos projetos nacionais.
Apresentavam-se em três escolas: a escola étnico-biológica, a histórica e o
darwinismo social. Suas diferenças não colocavam em dúvida os pressupostos apontados
acima e foram não só discutidas, mas amplamente refletidas no Brasil. Principalmente
como consequência de o país ser à época reconhecido como uma sociedade mestiça. Entre
1888 e 1914, a elite brasileira aceitou como fato histórico a superioridade ariana,
particularmente para pensar a situação do negro, quando ariano era interpretado como
branco. As teorias racistas colocaram um problema à elite intelectual brasileira ao postular
que toda miscigenação levava a degeneração. A hipótese da degenerescência mestiça não
34
levantava somente dúvidas sobre o futuro da nação, mas colocava em xeque a própria
elite nacional.
O evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o social-darwinismo se
difundem nos anos 1870 tendo como referência o debate sobre os fundamentos de uma
cultura nacional em contraposição ao legado metropolitano e a origem colonial. Sílvio
Romero foi um dos primeiros a reconhecer a sociedade brasileira como produto da
miscigenação. Apoiado em Gobineau, Ammon, Lapouge e Chamberlain, declarava a
superioridade ariana e propunha como fórmula para melhorar o Brasil o aumento da
imigração de alemãs que deveriam ser espalhados por todo o país para absorver a cultura
brasileira e aceitar a autoridade nacional. Chegou em 1912 a endossar as perspectivas
mais radicais contra a mestiçagem considerando seu produto como bastardos que se
tornariam infecundos após duas ou três gerações.
Com efeito, esse período coincide com a emergência de uma nova elite
profissional que já incorporara os princípios liberais à sua retórica e
passava a adotar um discurso científico evolucionista como modelo de
análise social. Largamente utilizado pela política imperialista europeia,
esse tipo de discurso evolucionista e determinista penetra no Brasil a
partir dos anos 70 como um novo argumento para explicar as diferenças
internas. Adotando uma espécie de “imperialismo interno”, o país
passava de objeto a sujeito das explicações, ao mesmo tempo que se
faziam das diferenças sociais variações raciais. Os mesmos modelos
que explicavam o atraso brasileiro em relação ao mundo ocidental
passavam a justificar novas formas de inferioridade. Negros, africanos,
trabalhadores, escravos e ex-escravos — “classes perigosas” a partir de
então — nas palavras de Silvio Romero transformavam-se em “objetos
de sciencia” (prefácio a Rodrigues, 1933/88). Era a partir da ciência que
se reconheciam diferenças e se determinavam inferioridades.
(SCHWARCZ, 1993, p. 24)
A antropologia física foi uma das primeiras disciplinas científicas reconhecidas
no Brasil graças às missões importantes de cientistas estrangeiros, frequentemente
alemães. A fundação do laboratório de fisiologia experimental, subordinado ao Museu
Nacional do Rio de Janeiro (1876); do Museu Paulista por Herman von Ihering, zoólogo
alemão (1893); do Museu Paraense, em Belém, pelo suíço Emílio Goeldi (1885); bem
como a exposição antropológica brasileira (1882) demonstram a relevância que a história
natural veio a ter no Brasil e a perspectiva naturalista que veio a imperar no estudo do
humano.
35
Nina Rodrigues, jovem médico mulato, professor da ilustre faculdade da Bahia
foi o primeiro a apresentar um estudo etnográfico respeitável sobre os afro-brasileiros.
Fundador da Revista Médico-Legal foi o mais prestigiado doutrinador racista de sua
época. Entretanto, suas teses permaneceram fora da corrente predominante do
pensamento social brasileiro. Considerava que a inferioridade do africano estava além de
qualquer dúvida e rejeitou a ideia de que um africano pudesse alcançar a inteligência das
raças superiores. Concluía que as caraterísticas físicas afetavam a conduta social e
deveriam ser levadas em consideração por legisladores e autoridades policiais. Produziu
uma justificação teórica completa para que ex-escravos fossem considerados incapazes
de uma conduta “civilizada” e proscreveu quaisquer possíveis direitos dos “inferiores”. E
ainda mais, opunha-se a visão “otimista” do valor social dos mestiços e a tese dominante
de que a miscigenação levaria a um Brasil branco.
Apesar dos esforços de Nina Rodrigues, a maioria da intelectualidade brasileira
adotou a tese do branqueamento, especialmente entre 1888 e 1914. Segundo essa tese, a
população negra estava ficando menor que a branca por conta de uma taxa de natalidade
menor, maior incidência de doenças e desorganização social. A miscigenação estaria
produzindo “naturalmente” uma população mais clara, porque os genes brancos seriam
mais fortes e as pessoas escolheriam parceiros mais claros.
Baptista Lacerda descartou a possibilidade de se aplicar o que se sabia sobre a
hibridização de animais nos seres humanos e afirmou que embora os mestiços não
tivessem a mesma qualidade dos brancos ainda seriam superiores aos negros e indígenas.
Apresenta o importante papel dos mestiços no Brasil ocupando altos cargos públicos e
administrativos após a Proclamação da República (1889). Os casamentos inter-raciais já
seriam aceitos (entre mulatos e brancos) e as qualidades morais e intelectuais sobrepor-
se-iam à origem negra. Prevê que em 100 anos a população seria completamente branca
com o desaparecimento de negros e mestiços. Embora o racismo científico ortodoxo
condenasse a mestiçagem, a tese brasileira do branqueamento também ganhou respaldo
de figuras estrangeiras. Em 1909, Pierre Denis previa o gradual branqueamento da
sociedade brasileira e Theodore Roosevelt elogiou o branqueamento considerando-o um
processo em realização.
Uma forma comum de explicar o branqueamento era comparar com os Estados
Unidos, principalmente para aqueles que abraçavam as ideias raciais mais otimistas.
36
Baptista Lacerda acreditou não existir miscigenação nos Estados Unidos e confundiu o
sistema legal e social de segregação com uma suposta pureza racial. Considerou que os
negros uma vez expulsos da sociedade branca criaram instituições próprias se mostrando
prolíficos e inclinados a vida familiar. Para Lacerda, no Brasil a questão racial estava
sendo resolvida sem esforço, enquanto nos Estados Unidos se defrontavam com um
problema insolúvel. Manuel de Oliveira Lima é outro que vai na mesma direção:
A análise de Oliveira Lima foi, em vários aspectos, bastante
característica da época. Primeiro, atribuiu o contraste que viu nas
relações raciais a suposta diferença no tratamento dispensado aos
escravos. No entanto, não apresentou provas da existência dessas
diferenças, que, por sua vez, foram explicadas como reflexo do caráter
nacional. Segundo, fazia de passagem uma concessão ao arianismo, ao
admitir o atraso dos colonizadores latino. Terceiro, descrevia o negro
como inferior, mas passível de redenção – sob a tutela dos brancos e
através miscigenação. Quarto, insistia num equilíbrio racial, para o qual
contribuiria a imigração branca. De modo geral, o tom era de otimismo,
dando a entender que o caráter nacional mais flexível do Brasil
possibilitava uma solução harmônica de branqueamento para o
“problema do negro” – um caminho provavelmente vedado aos
americanos devido a seus rígidos preconceitos raciais.” (SKIDMORE,
2002, p. 120 – 121)
Ao negar o caráter absoluto das diferenças raciais essa explicação permite uma
saída das conclusões deprimentes do determinismo racial. Ajustava-se a um fato que não
se podia negar, a existência da mestiçagem como prática e realidade social no Brasil.
Além disso, afastava outro pressuposto: a degeneração dos mestiços. Entendia-se que a
mestiçagem nem sempre gerava degenerados, mas em alguns casos, particularmente o
brasileiro, podia gerar a melhoria do tipo racial. A grande maioria da elite entre 1889 e
1914 se sentia confiante e defendia essa ideia, o gradual branqueamento da população
brasileira.
Nas décadas de 1920 e 1930 o ideal do branqueamento estava consolidado. Os
formadores de opinião consideravam o branqueamento em curso, dispensando qualquer
comentário sobre o tema. Oliveira Vianna chegou ainda a fazer uma última sistematização
da referida tese em Populações Meridionais do Brasil e a Evolução do povo brasileiro,
introdução do Censo de 1920. Se utilizou de doutrinas antropogeográficas e
antropossociológicas e do censo para evidenciar o branqueamento como um processo em
curso. Na visão de Kabengele Munanga, Vianna “é um dos grandes protagonistas da
construção da ideologia racial brasileira, caracterizada pelo ideal do branqueamento
37
(MUNANGA, 1999, p. 70-71)”. Ideal especificado por atribuir qualidades morais ou
intelectuais a partir da aparência física mais ou menos negroide, ou mais ou menos
caucasoide.
Entretanto, a partir dos anos 1930 os modelos raciais de análise entram em
descrédito e a intelectualidade brasileira substitui a raça pela cultura como categoria
explicativa do Brasil e da identidade nacional. Gilberto Freyre, exemplo maior da
perspectiva culturalista, exaltava a miscigenação como característica singular do
brasileiro e explicava os problemas sociais como fruto das relações senhoriais construídas
na colônia. Mas se Freyre contribui ao superar o racismo científico como modelo de
análise e se apropriar de explicações sociais, ele não consegue superar o ideal de
branqueamento. Ao pensar as contribuições de negros e mestiços na aristocracia agrícola
e sustentar a ideia de uma “democracia racial”, contribuiu com o fortalecimento da tese.
O efeito prático desse trabalho, porém, não foi promover o
igualitarismo racial. Ao contrário, reforçou o ideal de branqueamento,
pois mostrava vividamente que a elite (basicamente branca) ganhara
valiosos traços culturais decorrentes do contato íntimo com o africano
(e, em menor, medida com o índio) (SKIDMORE, 2002, p. 139).
Assim, ao branqueamento racial se soma o branqueamento cultural. No mesmo
sentido, Munanga (1999) argumenta que o mito da democracia racial, baseado em uma
mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias, permite as elites
dominantes dissimular as desigualdades e impedir que os não-brancos tenham
consciência dos mecanismos de exclusão da qual são vítimas. Encobre os conflitos raciais
propagando um reconhecimento de todos como brasileiros em detrimento de uma
consciência de características culturais de uma identidade própria desses grupos não-
brancos. Essas características são convertidas em símbolos nacionais pelas elites
dirigentes. A mistura, ou a identidade do Brasil como sociedade miscigenada, se impõe
aos negros supondo o abandono das tradições e pertencimento de origem com fim ao
progresso.
O que se pode apreender do que foi exposto até aqui é que o branqueamento surge
como um ideal, uma utopia racista de um país sem negros. Este ideal reflete as
preocupações e aspirações de uma elite que tem a Europa como modelo de nação. Este
ideal adapta o modelo de análise racial de modo que se evite as conclusões
38
constrangedoras do racismo científico ortodoxo. Este ideal legitima-se através do
discurso científico e encontra nas instituições científicas seu espaço de divulgação. Este
ideal, ainda se manifesta como projeto nas políticas de saneamento e de imigração. Mas
há ainda algo a acrescentar. Este ideal elitista, não se limita a seus círculos ilustrados, mas
impacta na sociedade na medida em que, mesmo com o descrédito do racismo científico,
se mantém como ideologia. Enquanto tal, influencia na construção identitária não só dos
grupos negros ao separá-los dos mestiços, mas da sociedade brasileira como um todo que
reproduz o desejo de ser cada vez mais branca e europeia.
Apesar de ter fracassado o processo de branqueamento físico da
sociedade, seu ideal inculcado através de mecanismos psicológicos
ficou intacto no inconsciente coletivo brasileiro, rodando sempre nas
cabeças dos negros e mestiços. Esse ideal prejudica qualquer busca de
identidade baseada na "negritude" e na "mestiçagem", já que todos
sonham ingressar um dia na identidade branca, por julgarem superior.
(MUNANGA, 1999, p. 16)
Na avaliação de Guimarães (2001), a vulgarização do conceito de cultura em
detrimento do conceito biológico de raça não nega uma suposta inferioridade intelectual,
moral e psicológica dos negros, no máximo, a transfere para o plano da cultura tornando-
a passageira e reversível. No plano do senso comum, isso não significa o fim dos
estereótipos que atingiam a população negra, mas sim, uma arma para a inclusão dos
mestiços aos espaços econômico, simbólico e ideológico da nação.
1.1 As Ciências Sociais e as religiões afro-brasileiras
O conceito de religiões afro-brasileiras diz respeito ao conjunto de “práticas e
concepções religiosas cujas bases foram trazidas pelos escravos africanos e que, ao longo
da sua história, incorporaram em maior ou menor grau elementos das cosmologias e
práticas indígenas, assim como do catolicismo popular e do espiritismo de origem
europeia” (GOLDMAN, 2009, p. 106).
Segundo Gabriel Banaggia (2008), há uma tendência em dividir seus estudos em
dois períodos. O primeiro se inicia com as investigações de Nina Rodrigues no final do
século XIX e começa a ser substituída entre 1940 e 1970. Se caracteriza pelo predomínio
de descrições dos sistemas de culto, objetos rituais, símbolos e mitos; e pela preocupação
39
exclusiva com as “sobrevivências africanas”. Pode-se ainda subdividir essa fase em duas
perspectivas: histórico-evolucionistas, quando se tratava de descobrir as origens de cada
item e o grau de desenvolvimento que correspondiam; e culturalista, quando se colocava
o problema em termos de valores, representações, mentalidades.
Da primeira concepção destaca-se o médico-legista Raimundo Nina Rodrigues,
pioneiro nos estudos sobre as religiões no Brasil. Suas publicações se situam no debate
sobre o “problema negro”, que no contexto de fins do século XIX e início do século XX,
traduz-se pelas preocupações com os supostos impactos negativos da população negra
sobre o desenvolvimento da sociedade brasileira e sobre a assimilação daqueles nesta.
Com relação aos diferentes grupos negros, afirmou a superioridade nagô sobre os bantos.
Concentrando-se no terreiro do Gantois, e tendo como informante um representante do
Candomblé nagô, minimizou qualquer outra influência de origem africana sobre os
descendentes iorubás.
A superioridade religiosa nagô, decorrente de uma presumida superioridade racial
repercutiu em estudos posteriores e resultou em um interesse exclusivo no culto iorubá.
O primeiro estudo sobre uma modalidade diferente, o Candomblé banto, só ocorreu em
fins da década de 1930 com Edson Carneiro. Sua obra emerge no momento de abandono
do determinismo biológico e da sua substituição pelo culturalismo. Apesar disso o autor
reafirma a inferioridade banto, exaltando a herança cultural do Nordeste, principalmente
da Bahia, em detrimento do Sudeste, que não teria tradição cultural de mesmo valor.
Em Candomblés da Bahia (1948), argumenta em favor da “unidade dos cultos de
origem africana”. Tomando a possessão por divindades como característica definidora da
religiosidade negra, estabelece um meio de comparação que permite classificar as
diferentes manifestações religiosas quanto a seu estágio de “pureza” ou de
miscigenação/nacionalização. A Umbanda, tratada por Carneiro como uma variação, a
partir das influências espíritas, ocultistas e das posições de classe6, das macumbas
cariocas, ou um termo substituto destas, é classificada entre os mais adiantados no
processo de nacionalização. Destacando como elementos essenciais da Umbanda, o culto
aos orixás nagôs, aos caboclos e aos pretos velhos, assevera que “apesar de complicado,
às vezes, por práticas estranhas, espíritas e ocultistas, o modelo tradicional dos cultos de
6
“A distinção entre ambos os tipos segue, aparentemente, a linha de classe – a macumba satisfaz as
necessidades religiosas dos pobres, a Umbanda, as dos ricos” (Carneiro, E. s/d: 24)
40
origem africana resiste” (CARNEIRO, E. s/d, p. 125). Assim, encontra mesmo na
Umbanda, uma sobrevivência africana.
Arthur Ramos, médico e antropólogo, representante da escola culturalista no
Brasil, com atuação entre 1926 e 1949, procura pensar o negro e sua contribuição na
nação brasileira. Assume a aculturação como método para o estudo da transplantação das
culturas africanas para o Brasil. Aculturação é o conceito utilizado pela escola culturalista
americana para descrever a mudança cultural ocorrida a partir da relação entre sistemas
culturais autônomos e autossuficientes. Nesta perspectiva, valoriza-se a noção de cultura
em detrimento da de sociedade. Para o autor, o conceito designa o contato entre duas ou
mais culturas em que as mais adiantadas tendem a suplantar as mais atrasadas. Divide o
estudo da aculturação em seis etapas começando pelo estudo de uma comunidade de
origem enquanto um “ponto zero” antes do contato.
O estudo da transplantação das culturas africanas para o Brasil só pode
ser feito à luz dos métodos da aculturação, isto é, do resultado dos
contactos culturais. Estas culturas não se mantiveram nas suas
características primitivas no novo ambiente; entraram em contato com
outras culturas, aborígenes algumas e outras de procedencia européa, e
sofreram, nesse prolongado contacto, uma série de transformações
graduais. (RAMOS, 1942, p. 5)
Tanto Edison Carneiro quanto Arthur Ramos, elegem o Sudeste como a região das
macumbas e da influência banto. Nas macumbas “o sincretismo prossegue na sua obra
avassaladora” (Op. Cit. 134). Nas pesquisas de Arthur Ramos, a palavra umbanda aparece
nesses cultos com diferentes significados. Ora designa o sacerdote, ora uma “linha”, ou
mesmo pode ser usado como sinônimo de macumba. A influência do espiritismo é
flagrante, também entre Candomblés bantos, onde os membros referem-se a si como
espíritas e médiuns. A “linha branca” seriam as macumbas que mais sofreram influências
kardecistas e ocultistas. Sua análise das macumbas e dos Candomblés bantos concentram-
se sempre em seus aspectos de sincretização e aculturação.
Corroborando a tendência, apontada por Banaggia (2008), de se segmentar os
estudos das religiões afro-brasileiras em duas vertentes, Fernando G. Brumana (2007),
também divide as perspectivas sob as quais se pode encarar a religiosidade de raiz
africana em duas. Uma, chamada diáspora negra, parte das transferências forçadas de
diferentes grupos populacionais africanos com todo o seu acervo cultural, incluindo seus
41
sistemas de crenças. Outra, parte do próprio campo cultural nacional e, especificamente,
do campo religioso subalterno. A primeira escruta a partir da africanidade, a segunda, da
brasilidade. Na análise do autor, a busca por sobrevivências africanas vincula-se a
construção de um ideal de pureza realizada pelos autores dessa primeira fase.
Brumana (2007) afirma, porém, que a africanidade brasileira é um aporte francês.
Roger Bastide, Pierre Verger e, posteriormente, a argentina sorbonizada Juana Elbein dos
Santos. Verger é um africanista radical. Seus trabalhos não tinham pretensão acadêmica
e teórica. Era uma produção muito ligada ao sensível. Seu objetivo era completar e
enriquecer o patrimônio iorubá dando notícias de uns aos outros. Verger negava-se a
analisar com os critérios europeus os princípios religiosos que tinha abraçado.
Encaravam-nos como artigos de fé.
Juana Elbein, como Verger, pretende homologar o nagô como unidade
indiferenciada na África e no Brasil, diferenciando-se de Verger, por partir do campo
acadêmico. Ambos, segundo Brumana (2007), criam uma deformação do Candomblé a
partir de si. Elbein por observar com base em uma teoria aceita de antemão, Verger por
folclorizar a realidade africana colocando-a fora do tempo. Paralelamente, ambos tiram
suas conclusões de fontes inacessíveis a qualquer outro. Para os dois, o Candomblé que
vale é aquele que mantém um enraizamento africano puro.
O lugar no campo religioso – questão totalmente afastada da cabeça
metafísica de Elbein (e de Verger) – não só não se leva em conta, mas
nem se aporta informação alguma sobre o que ocorre nos territórios de
onde provém o material oral e bibliográfico com o qual trabalham, nem
se leva em conta o que já se sabia sobre o Brasil; questão esta na qual
entra um tema tão difícil de silenciar como o “sincretismo”. Enfim, que
este africanismo a qualquer preço, em nome de um anti-racismo
europeu – a reivindicação do pensamento africano – ocultava o
desinteresse pela originalidade e pela criatividade brasileira e
engendrava um potencial racismo brasileiro (Op. Cit. 167).
Na concepção de Banaggio (2008) essa segunda fase representa uma ruptura entre
uma perspectiva “africanista” para uma “mais sociológica”. Essa ruptura tem seu início
na década de 1950, mas tem a década de 1970 como momento de consolidação.
Caracteriza-se pelo questionamento sobre as relações que as religiões mantêm com a
sociedade envolvente. Passa então a considerar sua organização, formas de reprodução
social e disputas de poder. Enquanto em uma há uma obsessão pela continuidade, uma
42
busca incessante por “africanismos”, em outra há um questionamento sobre a mudança e
suas dimensões políticas e econômicas.
Na primeira fase o foco está nas propriedades internas às religiões, na segunda,
nas relações destas com as dimensões externas a sua constituição. Esta fase se desenvolve
como uma crítica à primeira, visto que a perspectiva internalista deixa de lado noções de
sociedade e de classes, assim como o dilema da relação entre religião e democracia. Ainda
de acordo com Banaggia (2008), o surgimento desta nova perspectiva está atrelado à
difusão do estrutural-funcionalismo na sociedade brasileira a partir dos anos 1970, com
destaque para o Museu Nacional. Neste período, surge um conjunto de trabalhos
impulsionado pela antropologia social britânica, herdeira do durkheimianismo de
Radcliffe-Brown que subordinava o espírito (cultura) ao concreto ou real das relações
sociais (estrutura social). A partir desta perspectiva configura-se uma análise mais
instrumental dos fenômenos religiosos.
Assumindo uma perspectiva marxista, em especial no final dos anos 1970,
substitui-se uma visão essencialista da cultura para uma “desnaturalizante”. A cultura é
sempre reinventada, recriada, recomposta em torno de novas significações. Ao mesmo
tempo, muda-se a preferência geográfica das regiões Norte e Nordeste, especialmente a
Bahia, para a região Sudeste, com destaque para Rio e São Paulo, mais precisamente as
regiões metropolitanas. Passa-se, além disso, a preferência das variações consideradas
mais puras, sobretudo o Candomblé de modelo jeje-nagô, para as mais sincréticas ou
misturadas como a Umbanda, Omolocô e Candomblés de outras orientações litúrgicas
como o Angola.
Banaggia (2008) sustenta que é possível destacar no interior da segunda fase uma
formação argumentativa “hegemonizante” que se pretende não-tradicional em oposição à
tradição alheia. Denomina de afro-brasilianismo o conjunto de argumentos encontrados
nos textos escritos a partir de 1970, no campo das religiões afro-brasileiras. Nestes
argumentos há uma despolitização da problemática do negro e do afro-brasileiro. Há uma
visão do povo de santo como sem história, apartados da sociedade brasileira, desprovidos
de criatividade cultural e limitados a reproduzir o que os intelectuais brancos os fazem
pensar. Propõem que é preciso uma visão distanciada para estudar as religiões afro-
brasileiras.
43
Germano de Lima (2020), porém, levanta problemas a uma separação temporal e
analítica nítida entre perspectivas, classificando o trabalho de Bonaggia como uma
“tentativa de engessamento do campo”. Localiza na “Nova Escola de Recife”
influenciada pelo culturalismo e modernismo de Gilberto Freyre uma ruptura com a
perspectiva africanista. Autores como Vicente Lima, Pedro Cavalcanti, Gonçalves
Fernandes, Waldemar Valente e René Ribeiro produziram uma série de trabalhos
antropológicos partindo do pressuposto de inexistência de cultos puros no Recife. Todos
eles apresentavam mesclas de rituais que ocorriam mesmo na África. Apesar de
reconhecer que tal visão só veio a se ampliar na década de 1970 os coloca como um
problema à esquematização temporal rígida entre duas perspectivas. Ainda nega a
caracterização do Congresso de 1934 como uma busca por uma africanidade. Argumenta
que esta é uma generalização apoiada em uma minoria de trabalhos que não refletem o
todo do Congresso.
De uma forma ou de outra, o desenvolvimento dos estudos sobre a Umbanda
esteve condicionado a uma mudança de perspectiva dominante no campo. Foi somente
na medida em que a busca por uma africanidade e pureza foram criticadas e abandonadas
que a Umbanda se edificou como objeto científico digno da atenção dos cientistas sociais.
1.2 Umbanda e branqueamento
Enquanto a primeira perspectiva manteve sua hegemonia dentro dos estudos sobre
as religiões afro-brasileiras, a Umbanda foi pensada como um contraponto ao Candomblé.
Enquanto este é colocado como sobrevivência de uma memória coletiva africana, aquele
é posto como degeneração ou assimilação das práticas e crenças negras pela sociedade
capitalista moderna. A partir da presunção da existência de uma “religiosidade africana
pura”, o Candomblé, especialmente o culto nagô, se tornou parâmetro de avaliação da
Umbanda e de outras manifestações religiosas afro.
É a partir dessa medida que a Umbanda foi colocada como assimilação completa,
resultado do processo de branqueamento. Processo que reflete as mudanças culturais e
sociais da entrada do Brasil no período republicano, manifestada no processo de
aculturação da religiosidade negra nas capitais e adjacências de São Paulo e Rio de
Janeiro. Locais de maior desenvolvimento econômico e urbanização na época.
44
Candido Procópio Ferreira de Camargo aponta, no início da década de 1960, que
a maioria dos estudos etnográficos e sociológicos de religiões de origem africana tratava
do Norte do país, “área onde se concentra a maior e a mais pura tradição africana”
(CAMARGO, 1961, p. 9). Concentrando-se nos cultos sudaneses, particularmente, os
nagôs na Bahia, os terreiros Banto foram pouco estudados no Brasil.
A Umbanda não gozará de tratamento diferenciado. É somente a partir da década
de 1960, que ela receberá a atenção de alguns acadêmicos que passarão a produzir estudos
específicos sobre a religião. Até então, suas reflexões se davam dentro de trabalhos mais
amplos sobre o Candomblé ou sobre as religiões afro-brasileiras, em geral.
A obra Kardecismo e Umbanda: uma interpretação sociológica (1961) de
Camargo é um marco desse movimento. Chamando a atenção para o que considera um
“surto extraordinário” das religiões mediúnicas no Brasil, o autor, se propõe a entender
os principais fatores desse desenvolvimento e suas funções na vida do país. Sua hipótese
central é que haveria um continuum religioso entre as formas mais africanizadas da
Umbanda e o Kardecismo. Haveria entre as duas modalidades extremas uma “simbiose
doutrinária e ritualística que resulta em uma consciência de unidade” (CAMARGO, 1961,
p. XII).
O autor conclui que essas religiões mediúnicas (especialmente as mais próximas
do kardecismo) constituem uma das expressões do processo de racionalização e
secularização. Elas seriam um dos meios alternativos de adaptação do homem brasileiro
ao meio urbano. Algumas das características que favorecem esse papel seriam: ser uma
fonte de orientação para os indivíduos, substituindo a tradição e a autoridade; aceitação
dos valores urbanos e profanos; e a busca por coerência com a ciência. Se por um lado é
fator de racionalização, por outro, seu aspecto religioso se adapta às expectativas de
solução harmoniosa com a cultura do país.
Para o sociólogo, a Umbanda representa um “sincretismo sem corpo doutrinário
coerente e, pelo menos no momento, incapaz de se congregar em formas institucionais de
certa amplitude” (CAMARGO, 1961, p. 8). São elementos desse sincretismo do ponto de
vista histórico: as religiões de origem africana dos povos sudaneses e banto, o catolicismo,
o espiritismo kardecista e as religiões indígenas.
Vale observar que, embora Camargo, reproduza a ideia de uma pureza nagô, não
vê a Umbanda como degeneração ou aculturação. Assumindo uma perspectiva
45
funcionalista enxerga nela, e em outras religiões mediúnicas, um mecanismo social de
integração do homem brasileiro à nova realidade urbana. É o resultado de um processo
de racionalização e secularização da sociedade brasileira. O autor não reflete sobre os
aspectos raciais desse sincretismo. Não pensa em termos de aculturação ou
branqueamento, mas sim, relaciona esta religião ao processo de modernização do país.
O estudo mais antigo que analisa a Umbanda em termos de branqueamento foi a
obra Les Religions Africaines au Brésil (19607) de Roger Bastide. Como já mencionado,
um dos principais representantes do africanismo. Em trabalho anterior, O Candomblé da
Bahia (1958) Bastide estuda o “candomblé como religião autônoma, sem referência à
história ou ao transplante de culturas de uma para outra parte do mundo” (BASTIDE,
1961, p. 11). Seu objetivo é descobrir a África no Brasil. Encontra em cada terreiro “ilhas
africanas no meio de um oceano de civilização ocidental” (ibid. 76). Segundo o autor, os
Candomblés pertencem a nações diversas e perpetuam tradições diferentes. São
distinguíveis pela maneira de tocar o tambor, pela música, pelo idioma dos cânticos, pelas
vestes litúrgicas, às vezes pelos nomes das divindades e por certos traços rituais.
Entretanto, estariam ligados por uma mesma realidade, a da “civilização africana”.
Considera “evidente” que os candomblés Nagô, Quêto (Ketu) e Ijêxa (ou Ijesha) são os
mais puros. No Rio de Janeiro, essas nações teriam se fundido e sido penetradas por
influências exteriores ameríndias, católicas e espíritas dando origem a macumba, religião
essencialmente sincrética. A “pureza africana” e o sincretismo ou desagregação vão além
de uma classificação sociológica, refletindo também uma qualificação moral dos
terreiros.
Há brancos que não o compreendem e que consideram o babalorixá e a
ialorixá como pessoas hábeis que aproveitam da superstição popular
para enriquecer. Não negamos que o caso pode se produzir em certos
terreiros bantos ou candombles de caboclo, mas trata-se de seitas em
franca desagregação, repudiadas com violência pelos verdadeiros
"africanos".” (op. Cit. 68-69).
Dois anos depois, nas Religiões africanas no Brasil (1960) se propõe a “estudar,
num caso específico, os diversos tipos de relações que podem se estabelecer entre as
estruturas sociais (inclusive suas condições econômicas) e o mundo dos valores
7
Publicada no Brasil como As religiões africanas no Brasil (1971)
46
religiosos, no seio do fenômeno social” (BASTIDE, 1971, p.11). Há de uma obra para
outra mudança de abordagem. Na primeira, um estudo focado exclusivamente na
realidade interior dos candomblés, na segunda, o estudo do fenômeno da aculturação, ou
seja, da interpenetração das civilizações ou culturas, mais especificamente, da
interpenetração das religiões. Uma preferência pela perspectiva sociológica ante a
culturalista.8 Ambos não deixam de ser norteadas, no entanto, pela preocupação com a
preservação e continuidade de uma mentalidade africana.
À época deste trabalho, a sociologia da religião brasileira já conhecia o
culturalismo de Arthur Ramos e o funcionalismo de Herskovitz. Do primeiro, critica a
abordagem da cultura destacada de sua relação com o social. Do segundo, critica as
limitações do método funcionalista ao estabelecer esta relação. Se propõe a refletir as
transformações culturais sofridas pelas religiões africanas a partir das situações sociais
em que estão inseridas. Trata-se de “encarar os encontros das civilizações mediante uma
Sociologia em profundidade e a de utilizar as dialéticas de níveis respeitando o fenômeno
social total” (op. Cit. 29).
Suas reflexões sobre as sobrevivências destacam a importância da memória
coletiva. Retomando Bergson, divide a memória em duas: a motriz, ligada ao corpo, que
se refere aos ritos, e a intelectual, que se refere aos mitos. Estando, no caso dos
Candomblés no Brasil, a primeira prevalecendo sobre a segunda. Retomando Halbwachs,
argumenta que o esquecimento está sujeito ao rompimento dos negros traficados ao Brasil
com suas estruturas sociais originais; e sua preservação à possibilidade de reestruturação
e reorganização dos mitos e ritos nas novas estruturas sociais. A memória coletiva é
entendida como memória de um grupo, enquanto “memória articulada entre os membros
desse grupo (BASTIDE b, 1971, p. 340)”. A desestruturação passa pela ausência de
integrantes do grupo com conhecimentos específicos. Assim, certos ritos e mitos se
perderam por não terem sido trazidos ou sobrevivido no Brasil, pessoas que os
conhecessem. É o caso dos cultos a Olokun, Orum, Ogilão, Oko, desconhecidos aqui.
Mas na medida em que estes membros encontram a possibilidade de se rearticularem, a
estrutura social africana é reorganizada no Brasil, mesmo que ressignificados em alguns
casos e com vazios na memória coletiva em outros.
8
Bastide chega a proclamar a superioridade de uma sobre outra. Consultar Bastide (1971) pág. 466.
47
Ressalta das considerações acima que a memória coletiva é um
conjunto de imagens mentais ligadas, de um lado, a mecanismo
motores, os ritos, se bem que os ultrapassando, e de outro as estruturas
morfológicas e sociais. Ora, isso determina que as imagens sejam
lembradas cada vez que a comunidade africana reunida encontra a sua
estrutura e retoma, em ligação com as intercomunicações dos papéis, os
mecanismos motores ancestrais. Lugar, sociedade, gestos e memória
constituem uma só unidade. (op. Cit. 344)
Não deixa de destacar também a influência do presente na memória. Mas esta
interferência limita-se a seleção das lembranças mais adequadas à nova realidade. Assim,
os orixás ligados à agricultura foram esquecidos quando o africano passou a trabalhar nas
terras de seu algoz. A imagem do Ogum guerreiro é exaltada nos centros urbanos em
detrimento de sua imagem de caçador, prevalecente nas comunidades africanas. Nega-se
qualquer qualidade criativa da memória, característica evidenciada em estudos mais
recentes.
Dessa maneira, à preservação ou à perda da memória coletiva africana estão
relacionadas as condições estruturais internas, das quais destaca: a seita, o espaço sagrado
e o segredo; e às condições estruturais da sociedade mais ampla; além da capacidade dos
mitos e dos ritos se adequarem e se ressignificarem nestas novas condições.
No caso em análise, o encontro entre as civilizações africana e brasileira se dá no
interior desta última. O negro escravizado é retirado de sua sociedade e precisa se adaptar
à nova realidade, caracterizada, embora não limitada, pela dualidade de classes: a de
senhores, exploradora, e a de escravos, explorados. A distância social permite a
manutenção de “formas arcaicas de civilizações”. Diante desta relação de exploração, o
africano desenvolveu diferentes formas de resistência e de associação como as confrarias
dos homens de cor, as organizações de negros de ganho e as “nações”, entre outras. Elas
constituíram-se em nichos e se desenvolvem como “quistos” onde a civilização africana
pôde ser recriada.
O fim do tráfico negreiro e do trabalho servil quebrou esta estrutura social na qual
a reorganização de comunidades negras permitiu a sobrevivência das religiões africanas
no Brasil. A abolição vai precipitar a desagregação dessas comunidades. Dentro da
competição econômica do capitalismo industrial que se inicia no Brasil, o negro ficou em
desvantagem com relação ao mestiço e ao imigrante branco. Neste contexto, o Candomblé
se tornou, para a essa população abandonada, lugar de refúgio e apoio. Único centro de
48
integração possível, com a reconstituição do povoado africano e suas regras de
confraternização religiosa, seu modelo de ajuda mútua e a afetividade entre seus
membros. Resistiu a partir do que Bastide denominou “princípio de corte”. Uma
separação entre os dois mundos que permitiu uma dupla fidelidade, frequentemente
contraditória de valores, e a resistência do Candomblé à influência externa.
Diametralmente oposta, a esta resistência cultural e religiosa do Candomblé,
encontrava-se a macumba. A política republicana, contrariamente ao que se tinha até
então, foi uma política de integração nacional. A tendência a homogeneização de
pensamentos e atitudes tornou-se obstáculo a continuidade das seitas africanas e os
valores africanos tornaram-se obstáculos a ascensão social dos indivíduos. Nos centros
urbanos do Sudeste, notadamente, Rio de Janeiro e São Paulo, o Candomblé se dilui e
origina a macumba. A comunidade religiosa negra dá lugar a magia individualista do
macumbeiro, que muitas vezes é branco. Ela “é a expressão do que se tornaram as
religiões africanas no período de perda dos valores tradicionais” (BASTIDE b, 1971, p.
407).
A solidariedade étnica se desfaz, e é substituída por uma solidariedade da miséria,
refletindo o “mínimo de unidade cultural necessário à solidariedade dos homens em face
de um mundo que não lhes traz senão insegurança, desordem e mobilidade.” Em outras
palavras, “é o reflexo da cidade em transição, na qual os antigos valores desapareceram
sem que os substituíssem aos valores do mundo moderno” (Ibid. p. 407-408). Em sua
forma extremada de desagregação, já sem a possibilidade de preservar uma memória
coletiva, a macumba se individualiza. Bastide sustenta que a desagregação das formas
coletivas para individuais reduz a religião à magia. Essa individualização excitaria
instintos eróticos ou criminosos. Há nesta depreciação da macumba, formulada pelo
autor, uma nova oportunidade para a exaltação do candomblé que considera puro.
O candomblé era e permanece um meio de controle social um
instrumento de solidariedade e de comunhão; a macumba resulta no
parasitismo social, na exploração desavergonhada da credulidade das
classes baixas ou no afrouxamento das tendências imorais, desde o
estupro, até, frequentemente, o assassinato. (op. Cit. p. 414).
Vale observar que Roger Bastide já havia apontado como difamatórias as
acusações de o candomblé ser um meio de se aproveitar dos supersticiosos. Sua defesa,
porém, se restringe à determinada modalidade, transferindo e mesmo assumindo o papel
49
de acusador contra outras modalidades como o candomblé banto, e com certa ênfase, as
macumbas. Sua construção de uma dicotomia entre uma manifestação africana pura e as
suas formas degeneradas reproduz não só um discurso nativo9 como uma contraposição
clássica da sociologia entre a moralidade da religião e a amoralidade da magia10. Seu
trabalho acaba por contribuir e reforçar os discursos discriminatórios às macumbas, à
magia e ao feitiço.
Outra característica dessa macumba, levantada pelo sociólogo, é a penetração de
uma população branca que chega a representar boa parte dessa massa de macumbeiros.
Com eles, na maioria imigrantes, trazem as magias europeias, agregando novos elementos
ao sincretismo já existente na macumba. Ou seja, o branqueamento é entendido por
Bastide como o ingresso de indivíduos brancos, sobretudo imigrantes europeus, que
através do sincretismo de sua magia europeia com a mística africana afasta cada vez mais
as práticas religiosas negras de suas origens, contribuindo com sua desorganização
cultural. Somada à desagregação social da comunidade negra explicitada acima, define o
que o autor chama de “degradação”. Ou seja, a aculturação, ou degradação dos cultos
afros, se dão pelo duplo processo de desagregação social e desorganização cultural das
comunidades negras.
Porém, em sua teoria da aculturação existem dois momentos. Diante da mudança
de uma estrutura social para outra existe esse primeiro movimento de desagregação
cultural e social. Ela aconteceu no tráfico de indivíduos escravizados das sociedades
africanas para a brasileira e da mudança da sociedade estamental escravista para a de
classes. O segundo momento é o da reorganização no processo de adaptação à nova
realidade. O Candomblé e a Umbanda são formas de reorganização da “mentalidade
africana” na realidade urbana. Nesses termos, a Umbanda “reflete o momento da
reorganização em novas bases, conforme os novos sentimentos dos negros proletarizados,
daquilo que a macumba ainda deixou subsistir da África nativa” (op. Cit. p. 407).
A urbanização criou uma organização social sob a forma de solidariedade de
classe. A classe média constitui-se principalmente de filhos de estrangeiros e as classes
9
Sobre o debate em torno de como a categoria nativa é transformada em categoria analítica pela
antropologia ver Banaggia (2008)
10
Sobre o debate na sociologia clássica acerca da relação entre magia e religião ver Negrão (1996)
50
mais baixas continuam sendo compostas por negros. Entretanto, segundo o autor, o negro
aceita menos a sua situação, principalmente se teve acesso à escola. Esta, mesmo que
sendo cursada quase exclusivamente até o primário, suscita novas atitudes e sentimentos
integrando-o ao restante da população do país. Ao mesmo tempo, o torna mais consciente
de sua situação e mais permeável à injustiça das discriminações raciais e à oposição entre
suas supostas chances de ascensão social e sua condição de semiproletariado. Daí surgiria
uma “psicologia de ressentimento” que poderia levá-lo a revolta contra os outros ou
contra si. Este sentimento traduz-se nas realizações políticas e em manifestações
religiosas urbanas.
Sustenta Bastide que o espiritismo corresponde a certas necessidades das classes
proletárias e deserdadas dos grandes centros urbanos. São os desajustados e desenraizados
sua principal clientela. Buscam saúde física e espiritual, proteção contra a miséria, as
enfermidades, e os demais problemas da vida moderna. Entre os proletários “de cor”, os
espíritos manifestados pertencem ao mundo dos indígenas ou dos negros. Para os
kardecistas uma forma de desvalorização do espiritismo batizado por eles de “baixo
espiritismo”. Para o mestiço ou descendente de escravo uma primeira valorização, ao ver
no animismo uma semelhança entre brancos e negros. O espiritismo de Umbanda é
expressão da reação negra à luta racial levada do profano ao sagrado. A “Umbanda é uma
valorização da macumba através do espiritismo [e do ingresso de indivíduos brancos].
(...) Até o momento no qual a valorização se transforma em traição, na qual a origem
africana de Umbanda é esquecida” (op. Cit. p. 439-440). Da literatura umbandista,
sobretudo dos anais do Primeiro Congresso de Espiritismo de Umbanda, Roger Bastide
encontra a negação da maternidade africana da Umbanda. Este movimento de
“desafricanização” ou “arianização” é aceito e empreendido pelo negro na medida em
que é indispensável à adequação à sociedade branca, para a sua ascensão social.
A valorização da África se faz acompanhar por uma traição mais ou
menos consciente. É abandonado tudo o que fira a consciência do
homem moderno, por exemplo, o sacrifício sangrento, ou então é o
mesmo recalcado no segredo. Talvez seja isso obra dos brancos que
ingressaram em grande número na Umbanda, mas há um vai-e-vem
incessante no jogo de representações coletivas entre o preconceito do
branco e o ressentimento do homem de cor. (Op. Cit. p. 458-459)
51
Esta “traição” não pode ser entendida sem se levar em consideração o profundo e
extenso trabalho de inferiorização e desumanização que o negro sofreu. Já se demonstrou
como o projeto de nação brasileira foi construído tendo a população afrodescendente
como um de seus maiores obstáculos. Não se pode ignorar as consequências desta
construção na psicologia dos sujeitos racializados. Uma delas é a introjeção de um
complexo de inferioridade que leva a um processo de negação de si e de busca pelo
reconhecimento social através da assimilação dos modos de ser branco (BERNADINO-
COSTA, 2016). O abandono de uma religiosidade africana é o resultado do próprio
processo de branqueamento que ao nega-lhe dignidade impele os indivíduos pretos a
encontrarem na fé dominante uma possibilidade de aceitação e integração social.
Após o umbandista “adoçar” a religião e maldizer a macumba como lugar de
feitiçaria, realiza uma apologia aos caboclos e pretos velhos que terminam em
messianismo. Este messianismo ficará mais evidente quando se analisar o Primeiro
Congresso de Umbanda na segunda parte desta dissertação. Cabe apenas aqui indicar que
para Bastide, esse messianismo não é um protesto puramente racial, estando vinculado ao
nacionalismo brasileiro. O nacionalismo das classes baixas é expresso na Umbanda sendo
esta considerada a única a reunir harmoniosamente todas as cores e etnias que aqui
estavam. Um nacionalismo que se mantém ambíguo. Enquanto expressa a “brasilidade”
de um lado, insiste sobre o “marginalismo” ou “mulatismo” brasileiro de outro. Se opõem
ao patriotismo que não reserva lugar ao sol para os negros. Em resumo, Roger Bastide
defende que a
Umbanda não é um produto da burguesia ávida de reter entre as mãos a
totalidade do poder, pois a lei do capitalismo, nos países
subdesenvolvidos, é a lei da produtividade crescente, e esta exige, não
a brutalização das massas, mas, ao contrário, a sua aspiração de subir,
de lutar, de melhorar a sua sorte. O espiritismo não é, portanto, imposto
de fora ao proletariado: é uma criação proletária. E ele segue, em sua
evolução, as variações da consciência proletária. O que leva os valores
sagrados a se colorirem de ressentimentos ou de esperanças de cóleras
ou desejos. Tais variações se degradam insensivelmente em ideologias
de classes, ou de grupos étnicos no interior das classes sociais. (op. Cit.
p. 470-471)
Dessa maneira, o “embranquecimento” se refere, aqui, a recusa do negro há tudo
aquilo que tem forte conotação africana em prol da aceitação dos valores impostos pelo
mundo branco, como estratégia individual de ascensão na estrutura social. Sua reflexão,
52
porém, não tem o indivíduo como categoria de análise, mas a classe social e no seu interior
a cor. Isto leva a um paradoxo. Ao mesmo tempo que afirma a africanidade da Umbanda,
o que significa dizer que ela é em essência, anterior à aculturação, afirma que ela é
proletária. Ou seja, é o resultado de um processo de aculturação, pois designa uma das
formas de integração do negro à nova sociedade urbana e de classes. Apesar disso como
se dá para notar na última citação, a influência de uma classe branca é tão importante que
o autor fez questão de afastá-la. Faz questão de defender que o “branqueamento” é
fundamentalmente um movimento protagonizado pelo proletário negro. Ao se analisar
esse processo, as gerações posteriores, incluindo seu orientando Fernando Ortiz, se
concentrarão, entretanto, na influência da camada média. Fica de Bastide, a ideia da
Umbanda como branqueamento. Perde-se sua visão de uma origem africana e proletária.
Fernando Ortiz, em 1975, produziu sua tese A morte branca do feiticeiro negro:
Umbanda e Sociedade brasileira. Defendida em Paris sob a orientação de Roger Bastide.
Ao entrar na problemática da aculturação na Umbanda, o autor vai pensá-la em dois
movimentos: o embranquecimento e o empretecimento. Este último conceito tem um uso
muito particular em Ortiz. Um uso que não se consagrará em autores posteriores. A
separação entre embranquecimento e empretecimento não será reproduzida e os outros
autores usarão branqueamento como categoria analítica do fenômeno de assimilação dos
cultos afros à cultura branca.
Valendo-se das contribuições de Georges Balandier e Roger Bastide, Fernando
Ortiz reinterpreta o conceito de aculturação a partir da noção de situação. Diferentemente,
da escola americana, esta noção permite compreender as mudanças culturais dentro das
situações sociológicas de contato. Situações que Balandier considera como uma
totalidade e Roger Bastide como os “quadros sociais da aculturação”. De um modo ou de
outro “os contatos sociais e seus efeitos só podem ser compreendidos quando referido (...)
às totalidades sociais que os enquadram, os orientam e os unificam”. (ORTIZ, 1999, p.
14) Em outras palavras, é preciso situar as mudanças culturais dentro da transformação
da sociedade global. Neste ponto apresenta uma continuidade a Religiões Africanas no
Brasil de Bastide.
A partir dessa referência teórica Ortiz, analisa a Umbanda como o resultado das
transformações dos valores afro-brasileiros a partir da integração do mundo religioso
afro-brasileiro na moderna sociedade nacional. Nesse sentido, relaciona o nascimento da
53
religião, transformação cultural, à consolidação de uma sociedade urbano-industrial e de
classes, transformação social.
Isto faz com que com que as transformações do mundo simbólico afro-
brasileiro se realizem sempre em conformidade com os valores
legítimos da sociedade global. Valores como a moral católica (noção de
bem e de mal), a racionalização, a escrita, se integram a um outro tipo
de moral e racionalidade, características estas dos cultos afro-
brasileiros. (ORTIZ, 1999, p. 15)
A perspectiva do embranquecimento de Bastide é retomada. A ação de
embranquecer está associada à vontade do indivíduo negro de ascender socialmente. Sua
consequência é a paulatina desagregação de uma memória coletiva negra. Os exemplos
que sustentam essa posição são as incorporações do espiritismo aos cultos afros. A Cabula
e as Macumbas apontam nesse sentido, não apenas sincretizando orixás e santos, mas
incorporando valores, conceitos e ideologias da sociedade global.
Para se referir aos esforços de uma classe média branca em enquadrar a Umbanda
na sociedade moderna brasileira, Ortiz lança mão de outro conceito. O empretecimento
por sua vez, refere-se aos esforços de uma elite umbandista de canalizar a religião.
Começa pela incorporação de entidades e práticas de religiões afro-brasileiras pelos
centros espíritas. Nesse sentido, destacam-se as figuras de Benjamin Figueiredo com o
Caboclo Mirim, que funda em 1924 a Tenda Espírita Mirim no Rio de Janeiro. E Zélio
Fernandino de Moraes, que após fundar um centro kardecista em 1908, sob o nome de
Tenda Nossa Senhora da Piedade, a transforma em centro de Umbanda por volta de 1930.
Depois, os esforços de racionalização, codificação e organização da religião
configuram-se em nova fase desse movimento. Mas o movimento de empretecimento,
realizado por uma camada social branca, em direção às crenças tradicionais afro-
brasileiras não pode ser entendida como uma valorização das tradições negras, mas sim,
como uma aceitação do fato social negro. O empretecimento não pode ser confundido
com um enegrecimento da cultura branca.
Para nós, o preto se opõe ao negro na medida em que o primeiro se
refere à superfície, à cor negra, enquanto o segundo diz respeito à
essência negra, ou seja, ao que o africano traz de característico de uma
África pré-colonial. (...) O que tentaremos mostrar é que sempre existe
a valorização do preto (e não do negro), ela se processa segundo a
pertinência de uma cultura branca. Os elementos genuinamente
54
africanos, ou melhor, afro-brasileiros, são rejeitados por esta camada de
intelectuais, que são justamente os criadores da religião Umbanda. A
cor preta é, desta forma, reinterpretada de acordo com os cânones de
uma sociedade onde a ideologia branca é dominante. (ORTIZ, 1999, p.
7)
Se Renato Ortiz concorda com Camargo ao relacionar à Umbanda aos processos
de transformações sociais modernizadoras do Brasil no início do século XX, vendo esta
religião como um fenômeno essencialmente urbano; e se concorda com Bastide ao dar
relevância às transformações culturais em concomitância as sociais, e reconhecer um
movimento de embranquecimento como estratégia de ascensão individual dos negros; ao
mesmo tempo, traz novos aspectos desse processo. Enfatizam-se as relações raciais
implicadas no processo de modernização e criação da nova religião. O empretecimento
parece ser um conceito esquecido pelos pesquisadores posteriores que preferiram
empregar o termo branqueamento para se referir a atuação da elite de expurgar os
elementos negros da religião.
Diana Brown (1985) relaciona os primórdios da Umbanda as atividades de Zélio
Fernandino de Moraes e define sua história de cura e revelação de uma missão especial
de fundar uma nova religião como “mito de origem” da Umbanda. Embora não afirme
que Zélio é efetivamente o fundador da Umbanda ou que ela tenha um único fundador,
afirma que os centros ligados ao Zélio foram os primeiros que ela encontrou que se
identificavam conscientemente como Umbanda. Afirma ainda que sua história nem era
amplamente conhecida, nem amplamente aceita. Apesar de tudo, acredita que ela seja
convincente da maneira como as coisas provavelmente se deram. Sua data de fundação,
como ela dá a entender, foi colocada pelo próprio Zélio de Moraes:
(...) Zélio fundou e identificou para mim como o primeiro centro de
Umbanda, começou a funcionar em meados da década de 1920 num
terreno alugado, nos fundos de uma casa, nos arredores de Niterói. Após
uma série de mudanças de local, o centro instalou-se em 1938 num
amplo edifício na área central do Rio, onde está até hoje. (BROWN,
1985, p. 10)
Esse grupo era composto predominantemente por membros dos setores médios.
Trabalhavam no comércio, na burocracia governamental, eram oficiais militares,
profissionais liberais, jornalistas, professores, advogados e ainda alguns operários
especializados. Todos homens e quase todos brancos. Suas preferências e aversões se
55
expressavam na literatura, em especial, nas atas do Primeiro Congresso do Espiritismo de
Umbanda em 1941. Neste, a autora destaca duas preocupações principais dos
participantes. A primeira estava na ênfase fortemente moral nas formas benevolentes de
caridade e a missão de resgatar as classes subalternas de formas exploradoras e nocivas
de feitiçaria. A segunda:
(...) a preocupação com a criação de uma Umbanda desafricanizada,
cujas origens foram localizadas nas antigas tradições religiosas do
Extremo Oriente e do Oriente Próximo, e cujas conexões coma África
foram minimizadas ao máximo -, e o esforço para “branquear” ou
“purificar” a Umbanda, dissociando-a da África “primitiva” e “bárbara”
(BROWN, 1985, p. 11)
A incorporação de tradições afro-brasileiras se deu assim de forma extremamente
seletiva. Os pretos-velhos aceitos como presença africana são aqueles subjugados e
aculturados a vida brasileira, enquanto os espíritos africanos não aculturados são
rejeitava. O esforço para desafricanizar e branquear as tradições afro-brasileiras em
conjunto com um forte movimento para organizar as formas de prática e crença refletem
os valores, o racismo e as preocupações sociais e políticas da classe média. Esta forma de
Umbanda, Brown designa como Umbanda Pura, termo também utilizado por esses
praticantes. Essa mistura particular entre o kardecismo e as tradições afro-brasileiras
configura-se em uma articulação em que kardecistas abandonam suas práticas religiosas
de classe média para criar uma religião que celebra os elementos oprimidos da sociedade
brasileira. Esta postura, segundo a autora, diz respeito a um paradoxo das relações de
classe no Brasil durante esse período. Em termos espirituais, a classe média não se via
suficientemente forte para encarar os seus problemas e voltava-se para a vitalidade das
religiões dos pobres, das massas. Ao mesmo tempo, a confluência de símbolos católicos,
africanos e indígenas, a base de uma identidade nacional cultural brasileira, no mesmo
sentido que Freyre, deram a base também para as interpretações nacionalistas da
Umbanda. Tanto as relações de classe descritas quanto o seu nacionalismo estão
relacionadas ao contexto sociopolítico do período de sua origem.
Como já observado, a dicotomia entre embranquecimento e empretecimento de
Ortiz, vai ser substituída pela noção de branqueamento. Brown é um exemplo disso. O
branqueamento, nesta autora, refere-se ao esforço de um grupo da classe média em
selecionar elementos das tradições afro-brasileiras que melhor se assimilariam à cultura
56
e aos valores da sociedade branca. As próprias entidades a serem cultuadas, são aquelas
que já incorporaram os valores cristãos, como, por exemplo, os pretos velhos já
aculturados. Outro elemento importante, é a relevância da situação de classe neste
empreendimento, visto que, em sua análise, a Umbanda é uma expressão dos valores,
interesses e preocupações da classe média. Dessa maneira, o branqueamento em Brown,
aproxima-se do empretecimento em Ortiz, enquanto se refere a um movimento de
incorporação de elementos afro-brasileiros por uma classe média branca que assimila e
ressignifica os mesmos. Por outro lado, há um abandono da ideia de um “desejo de se
tornar branco” e seu foco parece estar muito mais nas relações de classe que nas relações
étnico-raciais.
No texto Referências sociais das religiões afro-brasileiras: sincretismo,
branqueamento, africanização (1998), Reginaldo Prandi divide a história das religiões
afro-brasileiras em três momentos: a sincretização com o catolicismo, período de
formação das modalidades tradicionais, como Candomblé, Xangô, Tambor de mina e
Batuque; branqueamento, formação da Umbanda nos anos 20 e 30; e, por fim,
africanização: transformação do Candomblé em religião universal, isto é, aberta a todos,
sem barreiras de cor ou origem racial a partir dos anos 1960. Este último momento implica
a negação do sincretismo, a mudança de aprendizado não oral e a mudança ritual e
doutrinária.
Até 1930 considera que as religiões étnicas mantinham vivas tradições de origem
africanas distinguíveis em cada região. Na Bahia o Candomblé, Candomblé de caboclo,
Candomblé de egum; em Pernambuco e Alagoas, o Xangô; no Maranhão e Pará, o
Tambor de mina; no Rio Grande do Sul, o Batuque, no Rio de Janeiro, a Macumba, etc.
Estes cultos, entretanto, desde o período colonial não gozavam de legitimidade e não
projetavam os negros africanos para fora do mundo do trabalho escravo e da senzala. Para
o autor é o catolicismo que se constitui em caminho de se garantir legitimidade social e
conseguir se integrar a sociedade do branco. Isto porque qualquer superação da condição
escrava implicava primeiro, a necessária inclusão no mundo branco e na identidade
brasileira.
Mas deixar de ser escravo e ingressar no mundo branco são processos diferentes.
O branqueamento se refere não só ao apagamento das características fenotípicas que
denunciam uma origem negra, mas ao patrimônio, a posição social e uma adesão a
57
comportamentos, valores e práticas culturalmente aceitos pela sociedade branca. Nesse
sentido, mesmo após a abolição o catolicismo não perdeu a sua importância.
O fim da escravidão, a formação da sociedade nacional, estruturada em
classes, o extravasamento das populações pelas amplitudes geográficas,
com a criação de oportunidades sociais as mais diferentes, tudo isso só
fez reforçar a importância do catolicismo para as populações negras. O
próprio catolicismo, como cultura de inclusão, hegemônica, não fez
oposições, que não pudessem ser vencidas, ao fato de o negro manter
uma dupla ligação religiosa.” (PRANDI, 1998, p. 154)
Baseado na literatura de João do Rio que visitou as ruas do Rio de Janeiro em que
se encontravam os Candomblés, Prandi (1990) ressalta que a detalhada descrição dos
terreiros, dos babalaôs e ialorixás demonstra a antiga presença de sacerdotes de
Candomblés no Rio. O caso de tia Ciata, desmoralizada como falsa mãe de santo, por um
informante, aponta ainda, a existência de uma “cultura peculiar” do povo de santo. O
autor considera possível que os iorubanos de João do Rio tenham descidos da Bahia já
libertos e em busca de ocupações urbanas na corte imperial e depois na capital. Teriam
sido praticamente um dos últimos negros trazidos como escravo no final do século XIX
destinados sobretudo à Bahia para o trabalho urbano, as artes e ofícios. A macumba
carioca, conclui, pode ter sido organizada como culto religioso na virada do século como
aconteceu na Bahia.
Não vejo, pois razão para pensá-la como simples processo de
degradação desse candomblé visto no Rio no fim do século por João do
Rio, essa macumba sempre descrita como feitiçaria, isto é, prática de
manipulação religiosa por indivíduos isoladamente, numa total
ausência comunidades de cultos organizados. Arthur Ramos fala de um
culto de origem banto no Rio de Janeiro na primeira metade do século,
cultuando orixás assimilados dos nagôs, com organização própria, com
a possessão de espíritos desencarnados que, no Brasil, reproduziram ou
substituíram, por razões óbvias, a antiga tradição banto de culto aos
antepassados (Ramos 1943, v. cap. XVIII). São cultos muito
assemelhados aos candomblés angolas e de caboclos na Bahia.
Registrados por Edson Carneiro, que já os tratava como formas
degeneradas (Carneiro, 1937) (PRANDI, 1990, p. 52-53).
A partir dessa comparação, completa:
Macumba, portanto, deve ter sido a designação local ao culto aos Orixás
que teve o nome de candomblé na Bahia, de xangô na região de que vai
58
de Pernambuco a Sergipe, de tambor no Maranhão, de batuque no Rio
Grande do Sul. (PRANDI, 1990, p. 53)
Dessa maneira, para Prandi só existe um “culto ao Orixás” que recebeu diferentes
nomes em diferentes regiões. A Macumba é, portanto, o nome carioca do Candomblé
baiano e só não se chama Candomblé porque os pesquisadores anteriores reduziram o
culto aos “modelos dos minoritários candomblés nagôs da Bahia” (PRANDI, 1990, p.
53). De qualquer forma é a Macumba que levará ao surgimento da Umbanda como
religião independente.
No primeiro quartel deste século, no Rio de Janeiro e depois em São
Paulo, constituiu-se a umbanda, que logo se disseminou por todo o país,
abrindo, de certo modo, caminho para uma nova etapa de difusão do
antigo candomblé. Reiteradamente identificada como sendo a religião
brasileira por excelência, pois, formada no Brasil, resultante do
encontro de tradições africanas, espíritas e católicas, ao contrário das
religiões negras tradicionais, que se constituíram como religiões de
grupos negros, a umbanda já surgiu como religião universal, isto é,
dirigida a todos. Desde sua formação, a umbanda procurou legitimar-se
pelo apagamento de feições herdadas do candomblé, sua matriz negra,
especialmente traços referidos a modelos de comportamento e
mentalidade que denotam a origem tribal e depois escrava. (PRANDI,
1998, p. 152)
Há nessa perspectiva a compressão da Umbanda como uma fase na história do
Candomblé. Um período que, ao mesmo tempo em que expande o Candomblé supera
seus “limites raciais” ao se tornar uma religião “universal” e busca a legitimação através
do apagamento das feições herdadas desse mesmo Candomblé. Especialmente aqueles
comportamentos e mentalidades que insinuem suas origens tribais e escravas. Ora, quais
as diferenças entre a Umbanda e o Candomblé? O cosmopolitismo, num primeiro
momento; e o apagamento de suas origens negras. Estas características estão implicadas
no que Prandi entende por branqueamento e por Umbanda. A Umbanda é o resultado do
branqueamento do Candomblé. O branqueamento é o apagamento de qualquer
característica que remeta a origem negra.
“Limpar” a religião nascente de seus elementos mais comprometidos
com a tradição iniciática secreta e sacrificial e tomar por modelo o
kardecismo, capaz de expressar ideais e valores da nova sociedade
republicana, ali na sua capital. Os passos decisivos foram a adoção da
língua vernácula, a simplificação da iniciação, com a eliminação, quase
total do sacrifício de sangue, iniciação que ganha, ao estilo kardecista,
característica de aprendizado mediúnico público, desenvolvimento do
59
médium. Mantém-se o rito cantado e dançado dos candomblés, bem
como um panteão simplificado de orixás, já, porém havia muitos anos
sincretizados com santos católicos, reproduzindo-se, portanto, um
calendário litúrgico que segue o da igreja católica, publicizando-se as
festas ao compasso desse calendário. Entretanto, o centro do culto no
seu dia a dia estará ocupado pelos guias, caboclos, pretos velhos e
mesmo os “maléficos” e interesseiros exus masculinos e femininos já
cultuados em antigos candomblés baianos e provavelmente cariocas.”
(PRANDI, 1990, p. 55 - 56)
Obviamente há diferenças significativas entre o branqueamento em Prandi e o que
se colocou anteriormente. Em primeiro lugar, esse processo não é um movimento de uma
elite. A Umbanda é um movimento que envolve um “estamento negro” que se mistura a
“brancos pobres” na constituição de uma nova classe social, a classe proletária. (Prandi:
1998:156). Nesse sentido se aproxima de Bastide. Ela não é um projeto político ou um
ideal racionalizado. Também não significa o desaparecimento físico do negro ou se
apresenta como projeto político, pelo menos não para Prandi. O branqueamento neste
caso se encontra nas dimensões culturais, ideológicas e identitárias. A ênfase na
brasilidade é característica dessa negação do africano. Diferentemente do Candomblé,
não é uma religião que veio da África, mas um produto nacional. É cristã e flerta com as
pretensas racionalidade e cientificidade do kardecismo. É nesse sentido uma religião que
almeja ser branca tal qual o catolicismo e o kardecismo. Em resumo, o branqueamento
nas religiões africanas, como colocado por Prandi, se refere, nos termos de Munanga, a
um dos aspectos do mais amplo processo de branqueamento da sociedade brasileira, a
assimilação cultural.
A análise da produção discursiva da elite intelectual brasileira do fim
do século XIX ao meado deste, deixa claro que se desenvolveu um
modelo racista universalista. Ele se caracteriza pela busca de
assimilação dos membros dos grupos étnico-raciais diferentes na "raça"
e na cultura do segmento étnico dominante da sociedade. Esse modelo
supõe a negação absoluta da diferença, ou seja, uma avaliação negativa
de qualquer diferença e sugere no limite um ideal implícito de
homogeneidade que deveria se realizar pela miscigenação e pela
assimilação cultural. A mestiçagem tanto biológica quanto cultural teria
entre outras conseqüências a destruição da identidade racial e étnica dos
grupos dominados, ou seja, o etnocídio. (MUNANGA, 1999, p. 110)
Depreende-se que o conceito de branqueamento se refere ao processo de
aculturação em que a população negra, enquanto grupo social desvalorizado, perde as
60
referências necessárias a uma identidade étnico-racial e incorpora os valores e a ideologia
das elites brancas, grupo socialmente valorizado. Um dos mecanismos de aculturação,
como apontado na primeira parte deste capítulo, é a descaracterização do aspecto étnico
de certos elementos culturais para sua incorporação enquanto elemento cultural da
sociedade global. A Umbanda, segundo os autores estudados, é representativa desse
processo em que as práticas religiosas africanas incorporam a ideologia dominante e
ganha uma caracterização nacional e nacionalista que descaracteriza sua origem étnica.
Nesse capítulo situamos a noção de “embranquecimento” como um conceito
histórico socialmente relevante para compreender a sociedade brasileira, e como uma
expressão com entendimento particular no campo de estudos da sociologia e história das
religiões afro-brasileiras. Ao longo da dissertação, evidenciaremos como essa noção
ganhou diferentes significados no processo de formação da Umbanda no Brasil e na
oralidade de seus praticantes.
61
2. Umbanda e espiritismo
Se algo o detiver, no meio desta jornada, medite e analise. Se for uma flor tenha
cuidado com o perfume; se, porém, uma pedra, guarde-a com carinho, porque
o milagre virá certo para transformá-la em pétalas de Rosa.
João de Freitas
A interpretação histórica da Umbanda no Brasil segue duas vias de análise. Uma
que demarca uma origem precisa no tempo e no espaço, dando ênfase a sua brasilidade;
e outra que lhe imputa uma origem mais antiga, mais longa e processual. A primeira,
marcada pelo mito fundador de Zélio Fernandino, localiza seu início no começo do século
XX, no estado do Rio de Janeiro. A segunda, crítica, nega que tenha havido um momento
fundador, mas sim, um longo processo de formação a partir da colonização brasileira.
Esta vertente entende haver uma oposição entre uma Umbanda praticada pela classe
média, de caráter racista, evolucionista e nacionalista, num projeto de se constituir como
uma intelligentsia do campo religioso; e outra, praticada pelas famílias afro-brasileiras
numa heterogeneidade de práticas e concepções religiosas (GONÇALVES e OLIVEIRA,
2019).
Os autores sectários da primeira perspectiva, a de que a Umbanda surge no Brasil
entre os anos 1920 e 1930, tendem a seguir a atuação de um grupo específico de
umbandistas, provenientes das classes médias urbanas kardecistas do Rio de Janeiro.
Compunham este grupo, comerciantes, membros da burocracia governamental, oficiais
militares, profissionais liberais, jornalistas, professores e advogados, além de alguns
operários especializados. Diana Brown considera que
a fundação da Umbanda ocorreu no Rio de Janeiro em meados da
década de 1920, por iniciativa de um grupo de kardecistas de classe
média que começaram a incorporar tradições afro-brasileiras em suas
práticas religiosas. Os primórdios da Umbanda, contudo, implicam
muito mais do que a simples ocorrência de um sincretismo entre
elementos dessas duas tradições. Os sincretismos afro-kardecistas
ocorrem com frequência entre diversos núcleos urbanos desde o final
do século XIX, e provavelmente também existiam no Rio. A
importância da Umbanda reside no fato de que, num momento histórico
particular, membros da classe média voltaram-se para religiões afro-
brasileiras como uma forma de expressar seus próprios interesses de
classes, suas ideias sociais e políticas e seus valores. Isto marcou o
início da formação da Umbanda, cuja proliferação no período pós-1945
lhe granjeou a publicidade e a legitimação de que desfruta hoje
(BROWN, 1985, p. 9-10).
62
O que a autora supracitada não responde satisfatoriamente é porque nessas
décadas parte da classe média decide tomar as religiões afro-brasileiras como forma de
expressão de seus interesses. Por qual motivo, como ela coloca, alguns kardecistas
abandonam sua posição de classe para criar uma religião que celebra os componentes
oprimidos e não-europeus da sociedade brasileira? Sua resposta passa pela presunção de
que estes indivíduos se consideravam espiritualmente incapazes de resolver seus
problemas e sentiam a precisão de recorrer à “vitalidade das massas” e das religiões afro-
brasileiras.
Essa explicação é pouco satisfatória na medida em que não justifica a necessidade
de se criar uma religião, uma vez que era possível recorrer aos cultos já existentes sem a
exigência de uma renúncia de sua posição social. As interpretações que levam em
consideração as transformações sociais, culturais e econômicas do período oferecem
melhor compreensão do fenômeno.
Prandi (1998) divide a história das religiões afro-brasileiras em três períodos. O
primeiro, sincretização, corresponde à formação das modalidades tradicionais; o
segundo, branqueamento, à formação da Umbanda; e o terceiro, africanização, à
transformação do Candomblé em religião universal. A africanização implica a negação
do sincretismo, adoção de aprendizado não oral, e mudança ritual e doutrinária.
No período do sincretismo com a religião católica, há o surgimento das
modalidades tradicionais como o Candomblé, Xangô, Tambor de Mina e Batuque. São
religiões étnicas que mantinham vivas suas tradições de origem africana.
Geograficamente, localizam-se o Candomblé, Candomblé de Caboclo e Candomblé de
Egum na Bahia; Xangô em Pernambuco e Alagoas; Tambor de Mina no Maranhão e no
Pará; Batuque no Rio Grande do Sul; e a Macumba no Rio de Janeiro. Além delas, havia
as religiões indígenas como o Catimbó, também conhecido como Jurema, Toré,
Pajelança, Babaçuê, Encantaria e Cura.
A partir de 1930, começaria o período de branqueamento. No Rio de Janeiro e
depois em São Paulo, constituir-se-ia a Umbanda que se difundiu por todo o país e abriu
uma nova fase de disseminação do antigo Candomblé. Reiteradamente identificada como
brasileira, a Umbanda já teria nascido como religião universal. Desde sua formação,
procurou legitimar-se pelo apagamento de feições herdadas do Candomblé, sua matriz
63
negra, sobretudo os traços considerados como ligados à mentalidade e comportamento de
origem tribal e escrava.
Segundo o autor, o primeiro centro de Umbanda foi fundado no Estado do Rio de
Janeiro em meados dos anos 1920. Tratava-se de uma dissidência do kardecismo que
rejeitava a presença de espíritos caboclos e negros, tidos como inferiores. Esse
“espiritismo de umbanda”, como foi chamado à época, retrabalhou os elementos
religiosos incorporados à cultura brasileira pelos estamentos negros que se diluíam e se
misturavam aos brancos pobres para formar novas classes sociais. Estas classes eram
constituídas em uma cidade, a então capital federal, era branca, culturalmente europeia,
que valorizava a organização burocrática e premiava o conhecimento pelo aprendizado
escolar em detrimento da tradição oral, e que já conhecia o kardecismo como religião.
Trata-se de “limpar” a religião dos seus elementos mais comprometidos com a
“tradição iniciática secreta e sacrificial”. Este modelo toma o kardecismo, que expressa
ideias e valores da nova sociedade capitalista e republicana, como modelo de instituição
religiosa. Até o final dos anos 1950 as religiões afro-brasileiras passam por um
apagamento de características de origem africana e o ajustamento à cultura nacional de
preponderância europeia e branca. Porém, ao longo deste processo de branqueamento,
muitas práticas rituais e concepções religiosas negras impuseram-se à sociedade branca.
Com relação a este fenômeno, Renato Ortiz (1999) em A morte branca do
feiticeiro negro o interpreta enquanto um processo de aculturação e integração do negro
à sociedade branca que não pode ser dissociado das transformações sociais da virada do
século XIX para o XX no Brasil. O autor considera que uma vez que
o social e o cultural são indissolúveis, devemos estudar os fenômenos
de mudança cultural, segundo os “quadros sociais da aculturação”. Para
isso devemos situar o processo de mudança cultural no quadro da
transformação da sociedade global. Constataremos assim que o
nascimento da religião umbandista coincide justamente com a
consolidação de uma sociedade urbano-industrial e de classes. A um
movimento de transformação social corresponde um movimento de
mudança cultural, isto é, as crenças e práticas afro-brasileiras se
modificam tomando um novo significado dentro do conjunto da
sociedade global brasileira. Nesta dialética entre social e cultural,
observaremos que o social desempenha um papel determinante. Se
existe uma autonomia relativa dos fenômenos de aculturação, ficará
claro que, no caso da Umbanda, as transformações se fazem dentro da
mesma pertinência: a da sociedade moderna. A sociedade global
aparece então como modelo de valores, e modelo da própria estrutura
64
religiosa umbandista. Isso faz com que as transformações do mundo
simbólico afro-brasileiro se realizam sempre em conformidade com os
valores legítimos da sociedade global. Valores como a moral católica
(noção de bem e de mal), a racionalização, a escrita, se integram a um
outro tipo de moral e racionalidade, características estas dos cultos afro-
brasileiros. Da ideia da integração passaremos em seguida à noção de
legitimação. Constataremos que a religião umbandista se legitima na
medida em que ela integra os valores propostos pela sociedade global.
Gradativamente, passa-se da recusa inicial oposta pela sociedade à
aceitação social da religião. A legitimação é sensível no que diz respeito
ao mercado religioso onde a Umbanda, considerada como um passado
recente como heresia, torna-se, pouco a pouco, um sistema religioso
aceito pelas outras profissões de fé. A partir de um ramo da macumba,
prática negra e ilegítima, assiste-se à emergência e ao reconhecimento
social de uma nova religião que se desenvolve hoje através de toda a
nação brasileira (ORTIZ, 1999, p. 15).
Nesta perspectiva, a criação da Umbanda por um grupo, em um lugar e em um
período específicos reflete as transformações sociais em curso na sociedade que a
engloba. Neste caso, a emergência da sociedade moderna brasileira. Isto explica como os
valores afro-brasileiros se transformaram para compor uma nova religião. O fato do Rio
de Janeiro ser o seu lugar histórico de nascimento, e São Paulo, seu lugar de maior
desenvolvimento, onde a tendência à organização e à burocratização se apresenta de modo
bastante claro e avançado, demonstra a relação entre o surgimento da Umbanda e o
processo de modernização do Brasil. Ambos representam o polo mais industrializado e
urbanizado do país. Além de Ortiz (1999), Bastide (1971) e Camargo (1961) corroboram
a tendência a se desenvolver nas zonas modernizadas.
Argumenta Renato Ortiz, a partir dos estudos de Roger Bastide (As religiões
africanas no Brasil) e Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala), que ao longo do período
colonial, apesar dos efeitos deletérios do tráfico e do sistema escravocrata aos costumes
africanos, a memória coletiva negra conseguiu encarnar-se no Brasil. Preservou-se assim
o culto de grande parte dos deuses africanos. Concomitantemente reinterpretou-se
determinadas práticas e costumes transformando-se, pouco a pouco, a herança africana
em elementos culturais afro-brasileiros.
Com o avanço das leis abolicionistas da segunda metade do século XIX o sistema
escravista entra em crise e o escravo se torna oneroso. O sistema dominante estava sendo
minado pela emergência de uma estrutura socioeconômica capitalista que fundamenta sua
produção no trabalho livre. A abolição liberou o capital que passa a ser investido na
indústria.
65
Ao mesmo tempo em que ocorrem essas mudanças nos aspectos legais e
econômicos, a mestiçagem torna-se um fenômeno importante no século XIX. O século
de ascensão do mestiço e do bacharel é também o século do embranquecimento do
“mulato” que precisa “embranquecer a alma” para ascender individualmente na
hierarquia social. A ideologia do embranquecimento penetra a camada “mulata” de
intelectuais. O bacharel é protagonista no movimento de ascensão social do “mulato” que
quando se interessa pelas crenças africanas o faz no sentido de desafricanizá-las. Como
exemplo, tem-se a introdução de concepções estéticas próprias, como no caso de
Joaozinho da Goméa; e a introdução da uma “meio-etnia europeia” dos fundadores do
espiritismo de Umbanda.
Para completar o quadro, a imigração europeia, a elevada taxa de mortalidade
entre negros e o fenômeno da mestiçagem levaram a um processo de embranquecimento
da população brasileira, sobretudo do Sudeste onde se situava o polo de produção
industrial. Este fenômeno não se deu apenas pela superioridade numérica de brancos, mas
pela preponderância do mundo branco sobre as cosmogonias afro-brasileiras. Ou seja,
paralelo ao branqueamento racial e populacional há um branqueamento cultural. A
dominação simbólica acarretou, segundo Ortiz (1999), o desaparecimento ou a
metamorfose dos valores tradicionais negros que, na sociedade moderna, tornam-se
caducos e inadequados.
Com a urbanização, industrialização e formação de uma sociedade de classes
(formação de um proletariado e consolidação de uma classe média), o negro nessa nova
realidade é transformado subitamente em cidadão e lançado ao mercado do trabalhador
livre. A abolição representou um momento da desagregação do mundo negro que resultou
na migração para as grandes cidades, novos polos econômicos da nação. A expansão da
cidade, espaço principal da sociedade moderna, destrói a herança cultural negra que se
conservava no período da colonização.
Dessa maneira, a desagregação do sistema escravocrata relaciona-se à
desagregação da própria memória coletiva negra. Esta memória, para Ortiz (1999), não
reflete necessariamente uma continuidade entre um mundo negro pré-colonial e a
modernidade, mas um reconhecimento da África como referência do sagrado e
significação de um retorno nostálgico a um passado negro. Ponto central da diferenciação
66
entre a Umbanda e os outros cultos afro-brasileiros. Ela tem consciência de sua
brasilidade, se apresentando como religião nacional.
A macumba representa esta desagregação da memória coletiva. Em São Paulo, a
desintegração chegou ao nível individual transformando os feiticeiros em mágicos e a
religião em magia. A macumba por um lado, corresponde ao processo de marginalização
do negro no mundo do trabalho, e por outro, a uma melhor integração cultural no conjunto
da sociedade. Diferentemente do Candomblé, rompe com os laços étnicos (nações) e
substitui por uma solidariedade de cor.
A Umbanda segue esse mesmo movimento. À desagregação corresponde um
desenvolvimento larvar da religião, à consolidação da nova ordem social corresponde a
organização do novo culto. Ela exprime, no campo religioso, a consolidação da sociedade
urbano-industrial. A implementação e difusão da Umbanda é resultado do fenômeno de
“canalização” da desagregação de antigas tradições afro-brasileiras em uma nova
modalidade religiosa. Até neste ponto Ortiz segue a análise de Bastide, mas é quando se
propõe a pensar a reorganização umbandista que aparece sua originalidade:
A síntese umbandista pôde assim conservar parte das tradições afro-
brasileiras; mas, para estas perdurarem, foi necessário reinterpretá-las,
normalizá-las, codificá-las. Foi este o trabalho dos intelectuais
umbandistas: canalizar uma situação de fato para constituir uma nova
religião. Mas quem eram estes intelectuais? Brancos e mulatos de “alma
branca”, que reconstruíram as antigas tradições com os instrumentos e
os valores fornecidos pela sociedade. Não estamos, pois, mais em
presença de um culto afro-brasileiro, mas diante de uma religião
brasileira que traz em suas veias o sangue negro do escravo que se
tornou proletário. (Op. Cit. p. 33)
A Umbanda é o produto de um sincretismo refletido e intencional. É uma religião
endógena porque se forma no interior de uma classe de intelectuais e se difunde. Em
outras palavras, para Ortiz (1999) ela é uma criação de seus intelectuais que realizam uma
canalização das tradições afro-brasileiros que se encontravam em um processo de
desagregação diante da transformação da sociedade rural em sociedade urbana. O cosmo
umbandista é a síntese em um sistema coerente e racional das tradições afro-brasileiras e
espíritas realizada por esses teóricos.
No mesmo sentido, Artur Cesar Isaia (2012) coloca como característica marcante
na constituição da Umbanda, a formação de um segmento intelectual imbuído de um
67
projeto normatizador. Na primeira metade do século XX há o surgimento de intelectuais
munidos de um projeto pedagógico e messiânico para a nação e o Estado brasileiro. É a
partir dos anos 1930 que os intelectuais direcionam sua atuação para o âmbito do Estado.
Os intelectuais da Umbanda pensavam uma religião tipicamente nacional, capaz de
sintetizar a representação miscigenada propalada por parte da intelligentsia brasileira e
pelo Estado.
Por intelectual da Umbanda, considera-se, portanto, aqueles que “se lançaram ao
esforço exegético-organizativo da nova religião a partir da primeira metade do século
XX.” (Isaia 2008:212). Eles são responsáveis por iniciar uma literatura publicada com o
fim de demarcar os princípios rituais, morais e doutrinários da religião. Esta literatura faz
parte do esforço não só teórico, mas identitário do grupo religioso.
Mas, ainda segundo o mesmo autor, esses esforços não se limitam a um aspecto
exegético-racional. Eles se apresentam como projeto político. Projeto de criação da
crença na racionalidade das exegeses dos intelectuais e no seu direito de interpretar,
prescrever e ordenar a nova religião. Essa legitimação passa não só pelo seu caráter
racional, mas também carismático. Não só é a legitimação da religião, mas também a
legitimação de uma elite intelectual.
No “corpus” por nós trabalhado, temos muitas vezes a coexistência de
projetos de legitimações racionais com tipicamente carismáticas. Isto
acontece, por exemplo, nas narrativas sobre o surgimento da umbanda,
em escritos sobre um dos mitos fundantes mais conhecidos da nova
religião: o que remete a figura de Zélio de Moraes. A tentativa em
estabelecer uma exegese racional, inclusive da magia, vem junto com o
trabalho em tentar afirmar essas racionalizações a partir da
familiaridade com o detentor da mensagem fundante da umbanda. A
autoridade e a legitimidade de Zélio na umbanda vêm de uma narrativa
biográfica na qual o mesmo aparece como um ser privilegiado, dotado
de poderes mediúnicos fabulosos, de uma intimidade com o “outro
lado”, realmente notáveis. Ele é um escolhido pelo “astral superior”
como seu intermediário para difundir a mensagem fundadora de uma
nova religião, tipicamente nacional (ISAIA, 2008, p. 208).
Cabe ressaltar uma diferença importante entre as perspectivas de Ortiz (1999) e
Isaia (2008) sobre o papel destes pensadores. Se no primeiro eles são os verdadeiros
criadores da Umbanda, no segundo sua atuação no período de constituição da religião não
os coloca como criadores, mas como um setor fundamental no seu processo de
legitimação e institucionalização, sobretudo no que se refere aos aspectos políticos.
68
José Henrique M. Oliveira (2006) levanta duas estratégias construídas por esse
grupo. São elas: a adoção de um discurso nacionalista e evolucionista, e os esforços de
institucionalização da religião. Elas visavam “flexibilizar a ocupação do campo religioso”
a partir de uma livre interpretação do projeto político-ideológico do Estado Novo, no qual
a miscigenação do povo brasileiro contribuía para o desenvolvimento do Brasil, uma vez
que aqui não haveria conflitos étnicos e culturais.
Sem dúvida, foi esse o papel desempenhado pelos intelectuais
umbandistas: reestruturar a herança multicultural de modo que fosse
possível construir um sistema religioso que permitisse à umbanda
atingir o status de religião – forma institucionalizada de culto – ao
mesmo tempo em que refletia o desejo de reconhecimento (e ascensão)
social de uma parcela dos seus adeptos. (OLIVEIRA, José 2006, p. 134)
Institucionalmente, o trabalho de legitimação começa com a fundação da primeira
Federação Espírita de Umbanda (1939) e a organização do Primeiro Congresso Brasileiro
do Espiritismo de Umbanda (1941). A federação tinha o objetivo de proteger os filiados
da repressão policial, principalmente depois da criação da Sessão de Tóxicos e
Mistificações nas chefaturas da polícia. O congresso teria duas funções: uma interna,
visava unificar o culto a partir de uma doutrina pautada na caridade, e uma externa,
fornecia explicações de cunho científico que pudesse desmistificar os rituais mágicos da
Umbanda.
Uma vez reconhecida a relevância dessa camada intelectual na legitimação e
institucionalização do culto segue a reflexão sobre outro aspecto desse processo. A
construção de uma identidade e de uma memória umbandistas. A elaboração de uma
representação sobre o passado, e particularmente, sobre a origem, está atrelada ao projeto
de religião que esses intelectuais vislumbram.
Como já exposto na introdução, a memória não só se faz a partir de um presente,
mas também em função de um futuro. Conforme Pollak (1989), assume-se uma
perspectiva construtivista onde não se analisa os fatos sociais como coisas, mas sim como
os fatos sociais se tornam coisas, como são solidificados e dotados de duração e
estabilidade. Aplicada à memória coletiva, essa abordagem se interessa pela maneira
como os processos e os atores intervêm na constituição e formalização dessas memórias.
De um ponto de vista funcional, a memória, definida como “operação coletiva dos
acontecimentos e interpretações do passado que se quer salvaguardar” (Pollak, 1989: 10),
69
serve para manter a coesão do grupo e das instituições e defender os limites daquilo que
aquele grupo tem em comum. Significa fornecer um quadro de referência e de pontos de
referência que funcionem como base para a construção de uma identidade comum. Essa
construção, segundo o autor, se dá através do trabalho de enquadramento da memória.
Este trabalho se alimenta da história, coloca em jogo as atividades individual e de grupo
e lança mão de atores profissionais. Seus rastros são os objetos materiais: monumentos,
museus, bibliotecas etc.
Vê-se que as memórias coletivas impostas e defendidas por um trabalho
especializado de enquadramento, sem serem o único fator aglutinador,
são certamente um ingrediente importante para a perenidade do tecido
social e das estruturas institucionais de uma sociedade. Assim, o
denominador comum de todas essas memórias, mas também as tensões
entre elas, intervêm na definição do consenso social e dos conflitos num
determinado momento conjuntural. Mas nenhum grupo social,
nenhuma instituição, por mais estáveis e sólidos que possam parecer,
têm sua perenidade assegurada. Sua memória, contudo, pode sobreviver
a seu desaparecimento, assumindo em geral a forma de um mito que,
por não poder se ancorar na realidade política do momento, alimenta-
se de referências culturais, literárias ou religiosas. O passado longínquo
pode então se tornar promessa de futuro e, às vezes, desafio lançado à
ordem estabelecida. (POLLAK, 1989, p. 12-13)
Seguindo os passos dos intelectuais de Umbanda enquanto produtores de uma
memória e de uma identidade umbandista toma-se como ponto de partida o trabalho
daquele que é atualmente considerado o primeiro autor umbandista, Leal de Souza
(CUMINO 2010, TRINDADE, 2009). A partir dele, uma série de outros intelectuais
surgiram e produziram em livros, jornais, programas de rádios, e mais recentemente sites
e canais no YouTube, representações sobre a Umbanda e seu passado. Cabe também
ressaltar a criação de instituições e organizações, bem como a atuação de representantes
eleitos na institucionalização e legitimação da religião. Embora não seja possível em um
capítulo dar conta de todas as ações políticas, literárias e filosóficas dos umbandistas ao
longo das décadas, espera-se, ao focar na atuação de alguns desses intelectuais, ser capaz
de demonstrar que sua produção pode ser entendida como um trabalho de enquadramento
de memória e que este trabalho está relacionado a construção da própria identidade
religiosa desse grupo.
No trabalho destes teóricos e lideranças, a possiblidade de unir os adeptos da
religião e garantir força política depara-se com dois obstáculos. O primeiro é a
70
diversidade ritualística e ideológica do campo umbandista11 que implica em muitos
conflitos e disputas. O segundo é o fato de muitos praticantes não se autodeclararem
umbandistas, preferindo se apresentarem como católicos ou espíritas. A identidade
religiosa umbandista refere-se à construção de um vínculo comum que desperte o
sentimento de pertencimento e de semelhança possibilitando a união e garantindo a força
política do grupo.
2.1 Umbanda como religião
A atual imagem da Umbanda propalada por seus próprios praticantes, em especial,
sua camada intelectual, é a de uma religião brasileira. O mito de fundação corrobora e
justifica esse retrato. Porém, a análise da literatura umbandista permite perceber que esta
é uma representação construída ao longo do tempo a partir de um esforço de
racionalização e legitimação de sua prática.
Antes mesmo de se compreender como religião brasileira, foi preciso edificar a
Umbanda enquanto religião. Isto é, garantir o reconhecimento público de que ela é uma
religião como as demais, especialmente como o Catolicismo. Que ela possui crença, ritos
e, sobretudo, valores éticos. Se afirmar como religião é distinguir-se da magia, da
feitiçaria, da macumba, do curandeirismo, e de toda uma linguagem de acusação utilizada
com o intuito de criminalizar, reprimir e silenciar as religiões afro-brasileiras. É dar à sua
prática, legitimidade tanto social quanto jurídica.
A necessidade de se reafirmar como religião ainda se mantém, visto que o racismo
religioso estrutura a sociedade nacional, como visto no primeiro capítulo. Em maio de
2014, um juiz no Rio de Janeiro negou o pedido do Ministério Público para que o Google
retirasse vídeos que atacavam a Umbanda e o Candomblé por considerar que estas não
seriam religiões. Afirma o juiz que os cultos afro-brasileiras não se constituem em
religiões por não possuírem um texto-base (como a bíblia), uma estrutura hierárquica e
11
O conceito de campo umbandista é uma adaptação formulada por Negrão (1996) do conceito de campo
religioso elaborada por Pierre Bourdieu. Designa: “o espaço onde conviveriam e entrariam em luta as
diferentes representações da Umbanda, cada uma procurando maior legitimação e captação de capital
simbólico entre os filhos-de-fé umbandistas, em detrimento das demais. São as diferentes ‘Umbandas’
disputando entre si para ver qual é mais ‘pura’, a mais verdadeira, a mais autêntica ou até mesmo a que tem
mais força espiritual” (PINHEIRO, 2009).
71
nem um Deus a ser venerado. Coloca ainda que os vídeos não são mais do que
manifestações de livre expressão de opinião12. Negar a Umbanda o seu status de religião
é negar o seu direito a ser praticada.
Esta realidade demonstra porque os autores umbandistas têm a necessidade de
obra após obra, reafirmar a Umbanda como religião. Desde a década de 1930, com as
reportagens no jornal Diário de Notícias de Leal de Souza até publicações mais recentes
como o livro da Mãe Flávia Pinto, Umbanda religião brasileira: guia para leigos e
iniciantes (2020), parte significativa da literatura umbandista é dedicada ao
esclarecimento dos não umbandista e à divulgação de noções introdutórias sobre culto.
O período germinal da ideia da Umbanda como religião independente encontra-
se entre a década de 1930 e início de 1940. Ela é uma resposta ao contexto de perseguição
religiosa que vigorava no período. A Constituição Federal de 1891 e o Código Penal de
1890 “fundamentaram-se na ideia de uma sociedade baseada no trabalho universal e na
garantia dos direitos individuais” (ALVAREZ et all, 2003, p. 9). Admitia-se, assim, a
liberdade de culto e a negação de uma religião oficial, numa diferença em relação à
Constituição de 1824 que estabeleceu o catolicismo e o padroado (junção da Igreja
católica e Estado) como norma de socialização e organização do poder público.
Entretanto, na prática, a separação entre Estado e religião não se concretiza (LEITE,
2011). O espiritismo e as práticas relacionadas às tradições afro-brasileiras eram
condenados no código penal.
Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de
talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor,
inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar
e subjugar a credulidade pública:
Penas – de prisão celular de um a seis meses, e multa de 100$000 a
500$000.
Parágrafo 1. Se, por influência, ou por consequência de qualquer destes
meios, resultar ao paciente privação ou alteração, temporária ou
permanente, das faculdades psíquicas:
Penas – de prisão celular de um a seis meses, e multa de 200$000 a
500$000.
Parágrafo 2. Em igual pena, e mais na de privação de exercício da
profissão por tempo igual ao da condenação, incorrerá o médico que
diretamente praticar qualquer dos atos acima referidos, ou assumir a
responsabilidade deles.
12
https://exame.com/brasil/para-juiz-candomble-e-umbanda-nao-sao-religioes/ acessado em 24/07/2022.
72
Art. 158. Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo,
para uso interno ou externo, e sob qualquer forma preparada, substância
de qualquer dos reinos da natureza, fazendo ou exercendo, assim, o
ofício do denominado curandeiro:
Penas – de prisão celular de um a seis meses, e multa de 100$000 a
500$000.
Parágrafo único. Se do emprego de qualquer substância resultar à
pessoa privação ou alteração, temporária ou permanente, de suas
faculdades psíquicas ou funções fisiológicas, deformidade, ou
inabilitação do exercício de órgão ou aparelho orgânico, ou, em suma,
alguma enfermidade:
Penas – de prisão celular de um a seis anos, e multa de 200$000 a
500$000.
Se resultar morte:
Pena – de prisão celular por seis a vinte e quatro anos.
A organização do Estado para a repressão das religiões mediúnicas foi
consolidada com a elaboração do Código Penal de 1890, cujo artigo 157 previa pena para
quem praticasse o espiritismo e a magia, e o artigo 158 para quem praticasse o
curandeirismo. Tais atos foram tratados como crimes contra a saúde pública (SOUZA e
SILVA, 2021).
De 1890 a 1920, são estabelecidas uma série de iniciativas na área de Saúde
Pública e urbanismo com o objetivo de sanear e higienizar o Distrito Federal. Essas
iniciativas tiveram como efeito a ampliação do debate sobre o controle das religiões de
matriz africana. Entre estas medidas estão o Decreto nº 1.151 de 5 de janeiro de 1904 que
reorganiza os Serviços de Higiene Administrativa da União e possibilita o “Bota Abaixo”
dos territórios negros na reforma de Pereira Passos (1902-1906). A repressão do poder
público e policial se apoiava no discurso médico e higienista que estabelecia uma relação
causal do espiritismo com as doenças mentais.
Em 1920, o Serviço de Fiscalização do Exercício, da Medicina e da Farmácia e a
criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), através do decreto nº 3.987
de 2 de janeiro de 1920, reforçam esse traço repressor sobre as religiões afro-brasileiras
a partir das práticas e discursos médicos, enquanto instâncias voltadas para a aplicação
de medidas e políticas públicas amparadas pela ciência eugênica e higienista em vigor na
época.
Em maio do mesmo ano, o novo Decreto nº 14.189 substituía a criação do DNSP.
A imprensa carioca noticiou o novo regulamento sanitário enfatizando o combate aos
exploradores da boa fé pública. Tal publicação gerou reação da Federação Espírita
73
Brasileira. Em 19 de junho vinha a público no jornal A Noite a crítica de Ignácio
Bittencourt, representante da Federação.
Os codificadores do regulamento actual, apenas reeditaram o art. 157
do código criminal, sem saberem ou poderem diferençar o que seja
magia, sortilégios e toda sorte de embustes [...]. O termo genérico não
está bem empregado ali, elle não contém o pensamento real e
verdadeiro dos legisladores, elles apenas englobaram, confundindo as
artes inconfessáveis da baixa nigromancia, em seus variados ramos,
com a philosophia de Allan Kardec. Aquella, é o excerto do africanismo
boçal que nos foi importado pela raça inferior que lá a praticava, e
assimilada entre nós por espíritos ainda não evoluídos (SOUZA e
SILVA, 2021).
Foi ao longo destas décadas que a repressão ganhou mais consistência com as
campanhas de combate ao baixo espiritismo encampadas pelo delegado Mattos Mendes
a partir de 1927 no Rio de Janeiro, e com a criação de uma sessão especializada no
combate a tóxicos e mistificações na década seguinte. A publicação do Decreto nº 24.531,
de 2 de julho de 1934, a criação da 1º Delegacia Auxiliar no mesmo ano e a criação da
Seção de Tóxicos e Mistificações, marcam um período de especialização da polícia nesse
trabalho de repressão (SOUZA e SILVA, 2021).
Segundo Nathália Fernandes de Oliveira (2015), a “Revolução de 1930”
simbolizou a ascensão de uma política universalizante e pretensamente aglutinadora das
classes e segmentos sociais em que a polícia se constituiu e se consolidou em um dos
órgãos mais poderosos da sociedade brasileira. O discurso de combate aos inimigos do
Estado, os comunistas e anarquistas; e as intenções em implementar um governo
centralizador e fortemente inspirado no totalitarismo foram causas desta consolidação. A
polícia ganha protagonismo no poder repressivo.
O Decreto nº 22.332 de 10 de janeiro de 1933 marca um esforço de estruturação
e normatização da polícia. Dois meses depois a Chefia da Polícia no Rio de Janeiro na
Capital Federal é assumida por Filinto Muller. Sua gestão foi a mais longa do governo
Vargas, indo de 1933 a 1942. É uma gestão marcada pela implacável perseguição aos
comunistas e aos integralistas, e a proibição da entrada de estrangeiros no país. Sua gestão
é indicada por Yvonne Maggie como responsável pela criação da Seção de Tóxicos,
Entorpecentes e Mistificações (OLIVEIRA, N. 2015). Esta seção, junto com a 1ª
Delegacia Auxiliar, é a responsável pelo combate aos crimes de curandeirismo,
74
charlatanismo e à prática do espiritismo, entre outros. O Decreto de 1934 estabelece a
função da 1ª Delegacia Auxiliar:
Art. 33. Além dos deveres comuns, às Delegacias Auxiliares compete
exclusivamente;
§ 1º À Primeira Delegacia Auxiliar:
I - Processar a cartomancia, mistificações, magias, exercicio ilegal da
medicina e todos os crimes contra a Saúde Pública.
II - Ter sob sua vigilância o meretrício, providenciando contra êle, sem
prejuizo do processo judicial competente, da forma que julgar mais
conveniente ao bem estar da população e da moralidade pública.
III - Reprimir e processar o proxenetismo e o caftismo (OLIVEIRA, N.
2015, p. 87).
De acordo com Brown (1985) a lei de 1934 coloca maçons, kardecistas, a
Umbanda e as religiões afro-brasileiras sob a jurisdição do Departamento de Tóxicos e
Mistificações da Polícia do Rio de Janeiro, na seção especial de Costumes e Diversões
que lidava com problemas relacionados ao álcool, drogas, jogo ilegal e prostituição. Para
funcionar, os terreiros eram obrigados a fazer um registro na polícia sob taxas fixadas
pela própria instituição. Assim, foram enquadrados como “atividades marginais
desviantes” associados com vícios que requeriam controle punitivo. Esta classificação
durou até 1964 com a reorganização do Departamento de Polícia do Rio. Esta lei criou
uma situação dúbia. Se teoricamente, o registro lhe permitia a prática legal, concretamente
atraía a atenção da polícia e aumentava os riscos de intimidação e extorsão.
De uma forma ou de outra, umbandistas e praticantes de outras religiões afro-
brasileiras estavam expostas à severa perseguição policial. A polícia invadiu e fechou
terreiros, confiscou objetos rituais e prendeu participantes. Além disso, houve acusações
de que extorquiam terreiros em troca de proteção. Mesmo no final da década de 1960,
quando passou a ser exigido apenas um registro no cartório, muitos centros se mantiveram
relutantes aos registros.
A polícia justificava as perseguições argumentando que a “macumba” tinha
ligações com ativistas comunistas. Um oficial da polícia, entrevistado por Brown, dizia
que Ogum na década de 1930 e início dos anos 1940 era venerado como o “Cavaleiro
Vermelho da Esperança”13. Umbandistas mais velhas desprezaram esta interpretação e
13
A origem da expressão “Cavaleiro da Esperança” para se referir à Luiz Carlos Prestes é incerta. Mas ela
surgiu após sua liderança na Coluna Miguel Costa-Prestes nos noticiários cariocas. Alguns biógrafos a
colocam como resultado da sua liderança no movimento tenentista, outros a associam à imprensa comunista
75
Brown não encontrou evidências de elementos esquerdistas ou de qualquer orientação
política claramente definidas.
A Constituição de 1937 instituiu o Estado Novo e criou uma ordem jurídico-
política profundamente semelhante às vigentes nos Estados fascistas europeus – um ardil
totalitário que buscava suplantar as diferenças socioculturais e políticas em favor de um
discurso nacionalista unificador (DURA, 1992). Com relação aos direitos individuais,
assegura a liberdade, a segurança, a propriedade e a liberdade de culto, mas também
propugnava um projeto eugenista para formar a nação. Baseada nela é decretado o Código
Penal de 1940, que só veio a entrar em vigor a partir de 1942. Apesar de algumas
mudanças com relação às religiões de matriz africana, em comparação com o código de
1890, o charlatanismo, curandeirismo e o exercício da medicinal ilegal mantiveram-se
como crime.
Apesar de, desde o fim do século XIX, os centros espíritas estarem sujeitos à
licença policial, a partir de 1941 o chefe da Polícia passa a exigir além do registro nas
Delegacia Distrital e Delegacia Especializada, o registro na Delegacia Especial de
Segurança Pública, e na Delegacia Geral de Investigações. Estas últimas tinham a função
de averiguar antecedentes político-sociais e criminais. Nathália Oliveira (2015) ressalta o
caráter político deste novo registro. A Delegacia Especial de Segurança Pública (DESPS)
foi a polícia política do Estado Novo e tinha como objetivo investigar e combater
comportamentos políticos dissidentes. Assim, os centros espíritas e terreiros eram
considerados espaços onde se poderia confabular contra a ordem vigente. Tal posição é
corroborada se levamos em consideração a fala de policiais à Diana Brown, expostas
acima.
O marco de uma proliferação de discursos sobre as religiões mediúnicas e afro-
brasileiras é a criminalização a partir de 1890 de diversas práticas espíritas, mágicas,
adivinhatórias, enquanto riscos à saúde pública (GIUMBELLI, 1997). É neste contexto
que os umbandistas buscam se organizar e que dão início a uma literatura própria que não
falará apenas de ritos e crenças, mas buscará dar respostas às acusações que a sociedade
que terá Prestes como uma de suas principais referências. A expressão “Cavaleiro Vermelho da Esperança”
associa algumas características do Ogum umbandista com a figura “mítica” de Prestes, líder do Partido
Comunista no Brasil. Ogum é muitas vezes representado como São Jorge, um cavaleiro, que usa uma capa
vermelha. Assim se vê construir a partir de diferentes elementos do imaginário popular um discurso
legitimador da repressão policial.
76
lhe faz. O livro aparece como meio de codificação e divulgação do saber religioso. Estes
livros não são apenas expressões individuais, mas vinculam-se às aspirações de diversos
grupos que se filiam a diferentes federações.
Nos anos 1930, busca-se dar uma primeira definição do que ela é em suas
primeiras publicações. As informações sobre estas publicações são escassas se
encontrando dispersas as citações sobre elas. Até o momento, a partir de textos
acadêmicos e confessionais se identificou: O espiritismo, a magia e as sete linhas de
Umbanda (1933) de Leal de Souza, Senzala e Macumba (1939) de Jacy Rêgo Barros,
Magia no Brasil (1939) de Waldemar L. Bento, Pretos-Velhos e Caboclos de Murilo
Souza Soares, Umbanda14 de João de Freitas e outros escritos de Leopoldo Betiol sobre
esoterismo na Umbanda.
Destes autores, o que mais atenção tem recebido é Leal de Souza. Enaltecido como
primeiro escritor umbandista, tem tido seus livros (sobre Umbanda) reeditados, e tem sido
recorrentemente citado e estudado com uma profícua produção de informações sobre sua
vida e obra, chegando recentemente a ganhar uma biografia (Antônio Eliezer Leal de
Souza: O Primeiro Escritor da Umbanda, de Diamantino Fernandes Trindade), gênero
incomum na literatura umbandista, não existindo publicações do gênero nem mesmo para
seu suposto fundador, Zélio de Moraes.
Os demais não têm gozado do mesmo prestígio. São citados exclusivamente em
textos dedicados à história da Umbanda e de sua literatura, e nem em todos eles. Por isso
suas informações também são mais escassas. Um possível motivo para que isso aconteça
é o fato de Leal de Souza ser uma figura importante na construção do mito em torno de
Zélio Fernandino. Ele não só foi iniciado na Umbanda por Zélio, sendo dirigente de um
dos centros fundados pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, como sua principal obra foi
uma exposição e defesa da “Umbanda zeliana”. Sua produção é resgatada como
fundamento do que teria sido o início da Umbanda.
14
Cumino (2010) estabelece sua publicação em 1938. O blog Registros da Umbanda indica 1941
(https://registrosdeumbanda.wordpress.com/2011/03/20/lista-de-livros-sobre-umbanda/) acessado em
19/09/2022 às 23:07). Dois fatos no livro fazem crer que sua publicação tenha sido em 1941. Notícias sobre
o bombardeio de Nápoles, possível referência à Segunda Guerra (1939-1945) e a 4ª e a 7ª edições trazem
trechos de resenhas do livro com publicação em 1941.
77
2.2 Leal de Souza e a Linha Branca de Umbanda e Demanda
Antônio Eliezer Leal de Souza (1880 – 1948) nasceu em Livramento, Rio Grande
do Sul e morreu no Rio de Janeiro. Participou da Guerra de Canudos, foi redator do jornal
A Federação em Porto Alegre, diretor e repórter dos jornais A Noite, Diário de Notícias,
A Nota e da Revista Careta; e, por fim, poeta parnasiano lançado por Olavo Bilac. Além
disso, foi dirigente da Tenda Espírita Nossa Senhora da Conceição; primeiro escritor a
defender a Umbanda em 1932 e percursor de um ensaio de codificação tentando definir
o que é a “linha branca de umbanda e demanda” (TRINDADE e LINARES, 2012).
A chegada do espiritismo em meados do século XIX se apresenta como uma
ameaça à hegemonia católica, pois ela vem através do contato de uma elite intelectual
com a Europa, particularmente, a França. Sem poder se valer da suposição da
inferioridade racial, que usara contra as religiões indígenas e africanas, a Igreja Católica
se apoia no imaginário sobre o demônio para deslegitimar o espiritismo. Os jornais, para
além dos púlpitos, passam a configurar um importante espaço para o embate. Ao mesmo
tempo que apresentam as acusações católicas, retratam o interesse crescente da burguesia
no tema. Encarado inicialmente com curiosidade investigativa, típica do espírito
positivista que pairava na época, proliferaram os chamados inquéritos ou dossiês:
“conjunto de matérias sequenciadas que objetivavam lançar luz sobre os fenômenos
instigantes do espiritismo investigados a partir da experiência vivenciada pelo repórter,
que buscava não somente registrar os fatos observados como também os explicar à luz da
moderna razão científica” (SILVA, 2020, p. 299).
O mais conhecido deles foi escrito pelo jornalista, teatrólogo, cronista, tradutor e
membro da Academia Brasileira de Letras, João Paulo Emílio dos Santos Coelho Barreto,
mais conhecido por seu pseudônimo, João do Rio. Publicado na Gazeta de Notícias e
editado como livro em 1904, As Religiões do Rio demonstram as diversas práticas
religiosas negras, cristãs, ocultistas, e outras existentes no Rio de Janeiro naquele
momento. É neste contexto que em 1924, Irineu Marinho (futuro fundador de O Globo),
sócio e diretor do jornal A Noite, realizou um inquérito sobre o espiritismo, organizado
por Leal de Souza, publicado como livro em 1925, No Mundo dos Espíritos. Informa
Maurício Ribeiro da Silva (2020) que nesse momento Leal de Souza já era um “reputado
jornalista” e conhecedor do espiritismo. Sua relação com o espiritismo pode justificar o
78
fato de seu inquérito não colocar em julgamento as manifestações espíritas, apenas
sugerindo uma desconfiança sutil em alguns casos.
Foi durante este trabalho que conheceu a Tenda Nossa Senhora da Piedade e Zélio
Fernandino de Moares. A primeira menção à Tenda de Zélio se deu no artigo “Da Cruzada
Espírita ao abrigo Thereza de Jesus”, onde relata uma visita feita a cada uma destas casas
espíritas. Foi em um dos discursos que acompanhou no abrigo Thereza de Jesus que Leal
de Souza ouviu falar das fantásticas manifestações espíritas da Tenda Nossa Senhora da
Piedade:
A alma, considerada a força que dá vida à matéria, e o espírito,
apresentado como a parte imortal do indivíduo humano, foram o
assunto da dissertação inicial fundamentada sobre o Velho Testamento,
com invocação de textos do Evangelho e citações de santos doutores da
Igreja.
A segunda parte do discurso do sr Brigagão foi consagrada ao estudo
dos anjos, classificado por ele conforme Santo Agostinho e outros
sacros escritores católicos. Estes e, sobretudo, o Velho Testamento,
forneceram os elementos em que se apoiou o orador para tratar, com
esplêndida clareza, do fetichismo, do feitiço e da magia.
Afirmou o sr. Brigagão serem realmente espíritas os fenômenos
provocados nas sessões da magia negra.
- Há – explicou – espíritos maus que procuram satisfazer a sua
perversidade, sendo, porém, combatidos por espíritos bons, mas
atrasados, que, nessa luta, apelam para os recursos que se utilizam os
adversários, opondo-lhes as mesmas armas.
Para melhor compreensão de suas palavras, ao encerrar a sua alocução,
contou o orador o seguinte:
- Há poucos dias, na vizinhança da cidade de Niterói, uma linda moça,
na flor da idade, cheia de sonhos azuis e ilusões douradas, adoeceu de
enfermidade misteriosa. Foram chamados bons médicos e a enferma
não melhorou. Antes, piorou. Novos doutores foram consultados,
porém, a donzela, agravando-se rapidamente o seu estado, foi julgada
sem salvação possível. Em desespero, seu pai, um comerciante
abastadíssimo, ouviu os conselhos de um amigo e solicitou os socorros
ao Centro Espírita Nossa Senhora da Piedade, onde se manifestam
espíritos de caboclos. Mas, acabara de pedir tais auxílios, quando
recebeu a notícia do desenlace fatal: sua filha falecera às cinco horas da
tarde. Voltou o pai em pranto para seu lar abalado. Veio um médico,
examinou a moça e lavrou o atestado de óbito. Lavou-se e vestiu-se o
corpo, que foi colocado, sob flores, na mesa mortuária, entre velas
bruxuleantes. Um sacerdote fez a encomendação. Às oito horas da
noite, ao iniciar a sua sessão, o Centro Espírita Nossa Senhora da
Piedade, não tendo sido avisado do falecimento, fez uma prece pela
saúde da moça já morta. Manifestando-se, o espírito do guia e protetor
do centro disse: “Um grave perigo ameaça a pessoa por quem orais.
Continuai as vossas preces com fervor e sem interrupção, até que eu
volte, pois vou sair para socorrê-la”. Os espíritas do Centro Espírita
79
Nossa Senhora da Piedade, orando com fervor, esperaram cerca de duas
horas e, ao termo delas, manifestando-se de novo, o espírito de seu guia
disse: “Está salva a moça”. Espíritos maus, convocados por motivo de
ordem pessoal, haviam envolvido a jovem em fluidos venenosos que a
estavam matando. Não se quebrara, porém, o fio que liga o espírito ao
corpo.
- Às oito horas da noite – terminou o narrador –, a moça continuava na
mesa funerária, com todos os sinais da morte. Às nove horas, uma
demonstração de vida animou-lhe a face e, percebendo-a, seu padrinho
preveniu seu pai. Retirada da câmara mortuária e reposta em seu leito,
a moça reabriu os olhos. Momentos após erguia-se curada,
completamente boa. Os espíritos dos caboclos, em combate travado no
Espaço, tinham vencido os espíritos maus...
É assim que se faz a propaganda doutrinária na Cruzada Espírita e no
Abrigo Thereza de Jesus. (SOUZA, L. 2012, p. 73-75)
O relato, além da exaltação do poder do espiritismo, representado pelo Centro
Nossa Senhora da Piedade que chega a ressuscitar mortos, revela um debate existente
entre os kardecistas neste momento sobre a manifestação de espíritos de caboclos e pretos
velhos. Leal de Souza retoma esse debate em seus artigos publicados no Diário de
Notícias em 1932, publicado no ano seguinte sob o nome O Espiritismo, a magia e as
Sete Linhas de Umbanda. A diferença entre este e o livro anterior está na identidade que
o autor assume. Se no primeiro ele faz um inquérito sobre as diversas formas de
espiritismo que coexistiam no Rio de Janeiro como alguém neutro, no segundo, ele aborda
o que chama de Linha Branca de Umbanda e Demanda como alguém que fala de dentro.
80
Figura 1 Capa do livro No Mundo dos Espíritos de Leal de Souza em 192515
É importante lembrar que Leal de Souza adentra terreno perigoso. Os discursos
religioso, científico, jurídico, médico e jornalístico tratam o espiritismo como risco à
saúde pública. É em resposta a esses discursos e no seu interior que se busca fundamentar
teoricamente uma legitimidade da Umbanda. Discursivamente, aponta Ortiz (1999), há
três formas legitimadoras: antiguidade da religião, o discurso científico, e o discurso
cultivado. É sobretudo em relação aos discursos científico e jornalístico que Leal de
Souza se insere, sem, entretanto, abandonar os demais.
Sua publicação não veio sem uma preparação prévia da redação do jornal. Havia
de se explicar que não escrevia para defender o espiritismo que se difundia no Brasil. O
objetivo era esclarecer o público e as autoridades sobre os cultos e práticas realizadas na
cidade do Rio de janeiro. A redação o apresenta como espírita e faz questão de ressaltar
sua serenidade, imparcialidade e espírito científico que garante ao seu trabalho a isenção
e a qualidade, mas sobretudo, que seus escritos não são uma ameaça à Igreja Católica.
O sr Leal de Souza, nos seus artigos sobre “O Espiritismo e as Sete
Linhas de Umbanda”, não vai fazer propaganda, mas elucidação,
mostrando-se as diferenciações do Espiritismo no Rio de Janeiro, as
causas e os efeitos que atribui às suas práticas, dizendo-nos o que é e
como se pratica a feitiçaria, tratando não só dos aspectos científicos,
como ainda da Linha de Santo, dos pais de mesa, do uso do defumador,
15
Disponível em: https://www.tendadeumbandaluzecaridade.com.br/2016/02/livro-no-mundo-dos-
espiritos-leal-de.html. Acesso em 20 set.2022.
81
da água, da cachaça, dos pontos, em suma, da magia negra e da magia
branca.
Esperamos que as autoridades incumbidas da fiscalização do
Espiritismo e muitas vezes desaparelhadas de recursos para diferenciar
o joio do trigo, e o povo, sempre ávido de sensações e conhecimentos,
compreendam, em sua elevação, os intuitos do Diário de Notícias
(DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 2019, p. 16-17).
Não bastasse o prólogo da redação do jornal, Leal de Souza começa por uma
explicação inicial. O espiritismo não se opõe à religião, mas a consolida, revigora a fé e
traz novas e positivas demonstrações da imortalidade da alma e da existência de Deus. As
religiões são apenas caminhos diferentes que levam ao mesmo ponto. Seria negar a Deus
os atributos da inteligência e da justiça admitir que fosse capaz de desprezar ou punir
porque não o amam do mesmo modo, orando com as mesmas palavras ou com os mesmos
ritos. Deus ama a todos e são os homens que escolhem a maneira mais propícia de cultuar
e servir a Divindade.
Além dos clérigos, Souza dedica-se também a acalmar os médicos. Aponta que os
perigos atribuídos ao espiritismo são a perturbação ou desequilíbrio nervoso, pelo receio
de ver fantasmas, e a loucura. Argumenta que o primeiro desaparece conforme se
familiariza com as sessões e com o trato com os desencarnados. A loucura, que não se
conhece nenhum caso causado pela frequência ao espiritismo, não pode ser confundida
como obsessão16 sob pena de se realizar uma internação injusta, visto que somente o
espiritismo pode curá-la. Mas, talvez, o argumento mais importante é que o espiritismo
não concorre economicamente com a medicina.
Entre os médiuns, os mais conhecidos e procurados são, naturalmente,
os curadores e os receitistas. A medicina os combate, e a justiça os
persegue. Sem examinar, nesses escritos, os direitos daquela e a razão
desta, direi apenas que a mediunidade curativa se exerce em nome da
caridade e não pode tê-la por objetivo negá-la aos médicos, tirando-
lhes, como concorrente gratuita, os recursos de subsistência.
Logicamente, dentro da doutrina, deveriam recorrer aos médiuns
curadores, em primeiro lugar, os pobres destituídos de meios para
remunerar o clínico profissional; depois, os enfermos julgados
incuráveis; e, por fim, os crentes cujo a fé exigisse o tratamento
espiritual. Sob esse critério, a caridade continuaria a ser feita, conforme
as necessidades reais dos doentes; não seria o médico atingido nos seus
privilégios, nem a ciência perderia o estímulo peculiar ao progresso
(Op. Cit. p. 35-36).
16
“Ação de uma entidade espiritual sobre o indivíduo carnado, visando prejudicá-lo.” (Souza, 2019:24)
82
Ao retomar o argumento do sr. Brigagão, orador do Abrigo Thereza de Jesus em
que ouviu falar pela primeira vez sobre a tenda de Zélio, Leal de Souza, em primeiro
lugar, busca demonstrar a veracidade dos feitiços, das macumbas, e da magia negra como
fenômenos do espiritismo. Baseado em nomes como Crawford que teria provado que o
corpo humano possui uma propriedade ou fluido que se exterioriza, e Coronel Rochas
que em Exteriorização da sensibilidade enumera experiência comprobatória daquela
propriedade, Leal de Souza dá credibilidade à feitiçaria17. Seria sobre essa propriedade
que geralmente o feiticeiro atua para afetar a personalidade de alguém. O feiticeiro
trabalharia com ou sem o auxílio de espíritos. Como, em geral, esses espíritos são
voluntários, o pensamento pode funcionar como um feitiço sem a necessidade de
conhecimento ou materialidade.
A macumba se distinguiria e se caracterizaria pelo uso de batuques, tambores e
alguns instrumentos da África. Reconhece que a música exerce positiva influência nos
trabalhos acelerando os fluidos. Relata que as reuniões não possuem limite de horário
indo até o alvorecer, são sempre dirigidas por espíritos de africanos ou caboclos que
podem punir os médiuns com rigor e se utilizam da magia. Tal qual o espiritismo que faz
experiência de comprovação das manifestações, as macumbas realizam teste para
asseverar a veracidade da incorporação. Queimam pólvora na mão para assegurar que não
há fingimento.
A magia negra, por sua vez, como a magia branca, se utiliza das forças da natureza.
E não são poucas as experiências que realizam para provar sua autenticidade. Trituram
com os dentes, sem se ferir, cacos de vidro; caminham sobre um estendal de fundos de
garrafas quebradas, demonstram, inclusive, a importância de não cruzar as pernas. Certa
ocasião, ao Exu pedir que uma senhora trançasse a perna, o vidro começou a cortar seus
pés. Teria provado também a importância dos pontos de magia (desenhos emblemáticos,
cabalísticos ou simbólicos). Em outra ocasião, Exu decapitou um gato e manteve a cabeça
junto ao ponto. Enquanto se manteve a cabeça no ponto, o gato continuou vivo e miando.
Mas a magia negra não atenta só contra indivíduos particulares. Ela é um mal
público que ameaça inclusive as instituições políticas.
17
Willian Jackson Crawford (1881-1921) e Eugène Auguste Albert de Rochas (1837-1914), autores
espíritas que buscam provar cientificamente os fenômenos espíritas, adeptos do chamado kardecismo
científico.
83
Durante a revolução de São Paulo, essas hordas do espaço travaram
pugnas furiosas, lançando-se umas contra as outras. As que se moveram
pelos paulistas esbarraram com as que foram postas em ação em favor
da ditadura, e esses choques invisíveis, nos planos em que nossos
sentidos não devassam, decerto ultrapassam, em ímpeto, as arremetidas
do plano material. Sobre o enraivecido desentendimento das legiões
ditas negras, pairavam as falanges da Linha Branca de Umbanda e os
espíritos bons e superiores de todos os núcleos de nosso ciclo,
levantando muralhas fluídicas de defesa para que os governantes de São
Paulo e do Rio não fossem atingidos pela perturbação e, na plenitude
de suas faculdades, medindo a extensão da desgraça, compreendessem
a necessidade de negociar e concluir a paz (SOUZA, L. 2019, p. 79).
A aterradora realidade da magia negra, que Leal de Souza tenta provar, é a
justificativa para o uso da magia. O argumento de que existem espíritos atrasados, porém
bons, que combatem os espíritos maus com “as mesmas armas”, usado pelo palestrante
citado no livro de 1925, é recuperado. O caboclo, espírito “atrasado”, tem a sua
importância fundamentada no combate à magia negra. Mas o modo que ele faz isso expõe
uma contradição.
Exu, “legião de espíritos adestrados na prática do mal e capazes de fazer o bem
por motivo de ordem subalterna” (SOUZA, L. 2019, p. 207) é o elemento das “Linhas
Negras”, que se opõe à “Linha Branca de Umbanda e Demanda”. O despacho “é um
presente ou uma paga para alcançar um favor, muitas vezes consistente no aniquilamento
de uma pessoa.” (SOUZA, L. 2019, p. 95). Porém, para combatê-los é preciso lançar mão
dos mesmos recursos. Os espíritos da “Linha de Santo”18, caboclos ou negros, são
egressos da “Linha Negra” e têm duas missões: preparar os “despachos” para o Povo da
Encruzilhada e convencer amigavelmente seus antigos companheiros ao fim das
hostilidades.
A Linha Branca de Umbanda anula esses “despachos” por processos
correlatos. Quando se trata da atuação individual do feiticeiro, desvia o
seu pensamento, deixando-os perder-se no espaço para dar-lhe a
impressão de sua impotência e evitar o “choque de retorno”, que lhe
demonstraria que o seu esforço foi contrariado, estimulando-o a
18
Leal de Souza organiza a Umbanda em sete “linhas brancas”. Cada linha corresponde a um conjunto de
espíritos que representam “perfis energéticos” diferentes. São elas as linhas de Oxalá, Ogum, Oxóssi,
Xangô, Iansã, Iemanjá e a Linha de Santo ou Linha das Almas. A literatura Leal de Souza parece ter sido
inaugurador do que Renato Ortiz chama de “Teoria das Linhas”, a tendência a afirmar que a Umbanda tem
sete linhas. Esta divisão, porém, não encontra consenso, variando as linhas de acordo com o autor ou o
terreiro. Sobre as sete linhas Brancas em Leal de Souza, consultar Souza (2019:99-102); sobre a origem da
teoria das linhas na década de 1930, consultar Ortiz (1999: 78-86).
84
recomeçá-lo. Propicia as entidades em atividade prejudicial, ofertando-
lhe um “despacho” igual ao que as moveu ao malefício, a fim de que
elas se afastem do enfeitiçado, e frequentemente faz outros “despachos”
aos espíritos das falanges brancas, mais afins da pessoa com quem se
defende, com o objetivo, este segundo despacho, de atraí-las, por meio
de uma concentração prolongada, para que auxiliem a restauração
mental e psíquica de seu protegido. Volatiliza as propriedades de corpos
suscetíveis de neutralizar os que foram empregados pela magia.
Conjuga todos esses recursos e, quando as entidades propiciadas
recusam os presentes e insistem na perseguição, submete-as com
energia (SOUZA, L. 2019, p. 96).
Além dos “despachos” que tanto a magia negra quanto a branca (praticada por
Leal) fazem, há outras semelhanças. Como na magia negra, é proibido cruzar as pernas e
os braços; usa-se guias, cachaça, fumo, cânticos, pontos riscados, ponteiro, pólvora e
pemba. Como na macumba, manifestam-se espíritos de negros e caboclos. Mas apesar de
todas essas semelhanças, eles se pretendem algo distinto da “magia negra” e da macumba.
A contradição desta realidade é refletida nos argumentos que aparecem no texto. O autor
não consegue distinguir as práticas de uns e de outros. Sempre que afirma que algo seja
feito pela “magia negra” ou pela macumba, acaba reconhecendo que a Umbanda também
o faz. O exemplo do despacho é elucidador. Afirma que os despachos feitos na “linha
negra” acontecem nas encruzilhadas e nos cemitérios. Os despachos para as “linhas
brancas” são feitos nas matas (Ogum e Oxóssi), nas pedreiras (Xangô), nas praias ou
oceano (Iemanjá), nos jardins e prados floridos (Cosme e Damião). Mas para combater o
mal pode ser necessário que a Umbanda faça despachos no cemitério e na encruzilhada.
Esta ambiguidade atravessa todo o texto. Sempre que tenta designar uma prática como
exclusiva da magia negra ou da macumba acaba por admitir que ela também pode
acontecer na Umbanda.
85
Figura 2 Recorte da primeira publicação da série indiciada por Leal de Souza no Diário de Notícias em 8 de
novembro de 193219
Estas semelhanças são inclusive, relatadas por Leal de Souza em 1925, quando
enfim, visita a Tenda Nossa Senhora da Piedade. A sessão da Tenda se divide em duas
partes. A primeira, dirigida pelo dr. José Meirelles, não difere em nada de outras sessões
espiritas acompanhadas por Leal. Mesa, espíritos obsessores, doutrinação. A segunda
parte se refere a um trabalho especial em que poucas pessoas participaram, dando um tom
secreto ao mesmo. Neste trabalho, Leal vê semelhança com as macumbas nos “pontos”
em que se canta.
De pronto abriu o presidente “novo ponto” cantando o coro: “Santo
Antônio é Santo Maior”. Erguendo-se a pouco e pouco do chão a moça
clara ocupou a cadeira, e, olhos fechados, encarando Zaira acusou:
- Mentiste! Nunca praticaste a caridade! Não te acompanho mais! Tu
me arrastaste!
Falando aos protetores, pediu o sr Zélio que levassem aqueles irmãos
“para o raio de luz” e o cântico entoado pelo coro reproduzia aos nossos
ouvidos, uma canção de macumba. (CUMINO, 2010, p. 342)20
A dificuldade de distinguir as práticas tinha reflexos sociais. A polícia reprimia a
ambos. Tanto Zélio de Moraes quanto Leal de Souza foram alvos de repressão policial.
No caso do primeiro, o relato da mãe Zilméia, filha de Zélio, é mais uma oportunidade
de exaltar as qualidades mediúnicas do pai. Conta que o delegado de Neves, sr. Paulo
Pinto, que vinha fechando tendas de Umbanda, chegou à Tenda Nossa Senhora da Piedade
quando o Pai Antônio estava em terra. Informado de sua chegada, o preto-velho mandou
19
Disponível em: https://www.institutomataverde.org.br/ciclos-lunares-e-os-sete-reinos-sagrados/. Acesso
em 20 set.2022.
20
Curiosamente, em 1952, o Jornal da Umbanda acusa J. B. de Carvalho, o “maior macumbeiro do rádio”
de cantar pontos de Umbanda.
86
que deixasse entrar. Dois passos para dentro e o delegado caiu estirado no chão. Depois
de um tempo acordou, foi conversar com Pai Antônio e se tornou amigo de Zélio e
frequentador da casa (CUMINO, 2010, p. 318).
No caso de Leal de Souza, em doze de dezembro de 1932 é noticiado que a polícia
varejara a Tenda Nossa Senhora da Conceição, presidida por Leal, que, de acordo com a
reportagem, escondia a prática da “macumba” seguindo as regras rituais de plena nudez.
O caso é relatado pelo próprio Leal em sua coluna no jornal. Segundo ele, a diligência foi
realizada pelo comissário Fernandes que no mesmo dia, ao ter constatado o erro, restituiu
a Tenda a seus dirigentes e à sua regularidade legal. Souza salienta a cortesia e o
cavalheirismo dos soldados da PM, do escrivão e de outros funcionários. Não os considera
culpados nem lhes espera nenhum mal. Justifica a presença de alguns itens de “macumba”
e “fetichismo” (punhais, fumo, parati, cerveja ou vinho e imagens) e coloca como culpado
o diretor do O Globo, Roberto Marinho. Revela sua boa relação com o fundador do
referido jornal, Irineu Marinho, que o encaminhou ao Espiritismo, quando era diretor do
A Noite. Trabalho que resultou em No mundo dos espíritos (1925). A segunda delegacia
auxiliar declarou sua situação legítima e legal. Restituiu os objetos retirados sem fazer
nenhuma execução (SOUZA, L. 2019, p. 137-142).
Justifica-se assim, a preocupação de Leal de Souza de se distinguir da “magia
negra” e das “macumbas”. O risco da repressão policial parece ser um dos elementos
motivadores de suas publicações. Mas o umbandista não se coloca contrário às ações de
coibição. Seu intuito não é combater a ação das autoridades, mas auxiliá-las, trazendo
esclarecimento para que elas possam “separar o joio do trigo” (op. Cit. p. 16-17). A ação
policial é fundamental no combate ao falso e ao baixo espiritismo que sob as letras de
Leal, são sinônimos. São os exploradores, mistificadores e charlatões. Ao atuar sobre
estes grupos, a polícia cumpre o seu dever com a sociedade.
A polícia, parece-nos, para a fiscalização do espiritismo visando à
repressão dos indivíduos capazes do mal, deveria adotar um critério
aceito geralmente pelos espiritas de todos os ramos, e esse só pode ser
o da gratuidade dos socorros mediúnicos, mantida, embora, a proibição
do receituário em nome dos privilégios doutorais.
Sugerimos, nestas linhas, à boa vontade das autoridades, princípios para
regulamentar a necessária fiscalização de acordo com aquele critério.
Assim, os presidentes ou diretores dos centros ou sessões espíritas
seriam obrigados, sempre que as autoridades o exigissem, a provar os
seus recursos e meios de vida. Igualmente seriam obrigados, nas
87
mesmas condições, a demonstrar os recursos com que se mantêm os
centros. Nenhum presidente de centro ou o próprio centro poderiam
receber, como não recebem, dinheiro ou presentes de pessoas que
recorressem à sua caridade espiritual, estendendo-se essa proibição aos
médiuns e auxiliares de cada sociedade. A violação dessas regras
obrigaria ao fechamento automático da associação, com o processo dos
culpados no caso da exploração.
Facilitar-se-ia, desse modo, a ação fiscal da política (sic). Após uma
denúncia, verificada a legalidade da situação do centro, na hipótese
afirmativa, a autoridade, conforme os elementos da denúncia, mandaria
abrir inquérito ou arquivar a queixa, fechando a sociedade e
processando os seus dirigentes, segundo o resultado de suas
sindicâncias.
Acreditamos que, reprimindo a exploração, a polícia, em pouco tempo,
reduzirá a um mínimo insignificante os malfeitores do Espiritismo, pois
ninguém trabalha para o mal sem visar lucros materiais. Só o bem pode
inspirar dedicação e sacrifícios à claridade da fé (Op. Cit. p. 224-225).
O mal, com exceção da figura de Exu, não tem rosto. Não há uma descrição de
quem é potencialmente um explorador. As diferentes formas de manifestação espíritas
não seguem um caráter biológico, não há distinção racial ou de gênero, a princípio. O
debate racial migra do social para o espiritual. Ele estará presente no debate sobre a
legitimidade das manifestações de espíritos de caboclos e pretos-velhos, que será
abordado mais à frente. Seu principal critério para “separar o joio do trigo” é a renda. Vê-
se que o princípio da caridade desinteressada e a condenação às cobranças e aos
“presentes” expressam uma posição de classe. A renda é a marca da idoneidade. E a
impossibilidade de comprovar renda é sinônimo de culpa. Dessa maneira, a repressão
policial é legitimada contra exploradores, que podem ser identificados por sua classe
social. Ainda que se possa entender que a condenação à cobrança por serviços espirituais
seja uma resposta a antigas acusações de charlatanismo aos espíritas kardecistas, a
vinculação do cumprimento deste princípio à renda aponta para uma classificação de
mundo e dos indivíduos a partir uma divisão em classes.
Não parece nesse caso, como Brown (1985) coloca, que Leal de Souza tenha
renunciado à sua situação de classe para defender elementos não-europeus oprimidos.
Pelo contrário, sua posição de classe média burguesa orienta a solução para os seus
problemas com a polícia. A aceitação dos espíritos de caboclos e pretos-velhos não se
pode confundir com a aceitação de indígenas e negros. Não se pode esquecer, que mesmo
sendo capazes de ressuscitar mortos, caboclos e pretos-velhos não perderam seu
qualificativo de “espíritos atrasados”.
88
Pode-se depreender do que foi exposto que a Umbanda, a magia negra e a
macumba são pensadas como parte do espiritismo. Este se apresenta dividido em várias
segmentações. No Rio de janeiro, manifestam-se algumas delas. A primeira seria a
tradição dos velhos tempos egípcios, lojas teosóficas e modelos indianos. A segunda seria
o espiritismo científico, menos praticado. Depois, o Kardecismo que varia em processos
e práticas chegando alguns a serem contaminados pela Linha Branca de Umbanda;
centros de transição que facilitam a passagem para o espiritismo dos egressos de outra
religião; o “falso espiritismo”, “baixo espiritismo”, macumba, feitiçaria (“magia negra” é
uma de suas variantes).
Leal de Souza afirma que o espiritismo de linha possui pelo menos 99 subdivisões
e linhas. Duas delas seriam a Linha Branca de Umbanda e as Linhas de cor ou linhas
negras que se opõem à linha branca. Leal de Souza justifica esta diversidade. A
organização das linhas no espaço corresponde a determinadas zonas na terra por
determinados ciclos de tempo. Sua constituição segue as variações de cultura moral e
intelectual aproveitando as entidades que mais se identificam com as populações. Por isso
o Espiritismo de Linha se reveste de acordo com os aspectos e características regionais.
Na Linha Branca de Umbanda e Demanda manifestam-se espíritos de várias origens
diferentes cada um apresentando suas características raciais, de mentalidade e costumes
de seu povo.
Consta-se, finalmente, a Linha Branca de Umbanda, com as suas sete
seções, tornada poderosa, no sentido numérico, pelas necessidades de
defesa da gente ameaçada pelos excessos das linhas de cor oposta à de
sua designação.
Em todos os agrupamentos espíritas do Rio de Janeiro, excetuados
parcialmente os das linhas ditas negras, a finalidade é a mesma: o
aperfeiçoamento da individualidade humana pela prática das leis
divinas, mediante a cultura dos sentimentos superiores e o domínio do
instinto animal, expresso tais esforços em atos de piedosa solidariedade
fraternal (SOUZA, L. 2019, p. 28).
Apesar de reconhecê-la como “verdadeira instituição religiosa”, a existência da
Umbanda dentro do universo espírita está estritamente relacionada ao combate à magia
negra. Pensada dentro desta função, no conjunto de artigos publicados em 1932 por Leal
de Souza, não há reflexões sobre uma possível origem. Ainda mais, a exaltação das
qualidades do caboclo não se estende à figura de Zélio. Este é citado nominalmente, sem
89
nenhum elogio, apenas duas vezes. Em outras circunstâncias ele é tratado apenas como o
“médium do caboclo”. E apesar da exaltação ao Caboclo das Sete Encruzilhadas, não lhe
atribui o lugar de fundador nem de superioridade diante de outros centros da Linha Branca
de Umbanda.
Para mostrar, na esfera da realidade terrena, uma organização da Linha
Branca de Umbanda e Demanda, citei a que melhor conheço, porém
essa citação de modo algum representa a primazia, quer sob o aspecto
da prioridade, quer sob o da superioridade.
Outras, sem dúvida, existem em nosso meio, fundadas e dirigidas pelos
grandes missionários do espaço, e, dentre os numerosos centros que
funcionam isoladamente, muitos são ótimos, preenchendo, de modo
completo, as finalidades da linha (SOUZA, L. 2019, p. 145).
É curioso perceber que apesar de ser exaltado como primeiro autor umbandista e
evidência da importância de Zélio Fernandino, Leal de Souza não atribui primazia ao
Caboclo das Sete Encruzilhadas nem exalta a figura de Zélio Fernandino como fundador
ou liderança relevante, mesmo sendo um dirigente de uma das tendas fundadas pelo
caboclo (e não por Zélio). Leal de Souza, apesar de assumir ser praticante da Umbanda,
não requer para si a identidade de umbandista, nem advoga para ela uma identidade
própria. Leal não se entende senão como espírita, e não vê na Umbanda, nada além de
espiritismo.
Percebe-se assim que a compreensão da Umbanda enquanto religião, mesmo que
possa ser aceita como verdadeira, não é o aspecto mais importante para este autor. O que
ele busca destacar é a sua validade enquanto fenômeno e doutrina espírita, ou mais
especificamente, enquanto doutrina kardecista. Chega mesmo, em alguns momentos, a
sustentar que a Umbanda no Rio de Janeiro é uma forma de espiritismo mais importante,
inclusive, que o próprio kardecismo, dada sua função de combate à magia negra.
2.3 O espiritismo africano ou afro-espiritismo
Mesmo tomando mais uma dimensão terapêutica que científica o espiritismo
kardecista brasileiro se demarca das práticas mágico-religiosas negras e do “baixo
espiritismo”. Procura se desvencilhar de toda conotação proletária, miserável ou negra
que poderia assimilá-lo a esse gênero de práticas. Os espíritos das macumbas, pretos
90
velhos e caboclos, são rejeitados. Pois para eles a cultura do espírito corresponde à sua
cultura material. Dessa maneira a rejeição da entidade espiritual se traduz na sua rejeição
de cor e classe social. Há assim uma oposição entre kardecismo e práticas afro-brasileiras
(ORTIZ, 1999).
O movimento de parte dos kardecistas que pretendem incorporar estes espíritos
“renegados” à doutrina, dá origem à intelligentsia umbandista que romperá com esta
oposição. O trabalho de síntese (ORTIZ, 1999) destes intelectuais é o esforço de
legitimação dos espíritos de caboclos e pretos-velhos e dos rituais das religiões afro-
brasileiras a partir dos valores e conceitos próprios do kardecismo. É significativo que
isso aconteça no mesmo período em que a intelectualidade brasileira busca em sua raiz
afro-indígena o seu “caráter nacional”.
Em O livro dos espíritos (1857), Allan Kardec afirma que a doutrina espírita ou o
Espiritismo “tem por princípio a relação do mundo material com os Espíritos ou seres do
mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo, serão os espiritas, ou se quiserem, os
espiritistas.” (KARDEC, 1994, p. 13). A partir desta concepção, espíritas brasileiros,
como Leal de Souza, compreendem as manifestações de caboclos, pretos-velhos e exus
como espiritismo e as leem a partir de princípios, valores e conceitos kardecistas. A
grande questão que se coloca entre eles é qual o valor destas diferentes modalidades de
espiritismo.
Em outubro de 1926, a Federação Espírita Brasileira, por meio de seu Conselho
Federativo, aprova um parecer sobre as manifestações de espíritos de caboclos e negros.
Reconhece suas manifestações como autenticamente espíritas, mas não a reconhece como
parte da doutrina.
Em regra, ao falar de manifestações tais, a primeira ideia que ocorre é
a de fetiches e batuques. Ora, isso não entra no quadro doutrinário,
porque é necromancia, superstição, bruxaria (em sentido genérico),
baixo espiritismo, porque feito com espíritos, mas não doutrina espírita.
Porém, a verdade é que sabemos de grupos onde se manifestam pretos
e caboclos que – sem embargo da forma pitoresca ou bizarra, suscitam
a fé, produzem curas espirituais e físicas, concorrem, finalmente, para
o levantamento no nível moral coletivo, que é o escopo primacial da
doutrina. Assim, pois, se o critério evangélico é o seguro estalão pelo
qual devemos guiar-nos, só é passível de suspeição árvore que não
produz bons frutos, porque é pelo fruto que se conhece a árvore.
A federação, em tese, não infirma a manifestação de “caboclos” nem
“pretos”, conquanto não as adote como norma mais eficiente de
91
trabalho, achando que do mesmo modo devem proceder as sociedades
adesas, uma vez que, como acima fica dito, tais práticas são, não há
negar, Espiritismo, porém não são doutrina espírita. Acata, entretanto,
todos os bons frutos, como tais reconhecidos (FEDERAÇÃO
ESPÍRITA BRASILEIRA apud SOUZA, L. 2019, p. 196-197).
Neste ponto, Leal de Souza é mais radical. Não só defende que é espiritismo, como
também se enquadra em sua doutrina. Argumenta que se a doutrina admite e legitima
essas manifestações é porque se enquadra em seus princípios. É, assim, um grande
defensor das manifestações de caboclos e pretos-velhos, bem como da modalidade da
Linha Branca de Umbanda. Ao mesmo tempo é um forte detrator do que chama de magia
negra e dos exus. Estes aparecem associados à vilania, à luxuria, à cobiça e são associados
à causa de muitos dos males das vidas individual e social.
Mas durante a década de 1930 e início de 1940 esta não é a única maneira de se
compreender estas manifestações entre os espíritas. De acordo com Cumino (2010), em
Umbanda, João de Freitas descreve visitas a oito tendas. Já na década de 1940, em Xangô
Djacutá, colocaria a Umbanda como religião de fato. Partiria de um paradigma afro-
indígena para explicá-la, dando foco ao culto de Xangô e faria algumas considerações
sobre a entidade Exu. Porém, na minha leitura, em Umbanda ele não trata os terreiros que
visita como tendas. A rigor, a maioria delas não tem um nome oficial, mas são
identificadas a partir do nome de suas lideranças.
Freitas é um autor umbandista que merece maior atenção. Seu livro Umbanda
chegou a pelo menos 7 edições, o que indica ter alcançado sucesso editorial na época.
Esta obra tem a importância, particularmente neste trabalho, de ser uma contraposição ao
discurso de Leal de Souza, dentro do campo espírita, e de trazer apontamentos sobre como
a religião era vista na época. O seu conceito vai muito além da Linha Branca e tem um
sentido bastante diferente do de religião brasileira defendido atualmente.
O politeísmo da raça negra, escasso de documentação, tem sido nestes
últimos tempos objeto de curiosas investigações. Em tôrno da mitologia
africana, a fim de servir de ponto iniciático para a completa elucidação
dos fatos, agrupam-se etnólogos famosos e de vastíssima erudição.
Tecem no éter toda sôrte de conjecturas e, infelizmente, êsse conjunto
de divindades que forma a grande mística africana denominada
Umbanda continua a sofrer dos cepticos as aleivosias tremendas e as
mais sórdidas campanhas sacrílegas (FREITAS, 1948, p. 11, grifo
meu).
92
Dentro de sua interpretação vê-se que a Umbanda está inegavelmente ligada ao
africano e que tem um sentido mais amplo do que o de uma religião específica. É definida
como uma “mística africana” relacionada ao conjunto das divindades pertencentes ao
politeísmo da “raça negra”. Uma das maneiras de se referir a ela é como “seita africana”.
Portanto, ele se opõe ao discurso contemporâneo ao situá-la como africana
desconsiderando uma possível brasilidade.
A Leal de Souza se opõe em muitos aspectos. Em primeiro lugar no estilo. Leal é
um autor formal, imbuído do “espírito científico” pretensamente neutro e objetivo, com
forte posicionamento, apresentando outras falas, apenas para repeli-las ou para corroborar
sua própria opinião. Suas publicações no Diário de Notícias são as de uma autoridade no
espiritismo. João de Freitas, por sua vez, é um cronista que não se despreocupa com o
estilo e a beleza da prosa. Alguém que constrói em seus textos sua própria imagem
fumando e não deixa jamais de expressar sua admiração a beleza das mulheres que
encontra. Não só descreve o que vê, mas elabora pequenas tramas que passam desde as
dificuldades de acesso aos terreiros às mais triviais conversas que poderiam surgir em
qualquer viagem.
Ser analítico e ser artista são condições, sem as quais, as manifestações
criadoras do realismo tornam um repórter complexo. É preciso sentir a
arte, e, sobretudo, saber transportar a filosofia, coloridas as vezes de
poesia, sem excessos, de modo a não comprometer a estética
(FREITAS, 1948).
Para além do estilo, diferencia-se no conceito de Umbanda. Os instrumentos
africanos, o autoritarismo e a violência das entidades e líderes, as várias horas de culto
noite adentro, Exu. Tudo o que para Leal de Souza é macumba ou magia negra, para João
de Freitas é Umbanda. E talvez a mais importante diferença é que ele não assume um
discurso maniqueísta. A importância da religião em sua apreciação não está fundada em
uma luta entre o bem e o mal. Já em citação anterior, associando a seita ao negro e à
África, propõe como seu objetivo “elucidar os fatos” diante das “aleivosias tremendas e
as mais sórdidas campanhas sacrílegas.” Ao descrever uma gira com “sapateados
histéricos” numa aglomeração de homens e mulheres em delírios pelo “som dos
tabaques”, explica:
93
Não era uma festa pagã com as bacantes exultando-se de sensualidade
e se deleitando em perfumes e bebidas afrodisíacas; não era uma cópia
desses banquetes pútridos e asquerosos, que ainda existem e relembram
Sodoma e Gomorra, não eram agrupamento de gente ávida de sensações
libertinas; eram, porém, criaturas que sonharam com a felicidade
humana e que perceberam que viviam um mundo de civilização
enganadora e artificial, destruidora e falaz.
Pelo menos naqueles instantes venturosos, a melancolia e a tristeza
mórbida que invade dois terços da humanidade, na hora que passa,
recebiam do céu o perfume balsâmico da fé, da humildade e da
renúncia.
As horas se escoaram e a fadiga não encontrou guarida naquela gente.
A amargura que corroía muitos corações se transformara em
resignação, piedade e esperança. Parecia que, ao romper da aurora ao
som dos tabaques e dos ritmos daqueles pontos, uma bandeira branca
muito alva, desfraldada no topo de u’a montanha, entre o viço de uma
vegetação, anunciaria a paz entre os homens... (FREITAS, 1948, p.
131).
A gira de Umbanda, ou a macumba, como Leal de Souza gostaria de chamar, não
é o resultado de um desvio moral e sexual. É um momento de renúncia de um mundo
enganador e de um encontro do homem com a paz em um verdadeiro êxtase divino. Ela
não é um recurso necessário para o combate à magia negra. Ela é em sua própria prática
a expressão da fé, humildade e renúncia.
Cabe ainda ressaltar o fato de Freitas nunca deixar de abordar a Umbanda como
sendo praticada em sua maioria por negros e operários. Demonstra mesmo surpresa,
quando nelas não encontra “nenhum elemento negro”. Em Leal de Souza, sobretudo, nos
seus escritos como umbandista esta questão não é abordada. Mas o livro Umbanda, como
exposto, não coloca apenas as posições pessoais de Freitas. Ele traz diálogos com
diferentes personalidades que expressam suas opiniões quanto ao tema, sejam intelectuais
ou não. E aí está o que faz João de Freitas ser merecedor de estudos mais aprofundados.
Ele descortina uma cultura umbandista carioca de fins da década de 1930. Não só dialoga
com a literatura sobre Umbanda da época, chegando a citar passagens de Leal de Souza,
como cita a repercussão da música de terreiro nas rádios e traz falas de diversos
personagens do cenário afro-religioso da ocasião.
94
Figura 3 Quinta edição do livro Umbanda de João de Freitas21
É em um café na Praça da Bandeira que Freitas encontra seu primeiro interlocutor,
Heraldo Menezes. Imediato em navios mercantes, médium e palestrante em centros
espíritas, é um escritor profícuo. Na edição de 1948 do livro de Freitas, é apresentada a
Coleção Afro-Brasileira de Heraldo de Menezes, com os livros publicados: Iara: Deusa
das Águas, Aimoré: Deus da Caça, Urubatão: Deus da Guerra e outros livros no prelo e
em preparo com o mesmo modelo de título. Em O Semanário é colocado como autor de
Caboclos de Umbanda (1950)22 e Cumino (2010) atribui a sua autoria a Umbanda e
Ocultismo (1952). Porém ao abordar o livro de Freitas, Cumino (2010) não faz menção
ao Heraldo e muito menos o relaciona com o livro de 1952. Segundo Alexandre Cumino,
nesta última obra o autor busca nacionalizar a Umbanda. Posição muito diferente do
Heraldo que fala no livro de Freitas.
Em suma: a “Umbanda” originária do africano, sofreu como continua a
sofrer alterações de tal forma que os próprios “Babalaôs” são unânimes
em afirmar. A grande afluência do elemento branco na “Umbanda”, em
virtude de sua cultura cristã, na maioria católica, resultou na fusão das
cerimônias religiosas, a tal ponto que se não distingue, hoje, um altar
de um “estádio”. Quem entra num “terreiro” e pretende saudar o
“Congá” tem a impressão perfeita, dado o número de imagens, de um
ambiente católico. As próprias cerimônias e atos litúrgicos, quando se
revestem de pompas, predominam os hábitos católicos. Eis porque foi
criada a “Umbanda branca” que outra coisa não é senão uma nova seita
genuinamente brasileira. Aliás, a genuína “Umbanda”, estritamente
dentro do ritual africano, é impraticável entre nós porque não se
coaduna com nossos foros de civilização. Centros e Tendas Espíritas,
na maioria, observados por mim, abrem os trabalhos sob preces
21
Disponível em:https://www.facebook.com/colegiopenabranca/posts/3245756088869152/. Acesso em 20
set. 2022.
22
29/05-05/06/1985 in “O Orixá Ogum” de Nelson Mesquita Cavalcanti, pág. 15
http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=149322&pagfis=1744&url=http://memo
ria.bn.br/docreader#. Acessado em 24/07/2022.
95
kardecistas, orações católicas e doutrinam entidades baseados em
filosofias orientais!... (FREITAS, 1948, p. 19).
Menezes, portanto, faz uma diferenciação entre a “genuína Umbanda” e a
“Umbanda branca”. A primeira é africana. A segunda é uma criação brasileira. Neste
trecho ele aborda diretamente a questão do branqueamento. A influência do elemento
branco, notadamente, do catolicismo, do kardecismo e das filosofias orientais que vão
afluir justamente na “Umbanda branca”, essa sim, o resultado de um processo de
sincretismo. Mas se a Umbanda praticada no Brasil não é a “genuína”, isso não quer dizer
que seja um demérito. Pois se não o é, é porque o nível de civilização mais elevado da
sociedade brasileira não o permite.
Corrobora sua posição com uma referência literária e suas experiências de viagem
pela África. Baseado no livro Folktales of Angola de 1894, afirma que Umbanda é uma
palavra que deriva de “Krimbanda”. E designa:
1.º: Faculdade, ciência, arte, ofício, negócios. – a) ouvinte que receita
com naturalidade. – b) de divindade desconhecida que se consulta como
uma sombra de um morto, de gênio, - que não é espírito, nem humano,
nem divino” (op. Cit. p. 20).
Suas viagens pela África sustentam sua opinião da extraordinária diferença entre
os ritos africanos e brasileiros. Entre os lugares que diz ver a Umbanda cita Dakar no
Senegal, Congo Belga, Angola, Lourenço Marques (atual Maputo, Moçambique) e
Colônia do Cabo. Os cultos praticados pelas “tribos semicivilizadas” em todos esses
diferentes pontos da África ao serem denominados Umbanda sugerem um uso bastante
genérico do termo referindo-se a todo ou quase todo rito praticado por africanos.
Nem todos os entrevistados de João de Freitas parecem focar no aspecto africano.
Porém, todos parecem ver a Umbanda como espiritismo. Em Vila Isabel, conheceu o
Centro Espírita São Sebastião a convite de seu presidente, sr. Péricles. Revela que por ter
recebido boas credenciais e nesta ocasião estar sendo travada uma forte polêmica na rádio
e na imprensa em torno do espiritismo, por um médico atacar violentamente a doutrina,
resolveu conhecer o centro. Nele ouve o presidente, que se apresenta como nascido e
criado na Umbanda, argumentar que ela é uma “seita que através de séculos e gerações
vem prestando relevantes benefícios à humanidade.” Lutar contra o espiritismo é
enfrentar “setenta falanges, composta de povos da Índia, mongóis, chineses, egípcios,
96
árabes etc.” (op. Cit. p. 47). Vê-se aqui um orientalismo característico das casas
organizadoras no Primeiro Congresso Brasileiro de Umbanda, como se analisará em
capítulo subsequente. Ainda na mesma tenda, conversa com uma senhora da assistência
e questiona-a sobre os rituais de Umbanda.
- Aceito e louvo-os. Condenar, porque? Eu tenho o meu ponto de vista
firmado e, como professora catedrática, acho que não se deve instruir
um cérebro em formação ministrando conhecimentos superiores. Tem
que ser gradativo, ao sabor da evolução mental do aluno. A luz tem que
jorrar em jatos contínuos, porém, de modo a não lhe ofuscar as
pálpebras.
- Isso equivale a julgar a umbanda como um jardim de infância...
- É isto mesmo! Não vai aí sentido pejorativo. É de catequese em
catequese que os espíritos se vão esclarecendo e os médiuns, por seu
turno, se desenvolvendo. E é nisto que se resume a verdadeira caridade
(op. Cit. p. 55-56).
A descrição do centro realizada por Freitas o aproxima em muito da Linha Branca
exposta por Leal de Souza. A adoção da teoria das sete linhas e as práticas kardecistas
como as palestras e a não citação do uso de atabaques a colocam neste lugar, além do
discurso evolucionista exposto pela assistência entrevistada que aloca a Umbanda em um
dos graus de evolução espiritismo. No texto de João de Freitas, parece ser mesmo o rito
umbandista a grande questão entre os espíritas. Na Guanabara, onde se transcreveu sua
análise sobre os ritos em que homens e mulheres dançam ao som dos atabaques noite
adentro, Freitas registra outro posicionamento sobre o tema.
Não concebo Umbanda sem ritual! Sou francamente do som dos
atabaques, do defumador, e dos pontos cantados. Sei que existe um
número apreciável de divergentes, mas Umbanda sem ritual deixa de
ser Umbanda. O espiritismo codificado por Kardec não faz referência a
essa religião africana que no fundo é cem por cento espiritismo. O que
a faz divergir é apenas o ritual do qual sou apologista. Abolindo-o é
decretar a falência dessa grande seita. Todavia não endosso
fanfarronices de imbecis que inventam cerimônias que não condizem
com os seus atos litúrgicos (op. Cit. p. 119).
A fala acima demonstra bem o posicionamento de João de Freitas e de outros
espíritas. A Umbanda é um tipo de espiritismo africano. É espírita porque é a
manifestação de espíritos e está de acordo com as leis espirituais expostas por Allan
Kardec, e é africano porque é feito através de ritos praticados na África. Outro autor
97
espírita que relaciona a Umbanda ao africano é Jacy Rêgo Barros. Escritor e palestrante,
ministra um curso no Departamento de Cultura da Tenda Espírita Jorge e o publica em
1939, sob o título Senzala e Macumba. Outro autor de informações escassas, encara
frontalmente o problema racial no espiritismo. Depois de fazer uma observação geral
sobre a questão da formação racial brasileira reflete sobre o que ele chama de afro-
espiritismos e afro-catolicismo. Ao longo de seu trabalho, a Umbanda se apresenta em
diferentes sentidos.
Um pouco diversas determinadas concepções dos bantús, do gegê
nagôs, como as das transmigrações das almas em circuitos
metepsicósicos, etc., ou de linhas de evolução, como os de umbanda,
etc. vemos que tais diferenças descem até o culto, e se sistematizam na
liturgia bantuniana, como encontramos pais de santo, com os seus
auxiliares, cambonos, filhas de santo, etc., evocando os zumbis,
espíritos familiares, ou então mungongos, os caringas etc., entidades
mais altas que os familiares comuns (BARROS, Jacy1939, p. 69).
A Umbanda aparece neste caso, como exemplo da diversidade de cultos africanos
quando o autor discute as diferenças entre os cultos bantos e os sudaneses, que para ele
seriam mais litúrgicas que cultuais. Ou seja, variavam mais em ritos que em crenças, que
no fim eram a mesma coisa. A Umbanda é assim, uma das formas rituais apresentadas
nos cultos africanos. Mais para frente, porém, a palavra é empregada em novo sentido. O
de um cargo, função ou título dado a uma liderança religiosa.
A Cábula, cuja finalidade ritual é a mesma da Macumba e do Catimbau,
deles difere profundamente nas realizações, com o seu Umbanda á
frente, dirigindo cerimoniais muito sacerdotalmente, no camucite, pois
esse é o ambiente. Os camanás, os elementos constitutivos dessa
comunidade negra, seguem de perto os ritos orientados
subsidiariamente pelos cambonos, havendo punições tremendas,
quando desritimam suas palmas dos aplausos rítmicos, ou então quando
se apaga a vela que o umbanda faz circular ao redor do camaná. O
castigo é sempre precedido por uma pergunta protocolar, como esta:
“Por conta de quem camaná não faz cajecatú”... ou seja, se afasta do
processo normal do culto (op. Cit. p. 70, grifo meu).
O que a leitura dos autores da década de 1930 indicam é que dentro do campo
espírita, a Umbanda é tida como espiritismo, havendo, entretanto, divergências quanto ao
seu lugar no campo e os seus limites. Leal de Souza coloca-a como ramo do espiritismo
especializada no combate à magia negra e exclui dela certos elementos africanos, como
98
o atabaque, e entidades, como exu. João de Freitas e Jacy Rêgo Barros pensam-na como
espiritismo de origem africana. Onde todos os elementos excluídos por Leal de Souza,
são reabilitados na Umbanda.
É a partir do Primeiro Congresso de Umbanda que se começará a construir a sua
imagem enquanto religião. O que se verá erigir nas décadas seguintes é um campo
intelectual propriamente umbandista, onde os escritores buscarão definir o que é a
Umbanda, quais os seus fundamentos e ritos. Nesse processo há um paulatino
distanciamento do espiritismo do tipo kardecista. Mas nesse momento, o debate se dá
dentro do campo espírita. Todos estes autores estão ligados ao espiritismo e discutem a
validade das práticas afro-brasileiras a partir da doutrina kardecista. O espiritismo é
pensado não enquanto religião, mas enquanto fenômeno.
2.4 Caboclos, pretos-velhos e exus
A “Linha Branca de Umbanda” é uma manifestação, um aspecto ou um tipo de
espiritismo. Mas para Leal de Souza, é mais do que isso, ela é uma manifestação espírita,
legitimada pela doutrina kardecista e imprescindível para o combate à “Linha Negra”
(exu), manifestada na “magia negra” presente no baixo ou falso espiritismo e nas
macumbas. Com relação a este aspecto, em Leal de Souza, há uma sutil racialização e um
não tão sutil, trabalho de branqueamento. Quando trata da separação entre o “bom” e o
“mau” espiritismo no campo social, como se viu, não correlaciona a divisão entre a “linha
branca” e a “linha negra” a uma divisão racial. Leva a questão para o aspecto econômico.
É um praticante do mal aquele que não é capaz de comprovar renda ou aquele que faz do
trabalho sacerdotal o seu sustento. A gratuidade se torna um elemento de legitimidade em
muitos autores e casas umbandistas.
Seu discurso, contudo, não deixa de ser racializado (hierarquizando o branco e
não-branco), quando justifica a manifestação de caboclos e pretos-velhos. Como poderia
ser possível, em uma sociedade onde negros e indígenas são considerados inferiores, os
espíritos de caboclos e pretos-velhos se apresentarem de maneira positiva?
Parte de sua resposta está na utilidade deles, parte está na negação de uma origem
étnica correspondente. Mesmo que “atrasados”, ou melhor, por isso mesmo, são capazes
de combater os exus. Caboclos e Pretos-Velhos são egressos da “Linha Negra” de onde
99
tiram o conhecimento e o poder necessário para combatê-la. Esta é uma elucubração que
não se encontra de todo descolada da realidade cotidiana dos terreiros. Há pretos velhos,
como o exemplo do Pai Cipriano, associados aos exus, e que são representados como
quimbandeiros, feiticeiros. Categoria não utilizada por Leal de Souza, mas que
corresponde à sua ideia de Linha Negra. Tal imagem é percebida em pontos cantados,
como este23:
Estrela
Oh estrelinha,
Estrela de São Cipriano
Ilumina os quimbandeiros
Salve Cipriano no terreiro
Já cheguei a conhecer um Pai Cipriano que estava num momento de transição da
linha de exu para a de preto-velho. Ele se apresentava junto com os outros exus, mas não
se comportava como eles. Ficava sentado em um pequeno banco, de costas para as
pessoas e virado para a parede com um pano branco cobrindo a cabeça. Posteriormente,
passou a se apresenta como um preto velho que não pode andar e passou a ser invocado
geralmente em situações de descarrego. Ou seja, para limpar as pessoas de energias
negativas e obsessores e não em consultas, campo consagrado aos pretos-velhos. O que
lembra outro ponto:
Lá na Angola tem um velho
Que não pode mais andar
Ele vai fazer macumba
Até o dia clarear
É válido ressaltar que neste ponto, mais uma vez, esse preto-velho é associado a
uma categoria que muitas vezes vai ser utilizada de maneira pejorativa e negada por
muitos umbandistas, a macumba. Categoria associada à feitiçaria, ao mal e ao diabo.
23
Os pontos cantados ou cantigas de Umbanda expressam representações sobre as entidades manifestadas
no terreiro. A análise deles pode ajudar a compreender em que medida é justificável as afirmações e
classificações de Leal de Souza e de outros autores.
100
Disso não é possível concluir, entretanto, que todo Pai Cipriano tem a mesma origem e
se comporte exatamente da mesma maneira. Da mesma forma, não é possível afirmar que
todo preto-velho é um egresso da “linha negra”. Existem pretos-velhos, por exemplo,
associados ao Espírito Santo.
Eu andava perambulando
Sem ter nada pra comer
Eu pedi às Santas Almas para vir me socorrer
Foi as almas quem me ajudou, foi as almas que me ajudou
Meu divino Espírito Santo, viva a Deus, nosso Senhor.
Além disso, nem mesmo exu representa uma oposição irredutível à “linha branca”.
Ele não só pode ser associado a Jesus:24
Exu, que tem duas cabeças
Exu, sua banda é de fé
Mas uma é Satanás do inferno
A outra é Jesus de Nazaré
Como as instituições ligadas a seu nome
Tranca-Ruas ganhou uma garrafa de marafo
Levou na capela pro padre benzer
Encontrou com o sacristão
Na batina do padre tem dendê
No primeiro canto revela-se um aspecto dual da entidade. Da mesma maneira que
representa Satanás, representa Jesus. Não há uma relação de oposição, mas de
complementariedade. De certa maneira, Jesus e o Diabo são um só. Yvone Maggie,
segundo Delgado (2022), identifica neste ponto uma dicotomia e contradição na maneira
24
Leal de Souza afirma existir sete linhas brancas: Oxalá (Jesus), Ogum (São Jorge), Oxóssi (São
Sebastião), Xangô (São Jerônimo), Iansã (Santa Bárbara), Iemanjá (Nossa Senhora da Conceição), Linha
de Santo ou linha das almas.
101
de se compreender exu, decorrente do sincretismo. Delgado (2022) vê neste e em outros
pontos a manutenção do sincretismo e do branqueamento que muitas vezes reforça o
maniqueísmo das ideologias cristãs em detrimento de saberes e tradições de axé. Ora,
haverá algo que confronte mais esse maniqueísmo que uma entidade que é ao mesmo
tempo Jesus e o diabo? Embora o sincretismo esteja presente, a “ambiguidade” é uma
característica presente em alguns orixás das tradições religiosas afro-brasileiras.
Ser metá tem a ver com o fato de o deus hibridizar características,
comumente classificadas em categorias sociais diferentes, dentre elas
(mas não só) as de gênero. Assim, os metás transformam-se de, e/ou
são a um só tempo, animal-humano (Logun e Oxumaré); vegetal-
humano (Ossaim); pênis-vagina (Oxumaré); iabá-aboró (Logun e
Oxumaré); fenômeno natural-animal (Oxumaré); peixe-mamífero
(Logun) etc” (RIOS, 2011, p. 217).
Como considerar o exu que é Jesus e o diabo um efeito de sincretismo e ignorar
todos os demais orixás que apresentam a mesma característica? Se as imagens que se
hibridizam são ocidentais, a hibridização por si parece ser uma característica não
ocidental. Mais do que uma contradição, a ambiguidade deve ser vista como um paradoxo
característico da entidade que por isso mesmo deslegitima as posições maniqueístas do
cristianismo e do próprio Leal de Souza.
Ao mesmo tempo, no segundo ponto, o marafo25, instrumento de trabalho de exu,
é benzido pelo padre que por sua vez, deixou cair dendê, elemento ritual das religiões
afro-brasileiras, na batina. Denunciando, possivelmente, o fato do sacerdote também se
valer destas entidades. Cabe ressaltar que outra versão pode revelar certa ironia de exu,
sem, entretanto, negar sua relação com a igreja. Isso sugere que de certa maneira a
ambiguidade da entidade revela a própria ambiguidade da identidade religiosa
umbandista que se sustenta em uma prática sincrética e que muitas vezes se apresenta
dúbia ou imprecisa na sua relação com a sociedade englobante. Dizer-se espírita é muitas
vezes uma forma de se identificar sem dizer o que se é.
Retomando a questão da racialização no discurso de Leal de Souza, ela está
presente na hierarquização evolucionista das entidades. Aquela que representa o mais
baixo nível é Exu, a “linha negra”. Caboclos e Pretos-Velhos são espíritos que evoluíram
ao ponto de conseguirem se integrar à “linha branca”. Mas eles não são tratados como
25
Água-ardente
102
espíritos de extrema evolução. Embora as cores da linha não estejam explicitamente
relacionadas às etnias ou aos tons de pele das entidades, é sintomático o fato de entre as
linhas negras e brancas se encontrarem espíritos de negros e indígenas aculturados ou em
processo de aculturação. Os guias superiores, seriam os chamados “Espíritos de Luz”, e
não incorporariam, organizando tudo do espaço. Dentro de sua teoria evolucionista, o
avanço espiritual tornaria um dia estas manifestações desnecessárias.
Dia virá, certamente ainda distante no tempo, em que não haverá
necessidade de recorrer aos meios materiais para alcançar efeitos
espirituais e em que o aparecimento de pretos-velhos e caboclos nos
terreiros das tendas apenas ocorrerá esporadicamente, para não deixar
perecer a lembrança dessas épocas de puro materialismo e pesado
orgulho utilitarista, que tão árdua e penosa tornam a missão dos
espíritos incumbidos da assistência aos homens, como trabalhadores da
Linha Branca de Umbanda (SOUZA, L. 2019, p. 189-190).
Caboclos e pretos-velhos são espíritos a meio caminho entre os guias de luz e os
tenebrosos exus. Seu valor está em sua função de embate a estes últimos. Porém, existe
um outro subterfúgio para legitimar a manifestação desses espíritos. A concepção de que
os pretos-velhos e os caboclos não são espíritos de africanos e indígenas.
Entre os caboclos, numerosos foram europeus em encarnações
anteriores, e a sua reencarnação no seio dos silvícolas não representa
um retrocesso, mas o início, pela identificação com o ambiente, da
missão que, como espíritos, depois de aprendizado no espaço, teriam de
desempenhar na Terra. Outros pertenceram, na última existência
terrena, a povos brancos, do Ocidente, ou amarelos, da Ásia, e nunca
passaram pelas nossas tribos. Os restantes, porém, com o círculo de sua
elevação reduzido, até o presente, à zona psíquica do Brasil, têm
encarnado e reencarnado, com alternativas, em nossas cidades ou
matas, estando quase todos no espaço há mais de meio século. O mesmo
quanto aos negros (SOUZA, L. 2019, p. 105).
Leal de Souza organiza as entidades de caboclos e pretos-velhos em três
categorias. Os espíritos europeus que encarnaram no Brasil para se preparar em sua
missão de orientação espiritual. Os espíritos europeus ou asiáticos que nunca encarnaram
entre as tribos. E os espíritos de indígenas e africanos que reencarnaram inumeráveis
vezes antes de poderem servir como guias, mas não só nas matas, também nas cidades,
elemento que demarca sua civilidade. Se as entidades são europeias porque se apresentam
como não-brancos? Em primeiro lugar porque entre os kardecistas compreende-se haver
103
uma relação entre os níveis de desenvolvimento sociocultural e a espiritualidade
“regional”. Os espíritos de caboclos e pretos-velhos estariam de acordo com a fase
civilizatória e cultural brasileira. Em segundo lugar porque os arquétipos de negros e
indígenas estão relacionados aos valores cristãos de humildade e abnegação. Em sua
argumentação, entre outros, relata o caso do Pai Antônio que depois de demonstrar seus
conhecimentos médicos reconhecidos por um médico é questionado se é de fato um preto
da África.
Exemplo: uma ocasião, em uma pequena reunião de cinco pessoas, um
protetor caboclo descarregava os maus fluidos de uma senhora,
enquanto, também incorporado, um preto velho, Pai Antônio, fumava
um cachimbo, observando a descarga.
- Cuidado, caboclo – avisou o preto. – O coração dessa filha não está
batendo de acordo com o pulso.
- Como é que o Pai Antônio viu isso? Deixe verificar – pediu um médico
presente à sessão.
E, depois da verificação, confirmou o aviso do preto, que o surpreendeu
de novo, emitindo um termo técnico da medicina e explicando que o
fenômeno não provinha, como acreditava o clínico, de causas
fisiológicas, porém da ação fluídica, tanto que, terminada a descarga, se
reestabelecia a circulação normal no organismo da dama. E assim
aconteceu.
O doutor, então, quis conversar sobre sua ciência com o espírito
humilde do preto e, antes de meia hora, confessava, com um sorriso e
sem despeito, que o negro abordara assuntos que ele ainda tão tivera a
oportunidade de versar, e estranhava:
- Pai Antônio não pode ser o espírito de um preto da África, e não se
compreende que se baixe para fumar cachimbo e falar língua inferior
ao cassange.
- Eu sou preto, meu filho.
- Não Pai Antônio. O senhor sabe mais medicina do que eu. Por que
fala desse modo? Há de ser por alguma razão.
O preto-velho explicou:
- Eu não baixo em roda de doutores. Doutor aqui só há um, que és tu, e
nem sempre vens cá. Depois, meu filho, se eu começo a falar língua de
branco, posso ficar pretensioso como tu, que dizes saber menos
medicina do que eu – disse, em uma linguagem arrevesada, que
traduzimos” (SOUZA, L. 2019, p. 106-107).
É curioso que Leal de Souza traga um exemplo que de certa maneira vai de
encontro à sua teoria de uma existência europeia da entidade. Pai Antônio não só se afirma
preto, como nega a linguagem branca. Mas duas são as lições que se pretende tirar dessa
anedota. A primeira é que os espíritos da Umbanda possuem um conhecimento
cientificamente válido. A segunda, é que a forma como se apresentam é uma opção e não
104
uma condição. Estas duas lições são uma forma de legitimação dessas entidades que se
fazem a partir dos valores cristãos da humildade e renúncia e do discurso médico-
científico de domínio do preto-velho. Ao mesmo tempo existe uma intrínseca crítica às
classes intelectuais brasileiras e às suas formas de expressão e comportamento.
É possível reconhecer em Leal de Souza, a partir do que foi exposto, um discurso
evolucionista ao classificar as entidades e as formas de espiritismo de acordo com
diferentes graus de evolução. Ao mesmo tempo é possível reconhecer um esforço de
embranquecimento da Umbanda nos seguintes fatores: não menção da ligação da
Umbanda com a África, tratada como evidente por contemporâneos seus; negação de uma
origem étnica correspondente às entidades de pretos velhos e caboclos, adquirindo estes
uma dimensão simbólica; valorização de tais entidades na medida em que estas
apresentam domínio do conhecimento moderno, em detrimento de conhecimentos
tradicionais; e estigmatização de práticas e elementos rituais afro-brasileiros. Vale
observar que Leal de Souza não é criador dessas ideias e projetos. Seus argumentos
representam as formulações de um grupo que aparece tanto em seu livro de 1925 quanto
nas crônicas de João de Freitas.
Quanto à questão da nacionalidade da Umbanda, não se verificou nos autores
tratados até aqui. A brasilidade da “Umbanda branca” é identificada por Heraldo
Menezes, mas ela não corresponde à “umbanda legítima”, como o autor coloca, que é
africana e “semibárbara”. Esta colocação, como a dos demais escritores do período, revela
o evolucionismo e o racismo característicos do discurso da época. A presunção da
inferioridade dos africanos que trouxeram a Umbanda para o Brasil revela uma
preocupação que será debatida de maneira mais detida pelos participantes do Primeiro
Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda. Nele se encontram dois problemas
centrais quanto ao valor da religião: como legitimar um culto que foi trazida para o Brasil
pelos africanos e como superar suas práticas classificadas como “bárbaras” para que esta
corresponda à civilização moderna brasileira.
105
3. O Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda
É na lei de Umbanda
Que preto nagô também manda
Preto velho vira a mão
Trabalhando na curimba
Preto velho é respeitado
Só por causa da mandinga
No terreiro de Alibibi – Pixinguinha & Gastão Viana
No decorrer dos eventos relatados no capítulo anterior, diante dos problemas
sofridos com depreciação pública do espiritismo e a repressão policial, em 1939, espíritas
praticantes do Espiritismo de Umbanda, fundam a primeira federação umbandista, a
Federação Espírita de Umbanda. Pouco tempo depois, seu nome mudaria para União
Espírita de Umbanda do Brasil (UEUB). Ela foi fundada por Zélio Fernandino e outros
líderes umbandistas com o objetivo de oferecer proteção contra as perseguições policiais
(BROWN, 1985).
Outras federações protetoras de religiões afro-brasileiras foram fundadas no
mesmo período em Recife (1934) e Salvador (1937). Os fundadores eram elementos de
fora (diferentemente do que acontece na federação umbandista), cientistas interessados
em estudar a saúde mental e as ascendências africanas e intelectuais que se voltavam aos
elementos culturais afro-brasileiros como vestígios de uma civilização “pré-colonial”.
Nos dois casos as federações assumiram um papel de patronato das classes superiores e
médias em relação às práticas religiosas de setores “inferiores desprotegidos”. Em 1934
realizaram o Primeiro Congresso de Religiões Afro-Brasileiras, organizado por Gilberto
Freyre que também organizou a federação em Recife26.
A federação umbandista, sob a presidência de Eurico Lagden Moerbeck27,
organizou e patrocinou o Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda (1941) que,
conforme seus anais, constituiu o primeiro trabalho desta federação. Brown (1985)
destaca dois temas nas atas: o branquemanto, “a preocupação com a criação de uma
26
Os Congressos afro-brasileiros de 1934 e 1937 marcam o debate sobre as relações raciais no Brasil.
Reuniram como congressistas não só pesquisadores que tomavam o negro como objeto de estudo, mas
também religiosos afro-brasileiros. Além da importância histórica e econômica do Nordeste, sua escolha
como lugar de realização dos congressos refletem a efervescência de uma nova forma de pensar o Brasil
como constituído por diversas expressões regionais e pelo seu projeto de unificação impulsionado pelo
Governo Vargas. Estes congressos serviram como espaços de demarcação de posições dentro do campo da
antropologia e do estudo do negro (MORAIS, M. 2020)
27
Chefe do Departamento de Correios e Telégrafos do Estado do Rio de Janeiro (Silva: 2019:136)
106
Umbanda desafricanizada, cujas origens foram localizadas nas antigas tradições
religiosas do Extremo Oriente e do Oriente Próximo” (op. Cit. p. 11) e a ênfase fortemente
moral nas formas benevolentes de caridade e a missão de resgatar as classes subalternas
de formas exploradoras e nocivas de feitiçaria.
José Henrique M. Oliveira (2006) associa à institucionalização da Umbanda, o
nacionalismo e a adoção de um discurso evolucionista em que a população brasileira era
o resultado de um encontro singular entre índios, brancos e negros, como um conjunto de
estratégias de legitimação da religião. Sustenta a hipótese de que essas estratégias
visavam flexibilizar a ocupação do campo religioso a partir de uma livre interpretação do
projeto político-ideológico do Estado Novo no qual o caráter mestiço da população, sem
conflitos étnicos e culturais, contribuía para o desenvolvimento socioeconômico do
Brasil. O Congresso, como parte dessas estratégias, tinha duas funções: uma interna,
visava unificar o culto, estabelecendo uma doutrina pautada na prática da caridade; e outra
externa, fornecia explicações científicas que desmistificassem as práticas mágicas da
Umbanda.
A legitimidade do novo culto parte do debate em torno de uma doutrina mínima
capaz de atenuar o preconceito dos setores mais conservadores da sociedade. Assim,
evitam o enfrentamento e buscam assimilar o projeto político-ideológico de forma a
facilitar sua integração à sociedade nacional. O discurso cientificista e evolucionista se
torna protagonista na linguagem legitimadora, tendo como resultado uma demarcação de
distinção do campo de ação do movimento umbandista para o das práticas afro-brasileiras.
Assim, na lógica daquele momento histórico, o caminho da
legitimidade passava pela construção de uma identidade ao mesmo
tempo próxima do caráter “científico” da religião kardecista e o mais
distante possível das práticas religiosas de matriz africana. Portanto,
quando a nova religião foi apresentada como brasileira, os intelectuais
queriam dizer à sociedade que a umbanda não era apenas uma religião
de origem afro-indígena, mas o resultado da evolução cultural do povo
brasileiro. A estratégia era aproximá-la de uma representação mestiça
da nacionalidade, tão apreciada pelos ideólogos do Estado varguista
(Op. Cit: p. 138).
Antes de José Oliveira (2006), Ortiz (1999) já salientava o caráter cientificista da
linguagem como estratégia de legitimação, destacando suas diferentes formas: a
antiguidade da religião, o discurso científico e o discurso cultivado. Com relação à
107
antiguidade, haveria duas correntes principais. Uma se apresenta no Primeiro Congresso
de Umbanda e elege a Índia antiga como origem. Outra, de desenvolvimento mais tardio,
tenta reabilitar uma parte da África perdida.
Parte deste debate fundamenta-se ou busca fundamentar-se na origem da palavra
“umbanda”, ligando-a ao sânscrito. A tese do Congresso de 1941 impera, sobretudo, nas
classes médias e inscreve-se num projeto de embranquecimento. A herança africana é
rejeitada pela ideologia branca que a situa em uma origem mais “digna”, na sabedoria
hindu ou persa.
A segunda corrente se vincula à Federação Umbandista do Rio de Janeiro, fundada
por Tancredo da Silva Pinto, e considera africana a origem da palavra, mais precisamente
na tribo banto luandas-quiocos, situada no sul de Angola. As fontes sagradas da origem
aparecem em linguagem mitológica confundindo a antiguidade do homem com a
antiguidade da religião. A África se torna berço da humanidade e a arqueologia torna-se
prova científica da origem religiosa. Como na versão anterior, passa-se da origem de uma
civilização à origem da religião. Porém, se no primeiro há um projeto de
embranquecimento, no segundo há uma revalorização da África. Não surpreende que tal
conotação emerja no pensamento de um “descendente de escravos africanos”. O discurso
opera uma transformação que conclui da origem milenar da palavra, a origem milenar da
religião.
O discurso aparece assim como fonte legitimadora, mito de fundação
da gênese umbandista; pouco importa a veracidade das provas
históricas, elas não são relevantes. O problema é mostrar logicamente,
num jogo de linguagem, um texto coerente que possa justificar a
objetivação de uma instituição existente. Graças à teoria da evolução, o
pensamento umbandista possui um instrumental para construir um
edifício discursivo que satisfaça as necessidades de fundamentação do
mundo. Toda esta ginástica intelectual tem por finalidade reencontrar
nos traços da evolução humana uma certidão de nascimento para essa
filha bastarda da história brasileira. Contrariamente às religiões
messiânicas que têm uma origem datada na pessoa do Messias, a
Umbanda se perde na escuridão dos tempos históricos. A preocupação
das origens traduz assim uma necessidade real do presente, o
reconhecimento, pela sociedade, de uma nova religião que procura a
qualquer preço seu lugar ao sol (ORTIZ, 1999, p. 168).
A concepção de a origem africana da Umbanda ser uma construção posterior ao
Primeiro Congresso merece uma ressalva. A análise dos textos umbandistas publicados
108
no final da década de 1930, realizada anteriormente, e a análise dos textos do Primeiro
Congresso, a ser efetuada neste capítulo, apontam que um dos problemas para os
congressistas é o fato da Umbanda ser, neste período, socialmente reconhecida como
religião de negros, trazida ao Brasil por africanos escravizados. O próprio Ortiz informa
que em O negro brasileiro (1934), Arthur Ramos afirma que a palavra umbanda significa
“a própria religião dos negros”, sem, entretanto, ter um sentido preciso. Ora é sinônimo
de nação, ora “de um espírito potente de uma nação” (ORTIZ, 1999, p. 116). O que muda
a partir dos anos 1950 com a atuação de Tancredo da Silva Pinto e sua federação é o
abandono de uma perspectiva depreciativa de uma origem negra, vista como um
problema, para uma perspectiva valorativa do berço africano. É justamente o
reconhecimento de uma africanidade da Umbanda que tornaria para estes congressistas,
o branqueamento necessário. Branqueamento formulado a partir do conceito de
civilização.
Figura 4: Aspectos do 1º Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, no primeiro plano de pé, lendo a
sua tese o sr Diamantino coelho Fernandes, ladeado pelo presidente da Federação espírita e no segundo pano parte
na numerosa assistência28.
28
Foto e descrição retirados do Diário Carioca (21/10/41) acessado em 17/01/23
(http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093092_03&Pesq=Umbanda&pagfis=7460)
109
O Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda ocorreu entre 19 e
26 de outubro de 1941 no Rio de Janeiro. De acordo com Tadeu Pereira dos Santos (2016)
sua comissão organizadora, indicada pela federação, foi composta por cinco tendas, nome
dado às casas religiosas umbandistas pelo documento. Aparecem nos anais como
comissão organizadora: Alfredo Antônio Rego29, 1º Secretário da Federação, Diamantino
Coelho Fernandes30, da Tenda Espírita Mirim, e Dr. Jayme Madruga31 da Tenda Espírita
São Jerônymo. Além dessas duas tendas (Antônio Rego não é associado a nenhuma)
aparecem como locais de reunião da comissão organizadora: a Tenda Espírita Humildade
e Caridade, a Tenda Espírita São Jorge e a Tenda Espírita Nossa Senhora da Conceição.
Os anais do Congresso foram publicados pelo Jornal do Comércio em 1942. A
partir deles podemos identificar sete centros além das casas que organizaram. Outros
nomes aparecem, mas não identificam o seu templo. Além dos discursos inaugural e final
foram apresentadas nove teses, duas memórias, um estudo e uma contribuição32. A Tenda
que mais apresentou foi a Tenda Espírita Mirim com três teses. Duas apresentadas por
Diamantino Coelho Fernandes, delegado da tenda no congresso e uma por Roberto
Ruggiero, membro da delegação. Com duas exposições aparecem a Tenda Espírita
Humildade e Caridade e a Tenda Espírita São Jorge. Da primeira apresentaram teses
Alfredo Antônio Rego, delegado e 1º secretário da Federação Espírita de Umbanda que
além da tese, realizou discursos de abertura e encerramento; e Aoitin de Souza Almeida
presidente da referida tenda. Da segunda apresentaram teses Antônio Barbosa, presidente,
e Tavares Ferreira, membro de delegação. Também apresentou tese a Cabana de Pai
Joaquim de Loanda, através de sua delegada Martha Justina. A Tenda Espírita Fé e
Humildade, por meio de Eurico Lagden Moerbeck, delegado e presidente do Congresso,
apresentou um estudo e a Cabana de Pai Thomé de Senhor do Bom-fim, com seu delegado
Josué Mendes, apresentou uma memória. Por fim, o Centro Espírita Religioso São João
Baptista fez uma moção, através de seu 1º secretário, Oscar Agapito Moreira. Baptista de
Oliveira e o professor A. Basílio, representante do Diário Carioca, apresentaram
29
Funcionário do Ministério da Educação e Saúde (Silva, 2019:136)
30
Chefe de publicidade do Jornal do Comércio (Silva, 2019:136)
31
Engenheiro (Silva: 2019, 136)
32
Classificação de acordo com a publicação.
110
respectivamente, uma memória e uma contribuição. A tabela abaixo ajuda a enxergar a
organização do congresso33.
33
A composição da direção e dos congressistas apontam para uma configuração do congresso como um
espaço de membros brancos e de classe média, como já indicou Brown (1985) e masculino, sendo,
Martha Justina a única mulher a constar nos anais como congressista.
111
Texto Palestrante Cargo Centro Tipo Apresentação
Discurso Inaugural Sr. Alfredo Antônio Rego 1º Secretário da Fed. Esp. de Umbanda 19/10/1941
O Espíritismo de Umbanda na evolução dos povos Sr. Diamantino Coelho Fernandes Delegado do centro Tenda Esírita Mirim Tese 19/10/1941
A liberdade religiosa no Brasil Dr. Jayme Madruga Delegado do centro Tenda Espírita São Jerônymo Tese 20/10/1941
Utilidade da lei de Umbanda D. Martha Justina Delegada do centro Cabana de Pai Joaqui de Loanda Tese 21/10/1941
Umbanda e os Sete Planos do Universo Sr. Alfredo Antônio Rego Delegado do centro Tenda Espírita Humildade e Caridade Tese 21/10/1941
Umbanda: suas oriigens - sai natureza e sua forma Dr. Baptista de Oliveira Memória 22/10/1941
Banhos de descarga e defumadores Sr. Eurico Lagden Moerbeck (Pres. Do Congresso) Delegado e Presidente do Congresso Tenda Espírta Fé e Humildade Estudo 22/10/1941
Numerologia egípcia: modalidade mediúnica Prof. A Brasílico Rep. do Diário Carioca e do Prof. Mirakoff Contribuição 23/10/1941
O Espiritismo de Umbanda como Religião, Ciência e Filosofia Sr. Diamantino Coelho Fernandes Delegado do centro Tenda Espírita Mirim Tese 23/10/1941
A medicina em face do espiritismo Dr. Antônio Barbosa Presidente do centro Tenda Espírita São Jorge Tese 23/10/1941
Cristo e sues auxiliares Sr. Roberto Ruggiero Membro de Delegação Tenda Espírita Mirim Tese 24/10/1941
Cantados e Riscados no Espiritismo de Umbanda Sr. Aoitin de Souza Almeida Presidente Tenda Espírita Humildade e Caridade Tese 24/10/1941
O ocultismo através dos tempos Sr. Tavares Ferreira Membro de Delegação Tenda Espírita São Jorge Tese 24/10/1941
Indicações apresentadas em plenário e outros 25/10/1941
Introdução ao Estudo da Linha Branca de Umbanda Sr. Josué Mendes Delegado Cabana de Pai Thomé de Senhor do Bom-fim Memória 26/10/1941
Indicações apresentadas em plenário e outros 26/10/1941
Discurso de Encerramento Sr. Alfredo Antônio Rego 1º Secretário da Fed. Esp. de Umbanda 26/10/1941
Antônio Flora Nogueira 25/10/1941
Joaquim Augusto Neves 25/10/1941
Sr. João de Freitas 25/10/1941
Oscar Agapito Moreira 1º Secretário Centro Espírita Religioso São João Baptista 26/10/1941
Indicações apresentadas em plenário, plenários e outros Edgar Ismael da Silveira 26/10/1941
Alfredo Fayal 26/10/1941
J. Ayres de Camargo 26/10/1941
Deolindo Amorem Secretário Geral 26/10/1941
Amabelino 26/10/1941
112
A escolha do nome do congresso aponta uma mudança na autoidentificação do
grupo ligado a Zélio Fernandino. O uso da expressão “Linha Branca de Umbanda” não é
consensual. Enquanto alguns usam e se identificam com essa designação, como é caso de
José Mendes em Introdução ao estudo da Linha Branca de Umbanda, outros vão
apresentar certo distanciamento, como é o caso de Baptista de Oliveira que em sua
apresentação diz: “o que vós chamais Linha Branca de Umbanda...”. E existe ainda,
aqueles que são abertamente críticos ao uso do termo:
Tendo por vezes assistido reuniões em algumas tendas onde se pratica
a lei de Mesa e a de Umbanda, ouvi sempre o Presidente destes
trabalhos dizer: Salve a Linha Branca! Ora, acho errôneo e até ridículo
salvar a cor da linha, e sim acho certo salvar-se a lei de Mesa e a lei de
Umbanda e todos os povos que constituem as falanges da lei, porque
tenho a impressão de que salvando-se a "linha branca", o assistente
leigo pensa que salvou-se os brancos e menosprezou-se os pretos,
porquanto todas as entidades que praticam a caridade em nossas tendas,
são brancas, elevadas e dignas do maior respeito, e por isto, no meu
modo de interpretar acho que se a prática é da lei de Umbanda, o
racional é o Presidente dizer: Salve a Lei Espírita de Umbanda! Se a
prática for na Mesa, então o Presidente fará o que de direito e não como
vinha dizendo: "salve a linha branca!"; e eu ao terminar digo — Salve
todas as leis que nos regem espiritualmente, e salve os organizadores
deste grandioso Congresso que sabe fazer Justiça, dando a César o que
é de César. (PRIMEIRO CONGRESSO, 1942, s/p)
A escolha do termo “espiritismo de Umbanda”, reforça ainda mais a identidade
espírita destes congressistas, que ora se dizem espíritas e ora se dizem umbandistas.
Mesmo assim, é preciso salientar que a primeira atitude, a de se identificar com a Linha
Branca, é a mais comum. Por outro lado, na introdução é reafirmada a dissidência ao
espiritismo que tem a codificação de Allan Kardec como obra fundamental.
Neste sentido a codificação realizada por Allan Kardec ainda constitui
a obra fundamental sobre a qual se baseiam os espíritas do Brasil,
desconhecendo a maioria dos adeptos desta corrente de pensamento
filosófico a grande bibliografia oriental, de cuja fonte multimilenar
emanaram todas as seitas, crenças e filosofias, o Espiritismo inclusive.
(CONGRESSO, 1941, s/p)
A tendência de um grupo de espíritas ao orientalismo e ao ocultismo já havia sido
identificada por Leal de Souza. Ele relata receber das mãos de Ignácio Bittencourt,
presidente do abrigo Thereza de Jesus, onde ouviu falar elogiosamente dos trabalhos do
113
Caboclo das Sete Encruzilhadas pela primeira vez, as obras Quatorze lições de filosofia
Yogue e ocultismo oriental – Yogue Ramacharaca e O adepto ou Ensinamentos de lata
magia – Hans Arnold34. O próprio Leal em suas publicações de 1933 admite que o
espiritismo “progrediu a ponto de exigir a retificação de alguns dos ensinos do mestre”
(SOUZA, L. 2019, p. 241).
O espiritismo de Umbanda, portanto, parece ser uma dissidência do kardecismo
no Brasil que se desenvolve a partir da introdução de uma literatura orientalista e da
inclusão de elementos das tradições religiosas afro-brasileiras, que vão encontrar na
Tenda Nossa Senhora da Piedade, um modelo de organização. Por outro lado, Giumbelli
(1997) identifica no I Congresso Internacional Espírita e Espiritualista (1889) a
participação de espíritas franceses (reencarnacionistas), anglo-saxões (não-
reencarnacionistas), teósofos, ocultistas, cabalistas e maçons. O que revela relações entre
kardecistas e outras práticas espiritualistas desde as origens do espiritismo francês. Não
é possível, portanto, concluir que nesta inclusão de uma literatura orientalista seja uma
originalidade deste grupo, que por sua vez, por mais que se afaste do kardecismo, não
deixam de se considerar espírita. Cabe ainda ressaltar que neste congresso se mantém o
mesmo objetivo das publicações de Leal de Souza, “separar o joio do trigo”.
Fundada a Federação Espírita de Umbanda há cerca de dois anos, o seu
primeiro trabalho consistiu na preparação deste Congresso,
precisamente para nele se estudar, debater e codificar esta empolgante
modalidade de trabalho espiritual, a fim de varrer de uma vez o que por
aí se praticava com o nome de Espiritismo de Umbanda, e que no nível
de civilização a que atingimos não tem mais razão de ser
(CONGRESSO, 1942, s/p).
O programa do congresso é separado em seis tópicos: História, Filosofia,
Doutrina, Ritual, Mediunidade e Chefia Espiritual. Todos eles, na apresentação são
acompanhados por uma definição que já permite antever suas conclusões. No tópico
história, por exemplo, o programa prevê: “Investigação histórica em torno das práticas
espirituais de Umbanda através da antiga civilização, da Idade Média até aos nossos dias,
34
Fato que será usado como argumento contra as acusações que Bittencourt teria feito à Leal de Souza, de
em sua tenda, se praticar o baixo espiritismo e a baixa magia. Em publicação do dia 15/12/1932, publica
carta direcionada ao acusador apontando com ironia que se ele conheceu os trabalhos da Tenda Nossa
Senhora da Piedade, foi por ouvir elogiosamente sobre ela em seu centro. Percebe-se aqui uma disputa por
determinar que práticas espíritas poderiam ser consideradas legítimas ou não.
114
de modo a demonstrar à evidência a sua profunda raiz histórica”. Depois de oito noites
consecutivas de apresentações e debates diversos, a conclusão que o congresso apresenta
não oferece nenhuma surpresa.
PRIMEIRA — O Espiritismo de Umbanda é uma das maiores correntes
do pensamento humano existentes na terra há mais de cem séculos, cuja
raiz provem das antigas religiões e filosofias da índia, fonte e inspiração
de todas as demais doutrinas religioso-filosóficas do Ocidente;
(CONGRESSO, 1942, s/p).
A coincidência das propostas de trabalho e das conclusões do Congresso, bem
como as coincidências das ideias defendidas pela comissão organizadora e estas mesmas
conclusões indicam um certo controle ideológico deste grupo. Ele se constituiu em um
movimento de sedimentação e institucionalização de uma filosofia umbandista específica,
caracterizada pela racionalização e pelo branqueamento. Além disso há presenças e falas
que não aparecem na publicação dos seus anais, indicando uma seleção do conteúdo
divulgado.
Uma delas se refere à manifestação excluída da participação do professor
Lourenço Braga que leu um extrato do seu livro Umbanda e Quimbanda publicado no
ano seguinte, 1942. Segundo Cumino (2010), o fato de a comissão organizadora ser quem
efetivamente estabelece as conclusões às que o evento chega, indicando que elas já
estavam preestabelecidas, gera contragosto em alguns, como Tata Tancredo (Tancredo
da Silva Pinto), que coloca duras críticas ao grupo, e o próprio Lourenço Braga que nem
citado foi.
Um último fato que indica esse controle pela comissão organizadora é a indicação
de que os temas a serem abordados foram distribuídos previamente entre as tendas. Isto
é perceptível na tese A liberdade religiosa no Brasil de Jayme Madruga, da Tenda Espírita
São Jeronymo.
Esse ideal, de fato existe entre nós e, portanto, passaremos ao assunto
sem cerimônia, trazendo por esta forma a humilde contribuição que ao
Congresso faz a Tenda Espírita São Jerônimo, a quem foi distribuído
tal assunto, numa homenagem do Congresso ao grande doutor da Igreja,
que é seu patrono e que dentro da Umbanda empunha o bastão de justiça
(MADRUGA, 1942, s/p).
115
Porém, mesmo assim é possível encontrar divergências. Como se viu
anteriormente no caso da designação “Linha Branca de Umbanda”, ou em alguns aspectos
rituais como o uso ou não de pontos riscados e cantados. Com relação às origens emergem
duas perspectivas. Na primeira ela é uma religião de origem oriental; na segunda ela tem
origem africana.
3.1 A origem oriental
As conclusões do Congresso sobre a origem da Umbanda seguem as teses
apresentadas pela Tenda Espírita Mirim. Ela aponta não só uma ruptura definitiva com o
kardecismo, mas o empenho de fundamentar a religião em uma filosofia orientalista e
ocultista. Proposta predominante no Congresso. A interpretação mais comum sobre os
textos do primeiro congresso leva a entendê-los como um esforço de branqueamento.
Entretanto, uma análise conjunta dos textos expostos no Congresso demonstra que este
branqueamento não se reduz simplesmente ao duplo movimento de negação do que é
negro e valorização de uma civilização branca europeia. O modelo civilizacional de
prestígio está mais ao oriente.
Diamantino Coelho Fernandes, um dos membros da comissão organizadora,
representante da Tenda Espírita Mirim35, teve a maioria das suas ideias aceitas como
conclusões do Congresso. Apresentou duas teses: O Espiritismo de Umbanda na evolução
dos povos e O Espiritismo de Umbanda como Religião, Ciência e Filosofia. A
participação da Tenda foi complementada pela tese Cristo e seus auxiliares: Evolução da
Religião — Vida de Jesus O Mistério do Gólgota e o Sangue Purificador de outro membro
da delegação, Roberto Ruggiero.
35
Oficialmente fundada em 13 de outubro de 1924 por Benjamin Gonçalves Figueiredo e o Caboclo Mirim.
Benjamin Figueiredo (1902-2015) era contador, neto de franceses e é colocado por Ortiz (1999), como um
dos primeiros kardecistas a realizar o movimento de empretecimento. Seu movimento teria sido anterior ao
do próprio Zélio que teria fundado um centro kardecista em 1908, mas só se converteria em Umbanda na
década de 1930. Esta informação é baseada na obra O que é a Umbanda de Cavalcanti Bandeira. Porém, a
informação encontrada no livro é que “neste decênio [1930] o dirigente dessa Tenda, Zélio de Moraes,
recebeu do Caboclo das Sete Encruzilhadas a incumbência de fundar sete centros” (Bandeira, 1970:79).
Assim, embora se confirme a origem kardecista do templo fundado por Zélio, não se confirma a data em
que ele teria mudado de culto. Quanto a Benjamin Figueiredo, afirma Zélio ser o responsável por seu
desenvolvimento na Umbanda (CUMINO, 2010: 333). Embora no site da instituição se reconheça a Tenda
Nossa Senhora da Piedade como primeiro centro de Umbanda, a afirmação de Zélio não é corroborada. O
desenvolvimento de Benjamin Figueredo é atribuído ao próprio mentor espiritual, o Caboclo Mirim, não
apresentando qualquer relação entre as casas ou os médiuns.
116
Em Ruggiero tudo é pensado sob o signo da evolução. O homem evoluiu junto
com a religião que em tempos primitivos se impunha pelo medo. O Deus que adoravam
era forte e terrível. Tinha nas forças da natureza sua expressão. Esta era a única maneira
de conduzir a sociedade de então. Num segundo momento, surge as “Religiões de Raça”
em que Deus é um amigo onipotente que ajuda a quem lhe rende tributos. Ensina a tratar
com equidade o irmão da tribo, ditando leis de bem-estar coletivo. É o momento que o
homem passa pela primeira vez a pensar na coletividade. O terceiro momento é aquele
em que o homem supera os limites das castas e desenvolve o sentimento altruísta de bem
e a proteção do mais fraco. Essa fase se inicia com o advento do cristianismo, “religião
que abraça todos os povos e exige uma vida de amor e sacrifício em benefício de outrem”.
Há cerca de 2.000 anos, nasceu na Palestina um menino a quem
chamariam de Jesus. Seus pais, pertencentes à comunidade dos
Essênios, eram altos iniciados. Sua mãe, a Virgem Maria, era um ser
puro, não apenas uma virgem de corpo como qualquer ente é ao nascer,
mas vinha, vida pós vida, cultivando o mais alto grau de pureza e
espiritualidade, virgindade de alma; José, um iniciado de alto grau, que
já em várias vidas se alçara acima da necessidade de ser pai, seguindo
a trilha da castidade absoluta, foi eleito para fornecer a semente
fertilizante para o corpo de Jesus, ato que realizou como um sacramento
e sem desejo nem paixão pessoal (RUGGIERO, 1942, s/p).
O cristianismo, que marca sua origem com o nascimento de Jesus Cristo, é
ressignificado. Assim, não está além da lei da evolução que rege a humanidade. Pelo
contrário, ele e sua família, pertencem a ela. Sua santidade é resultado das sucessivas
reencarnações que os colocam em mais alto grau de desenvolvimento espiritual e moral.
Não por um acaso, Jesus nasceu entre os Essênios: terceira seita Palestina daquele tempo,
eram “devotíssimos, evitavam o elogio próprio, bem como o de seus costumes austeros e
piedosos”. Na visão de Ruggiero, estes eram um ramo da Grande Loja Branca Egípcia
fundada por Tomes III e impulsionada por Amenhotep IV, em 1447 e 1378 a.C. Eram
também chamados “Terapeutas” por curarem os doentes com a simples imposição de
mãos. Habilidade decorrente seu alto grau de espiritualidade e de conhecimento oculto.
Mas mesmo com seu alto grau de evolução, Jesus, ainda teve que se dedicar ao
estudo e a preparação. Até os 30 anos, passa de mosteiro em mosteiro, do Carmelo à
Pérsia, depois ao Egito, onde, na Grande Fraternidade Branca, é submetido a provas pelos
“Altos Hierofontes dos Mistérios Superiores” demonstrando o mais acabado e alto grau
de espiritualidade, terno coração e mente sábia. É declarado “mestre dos mestres”,
117
entregou seu corpo físico perante João Batista, ao espírito de Cristo que baixando em
forma de pomba, nele perdura “desde esse momento até ao Gólgota, onde principia sua
verdadeira missão esotérica: tornar possível o “Christianismo”, ou seja, a “Religião
Universal do Futuro” (RUGGIERO, 1942, s/p)
Jesus e Cristo não são o mesmo ser. Jesus é um espírito de alta evolução que a
partir do batismo, recebe Cristo. Cristo é uma entidade cósmica. Jeová, “diretor dos
Espíritos de Raça e cabeça das religiões como o Taoismo, o Budismo, o Hinduísmo, e
Judaísmo, etc.” entregou o desenvolvimento da humanidade à Cristo, “Senhor do Amor”
que no devido tempo devolverá seu reino ao “Pai”.
Além da ressignificação da vida e obra de Jesus Cristo à luz da doutrina espírita,
o congressista atribui um significado ao símbolo da santíssima trindade (um dos
fundamentos do catolicismo). O “Pai”, o “Filho” (Cristo) e o Espírito Santo (Jeová) “são
os mais altos iniciados de três humanidades que alcançaram o pináculo de seu
desenvolvimento em três longuíssimos períodos de evolução já transcorridos.” O “Pai”
no Período de Saturno, foi o mais alto iniciado da humanidade que hoje são os “Senhores
da Mente”. O “filho” é do Período Solar e sua humanidade são agora os Arcanjos. Por
fim, “O Espírito Santo” vem do Período Lunar, na qual a humanidade hoje são os Anjos.
A própria crucificação é também ressignificada. A missão de Cristo é limpar os
pecados do Mundo (não do indivíduo) e procurar e salvar os que estavam perdidos. A
crucificação de Jesus (receptáculo de Cristo) marca o momento em que a “Senda da
Iniciação” ou “Vida Superior” deixou de ser acessível apenas aos eleitos (Levitas entre
os Judeus, Brâmanes entre os hindus) para ficar aberta a todos aqueles que desejarem
trilhá-la. Desde esse momento Cristo pôde influenciar as pessoas a partir do interior delas.
Durante sua estada na Terra, habilitou um alto “Sacerdote Serpentino” chamado “Sepho”
cuja missão era fundar Escolas Filosóficas públicas que resultaram na criação de uma
antiquíssima seita religiosa perdida no tempo e que foi responsável pela criação da
Pirâmide de Gizet, construída há “três anos siderais” (sendo cada um correspondente a
78 mil anos, de acordo com o autor, chega-se ao número de 243 mil anos atrás)36.
36
A explanação do autor não é livre de contradições. Não esclarece como o Cristo que nunca encarnou,
estando presente na Terra através de Jesus, deu origem a uma seita que originou uma pirâmide há 234 mil
anos atrás. A isso soma-se a ausência de qualquer rigor conceitual, dando entendimento ao termo conforme
a necessidade e a ausência de materialidade das informações. Entretanto, não me deterei nessas questões,
pois não é o objetivo discutir a validade lógica do discurso.
118
O Serpentino ou Cristo (o texto é confuso neste ponto) através de sucessivas
encarnações dirigiu os antigos Alquimistas e fundou a raiz de várias Escolas de Filosofia.
Jesus dirige todas as Lojas esotéricas ou Sociedades secretas. Na Idade Média, “era
brilhante”, Os Druidas da Irlanda, os Trotes do Norte da Rússia, os cavaleiros da “Messa
Redonda”, Os Cavaleiros do Graal representam a espiritualidade do período. Nos últimos
trezentos anos os progressos foram conquistados ao preço da quase total extinção da
espiritualidade. É somente “quando a Ciência se espiritualizar e investigar a matéria do
ponto de vista espiritual, então se instalará o verdadeiro conhecimento do mundo.”
(RUGGIERO, 1942, s/p) A Umbanda está diretamente ligada a esta história de evolução
espiritual e ao conhecimento iniciático de antigos cultos esotéricos.
UMBANDA é a expressão de uma elevadíssima corrente espiritual que
traz para o Povo da América a glória de uma época de luz que ficará na
história. Não é um movimento arbitrário: está obedecendo ao "Plano
Divino". Nada de espiritual nos chega que não tenha uma poderosa
razão de ser; só o homem, usando erradamente sua divina prerrogativa
creadora, faz a desordem na Terra. Por essa desordem que fazemos em
nossas ações erradas, envolvemos nosso corpo de desejos de sujas
vibrações e esgotamos a mente. E assim como Christo limpou as
pesadas vibrações do Globo, estas Esclarecidas Entidades Espirituais
de Umbanda vêem, por intermédio dos médiuns de "Terreiro", despojar
dessas correntes os seres, para lhes permitir novas possibilidades.
Como Christo usou o corpo de Jesus para purificar a aura da Terra, os
Espíritos Guias de Umbanda usam os corpos dos médiuns para limpar
a aura individual dos homens. Como Christo se confina, de quando em
vez, voluntariamente nas pesadas vibrações da Terra, para purificá-la,
também eles, como Ele, se confinam em nossa pesada atmosfera, para
nos servir e nos ajudar a escalar a senda espiritual, em que Eles nos
precederam (RUGGIERO, 1942, s/p).
A valorização das escolas esotéricas e sua correspondência de conhecimentos com
o Espiritismo de Umbanda é também defendida por Alfredo António Rego, da Tenda
Espírita Humildade e Caridade. Primeiro secretário da Federação Espírita de Umbanda,
membro da comissão organizadora e responsável pelo discurso inaugural e de
encerramento do Congresso, apresenta ainda a tese Umbanda e os sete planos do
universo. Nela compara a Umbanda à Ordem dos Roza Cruz.
Do exposto se conclue, eloqüentemente, pela existência de uma perfeita
afinidade entre a concepção do Universo pela Doutrina Rosacruz e a
religião de Umbanda, tal como deve ser entendida e praticada no Brasil.
Verifica-se que os três Planos acessíveis à inteligência humana mais
119
aprimorada estão enquadrados nos três primeiros graus das práticas de
Umbanda, o físico, o astral e o mental, os únicos, aliás, que podem ser
atingidos por qualquer outra religião ou escola filosófica altamente
evoluída (REGO, 1942, s/p).
O esforço de Ruggiero em fundamentar a Umbanda em uma história esotérica e
evolucionista das religiões, relacionando-as a sucessivas fases históricas, a coloca como
ápice do conhecimento verdadeiro. Expressão de uma elevadíssima corrente espiritual é
fruto de um Plano Divino. Os guias da Umbanda têm a mesma função que Cristo, executar
uma limpeza espiritual. Sua diferença está na escala. Cristo, através de Jesus, limpou as
vibrações do planeta. Os guias por meio dos médiuns, limpam as vibrações dos
indivíduos. Os médiuns da Umbanda são como Jesus.
O uso de entidades cristãs Jesus Cristo e o Espírito Santo, e de princípios católicos,
a trindade (Pai, filho e o Espírito Santo), justifica a interpretação do discurso umbandista,
do Primeiro Congresso, como uma estratégia de legitimação social a partir de uma
aproximação com a ideologia dominante. Porém, é preciso salientar o fato de tais
princípios e entidades se encontrarem completamente ressignificadas. Jesus Cristo e o
Espírito Santo, são realocados para uma nova teologia em que não são mais expressões
da vontade de um Deus onisciente, onipresente e infinitamente bom. Eles são a expressão
da própria evolução espiritual. Deus despersonaliza-se e a trindade não representa mais
esse Ser, mas sim, fases evolutivas. Jesus e Cristo não são divinos na mesma proporção e
sentido que na visão católica. Jesus é um “irmão” e tão humano quanto qualquer um. Não
só representa um modelo de evolução a ser almejado, mas é o exemplo de que este modelo
é alcançável. Afinal, Jesus também precisou do estudo e de sucessivas reencarnações.
Na tese O Espiritismo de Umbanda na evolução dos povos, Diamantino
Fernandes, após fazer uma exortação aos mestres da Índia, aos “irmãos africanos” e aos
caboclos, começa uma reflexão sobre o que é a Umbanda, tentando dar respostas a
acusações dela ser um “conjunto de fetiches, seitas ou crenças, originária de povos
incultos”. Seu objetivo é demonstrá-la como “uma das maiores correntes do pensamento
humano”, existente há mais de cem séculos com sua raiz nas mais antigas filosofias. Sua
compreensão é a mesma de Ruggiero. Porém, seu trabalho não se trata de uma
reconstrução histórica, mas de demonstrar a correspondência entre a mais antiga filosofia
do mundo e os princípios do Espiritismo de Umbanda. Busca construir uma
fundamentação filosófica para a religião.
120
Uma das estratégias para afirmar a antiguidade da Umbanda é demonstrar a
antiguidade do próprio nome. Sustenta que o vocábulo vem do sânscrito, raiz mestra de
todas as línguas existentes no mundo.
Sua etimologia provém de AUM-BANDHÃ, (om-bandá) em sanskrito,
ou seja, o limite no ilimitado. O prefixo AUM tem uma alta significação
metafísica, sendo considerado palavra sagrada por todos os mestres
orientalistas, pois que representa o emblema da Trindade na Unidade,
Pronunciado ao iniciar-se qualquer ação de ordem espiritual, empresta
à mesma a significação de o ser em nome de Deus37. Pronuncia-se om.
A emissão deste som durante os momentos de meditação, facilita as
nossas obras psíquicas e apressa a maturação do nosso sexto sentido, a
visão espiritual. BANDHÃ, (Banda) significa movimento constante ou
força centrípeta emanante do Criador, a envolver e atrair a criatura para
a perfectibilidade. Uma outra interpretação igualmente hindu, nos
descreve BANDHÃ (Banda) como significando um lado do
conhecimento, ou um dos templos iniciáticos do espírito humano
(FERNANDES, D. 1942, s/p).
A Umbanda nesse sentido pode ser traduzida por: Princípio Divino, Luz
Irradiante, Fonte Permanente de Vida, Evolução Constante. Concluiu assim, que a raiz
mais antiga da Umbanda está nos Upanishads38 que se vinculam ao conhecimento dos
Vedas39, fonte de todo saber humano das leis divinas. São os livros onde se encontram as
Escrituras Sagradas dos hindus de origem muito antiga, pré-histórica, possivelmente uma
precedência de 10 mil à era cristã. Nestes livros, se encontra a essência de todas as
religiões.
Os Upanishads são um dos ramos dos Vedas. Eles ocupam-se de assuntos
teológicos, filosóficos e metafísicos. Dedicam-se principalmente à natureza do ser
humano e do universo, e sua relação ao Ser Infinito. Encontram-se neles todo o sistema
religioso hindu. Não existe concepção metafísica que não encontre correspondência neles.
Por isso, nele se encontrará uma das raízes do Espiritismo de Umbanda. Praticado no
Brasil, segundo o autor, “há cerca de vinte e cinco anos” (ou seja, tendo início por volta
de 1916).
37
"Bhagavad Gitã" ou a "Sublime Canção da Imortalidade", trad. de Francisco Valdomiro Lorenz, Empr.
Edit. "O Pensamento", S. Paulo, 1936.
38
Textos que formam a base filosófica do hinduísmo.
39
Livro sagrado do hinduísmo.
121
Baseado em um axioma da filosofia hindu, o de que nada vem do nada e se algo
existe é porque sempre existiu, conclui que a Umbanda sempre existiu. Este axioma serve
para demonstrar o fundamento do Espiritismo de Umbanda.
Dilatando o campo do nosso raciocínio, havemos de chegar
forçosamente à convicção de que o Espiritismo de Umbanda existiu
sempre entre as raças espiritualmente mais adiantadas do globo
terrestre, sem o que não poderia existir agora. A prova disto vamos
encontrá-la, de forma copiosa, abundante, em vários dos sistemas
filosóficos mais antigos, dentro dos quais gerações e gerações de povos
de todas as raças têm alcançado o mais alto grau de cultura filosófica
que é possível alcançar em nosso mundo atual (FERNANDES, D. 1941,
s/p).
Logicamente, ao afirmar que a Umbanda “sempre existiu”, nega-se a ocorrência
de uma origem. Mas até este ponto sua preocupação é principalmente fundamentar
filosoficamente a Umbanda, encontrando identificação com a filosofia mais antiga e fonte
de todo o conhecimento humano oriental e ocidental, a filosofia hindu. Esta informação
implica reflexões sobre a corrente leitura do Primeiro Congresso como movimento de
branqueamento que busca uma origem oriental como estratégia para negar uma origem
negra. Diamantino, ao longo de sua exposição, demonstra além das similaridades da
Umbanda com as filosofias orientais, sua similaridade com a filosofia ocidental. Sócrates,
Platão e Pitágoras são alguns dos nomes citados como exemplo da Umbanda nas filosofias
antigas. Mas se o autor é capaz de encontrar em uma das mais prestigiadas filosofias
ocidentais correspondência com o espiritismo de Umbanda, por que escolher o
Hinduísmo como paradigma legitimador? A importância da Índia é tão grande que até
Jesus Cristo, tomado em alta conta por ser guia deste mundo, é reduzido à um transmissor
dos conhecimentos daquela civilização.
O próprio Divino Mestre, Governador do planeta em que ora nos
encontramos, em sua rápida passagem pela terra há 1941 anos, fez
questão de realçar que "não vinha destruir a lei nem os profetas, mas
sim cumpri-la, desenvolvê-la, dar-lhe o legítimo sentido e apropriá-la
ao grau de adiantamento dos homens!" (S. Matheus, capítulo V, 17-18).
Mal interpretando a excelsa grandeza de sua missão e sacrifício,
poderemos dizer que Ele apenas lançou entre os povos do Hemisfério
Ocidental, ainda envoltos nas trevas da ignorância acerca das leis
espirituais, a semente luminosa da Verdade já aceita e cultivada havia
milênios, por outros povos mais velhos — os Orientais (FERNANDES,
D. 1941, s/p).
122
Além de Ruggiero, Rego e Fernandes, outro congressista que sustenta a tese da
antiguidade milenar do Espiritismo de Umbanda e corrobora sua identificação com as
mais antigas filosofias é Tavares Ferreira, um dos representantes da Tenda Espírita de
São Jorge. A forma como aborda o assunto sugere já conhecer de antemão as posições
expostas pela Tenda Mirim de Fernandes e Ruggiero.
Tendo sido focalizados, já, em reuniões anteriores, vários e
interessantes aspectos do Espiritismo em suas antigas práticas, no
Oriente principalmente, de onde nos vêem todos os ensinamentos
filosóficos que conhecemos, — procuramos dar ao nosso estudo outros
rumos que, sem se afastarem do programa preestabelecido para este 1.°
Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, visam demonstrar à
evidência como o Ocultismo, ciência que empolgou gerações e
gerações de povos ocidentais, alguns milhares de anos antes da era
christã, outra coisa não era senão o bom e autêntico Espiritismo de
Umbanda dos nossos dias (FERREIRA, 1941, s/p).
Define como ocultismo o “conjunto de sistemas filosóficos e artes misteriosas
derivadas dos conhecimentos secretos antigos”. Considera provado que todos os
estudiosos do ocultismo foram auxiliados e conduzidos por entidades imateriais. Ele é a
ciência que se propõe a resolver o problema do “SER integral constituído pelo Universo
e o Homem”. As filosofias de Lao-Tsé, Confúcio e Buda bem como de todos os mestres
orientais, chineses, hindus, tibetanos, etc. se nutrem desta sabedoria. Dela também se
originam os sistemas filosóficos Vedanta e Pátañjali. Os filósofos gregos Heráclito,
Pitágoras, Empédocles, Sócrates e Platão bem como os grandes poetas e historiadores,
Homero, Pindáro, Herodoto e Xenofonte, foram iniciados em ciências ocultas em Delfos,
Elêusis, Argos, Crotona e em várias outras cidades. Não há sábio que não tenha sido um
ocultista.
Ao longo de sua exaltação ao ocultismo desconsidera a oposição entre
cristianismo e paganismo. Ambos trazem a mesma verdade. O ocultismo aqui tem a
mesma função que a Umbanda em Diamantino Fernandes. Congregar todas as filosofias
e crenças, mesmo os mais aparentemente, divergentes e contraditórios. O Judaísmo, o
Cristianismo, o Budismo, a teologia egípcia, o Espiritismo de Umbanda são
essencialmente a mesma coisa.
Os filhos e a Tenda de São Jorge, oferecendo esta modesta contribuição
ao 1.° Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, têm em vista
123
dizer que estão firmemente convencidos de que no fundo, em sua
essência íntima, variando apenas a exterioridade do ritual e do símbolo,
idêntico foi sempre o ensino da teurgia, quer em Memphis ou em
Thébas, nos templos de Ninive e Babilónia, na Assíria ou na Caldéia,
nos Santuários do Hymalaia ou do Tibet, nos altares de Júpiter ou de
Apolo.
Ainda hoje, dentro do que se convencionou chamar o moderno
espiritualismo, a essência é a mesma; e para conseguir os estupendos
resultados, o domínio da Natureza, privilégio dos Grandes Iniciados,
terá o estudante de reportar-se aos altos ensinamentos que eram
ministrados nos santuários, se não quizer ficar simplesmente nos
pórticos exteriores do Templo da Verdade.
E' possível, pensam os filhos e a Tenda de São Jorge, que UMBANDA,
cientificamente estudada" e iniciaticamente difundida, possa resolver
praticamente o grande problema da vida na matéria e fora dela, visto
que, Umbanda quer dizer: Luz Divina dentro e fora do Mundo
(FERREIRA, 1941, s/p).
Se o embraquecimento toma como princípio a superioridade das civilizações
europeias, por que é legado ao Oriente a primazia e a originalidade do conhecimento,
inclusive, sobre o Ocidente? Talvez fossem necessários maiores aprofundamentos sobre
a formação do espiritismo e sua relação com o orientalismo para responder à questão. De
qualquer maneira, o branqueamento funciona através da negação da origem afro-
brasileira e indígena da Umbanda. Por serem consideradas culturas e povos “atrasados”,
identifica-se a Umbanda aos sistemas filosóficos vinculados às grandes civilizações, que
expressariam avanços, e no ideal de branqueamento nacional são classificadas como não-
pretas ou caboclas. A depreciação do elemento africano fica ainda mais evidente quando
se reconhece nele sua origem.
3.2 A origem africana
Apesar da defesa de uma origem milenar orientalista ter sido a conclusão do
Congresso, ela não foi a única que se fez presente. Como exposto anteriormente, na
década de 1930, a palavra umbanda era muitas vezes empregada como sinônimo de
religião de negros. Não por um acaso, Diamantino Fernandes se preocupa em negar as
acusações de a Umbanda ser “um conjunto de fetiches, seitas ou crenças, originárias de
povos incultos, ou aparentemente ignorantes” (FERNANDES, D. 1942, s/p).
Este escritor, após sua longa exposição das correspondências entre a Umbanda e
os Vedas, encara o problema da associação entre a Umbanda e a África. Segundo sua
124
hipótese, os mais antigos africanos viveram no mítico continente da Lemúria e lá pelo
contato com os hindus, conheceram a Umbanda. Com o fim deste continente, a raça negra,
devido à sua desmedida prepotência do passado, que teria chegado até mesmo a escravizar
brancos, sofreram o “embrutecimento da raça”, baixado o culto ao nível semibárbaro sob
o qual a Umbanda ficou conhecida. E passou a ser praticada sob ausência completa de
qualquer forma rudimentar de cultura. A Umbanda praticada pelos africanos nada mais é,
nesta perspectiva, que a prática ritual degradada de antigas formas iniciáticas. Ou seja,
mesmo quando se reconhece uma origem africana, ela é concebida de modo negativo e
degradante, bem ao modo da ciência eugênica da época, inclusive na própria ideia de
“degradação”.
Segundo dados conhecidos, a Umbanda vem sendo praticada em terras
brasileiras desde o meado do século XVI, sendo, por conseguinte, a
mais antiga modalidade religiosa implantada sob o Cruzeiro do Sul,
depois do Catolicismo, que nos veio com os descobridores.
Trouxeram a Umbanda, no recôndito de suas almas atribuladas de
escravos, vendidos como mercadoria de feira aos grão-senhores do
Brasil, os primeiros sudaneses e bantus que aqui chegaram cerca do ano
de 1530, procedentes de Angola, da Costa dos Escravos, do Congo, da
Costa do Ouro, do Sudão e de Moçambique.40
Daí o ritual semibárbaro sob o qual foi a Umbanda conhecida entre nós,
e por muitos considerada magia negra ou candomblé. É preciso
considerar, porém, o fenômeno mesológico peculiar às nações africanas
donde procederam os negros escravos, a ausência completa de qualquer
forma rudimentar de cultura entre eles, para chegarmos à evidência de
que a Umbanda não pode ter sido originada no Continente Negro, mas
ali existente e praticada sob um ritual que pode ser tido como a
degradação de suas velhas formas iniciáticas (FERNANDES, D. 1942,
s/p).
Embora não haja uma explícita separação entre “tipos” de Umbanda, aparece no
seu texto uma dicotomia entre a Umbanda praticada pelos africanos, e trazida ao país no
século XVI com os primeiros escravos, e o Espiritismo de Umbanda, que no Brasil teria
se iniciado mais ou menos 15 anos antes desse congresso, ou seja, por volta de 1916. A
primeira é uma forma degenerada de antigas práticas hindus que se confundem com a
“magia negra” e com o candomblé pela ausência de qualquer forma rudimentar de cultura
entre os seus praticantes. O Espiritismo de Umbanda é o retorno aos fundamentos e
40
O autor apresenta como referência para essa afirmação: EDISON CARNEIRO, "Religiões Negras",
Civilização Brasileira, 1936.
125
conhecimentos filosóficos antigos desenvolvido pelos “estudiosos da doutrina de Jesus”
que se dedicam a pesquisar esta grande filosofia e a praticam com a finalidade de
encaminhar as almas para Deus e com o respeito das autoridades brasileiras. Ou seja, a
última é o resultado de um alto grau cultural e por isso goza ou merece gozar de
legitimidade social e a primeira é resultado do atraso cultural e se confunde com outras
práticas religiosas associadas a marginalidade e a criminalidade com a “magia negra” e o
candomblé.
Martha Justina, membro da Cabana de Pai Joaquim de Loanda, concorda com os
demais que o Espiritismo já era praticado na Índia e que ele é tão antigo quanto a
humanidade. Porém, argumenta que, sendo a manifestação dos espíritos uma “emanação
divina” ela se dá em toda a parte e não têm berço em nenhuma nação específica. Assim,
Justina rompe com a visão majoritária de uma origem única para todas as religiões.
Argumenta que sendo a África também habitada por criaturas humanas que possuem alma
e são filhas de Deus, também lá há intercâmbio entre o mundo material e o espiritual, ou
seja, comunicação entre espíritos encarnados e desencarnados. Portanto, também na
África há espiritismo e de lá vem a Umbanda.
As coisas úteis à humanidade obedecem a uma lei imutável; portanto,
não será o simples prazer humano que fará desviar o seu verdadeiro
curso e furtar a sua atuação aos que necessitam de sua proteção. Todas
as religiões foram trazidas de outros países; a Umbanda, por exemplo,
foi trazida da África (JUSTINA, 1942, s/p).
A Umbanda é a Lei espírita praticada pelos africanos que foi trazida ao Brasil em
embrião. Ela era praticada com “ritos severos” e continham coisas “exóticas e
horripilantes”. Os médiuns para receberem espíritos guias (orixás) passavam por
sacrifícios como raspar totalmente a cabeça, tomar banho de ervas, vestirem-se com
roupas brancas e novas, fazer jejum, ficar em retiro durante muitos dias e quando sair
dançar ao som de músicas africanas e em agradecimento sacrificar animais e oferecer
bebidas.
Mas a Umbanda também segue a lei da evolução e ao longo do tempo a
civilização, que acompanha a marcha dos povos, vem modificando costumes e abolindo
abusos, preparando um futuro glorioso para a humanidade. Ao “banho de civilização”
que recebem dão em recompensa a caridade praticada pelos espíritos africanos. A
126
Umbanda tem uma força relativa e quando não é acompanhada da civilização se presta
ao mal e a “magia negra”. Mas com a civilização, evangeliza-se e com amor é a única que
pode combater “a ação malévola exercida por um mal filho de Deus”.
Baptista de Oliveira, que não representa nenhuma instituição, em UMBANDA:
Suas origens — Sua natureza e sua forma também reconhece uma origem africana. Não
só a reconhece como também sugere que “todos são de acordes quantos às suas origens
africanas” (OLIVEIRA, B. 1942, s/p). Muito embora a desloque para o oriente,
especificamente o Egito.
Não obstante as divergências por vezes profundas na concepção que de
Umbanda teem os seus afeiçoados e adeptos, todos são acordes quanto
ás suas origens africanas.
A natureza das suas práticas, revestidas todas elas de tão grosseiros
aspectos, assim como a rudeza do vocabulário com que se processam
os atos da sua estranha liturgia, tudo isto lhes justifica a paternidade:
Umbanda veio do Continente Negro. Também sou desta opinião, muito
embora discorde num detalhe.
Umbanda veio da África, não há dúvida, mas da África Oriental, ou seja
do Egito, da terra milenária dos Faraós, do Vale dos Reis e das Cidades
sepultadas na areia do deserto ou na lama do Nilo.
O barbarismo afro de que se mostram impregnados os ecos chegados
até nós, dessa grande linha iniciática do passado, se deve às deturpações
a que se acham naturalmente sujeitas as tradições verbais, melhormente
quando, além da distância a vencer no tempo e no espaço, teem elas de
atravessar meios e idades em absoluto inadaptados à grandeza e à luz
refulgente dos seus ensinamentos. Com Umbanda foi isto o que se deu
(OLIVEIRA, B. 1942, s/p).
Como a Tenda Mirim, Baptista de Oliveira concebe a origem umbandista em
escolas iniciáticas antigas. Porém essas escolas não seriam na Índia, mas no Egito. Como
a referida Tenda entende que a Umbanda chega a África a partir do declínio de sua
civilização de origem. Mas pensa essa transmissão através da emigração de clérigos e
magos egípcios, pensando a degeneração desses conhecimentos a partir de corrupções
decorrentes da tradição oral.
Percebe-se, porém, um uso bastante amplo da palavra. O que lhe permite
diferenciar três formas de Umbanda e relacioná-las a três regiões e três tipos de
sincretismo. A Umbanda que se conhece no Nordeste a partir da Bahia, onde conservam
a feição e as tendências do oeste africano; a do Sudeste com influência aborígene; e a do
“setentrião brasileiro” seguindo ritos iniciáticos indianos.
127
Como se pode observar, os discursos que argumentam em favor de uma origem
africana para a Umbanda traçavam diferentes imaginações do que seria essa origem. A
idealização de várias Áfricas e civilizações estavam no centro para pensar o vínculo com
a diáspora negra. Porém, todas elas passam por um imaginário do continente africano
como sinônimo de atraso e primitivismo. Uma verdadeira oposição ao progresso e à
civilização que se almeja para o Brasil. A relação da Umbanda com a África é sempre
vista como um problema. Daí a necessidade de uma codificação e organização a ser
realizado por este congresso. Seja sob a negação de uma origem negra ou sob o seu
reconhecimento, o trabalho que estes umbandistas se dispõem a fazer é o de purificação
e limpeza das influências da África Negra sobre o culto. Em outras palavras, propõem-se
subjugar a Umbanda a um “processo civilizatório” que promoveria sua elevação cultural
e a adequaria aos mais altos valores da “civilização moderna”.
Norbert Elias em O Processo Civilizador, afirma que o conceito de civilização
“expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: a
consciência nacional. Ela resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou
três séculos, se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas
“mais primitivas” (ELIAS, 1994, p. 23). Apesar das diferentes compreensões entre
europeus sobre o conceito de civilização, o autor aponta algumas de suas características
e funções. Através deste conceito busca-se expressar o que lhe haveria de especial, seja o
nível de sua tecnologia, suas maneiras, sua cultura científica, e outros. A civilização
descreve um processo ou o seu resultado; diz respeito ao que se move incessantemente
“para frente”; de certa maneira, tal conceito minimiza as diferenças nacionais, enfatizando
o que é comum a todos os seres humanos ou deveria sê-lo, do ponto de vista de quem o
tem. Dá expressão a uma tendência continuamente expansionista dos grupos
colonizadores; e, por fim, é usado basicamente por e para povos que compartilham uma
tradição e situação particulares.
O fato de a civilização expressar um processo ou um resultado associado a uma
“evolução em linha reta”, liga-o ao progresso, outro conceito eminentemente ocidental e
positivista. Segundo Le Goff (1990) seu desenvolvimento explícito se deu entre o
nascimento da imprensa e a Revolução Francesa (1789). Do século XVIII até o início do
século XX, se dissemina a ideia de que o progresso tecnológico arrasta consigo o
progresso político e moral. Durante o século XIX, o auge da ideia de progresso está
128
associado ao progresso técnico-científico, aos sucessos da Revolução Industrial, à
melhoria do bem-estar, do conforto e da segurança das elites, ao liberalismo, à
alfabetização, à instrução e à democracia, embora a ideologia do progresso não esteja
inevitavelmente ligada ao espírito democrático. Auguste Comte exemplifica bem isso, ao
defender “uma aristocracia intelectual do progresso”. Ainda segundo o historiador, essa
ideologia que concebe o progresso como necessariamente benéfica, é aquela na qual se
confunde a civilização europeia como a civilização.
Os congressistas sustentam sua argumentação a partir destes dois conceitos chaves
do pensamento ocidental moderno, a civilização e o progresso. Por mais que se lance o
Oriente como ideal de evolução, o fazem a partir de uma lógica ocidental. Não por um
acaso, o Oriente valorizado é aquele que está em uma dimensão mítica. Como afirma
Elias (1994), o conceito de civilização diminui as diferenças nacionais tendendo a um
universalismo. Por meio de tal conceito, os brasileiros podem superar sua pecha de povo
mestiço, degenerado e atrasado e se tornar mais próximo da sociedade europeia idealizada
como ápice da civilização, na medida em que se adeque aos seus padrões. É um conceito
fundamental que vai ao encontro do projeto de branqueamento do Brasil, e em particular
da Umbanda. Civilizar os cultos primitivos africanos é adequá-los aos valores da
civilização europeia branca. Um projeto que reforça a dominação ideológica colonizadora
sobre este setor da sociedade, parte da classe média fluminense. Vale observar que, neste
sentido, está em oposição à tese de Freyre, para quem a presença da população negra no
Brasil teria afetado a cultura branca da elite econômico-financeira, aspecto primordial da
mestiçagem.
A ideologia do progresso, por sua vez, vai apresentar certa particularidade entre
os congressistas. O progresso, aqui, é entendido como:
[...] a idéia de que o curso das coisas, especialmente da civilização,
conta desde o início com um gradual crescimento do bem-estar ou da
felicidade, com uma melhora do indivíduo e da humanidade,
constituindo um movimento em direção a um objetivo desejável
(BOBBIO, 1998, p. 1009-1010).
É na realização deste objetivo que se acha a medida do progresso. No caso do
Congresso esse lugar é o Oriente, não o do presente, mas sim, aquele que existiu em um
passado tão longínquo que entra na dimensão mítica. É uma ideia de progresso, portanto,
129
ambígua, pois se por um lado, nega o passado imediato, por outro o faz em substituição
a um passado distante. Não é possível afirmar porque a escolha do Oriente. Possivelmente
está relacionado à constituição do próprio espiritismo. Como já colocado anteriormente,
Giumbelli (1997) identificou, no final do século XIX, uma comunidade espírita europeia
composta também por teósofos, ocultistas e cabalistas, que era ao mesmo tempo um
produto e uma reação ao cientificismo da época.
O binômio civilização-progresso compõe a legitimação discursiva do
branqueamento. “Orientalistas” e “africanistas” tem em comum o pressuposto da
inferioridade racial. Vendo a Umbanda como deturpação africana de conhecimentos
milenares ou desenvolvimento próprio da espiritualidade na África, todos estão de acordo
com a necessidade de se civilizar a Umbanda e estão de acordo que civilizar a Umbanda
é eliminar as influências negras. Sua concepção racial vai determinar também as maneiras
pelas quais compreendem as manifestações de pretos-velhos e caboclos.
3.3 Caboclos e Pretos-Velhos
Segundo Artur Isaia (2012), Edison Carneiro foi o primeiro a propagar a presença
do índio no panteão umbandista, acentuando um nacionalismo presente no romantismo
do século XIX como um ser altivo, valente, um cavaleiro à Walter Scott que antecipava
sem saber a “civilização” trazida pelos europeus. Para Edson Carneiro, a imagem do
indígena na sociedade brasileira serviria de fundamento para o estereótipo religioso.
Imagem desenvolvida e disseminada pelo Romantismo brasileiro. O índio se apresenta
como bom e valente, mas liberto dos traços da selvageria. Buscar-se-ia, assim, através
dele, elaborar um modelo simbólico de nação. Renato Ortiz corrobora essa construção da
figura mítica do caboclo como tributária do romantismo brasileiro.
O Brasil acabava de libertar-se do julgo colonial português, o que
tornava necessário fundamentar ideologicamente as raízes do país
nascente. O problema que se colocava era o seguinte: quem são os
brasileiros? Qual a sua raça de origem? A resposta foi fornecida pelos
escritores românticos que transformaram o índio em modelo de
brasilianismo. Aliás não poderia ter sido outra a solução engendrada,
pois sendo o colonizador de origem portuguesa, só restava o negro
como elemento a ser utilizado; mas seria impensável construir o
símbolo da nacionalidade brasileira a partir da pessoa do escravo
africano. Promovido ao grau de fundador da estirpe brasileira, o índio é
130
entretanto despojado de seus caracteres selvagens: sua luta contra o
invasor branco é compreendida como revolta contra o colonizador
português, uma etapa da resistência que teria por objetivo a
independência da Colônia. Apreendido neste discurso literário, o índio
torna-se símbolo de liberdade, mas ao mesmo tempo ele é amordaçado
em sua própria revolta. Como a independência é um fato consumado,
toda a rebelião contra o mundo dos brancos torna-se a partir desta data
um ato injustificável; o aprisionamento do caboclo coincide com a
libertação da nação brasileira (ORTIZ, 1999, p. 72-73).
Assim, segundo E. Carneiro e Ortiz, a imagem do caboclo utilizada na Umbanda,
seria um resgate de um estereótipo do índio construído pelos autores do romantismo no
século XIX e que no início do século XX se encontrava difundido na sociedade brasileira.
Esta é mais uma tentativa de Ortiz, partindo de Carneiro, de demonstrar sociologicamente,
como o contexto histórico e social influenciam na construção do pensamento religioso.
Ainda segundo Isaia (2012), Lísias Nogueira Negrão acrescenta a este modelo, uma
versão do caboclo influenciado pelo espiritismo kardecista. À valentia e força do caboclo
somam-se as virtudes tipicamente cristãs. Além do romantismo, os intelectuais teriam
flertado também com o contratualismo das elites brasileiras do século XIX. Há uma
valorização do branco. Isaia (2012) afirma que a teoria da reencarnação espírita serve
como recurso na primeira metade do século XX para mostrar um passado letrado dos
caboclos. Leal de Souza, por exemplo, estabelece uma ponte entre o Caboclo das Sete
Encruzilhadas com o sacerdócio cristão. Esta ponte evoluirá no mito de fundação para a
figura do padre Gabriel de Malagrida como uma das reencarnações do caboclo.
Na esteira desses autores, além da menção ficcional ao romantismo brasileiro, se
impôs a leitura do cristianismo na criação do caboclo nas religiões afro-brasileiras. Índio
também é sábio e cristão. Paralelamente à representação conciliadora e nacionalista da
Umbanda, soma-se a menção ao estereótipo do negro cultuado, os pretos e as pretas
velhas. Como o índio, o negro aparece dentro das relações de subordinação ao branco e
os espíritos de antigos escravos são valorizados por sua humildade:
Com a parte brasileira dominando assim a parte africana, pode-se
observar uma oposição nítida entre o comportamento valoroso dos
candomblés e a humildade dos pretos-velhos. O mimetismo do transe
traduz fielmente esta superioridade do caboclo em relação ao preto-
velho. Enquanto os espíritos fortes e arrogantes dos indígenas se
manifestam sempre de pé, o invólucro material que envolve o transe
dos pretos-velhos os obriga a se curvarem em direção ao solo, como se
fosse aí seu verdadeiro lugar (ORTIZ, 1999, p. 73-74).
131
Após Renato Ortiz relatar o caso em que um preto-velho por ser tão velho deixa
ao caboclo a direção dos trabalhos, subvertendo as ordens de comando, ele conclui que
esta superioridade é uma construção historiográfica a partir da ideia de que apenas os
índios foram capazes de resistir à escravidão. Assim, enquanto o índio é aquele que se
revolta contra o trabalho escravo, o negro é associado à aceitação passiva ao sistema
escravocrata. Sem alternativa, numa sociedade onde não há mobilidade social, o negro
assume a imagem positiva que a sociedade lhe oferece, a humildade. Na Umbanda não
haveria lugar para os negros quilombolas. Como a Umbanda se concilia com os valores
dominantes, sua memória coletiva conserva apenas aqueles que estariam em harmina com
a sociedade.
Para corroborar essa perspectiva, Arthur Cesar Isaia cita o trabalho de Georges
Lapassade no qual teria comparado a imagem do negro na Umbanda com a imagem na
Macumba e na Quimbanda. Teria este concluído que nesta última há uma versão
contracultural do negro. A oposição que os intelectuais de Umbanda queriam fazer entre
a sua religião e a Quimbanda, a magia branca e magia negra, igualmente apareceria na
imagem dos espíritos negros. No primeiro caso, sábios conselheiros e conciliadores, no
segundo, desafiantes à ordem estabelecida, lutavam pelos seus direitos e se opunham ao
branco opressor. O preto-velho, cultuado pela Umbanda, seria o negro que pela idade não
tinha força física para rebelar-se, por sua sabedoria e conselhos tornava-se familiar ao
universo branco, atenuando as diferenças entre brancos e negros. Ao cultuar o Preto-
Velho, a Umbanda assume o projeto de mestiçagem cultural fazendo o elogio às formas
não biológicas de assimilação para produzir figuras geneticamente brancas, mas
simbolicamente africanizadas. Diluía as polaridades estruturais e se estreitava os laços
entre a casa grande e a senzala, ao gosto gilbertiano e ao gosto de uma representação
nacional bastante propalada pelo estado pós-1930 (ISAIA, 2012, p. 17).
Eles simplesmente representam uma massa anônima de índios e negros
que participaram da formação da sociedade brasileira. A
indeterminação do modelo religioso permite desta forma ao adepto uma
margem de manobra pessoal mais elástica onde sua individualidade
pode se desenvolver. Resulta disso que a personalidade espiritual é
sobretudo a personalidade do médium que o encarna. Dois caboclos de
mesmo nome não terão jamais as mesmas atitudes ou mesmo o
comportamento por não participarem da mesma tradição mítica: atrás
da máscara estereotipada o que se encontra sempre é o anonimato da
história. Pode-se então concluir que paralelamente a uma
132
despersonalização do cosmo religioso afro-brasileiro (os deuses se
transformam em espíritos indeterminados) se desenvolve na Umbanda
a personalização do transe; recusando a rigidez dos esquemas míticos,
a individualização pode se expandir na indeterminação dos espíritos
históricos. Numa sociedade onde o indivíduo é fortemente valorizado,
esta nova forma de comunicação com o sagrado nos parece mais
adequada do que a anterior. Entretanto, embora ocorra este movimento
de personalização do transe, ele está longe de coincidir com a
individualização total, que se manifesta no espiritismo de Allan Kardec.
Conservando os estereótipos que informam a possessão, a Umbanda se
situa meio caminho entre os cultos afro-brasileiros e o espiritismo
(ORTIZ, 1999, p. 77).
O que estes sociólogos buscam demonstrar é que as entidades umbandistas,
particularmente, os caboclos e pretos-velhos, são reflexo de estereótipos raciais e ideais
difundidos na sociedade brasileira a partir do advento da república. Ao ler os anais do
congresso é possível perceber de que maneira estes intelectuais tentam justificar de um
ponto de vista teológico a presença desses espíritos que são estereotipados como
primitivos e selvagens por esta sociedade.
No início de sua apresentação de O Espiritismo na evolução dos povos,
Diamantino Fernandes faz uma saudação à África “sofredora e heroica” e aos “irmãos
africanos”. Estes são pretos-velhos que no decorrer de vidas sucessivas provaram “a posse
de um espírito já devotado ao sacrifício e à renúncia” para alcançar novos graus de
progresso. Este é um ponto importante, pois corrobora as leituras anteriores sobre o preto-
velho. Esta entidade não é uma memória ou saudação a um passado africano. Ao se dirigir
a eles, Fernandez diz: “vós todos que fostes escravos, pais, mães, filhos e filhas de
escravos”. Sua fala demonstra uma reverência ao passado escravocrata. A sua condição
escrava relaciona-se ao seu espírito de sacrifício e renúncia como se a escravidão fosse
uma escolha destes espíritos e como se a escravidão fosse capaz de contribuir em seu
processo de evolução. Ao mesmo tempo, esta ideia pode ser estendida à toda África que,
no imaginário do autor, é um local de sacrifício e sofrimento. A condição escrava do
espírito saudado não resulta em nenhuma reflexão sobre as estruturas políticas e sociais
que os colocaram nesta situação. Sua condição parece se justificar pelas próprias
características do espírito, sempre associado à humildade como condição inata.
Quanto aos caboclos, “habitantes multisseculares das florestas brasileiras” cuja
grandeza está na “simplicidade do gesto” e na “profundeza do conceito”, são saudados
pelos ensinamentos em torno da prática da caridade e do amor ao próximo. Vale ressaltar
133
que a homenagem não se estende ao Caboclo das Sete Encruzilhadas que parece não gozar
do mesmo prestígio com este umbandista do que gozava com Leal de Souza. A única
menção ao Caboclo se dá nas primeiras palavras da tese A medicina em face do
espiritismo de António Barbosa, presidente da Tenda Espírita de São Jorge, na qual lhe
rende homenagem como idealizador da Federação Espírita de Umbanda. Mas, assim
como no caso de Leal de Souza, Barbosa não considera necessário citar o nome de seu
médium, Zélio Fernandino de Moraes.
A humildade ou simplicidade e as sucessivas reencarnações são características
que permitem associar pretos-velhos e caboclos a espíritos de alto grau evolutivo como
Jesus. Nas exposições de Fernandes e Ruggiero se revela uma pretensão universalista da
religião que se confirma nesta pequena saudação com a qual o trabalho da Tenda Mirim
no Congresso se iniciou:
A consolidação da Umbanda é também vossa, pois que, sendo a
Verdade uma só, e numerosos os caminhos que a ela conduzem,
Umbanda se nos apresenta como a estrada luminosa e ampla pela qual
podem seguir juntos, irmanados no mesmo desejo de liberdade e
perfeição, no mesmo sentimento de amor e progresso, povos de todas
as raças, crenças, cores e nacionalidades! A vós também a minha
sincera homenagem, antes de dar início à exposição do trabalho
elaborado pela Tenda Espírita Mirim para o presente Congresso (op.
Cit. s/p).
As extensas argumentações de Fernandes sobre a correspondência entre os
ensinamentos do Espiritismo de Umbanda e as lições dos Vedas o permite valorizar
caboclos e pretos-velhos como possuidores de um “grau de cultura filosófica muito
superior à nossa era ocidental”, provenientes das encarnações “nas mais puras fontes do
pensamento humano”. O que tornaria injustificada o menosprezo dos “companheiros
ditos kardecistas”.
Queremos ressaltar com este detalhe, a razão da afinidade existente
entre os preceitos do Espiritismo de Umbanda e os que a História das
Religiões nos relata como fundamentais em numerosos sistemas
multimilenares do Oriente, seguidos e pregados por quasi trezentos
milhões de seres humanos da índia, como caminhos retos e seguros ao
aprimoramento das almas humanas. Conclue-se, deste fato, que as
entidades dirigentes do Espiritismo de Umbanda podem ter sido
caboclos ou africanos em épocas remotas, por uma necessidade
mesológica, ou outra que escapa inteiramente à nossa compreensão;
mas, o que é absolutamente incontestável, pelo acumulo de provas ao
134
alcance de quantos as desejarem, é que sob aquela demonstração de
humildade e simplicidade a que já estamos habituados, existe e cintila
um espírito altamente evoluido, no desempenho da nobre missão de
despertar em nós o desejo de transpormos o profundo lodaçal de
misérias em que vivemos chafurdados, na vã suposição de nele
encontrarmos a felicidade de permeio (FERNANDES, D. 1942, s/p).
O caboclo e o preto-velho são acima de tudo “imagens” que transmitem humildade
e simplicidade para esconder um “espírito altamente evoluído”. O fato de terem
encarnado, por qualquer motivo que foge à compreensão, como indígenas ou negros
escravizados não reflete sua verdadeira essência, encontrada nas mais antigas filosofias
orientais. Os caboclos e pretos-velhos não são uma manifestação espiritual étnica, de
africanos e indígenas. Eles são a manifestação de espíritos de alto grau evolutivo que
usam a imagem de caboclos e pretos para ensinar um dos valores mais exaltados, a
humildade.
Esta representação aparece em outros congressistas. Eurico Lagden Moerbeck da
Tenda Espírita Fé e Humildade, presidente do Congresso, por exemplo, chega a usar a
palavra caboclo entre aspas em sua tese sobre banhos de descarga: “Esta é a síntese
histórica dos atuais banhos de descarga e defumadores de ‘caboclos’” (Moerbeck,
1942:s/p).
Para Isaia (2012), os intelectuais de Umbanda abraçam o elogio ao Brasil
miscigenado, moreno e sincrético revelando seu caráter interdiscursivo e sua sintonia com
o repensar da nacionalidade do início do século XX. Essa fórmula conciliatória,
entretanto, segundo o autor, não é exclusividade umbandista. No espiritismo brasileiro do
século XIX a conciliação era assumida como princípio compreensivo da disciplina.
Adolfo Bezerra de Menezes, o “Kardec brasileiro”, assume o ecletismo de Victor Cousin.
Ao analisar a doença mental, concilia medicina materialista, crença na vida após a morte,
na sobrevivência da alma e na comunicabilidade entre os espíritos.
A expressão “Espiritismo de Umbanda” aponta para o ideal conciliatório tentando
anular as diferenças entre a doutrina kardecista e as práticas mágicas afro-ameríndias. Os
primeiros intelectuais de Umbanda tentaram a conciliação entre o cientificismo das obras
de Kardec e a manipulação de elementos materiais com fins mágicos, herança africana e
indígena assumida pelas macumbas. A Umbanda aparece como religião, portanto, dotada
de fundamento ético, contrapondo-se tanto às macumbas ou quimbandas quanto ao
135
Candomblé, para eles despidas de fundamentos éticos-religiosos. Assim, a Umbanda é a
utilização ética da magia africana.
Em um momento no qual a ideia de um Brasil miscigenado afirmava-
se como positiva, no qual se atacavam as visões pessimistas e racistas
típicas do final do século XIX, a umbanda, através de seus intelectuais
passa a pensar em uma solução religiosa conciliatória, harmônica, o
mais próxima possível da versão nacional que seria em breve
encampada pelo estado brasileiro pós-1930. A conjuntura intelectual
dos anos 1930, neste sentido, é muito clara, com Gilberto Freyre
defendendo a valorização de uma representação do nacional, que
insistia na mestiçagem e nas mediações socioculturais entre opostos
como casa grande-senzala, sobrados-mocambos (ISAIA, 2012, p. 2-3).
A leitura dos anais do Congresso não deixa de levantar problemas a essa
afirmação. É indisfarçável a desvalorização do africano. Visto como bárbaro, selvagem,
atrasado, seus rituais precisam ser civilizados. A condição de inferioridade do negro é,
para estes autores, prova de que a Umbanda não pode ter vindo deles. É em apenas um
congressista que se encontra um discurso de valorização da miscigenação e em nenhum
a afirmação de uma origem brasileira. Jayme Madruga, delegado da Tenda Espírita São
Jeronymo, na tese A liberdade religiosa no Brasil, assume que a “raça brasileira” tem o
seu berço no período colonial.
É do caldeamento dos indígenas, dos negros, dos portugueses,
espanhóis, holandeses, ingleses e franceses que surgirá o nosso povo,
ainda hoje sem características definitivas, mas que através das últimas
gerações já vai formando um tipo étnico, com suas tendências sociais,
políticas e religiosas já delineadas, as quais olhadas atenta e
cuidadosamente por um observador estudioso e imparcial, lhe darão
elementos para formular uma teoria bastante segura sobre as gerações
futuras (MADRUGA, 1942, s/p).
A imagem que ele tem das raças que compõem o Brasil é a do branco que
representaria a “escória da sociedade europeia”, formado por aventureiros ou degradados,
homens sem fé nem lei, ao passo que africanos e indígenas seriam povos “primitivos”
quanto à ilustração e a ciência, porém, livres da ambição, dos “desvarios sensuais dos
povos civilizados” e do “verniz que oculta a perfídia e a insinceridade”. Sem academias,
pompas e livros, teriam uma ciência profunda e uma medicina que cura sem a
preocupação com o lucro. Suas religiões seriam cultuadas com sinceridade e amor. Suas
136
leis, embora primitivas, seriam imparciais, e suas organizações de família e sociedade
seriam rígidas e severas.
Da relação de opressão entre as raças, os ideais religiosos dos oprimidos teriam se
fortalecido e preponderado. O cristianismo teria se humanizado pelo sangue derramado
de indígenas e africanos, deixando de ser a realidade religiosa ortodoxa, para ser
sincrética. E o problema religioso que na Europa se resumiria ao combate ao judaísmo e
eventualmente ao islamismo, no Brasil, a partir da experiência colonial, tenderia para a
liberdade religiosa.
Mas aquele sangue empobrecido aos embates de uma civilização que já
dava mostra de decrepitude, ao emigrar para o Novo Mundo recebeu o
bafejo do sangue puro que? são dos nossos aborígines e dos escravos
africanos e sob essa influência generosa e boa foi capaz de sacudir os
maus eflúvios de que era portador para quebrantar os preconceitos que
o enleavam (MADRUGA, 1942, s/p).
Jayme Madruga é o único autor no Congresso que adere a uma afirmação positiva
da miscigenação de maneira explícita, onde destaca as contribuições do africano e do
indígena. Esta mestiçagem transformada em ideologia de Estado para a construção de
uma identidade nacional a partir dos anos 1930 “reinventa o país, na medida em que
revela a possibilidade de convivência dos diferentes grupos socioculturais então
residentes dentro das fronteiras político-geográficas brasileiras” (COSTA, 2001, p. 144).
Esta ideologia da mestiçagem, que encontrou em Gilberto Freyre sua maior expressão
intelectual e em Vargas sua transformação em ideologia estatal, também está presente
neste congressista. Entretanto, não se pode dizer que esta interpretação seja dominante no
Congresso. Em primeiro lugar, porque, como se viu, a rejeição ao africano (e nem mesmo
Madruga é capaz de escapar ao estereótipo do primitivismo) é a base para se permitir
encontrar uma origem milenar. Em segundo lugar, Madruga não retirou daí uma
teorização sobre as manifestações de pretos-velhos e caboclos, concluindo o Congresso
que Jesus é o chefe-supremo da Umbanda e que a seu serviço estão “entidades altamente
evoluídas, desempenhando funções de guias, instrutores e trabalhadores invisíveis, sob a
forma de ‘caboclos’ e ‘pretos velhos’41” (CONGRESSO, 1942, s/p).
41
Grifo meu
137
O entendimento destas entidades como uma forma de se apresentar, reforçado pelo
uso das aspas, nega que elas possam ser efetivamente, negros escravizados e indígenas.
Sua identificação passa ao nível do simbólico e apresenta uma função moralizadora. Não
há um elogio à mestiçagem. Disso se conclui que a maior parte das interpretações no
congresso umbandista estavam vinculadas ao cientificismo positivista que se coaduna
com o pensamento kardecismo, o que dificultava enormemente em ver como um traço
positivo a presença negra e indígena na umbanda. Observa-se ainda um paradoxo.
Enquanto aqueles que buscam legitimar as manifestações de caboclos e pretos-velhos não
fazem elogios a pretos e indígenas no meio social, aquele que busca valorizar a
contribuição histórica destes sujeitos não teoriza sobre a legitimidade destas entidades.
Ao mesmo tempo, a construção destes espíritos como símbolo e não condição sugere
como umbandistas tão devotos sejam completamente indiferentes à realidade social
desses grupos. Pois, no fim das contas, não acreditam estar cultuando os espíritos de
pretos e indígenas.
3.4 A Religião Umbanda
Um aspecto importante desse Congresso é a determinação da Umbanda como
religião. Diferentemente dos autores da década anterior que usam a palavra em um sentido
amplo, os congressistas serão enfáticos: Umbanda é religião. Diamantino Fernandes
define a Umbanda como religião, ciência e filosofia na sua segunda tese O Espiritismo de
Umbanda como Religião, Ciência e Filosofia. Seguirá o mesmo procedimento de
Ruggiero e dará seu próprio significado para cada uma dessas categorias. A religião é por
ele definida como o “esforço desenvolvido por uma coletividade para atingir a sua
independência espiritual, sob determinada corrente de pensamento” (FERNANDES,
1942, D. s/p). A religião vincula-se à evolução. Já que a independência só é possível por
meio do aperfeiçoamento moral, o esforço desenvolvido por uma coletividade para esse
fim é a religião.
E' Religião, quando procura implantar a Fé no coração dos filhos,
ensinando-os a crer num Deus Onipotente, Justo, Verdadeiro,
Impessoal, Eterno, Sem princípio e Sem Fim; quando os ensina a elevar
seu pensamento àquela Fonte Inesgotável de Amor e Bondade, da qual
podem socorrer-se em todos os momentos de aflição ou de dor; quando
lhe ensina a perdoar ao seu próximo as ofensas recebidas e a retribuí-
138
las com eflúvios de amor, bondade, paz e harmonia, para que ele sinta,
em seu próprio coração, toda a grandeza destes divinos, dons; quando
procura despertar nos sentimentos de misericórdia, caridade e
filantropia, através dos quais podem ser minorados os sofrimentos e
atribulações dos nossos irmãos e companheiros de peregrinação terrena;
quando, enfim, lhes demonstra que só o amor constrói, eleva e fortifica
as almas, acendendo nelas a chama sagrada que lhes iluminará o
caminho, em sua marcha ascensional e eterna para Deus (op. Cit s/p).
A Umbanda é religião por conduzir o ser humano à um modelo de comportamento
considerado o mais evoluído. Nele se inclui o sentimento de misericórdia, caridade e
filantropia; a fé em um Deus único e com características específicas (Onipotente, Justo,
Verdadeiro, Impessoal, Eterno, Sem princípio e Sem Fim); e uma série de
comportamentos como a prática do perdão, do amor, da caridade e da bondade. Não
concebe o autor que outras religiões possam ter outras crenças, outros princípios e outros
valores, pois a verdade é uma só. Todas as religiões “desde o mais baixo fetichismo até
ao mais alto absolutismo, significam as numerosas tentativas da alma humana para
perceber e realizar o Infinito.”
Martha Justina elege outro critério para definir religião: a prática da caridade.
Assim, tudo o que tem por base a caridade, o amor e Deus é religião. A única diferença
entre as religiões é que enquanto umas têm apenas dogmas, outras têm dogmas e
“fenômenos que constituem ciência.” Como a Umbanda pratica a caridade, ela é religião.
O autor, porém, que melhor construiu um argumento para definir a Umbanda
como religião foi Jayme Madruga, membro da comissão organizadora e representante da
Tenda Espírita São Jerônymo, na tese A liberdade religiosa no Brasil: o espiritismo em
suas modalidades perante as leis. Ela foi baseada em outra tese, apresentada no Segundo
Congresso Afro-Brasileiro na Bahia, por Darío de Bittencourt, em 1937. Atualizou-se
somente com relação à Constituição de 1937 e do Código Penal que veio a entrar em
vigor em 1942.
Como os demais, Madruga parte do princípio de que a verdade é uma só e que as
diferenças entre as religiões são apenas aparências. Também confere ao espiritismo e à
Umbanda uma existência milenar. Porém, diferentemente dos anteriores, define a religião
através do ritual. O ritual “é a lei particular de cada religião para a sua prática”
(MADRUGA, 1942, s/p). A comparação entre a Religião Católica e o Espiritismo de
Umbanda são o seu argumento. As indumentárias, os altares, o uso de essências e
139
perfumes, o emprego de bebidas e alimentos, os hinos e cânticos, são encontrados tanto
no catolicismo quanto no espiritismo.
A conclusão de que a Umbanda é uma religião tem uma importância prática. Isto
lhe confere legitimidade e proteção perante a lei. A maior parte do trabalho de Madruga
é dedicada à análise, ao longo da história brasileira, da questão religiosa na legislação.
Após demonstrar como a liberdade religiosa foi tratada desde o período colonial até o
último código penal publicado, que entraria em vigor só em 1942, argumenta que na
Constituição de 1937 e neste código penal é garantida à religião o tratamento como
“princípio fundamental das liberdades individuais” e a sua coerção é crime. Portanto,
sendo a Umbanda religião, sua prática é legalmente assegurada.
Apesar de reconhecer que desde o início do período republicano a separação entre
igreja e Estado, bem como o respeito à liberdade religiosa, estão presentes nas diferentes
legislações (ou seja, não é um avanço da Constituição de 1937); e apesar de reconhecer
neste período42 os “excessos” da polícia nas campanhas contra o “baixo espiritismo”,
Madruga afirma que não “poderíamos deixar de dar todo o apoio aos poderes constituídos,
não só por convicção, mas também pelo espírito de disciplina que aprendemos de nossos
guias espirituais. ‘É preciso respeitar para ser respeitado’” (MADRUGA, 1942, s/p).
Sendo Madruga o único a abordar o tema, e, portanto, não havendo discordâncias, seu
alinhamento político ao regime estabelecido torna-se representativo do grupo e é refletido
em uma das conclusões do Congresso, a saber:
TERCEIRA — O Espiritismo de Umbanda é Religião, Ciência e
Filosofia, segundo o grau evolutivo dos seus adeptos, estando sua
prática assegurada pelo art. 122, § 4° da Constituição Nacional de 10
de Novembro de 1937 e pelo art. 208 do Código Penal a entrar em vigor
em 1° de Janeiro de 1942, e bem assim o ritual que lhe é próprio, no
mesmo nível de igualdade das demais religiões;
Esta conclusão traz a definição de religião da comissão organizadora, expressa
por Diamantino Fernandes em O Espiritismo de Umbanda como Religião, Ciência e
Filosofia e traz as conclusões de Jayme Madruga, também membro da comissão
organizadora. As conclusões do Congresso marcam uma mudança na concepção sobre a
42
Madruga escreve este texto em 1941, ou seja, em pleno funcionamento do Estado Novo, onde já era
perceptível o autoritarismo do regime e a forte perseguição aos cultos afro-brasileiros.
140
Umbanda. Se até então ela tinha uma definição imprecisa enquanto “religião de negros”,
ela paulatinamente vai se afirmar como religião legítima, porém, ainda não brasileira.
Como indica Lísias Negrão:
Os estigmas sociais contra o negro e sua religião e as renovadas
acusações mais do que seculares de que foram vítimas culminaram com
a atitude ao mesmo tempo de hostilidade e de medo que até hoje
inspiram. É exemplar deste caso o vocábulo macumba: de termo
genérico para todas as religiões brasileiras de origem negra, ou então de
nominativo de uma delas em especial, a de origem banto, desenvolvida
no sudeste do país, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro a partir
de fins do século XIX, passa a ser vista depreciativamente como
sinônimo de superstição de negro, como magia negra que se despreza e
se teme a um só tempo. Não foi por acaso que, para fugir dessas
conotações pejorativas, o 1º Congresso Nacional de Umbanda realizado
em 1941 no Rio de Janeiro adotou este novo nome para se autodesignar
oficialmente. A partir de então as lideranças da religião nascente
empenharam-se no sentido de sua institucionalização e legitimação,
mediante o seu enquadramento legal e a absorção dos valores vigentes,
exorcizando de seus rituais práticas tidas como bárbaras (sacrifícios
sangrentos, uso ritual da pólvora e de bebidas alcoólicas, “despachos”
de Exu) e controlando os terreiros através de sua vinculação a
federações. Seu sucesso foi apenas relativo, pois um número muito
grande de terreiros, mesmo que filiados para garantir uma certa
legalidade de seu funcionamento, permaneceu avesso às exigências das
federações e continuou com suas práticas tradicionais (NEGRÃO,
1996, 79).
Mas, como colocado anteriormente, com o endossamento posterior da visão
triádica e conciliatória da formação nacional, os umbandistas intelectualizados buscaram
a harmonia com o Estado Novo, tentando demonstrar que a religião não era um risco e
estava amparada por lei. Seguiam a tendência de focar sua atuação como representantes
religiosos no âmbito do Estado.
Na harmonia entre o homem de letras e o homem político, intelectuais de
Umbanda elegeram o Estado como interlocutor, pois ele aparecia como potência
realizadora por excelência das reivindicações sociais. No Primeiro Congresso chegam a
endossar a concepção de que a ditadura varguista consubstanciava as verdadeiras
liberdades democráticas. Os umbandistas tinham na ditadura getulista interlocutores de
peso como o general Pedro Aurélio Góes Monteiro. Em O culto da Umbanda em face da
lei (1944), produzido pela Federação, é evidenciado a interlocução desses intelectuais
com o Estado Novo. O documento é endereçado ao Chefe do Departamento Federal de
141
Segurança Pública, coronel Nelson de Melo, e tem como objetivo apresentar o projeto de
criação de um órgão unificador da Umbanda: União Espiritualista Umbanda de Jesus
(UEUJ).
A organização do documento, sua argumentação, não deixa dúvida
tratar-se de uma estratégia de um grupo de intelectuais umbandistas,
visando, tanto a aproximação com o estado e com as autoridades
policiais, quanto o reconhecimento da sua identidade, separando-a por
completo daquelas manifestações rituais passíveis de enquadramento
legal. Frisa bastante o documento, que a UEUJ será um órgão de estudo
científico (assim apresenta a “Linha Branca da Umbanda” com o
mesmo fundamento científico reivindicado pelo espiritismo kardecista)
(ISAIA, 2012, 20).
O comentário no documento do funcionário do Departamento Federal de
Segurança Pública do Estado Novo, o Dr. Carlos de Azevedo, é mais um indício. Ele
acolhe muito favoravelmente o pleito dos umbandistas demonstrando simpatia e
conhecimento da Umbanda. Isaia (2012) acha possível que seja outro intelectual
umbandista militando pela religião no interior do Estado.
Credenciando-se frente ao estado, elegendo-o interlocutor privilegiado
para viabilização dos seus interesses, os intelectuais da umbanda não
tiveram problemas em chegar ao Estado Novo, apesar da propalada
repressão da ditadura às religiões afro-brasileiras. Em um momento em
que o estado brasileiro perseguia um duplo objetivo: firmar-se como
lugar por excelência da resolução dos conflitos sociais e impedir que a
sociedade se mobilizasse para resolvê-los, os intelectuais umbandistas
procuraram encaminhar suas demandas para o que era considerado o
“cérebro da nação”. Pactuaram, assim, com a obra de desmobilização
que, de modo mais visível a partir de 1935, com a Lei de Segurança
Nacional, tentaria dificultar por todos os meios a organização da
sociedade. Dentro desse quadro, nada mais funcional do que colocar à
disposição do estado uma religião que pregava um Brasil conciliador,
harmônico, sincrético. Os conflitos, os jogos de interesses individuais
ou grupais eram apregoados como existentes fora da umbanda, nos
procedimentos mesquinhos da “magia negra”. Propondo neutralizar
caritativamente os conflitos imputados à macumba, ao candomblé e à
quimbanda, a umbanda, através dos seus intelectuais, projetava
credenciar-se, não só como religião nacional, mas como religião
essencialmente acorde com uma representação da nação e do estado
encampada pela ditadura getulista (ISAIA, 2012, p. 21-22).
Apesar do apoio ao Estado Novo ser explicitado em ambos os documentos e a
ideologia da mestiçagem ser encontrada entre seus membros, não há uma teoria sobre os
pretos-velhos e caboclos que supere o pressuposto da inferioridade racial, nem uma
142
exaltação da nacionalidade da religião, vista como milenar. O branqueamento a que estes
congressistas se propõem está muito mais atrelado a uma política de exclusão ou seleção
de práticas e valores negros, que de uma aculturação delas, embora jamais tenham podido
implementá-las em todo o campo.
Figura 5: Aspectos da última missão do Primeiro Congresso Brasileiro de Espiritismo de Umbanda. Vendo-
se no primeiro plano a mesa dirigida pelo Eurico Lagden Moerbeck, ladeado pelos drs Jayme Madruga e Diamantino
Coelho Fernandes; e no segundo plano um aspecto parcial da grande assistência43.
43
Diário Carioca 28 de outubro de 1941. Acessado em 17/01/2022
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093092_03&Pesq=Umbanda&pagfis=7572
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4. De religião brasileira ao mito fundador
A religião nativa em Angola é umbanda
E no Brasil é o candomblé
Quico-quimbundo-quicongo são línguas de lá
Renascendo dentro do corpo dos negros do Ilê
Aiyê em forma de expressão divina o Ilê vem mostrar
Imbundeiro é tradição catana já é facão
Muxixi quem faz o fogo e a mulemba o Aliexé
de Angola
Caminho – Ilê Aiyê
A Umbanda que nasce no Rio já começa a se expandir mesmo antes do início do
Estado Novo. Em 1926 é fundado o Centro Espírita de Umbanda Reino de São Jorge por
Otacílio Charão no Rio Grande do Sul. Em 1932, tem início a Congregação dos
Franciscanos de Umbanda por Laudelino de Souza Gomes, em Porto Alegre. Mas é partir
da década de 50 que se procede um movimento de nacionalização da religião. Junto a esse
processo de expansão com abertura de centros, tendas e terreiros, há as peculiaridades das
diferentes experiências religiosas que tornam o campo e a história umbandista complexa.
Apesar de todo o trabalho de letramento e unificação pelos intelectuais umbandistas,
impera a tradição oral, influenciada pelas culturas regionais, e a “soberania” da entidade
sobre a sua casa.
Afirma Brown (1985) que nos anos anteriores a 1945, este movimento umbandista
ficou limitado a um pequeno grupo no Rio de Janeiro. Somente umbandistas locais e
convidados assistiram ao Congresso. Entre os visitantes estariam kardecistas e membros
da imprensa e não teriam sido chamados membros das religiões afro-brasileiras. Para a
autora, foi durante esse período que a essência da ideologia e da prática do Espiritismo
de Umbanda teriam sido consolidados. Foram feitos esforços para codificá-la e organizá-
la. Esforços que se tornariam muito importantes no pós-guerra. Entretanto, Claudete
Ribeiro de Araújo (2020) informa que em 19 de outubro de 1941 o jornal O imparcial
publicou a matéria Reunidos em assembleia caboclos e africanos onde anunciou a reunião
de 30 centros de Umbanda do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Bahia. Este é um
indício de que essa expansão começou mais cedo e a influência do Congresso foi maior
do que a autora supunha.
144
Figura 6: Dr Jayme Madruga falando ao redator de O Imparcial44
Ainda assim, o ano de 1945 e o fim do Estado Novo marcam um novo período da
história da Umbanda, onde ela passa por um processo de nacionalização tanto geográfica
quanto simbólica. A volta das eleições contribui de duas maneiras com o seu
desenvolvimento. Em primeiro lugar, as eleições de 3 de dezembro de 1945 elegeram
Jorge Amado deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB-SP). O escritor
propôs a emenda 3.218 à Constituição Brasileira promulgada em 1946 que garantiu a
partir de então a liberdade de culto. Em segundo lugar, com o retorno do sistema eleitoral,
os umbandistas transformaram-se em grupo de interesse político. O voto e a representação
política tornara-se o novo meio de relação da Umbanda com o Estado durante o período
democrático. Além disso, parte da estrutura fundada pelo Estado Novo se manteve e se
mostrou eficiente na captação de votos. O nacionalismo e o populismo se perpetuaram
como ideologia e forma de se fazer política nesse período.
Paralelamente, o período entre 1950 e 1980 é aquele em que ocorre o mais intenso
processo de modernização que o país já passou. Verificam-se transformações aceleradas
em todos os setores sociais com alterações estruturais como a relação campo/cidade e a
reafirmação de estruturas implantadas antes de 1950: industrialização, concentração de
renda e integração no conjunto econômico capitalista mundial. Como já abordado, vários
44
Imagem e descrição retiradas de O Imparcial (19/10/1941) acessado em 17/01/2022
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=107670_04&Pesq=Umbanda&pagfis=8032
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autores associam a modernização, urbanização e industrialização, ou seja, o
desenvolvimento do capitalismo no país, ao desenvolvimento da Umbanda. Por isso a
década de 50 será particularmente importante para o crescimento da religião. Emerson
Giumbelli ao analisar o desenvolvimento de algumas religiões nesta década, incluindo a
Umbanda, conclui que:
[...] o nacionalismo é algo que marca presença em várias expressões
religiosas. E ficou sugerido que os diferentes segmentos religiosos
passam, de diferentes maneiras e com distintos resultados, por
processos de modernização. Nesse sentido, é possível afirmar que a
ideia de modernização aplica-se não apenas ao momento histórico geral
pelo qual passa o Brasil, mas também a vários movimentos no campo
religioso, mesmo nos seus segmentos ou aspectos mais tradicionais
(GIUMBELLI, 2012).
Com o fim da perseguição sistemática e a garantia da liberdade de culto, se inicia
um intenso movimento organizacional pelos umbandistas. As casas começam a se
aglutinar em novas federações, agremiações, uniões, conselhos e primados por todo o
Brasil. Chegou-se inclusive, em 1952, a se propor a criação de um papado de Umbanda
aos moldes da Igreja Católica por um grupo de tendas cariocas. Ideia que não foi bem
recebida pelas lideranças em geral. A Umbanda passou a estar constantemente nos meios
de comunicação, em programas de rádio, colunas semanais nos principais jornais do Rio
de Janeiro e em inúmeras publicações de iniciativa própria. Muitas vezes de maneira
positiva. A própria reportagem citada do O imparcial classifica-a como religião “seguida
por homens cultos” (Jornal O Imparcial, 1941, p. 2, apud ARAÚJO 2020, p. 135). Inicia-
se, portanto, um momento de valorização pública da Umbanda.
Em 1949 é fundado o Jornal de Umbanda pela UEUB, antiga Federação
Umbandista responsável pelo Primeiro Congresso. Este foi o principal jornal de Umbanda
na década de 1950 e início de 1960 e representava os interesses do setor médio mais
influente. Seu objetivo era tornar-se um fórum nacional de reportagem e discussão e
fornecer ampla cobertura, estabelecendo contato com umbandistas de outros estados.
Também divulgava eventos, novas federações e novos políticos, entre eles Átila Nunes,
jornalista proveniente de classe média com claras intensões eleitorais e que em 1947 deu
início ao programa Melodias de Terreiro, primeiro programa umbandista na rádio.
146
As novas federações seguiam o modelo organizacional da UEUB: conselhos de
administração compostos por chefes de centros e administradores; trabalho para obter
centros filiados; oferecimento de proteção e outros serviços em troca de uma taxa mensal
e participação nas atividades organizadas pela federação. Sobre a atuação dessas
entidades, Diana Brown relata que
Federações com mais recursos, que advogavam a causa da Umbanda
Pura do setor médio, estavam preocupadas sobretudo em promover esta
forma particular de ritual. Embora tendessem aceitar como membro
qualquer membro que se definisse como praticante de Umbanda,
posteriormente procuravam impor seus próprios padrões de prática
ritual sobre esses centros. Algumas federações chegavam mesmo a
organizar visitas periódicas, de surpresa, para checar o tipo de
cerimônia que lá se realizava. Eu mesma fui ocasionalmente confundida
com um inspetor de uma das federações (BROWN, 1985, p. 22).
As federações competiam pelo recrutamento de filiados que eram a medida do
poder delas. A alta frequência dos líderes das federações na política demonstram os
interesses eleitorais relacionados a esta competição. Se por um lado jamais uma federação
conseguiu filiar um número expressivo de centros, através de suas ligações com os meios
de comunicação de massa e com políticos permitiu que exercessem certo grau de
influência. Os manuais-rituais embora não seguido pela maioria tiveram influência
uniformizante na prática ritual, forjaram elos entre os centros e contribuíram para uma
identidade de grupo. Com o controle dos registros desempenharam importante papel na
legalização e, por fim, como intermediários entre filiados e os líderes comunitários,
políticos e meios de comunicação, as federações auxiliaram no abrandamento das
relações entre não-umbandistas, melhorando a imagem da Umbanda, e, portanto,
contribuindo para sua legitimidade social.
Aproximadamente, seis novas federações foram constituídas no Rio e Estado do
Rio. Três delas, formadas pelo setor médio, seguiam a linha doutrinária da “Umbanda
Pura” nos termos de Diana Brown, ou “Espiritismo de Umbanda”, nos termos deste
trabalho. Uma delas, formada por um ex-membro da UEUB. As outras três seguiam a
orientação de uma Umbanda africanizada. Segundo Brown (1985), neste período, os
terreiros afro-brasileiros começaram a se identificar como Umbanda. Com uma difusão
rápida em outros estados, exerceu influência nos cultos locais moldando-os em uma
cultura religiosa nacional afro-brasileira.
147
A expansão e legitimação da Umbanda estavam envolvidas em processos políticos
locais e nacionais. As reformas eleitorais de Vargas ampliaram significativamente o
sufrágio dentro dos setores urbanos mais baixos. Com o retorno da política eleitoral esta
população ganhou relevância política. No Rio e em outras grandes cidades onde os setores
baixos superavam amplamente os setores médios e superiores, os políticos seguiram o
exemplo de Vargas em cortejar o apoio das massas urbanas usando técnicas de populismo
e apelos pessoais para diferentes clientelas e grupos de interesse. As federações
proliferaram-se e seus líderes buscavam legitimidade e proteção para a Umbanda através
do processo político. Seja em alianças com políticos eleitos ou seguindo carreira política,
diversos políticos viam na Umbanda importantes fontes de apoio.
Em 1956 surge o Colegiado Espírita do Cruzeiro do Sul. Coalizão entre os dois
grupos de umbandistas com as cinco federações mais influentes. A União Espiritista de
Umbanda (antiga Federação de Espiritismo de Umbanda), o Primado de Umbanda (da
Tenda Mirim) e a Ordem Mística Espiritualista Agla-avid (única dessas agremiações
fundada por uma mulher, Diva de Freitas Veloso, a Mestra Yarandasã que ficou
conhecida como a ‘deusa branca da Tijuca’), são três delas, além da Confederação
Espírita Umbandista do Brasil de Tatá Tancredo. O Colegiado teve como primeiro
presidente Benjamim Figueiredo da Tenda Mirim. Seu objetivo era unir e harmonizar as
diversas correntes religiosas-espiritualistas (ARAÚJO, 2020, p. 158).
Ortiz (1999) avalia que o objetivo das federações é centralizar e monopolizar o
poder transformando-se nos únicos representantes legítimos e legais da religião.
Entretanto, seu quadro é heterogêneo. No Rio Grande do Norte e Paraíba existe apenas
uma federação. No Centro-Sul as federações são inúmeras podendo ter caráter regional,
estadual, local e até nacional. Em São Paulo, já se encontra soluções originais. Seguindo
as orientações do segundo congresso (1961) criaram o Supremo Órgão da Umbanda que
congrega tendas e federações de São Paulo. No início dos anos 1970 se apresenta com
uma força religiosa importante, chegando a conseguir reunir no Vale do Paraíba 800
chefes de terreiro (Notícias Populares, 29/11/1973). O programa deste órgão demonstra
claramente a intenção de centralizar o poder de decisão e difundir a fé religiosa.
Em 1961 o Colegiado organizou o Segundo Congresso de Umbanda no
Maracanãzinho, entre os dias 16 e 31 de julho, com milhares de umbandistas de 10 estados
e vários representantes políticos de nível municipal e estadual, que serviu para analisar as
148
mudanças na Umbanda nos últimos 20 anos. No dia 28, houve uma celebração com mais
de quatro mil médiuns com seus uniformes e estandartes reunidos no Maracanãzinho e
mostrando a força popular da Umbanda. O contexto do início da década de 60 permitia
manifestações populares e grupos organizados para debates e mobilização local e
nacional. O Segundo Congresso é expressão disso. Na maioria dos estados, já havia
federações representativas dos umbandistas, além de vereadores e deputados. A máxima
do Congresso foi a união dos umbandistas no país todo. Aceitou-se o vocábulo umbanda
como ‘arte de curar’ e advinda da língua quimbundo (CUMINO, 2010; ARAÚJO, 2020).
Concluiu-se que havia uma heterodoxia na religião umbandista, mas que ela era de todos
e nacional. Apostou-se que os umbandistas deveriam se unir politicamente e eleger
deputados federais e até governadores, pois se percebeu que os umbandistas eram uma
força eleitoral. Fruto deste Congresso é a ideia da Umbanda como religião brasileira, mas
com sua diversidade de expressões. Esse ideal articulador da religião como força nacional
foi bloqueado pela ditadura militar que reforçou novas perseguições aos centros de
umbanda e forçou a religião a sair do campo político e público para entrar na esfera
privada (ARAÚJO, 2020, p. 159).
Na década de 1960, a Umbanda elegeu candidatos próprios em vários estados.
Átila Nunes foi o primeiro deputado estadual umbandista no Rio de Janeiro depois de ter
sido eleito vereador em 1958. No Rio Grande do Sul foram eleitos Moab Caldas, que
também tinha um programa de rádio, três prefeitos e cerca de 20 vereadores.
No caso do setor médio os interesses eleitorais superaram as diferenças de raça,
classe e de rituais no que tange a mobilização política. Tendo em vista ganhar adesão dos
kardecistas, os candidatos preferiam se apresentar como “espíritas”, termo mais genérico
que como “umbandistas”. No caso das umbandas afro-brasileiras, especula-se que seus
líderes foram atraídos por promessas de proteção e legitimidade social, e pelas vantagens
políticas. Dessa maneira as diferenças rituais e ideológicas foram minimizadas para focar
na bandeira da “proteção da Umbanda”.
O Jornal da Umbanda e O Semanário dedicaram páginas à campanha política e à
eleição de candidatos espíritas. No caso do último, havia ainda a defesa de uma aliança
política “pan-espiritista” e da promoção da Umbanda como religião nacional. Os esforços
resultaram em uma representação política significativa, embora as alianças não fossem
permanentes nem tivessem efeito duradouro.
149
As vitórias políticas permitiram que membros dos setores profissionais e políticos
assumissem abertamente sua crença na Umbanda, a defesa de sua religião nas assembleias
estaduais, a discussão concernente à liberdade religiosa e às restrições legais ainda em
vigor (Lei do silêncio que proibia tambores depois das 22h e a proibição do curandeirismo
no Código Civil). Permitiram enfim, alcançar maior institucionalização e legitimidade.
Estes ganhos políticos e a crescente legitimidade estão diretamente ligados ao apoio
eleitoral dos setores populares, o que levou à formação de uma religião pluriclassista
reunindo dois setores sociais distintos com práticas extremamente contrastantes, e
provocou uma tolerância maior, reconhecendo a Umbanda como religião heterodoxa. Os
líderes das federações abandonaram a insistência em uma “Umbanda Pura” e passaram a
se referir a ela como constituída por diversas seitas igualmente válidas. Algumas
federações chegam a redefinir seu nome, como é o caso da Federação Espírita de
Umbanda e Seitas Afro-brasileiras (BROWN, 1985).
O único elemento que reunia o eleitor umbandista era a defesa da Umbanda. Seu
grupo era composto por posicionamentos políticos muito diversificados e nem as posições
partidárias, nem as posições político-ideológicas eram discutidas ou mencionadas nas
campanhas eleitorais para candidatos umbandistas. A Umbanda orientou sua
manifestação política sem uma identificação político-ideológica bem delimitada.
Esta ênfase nos interesses limitados e unificadores de um grupo
particular, típico da política de um grupo de interesse, constitui uma
razão importante pelo qual os grupos de interesse e as estruturas de
patronagem que os sustentam atuaram, frequentemente, para minar
tanto a efetividade da política partidária quanto qualquer confrontação
com questões políticas mais amplas. Os grupos de interesse também
podem servir para mascarar os interesses de classe subjacentes a seus
líderes. Indubitavelmente, muitos dos políticos que apoiam a Umbanda
e cortejam seus eleitores usaram a Umbanda como uma forma de ganhar
apoio para suas próprias agendas políticas, voltadas para os setores
médios e superior, que pouco – ou nada – tinham a ver quer com a
Umbanda, quer com os interesses setoriais de seus partidários mais
pobres (BROWN, 1985, p. 29).
Um exemplo foi o caso de Átila Nunes. Filiou-se a partidos de orientações
populistas de centro-esquerda com maior base nas classes baixas. Em 1958, no Partido
Social Progressista (PSP); em 1962, no Partido Trabalhista Nacional (PTB); e, por fim,
em 1966, no Movimento Democrático Brasileiro (MDB). No último mandato atuou como
150
vice-presidente e secretário da Assembleia Legislativa Estadual. No ano de 1968 ele
faleceu, mas sua atuação foi tão influente que em 1972, Atila Nunes Jr. foi o candidato
mais jovem eleito deputado estadual da Guanabara.
Os umbandistas e os políticos uniam-se em tono de duas causas principais: o
nacionalismo e a defensa de liberdade de religião. O Jornal de Umbanda e O Semanário,
entre outros, colocam a Umbanda como “uma religião brasileira”, “Umbanda, Religião
Nacional do Brasil”, “Umbanda, ideal religioso para o Brasil”, recorrendo
frequentemente a Gilberto Freyre como embasamento para a defesa de um Brasil como
produto singular da miscigenação. O nacionalismo era tema central na política secular
para políticos de diferentes tendências e posicionamentos. Esteve estreitamente ligado ao
desenvolvimento do populismo e foi empregado para obter apoio das massas urbanas.
Este tema repercutiu na Umbanda, sendo instrumento ideal para unificar diversos
interesses sociais e políticos dentro da religião e mascarar suas diferenças (BROWN,
1985).
A intensificação da atividade organizacional é encarada pela literatura acadêmica
como sintoma de um crescimento e expansão vertiginosos das religiões no período.
Emerson Giumbelli (2012) sinaliza para um aumento do universo não católico. Entre
1950 e 1960, protestantes cresciam 62%, enquanto a população em geral crescia 35%. Ao
mesmo tempo, em que espíritas eram 1,6% no Brasil, chegavam a 3,25% em São Paulo e
5,2% no Rio de Janeiro. Em Católicos, protestantes e espíritas, Cândido P. Camargo
encontra em 1958, nas favelas cariocas: 83,5% de católicos, 8,1% protestantes, 6%
espiritas, e 2,4% de pessoas que se declaravam sem religião. Lísias Negrão em Entre a
cruz e a encruzilhada demonstra um impressionante movimento de criação de templos
umbandistas entre as décadas de 1950 e 1970 a partir de registros em cartórios na cidade
de São Paulo. Entre 1945 e 52, a média anual de criação de centros umbandista é de 10,6;
entre 1953 e 59, ela salta para 136,5 e ainda se elevaria mais, para 245,5, entre 1960 e 63.
No Rio de Janeiro, Giumbelli (2012) considera a carreira de Átila Nunes, jornalista e
bacharel em Direito, como sintomática do crescimento da religião. Protagonista do
primeiro programa de rádio umbandista a partir de 1947, foi eleito deputado no estado da
Guanabara em 1958, depois de outros umbandistas falharem nas eleições de 1950 e 1954.
Mas essas constatações sobre o crescimento da Umbanda se dão por meio de análise
151
indireta de dados, visto que, até então, as estatísticas oficiais não levavam em
consideração a categoria “umbanda”, conforme demonstra o seguinte quadro:
Crescime
Recenseamento 1940 1950
nto
Brasil 41.236.315 100% 51.944.397 100% 26%
Católicos Romanos 39.177.880 95% 48.558.854 93% 24%
Protestantes 1.074.857 3% 1.741.430 3% 62%
Espíritas 463.400 1% 824.553 2% 78%
SR / SD 189.310 0% 412.042 1% 118%
Outras 237.255 1% 296.405 1% 25%
Israelitas 55.666 0% 69.957 0% 26%
Ortodoxos 37.953 0% 41.156 0% 8%
O quadro acima faz uma comparação dos recenseamentos demográficos de 1940
e 1950. Nele é possível observar um significativo aumento de espíritas no período. Em
1940 foram contabilizados 463.400 fiéis; já em 1950, foram 824.553, um aumento de
78%. Bem maior que o crescimento da população em geral de 26%. Esse crescimento
resultou em uma alteração na proporcionalidade religiosa. Em 1940, os espíritas
compunham 1% da população; dez anos depois, já chegavam a 2%.
É possível observar também que no mesmo período, tiveram crescimento acima
do da população, os protestantes (62%) e os que se declararam sem religião ou não a
declararam (118%)45. Cresceram abaixo os Católicos romanos (24%), outras religiões
(25%) e os ortodoxos (8%). Israelitas cresceram na mesma proporção que a população
em geral (26%). Cabe observar ainda que o período representou uma perda maior para os
católicos que deixaram de ser 95% para ser 93% da população. Uma queda que tende a
continuar nas décadas seguintes.
Como já atestado, parte dos umbandistas se declaravam espíritas, o que significa
que o crescimento dos espíritas também representa o crescimento da Umbanda. Fica
demonstrado assim como o fim do Estado Novo marca uma nova fase na história da
45
O censo de 1940 apresenta separadamente as categorias sem religião e sem declaração. O censo de 1950
junta essas duas categorias em uma só, não permitindo identificar o crescimento dessas categorias
separadamente. Como o foco da análise está no crescimento espírita, as diferenças entre sem declaração e
sem religião de 1940 foram suprimidas no quadro acima.
152
Umbanda onde há um intenso movimento de organização e institucionalização que
repercutiu em seu crescimento em termos nacionais.
Renato Ortiz (1999) coloca o crescimento da Umbanda como indiscutível, se
procedendo, porém, de maneiras diferentes conforme a região. Realizando uma análise a
partir dos dados fornecidos pelo IBGE e pelas declarações de dirigentes umbandistas
conclui que no Rio atinge seu ápice entre 1952 e 1953, em São Paulo desperta a partir de
1950 e no Rio Grande do Sul começa mais ou menos no mesmo período do Rio, mas seu
crescimento é mais lento. O crescimento da Umbanda se dá sobretudo a partir de 1958,
sendo o período de 1959 a 1967 o de maior crescimento. Isso se deu após o Segundo
Congresso de Umbanda (1961) do qual se originou uma grande difusão do movimento.
Foi o período de maior reconhecimento social da religião.
Considerando os anuários estatísticos do IBGE entre 1964 e 1969, Ortiz (1999)
observa um crescimento umbandista de 324%. Porém, é somente em 1966 que a
instituição passa a diferenciar umbandistas de kardecistas, o que implica que este aumento
não pode ser considerado um aumento real, já que deve se considerar a mudança de
declaração a partir da nova categoria. Mas o que esse crescimento representa em termos
globais?
Crescim
Recenseamento 1950 1980
ento
Brasil 51.944.397 100% 119.002.706 100% 129%
Católicos Romanos 48.558.854 93% 105.861.113 89% 118%
Protestante Tradicional 4.022.343
1.741.430 3% 7% 351%
Protestante Petencostal 3.836.503
Espírita kardecista 859.516
824.553 2% 1% 87%
Espírita afro-brasileira 678.714
Sem religião 1.953.096
412.042 1% 2% 447%
Sem declaração 299.868
Outras 337.561 1% 1.381.286 1% 309%
Judaica ou Israelitas 69.957 0% 91.795 0% 31%
Comparando-se os censos demográficos de 1950 e 198046 identifica-se que ao
longo das três décadas seguintes cresceram acima do engrandecimento da população em
geral (129%), os protestantes (351%), os que se declaram sem religião ou não declararam
46
Os recenseamentos de 1960 e 1970 não trouxeram informações sobre religião.
153
(447%) e as outras religiões (309%). Cresceram abaixo, os espíritas (87%) e os judeus ou
israelitas (31%). O decréscimo de espíritas foi significativo visto que representou uma
perda de proporcionalidade com relação à população brasileira de 2 para 1 por cento,
voltando a mesma situação de 1940.
Por outro lado, é também significativo o fato de o IBGE assumir a diferenciação
entre espíritas kardecistas e espíritas afro-brasileiros em 1980. Segue a mesma lógica dos
espíritas que pensavam o espiritismo brasileiro dentro de uma dicotomia entre um
espiritismo kardecista europeu e um espiritismo africano. Já se viu como esta dicotomia
está no centro do debate sobre a identidade umbandista. Debate que não se encerra nos
períodos anteriores. O reconhecimento da Umbanda em 1966 nos anuários estatísticos e
das religiões afro-brasileiras no recenseamento de 1980 assevera a eficiência do trabalho
de organização, institucionalização e legitimação dessas religiões a partir dos anos 1930.
A incorporação da leitura sobre as religiões afro-brasileiras aponta a influência desta
intelectualidade espírita (incluindo-se a umbandista) na construção da imagem sobre estas
religiões. Ao mesmo tempo, os dados da tabela demonstram que este reconhecimento
público não resultou a longo prazo num aumento de fiéis em termos proporcionais.
Giumbelli (2012) lembra a importância de figuras como Chico Xavier que em
2006 chegou a ser considerado o “maior brasileiro de todos os tempos” por leitores de
uma revista semanal. O espírita mineiro começou a ser conhecido na década de 1930,
quando publica seus primeiros livros, entre eles Brasil, Coração do Mundo, Pátria do
Evangelho. Ele contribuiu para a maior respeitabilidade do espiritismo, sendo a década
de 1950 um marco em sua trajetória. Com uma média de 3 livros por ano entre 1947 e
1958, ele constrói a sua imagem de médium carismático.
Paralelamente, neste momento, ganha visibilidade uma nova modalidade de
prática terapêutica espírita, as cirurgias espirituais. Seu principal expoente foi o
funcionário público de Congonhas (MG) José Pedro de Freitas, mais conhecido como Zé
Arigó, que realizaria curas atribuídas ao espírito de Dr. Fritz. Seu aparecimento causou
controvérsia e ele foi processado duas vezes por curandeirismo. Na primeira vez recebeu
o indulto presidencial de Juscelino Kubitschek em 1956. Na segunda, foi condenado em
1964. Ainda outros núcleos religiosos se desenvolveram no período como a Ordem
Espiritualista Cristã que em 1970 ganhará destaque no Distrito Federal mantendo no seu
panteão “pretos-velhos”, “caboclos” e “médicos do espaço”.
154
Do lado afro-brasileiro, duas figuras que merecem destaque no período, no Rio de
Janeiro, são Tatá Tancredo e Joaozinho da Gomeia. Tancredo da Silva Pinto, que escrevia
regularmente no jornal O Dia e publicou em 1956, com Byron Torres de Freitas,
Fundamentos da Umbanda, é o principal representante de uma vertente umbandista que
surge na década de 1950 onde se reconhece e valorizam-se as origens e elementos
africanos buscando estreitar as relações com o Candomblé e o culto aos orixás. Ao mesmo
tempo, em que umbandistas pretendiam essa aproximação com o Candomblé, torna-se
uma figura pública Joãozinho da Gomeia. Um pai-de-santo, radicado na Baixada
Fluminense nos anos 1950 e 1960, que reconhece a importância da figura do caboclo no
culto africano. Personalidade polêmica, é referência na história do Candomblé do sudeste
brasileiro. Ligado ao Candomblé Angola, modalidade menos tradicional em Salvador,
que permitia o culto aos orixás em paralelo ao culto aos caboclos, teve sua iniciação
questionada ainda na Bahia. No Rio, teve uma vida ligada ao espetáculo. Se apresentou
publicamente com danças e adereços que remetiam à religião, em boates e teatros, sendo
aclamado o “maior bailarino típico do país” em 1952. Manteve forte relação com a escola
de samba Império Serrano, onde desfilava. Tinha ainda, como característica
“polemizadora” no período, sua aberta homossexualidade.
O mesmo ano do golpe militar de 1964 foi o ano em que deixa de se exigir registro
na polícia para o funcionamento de terreiros/casas de umbanda, mas se mantém no
cartório. Brown (1985) tende a minimizar os impactos da ditadura sobre a Umbanda. Um
pequeno número de políticos umbandistas, mais abertamente de esquerda, foi cassado no
Rio Grande do Sul e em São Paulo. No Rio, alguns líderes de federação, também mais à
esquerda, abandonaram o cenário político da Umbanda. Criou-se uma maior
homogeneidade e conservadorismo no seio da religião. Militares se tornaram mais
frequentes em cargos de liderança. Isso melhoraria sua imagem junto ao governo e sua
segurança. Por outro lado, o uso da Umbanda como instrumento de controle político
tornou-se mais frequente, assim como aumentou a influência ideológica da ditadura no
interior desta religião.
A ditadura militar, contudo, não negou os direitos políticos de cidadãos enquanto
umbandistas, nem a liberdade religiosa. Observa-se, neste período, que o registro dos
centros passou da jurisdição policial para a civil, a Umbanda foi reconhecida no censo
oficial, e feriados religiosos foram incorporados aos calendários públicos locais e
155
nacionais. Embora essas conquistas tenham sido resultado do trabalho de políticos locais,
não sofreram resistência do governo. Na opinião de Diana Brown, esse apoio,
provavelmente, também tinha um direcionamento contrário à Igreja Católica, uma vez
que muitos líderes religiosos católicos assumiram um posicionamento político de
oposição ao regime militar.
O apoio do regime à Umbanda realça tanto o sucesso da Umbanda em
criar uma posição pública de não-alinhamento político quanto o
conservadorismo político basilar subjacente a esta posição. O fato de a
Umbanda ter conseguido contar com igual apoio de políticos radicais,
durante o início da década de 1960, e de chefes militares no pós-1964
testemunha a flexibilidade política que um grupo de interesse religioso,
politicamente não alinhado, pode alcançar. A criação pela ditadura de
clima político no qual questões e posições políticas não podiam ser
discutidas abertamente determinou simplesmente que o mundo da
política se aproximasse da posição que os políticos umbandistas
mantinham desde o início de suas atividades políticas – ou seja, que as
questões e posições políticas não devem ser discutidas (BROWN, 1985,
p. 36).
Outra dimensão importante no desenvolvimento da Umbanda está relacionada às
mudanças culturais a partir da década de 1960. Reginaldo Prandi (1998) considera que
enquanto a Umbanda já se consolidava como religião aberta a todos, as religiões afro-
brasileiras ainda podiam ser consideradas nessa época, religiões de negros. Segundo o
autor, apesar de todos os esforços, a Umbanda ainda era olhada com preconceito.
Liderada por pessoas de classe média baixa como oficiais militares, policiais, pequenos
comerciantes, donas-de-casa, a Umbanda era chamada de “baixo-espiritismo” e vista com
reservas, não sendo capaz de atrair intelectuais, artistas e jornalistas de expressão como
acontecera com o espiritismo kardecista. Esta afirmação se torna problemática quando se
observa a intensa atividade intelectual de umbandistas no período Vargas com intensa
produção de publicações em jornais, conforme visto anteriormente.
Em 1960, com a larga migração do Nordeste para as cidades industriais do
Sudeste, o Candomblé começou um processo de hibridização: o Candomblé disputava o
território da Umbanda e umbandistas começaram a se iniciar no Candomblé,
considerando-o mais misterioso, poderoso e forte. Prandi (1998) destaca que neste
período há uma intensa efervescência cultural com profundas mudanças em relação aos
modos de vida e aos códigos intelectuais, quando a racionalidade é posta em suspeição.
156
São os anos da contracultura, da recuperação do exótico, do diferente, do original. A
cultura indígena e a antropologia redimensionam a etnografia para fazer política
indigenista. Em busca de raízes a Bahia se torna lugar fundamental.
Nesse período da história brasileira, as velhas tradições religiosas de
origem africana até então preservadas na Bahia e outros pontos do País
encontraram excelentes condições econômicas para se reproduzirem e
se multiplicarem mais ao sul; o alto custo financeiro dos ritos deixou de
ser um constrangimento que as pudesse conter. Ao mesmo tempo, no
âmbito desse movimento de classe média que buscava por aquilo que
poderia ser tomado como as raízes originais da cultura brasileira, muitos
intelectuais, poetas, estudantes, escritores e artistas de renome foram
bater à porta das velhas casas de candomblé da Bahia. Ir a Salvador para
se ter o destino lido nos búzios pelas mães-de-santo tornou-se um must
para muitos, uma necessidade que preenchia o vazio aberto por um
estilo de vida moderno e secularizado, tão enfaticamente constituindo
mudanças sociais que demarcavam o jeito de viver nas cidades
industrializa das do Sudeste, estilo de vida já – quem sabe? – eivado de
tantas desilusões (op. Cit. p. 159).
Os movimentos de juventude da esquerda foram intensamente atuantes na música
e no teatro, ao mesmo tempo, em que se desenvolvia uma concepção de sociedade
valorativa do pobre, do negro, do explorado e do marginalizado. Neste contexto, a
intelectualidade brasileira participou ativamente de um projeto cultural de recuperação
das raízes que remetia diretamente à Bahia. A divulgação da religião na arte,
especialmente na música popular, atingindo as massas através do rádio e da televisão,
contribuíram para reduzir a sua marginalidade. A “nova estética da classe média
intelectualizada” do Rio de Janeiro e São Paulo dos anos 1960 e 1970, ao adotar artistas
e intelectuais baianos, ajudou na legitimação social de elementos da cultura negra e de
origem africana, tomando a Bahia como “raiz” da brasilidade. Essa legitimação se
alastrou e atingiu também os umbandistas que até então buscavam negar essa
africanidade.
Começava o que chamei de processo de africanização do candomblé
(Prandi, 1991a), em que o retorno deliberado à tradição significa o
reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram deturpados e
perdidos na adversidade da diáspora; voltar à África não para ser
africano nem para ser negro, mas para recuperar um patrimônio cuja
presença no Brasil é agora motivo de orgulho, sabedoria e
reconhecimento público, e assim ser o detentor de uma cultura que já é
157
ao mesmo tempo negra e brasileira, porque o Brasil já se reconhece no
orixá (op. cit. p. 161 – 162).
No Segundo Congresso Brasileiro de Umbanda, em 1961, um dos objetivos foi
justamente reafirmar a Umbanda como religião brasileira. Outro, foi rever a origem do
vocábulo, que agora teria origem na língua africana Quimbundo. Esta mudança de postura
reafirma a influência da valorização da cultura negra na Umbanda. Porém, essa
relativização feita pelos novos congressistas não levam a um movimento de
reafricanização.
Uma última palavra. No final da década de 70, começou a se esboçar
no Brasil um fenômeno de “reafricanização” de diversas manifestações
culturais. É o caso da revalorização do candomblé e do surgimento dos
blocos afros em Salvador. Essa reinterpretação dos valores tradicionais
acompanha a emergência dos movimentos negros que denunciam o
racismo na sociedade brasileira, estendendo-se uma consciência negra
junto a diversas manifestações culturais. É interessante lembrar que não
foi para a Umbanda que esse esforço de valorização se dirigiu. A
religião umbandista, ao se definir como nacional, de alguma maneira
infligiu uma morte branca a seu passado negro. Essa nova consciência,
cultural e política, teve que buscar outros espaços para se manifestar.
(...) Como uma religião brasileira, a Umbanda foi obrigada a integrar
sua cosmologia às contradições de uma sociedade de classe, que assina
ao negro uma posição subalterna dentro de um mundo de dominância
branca (ORTIZ, 1999, p. 7).
Dos anos 1950 aos 1970, a Umbanda gozou de relativo prestígio e contou com o
apoio significativo de políticos. Através dessa relação foi construída uma ponte entre as
necessidades dos adeptos e o poder público. No final dos anos 1970 a Umbanda começou
a sofrer críticas nos jornais. Nas décadas seguintes acontece o que Lísias Negrão chama
de “refluxo umbandista”. A difusão do estilo de vida americano no Brasil, levou a uma
perda pelo interesse no incentivo à cultura brasileira e a uma consequente perda de espaço
e apoio para a religião que buscou na brasilidade a sua legitimação. Ainda sobre esse
período Diana Brown avalia:
Analisando o desenvolvimento da Umbanda depois de 1970 e como ela
se apresenta no Brasil de hoje, pode-se perceber os enormes ganhos
alcançados em sua legitimidade social durante um período de 40 anos
e, ao mesmo tempo, o estigma social que continua a ser relacionado a
ela. De uma maneira análoga às mudanças de status associadas com
grupos minoritários em geral, os líderes da Umbanda venceram muitas
batalhas contra a discriminação legal, mas não foram bem-sucedidos
158
em apagar o preconceito social existente contra ela. Isto pode ser visto
na natureza limitada de suas mudanças quanto a status, como elas foram
incompletas, e nas contradições que ainda cercam a imagem pública da
Umbanda (BROWN, 1985, p. 37).
Ainda na avaliação da autora, enquanto a autorização para funcionamento dos
terreiros passou do registro na delegacia para o registro civil, ainda não foi reconhecida
legalmente como entidade religiosa e não recebeu a isenção de impostos concedida por
lei às religiões de “âmbito nacional”. Foi incluída no censo (1965), porém o estigma social
faz com que a maioria dos umbandistas não confessem sua fé. Embora tenha alcançado
certo reconhecimento público, existe ainda um conflito entre sua imagem enquanto
religião e enquanto folclore. Os feriados religiosos da Umbanda ganham espaço nos
calendários nacional e local. Incluiu-se temas da Umbanda em cerimônias públicas como
o dia da Abolição, 13 de maio, dedicado aos pretos-velhos. Aumentaram sua participação
em feriados católicos. Torna-se cada vez mais institucionalizada, tanto em termos social
e cultural, quanto em termos políticos. Contudo, corre o risco de ser paternalizada e ser
tratada por políticos e pelo público como aspecto singular do folclore e não como religião.
4.1 O mercado religioso
Renato Ortiz (1999) considera que a Umbanda se legitima na medida em que
integra os valores propostos pela sociedade global. Paulatinamente, supera a recusa e
alcança a aceitação social, sensível no que se refere ao mercado religioso. Isto só possível
pelo trabalho de padronização e codificação de normas imprescindível para unificar o
culto e criar uma “marca umbandista”. Enquanto a Umbanda tende a integrar o campo
religioso legítimo ela entra em competição com outras instâncias religiosas. Sua relação
com a Igreja é estabelecida, então, em termos de um mercado religioso. Tal conceito se
define como “um conjunto formado por ofertantes e demandantes de bens e serviços
religiosos” (OLIVEIRA e NETO, 2014). Os ofertantes são organizações religiosas e os
demandantes são os fiéis. Quanto à concorrência, o mercado religioso se configura entre
um perfil monopolista e um perfil caracterizado como de livre competição.
A partir da década de 1950, a Igreja Católica, através da recém-criada Conferência
Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), proclamou entre as ameaças à supremacia católica
(que incluíam o protestantismo, o comunismo, a maçonaria, entre outras), o espiritismo
159
como a mais perigosa. Constituiu então uma comissão anti-espiritismo que centrou seus
esforços na oposição à Umbanda, denunciando os “católicos-espíritas”. Em conferências
públicas, programas de TV, livros, panfletos e artigos, a Umbanda era denunciada como
fraude. O principal líder desse movimento foi o frei franciscano Boaventura
Kloppenburg.
Entre 1951 e 1952, a Umbanda atinge seu ponto máximo de crescimento no Estado
da Guanabara. No Rio, em 1940, somava-se 75.149 espíritas; em 1950 esse número foi
para 123.775 (ORTIZ, 1999). Em outubro de 1952, a CNBB foi instalada no Rio de
Janeiro. Entre 12 e 19 de agosto do ano seguinte ocorreu a Primeira Sessão Ordinária da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, onde se definiu várias medidas sobre o
Espiritismo e sobre os católicos que fossem surpresos praticando o Espiritismo ou
frequentando suas reuniões. Nessa reunião foi ainda citada a criação da “Secção Anti-
Espírita” do também recém-criado Secretariado Nacional de Defesa da Fé e da Moral, do
qual Kloppenburg torna-se diretor, e por meio do qual foram publicadas várias obras
contra o espiritismo e a Umbanda.47
Além dos livros, Frei Boaventura usa a Revista Eclesiástica Brasileira, na qual
foi redator de 1951 a 1972, como divulgadora da “Campanha Nacional Contra a Heresia
Espírita” que tem seu marco na publicação do artigo Começa a Campanha Nacional
Contra a Heresia Espírita. São publicados ainda pelo próprio frei na revista: A
Cristologia do Espiritismo, O alarmante crescimento do baixo espiritismo e outros. Em
uma dessas publicações de 1952 o frei explica o que trata por Espiritismo:
Primeiramente convém saber que nem todos os espíritas professam e
propalam a mesma doutrina. Também aqui no Brasil existem diversas
correntes que se combatem mutuamente. Mas a grande maioria dos
nossos espíritas seguem ao “mestre” Allan Kardec, que é o pseudônimo
do escritor francês Leão Hipólito Denizart Rivail (1804-1869). É o
espiritismo Kardecista ou Kardequiano que também se diz Alto
Espiritismo. Outra corrente espírita brasileira, também bastante forte,
ainda em evolução, preferiu ultimamente o nome de Espiritismo
Umbandista ou da Linha de Umbanda, chamada também Baixo
Espiritismo, mais conhecido sob o nome popular de Macumba. São
essas as duas organizações principais. Independente delas, diferente
também em seus princípios doutrinários, temos o Espiritismo Racional
e Científico (Cristão) do Centro Espírita Redentor (Rio, com filiais no
160
interior), e outros movimentos “espiritualistas” ou esotéricos
(Kloppenburg, 1952 apud SCHERER, 2020).
O que se combate é tanto o espiritismo kardecista que toma como principal
referência a figura de Allan Kardec, quanto a Umbanda tratada como sinônimo de “baixo
espiritismo” e “macumba”, além de outras formas de espiritismo que despontavam na
época como o do Centro Espírita Redentor. Se os intelectuais do Espiritismo de Umbanda,
como Leal de Souza, valorizavam e legitimavam a religião a partir do temor do feitiço e
da magia negra, frei Boaventura deslegitima estas religiões negando a verdade da
manifestação dos espíritos e dos feitiços.
Concluímos, pois, que a magia ou a necromancia como tal (ou o
Espiritismo) é teologicamente impossível: o homem não dispõe de
meios naturais para obter ou provocar efeitos preternaturais. Não
existem "sacramenta diaboli". As práticas naturais da evocação não são
nem podem ser a causa eficiente da manifestação de espíritos do além.
E por isso também não há e nem pode haver atuação diabólica
provocada nas sessões espíritas ou nos terreiros de Umbanda. Pela
mesma razão é-nos lícitos afirmar que os despachos, feitiços ou
malefícios, quaisquer que sejam, ou de qualquer origem, são como tais
ineficazes (Kloppenburg, 1957 apud SCHERER, 2020, p. 127-128).
A negação da existência de uma possibilidade intencional de evocar espíritos ou
causar efeitos sobrenaturais com despachos não impede que o espiritismo e especialmente
a Umbanda, sejam vistas como um espaço de atuação diabólica:
Ora, não há dúvida de que o Espiritismo faculta ao demônio o ambiente
apropriado, o mais propício que o espírito satânico possa ambicionar.
Tôdas as disposições objetivas e subjetivas aí estão. Nada,
absolutamente nada falta para que o demônio se sinta à vontade e em
casa própria. Dire-se-ia que o centro espírita e principalmente o terreiro
de Umbanda é o domicílio de satanás, como o templo cristão é a casa
do Senhor. O próprio arranjo do ambiente, a crédula prontidão dos
presentes, a doutrina anticristã de que estão impregnados, a atitude de
desobediência contra Deus, a disposição de revolta contra a Igreja, a
convicção de total desprevenção dos que já não acreditam no inimigo,
sobretudo a nervosa expectativa de receber e acolher mensagens do
além, e, como se tudo isso não bastasse, o estado de transe inconsciente
e aberto para tôdas as sugestões e insuflações, venham donde vierem, -
oh! O demônio não seria Satã ("adversário”), se não se prevalecesse de
tão descomunal ocasião para avassalar aquelas almas (ibid, p. 128).
De modo geral, o discurso da Igreja colocava os fenômenos espíritas como
naturais ou fraudes que poderiam ser explicadas cientificamente, associando a
161
mediunidade ao hipnotismo, a distúrbios mentais e a faculdades psíquicas inatas. Para a
além dessa falsidade há efeitos maléficos sustentados teologicamente. O ambiente
proporcionado pelas diversas modalidades de espiritismo, com destaque para a Umbanda,
é propício para uma atuação espontânea de Satanás sem que os praticantes tivessem
qualquer poder para evocá-lo ou afastá-lo. Indo ainda além, o frei não se opõe apenas às
manifestações espíritas. Se opõe também às ações sociais promovidas por tais, vista como
propaganda. D. Vicente Scherer, em entrevista à Rádio Gaúcha, em agosto de 1957, teceu
críticas a doação de um terreno pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre à Sociedade
de Umbanda para a construção de um hospital. O arcebispo argumenta que sendo a
Umbanda uma doutrina equivocada, divergente do catolicismo, promotora do
“paganismo” e “aniquilamento do cristianismo”, enganando as pessoas com o
charlatanismo e curandeirismo, afastando-as do tratamento médico adequado; a
construção do hospital representaria um ato contrário ao progresso social. E a Igreja
Católica se opunha veementemente a ela. Por fim, defende a construção do Hospital da
Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e critica o favorecimento do poder público à
Umbanda. Cabe ainda ressaltar que embora a Igreja lançasse os mesmos argumentos e
críticas ao espiritismo kardecista e à Umbanda, os ataques a esta eram carregados de uma
visão extremamente negativa e pejorativa com relação à etnicidade negra. A Umbanda
era, para D. Vicente, a “revivescência das crendices absurdas que os infelizes escravos
trouxeram das selvas de sua martirizada pátria africana” (SCHERER, 2020, p. 160-161).
O programa eclesiástico aparece assim como verdadeiro esforço de
marketing, onde se pretende a qualquer custo influir na lei da oferta e
da procura dos bens religiosos. Respondendo as inclinações místicas do
povo brasileiro, a Igreja pretende equilibrar a oferta espírita com o
lançamento de novos produtos religiosos. Desta maneira aos passes
magnéticos e às invocações dos espíritos, ela contrapõe a bênção dos
enfermos ou o culto às almas do purgatório. São Jorge (Ogum), São
Cosme e Damião e (Ibejis) são os santos que devem justamente ser
submetidos a um maior controle do aparelho eclesiástico, pois trata-se
de elementos que estão normalmente integrados no sistema sincrético.
Outro ponto do documento da CNBB revela de forma explícita sua
preocupação a respeito da concorrência religiosa. Antecipando-se a
seus concorrentes, a Igreja pretende neutralizar a eficácia do
recrutamento espírita desenvolvendo intensamente um programa de
assistência social (ORTIZ, 1999, p. 206).
162
Diana Brown (1985) tende a minimizar o impacto desses ataques, embora
reconheça que possam ter contribuído para uma imagem social negativa da religião. Vê
as ofensivas da Igreja, principalmente, como uma justificativa para a unificação e
mobilização política dos umbandistas que até então pregavam a isenção e a separação
entre religião e política. Entre os terreiros, era comum a proibição de participação política
dos seus membros até que os ataques da Igreja Católica começassem. As investidas da
Igreja, seriam segundo a autora, um dos elementos que motivaram as campanhas pela
eleição de representantes políticos umbandistas.
Em 1962 é realizado o Concílio Vaticano Segundo. A Igreja Católica no Brasil
adota uma política de “pluralismo litúrgico”. Proclama a Umbanda uma religião válida
em si e faz algum esforço para capitalizar os aspectos sincréticos do afro-catolicismo.
Não deixa de ser irônico que ao mesmo tempo que os líderes do setor
médio da Umbanda Pura estivessem procurando influenciar os grupos
afro-brasileiros na direção de uma Umbanda “embranquecida” e
desafricanizada, a Igreja Católica estava tentando se movimentar
exatamente na direção oposta, no sentido de uma maior tolerância das
influências africanas nos rituais populares (BROWN, 1985, p. 34).
Em 1964, diante do desenvolvimento incontestável do mercado religioso
brasileiro, segundo Ortiz (1999), e das resoluções do Vaticano II, a postura da Igreja
muda. Ela passa a valorizar ritos, usos e costumes da religião umbandista vendo-a como
um meio de ser cristão à brasileira. O problema do mercado é colocado em novos termos.
A Igreja passa a considerá-la como forma mais eficaz de ensinamentos bíblicos. O
ecumenismo não elimina o proselitismo, a “propaganda”, mas a recoloca em termos
pluralistas de adequação a uma economia de mercado religioso integrado a um sistema
de livre concorrência. A Umbanda se torna parceiro legítimo dentro do mercado
concorrencial religioso.
A aceitação do movimento umbandista pela Igreja, não se faz, pois, ao
acaso, ela segue a linha histórica das religiões que se batem por sua
legitimação social. Fruto das transformações sociais que ocorreram no
Brasil no início do século XX, a umbanda se impõe hoje com toda a sua
força. Dotada de meios modernos de comunicação de massa, livros,
jornais, revistas, rádio, acesso à televisão, a Umbanda desponta como
uma religião nacional e nacionalista, a única a reivindicar uma
nacionalidade 100% brasileira, em oposição às crenças importadas.
Entretanto, o fruto do amálgama europeu-índio-negro pouco tem a ver
163
com os outros símbolos de brasilidade, por exemplo, Macunaíma ou a
poesia Pau-Brasil. Trata-se sobretudo da vitória da moral caritativa, da
homogeneidade do sagrado, por detrás da qual se escondem
calmamente as contradições de classe e de cor da sociedade brasileira
(ORTIZ, 1999, p. 210).
Dessa maneira, esta brasilidade é parte do processo de branqueamento ao apagar
uma origem negra e criar uma homogeneização que toma como centro uma “moral
caritativa” característica do cristianismo. A legitimação da Umbanda só se torna possível
quando se aceita esta moral como validador do que é certo, errado bom e mal. Um último
aspecto da concorrência entre religiões que a Umbanda se insere está na forma como ela
se apropria de parte das críticas que sofre e as endereça aos cultos afro-brasileiros e aos
segmentos menos ocidentalizados. Este é mais um fator que faz com que Renato Ortiz
conclua que na medida em que a Umbanda tende a integrar o campo religioso legítimo
ela entra em competição com outras instâncias religiosas.
4.2 Tatá Tancredo e o africanismo na Umbanda
Servir à causa da “Umbanda-Candomblé” que congrega todos os cultos
Afro-Indígenas-Brasileiros tem sido o objetivo de muitos respeitáveis
cidadãos e cidadãs, cada grupo possui seu campo benemerente de
estudo e trabalho, sempre com a finalidade de engrandecimento da
“Religião Umbanda-Candomblé do Brasil” (PINTO, s/d, p. 244 apud
ARAÚJO, 2020, p. 156).
Tancredo da Silva Pinto escreveu regularmente no jornal O Dia e publicou em
1956 com Byron Torres de Freitas Fundamentos da Umbanda, reconhecendo as origens
e elementos africanos e estreitando relações com o Candomblé e o culto aos orixás. No
trecho acima, nega que haja magia branca e magia negra. Toda magia é “força do poder
oculto”. Nega ainda, que a Umbanda tenha surgido na Índia ou com o Caboclo das Sete
Encruzilhadas. Afirma que já era praticada na África pelos bantos, especialmente em
Angola, se desenvolvendo no Brasil.
Na sua origem a Umbanda desenvolveu mais aqui no Brasil, onde se
proliferou devido às imigrações africanas com vários cultos de diversas
regiões ou aldeias daquele continente, professando e respeitando a
doutrina de uns e de outros. Dentro dos quilombos então foi que se deu
a conjunção de raças ou vários cultos antes da liberdade ao apoio,
chegando assim pretos de várias nações, para pregarem seus rituais, o
164
que era aceito pelo chefe do quilombo. Então quando foram destruídos,
encontraram imagens dos santos católicos como: São Benedito, Santa
Ifigênia, N.S. Aparecida que adotaram com muita precisão, aonde foi
apoiada como a padroeira do Brasil considerada também, pela sua
epiderme, a padroeira dos negros (op. Cit. p. 157).
Para Tata Tancredo é justamente nos quilombos que se deu a troca cultural entre
brancos pobres, indígenas e negros foragidos em busca de liberdade e justiça. Ele se
baseia nos conhecimentos de numerologia, teosofia, fundamentando os cultos bantos com
o esoterismo, ao mesmo tempo que resgata mitos, depoimentos, entrevistas e histórias de
pessoas simples e líderes religiosos com casas informais, que tinham sido perseguidos
pela polícia e caluniados pelos jornais. Em Mirongas de Umbanda ele narra a história de
Gino, um curandeiro de Barra do Piraí que desconhecia os cultos africanos e os orixás.
Perguntamos que culto era aquele. Responderam-nos que era a “linha
das Almas”. Desconheciam totalmente os cultos africanos e os seus
orixás, dizendo que trabalhavam com os espíritos das selvas.
Terminado o serviço, deram as raízes aos consulentes, dos quais, diga-
se a verdade, muitos ficaram curados. Assim também, com a defumação
das ervas, paralíticos andavam, as mazelas saravam, etc. Os jornais da
época não publicavam notícias de tais fatos, em virtude da perseguição
reinante na época. Pessoas iam do Rio comprar raízes e remédios em
Barra do Piraí, atraídas pela fama de Gino. Ora, se os Kardecistas
vissem isso, logo diriam que se tratava do “baixo” Espiritismo. Como,
porém, classificar de “baixo Espiritismo” a prática da caridade? Os
“guias” da selva ajudavam os sofredores e muitos ficavam curados (op.
Cit. p. 158).
Denuncia o que chama de “anarquia de Umbanda” e funda em 1950 a
Confederação Espírita Umbandista do Brasil e, nesse mesmo ano, a Federação Espírita
Umbandista. A federação, como a UEUB, desenvolvia trabalho de filiação, prometia
proteção e diferente da UEUB, defendia uma forma africana para o ritual de Umbanda.
Os filiados e patrocinados eram quase todos do “setor inferior”, de estilo africano,
localizados nas favelas. Com outras federações de mesma orientação produziu grande
número de livros sobre a Umbanda. Principal porta-voz da orientação africana conseguiu
uma coluna semanal no jornal O Dia por conta de sua relação com o proprietário Chagas
Freitas. Afirmava em suas colunas em O Dia que a Umbanda era uma religião afro-
brasileira.
Apesar do “assédio” de organizações separatistas (Teatro Experimental do Negro,
1944), que apareceram a partir das décadas de 1940 no Rio e em São Paulo, para que os
165
terreiros de tendência africanistas também adotassem uma postura similar e adorar um
Cristo negro a segmentação entre uma Umbanda branca e uma Umbanda negra não
significou uma postura separatista.
Nessa época, nos meados dos anos 1950, os líderes negros e afro-
brasileiros da Umbanda, embora reconhecessem claramente a
questão racial presente na disputa sobre a identidade africana da
Umbanda, rejeitavam a posição mais radical do separatismo
racial. Eles pareciam estar mais preocupados com os interesses
mais estreitos em defender a identidade africana da Umbanda do
que com questões mais amplas do racismo na sociedade
brasileira; expressavam suas críticas e trocavam insultos muito
mais através da linguagem das diferenças de classe social e de
religião do que em termos de raça. Tudo indicava que duas formas
de Umbanda estavam em desenvolvimento: uma, no interior do
setor médio, influenciada pelo kardecismo e pelo desejo de criar
uma imagem socialmente respeitável, não-africana; e a outra que
representava as formas de prática afro-brasileiras (BROWN,
1999, p. 24).
Em 15 de maio de 1965, realiza o evento “Você sabe o que é Umbanda? Macumba
no Maracanã”. Uma gira realizada no estádio durante a gestão do então governador da
Guanabara, Carlos Lacerda. Em 1968 deixa a Confederação e funda a Congregação
Espírita de Umbanda do Brasil que continua em funcionamento no Rio e representa mais
de 2.300 centros no Brasil (ARAÚJO, 2020, p. 159). Andou dando palestras, fundando
federações no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo e Pernambuco.
Minha grande Umbanda que vem dos Luandas-Quiocôs, tribo situada
ao sul de Angola, de grande fundamento e deturpada, devorada e
cobiçada por uma avalanche de mentores e aventureiros de todas as
camadas sociais e que dizem ser Umbanda uma religião nacional[...]
não mais permitiremos que indivíduos sem escrúpulos queiram
desvirtuar o nome da nossa querida Umbanda (Tata Ti Inkice Tancredo
da Silva Pinto apud ARAUJO: 2020, p. 155).
Os feitos de Tata Tancredo demonstram a influência que chegou a possuir. Ser
colunista regular em um dos principais jornais do Rio, fundar terreiros e federações e
realizar uma gira em pleno Maracanã (o que parece improvável de acontecer hoje), além
de sua profícua produção bibliográfica, conferiram-lhe o título de “papa da Umbanda”.
Apesar de toda sua importância, sua lembrança perdeu espaço na memória coletiva
umbandista estando relegado a poucas citações acadêmicas e menos ainda na literatura
166
religiosa. As razões para isso não puderam ser investigadas, mas ao seu esquecimento
concorreu o desenvolvimento de outra memória. O mito de fundação da Umbanda.
4.3 A construção do mito de fundação
O Jornal de Umbanda: Órgão noticioso e doutrinário da União Espírita de
Umbanda foi fundado em 1949 e instalado em um sobrado na Rua da Alfândega, 245,
centro da cidade do Rio de Janeiro. Circulou até 1969. Segundo o próprio, funcionava
todos os dias, com exceção dos sábados, das 14 às 17h. Seu Diretor-Presidente e secretário
era, em 1952, o Dr. Jayme Madruga, membro da comissão organizadora do Primeiro
Congresso de Umbanda. O Diretor e Redator responsável era José Jannini, o Diretor-
Gerente, Arsenio José Gonçalves e o Diretor-Tesoureiro, Francisco Oliveira. Sua tiragem
era de 5.000 exemplares e o seu preço era de Cr$ 1,00 com periodicidade mensal.
O artigo Como entendemos a Umbanda IV de J. A. de Oliveira (responsável pela
publicidade no jornal) na edição de março de 1953 (edição 00029) marca duas mudanças
de atitude deste grupo. A primeira é a negação de uma identidade espírita. Afirma o
articulista que não se encontra “nenhuma semelhança entre as práticas do Espiritismo e
da Umbanda”. No Espiritismo existe uma ausência de imagens ou símbolos, os médiuns
ficam sentados em torno da mesa, o presidente pede concentração, faz uma prece, e uma
ligeira explanação baseado em um dos livros de codificação do espiritismo. É uma prática
simples. Na Umbanda, usa-se imagens e símbolos, defuma-se o ambiente, os médiuns
tomam posição, há uma exposição doutrinária, o cambono ou ogã inicia o cântico de
pontos ou curimbas, os médiuns trabalham de pé, quando com caboclos, e sentados em
um banquinho, quando com o preto-velho, sempre de uniforme branco. Ritualisticamente,
portanto, não haveria qualquer semelhança entre um e outro. Ao mesmo tempo, denuncia
a confusão que se faz com “as práticas do Africanismo, do Candomblé, da Quimbanda
(magia negra) e outras linhas de origem Africanista” pelo fato de muitas dessas casas
usarem o nome Espiritismo e Espírita e quererem dizer que praticam Umbanda. Há uma
dupla negação. A negação com o Espiritismo europeu e a negação com uma identidade
africana. Essa dupla negação é o ensejo para a construção da ideia de uma Umbanda
brasileira.
167
O autor é levado a revisar quais as hipóteses sobre as origens da religião e a relatar
os desencontros de propostas. Apresenta quatro grupos: os que querem remetê-las a
épocas remotíssimas e encontrá-las nas filosofias mais díspares; os que a encaram como
Doutrina de Jesus; aqueles que a associam a “práticas bárbaras” dos africanos; e, por fim,
os que a veem como Espiritismo. Como se pode observar, tal classificação não leva em
consideração apenas as elucubrações sobre as origens, mas também, as especulações
sobre sua natureza. Levanta então suas indagações:
Ora, se a Umbanda se projetou nestes últimos 20 anos, segundo o
registro feito na Introdução do livro do Primeiro Congresso Brasileiro
de Umbanda, realizado no Distrito Federal, em outubro de 1941, pode
admitir-se a sua realização de uns 30, ou, no máximo 40 anos para cá.
Alguns escritores levam em investigações multimilenares. É de supor
que a diretriz para tal descoberta ainda não tenha sido encontrada. Ao
que se sabe não existem práticas de Umbanda noutros países, a não ser
no Brasil: não será pois, daqui mesmo a sua origem?
Não estarão os pesquizadores da Umbanda incorrendo no erro?
Querem que a origem da Umbanda venha do Oriente, da Índia, do Egito,
da África etc., etc., quando o fato parece ter, aqui mesmo, “nas nossas
barbas”, dentro da nossa própria casa - a sua origem. (Pelo menos o fato
material como é de todos conhecido) (OLIVEIRA, J. A. 1953, p. 2).
É interessante observar que neste momento, a origem brasileira é alçada enquanto
possibilidade diante das incongruências que o autor encontra nas demais hipóteses.
Embora ele já apresente uma resposta ao se expressar por meio de uma pergunta, não será
“daqui mesmo a sua origem?”. Seu recurso argumentativo indica sua estratégia discursiva
de em primeiro lugar levar a dúvida ao seu leitor, para imediatamente saná-la, afirmando
que de fato a Umbanda surgiu em terras brasileiras. Sua forma cuidadosa de afirmar essa
hipótese sugere a novidade da proposta. Vai corroborar suas ideias a partir afirmação de
Emanuel Zespo em O que é Umbanda? (1946) de que ela “é hoje uma religião nacional,
bem nossa, bem brasileira”.
Emanuel Zespo é um pseudônimo de um escritor e professor de história na cidade
do Rio Grande (RS). Foi o responsável pela fundação de várias tendas naquele estado. É
alguém que tem relações com Zélio Fernandino. No livro citado, seu prefácio começa
com uma saudação ao Caboclo das Sete Encruzilhadas. Segue as mesmas conclusões do
Primeiro Congresso sobre a etimologia da palavra. Ela se perde na pré-história da
humanidade e veio mediante primitivos idiomas lemures trazidos ao Brasil pelos dialetos
168
africanos. Significa lei, como o sânscrito carma, e se define como “religião-ciência de
causa e efeito” (ZESPO, 1953, p. 9). Em seus aspectos históricos a Umbanda é “resultante
da mescla de tradições, conhecimentos, cultos e ritualísticas oriundos do africanismo, do
amerindísmo, do catolicismo e do espiritismo” (op. Cit. p. 20). Em seu livro está posto de
maneira mais evidente a ideologia da mestiçagem na Umbanda. Assim como o Brasil, a
religião é formada pela união de três raças: africana, ameríndia e europeia. A aceitação
do editorial da obra de Zespo é confirmada pela resenha elogiosa na mesma edição, ao
seu livro na seção Livros Doutrinários, onde se destacam suas qualidades de escritor e
pesquisador, sua contribuição sobre a definição da Umbanda e sua “provável origem”
(JORNAL DE UMBANDA, 1953, p. 6). Mais uma vez a origem brasileira como uma
possibilidade.
Às conclusões e definições de Emanuel Zespo é preciso fazer alguns comentários.
O fato de sua publicação ser em 1946, um ano após o fim do Estado Novo, não permite
ignorar as influências da ideologia desse estágio sobre a obra. Porém, ao que tudo indica,
pois não se encontrou registro anterior, somente oito anos depois é que o grupo, ou pelo
menos um dos órgãos, vinculados a UEUB vai “flertar” com a ideologia da mestiçagem
e vai erguer a bandeira do “nacionalismo umbandista”. Corrobora, portanto, a
interpretação de autores citados anteriormente sobre no nacionalismo na Umbanda da
década de 1950. Outro ponto importante é que há no autor uma valorização das
“teogonias” indígenas e africanas. O faz comparando e equivalendo tais teogonias
chinesas, indianas, budistas e católicas. Segue o mesmo procedimento dos autores do
Primeiro Congresso usando de formas de conhecimentos legitimadas e consideras cultas
na sociedade, sendo que não a dirige exclusivamente à Umbanda, mas aos conhecimentos
indígenas e negros. É uma valorização que, porém, não é capaz de fugir ao etnocentrismo.
Os dois últimos pontos a sinalizar são: Emanuel Zespo não deixa de considerar nem a si
espírita, nem a Umbanda espiritismo. Por último, embora conheça o Caboclo das Sete
Encruzilhadas, e possivelmente Zélio Fernandino, não os nomeia como fundadores da
Umbanda. Ou seja, o reconhecimento da Umbanda como religião brasileira não está
diretamente vinculado ao reconhecimento de Zélio e seu caboclo como fundadores.
Retomando a questão na quinta parte de seu artigo, agora na edição de abril de
1953, J. A. de Oliveira reafirma a indeterminação das origens da Umbanda e a
necessidade de sua investigação
169
O fenômeno Umbanda nasceu não se sabe como nem de onde. As
opiniões são muito desencontradas a respeito. O fato é que a Umbanda
se difunde rápida e progressivamente, suscitando estudos e
investigações sérias quanto a sua origem, definições e conceitos
(OLIVEIRA, J. A. 1953, p. 2).
A posição da União Espiritista de Umbanda parece ser, entretanto, vacilante. Se
ela permite uma defesa da brasilidade da Umbanda ou se elogia uma obra que traga a
mesma defesa, também mantém sua defesa da antiguidade da religião. Nesta mesma
edição publicou uma resposta à Oliveira que a havia acusado de omissão quanto a afirmar
que a Umbanda é uma religião e conclamava-a a organizar um Congresso. A União,
afirma sua posição de que a Umbanda é religião e não Espiritismo, africanismo ou
Candomblé, declina da necessidade de um congresso e coloca sem insistência a origem
milenar da Umbanda.
A Religião de Umbanda não tem 30 ou 40 anos; suas raízes remontam
a mais alta antiguidade. Como ficou esclarecido linhas atraz, o
movimento renovador tem sido feito por etapas, em sequências, com
contribuições oriundas de todas as fontes, seja através de elementos
vindos da Europa, seja da África, ou da Ásia, daí não se originando um
ecletismo no sentido perfeito da palavra, mas se configurando uma
convergência de caminhos que anteriormente tinham a mesma origem
e sentidos diversos (UNIÃO ESPIRITISTA DE UMBANDA, 1953, p.
3).
O trecho demonstra uma continuidade e permanência do órgão com relação às
conclusões do primeiro congresso e uma aceitação de discursos contrários. Embora, por
diversas vezes o editorial se sinta obrigado a responder a esses diferentes
posicionamentos. Mas no ano de 1953 o debate sobre a Umbanda e sua origem não se
restringiu aos seus próprios veículos de divulgação. O vespertino Vanguarda realizou na
seção Fronteiras de outro mundo uma série de reportagens sob o título A religião de
Umbanda em face do Espiritismo onde espíritas, umbandistas, jornalistas e outras tinham
um espaço para falar sobre o tema.
Anos antes (1945) O Radical realizou um inquérito sobre a Umbanda. Este foi
discutido no livro Umbanda em julgamento (1949) de Alfredo D’Alcantara. Nele é
possível encontrar falas de personalidades importantes na história da Umbanda como Leal
de Souza que, 12 anos após lançar seu principal livro, analisado anteriormente, afirma:
“Eu não sei o que significa Umbanda. O Caboclo das Sete Encruzilhadas chama
170
'Umbanda' os serviços de caridade, e 'Demanda' os trabalhos para neutralizar os da 'Magia
Negra'" (Souza, apud D’ALCANTARA, 1949, p. 161). Na enquete outras figuras
públicas aparecem, uma delas chega a dizer que a Umbanda é o nome de um arcanjo, mas
a fala do Capitão José Pessoa é particularmente importante.
Segundo ele, a fundação da Umbanda foi decidida e levada a efeito em
Niterói, há mais de trinta anos, em u’a “macumba”, que ele visitava pela
primeira vez. Até então fora espírita kardecista. O respectivo Pai-de-
santo, investiu-o das funções de presidente da Tenda de São Jerônimo,
que devia funcionar nesta Capital, o que importava organizar Umbanda
como religião. E da maneira como se desincumbiu da honrosa tarefa o
novo titular umbandista, pode calcular-se pela elogiosa descrição de “O
Radical”, que visitou a referida Tenda, hoje situada à rua Visconde de
Itaboraí. Maior do que ela parece que só existe a Mirim, que conseguiu
construir um palácio na rua Ceará, em São Francisco Xavier
(D’ALCANTARA, 1949, p. 164).
Segundo Alexandre Cumino (2010) o Capitão Pessoa (José Alvares Pessoa)
escrevia sobre Umbanda no Correio da Noite em 1941 e confirma que ele foi dirigente
da Tenda São Jerônimo, a última das sete tendas criadas por Zélio Fernandino. O capitão
teria conhecido a Tenda Nossa Senhora da Piedade em 1935. Zélio que já teria fundado
seis tendas e faltava o dirigente da última, a Tenda de São Jerônimo, o teria designado
para a missão, no mesmo dia em que ele teria ido conhecer o centro pela primeira vez. É
válido observar como na citação acima, a tenda de Zélio seria designada como macumba
e que a fundação da Umbanda está associada a um período, sem enfatizar uma data de
fundação. Em 1960 Pessoa publica com outros nomes o livro Umbanda: religião do
Brasil. Nele é responsável por um capítulo de mesmo título, onde se lê
Há uns quarenta anos mais ou menos, aproveitando a enorme aceitação
dos fenômenos espíritos por parte dos brasileiros, entidades que
presidem o destino espiritual da raça resolveram levar avante a árdua
tarefa de lhes dar uma religião que fosse genuinamente brasileira.
Porque, filha de três raças – a branca, a negra e a índia - não era justo
que coubesse ao brasileiro, uma religião 100% importada, fosse ela qual
fosse, e que não reunisse os anseios de três raças a que pertence.
A religião que lhes estava destinada deveria ser uma religião eclética,
cujas características principais fossem a caridade, a humildade e a
perfeita tolerância para com a imensa ignorância dos homens... (Pessoa,
1960, p. 63 apud CUMINO, 2010, p. 362).
171
Páginas depois, diante da árdua tarefa de se construir uma religião brasileira,
sentencia “sobre os seus ombros tomou o Caboclo das 'Sete Encruzilhadas', de organizar
a Lei de Umbanda no Brasil...” (PESSOA apud CUMINO, 2010, p. 362). Ainda no
mesmo livro, mas em outro capítulo, nomeia-o “Pastor da Umbanda”, numa clara
referência à imagem de Jesus, e explica do que se trata a grande missão do Caboclo.
A realização da tarefa, por isso mesmo espinhosíssima, que sobre os
seus ombros tomou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, de organizar a
Lei de Umbanda no Brasil, é um verdadeiro milagre de fé, que nos leva
a um sentimento de grande amor e de profundo respeito por essa
entidade, que se faz pequenina e que procura valer-se sobre a capa de
uma humildade perfeita.
É a ele - ao Pastor da Umbanda – que se deve a purificação dos trabalhos
de magia nos terreiros; é a ele que espiritualmente está entregue a
direção de todas as Tendas de Umbanda no Brasil.
(...)
Foi ele quem assumiu perante Oxalá o compromisso de expurgar
Umbanda dos ritos essencialmente africanista que se vinha praticando
desde as primeiras levas de escravos trazidos pelos portugueses.
(...)
Que os que nos leem não se esqueçam desta verdade: o Caboclo das
Sete Encruzilhadas é o legítimo senhor da Umbanda no Brasil;
nenhuma entidade, por grande que seja, intervém nos trabalhos de
magia branca sem uma prévia combinação com ele (op. Cit. p. 363).
É interessante perceber que, ao mesmo tempo, em que Capitão Pessoa está
alinhado a ideologia que confere ao Brasil a particularidade da miscigenação como união
harmoniosa das três raças, seu texto está impregnado de um sentimento de “anti-
africanismo”. A situação particular do brasileiro teria feito-nos merecedores de uma
religião “genuinamente brasileira”. Com esta missão, o Caboclo das Sete Encruzilhadas
é designado o “organizador” da Lei de Umbanda. Isso implica que ela preexiste, mas sua
classificação enquanto “lei” descola esta preexistência de uma situação histórica concreta.
Ela existe na abstração das leis do universo. Por fim, a organização que o Caboclo se
incumbiu traduz-se no “compromisso de expurgar Umbanda do rito essencialmente
africanista”. Constata-se assim, o compromisso com o processo de branqueamento
proposto pelo Primeiro Congresso.
Em 1964 um novo livro relaciona as origens da Umbanda ao Caboclo das Sete
Encruzilhadas. Woodrow Wilson da Matta e Silva nasceu em Pernambuco (1917-1988)
e com cinco anos mudou-se para o estado do Rio de Janeiro. Entre 12 e 13 anos passou a
172
ter visões mediúnicas. Aos 16 anos teve a incorporação de Pai Cândido. Em 1940 fundou
a Tenda de Umbanda Oriental (TUO) na Pavuna, depois transferida para Itacuruçá. Em
1956 escreveu sua primeira obra intitulada Umbanda de todos nós onde buscava
fundamentar esotericamente a religião. Produziu ainda mais oito livros. Combateu o
sincretismo, as tradições africanas, católicas e o kardecismo. A tradição de Umbanda
Esotérica criou quatro ordens: Ordem do Círculo Cruzado (1968), fundada por seu
discípulo Mestre Itaoman; Ordem Iniciática do Cruzeiro Divino (1977), fundada por
Mestre Arhapiagha; Ordem Esotérica Olho do Mestre (1988), fundada pelo discípulo
Mestre Yassuamy; Ordem de Umbanda do Cruzeiro do Sul (1995), fundada pelo “neto”
de Yapacani, Mestre Thashamara (ARAÚJO, 2020, p. 145).
Seu livro Umbanda e o poder da mediunidade (1964) apresentou as origens da
Umbanda no Brasil. Afirma que não se pode “ligar diretamente Umbanda do Brasil a
uma pseudo-Umbanda africana ou angolense” (SILVA, 1978, p.9 apud ARAÚJO, 2020,
p. 145). A argumentação de Mata e Silva segue quase completamente as ideias defendidas
pelo Congresso de 1941. Todas as religiões têm uma origem única. Uma Índia mítica é o
berço de toda a sabedoria e a sua subjugação pela “raça negra” teria embaralhado este
saber. Retoma, portanto, não só o mito de uma origem milenar, como também as hipóteses
defendidas pelo congressista Antonio Rego, dos negros em passado remoto,
escravizadores de povos brancos. Mas vai além, e aí parece residir sua originalidade. Se
para os congressistas a Umbanda não é africana, mas foi trazida ao Brasil por eles, para
Mata e Silva, a diáspora africana não se relaciona a chegada da Umbanda ao Brasil. Quem
é por isso responsável é a corrente ameríndia, manifestada nos terreiros pelos caboclos,
sendo o primeiro deles, o Caboclo das Sete Encruzilhadas (ARAÚJO, 2020).
Sua hipótese está, possivelmente, atrelada as suas relações com o Capitão Pessoa.
Quando seu livro de 1956 foi publicado, uma cópia foi enviada ao Capitão que lhe
respondeu com uma carta elogiosa. Nesta missiva, se afirma o protagonismo do Caboclo
das Sete Encruzilhadas:
Na realidade muito se tem escrito, mas apenas sobre Candomblés e
Macumbas e os próprios antropologistas, constantemente citados, como
Nina Rodrigues, Edson Carneiro e outros, que se preocuparam com o
assunto, escreveram sobre o que viram na Bahia, isto é, sobre o
africanismo importado pelos escravos nos tempos da colônia, que nada
tem a ver com a maravilhosa obra espiritual que se realiza nos terreiros
de Umbanda do Rio de Janeiro, obra que data de mais ou menos 30
173
anos, empreendida pelo admirável espírito que dá o nome humilde de
Caboclo das Sete Encruzilhadas que reformou os trabalhos da magia
que comumente se faziam nos terreiros, purificando-os e transformando
a magia negra, que então imperava quase absoluta, nesta magia que os
Mestres Divinos classificam como a Ciência da Vida e da Morte
(PESSOA, s/d, p. 28).
Em Umbanda de todos nós, elogiada por Pessoa, não menciona o Caboclo das
Sete Encruzilhadas e gira sua discussão sobre a origem em torno da palavra umbanda. A
qual nega relação com as línguas africanas e lhe atribui uma origem milenar. É somente
com o contato com Capitão Pessoa que Mata e Silva atribui ao Caboclo das Sete
Encruzilhadas a iniciativa. A escolha da palavra “organizador” não é desimportante. Ela
permite vincular a centralidade de Sete Encruzilhadas com uma origem milenar da
Umbanda. Como Fabíola Tomé Amaral de Souza (2017) coloca, Mata e Silva, e eu incluo
Capitão Pessoa, são herdeiros do Primeiro Congresso de 1941. E pelo que se pôde
averiguar até aqui, se encontra em Capitão Pessoa a origem do mito de fundação.
Mas cabe mais uma vez sinalizar, em seu início o mito coloca o caboclo como
“organizador”. Atualmente a expressão utilizada é “anunciador” para resolver os
problemas que colocar o Caboclo como “fundador” causou. A substituição de
“organizador” para “fundador” parece ter acontecido a partir de dois fatores. O primeiro
é que a história sai do Rio de Janeiro e encontra em um grupo umbandista de São Paulo
seu principal divulgador. O segundo é o fato de o próprio Zélio de Morais se tornar o
narrador da história da Umbanda. O grupo de São Paulo toma as memórias de Zélio como
fundamento para as origens da religião.
4.4 Zélio Fernandino de Moraes
O relato Zélio transcrito na introdução desta dissertação apresenta nuances,
acréscimos e interpretações ao longo do tempo. Atualmente, a versão que parece ser a
mais disseminada é aquela apresentada em matéria na BBC.
Filho de uma família tradicional de São Gonçalo, na região
metropolitana do Rio, Zélio estava se preparando para seguir carreira
militar na Marinha quando foi acometido por uma paralisia. Ele tinha
17 anos. Acamado por alguns dias, teria declarado que "amanhã estarei
curado" e, de fato, no dia seguinte levantou-se como se nada houvesse
acontecido.
174
Diante da surpresa dos médicos, os familiares decidiram recorrer a
padres católicos — que também não souberam explicar o que havia
sucedido ao jovem.
Para a família, Zélio sofria de distúrbios espirituais. Então, por
indicação de um amigo, levaram-no até a Federação Espírita do Estado
do Rio de Janeiro, então sediada em Niterói.
O médium presidente da entidade teria organizado uma sessão espírita,
com Zélio à mesa. Na ocasião, conforme relatos da época, houve a
manifestação de espíritos de ancestrais africanos, os chamados "pretos-
velhos", e indígenas, os "caboclos".
O dirigente da sessão, então, teria classificado tais espíritos como
"atrasados" — em uma visão preconceituosa sobre tudo aquilo que não
tivesse raízes europeias. Solicitou então que eles se retirassem. Foi
quando Zélio acabaria incorporando uma entidade, o chamado
"Caboclo das Sete Encruzilhadas", em defesa dos pretos-velhos e dos
caboclos. E disse que se ali não houvesse espaço para que negros e
indígenas "cumprissem sua missão", ele, o tal caboclo, fundaria no dia
seguinte um novo culto — na casa de Zélio.
Seria então 15 de novembro de 1908. E, para muitos, se trata do marco
fundador da umbanda, como uma nova religião do Brasil.
A partir do episódio, Zélio e o Caboclo das Sete Encruzilhadas seriam
identidades indissociáveis. De acordo com o médium, a entidade seria
a manifestação do padre jesuíta italiano Gabriel Malagrida (1689-
1761), um missionário que chegou a andar pelo Brasil catequizando
indígenas e, mais tarde, acusado de bruxaria e heresia, foi morto pela
fogueira da Inquisição em Lisboa.48
A história de Zélio Fernandino foi inicialmente publicada no boletim de Umbanda
chamado MACAIA (1971), que era confeccionado na Tenda de Umbanda Luz, Esperança
e Fraternidade-TULEF (inicialmente chamada Tenda Nossa Senhora do Rosário).
Fundada em 1955, no Rio de Janeiro, é originária da Tenda de São Jerônimo, uma das
sete tendas criadas pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, e dirigida, pelo já citado,
Capitão Pessoa.
A jornalista Lilia Ribeiro, responsável pelo boletim, construiu um grande acervo
de gravações e textos sobre Zélio, o Caboclo e a Tenda Espírita Nossa Senhora da
Piedade. A partir de suas publicações, as memórias de Zélio o colocam no centro da
formação da Umbanda. O que é uma novidade, pois, mesmo entre aqueles que exaltavam
o Caboclo das Sete Encruzilhadas como fundador o davam um tom místico e não
deixavam aparecer o seu médium. Os relatos de Zélio publicados por Lilia Ribeiro
vincularam sua biografia à história de fundação da religião. Começa então a disseminação
do que mais tarde ficou conhecido como mito de fundação da Umbanda. No ano seguinte,
48
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59677047 acessado em 11/04/2023 às 15:39.
175
1972, foi lançada a primeira edição da revista Gira de Umbanda, dirigida e editada por
Átila Nunes Filho, com a reportagem “Eu fundei a Umbanda”.
Figura 7: Capa da primeira edição da revista Gira de Umbanda49
Afirma Cumino (2010) que Zélio teve sua história popularizada por Ronaldo
Linares e tem em Rubens Saraceni seu maior divulgador. Presidente da Federação
Umbandista do Grande ABC, responsável pelo Santuário Nacional da Umbanda, Linares,
criou o primeiro curso de Sacerdotes de Umbanda de onde se pretende divulgar a
mensagem do Caboclo das Sete Encruzilhadas. Participou de programas de rádio e TV,
jornais divulgando a Umbanda e a história de Zélio de Moraes. Alexandre Cumino,
entretanto, apresenta informações contraditórias sobre como Ronaldo chegou a Zélio.
Inicialmente afirma que foi através da publicação citada anteriormente, no ano de 1972.
Porém, ao final do livro traz o relato do próprio Ronaldo Linares que afirma ter conhecido
Zélio durante a Copa do Mundo de futebol de 1970.
49
Juruá, 2013a.
176
De um modo ou de outro, Ronaldo Linares afirma nesse relato que naquela época
ninguém conhecia Zélio em São Paulo. A sua atuação e a de seus seguidores, incluindo
Alexadre Cumino, amplamente citado nesta dissertação, foi fundamental para a
disseminação e sedimentação na memória coletiva de muitos umbandistas sobre mito de
fundação. Sua homenagem em vida ao Zélio de Moraes foi registrada por Jota Alves de
Oliveira em Umbanda Cristã e Brasileira. Fez outra entrevista com ele e foi um dos
primeiros a divulgar a história de Zélio e a Umbanda para os jornais de grande circulação
em São Paulo e na televisão. Em 1977, o Conselho Nacional Deliberativo de Umbanda-
CONDU reconheceu a Umbanda como religião nacional fundada por Zélio de Moraes e
o Caboclo das Sete Encruzilhadas. (ARAÚJO, 2020, p. 128)
De acordo com Emerson Giumbelli, os textos acadêmicos e umbandistas que
singularizam a figura de Zélio Fernandino de Moraes são todos posteriores há década de
1960. O lugar de Zélio como fundador ou pioneiro é uma construção tardia. A maioria
das referências é posterior à sua morte (1975) e aponta um interesse pela origem quando
há uma dispersão doutrinaria e ritual e divisão institucional (RHODE 2009). André de
Oliveira Pinheiro (2009) vai além e mais do que uma tradição tardia, o mito de fundação,
afirma, se configura também como uma “tradição inventada”.
Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais
práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores
e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
(HOBSBAWN, e RANGER, 2008, p. 9 apud Pinheiro, 2009, p. 54).
Este passado não precisa ser remoto. São reações a situações novas que constroem
o seu próprio passado através da repetição. Além da divulgação em grandes meios de
comunicação, o trabalho de enquadramento da memória se deu pela intensa produção de
canais próprios de divulgação. São exemplos o Jornal Aruanda (1978); a Revista Magia,
Mistério e Umbanda; provavelmente anterior a 1985, Umbanda Verdade de Bártolo
Fittipaldi (1985), Umbanda – Uma Religião Brasileira (1993), da Ordem Iniciática do
Cruzeiro Divino (OICD), percussora da Revista Espiritual de Umbanda (2003-2008).
Conforme Pinheiro (2009), esta última, uma publicação de abrangência nacional
com vinte edições, é o mais bem-sucedido projeto informativo voltado para as religiões
afro-brasileiras. Conta ela com as colaborações de Alexandre Cumino, editor do Jornal
177
de Umbanda Sagrada; Rubens Saraceni, recorrentemente citado; W. W. Matta e Silva,
tido como percussor da Umbanda Esotérica e como um dos maiores autores umbandistas;
e outros. São além de colaboradores, anunciantes com o Santuário Ecológico da Serra do
Mar – Santuário Nacional da Umbanda, fundado por Ronaldo Linares.
Os leitores desta revista puderam ver em quatorze das vinte edições, referências a
Zélio Fernandino e ao Caboclo das Sete Encruzilhadas como fundadores, sem
questionamentos e sempre de maneira positiva. Há ao mesmo tempo, um trabalho
conciliatório entre uma existência milenar e uma fundação nacional. Trabalho este
iniciado com Mata e Silva e sedimentado pela revista. Não existe menção a outras
concepções de origem nem na única vez que Tancredo da Silva Pinto foi mencionado. O
silêncio sobre Tata Tancredo, a importância dada a W. W. da Mata e Silva como
acréscimo ao mito fundador e as entrevistas com a filha de Zélio, Zilméia, apontam para
o trabalho de enquadramento de memória sobre o passado da religião. Um trabalho que
está irredutivelmente associado a uma ideologia do branqueamento colocada como
diretriz de Zélio de Moraes.
O ritual preconizado pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas exclui tudo
o que de supérfluo nos legaram as seitas africanas. São palavras textuais
de Zélio Fernandino de Moraes: “O Caboclo das Sete Encruzilhadas
não admitia atabaques e nem mesmo palmas nas sessões. Apenas os
cânticos, muito firmes e ritmados, para a incorporação dos Guias e a
manutenção da Corrente Vibratória. Capacetes, adornos, vestimentas de
cores, rendas e lamês não são aceitos nos tempos que seguem a sua
orientação. O uniforme é branco, de tecido simples. As guias usadas são
apenas as que determinam a Entidade que se manifesta. Não é a
quantidade de guias que dá força ao médium. Os banhos de ervas, os
amacis, as concentrações nos ambientes da natureza, a par do
ensinamento doutrinário, na base do Evangelho, constituem os
principais elementos de preparação do médium.” (REVISTA
ESPIRITUAL DE UMBANDA apud PINHEIRO, 2009, 51-52).
É preciso levar em consideração que o mito é mais do que a história de Zélio
Fernandino. É a construção simbólica e legitimadora que se faz em torno dela. Da mesma
forma que o Caboclo das Sete Encruzilhadas foi adicionado a visão de uma Umbanda
milenar, e o próprio Zélio foi adicionado a uma Umbanda brasileira, novos elementos são
incluídos na história de Moraes. Uma desses novos elementos é o passado do caboclo. Se
era originalmente reconhecido que Sete Encruzilhadas havia sido um padre em vida
passada, com o tempo essa existência passou a ser associada ao padre jesuíta Gabriel
178
Malagrida com extensa passagem pelo Brasil e condenado pela Santo Ofício ao fazer
publicações inspirado por vozes de anjos. Ato facilmente interpretável como psicografia.
Sá Júnior (2012) salienta que o mito é portador de marcas e representações de
conflitos reais não solucionados. Obra de intelectuais umbandistas, a invenção de uma
tradição umbandista segue o modelo da invenção de uma tradição de uma “alva nação
brasileira” na passagem do império para a república. Deste modo, o pensamento
umbandista é tomado pelos conceitos de civilização, progresso e evolução que tomam o
modelo sociopolítico imaginado pelos intelectuais do Brasil. Durante esta parte da
dissertação foi possível observar que de fato os intelectuais umbandistas do início do
século se valeram de tais conceitos que, porém, não resultou na elaboração do mito de
fundação. Historicamente, este está associado ao período da ditadura militar. O que não
minimiza a influências dos referidos conceitos e do modelo sociopolítico.
O autor destaca, desta maneira, alguns aspectos do mito e suas funções
legitimadoras. Em primeiro lugar, está o lugar social ocupado pelo fundador. Zélio é
branco, pertence ao mundo da ordem, de boa formação intelectual e membro de uma
família com médicos e padres. É, nas palavras de Sá Júnior (2012), uma família branca e
aristocrática aos moldes da família patriarcal de Casa Grande e Senzala. Depois, há uma
aproximação com as macumbas na manifestação e na linguagem de caboclos e pretos
velhos e uma vinculação político-ideológica. Ao colocar a imagem do “caboclo
brasileiro” é afirmada identidade nacional. Apresenta a Umbanda como religião brasileira
e se aproxima dos modelos indianistas de autores como José de Alencar. A associação
entre a fundação da Umbanda e da República é propagada por autores umbandistas ao
exemplo de Rivas Neto e Epaminondas Oliveira. O primeiro ainda forja uma fundação
astral da Umbanda no mesmo dia e ano da fundação da República. Outro aspecto é a
busca por uma legitimidade intelectual. A reencarnação do caboclo ganha um passado
intelectualizado e sensível à metafísica. A figura do Padre Gabriel Malagrida lhe garante
um lugar no mundo branco e intelectualizado. O padre perseguido pela Igreja agora é o
percursor da Umbanda, religião que acolhe todos os excluídos. Por fim, ainda apresenta
algumas críticas a Igreja Católica ganhando tom acusatório ao relembrar a Inquisição e
ao Kardecismo por ser excludente e preconceituoso reproduzindo as hierarquias sociais
no mundo dos mortos.
179
É nesse terreno, bem representado pelas obras de Nina Rodrigues
(RODRIGUES, 1935, 1977), que é possível encontrar uma grande
oposição aos cultos “afro-brasileiros”. A inferioridade do negro é de
origem racial. E, é através de uma patologia “animista-fetichista” que é
possível compreender as manifestações religiosas desses homens. Para
que não permaneçam dúvidas sobre as naturezas distintas entre a
Umbanda e a Macumba, o mito fundador se submete a uma análise
médica, recebendo um atestado de idoneidade mental. Após “um exame
de vários dias” o médico, diga-se de passagem, também da família, não
encontrando uma patologia de caráter clínico, encaminha a Umbanda,
à sua segunda prova: a religiosa.
O poder da Igreja Católica será testado quando, por meio de um
sacerdote, adivinhem, também tio de Zélio, ocorrerão algumas seções
de exorcismos. Mais uma vez, a Umbanda sai vencedora. Para não ficar
em uma questão de família, o médium se sujeita a outros sacerdotes
católicos. As manifestações continuaram acontecendo, demonstrando
que aquela não era uma manifestação diabólica, pois, se o fosse, seria
exorcizada pelos poderes da Igreja Católica (SÁ JÚNIOR, 2012, p. 9).
Falcão e Gonçalves (2014) exaltam que o mito de fundação e outros símbolos
umbandistas mostram sua significação no período histórico. Remete as matrizes culturais
que compõem a noção de identidade brasileira: a tradição indígena e a cultura afro-
brasileira. Sincretiza com o catolicismo, religião predominante e com o kardecismo,
religião que surge como um novo conceito de espiritualidade. Este que será um elemento
diferenciador com o cientificismo europeu e organização institucional. Ao recorrer às
tradições indígenas e a cultura afro-brasileira resgata os aspectos culturais do que deveria
ser o “cidadão brasileiro”. “Embora seja diverso e controverso os estudos sobre o
momento fundador, o mito é uma tentativa de explicar a fundação da Umbanda, e adequá-
la aos ideais da República” (op. Cit. p. 7).
A existência de um trabalho de enquadramento da memória umbandista que tem
como fundamentação uma ideologia do branqueamento parece inquestionável. O fato de
a Umbanda ser uma religião que coloca no centro as figuras de preto-velhos e caboclos e
o mito de fundação se construir como uma resposta ao racismo kardecista não são
evidências que possam negar a presença de tal ideologia. Como se viu, a valorização
daquelas entidades não reflete uma valorização das populações indígenas e negras na
medida em que o discurso dos intelectuais tende a negar uma origem étnica
correspondente as manifestações de caboclos e pretos velhos. Ao mesmo tempo, o mito
de fundação da Umbanda se constrói quando o mito da democracia racial está
sedimentado e que, como se demonstrou no primeiro capítulo, ela não é capaz de superar
180
a ideologia do branqueamento. Por fim, os esforços de construção de um passado por
parte da intelectualidade umbandista que culmina no mito de fundação, passando por uma
origem milenar, se realiza na busca por desvincular a religião não só a uma origem, mas
também a uma prática negra.
181
5. Memórias de terreiro, para além do mito
São coisas que o olho não vê
E que a alma pode enxergar
Zombeteiro, ê Caxambu!
Toque no pé do Juá
É mistério a força de crer
Fundamentos que vem de lá
Lendas da mata – João Martins
A narrativa de fundação da Umbanda criada e difundida a partir das décadas de
1960-70 é considerada por Bruno Faria Rhode (2009) a “interpretação histórica
dominante” entre acadêmicos e adeptos. Sustenta que ela está pautada em uma “lógica
identitária restritiva” onde há um corte de tempo e espaço físicos e simbólicos que
impedem uma compreensão mais complexa e processual do fenômeno. Isso não significa
dizer que o autor, que também é umbandista, pretenda deslegitimar a narração de Zélio
Fernandino.
Pessoalmente, enquanto pesquisador da umbanda e umbandista, não
descarto a princípio a validade do discurso sobre a grande virada,
digamos assim, na religião representada simbolicamente por Zélio de
Moraes e o Caboclo das Sete Encruzilhadas. Mesmo que os episódios
narrados não tenham acontecido, ou que tenham mais componentes
míticos do que históricos, eles simbolizam um período de toda forma
muito importante no processo de constituição da umbanda tal como a
conhecemos (em parte) atualmente. Só que a importância do conteúdo
relatado no mito de fundação não pode de forma alguma ser tomada
como exclusiva, nem no todo, nem em parte. Tampouco podemos
atribuir importância exclusiva a qualquer outro líder ou momento
específico na história do complexo universo umbandista, o que
certamente configuraria uma redução interpretativa injusta. Assim,
acredito que a história de Zélio, de alguma forma que não podemos
precisar, pode ser verdadeira enquanto marco importante (talvez no
plano espiritual) para a umbanda em seu processo constitutivo
constante (op. Cit.: p. 82).
Sua crítica não está atrelada a uma negação da importância do mito fundador nem
das figuras a ele relacionadas. O que propõe é uma abordagem que recoloca esta narrativa
como parte constitutiva do processo de formação da Umbanda. Esforça-se por demonstrar
a anterioridade das práticas hoje encontradas na religião, chegando a localizar no calundu
de Luiza Pinta, em meados do século XVIII, rituais umbandistas. O ingresso na academia
182
de adeptos revela as relações que estes têm com o mito, de onde partem, muitas vezes, as
críticas e reservas com relação a esta narrativa.
A sacerdotisa Maria Elise Rivas em O mito de origem: uma visão do ethos
umbandista no discurso histórico, publicado em uma parceria da editora Arché com a
Faculdade de Teologia Umbandista (FTU), a partir da categoria de “escolas
umbandistas”, de outro intelectual de Umbanda, F. Rivas Neto, não só questiona o mito
fundador, mas afirma que “os mitos de origem estão devidamente contextualizados nas
religiões cristãs monoteístas, cujas teologias estruturam-se em uma figura histórica (ou
mítica) centralizadora da proposta religiosa” (RIVAS,2013, p. 17). Apologista de uma
Umbanda de origem popular, negra (já que sua discriminação é resultado de uma
sociedade com visão “salvacionista e racista”), diversificada e anterior ao Caboclo das
Sete Encruzilhadas, apresenta as histórias e cultos de Juca Rosa50 e João de Camargo de
Sorocaba51 como fatos que impedem a imposição de um ato de fundação.
Outros trabalhos, para além da negação de um mito de fundação, exploram a
complexidade do campo umbandista negando a possibilidade de sua análise ser
restringida à produção de um pequeno grupo de literatos que fez seu discurso tão presente
nos meios de comunicação. Farlan de Jesus Nogueira (2020) resgata a figura de Tatá
Tancredo, sua história e importância na constituição da religião. O pai de santo David
Delgado, investigando o sincretismo, corrobora que a Umbanda é “um campo de disputa
tanto de narrativa, quanto histórica e, principalmente ideológica” (DELGADO, 2022, p.
62). Por fim, Maria Rivas (2013) reconhece que “há tantos outros que não apenas ignoram
esse mito como defendem a diversidade de maneira incondicional (...). O confronto do
livro perpassa, então, a questão da universalização da história e ethos umbandista versus
o relativismo cultural-religioso de suas Escolas” (op. Cit: p. 18-19).
A segunda parte desta dissertação permitiu uma aproximação do debate em torno
das origens da Umbanda, dentro de seu próprio campo. Percebeu-se que a discussão se
formou na medida em que se consolidou no Brasil o projeto de branqueamento, se
mantendo no âmbito ideológico, mesmo depois deste ter sido abandonado enquanto
projeto político. Percebeu-se também que o debate girou em torno de uma possível
50
Nascido em 1833, ganhou fama e destaque nos jornais cariocas no início da década de 1870 (SAMPAIO,
2000)
51
Sobre João de Camargo consultar João de Camargo: o nascimento de uma religião de Sorocaba –
Carlos Campos Adolfo Frioli (1999).
183
africanidade e foi motivado pela busca da aceitação social do culto, refletindo a questão
da própria aceitação do negro e do indígena na sociedade. Por último, foi ainda possível
perceber como o mito de fundação é a última elaboração de um grupo que almejava negar
uma anterioridade africana construindo uma identidade alternativa, atualmente, a de
religião brasileira.
O que esta segunda parte demonstrou e os estudos supracitados corroboram é que
mais do que um discurso dominante, existe um campo em disputa. Uma disputa que não
é recente nem está perdida no passado, mas perpassa toda a história de constituição da
Umbanda enquanto religião e do “umbandista” enquanto identidade. Estas pesquisas
apontam para novos caminhos de investigação que superem aquilo que Rhode (2009)
chamou de “lógica identitária restritiva”. Esta última parte pretende ser uma contribuição
neste mesmo sentido, explorando a possibilidade de se estudar a questão a partir dos
discursos produzidos em terreiros.
As produções de Rivas (2013) e Delgado (2022) são abordagens que se erigem na
interseção do discurso acadêmico com o discurso umbandista, propiciado por
investigadores de “dupla-pertença.” Na dissertação Transmissão da tradição umbandista:
experiência, memória e oralidade (2021), Ana Clara Carneiro reflete sobre os aspectos
pertinentes a sua “identidade umbandista acadêmica” e sua investigação dentro do próprio
terreiro, a Tenda de Umbanda Estrela Matutina (TUEM). Em debate com a literatura
antropológica, entende que o pertencimento não é posto por autodeterminação, mas pelo
fato do sujeito pesquisado se pensar nos mesmos termos que o pesquisador. Exige um
tratamento da “reflexão nativa” como quadro explicativo e não como simples dado a ser
analisado pelos referenciais antropológicos. Isto implica um questionamento à autoridade
etnográfica que garante uma posição privilegiada do autor como sujeito moderno portador
da verdade. Considerando que incorporar a subjetividade do antropólogo no texto em
conjunto com um movimento de empatia com o nativo não são suficientes para mudar
essa posição, a “dupla-pertença” aparece como alternativa de construção de novas formas
de pensar antropologicamente.
Dentro da vertente sociológica, o problema da investigação empírica também está
inserido no problema das relações entre os sujeitos que investigam e os que são
investigados. Assim, Howard Becker (1993) coloca que a questão do método se relaciona
sempre com a organização da relação entre pesquisador e pesquisado e da relação entre
184
pesquisadores de diferentes categorias. Em sua análise metodológica sociológica toma
como essencial analisar “o sistema de interação no qual o problema surge, exatamente do
mesmo modo que analisaríamos qualquer sistema de interação” (Becker, 1993: 30). Faz-
se, portanto, necessário refletir sobre as categorias de participantes, suas expectativas e
as sanções para cada categoria participante. Ou seja, encontra-se o problema do método
no comportamento dos integrantes da relação de pesquisa.
A estratégia básica de uma análise sociológica de um problema
metodológico, assim, consiste em ver a atividade científica cujas
características metodológicas estão sob investigação exatamente como
veríamos qualquer tipo de organização da atividade humana (op. Cit. p.
33).
Michel Thiollent (1987) também ressalta o caráter social da obtenção de dados na
pesquisa sociológica. O objeto investigado, as pessoas concretas implicadas nele, os
pesquisadores e seus sistemas de representação, e mesmo as técnicas de pesquisa,
envolvem reações interpessoais e comunicação de símbolos. Portanto, para não se cair
em um empirismo ingênuo é imprescindível se assumir uma perspectiva crítica, na qual
a técnica de pesquisa é tomada como “técnica de relacionamento ou comunicação entre o
polo investigador e o polo investigado, ambos socialmente determinados” (op. Cit. p. 23).
Esta definição pressupõe uma negação da neutralidade. O relacionamento é visto
como troca de informação em determinado espaço sociopolítico. Neste contexto, mais do
que a precisão da técnica, importa a pertinência das questões e das respostas na interação
entre os dois polos. Por parte do investigador, a observação é essencialmente um
“questionamento”. Uma noção, segundo o autor, mais adequada quando se assume uma
perspectiva crítica quanto a obtenção de dados.
O questionamento, no contexto da crítica das técnicas convencionais de
investigação, tem como objetivos a superação da unilateralidade da observação e a
compreensão intersubjetiva. Além disso, leva em consideração tanto os aspectos
institucionais ou comunicacionais quanto os aspectos cognitivos. Com relação a este
último, o questionamento se aplica a seus diferentes níveis: questionamento da obtenção
de dados, das técnicas de investigação, dos pressupostos e categorias, e o questionamento
sociológico em substituição à observação. Em resumo,
185
nossa perspectiva crítica, em matéria de concepção de investigação
sociológica situa-se em relação com o empiricismo e o positivismo da
sociologia convencional sem descartar, no entanto, a exigência
antiteoricista de questionar a realidade concreta. Para se conseguir tal
objetivo, é necessário um exame dos mecanismos sociais e cognitivos
nos instrumentos operantes de investigação (questionário e entrevistas),
tendo em vista a localização e o controle das interferências ideológicas
que se manifestam ao nível da obtenção de dados. Tal exame, associado
a uma crítica da concepção fisicista da observação, conduz a definição
de um modo de questionamento suscetível de estabelecer uma
intercomunicação entre o pólo investigador e o pólo investigado.”
(THIOLLENT, 1987, p. 30).
O questionamento sobre as memórias de terreiro leva então a reflexão sobre o
modo de se ter acesso a elas. Seu acesso pode ser pensado em diferentes etapas ou níveis.
Em primeiro lugar, impõe-se a questão que Becker (1993) designa como inserção52. Ou
seja, o modo como se chega a indivíduos com os quais se possam estabelecer uma relação
de pesquisa e a reflexão sobre essa relação. Em segundo lugar, está a reflexão sobre a
técnica de pesquisa aplicada, suas hipóteses subjacentes e suas salvaguardas
metodológicas. Por fim, a análise do conteúdo obtido em consonância com o debate
teórico e com o que Roberto Cardoso de Oliveira (1996) denomina de textualização da
cultura. Cordeiro (2021) encontrou no pertencimento sua forma de inserção e na
etnografia sua técnica de pesquisa. No caso do presente trabalho, também se encontrou
no pertencimento o meio de inserção no campo, mas as diferenças no objeto investigado
levaram a outro caminho metodológico.
5.1 A inserção
Criado em terreiros de Umbanda, catequizado na Igreja Católica e familiarizado
com a doutrina kardecista, a espiritualidade não só esteve naturalizada, mas sobretudo,
esteve sempre no centro da minha existência e dos meus familiares. Nunca significou
apenas um espaço de adoração ou alienação. Nem um momento de devoção e reencontro
com Deus. Mas sim, a própria razão do existir. Viver é cumprir uma missão espiritual.
Uma missão que nunca é individual. É sempre o produto de uma relação entre
espíritos encarnados e desencarnados. Os guias, entidades e orixás que nos acompanham,
52
Compreende-se que a questão da escolha de estruturação teórica já tenha sido debatida na introdução
capítulo primeiro desta dissertação, dedicando-se este capítulo principalmente sobre a obtenção e análise
de dados.
186
nos protegem e nos ensinam, também dependem de nós. Pois é através de nós que eles
podem cumprir sua própria missão e evoluir. Uma relação que não se faz sem conflitos.
As ausências no terreiro, o não cumprimento dos cuidados necessários com o santo, a
desatenção aos preceitos, podem levar a não alcançar a promoção no trabalho desejada, a
brigas constantes em casa, a quedas sem sentido na rua ou até mesmo a perda de
documentos que não estão onde sempre estiveram. Um caos que pode fazer questionar se
os guias têm feito bem o seu trabalho. Guias que, por sua vez, cobram o cumprimento de
nossas obrigações religiosas.
Uma existência que não deixa nunca de ser uma missão é fatalmente exaustiva. A
exaustão leva a crises, questionamentos (será a vida só isso?) e ao desejo de uma
existência mais amena. A crise leva ao afastamento, a procura de novos sentidos para a
vida, um pouco mais de liberdade, mais descompromisso, mais atenção consigo mesmo.
O afastamento leva a cobranças já exemplificadas ou expressas nas falas de outros que
fazem questão de lembrar-nos de nossas faltas. Mas não raras vezes, há de se admitir, leva
também a saudade.
Minha impressão é que as crises cíclicas me levaram a uma gradativa
racionalização da experiência religiosa. Os motivos para isso, não seria taxativo em dizer.
Talvez o fato de não desenvolver mediunidades do tipo incorporação, clarividência,
“clariaudiência”; talvez o conflito de gerações e a negação de certas formas de pensar dos
pais; ou mesmo a incorporação mal resolvida de remendos do pensamento ocidental que
levaram a necessidade de “certezas absolutas”. Neste mesmo sentido incluiria o fato de
começar a ler autores umbandistas e a aproximação com a filosofia ainda na adolescência.
Os autores umbandistas me levaram a pensar sobre as diferenças entre o que se lia e o que
se observava. Eram dois discursos, dos “teóricos” e dos “praticantes” que muitas vezes
se opunham e eu seria tanto na época, quanto hoje, incapaz de sentenciar quem estaria
correto. Paralelo a isso, a leitura de um livro em particular foi bastante reveladora. Era
um livro sobre Espinosa em que sua história de rebeldia contra a Igreja Católica levando-
o a excomunhão me fez admirá-lo, diante da minha própria experiência enfadonha com a
catequese ou as más lembranças de quando, por exemplo, minha mãe decidiu que todos
deveríamos acordar de madrugada para rezar o terço. Mas o que mais me deixou intrigado
foi que por meio de Espinosa me vi diante da possibilidade de pensar Deus de uma
maneira diferente.
187
A familiarização com a literatura sociológica em geral e o acesso a estudos
acadêmicos sobre a Umbanda, a partir da licenciatura em Ciências Sociais, abriu novas
perspectivas que, entretanto, não resultaram em nenhuma reflexão mais sistemática
naquele momento. Enquanto professor de sociologia tive que lidar com a questão
religiosa nas salas de aulas do ensino médio. Elemento pouco trabalhado nas escolas
cheguei a ser apelidado de “Pai André” após apresentar um vídeo sobre o Candomblé. A
abordagem da religião é um momento de intersecção entre as identidades profissional e
religiosa. Não lembro de aula que trate, sobre qualquer perspectiva, da questão religiosa,
que não tenha sido interpelado sobre minha própria fé. As reações vão desde o
questionamento sobre o que é até a expressão de felicidade dos alunos que também são
umbandistas. Foi a relação com esses alunos que me permitiu chegar a um dos terreiros
aqui investigados.
A pandemia foi a ocasião que permitiu que parte dos meus questionamentos
fossem organizados em um projeto de pesquisa. O problema principal dizia respeito às
origens da Umbanda e mais uma vez as diferenças entre o que lia e o que observava. A
importância que eu percebia na literatura acadêmica e umbandista à história de Zélio
Fernandino de Moraes como fundador da Umbanda não era percebida entre os
umbandistas que conheço. Minha proposta era, portanto, entender em que medida Zélio
Fernandino era aceito entre os umbandistas e se essa literatura era fundamental para seu
reconhecimento.
Desde o início a familiaridade com pessoas ligadas a Umbanda me deu segurança
de que conseguiria entrevistados. A minha vivência faz com que conhecesse um número
considerável de terreiros com práticas diferentes. Terreiros de base kardecista sem
utilização de atabaques, bebidas e charutos, de caráter mais esotérico, aproximados ao
omolocô, etc. Também com condições de funcionamento diferentes. Desde terreiros com
registro, formado a partir de uma sociedade civil-religiosa, com amplo atendimento ao
público até aqueles compostos por três ou quatro pessoas com um espaço improvisado
nos fundos de uma casa. Era meu desejo que esta diversidade ritualística e material se
fizesse presente para se romper com uma visão homogeneizante da Umbanda.
Por isso, além do intento de buscar memórias subterrâneas, o desejo de que a
diversidade não se apagasse no texto fez com que privilegiasse a comparação. Esperava
trabalhar com o maior número de terreiros possíveis. Porém, com a pandemia muitos
188
terreiros deixaram de funcionar ou passaram a funcionar apenas para os membros
internos, sem acesso ao público. Embora conheça muitos terreiros, não tenho uma
intimidade que permitisse estar com esses grupos fechados. Outro fator que
impossibilitou ampliar o campo foi a dificuldade em concluir as transcrições velozmente.
O tempo necessário à transcrição faz crer que um número maior de entrevistas poderia se
tornar inviável diante do tempo estimado para a conclusão do mestrado. Dessa maneira,
este trabalho se restringiu à análise de duas casas em particular.
A princípio, a seleção dos terreiros participantes se daria a partir de um primeiro
contato, determinando o “tipo” de Umbanda que se praticava para se garantir a
diversidade do campo de pesquisa. Entretanto, com a pandemia as visitas não foram mais
possíveis. Tentei então, a partir das lembranças minhas e de familiares próximos levantar
todos os centros que conhecia para então agrupá-los e classificá-los consoante os critérios
estéticos e rituais e daí fazer uma seleção. O problema foi que não se conseguia levantar
todas as informações necessárias. Sabia-se da existência da casa e sua localização, mas
não o endereço exato ou o nome do terreiro, ou não se tinha o contato de ninguém que
pudesse intermediar o acesso. Como não era possível se dirigir aos locais para sanar as
dúvidas ou estabelecer contato esse caminho não levou a lugar algum. Além disso, uma
classificação a partir apenas das minhas percepções seria demasiado arbitrária.
Dessa maneira reduziram-se as possibilidades aos terreiros que eu teria como
entrar em contato. Decidi então me comunicar com três terreiros para começar. Um em
Itaboraí que me chamou a atenção por iniciar as giras com saudação à Exu e manter as
danças em círculo como no Candomblé. Outro no Rio do Ouro, divisa de Niterói e São
Gonçalo que, entendo, seguiria o que se chama de “Espiritismo de Umbanda”. O terceiro,
uma casa de Candomblé que também pratica Umbanda.
O primeiro que entrei em contato via Instagram foi o de Itaboraí. Entrei em contato
com um amigo que é membro da casa e que conheci na época em que ele fazia parte do
quadro de médiuns da Casa de Samir. Para a minha surpresa a resposta que obtive foi que
eles já não se consideravam mais como Umbanda por não se enquadrarem na “caixinha
que colocaram a Umbanda”, conforme disse um dos médiuns da casa. Isto levantou a
questão se uma vez que não se identificam mais como Umbanda ainda poderiam ser
pensados como parte do campo. Mas o que de fato causou a ausência deste terreiro na
189
pesquisa foi que, muito lamentavelmente, eu faltei a entrevista marcada com a líder
espiritual53.
O segundo que entrei em contato foi com o Ilê Asé Yá Togun Benã em Zumbi,
São Gonçalo. Cheguei a ele através de um ex-aluno54. Como já colocado anteriormente,
ao longo do percurso docente abordei a questão da intolerância e da diversidade religiosa,
sempre me apresentando como umbandista. Nestas ocasiões alguns alunos falavam
também sobre sua religiosidade. Sabendo que um desses alunos fazia parte de uma casa
que pratica Candomblé e Umbanda entrei em contato através do Facebook. Descobri que
ele é babalorixá e herdeiro do terreiro, sendo neto da yalorixá Carmem de Yemanjá.
Através dele que consegui a entrevista, sendo também um dos participantes dela. Não foi
esta, porém, a primeira entrevistada.
Logo depois, me comuniquei com a dirigente da Casa de Samir. Conhecendo-a
desde criança entrei em contato através do WhatsApp. Além do caminho já mencionado
que levou a seleção deste terreiro outro fator torna essa escolha importante. Sendo a Casa
de Samir minha principal referência de Umbanda, já que, apesar de visitar outros lugares
ao longo da vida, foi lá onde dediquei basicamente a totalidade da minha vida religiosa.
Colocá-la no campo de pesquisa é parte de um esforço por construir uma prática
sociológica reflexiva. A reflexividade é
o reconhecimento de que o observador é sempre “situado” e a produção
do conhecimento depende do lugar que ocupa no campo da pesquisa.
Nesse sentido, a reflexividade implica em uma crítica às pretensões de
objetividade e neutralidade do saber e da intervenção do pesquisador.
Ao contrário, tende a considerar cada observação e cada conhecimento
como resultado dos processos que possuem um caráter circular,
dialógico e conflituoso (DAYRELL, 2009, p. 11).
53
Em maio do ano passado eu marquei uma entrevista virtual com a mãe Carla de Iemanjá, líder da A
Irmandade Fraternidade Casa de Iemanjá (IFCDI). Entretanto, eu confundi o dia da entrevista e não enviei
o link nem compareci. Enviei mensagem me desculpando, mas a entrevistada ficou com razão contrariada
e não tive coragem de pedir nova entrevista. Só lamentei a oportunidade perdida e o desgaste causado a
entrevistada.
54
De uma turma do Curso Normal do Instituto de Educação Clélia Nanci conheci o aluno Brenno e
posteriormente o babalorixá Brenno de Iemanjá, herdeiro do Ilê Asé Yá Togun Benã. Através das redes
sociais (Facebook e Instagram) mantive contato e quando pensei em incluir seu terreiro na pesquisa foi por
meio dela que entrei contato com ele que se tornou intermediário para que entrevistasse sua avó e ialorixá
Carmem de Iemanjá.
190
Incluí-la é incluir, de alguma forma, a minha própria maneira de enxergar a
Umbanda e colocá-la em perspectiva. É produzir um conhecimento sociológico a partir
de uma “dupla-pertença”. Após estes três terreiros cheguei a entrar em contato com outra
ex-aluna que informou que a casa estava fechada a visitantes. Mais recentemente, quando
a ideia de trabalhar apenas com os dois terreiros mencionados se assentava cheguei a
conhecer outro. Fui sem pretensão, portanto, de incluí-lo na pesquisa. Mas a experiência
demonstrou outro critério de seleção. O centro é formado por um grupo de três a cinco
pessoas em que, com exceção de um, apenas o líder incorpora, centrando em si toda a
atenção. A incoerência nas manifestações dos espíritos, a teatralização das qualidades
mediúnicas, os recados ou lições dadas a partir do que o próprio visitante falou e a oferta
de manifestações ao “gosto do cliente” em um verdadeiro “menu de entidades” me fez
perceber que os terreiros inclusos na pesquisa foram, e talvez, este seja o critério mais
importante, reconhecidos por mim como manifestações espirituais e umbandistas
autênticas. Autênticas porque sinceras55.
A inserção dentro do campo de pesquisa se deu, portanto, a partir de uma posição
de “dupla-pertença”. Melhor dizendo, o questionamento sobre aspectos da Umbanda se
deu a partir do diálogo entre o discurso nativo apreendido por minha própria vivência
religiosa e pelo discurso sociológico aprendido por minha trajetória profissional. Becker
(1993) e Thiollent (1987) já estabeleceram que o problema do método sociológico é o
problema da relação entre o pesquisador e o pesquisado que em termos culturais significa
relação entre interpretações de mundo e em termos individuais, as relações concretas de
investigação. Os contatos pessoais foram os primeiros meios para se alcançar e se eleger
os terreiros investigados e os personagens entrevistados. Se por um lado, o procedimento
não parece objetivo, por outro, considerando o fato de serem “estudos de caso” e de
preencherem o requisito preestabelecido da diversidade, e da possibilidade de acessá-los,
foi o meio viável de se realizar a pesquisa, dadas as condições expostas anteriormente.
55
Dentro da experiência umbandista, a possibilidade de a manifestação dos espíritos serem forjadas por
alguns indivíduos é levada em consideração. A esta possibilidade é dada o nome de “mistificação”. Esta
pode se dar de duas maneiras. Inconscientemente, quando a pessoa acredita que está sob influência do
espírito, mas não está. Conscientemente, quando de maneira deliberada a pessoa simula essa influência
visando se aproveitar do prestígio das entidades e da fé de quem busca ajuda. Não existe uma técnica
prescrita e precisa para indicar esses casos. Vai da experiência e da sensibilidade. O conhecimento da forma
de comportamento das entidades leva a desconfiança quando o médium foge do padrão; e algumas pessoas
seriam capazes de sentir a energia das entidades e, quando não sentem, entendem que não há manifestação
verdadeira.
191
5.2 Técnica de pesquisa: história de vida
Levando em consideração o contexto em que a pesquisa aconteceu, o debate
anterior sobre a superação de uma “logica identitária restritiva” e tendo como objeto as
memórias coletivas de terreiro, a história de vida se apresenta como técnica adequada na
medida em que atribui “uma importância maior às interpretações que as pessoas fazem
de sua própria experiência como explicação pelo comportamento” (BECKER, 1993, p.
103).
Santhiago e Magalhães (2020) consideram que um princípio tácito da discussão
metodológica no campo da história oral é a entrevista como “o encontro de duas
subjetividades, de dois conjuntos de saberes, de dois repertórios linguísticos, etc., mas
inclusive – e no meio de tudo isso – o encontro presencial de dois corpos" (op. Cit.: 3).
Ainda de acordo com autores o conceito que melhor expressa a centralidade do
encontro entre corpos na entrevista é performance. Este conceito revela que o interesse
da história oral não está só na fala, mas, sobretudo, no falar. Na escolha de palavras, na
cadência, no volume da voz, nos trejeitos, nas expressões faciais. Enfim, a história oral
está interessada na performance do entrevistado durante a narrativa. Mas não é só isso.
Inclui-se também o local do encontro, o mobiliário, e os objetos que circundam colocando
o próprio pesquisador como objeto de reflexão. Tudo isso só é possível no encontro face
a face, não sendo possível a separação entre a técnica da entrevista e o encontro dos
corpos.
Entretanto, baseando-se em (SANTAELLA 2007), Santiago e Magalhães
chamam a atenção para a compreensão do corpo como sintoma da cultura, do meio como
prolongamento do corpo e da fala como tecnologia. Conclui que se a fala desnaturaliza o
homem e se constitui enquanto artifício simbólico a própria entrevista face a face é
artificial. Outro aspecto da história de vida é sua aceitação tácita da
filosofia da história no sentido de sucessão de acontecimentos
históricos, Geschichte, que está implícita numa filosofia da história no
sentido de relato histórico, Historie, em suma, numa teoria do relato,
relato de historiador ou romancista, indiscerníveis sob esse aspecto,
notadamente biografia ou autobiografia (BOURDIEU, 2006, p. 183-
184).
192
Efetivamente, a construção da trajetória das entrevistadas foi pautada por minha
preocupação em obter uma compreensão cronológica dos relatos. Marcado por perguntas
que sinalizam o período dos ocorridos, e por revisões durante a entrevista, a fim de
confirma a sequência dos acontecimentos. As entrevistas seguiram o modelo
semiestruturado. Foi elaborado um roteiro com perguntas abertas que giraram em torno
de três questões. A trajetória religiosa do entrevistado, o terreiro e as questões principais
da pesquisa. Com relação à trajetória três momentos foram alvo de questões. As origens
familiares e suas relações com a religiosidade; o início da vida espiritual; e o seu
desenvolvimento até chegarem aos cargos de liderança. Ao mesmo tempo, os
acontecimentos que deram concretude aos períodos previamente elaborados foram
apresentados por elas, assim como a dimensão não cronológica da narrativa, “as funções
e os sentidos do enredo” (BAUER e GASKELL, 2008, p. 93).
A expectativa era que a partir da compreensão da trajetória e das características e
funcionamento do terreiro fosse possível se compreender a formação das representações
sobre a Umbanda e sua origem. Embora não se tenha utilizado “juízes” como
recomendam Belei et al. (2008) essa estratégia foi discutida previamente com o orientador
e testada com meu pai que não é um líder religioso, mas tem uma longa trajetória na
religião. Segundo ainda a perspectiva de Belei et al. (2008):
Um bom entrevistador é aquele que sabe ouvir, mas ouvir de forma
ativa, demonstrando ao entrevistado que está interessado em sua fala,
em suas emoções, realizando novos questionamentos, confirmando
com gestos que o ouve atentamente e que quer compreender suas
palavras, mas sem influenciar seu discurso. Ele aprofunda o relato do
participante e mostra atenção sobre detalhes importantes. (op. Cit.: 190)
Em consonância esforcei-me por fazer a entrevista o mais próximo possível de
uma conversa. O uso do gravador dispensou o bloco de anotações e a não utilização de
um papel com as perguntas escritas garantiu a dinâmica de uma conversa sem a
intermediação de um papel. Assim, embora as questões estivessem pré-determinadas a
formulação das perguntas se deu de forma mais natural, nos termos que se desenvolvia a
própria entrevista. A estratégia para não se perder foi usar a trajetória, concebida como
sequência cronológica, como fio condutor da conversa. Na medida em que ia se
desenvolvendo o relato é que as perguntas sobre o terreiro e sobre a Umbanda iam sendo
formuladas. Esta estratégia, porém, inevitavelmente, deixou certa dissimetria entre as
193
entrevistas. Na medida em que as trajetórias são diferentes algumas perguntas perdem o
sentido. Mas, mesmo que algumas perguntas tenham aparecido em uma entrevista e em
outra não aquelas que estão diretamente ligadas ao problema foram feitas. A expectativa
inicial era que a partir de uma segunda entrevista se pudesse corrigir as dissimetrias, tirar
dúvidas e aprofundar determinadas questões. Entretanto, diante da proporção de trabalho
que a segunda parte exigiu, e não era esperada, não houve tempo hábil para a realização
de uma segunda entrevistas com cada uma das líderes.
Outro aspecto que vale salientar é sobre a necessidade de não influenciar o
discurso, como exaltam os autores. Bourdieu (1997) coloca que a relação de pesquisa é
uma relação social que exerce efeito sobre os resultados. Da mesma maneira, Portelli
(2010) sustenta que embora a narração oral tenha existência autônoma ela só toma forma
em um encontro pessoal causado pela entrevista de campo. Sendo assim, ao invés de
buscar garantir certo distanciamento busca-se pensar de que maneira o contexto da
entrevista é o contexto de construção de narrativas e representações.
5.3 A Casa de Samir e a dirigente Maria do Carmo
Já coloquei que fui criado dentro da Umbanda. Particularmente, dentro da Casa
de Samir. Este centro foi fundado em 1952 no interior da Federação Espírita do Estado
do Rio de Janeiro, em Niterói, onde teve como sede provisória até que se construísse a
definitiva, o que aconteceu anos depois. Seu nome original era “Centro Espírita Casa de
Samir”. Surgiu como um projeto ao mesmo tempo, religioso e filantrópico.
Foi construído em um terreno doado pela prefeitura de São Gonçalo no bairro do
Rio do Ouro, onde ainda hoje se localiza. Sua obra filantrópica vinculou-se a educação
possuindo uma creche, alfabetizando e dando formação profissional para os membros da
comunidade do entorno. Constituiu-se em escola até que durante o governo Brizola, cedeu
parte do terreno para a construção do CIEP 126 que recebeu o seu nome de sua fundadora
já falecida, Almedorina Azeredo.
O fato de não só ter sido fundada dentro da Federação Espírita do Estado do Rio
de Janeiro como filiar-se a esta, permite afirmar que a Casa de Samir surge como um
centro espírita kardecista e traz na sua organização aspectos da formação de centros
194
espíritas da época. Forma-se como sociedade com uma diretoria composta de cargos
eletivos e aliou desde o seu início a caridade filantrópica à caridade espiritual.
Figura 8: Ata de fundação do Centro Espírita Casa de Samir
Anos mais tarde, porém, o centro desfilia-se da federação e retira a designação de
“Centro Espírita” do seu nome, passando a chamar-se simplesmente “Casa de Samir”.
Atualmente, mantém em sua prática vários elementos da ideologia, linguagem e prática
kardecistas. A ideia de evolução espiritual, o reencarnacionismo, o desenvolvimento
mediúnico, as ideias de desapego material e caridade, bem como os projetos de assistência
195
social se mantém. Os passes e fluidificação da água se encontram em sessão específica.
A manifestação de espíritos de médicos é enquadrada em uma das linhas de Umbanda, a
linha do Oriente56. A líder religiosa não assume os títulos de “mãe de santo”, “ialorixá”
ou correspondente, sendo tratada como “dirigente” ou “chefe”. E, por fim, não se pratica
rituais de iniciação, como a raspagem ou o bori, ou oferendas tais quais outras religiões
afro-brasileiras.
Ao mesmo tempo, perdeu algumas das práticas kardecistas como sessões de
estudo da doutrina, as palestras, e as sessões de mesa. A doutrinação de espíritos
obsessores ainda acontece, mas sem a mesma centralidade, sendo uma decorrência, em
alguns casos, de outro trabalho muito mais valorizado, o “descarrego”. Em sua estante a
maioria dos livros são kardecistas, mas sua leitura não é obrigatória, embora porventura
possa ser aconselhável. Tão pouco é exigido o domínio da doutrina ou é estimulado o
conhecimento por meio da literatura.
Apesar da presença destes elementos kardecistas na ideologia e prática da casa, e
sobretudo, na sua forma de organização social, o culto da Casa de Samir se estrutura a
partir das entidades umbandistas. A liderança espiritual é realizada por um caboclo e seus
assistentes, também caboclos. Nas giras invocam-se entidades como pretos velhos,
baianos, mineiros, boiadeiros, pomba-giras e exus, além dos orixás Oxóssi, Ogum,
Xangô, Iansã, Iemanjá, Oxum, Nanã e Obaluaiê. Tudo ao som dos atabaques. Usam-se
charutos, cigarros, bebidas alcoólicas, pembas e outros elementos.
O calendário é organizado em seis tipos de sessões. Terreiro com criança, sessão
de médiuns, sessão de saúde ou cura, consulta com preto velho, Consulta com Cigano,
Terreiro com exu. As sessões acontecem em quatro sábados de cada mês. O primeiro
sempre é “Terreiro com criança” e o último “Terreiro com exu.” Em geral, o segundo
sábado é a sessão de médiuns, mas se houver feriados este pode ser suprimido. A sessão
exclusiva para médiuns não traz nada que seja diferente daquelas que são públicas. São
simplesmente um espaço para serem atendidos nos trabalhos de “descarrego” que são
praticados em dia de terreiro. As demais sessões tendem a revezar o terceiro sábado
56
Como se viu no capítulo II o primeiro a falar em linhas de Umbanda foi Leal de Souza. A partir de sua
experiência com a Tenda Nossa Senhora da Piedade falou sobre a existência de 7 linhas. Cada linha
incorpora um conjunto de espíritos que correspondem a um arquétipo. Depois dele muitas outras versões
das 7 linhas apareceram não havendo consenso sobre quais são elas. Na Casa de Samir, a linha do Oriente
é aceita como uma dessas linhas.
196
podendo cada um ser realizada a cada dois meses. Geralmente, a consulta com Cigano e
a Sessão de cura ocorrem no mesmo dia.
Foi entre os anos de 1985 e 1987 que a atual dirigente chega ao Samir, egressa de
outra casa de Umbanda. Maria do Carmo nasceu em primeiro de setembro de 1956 no
distrito de Cisneiros, município de Palma, Minas Gerais. Terceira de quatro irmãos. O pai
trabalhava em uma fazenda de gado. A mãe era dona de casa. Com nove anos se mudou
para Campos. Foi para a casa de um dos irmãos do dono da fazenda que o pai trabalhava.
Foi para lá para estudar e fazer companhia para o filho que era único 57. Antes disso,
porém, foi para uma fazenda em Pádua, cidade onde uma de suas irmãs também já estava
com outra família, mas não se adaptou e voltou para a casa dos pais. Ficou em Campos
até 1972 quando com 14 ou 15 anos foi chamada para a casa de outra família em Niterói,
também parente dessa família de Campos, onde trabalhou até recentemente.
Seu relacionamento com o espiritismo não vem da família. Sua experiência revela
uma gradual aproximação com a Umbanda. Primeiro, tinha na infância a curiosidade
pelas oferendas encontradas no caminho da escola.
Eu: E como é que foi essa questão então é do espiritismo?
MC58: Pra mim? Pra mim isso sempre me chamou a atenção desde
criança.
Eu: Quando você morava na casa dos seus pais já tinha, já conhecia
casa espírita?
MC Já porque era assim: quando eu tava lá em Campos, eu estudava lá
no Julião Nogueira, perto da usina, usina de Queimados. Aí quando
atravessava o campo lá, pra cortar caminho, aí sempre às vezes via umas
arriadas lá, uma macumbinha. Aí depois que já... eu: “ué, tinha...” Aí
eu voltava por curiosidade. Achava aquilo curioso, interessante e assim
foi.
Depois, sem muito envolvimento ou interesse, teve contato com o kardecismo
praticado pela família em que ela ficou em Campos. Porém, esse momento, segundo o
relato, permitia antever a importância que outro núcleo familiar, e particularmente a
figura de Zé Augusto, teria na sua experiência religiosa.
57
Durante três vezes ao longo da entrevista questionei sobre quais eram suas tarefas na casa desse
fazendeiro e em todas às vezes ela afirmou que só brincava, negando a existência de uma relação de
trabalho.
58
MC: Maria do Carmo
197
Aí depois Dona Theresa começou a frequentar negócio de Kardec e
tinha um dia da semana que a... as outras médiuns lá assim faziam na
casa dela, né? De fluidificar água, aquelas coisas todas. Só que a gente
era criança então nessas horas mandava a gente pra fora, pro quintal pra
não perturbar eles lá. Mas nada me afetava assim não. Bebia a água,
essas coisas. Mas quando ela tocava no assunto desse pessoal de Niterói
que onde eu vim. Que às vezes ela falava com o marido: “fui lá em
Niterói visitar... Maria Célia, Zé Augusto.” Quando eu escutava ela
falar de Zé Augusto aquilo chamava a atenção, aí eu pensava comigo:
“um dia vou pra essa casa”. Eu pensava comigo, não falava nada não.
Só pensava assim. E com o decorrer do tempo o que aconteceu foi isso
mesmo (Risos).
É nesta casa que haverá um chamado para a conversão, ou nas palavras da
entrevistada, para o desenvolvimento. Esse chamado é antecedido por um momento de
crise que de certa maneira nada mais é do que a manifestação espiritual sem controle.
Roger Bastide chegou a afirmar que “a iniciação não tem outro objetivo senão socializar
a crise para que daí por diante se processe segundo os padrões africanos" (BASTIDE,
1961, p. 30). O reconhecimento dessas manifestações não parece, entretanto, ser um
processo simples e parece exigir um olhar mais experiente de uma ou mais pessoas
(encarnadas ou desencarnadas) para apontá-la e explicá-la.
Aí um dia ele levou o pessoal que ele, que era do centro que ele
frequentava, foi aí que eu descobri que ele frequentava centro, lá pra
dar uma rezada assim na casa. Aí quando eles chegaram eu lembro que
eu tava jantando, aí fecharam, tinham uma sala a parte né? Aí eles
ficaram naquela sala, os velhos lá tudo (inaudível) aí aquilo me deu uma
agonia, sentia até vontade de correr (risos). Aí toda hora ia lá abria a
porta assim um pouquinho pra ver o movimento. Aí quando eu via se
aproximando da porta aí eu me mandava. Aí dava um tempo depois
voltava de novo até que tinha um homem lá que falava que devia falar
tipo Pena Branca sabe? Que eu não entendia nada que ele falava. Aí eu
vendo assim ele conversar com um homem, que acho que era o
cambono, aí ele falava alguma coisa pro Zé Augusto, aí Zé Augusto
veio pro lado da porta, aí ele pegou e falou: “agora cê não sai não, fica
aí!”. Aí eu fiquei meio assim receosa, mas fiquei em pé ali. Aí ele falou
assim: “Ele tá perguntando sua data de aniversário.” Aí eu falei... não
sei mas o que ele falou lá que eu... aí ele virou e falou assim: “Ele tá
perguntando porque às vezes você senta num lugar e chora? Você tá
muito bem, de repente você faz isso.” Aí eu virei assim: “É! Mas quem
contou isso pra ele?” (Risos) Aí o homem falou assim: “ninguém
precisa contar nada pra ele não”. Aí depois o moço me falou: “Ele tá
dizendo que mais pra frente você precisa se desenvolver.” Aí o tempo
passou. Aí depois começou assim a ter alguma manifestação, mas eu
não me dava conta... do que que era. Às vezes tava no colégio, de noite...
Aí de repente sei lá, não sei o que sentia eu saia, ia embora. Aí eu... José
198
Augusto percebia que eu estava meia estranha, mas eu não me tocava
não. Aí eu comecei a prestar atenção nas coisas e teve um dia, eu tomava
benção à Zé Augusto... Aí tinha tido um aniversário de Eugênio... Aí eu
me lembro que depois todo mundo foi embora que ia catando as coisas,
ajeitando mais ou menos as coisas eu dormia no quarto com os meninos.
Aí quando chegou de manhã eu fui tomar a benção de Augusto, ele
disse: “Não sei se eu devo te dar a benção”. Aí eu fiquei assim: “Hã?
Mas por quê?” Ele: “Ontem quase você foi”, falou assim. Mas tinha me
dado uma explicação não. Eu ficava tipo o que é isso não sei o que. Aí
ele virou pra mim e falou assim... tinha, aqui era o quarto dos meninos,
aqui tinha um corredor que ia pra uma das salas e tinha o banheiro que
era dos meninos, do lado de cá ia pra cozinha. Falou assim: “Quando
eu passei com Marcelo no colo pra botar na cama, você estava...” Eu
lembro até hoje, “Maria do Carmo pega um pano dá uma passada no
chão do banheiro que tem criança, respinga água!” Eu, eu me lembro
que eu peguei um pano, a parede era um espelho de fora a fora, a pia
também, cumprida de mármore, eu me lembro até hoje, eu segurei
assim do lado da pia e foi (inaudível). É o que eu lembro. Ele disse que
nessa hora ele ia passando com Marcelo quando eu fui cair bati assim
no box quebrei (Risos) quer dizer, aí não sei... Ele me chamou, ele
falando comigo, mas isso aí eu não lembrava que eu dizia não sei o que,
acho que tava vendo um preto velho, tava vestido de branco, pela
descrição era isso. Aí...
Muitos outros casos e experiências aparecem em seu relato, todos indicando a
necessidade de se integrar a religião. Necessidade expressa verbalmente pelos membros
da família em que ela trabalhava, e por entidades e pessoas ligadas a centros que ela
passou a conhecer. Ao lado das crises, que implicam muitas vezes em perda de memórias,
há a presença de pessoas que contam o que aconteceu e que interpretam os fatos a partir
de seus quadros de referência. Assim, sua memória sobre a descoberta da mediunidade
depende em larga medida do grupo em que faz parte, estando conforme as investigações
sociológicas que apontam para o caráter social da lembrança. Como reforçam a
compreensão de interpretação coletiva de suas experiências, paulatinamente incorporada
por ela conforme vai, nas palavras da entrevistada, se “inteirando” do assunto, fazendo
visitas, consultas e se familiarizando com o universo religioso. O conjunto desses fatores
culminara na aceitação de sua “missão”.
MC: Cabana do Pai José. Agora já não existe mais. Já acabou. Quem
ficou pra tomar conta não quis, aí passou o centro pra Federação
Espírita. Eles fazem outras coisas lá.
Eu: E quem era o líder na época?
MC: Era seu Reinaldo. Reinaldo Miranda. Já faleceu também.
Eu: E aí ela te levou lá e aí a primeira vez você já sentiu...
199
MC: Senti. Quando eu entrei pra tomar o passe cai lá no chão (risos).
As pernas bambearam e eu caí. (risos). Aí ele falou. O dono da casa
virou pra mim e falou: “Só me apareça aqui se você tomar uma decisão.
Ou então se afasta.” Eu aí eu fiquei num desespero que eu não queria.
Peguei dinheiro emprestado pra comprar logo minha roupa e entrei.
Porque eu queria fazer parte daquela roda que tava lá. Eu sentia que
queria tá lá.
Eu: Você tinha vontade de estar lá?
MC: Aí eu fiquei. Duas amigas que eu tinha entraram, depois eu entrei.
A Cabana do Pai José foi onde iniciou seu percurso na religião. Esta casa apresenta
como o Samir, uma forte relação com o kardecismo, sendo passada a Federação Espírita
quando teve suas atividades encerradas. Quanto a sua organização, relata que todos
usavam branco e as mulheres não usavam baiana, assim como no Samir. Havia sessões
da linha do oriente e sessões de terreiro. Ainda segundo seu relato, a organização das
sessões era próxima ao da Casa de Samir. Fazia-se uma abertura, preces, como a prece de
caritas e cantava os pontos das entidades que iam tomar conta do terreiro.
O chefe de terreiro, o caboclo Ubirajara, separava os médiuns de acordo com a
mediunidade. Enquanto os mais antigos trabalhavam dando consulta os mais novos
ficavam com ele ou com alguém designado por ele para fazer o desenvolvimento. Depois
de um certo tempo, mais ou menos dois anos, quando já se estava “pegando as entidades”,
o caboclo Ubirajara selecionava os médiuns que fariam a “confirmação”. Esta acontecia
em um terreno do centro em Boca do Mato. Lá se utilizava utensílios que não eram
utilizados na casa, como, por exemplo, o charuto. Perguntada sobre o porquê de não usar
responde:
Acho que... nunca me indaguei isso não. Mas acho que era a questão
mais da própria evolução né. Tanto é que por exemplo eu tinha um
caboclo que não era o Mata Virgem. É o que começou chegar lá
primeiro. Ele gostava de charuto.
Eu: Qual era o caboclo, você lembra?
MC: Pena Verde (Risos). Assim me disseram, que ele é um caboclo
mais novo. Mata Virgem é um caboclo mais velho. Mata Virgem
chegou assim pouquíssimas vezes e sabe, não fixava. Chegava e subia.
(gesto com as mãos indicando uma subida rápida). Caía fora.
O uso de utensílios está associado a ideia de evolução. Essa ideia está associada a
outra ideia, a ideia de maturidade e a experiência com seus guias é seu principal
argumento. O caboclo Pena Verde, mais novo, fuma charuto, o caboclo Mata Virgem,
mais velho, não. Tanto os pressupostos evolucionistas quanto a formas como se organiza
200
a casa e se relacionam aproximam-na não só da Casa de Samir (embora está se utiliza de
charuto e bebidas no terreiro e não realizem sessões fora do terreiro) quanto com o
espiritismo de Umbanda abordado anteriormente.59
Retomando a fala sobre seu ingresso na Cabana é válido ressaltar um aspecto
importante de sua decisão. O fato dela “sentir” que queria estar ali. Sua escolha não se
pauta, portanto, em uma racionalidade que calcule prós e contras ou soluções de
problemas. As “crises” que a levaram a se aproximar da Umbanda não determinaram o
seu ingresso. Apesar de a “crise” estar presente e haver um “ultimato” do líder da casa, já
havia anteriormente um desejo de fazer parte do grupo baseado em um “sentir”. As
“crises”, sintomas de um chamado espiritual, apontam para as forças externas que
influenciaram sua escolha de entrar na Cabana, mas estão também presentes na sua
decisão de sair.
MC: Quem chegava constantemente era esse que eu tô falando. Só que
até então eu não dava conta ainda desse outro. Sempre chegava uma
entidade ela nunca ficava. Chegava e logo em seguida ia embora.
Quando ele me chamou que eu precisava encontrar um outro local era
por causa dele.
Eu: Do Pena Verde?
MC: Do Mata Virgem. Seu Reinaldo que era o diretor da casa. Ele,
quando ficou sabendo que eu ia sair ele falou: “quem que mandou?”.
Falei: “Caboclo Ubirajara.” Ele: “Mas eu não estou sabendo disso. Vou
falar com ele.” Ele foi conversou com ele...
(...)
Aí ele conversou lá com ele para que eu não saísse. “Não! Não tem
como segurar ela aqui porque é problema de guia. Deixa ela ir para ver
como é que fica.” Aí vim. Sofri porque eu não queria sair de lá. Mas aí
quando eu vim Pena Verde chegou acho que umas duas, três vezes no
máximo. Aí de repente sumiu. Aí começou a vir esse. Aí que eu vim a
descobrir que era o Mata Virgem. Ele mesmo mostrou em sonho,
riscando o ponto dele na Casa.
Eu: Então o Mata Virgem não trabalhava nessa casa?
MC: É! Teve até uma época quando tinha trabalho lá na mata, quando
eu fui falar com a vovó Carolina, que sabia que a gente ia, quando voltei
pra comentar com ela que tinha ido ela virou pra mim e falou: “E aí
minha filha, Mata Virgem riscou?” Quando ela falou isso eu: “Ih vó!
Saiu tudo errado então! (Risos) Porque foi fulano de tal que esteve lá.”
Ela que falou pra mim: “Eu sei, mas não é que estivesse errado não. É
porque ele é muito moleque ainda. Ele pulou na frente do Mata
Virgem.” (Risos) Entendeu? Ele entrou na frente e riscou. Aí quando
59
Uma coincidência interessante é que o terreno da Cabana do Pai José é em Boca do Mato, bairro da
cidade de Cachoeiras de Macacu onde a Tenda Nossa Senhora da Conceição de Zélio Fernandino se situa
até hoje.
201
eu vim para aqui eu percebi que não era o Pena Verde que estava vindo.
Mas eu demorei um pouco pra saber. Aí ele me mostrou em sonho. Eu
com ele incorporado e eu... lembra o chão de cimento que tinha, que
não era esse que está lá, era cor de cimento? Era aquele chão ainda
quando ele me mostrou riscando ali mesmo perto do gongá.
Em 1985 então, Maria do Carmo sai da Cabana, pois o seu guia, Caboclo Mata
Virgem, que era o mais velho e mais maduro não trabalhava, já que outro caboclo, o
Caboclo Pena Verde, “pulava na frente”. Este momento revela outro aspecto de sua
trajetória. É que, acima do “sentir”, da sua individualidade, motivações e desejos, se
impõe as necessidades ou desejos das entidades. Assim, se sua vontade foi fator
determinante no seu ingresso na Cabana, na sua saída, seus desejos não foram levados em
consideração, tanto que ela “sofre”. Revela-se assim dois aspectos de uma concepção de
existência material e espiritual. O primeiro, é que no mundo existe uma realidade
espiritual que se sobrepõe aos desejos individuais. O segundo, é que esta realidade
espiritual não é caracterizada por uma vontade superior absoluta. Ela possui conflitos que
não se reduzem ao maniqueísmo de uma luta do bem contra o mal, mas que apontam uma
existência espiritual tão complexa quanto a existência material. A sua saída foi a solução
para um conflito que não era seu, mas de suas entidades.
Um último aspecto que será determinante em sua trajetória é a noção de “missão”.
Se a solução do conflito deu como preferência a atuação de um caboclo em detrimento de
outro, que deixou de se manifestar, é porque existia uma missão a ser cumprida tanto por
aquele caboclo quanto por ela.
MC: Não, a questão, não sei se vou usar a palavra certa, a missão dele.
Depois que eu já estava aqui, que o Ubirajara disse: “Você vai, fica um
ano e volta aqui para eu ver como você está.” Aí assim eu fiz, ele disse:
“Pode continuar lá. Porque lá está mais próximo da linha dele.” E
segundo porque ele é chefe de terreiro. Na época ele até falou comigo:
“Vai preparando a casa porque...” (Risos) Eu: “É muito difícil”. “Então
vai ficando lá pelo Samir.” (Risos)
Eu: Então lá em 85, 86 já falou que você...
MC: Em 85, 86, acho que foi mais ou menos lá por 87.
Eu: Mas aí nesse momento falou que você assumiria, então?
MC: Aí ele mandou que eu continuasse pra cá pra me preparar e me deu
esse aviso: “Vai se preparando por que ele é chefe de terreiro, ele vai
querer a casa dele. Eu no caso que falei pra ele: “Ah caboclo vai ser
muito difícil.” Aí eu falei pro meu: “O senhor vai ficando pela Casa de
Samir mesmo que vai ser difícil (Risos). Isso passou anos até que
ocorreu o dia lá da Dona Jacira entregou, ela nem nunca soube nada
desse assunto, aí quem entrou no lugar foi eu né.
202
É quando vai conhecer a Casa de Samir, onde a “linha” era mais próxima do
Caboclo Mata Virgem que ele assume de vez o seu papel. A palavra linha nesse contexto
não apresenta exatamente o mesmo significado que o usado anteriormente. Tanto o
Caboclo Mata Virgem quanto o Caboclo Pena Verde fazem parte da linha de caboclos ou
de Oxóssi. Entretanto, concebe-se que no interior de uma linha existem outras
subdivisões.
MC: É complicado, pra gente é uma coisa, você vai em outra linhagem
o assunto já foge para outro ramo diferente, entendeu? Aí quer dizer...
21, não está vindo na minha cabeça agora, esqueci aqui... desses 21 vem
mais 21 e vai por aí a fora (risos) por isso que eu nem me aprofundo
(risos).
Eu: Tem umas coisas que eu não entendo muito bem. Porque fala que
são sete linhas, mas a gente chama muito mais que sete linhas.
MC: É acaba sendo mais. Vai subdividindo.
Esta noção de subdivisão das sete linhas foi teorizada por intelectuais
umbandistas. Apontando Lourenço Braga e Fontenelle como os primeiros a desenvolver
a teoria das linhas, Ortiz (1999) detalha a versão presente em Umbanda de todos nós de
Woodrow Wilson da Matta e Silva. Representante da Umbanda Esotérica, defensor de
uma existência milenar da Umbanda e um dos propagadores do Caboclo das Sete
Encruzilhadas como organizador da religião no Brasil. Segundo ele, as linhas de
Umbanda, grandes exércitos de espíritos que obedecem a um chefe (orixá), são sete:
Oxalá, Iemanjá, Xangô, Ogum, Oxóssi, crianças e pretos-velhos. Cada linha se subdivide
em sete legiões. Cada legião é composta de sete falanges, dirigidas por sete orixás que
não se manifestam nos corpos dos adeptos. Cada falange é dividida em sete sub-falanges
e assim por diante. Na parte inferior encontram-se guias e protetores. Encontra-se assim
um ponto de contato entre os discursos intelectualizados e o da dirigente Maria do Carmo.
Sua fala reconhece que para um conhecimento pleno do “cosmos” faz-se necessário mais
aprofundamento. Não diz, entretanto, em que consiste este aprofundamento. Ao longo de
sua narrativa sobre o processo de desenvolvimento se remete sempre a experiência do
terreiro, apesar de citar a prática de leituras kardecistas antes de sessões da linha do
Oriente. Assim, embora, a literatura fizesse parte do contexto de formação enquanto
médium, é na própria manifestação do espírito que encontra o conhecimento.
203
MC: É eu na verdade, desde que eu entrei ali eu me incluo assim né?
Então eu sou aquilo, por isso que eu sei falar pouco. Porque o que eu
sei ele me intui na hora. É o que eu falo com as pessoas "Gente, ele me
passa assim, mas não me pergunta porque na verdade eu não sei." Tipo
assim, faz isso e isso, mas eu lá no fundo não estou sabendo a finalidade,
depois eu posso até vir a saber, mas...
Eu: Então no caso...
MC: É uma coisa que ele faz ali, por isso que eu estou falando, me
pergunta isso, eu faço ou não faço, mas ele faz ali pra mim, assim eu
não sinto receio. Eu Maria do Carmo, por isso que eu falo, me pergunta,
entendeu, eu vou dizer "tem que fazer isso, tem que fazer aquilo",
entendeu eu já quero logo saber por onde eu vou passar (sorrindo). Mas
essa coisa ele me dá segurança eu não me sinto assim insegura.
Eu: Então, no caso, o mais importante é a intuição né?
MC: É eu vou por aí. Ele: "Pega aqui, bota aquilo ali, risca assim" eu
vou fazendo, mas eu não estou sabendo te dar explicação ali.
Eu: Entendi. E no caso, então não é necessário saber a explicação?
MC: Não, eu acho que é necessário porque você faz a pergunta aí eu
vou saber te responder, mas...
[Silêncio]
Eu: Mas aí no caso então se ele não dá a explicação também...
MC: Se ele não passar pra mim eu não sei explicar não.
Eu: Entendi. E teve algum...
MC: A não ser que eu já tenha um conhecimento sobre aquilo ali. Aí...
Eu: Entendi. É muito na prática né, vai acontecendo as coisas e...
MC: Aham é.
O conhecimento não está nela, mas na entidade e depende desta para que ela tenha
acesso. Nesta relação o conhecimento é essencialmente um saber prático, mais
preocupado em realizar que explicar. É um conhecimento que mais uma vez remete ao
“sentir”. A intuição, que por si só já é uma forma de sensibilidade60, lhe garante o
sentimento de segurança de saber o que fazer, mesmo que não possa explicar o porquê
fazer. O conhecimento das causas, mecanismos e teorias, só se fazem necessárias na
relação com as outras pessoas, para que se possa justificar, se preciso for, as instruções.
Em sua relação com o espiritual, o conhecimento racional não se coloca como validador
de um saber fazer. O que o valida é o próprio “sentir”.
Retomando o processo de sua saída da Cabana, outro fator associado é esta
mudança está ligado a missão do Caboclo Mata Virgem e do cargo que Maria do Carmo
estaria destinada a ocupar.
60
Intuição define-se como “ato de ver, percepção clara, reta, imediata, de verdades sem necessidade de
intervenção de raciocínio” (BUENO, 1981, p. 614), compreendida enquanto forma de percepção:
“conhecimento por meio dos sentidos, de estímulos exteriores que determinam sensações” (BUENO, 1981,
p. 850).
204
MC: É porque na verdade André, assim, lá não tinha campo para ele. O
detalhe era esse. Para fazer o que ele precisaria fazer que no caso dele
era dirigir. Na Cabana não tinha esse campo para ele. Por isso ele se
aproximava mais do campo de Samir. Ou, ele se tivesse a casa dele, ele
mandava direto, mas ali mesmo ajudando, já dava campo para ele,
entendeu?
A noção de linha, soma-se a de “campo” que neste contexto relaciona-se com o
espaço ou a possibilidade dele exercer a função a ele destinada. Ou seja, tendo o Caboclo
Mata Virgem que ser dirigente espiritual de uma casa (fosse sua ou não) e não havendo a
possibilidade de ele ser chefe na Cabana, a saída da Maria do Carmo se tornou inevitável.
É pertinente não deixar despercebido que a entrevista sobre a história de vida de Maria
do Carmo de alguma maneira se tornou a análise da trajetória do Caboclo Mata Virgem.
Ao longo do período que esteve na Casa de Samir, Mata Virgem ocupou um dos
cargos de guia assistente, até que, em 2011, D. Jacira, dirigente até então, abandonou o
cargo por conta da idade avançada e de problemas de saúde, nomeando Mata Virgem
como guia chefe. Olhando em retrospectiva, a entrevistada vê sentido em sua trajetória.
MC: É porque, engraçado, são detalhes que tem assim de depois você
fica pensando "engraçado". Por que ele sempre ficou ali ajudando assim
né? Aí às vezes seu Estrela chegava aí vinha cumprimentava aí falava
"recebe seu guia". Aí às vezes eu falava "deixa eu quieta aqui"
entendeu? (risos) Ele "não, recebe seu guia". Aí tudo bem. Tinha outras
vezes que tornava a falar, aí falava "recebe ele aqui que eu estou
precisando dele aqui." Aí tudo bem. Aí teve algumas vezes também,
uma vez foi o que, José, Josefa, Regina, tudo aí falava assim alguma
outra coisa lá para fazer "bota Maria do Carmo pra fazer" pra fazer,
fazer aquilo aí ela só fazia assim61. Não falava, só fazia sinal com o
dedo. Aí que é que tem, por exemplo, negócio de alimento mesmo,
algumas vezes falava "bota..." Por quê: Ele só fazia assim (gesto) que o
meu lugar era lá no salão, mas ele não falava só fazia o sinal. Mas na
época também eu não entendia, entendeu? Eu via aquilo e ficava na
minha. Mas acho que é porque ele já sabia que realmente minha função
tinha que ser lá dentro, entendeu? (sorriso)
O sentido atribuído a sua trajetória está relacionado a noções de predestinação e
de “missão”. Bem como a sua história está pautada na trajetória de seu guia, o Caboclo
Mata Virgem. Desde o ano de 2020, não faço mais parte do corpo de médiuns da Casa de
61
Devido a distância entre o tempo da entrevista e o da transcrição não pude mais lembrar qual era o
gesto que acompanhava a fala.
205
Samir. Mas quando ela assumiu a direção e até este ano eu exerci a função de tabaqueiro62.
Durante esse período desenvolveu-se entre nós o companheirismo e a cumplicidade que
criou uma relação de respeito e amizade que antes não existia. Por isso, o contexto da
entrevista se dá sob uma relação pessoal de proximidade. O que resultou em certo temor
de que ela considerasse que certas perguntas ou certas explicações não fossem pertinentes
por acreditar que pela minha vivência na casa, eu saberia. A relação, entretanto, facilitou
a entrevista e possivelmente um engajamento por parte dela que talvez não houvesse se o
entrevistador fosse um estranho. Dessa maneira, a entrevista aconteceu na casa dela, sem
a presença de outras pessoas e depois da sua transcrição, ela se dispôs a rever a entrevista
e realizou pequenas correções em palavras que foram mal-entendidas, sem excluir
qualquer parte.
A outra entrevistada, porém, apresenta outro tipo de relação e outro contexto de
entrevista. Aconteceu na parte externa da casa. No segundo andar se localiza o terreiro.
Para a entrevista o neto carnal, filho de santo, babalorixá e herdeiro da casa, Breno que
mediou o contato estava presente. Ela ainda convidou o filho carnal, o ogã Fernando.
Posteriormente chegou a irmã mais velha, tratada por todos como a Tia Dina. Ao longo
da entrevista outras pessoas chegaram à casa, o que por vezes levou a interrupções e
conversas paralelas que tornam algumas partes da gravação inaudíveis. Porém, além das
pessoas mencionadas ninguém mais tomou parte.
5.4 Ialorixá Carmem de Iemanjá e o Ilê Asé Yá Togun Benã
A ialorixá Carmem de Iemanjá, nascida em 15 de julho de 1944 no bairro de
Zumbi, São Gonçalo, é filha de lavradores com um sítio de 4 alqueires entre Araruama e
Saquarema, onde trabalhavam os pais e as irmãs mais velhas dos 13 filhos. Com relação
à religiosidade da família, a participação em religiões afro-brasileiras é uma herança. Sua
mãe era rezadeira e parteira em Araruama e “botava roupa” em uma “macumba” na
região. Seu pai, por outro lado, não tinha religião, mas também não gostava que a esposa
frequentasse, sendo este um motivo de briga entre o casal. Entretanto, quando anos mais
62
O termo tabaqueiro é por vezes usado como sinônimo de ogan (PEREIRA, 2014). Entretanto, como ogan
é um cargo de significação amplo em que tocar o atabaque é apenas uma de suas funções e prescinde
confirmação, eu utilizo o termo tabaqueiro para designar a tarefa de tocar atabaque, puxar e cantar os pontos
sem que tenha havido tal confirmação.
206
tarde, ela deu início a um pequeno terreiro na casa de sua irmã, já no Zumbi, a relação do
pai com a religião mudou.
IC63: Quando eu comecei trabalhar, que eu peguei caboclo Tupinambá,
que meu pai veio, que nós fomos buscar meu pai para morar ali naquela
casa ali embaixo... Vendemos o sítio e trouxemos meu pai pra cá. Pai,
mãe, irmãos pequenos tal, tal. O que aconteceu? Aí meu pai achou que
eu tinha um caboclo muito lindo. E eu ganhei um “terreirinho” pequeno,
na casa da minha irmã, onde eu comecei trabalhar. Ali todo mundo
frequentava, ali era gente assim ó (gesto com a mão abrindo e fechando
os dedos sinalizando grande quantidade). Não dava, tinha que botar do
lado de fora. Aí meu pai adorava. Adorava esse caboclo Iiih! Eu quando
pegava esse caboclo o meu pai sorria, ficava feliz. "Muito bonito seu
caboclo! Você pega muito bonito! Você fica bonita minha filha!" Papai
dizia, Fernando!
F64: Uhum
IC: "Você fica muito bonita!" E os outros também falam quando ele
chega né Fernando?
F: Verdade!
IC: Os outros falam.
F: Verdade!
Eu: Então o pai da senhora começou a aceitar quando a senhora
começou a trabalhar?
IC: Quando eu comecei a trabalhar.
Porém, não era só o pai que via problemas com a “macumba” que a mãe
frequentava. A ialorixá Carmem conta que quando criança não gostava de ser levada para
aquele terreiro. Ao mesmo tempo que apresenta críticas, associa sua rejeição ao fato de
ser criança, porém, não nega a sua realidade espiritual.
Era Umbanda. Era Umbanda atrasada, né. A gente sabe que depois que
eu cresci e vi o que é uma Umbanda eu achava que aquilo ali não era
uma Umbanda. Tocando só aquela bobagem "tuc tuc tuc tuc". aquele
pandeiro "tchuktá tchucktá tchuctá" (gestos com as mãos) eu acho que
isso... "Mamãe sai fora disso!" Mas engraçado que quando eu falei isso
foi no terreiro de dona Ziza. Aí o que aconteceu eu vim andando, tinha
uma cobra enorme o galho, assim, toda enrolada olhando assim pra
mim. Eu disse "Ué só porque eu falei essa bobagem" Eu pensei né. "Ela
foi pro lado ali me morder." Eu saí correndo. Sei lá qual é né. Eu falei
bobagem que ali não tinha nada " que é aquilo mamãe, que é aquilo...".
Mamãe era uma rezadeira muito boa. Rezava de tudo que você podia
imaginar. Eu não chego nem na unha do pé da minha mãe.
63
IC: Ialorixá Carmem
64
F: Ogã Fernando
207
Se por um lado ela achava “estranho” e desmerecia, por outro lado, ela viu no
encontro com a cobra uma resposta a este desmerecimento. Embora afirme que o
chocalho e o pandeiro a incomodavam e que não deveriam existir, ela também traz uma
justificativa espiritual para que não se desse bem com essa “macumba”: “Minha cabeça
era feita de Iemanjá, não era feita em termos, mas eu nasci, né, já nasce com aquele orixá.
Talvez o meu orixá achou que... (...) Não era. Não tinha como. Botar roupa, ficar com
essas coisas”. Por conta do uso de chocalhos e pandeiros Brenno, o neto carnal, babalorixá
e herdeiro da casa, que acompanhava a entrevista, classifica como um “Catimbó
estranho”, o que a Ialorixá Carmem responde “É essas coisas estranhas aí” e reafirma seu
posicionamento. “Gosto não!”.
Foi somente com 14 anos que começou a se envolver com a religião. Idade
próxima a que a entrevistada anterior, Maria do Carmo, também começou a sentir sua
mediunidade aflorar. Sua primeira incorporação, porém, não foi uma incorporação
qualquer. Foi uma incorporação em que ela estava pronta. Recebeu o caboclo que já fez
uma cura. É uma primeira incorporação excepcional que parece predizer destino
igualmente excepcional.
IC: Eu comecei trabalhar, se eu te contar o caso, o caso é grande.
Quatorze anos. Foi assim, eu trabalhava fora, na casa de doutora Rosa.
Na Ronald de Carvalho, 702. Tudo bem. Nunca peguei nada na minha
vida. Nunca, nem ia a macumba, mas aí a minha patroa ficou com a
mão assim (gesto com mão torcida). (Inaudível) Contou pra você né
Nandinho?
F: É.
IC: Ficou assim com a mão fechada. Aí eu brincando de pegar espírito,
eu brincava. "Que que que! Que que que!" Brincando né. Peguei de
verdade. (Bateu uma palma)
F: (Risos)
IC: Juro por Deus! Aí o caboclo chegou disse que aquilo na mão dela
era uma macumba que o baiano fez no trabalho dela. Ela disse que
realmente tinha esse baiano. Ela não podia assinar, fazer ponta, tudo
bem. Ele mandou ela fazer uma papa de farinha, nunca esqueci, com
azeite, azeite de salada, com um dente de alho roxo e duas pimentas do
reino. E fizesse aquele mingau. Aí minha irmã que trabalhava com ela,
que Dina, minha irmã, a gente trabalhava junto. Fiz o mingau, o caboclo
rezou tudo, botou na mão dela assim, enrolou, deixou. Amanhã a Lúcia
está bem. Isso ela me contando. Amanheceu boazinha assim ó. Então
com isso ela ficou com tanta fé, minha patroa né...
208
O que aponta esse relato é que ela não precisará de uma formação. Desde a
primeira manifestação o espírito já lhe traz o conhecimento necessário para que ela
execute curas e combata feitiços. Nesse ponto é uma experiência que se distancia bastante
da relatada anteriormente. Enquanto a primeira apresenta uma longa trajetória de
aproximação e experimentação e as primeiras manifestações não se concretizam em
atendimentos públicos, a segunda em um instante passa de uma criança que achava graça
das manifestações espíritas para a sacerdotisa. O cargo de liderança aparece como pré-
determinado desde o início da vida espiritual de ambas.
IC: Ela telefonava pra cá, né Fernando, ela mandava dinheiro para
comprar cabrito, ela mandava dinheiro pra mim, mandava cheque pra
mim, me ajudou muito! Muito, muito, muito, muito! Pode acreditar.
Então, eu recebi esse caboclo lá na Ronald de Carvalho. Aí o caboclo
disse que não queria que eu trabalhasse fora que ele ia me dar um
terreiro que eu ia ganhar dinheiro, minha vida, e não precisava ir pra
casa dos outros. Não queria. Que eu ia ser grande mãe de santo. Quando
me contaram isso, eu digo "Eu? Eu uma criança? Mãe de santo da onde?
Eu não quero isso! Deu me livre! Cruz credo!"
Eu: Mas isso já com, ainda quando a senhora tinha quatorze anos ele
falou isso?
IC: É. Falou isso com meu caboclo. Falou. "Ah não quero não". Mas
ele continuou chegando, trazendo o ponto dele, cantando, rezando,
curando, olhava para os outros, consultava, dizia tudo certinho. Eu
continuei o barco para frente, até hoje nessa aí (bateu uma palma).
Outro aspecto importante deste relato é o lugar do dinheiro em sua trajetória. Na
entrevista anterior, o dinheiro é algo que não é mencionado. Neste caso, o dinheiro é não
só uma forma de garantir uma dedicação exclusiva ao trabalho espiritual, mas também
um sinal da “força” do caboclo. Não só sua cura, neste caso, resultou em ajuda financeira,
como seus demais trabalho resultarão sucesso econômico. Conta a ialorixá que ganhou
um cômodo na casa de uma das irmãs onde as demais entidades se manifestaram. Após
garantir que um advogado não perdesse o emprego, ganhou o terreno onde ela construiu
o terreiro que está até hoje.
Revela, porém, que não se lembra destes fatos e sua memória, como no caso da
dirigente Maria do Carmo, são construídas a partir de falas externas: “quem me contou
toda essas coisas, foi a mãe de Mary que trabalhava junto comigo, Guimar.” Conta ainda,
no contexto da entrevista, com testemunhas. Tia Dina, irmã da entrevistada, ao chegar na casa
209
durante a entrevista, foi chamada pela ialorixá a contar o que aconteceu, reafirmando a história e
incluindo novos elementos.
IC: Dina, escuta só! Eu estava explicando para ele que ele me fez uma
pergunta, eu falei "eu recebi o primeiro orixá foi o caboclo Tupinambá"
não foi Dina?
TD65: Foi.
IC: Onde?
TD: No trabalho que começamos junto
F: Risos
IC: Viu? Foi o que eu te disse.
F: gargalhada
Risos
IC: Foi assim que ele chegou Brenno. Como é que pode? Falei pra Dina
chegou, rezando, cantando, trabalhando.
TD: Todo mundo falava que ela ia desenvolver e ia trabalhar ia ser uma
mãe de santo. Ela dizia, naquele tempo, ela era bonita né?
IC: Ainda sou até hoje filhinha. Respeito em.
Risos
TD: Aí ela pegou e disse assim "Vou pegar caboclo o que?" pegou um
cabo de vassoura começou caçoar os outros "Tambor, tambor, vai
buscar quem mora longe" aí o caboclo chegou! “tudududundudu” aí
cruzou comigo, falou com minha irmã, falou assim "você conhece, você
me conhece, salve São Jorge guerreiro, salve não sei quem, salve não
sei quem, mas eu não vou dar meu nome porque Orixá é Orixá, sou da
linha de Omulu (inaudível) no gongá.
IC: É gongá.
TD: Aí tudo bem, ela disse "Não veio nada, Dina não veio nada!"
Cantou para ele, ele chegou outra vez. Aí já chegou um outro santo, não
sei se foi Iemanjá, não sei se foi a vovó, uma outra preta-velha que não
era a vovó Catarina aí ela duvidou. No outro dia veio a mesma coisa...
IC: Eu sei lá o que que é isso!
TD: Aí (inaudível- barulho de ferramenta) como bom, mas podia vir
uma coisa ruim e a gente não ter como né, desvirar, resolver o problema
de tudo foi a semana toda quando chegou aqui em casa quis pegar para
os outros ver. Pegou novamente. Aí pegou assim nos outros assim
(inaudível) quando chegou no centro que foi, cantou para caboclo
quando cantou ele chegou. Aí quando chegou o caboclo flecheiro falou
assim "pode dar o vinho, o charuto que está incorporado, está curvado.
Aí salvou ponto. Aí veio pegando tudo assim. Outros dias ela não
acreditava.
Durante toda a entrevista se valeu da presença de seu filho Fernando, de seu neto
Brenno e posteriormente de sua irmã como interlocutores se dirigindo a eles com
frequência para confirmar os eventos que relatava. Mais uma vez se depara com um
processo coletivo de construção das lembranças. Dentre os novos elementos que a Tia
65
Tia Dina.
210
Dina traz esta a ideia de que o seu cargo já era previsto: “Todo mundo falava que ela ia
desenvolver e ia trabalhar ia ser uma mãe de santo”. Assim, uma “predestinação” também se
encontra presente aqui.
Através de feitos memoráveis de suas entidades e do seu sucesso econômico
narrados pela entrevistada (orgulhosamente se fala sobre a alcunha de “vovó do ouro” por
sua preta velha possuir muitos adereços de ouro) e confirmados pelos demais vai se dando
sua trajetória. Paralelamente ao trabalho no próprio terreiro vai se relacionando e se
filiando a outras manifestações religiosas afro-brasileiras. Chega afirmar que teve cinco
pais de santo. Passou pelo Omolocô, Angola e Keto/Efon66. Todas essas mudanças são
justificadas e motivadas no campo do espiritual
Eu: No caso, porque a senhora fez a cabeça no Omolocô? E como a
senhora chegou no Omolocô?
IC: Se eu contar você não vai nem acreditar. Não sei se eu posso contar
isso.
Eu: Se a senhora não puder, não tem problema.
IC: Melhor, porque eu procurei um terreiro, procurei um terreiro porque
eu me casei. Tudo bem. E Zé Pelintra deitava na minha cama.
F: (Gargalhada)
IC: Junto comigo. Muito estranho.
(Risos)
IC: É... aí que está o babado que ninguém acredita nisso.
(palmas)
Eu: Mas o Zé Pelintra é da senhora?
IC: Meu não. Tenho ele não. Não entendia isso. Aí eu saia correndo
com medo dele, parava lá na frente de camisola, do jeito que eu
estivesse. Me assustava que ele queria me namorar! Como fosse uma
pessoa normal. É mole? Aí eu fui num terreiro pra eu descobri o que era
isso que eu não podia ficar assim. Aí D. Antônia veio, disse que eu tinha
que dar uma obrigação lá no Omolocô que era a casa dela porque Zé
Pelintra queria comer e beber, aquilo era mandado não era meu, não
tinha nada disso, não tinha mesmo não. Era mandado, tal. Aí desde que
eu dei essa obrigação sumiu. Entendeu?
Eu: Entendi. Então pra resolver essa demanda, no caso, a senhora teve
que se fazer...
IC: Isso, de fazer isso.
Eu: no Omolocô.
IC: Isso aí. Isso é verdade.
Também em decorrência que problemas espirituais, foi iniciada para Iemanjá na
nação Angola. Com a diferença que leva também em consideração o contexto da época.
66
Ora fala em Queto, ora fala em Efon para designar sua atual nação. Embora chegue a afirmar que é o
mesmo, reconhece também que há diferenças.
211
IC: É porque antigamente existia mais Angola do que Queto, entendeu?
Ai como meu ex-marido conhecia mãe de santo de Angola me levou
porque eu estava passando mal. Me levou, eu gostei, fiz. Em Angola.
Se é hoje eu não faria não. Porque a cabeça muda. Mas a gente é boba
na época, a gente quer ficar livre de alguma coisa né. Foi o meu caso,
queria ficar livre da tentação. Porque eu estava caindo, machucando
sem saber o porquê. Estava quieta e batia a cabeça no chão. (Inaudível)
"Que isso? Isso é normal?" Então por isso eu procurei uma mãe de santo
e ele me levou nesse terreiro de Angola. Era boa! Mãe de Santo
entendida, boa! Muito entendida!
Então o fato de haver mais terreiros de Angola e do ex-marido conhecer e levá-la
a um desses terreiros configuram-se como um dos fatores que a conduziram a se iniciar
no Candomblé. Não é possível desprezar, entretanto, as suas preferências individuais. As
cobranças de Iemanjá, manifestada nas quedas inexplicáveis, o contexto da época que
tornavam mais acessíveis os Candomblés Angola e as suas próprias preferências,
“gostei”, aparecem como razões de sua iniciação. A volatilidade de sua individualidade,
“a cabeça muda”, demonstram um certo arrependimento.
Quanto ao porquê ela ter mudado de Angola para o Queto há uma esquiva. Mas
ao longo da entrevista pode-se levantar algumas possiblidades do porquê de sua
preferência pelo Queto. A Ialorixá Carmen afirma que “se gasta muito mais em Angola
do que no Queto”; A Tia Dina, considera que “o princípio de Angola é mais rigoroso”, o
que a faz concluir que a “Angola tem mais fundamento”. Situa-se também ao fato de hoje
haver uma predominância de Candomblés Queto. Por último o costume e a adequação do
Queto aos tempos modernos são mencionados.
Eu: Mas porque a senhora diz que não faria se fosse hoje?
IC: Porque hoje eu sou do Queto, acostumei.
TD: Mais evoluído também.
IC: Entendeu? Já acostumei no Queto, já fiz muito filho de santo no
Queto, fiz muito ogã no Queto, equede, tudo no Queto, então a gente se
habitua no dia a dia. Aí eu acostumei, aí eu gosto mais do Queto.
Eu: Então a senhora acha que o Queto é mais evoluído?
TD: Ah é!
IC: Ah é! É mais.
Embora seu foco estivesse no hábito, quando perguntada sobre a fala da Tia Dina,
a ialorixá confirma. Parece existir aí um paradoxo. O Queto é o mais evoluído, porém
Angola tem mais fundamento. O rigor, que justifica esta classificação de Angola, é
exemplificado por Tia Dina:
212
O que Queto já é mais fácil. O Queto, você vê, com 21 dias tira quelé,
tira tudo. Agora, 3 meses no preceito rigoroso ali e tal é a roupinha
branca, é cabecinha (inaudível)
IC: 21 dias...
TD: A não ser quando a pessoa tem um trabalho. Quando você tem um
trabalho você não pode, não é mesmo?
Eu: Uhum
TD: E a pessoa libera só para o trabalho, pra depois... Quando dá três
meses tira o quelé, tira, tira sete dias de preceito de Oxalá e depois fica
liberado. Eu fiz em Queto porque eu achava muito difícil vir em terra,
o meu santo. Ó vinha assim, eu achava aquilo difícil pra eu aprender...
As diferenças do tempo necessário à iniciação das duas nações e o levantamento
de suas implicações para quem trabalha, justificam interpretar “mais evoluído” como
mais adequado as necessidades do mundo moderno. Talvez, essas dificuldades tenham
motivado a mudança, mas fatores pessoais como discordâncias, brigas “Eu sou zangada.
Por isso que eu não fico. Se eu vejo coisa errada eu saio”; e falecimentos fizeram com
que tivesse ao longo de sua trajetória cinco pais de santo e mudasse de nação. Em
comparação com sua entrada na Umbanda, Omolocô e Angola essa é única que não
apresenta uma resposta direta e uma justificativa espiritual.
Mesmo com todas essas mudanças ao longo do tempo manteve-se, com
adequações, a prática da Umbanda. Uma primeira observação é que o centro é organizado
a partir do Candomblé. Isto com relação não só ao calendário, mas às atribuições
cotidianas e às manifestações espirituais. As giras de Umbanda acontecem geralmente em
datas comemorativas, seguindo o modelo do Candomblé, e possui um dos filhos de santo
de mãe Carmen como responsável. Se difere da Casa de Samir que mantém sessões
regulares. O espaço do terreiro é também organizado a partir do Candomblé. O antigo
gongá foi retirado do terreiro e transferido para uma área privada e as roupas coloridas
seguem o padrão do Candomblé, diferente de muitas casas de Umbanda, como o Samir,
em que o branco é o padrão. Outra diferença importante decorrente de seu ingresso no
Candomblé é manifestação dos orixás. O Ogum, Oxum, Iansã, etc. que se manifestam na
Umbanda não se manifestam no Candomblé. Esta diferença faz com que classifiquem a
Umbanda em dois grupos: a “Umbanda pura” e a “Umbanda diversificada”.
F: Aqui eu falo porque tem Umbanda e Candomblé, Umbanda e
Candomblé se dá pela união pelo seguinte: minha mãe veio de
213
Umbanda. Vários pais de santo que eu conheço também veio de
Umbanda. Toca Umbanda até hoje na casa dele, tranquilo. Tira iaô,
festa de santo dele, obrigação, festa de Oxóssi, olubajé, e vem de
Umbanda. Vira tranca-ruas, um vira caboclo, minha mãe aqui. E o
barracão dele é Candomblé igual ao nosso. Toca Umbanda também
normalmente. Não é aquela Umbanda pura, entendeu? De Umbanda
não aprendi ainda. É Umbanda pura. Entendeu? Os ogãs estão na
barrica, aquela coisa, vamos dizer assim, aquela coisa pura, de
Umbanda pura, entendeu? Seu Ogum de capa vermelha, capacete,
entendeu? Fumando charuto, tomando cerveja, aquela Umbanda pura.
Não é Umbanda pura. É Umbanda pura, mas misturada com o
Candomblé. Quando é Umbanda é só Umbanda, só Umbanda. Festa de
Exu aqui é só Umbanda. Caboclo, canta para o Anjo da Guarda, depois
de Anjo da Guarda já canta para Ogum, caboclo dela e Exu que é o
final, caboclo que é o encerramento, pronto. Umbanda até o final. Nem
Angola a gente canta! Nem Angola a gente canta. (Inaudível) uma boa
gira que eu sei cantar Angola. É Umbanda, é Umbanda. Hoje é
Umbanda. Chefe da gira é minha mãe, (inaudível) dela é de Umbanda.
É só Umbanda. "Ah..." Hoje é Umbanda. Quando for Candomblé é só
Candomblé também. Aí é só Candomblé, não é mãe? Não canta nem
Angola. Se cantar Angola, se vier um pai de santo de Angola de fora,
pai de santo de Angola conhecido, canta Angola para ele. (inaudível)
não gosta de Queto. Não é mãe? Pai de santo ou mãe de santo. De
Angola, se respeitar ele, a nação dele. Agora, caso contrário fica só
Umbanda ou Queto que a casa agora é Queto. Entendeu?
O início da fala do ogã Fernando situa sobre a prática da Umbanda em seu terreiro,
relacionando-a trajetória de sua mãe. Ao longo da entrevista, ele reclamou sobre ter que
falar de Umbanda, “Ó, deixa eu falar para você: eu sou de Candomblé, me aprofundo em
Candomblé, santo sei fazer o Candomblé, meu negócio é Candomblé”; o babalorixá
Brenno, também chegou a assumir em conversa informal preferir o Candomblé. Embora
relatem haver outros membros da casa que prefiram a Umbanda, ao que tudo indica a
manutenção de uma prática umbandista está sustentada na presença da mãe de santo
Carmem.
Sua fala ainda traz a afirmação de não praticarem uma “Umbanda pura” que está
associada à “ogãs na barrica” e ao “Ogum de capa vermelha e capacete, fumando charuto
e tomando cerveja”. Complementa dizendo que mesmo que não seja pura, trazendo uma
influência do Candomblé, durante uma gira de Umbanda o rito, do começo ao fim, é
estritamente umbandista, bem quanto é, em estritamente candomblecista, em uma gira de
Candomblé. Outros elementos, rituais como a raspagem de cabeça e as origens
determinam a diferença entre a Umbanda pura e a que eles praticam.
214
Eu: E como funciona essa questão da Umbanda pura? O senhor falou
que não raspa a cabeça na Umbanda pura, não é?
IC: Não raspa não.
F: Umbanda pura não raspa a cabeça.
B67: Umbanda pura é mais aquela coisa povo d'agua, marinheiro...
F: Justamente. Bota água na cabeça, é Oxum, na cabeça, na mão, faz, a
gente faz também negócio de macaia. Macaia é banho de ervas, é banho
de ervas, entendeu? Não tem comida igual tem no Candomblé...
IC: Camarinha...
F: Camarinha, não tem igual ao Candomblé. Candomblé é muita
comida. Não tem, entendeu? É coisa mais de branco.
B: Umbanda Pura...
F: Vamos dizer assim, Candomblé é de negro e de branco né Brenno?
B: É.
F: Mas Candomblé veio mais do negro por causa da mistura do africano.
Umbanda foi feita no Brasil, inventada no Brasil, Umbanda. No Brasil
mesmo.
Eu: E como é que foi isso?
F: Aí é uma história, tem que ser umbandista mesmo, aquele
umbandista ferrenho para saber isso. Não é? "Que aí nasceu ali..."
Entendeu?
B: É que Umbanda pura que costumam falar é que chama o Anjo da
Guarda da pessoa, na Umbanda pura costuma perguntar: enviado por
quem? Entendeu? costuma falar cada Anjo da Guarda enviado por um
santo. Então não é Umbanda, porque todo mundo aqui também é
raspado. Então como não tem ninguém que pega o Anjo da Guarda, não
recebe Ogum de Umbanda, Oxum de Umbanda, nada disso.
Eu: Então aqui mesmo que a pessoa prefira a Umbanda ela é raspada
no Candomblé e...
B: É.
Eu: fica na Umbanda?
B: Fica na Umbanda.
Eu: E aí, qual que para de receber quando ela é raspada? O Anjo da
Guarda você falou...
B: Os Orixás de Umbanda. De Candomblé que eles param de receber.
Por exemplo, Oxum de Umbanda, Iansã, santos normais. Só recebe
caboclo de pena, boiadeiro, exu, vovô...
Eu: Só recebe no caso essas entidades que não são orixás.
B: Isso!
O ogã Fernando diferencia pela origem. O Candomblé é de origem africana e
negra e a Umbanda brasileira. Sua afirmação está pautada em alguns elementos. Na
diferenciação entre rituais que considera de branco, como “botar água na cabeça” ou
“banho de ervas”, e nos rituais que considera do Candomblé, como a fartura na comida,
a camarinha etc. Na diferenciação entre as manifestações dos orixás. O Ogum que se
manifesta na Umbanda como São Jorge enquanto o Ogum do Candomblé é africano.
67
Babalorixá Brenno.
215
Além disso, leva em consideração a origem que da Umbanda é brasileira e do Candomblé
tem “mistura do africano.” Quando se pensa a condição do praticante, diferencia-se pela
raspagem ou não raspagem da cabeça. Esta é uma condição determinante porque uma vez
que a pessoa é raspada ela nunca mais poderá praticar uma “Umbanda pura”. Esta
condição muda a ligação da pessoa com o orixá, ela deixa de incorporar o santo católico
para incorporar o orixá africano.
F: Olha, tem o seguinte, Ogum é africano, orixá africano, veio da
Nigéria...
IC: É
F: da África. E Ogum é da católica, São Jorge, do catolicismo
Eu: hum
F: Ele é dos brancos no caso da religião na época aí tinha uma mistura,
entendeu? Mas sendo que São Jorge é da Umbanda...
IC: É
F: Ogum mesmo de verdade é do Candomblé, da Nigéria
IC: É
F: que veio para o Brasil, (inaudível) para o Brasil na época.
Eu: Entendi
F: Entendeu?
Eu: Então o que a gente chama de Ogum na Umbanda é na verdade São
Jorge...
F: São Jorge.
IC: São Jorge, é.
F: Candomblé já é parte de África. Brasil já é diferente, Ogum
diferente.
Eu: E a incorporação deles é diferente, né?
IC: É.
F: É diferente de um para o outro, é diferente.
Há de se observar que sua designação de pureza umbandista nada tem a ver com
a noção de pureza defendida por umbandistas do “espiritismo de umbanda” onde, por
vezes, se nega o uso de atabaques e defendem o uso exclusivo do branco. A compreensão
da “Umbanda pura” toma como parâmetro o Candomblé e sua africanidade. Dizer que a
Umbanda é pura é dizer que ela é branca. Curiosamente, apesar de brasileira, a Umbanda
é branca, não repetindo uma noção de miscigenação tão frequentemente associados a
nacionalidade e a religião. Levando em consideração que eles têm o Candomblé como
principal identificação religiosa e fazem parte de uma família socialmente reconhecida
como negra, em sua oposição entre uma Umbanda brasileira e branca e um Candomblé
africano existe um discurso de reafirmação da própria identidade negra.
216
Já se demonstrou como as teorizações sobre caboclos e pretos velhos entre os
intelectuais da Umbanda podem negar uma correspondência étnico-racial. Então, para
segmentos de umbandistas, a manifestação de caboclos e pretos velhos não significam
que se esteja a frente de espíritos de indígenas e negros. Na fala do ogã Fernando a
manifestação do Ogum na Umbanda enquanto São Jorge é a evidência de que o orixá da
Umbanda é branco. Para o pai de santo David Delgado, ao
emergir nas rodas de conversas dentro e fora dos terreiros, nota-se uma
simplificação de um debate que se resume em superficiais equiparações
de santos católicos disfarçados de orixás ou vice-versa. Esse cenário me
conduz a uma memória viva que ficou permanentemente gravada em
meu consciente quando, durante uma festividade à Ògún, um babalorixá
de umbanda incorporado pelo orixá, curiosamente, ao invés de bailar
feito o ferramenteiro, rei do clã dos Odés, marchava feito um cavaleiro
templário em uma de suas cruzadas. Diante aquele cenário, olhei para
os lados e, imediatamente, me compadeci com os escritos de Peter Fry
(1982), presentes nos capítulos seguintes, quando relata suas
percepções ao presenciar o transe de Yemanjá durante uma gira de
umbanda.” (DELGADO, 2022, p. 17)
O Ogum que se comporta como São Jorge é o resultado de uma necropolítica que
torna as simbologias de terreiros e os valores das divindades africanas tomadas por um
contexto católico. Esta imagem se trata, portanto, dos efeitos do sincretismo afro-
brasileiro que “deixa em suspenso a identidade das divindades africanas,
consequentemente, a memória e a ancestralidade dos povos de terreiros a ponto de seus
adeptos confundirem deuses africanos com santos católicos ou qualquer outra definição
de além-África". (op. Cit: 23)
Seria preciso uma pesquisa mais aprofundada para investigar os modos de
construção dessa imagem neste terreiro. Mas a identificação com o Candomblé parece
um dos fatores que facilitam a aceitação de uma Umbanda brasileira. É difícil dizer o
quanto dessa imagem é produto do trabalho de enquadramento de memória dos
intelectuais umbandistas ou reflexo de uma identidade candomblecista negra. Nenhuma
literatura se apresentou como forma importante de formação espiritual. O babalorixá
Brenno chega a relatar a existência de grupos de estudos internos e a mencionar uma certa
apostila, sem, no entanto, explicar de onde ela vem ou qual o seu conteúdo. Apesar disso,
nada sugere a filiação a orientações externas se já de instituições, pessoas ou veículos que
se apresentem com função formativa ou informativa. Além disso, o modo como a mãe
217
Carmem descreve seu “saber fazer” se aproxima muito do modo apresentado pela
dirigente Maria do Carmo.
Fernando é assim: "Mamãe como é que a senhora aprendeu a fazer o
olubajé?" que são 18 obrigações fora matança, tudo. Eu digo "Fernando,
nunca me ensinaram! Quem me ensinou? Vovó Catarina. Mandou
minha filha de santo de Omulú que está em São Paulo escrever como
fazia, o que tinha que levar, o que tinha que comprar, como que fazia,
como é que não fazia (Bateu uma palma). Aprendi com a minha velha.
Meus ebós quem faz é minha velha. Quem faz jogo de búzios é minha
velha. Tudo o que eu sei agradeço a Deus em cima e a ela aqui embaixo.
Porque ela é esperta, ela é sabida. Ela joga para perder não. Pessoa
chega doente aí né Brenno?
Então, Fernando assim "Mamãe você aprende a fazer isso com quem?"
"Não sei Fernando (bateu uma palma) com quem eu aprendi não. Eu sei
que eu sei fazer." Gente raspado chega aqui eu mando fazer um acarajé,
amassa, tal, tal não sabe fazer. "Mamãe quem ensinou a senhora?"
"Fernando, eu não sei quem me ensinou. Só sei que eu sei fazer e os
outros comem "que delícia! Que delícia!" (bateu uma palma e risos).
Graças a Deus! Acho que eu nasci mesmo, como diz Vagner, preparada
pra ser mãe de santo. Vagner fala isso. "Querer não é poder. A senhora
nasceu mesmo para isso." Por isso que eu dou valor a Vagner que
Vagner tem isso de bom.
As duas trajetórias acompanhadas até aqui apresentam semelhanças e diferenças.
Com relação às semelhanças, chama a atenção o início da adolescência como momento
de descoberta da espiritualidade e de formação de uma identidade religiosa. É ao mesmo
tempo, o momento de início no mundo do trabalho. Entretanto, com relação a este mundo
os impactos da iniciação religiosa são diferentes, especialmente quando se considera que
ambas foram empregadas domésticas. No caso da primeira entrevistada a vida espiritual
em nenhum momento se ligou a um projeto de ascensão social. Isto possivelmente por
estar relacionada à tradição kardecista que desassocia e condena o ganho material como
resultante da prática espiritual. Tendo a caridade desinteressada como elemento
fundamental, a dirigente Maria do Carmo concilia a sua vida profissional com a religiosa
e parece não esperar uma interferência espiritual no seu destino material. Por outro lado,
a mãe Carmem, que segue outra tradição, abandona o trabalho doméstico para se dedicar
exclusivamente a vida sacerdotal. E isto, segundo seu relato lhe rendeu tanto ganhos
materiais como prestígio.
TD: Eu trouxe pra ela um cliente que era do, o pai dele era o segundo
engenheiro do...
218
IC: Não sei o que Forte.
TD: João Forte.
IC: Passa a família toda lá. Ele era muito, tinha estudo, aquele negócio
todo, então quando ele vinha trazia 12, 15 pessoas.
IC: Olha Dina falando.
TD: Era mesmo! 12, 15 pessoas. Aquela “homenzarada” toda, aquelas
artistas, aquilo tudo, vinha aquilo tudo.
IC: Contei pra ele. Não contei meu filho que eu tinha tudo isso na minha
casa?
TD: Tinha muito! Muita fama! O nome de vovó era vovó do ouro. A
vovó dela tinha tanto ouro que era vovó do ouro.
IC: É mesmo, pulseironas grandes de ouro.
TD: E o povo respeitava. Engraçado, as casas de erva compravam as
coisas "Ah Carmem de Iemanjá" Dizia assim mesmo "Carmem de Vovó
do Ouro". Era (inaudível) vovó do ouro.
IC: Até hoje.
(...)
TD: Vovó não aceitava qualquer vestimenta. Vovó estava assim ó. Se
ela fosse receber vovó ela mandava a gente descer e mandar a roupa
branca pra ela que ela não consultava sem. É você tá pensando que era...
Bebia um vinho...
IC: Esperto.
F: Risos
TD: Esperto.
IC: Um garrafão.
TD: Os sábados 10 horas da noite, 11 horas ainda tinha gente pra
consultar. Muita, muita gente! Três quatro ebos, três quatros canário,
tudo assim. A equede falava assim "olha enquanto os outros ficam
sentados rezando pra abrir um ebozinho, um cliente, aqui a casa está
cheia."
IC: Graças a Deus! Tive muita vitória.
A recompensa material aparece na figura da “vovó do ouro”. Uma preta velha que
foge da imagem de humildade propalada pelo Espiritismo de Umbanda. Vaidosa e
exigente, bebia vinho e usava ouro, em nada lembrando o africano sofredor e escravizado
tão exaltado pela outra vertente. A fama ou o reconhecimento público, a quantidade de
pessoas que a procuravam e a qualidade delas (artistas, pessoas estudadas, de posses)
caracterizam o prestígio decorrente do cumprimento de uma promessa feita pelo caboclo
Tupinambá: “o caboclo disse que não queria que eu trabalhasse fora que ele ia me dar um
terreiro que eu ia ganhar dinheiro, minha vida, e não precisava ir para casa dos outros”.
Apesar disso, a trajetória religiosa da ialorixá não pode ser reduzida a busca por dinheiro
e prestígio. Segundo o seu relato a mudança para o Candomblé significou a perda de
clientes que a levou a uma situação financeira muito mais humilde. “Quando eu tocava
Umbanda a minha casa era cheia de juiz, advogado, tudo o que você podia imaginar me
219
acompanhava. Depois que eu fiz santo para Candomblé, muita gente se afastou”. Mesmo com
isso ela se mantém no Candomblé.
Paralelamente, enquanto semelhança, a “espiritualidade” apresenta-se como um
fator externo motivador e mobilizador da trajetória religiosa. Como foi visto, diante de
uma recusa inicial ou de “crises” sucessivas as entrevistadas foram levadas, em suas
interpretações, a seguir o sacerdócio. Isto não significa negar outras influências externos
e motivações pessoais. Cabe lembrar que no período em que mãe Carmem, na década se
iniciou no Candomblé (década de 1970) era um momento em que vários umbandistas
fizeram esse movimento. Entretanto, nem as suas motivações são colocadas em termos
de prestígio do Candomblé, nem esta mudança refletiu em uma melhora em sua condição
social. O que estes fatos revelam é que nem sempre as categorias nativas confirmam ou
são condicionadas pelas categorias acadêmicas. Como se viu no primeiro capítulo, a
análise acadêmica atribui as religiões afro-brasileiras e à Umbanda um papel integrador,
do negro a sociedade de classes. Entretanto, as entrevistas apontam para um sentido de
integração mais largo.
A dirigente Maria do Carmo não associa seu lugar na sociedade à sua prática
religiosa. Sua integração parece estar muito mais voltada para o pertencimento a um
grupo onde encontra acolhimento e importância, mas que não é composta
necessariamente por classes e etnias iguais ou que leve a uma mudança no seu lugar na
estrutura social. No caso da mãe Carmem de Iemanjá já existe uma maior assimilação
com relação aos ideais capitalistas que vinculam a felicidade, o prestígio e o sucesso à
recompensa econômica. Ao mesmo tempo, sua migração para o Candomblé se fez
acompanhada um prejuízo financeiro e de prestígio. Mas dentro de sua análise não
atribuição à africanidade ou negritude do Candomblé em comparação à Umbanda.
Cabe ainda ressaltar que nenhum dos participantes das entrevistas se utilizam das
categorias de raça ou classe social para determinar o seu lugar ou para reconstruir a sua
trajetória. Há um silenciamento por parte da dirigente Maria do Carmo e a revelação que
o passado da religião não era uma questão para os terreiros onde passou. E na entrevista
com a ialorixá as categorias raciais só aparecem quando há uma discussão sobre a
natureza dos orixás do Candomblé e da Umbanda. Momento em que se postula uma
divisão construída por intelectuais acadêmicos e confessionais da africanidade do
Candomblé e a brasilidade da Umbanda. É o mesmo processo que se observou entre os
220
intelectuais umbandistas que transferem o debate racial do espaço sócio-histórico para o
espiritual.
5.5 O mito de fundação nos terreiros
A memória coletiva estruturada a partir de pontos de referência cria hierarquia e
classificações que reforçam sentimentos de pertencimento e de fronteiras socioculturais.
Toda reconstrução é o resgate do passado a partir de preocupações do presente e se
localiza em um quadro de referências específicos. A partir do seu passado se constrói a
sua identidade.
Foi possível perceber a influência do debate intelectualizado sobre as
representações, classificações e hierarquizações nos terreiros. Não se pode negar, ainda
que não acessado diretamente, este discurso como parte do quadro de referência dos
entrevistados. Mas também não se pode negar a dinamicidade e inovações que as
categorias acadêmicas e intelectualizadas sofrem ao serem incorporadas à lógica nativa.
O maior exemplo disso é o uso original da pureza umbandista que não inclui o Espiritismo
de Umbanda e que reconhece como verdadeiro e puro, exatamente o que Zélio e sua
tradição nega.
Nenhum dos entrevistados reconheceu espontaneamente ou de maneira induzida
o nome de Zélio Fernandino de Moraes. Apenas o ogã Fernando, após eu explicar que
sobre Zélio, “dizem que ele criou a Umbanda aqui em São Gonçalo, em Neves”, afirmou
“Sabia disso também. Neves. (...) Só não quis falar porque não gosto da Umbanda,
entendeu?”. Maria do Carmo disse não conhecer e não soube responder de onde teria
surgido a Umbanda, apresentando pouco interesse na questão.
Eu: E tanto no Samir como na Cabana ou Dona Aurinha já se discutiu,
você conversando com o pessoal, sobre de onde vem a Umbanda, como
é que surgiu?
MC: Eu não sei. Isso aí eu não sei te dizer. Se teve não sei, nunca
participei. O horário mesmo que eu ia era a noite né. Que lá eu sei que
passou a ter outros horários, outras sessões, mas aí eu não...
Eu: E aí você nunca pensou sobre isso, não tem uma ideia assim?
MC: Se tem?
Eu: Se você tem uma visão sobre isso. De como surgiu?
MC: Não. Tenho não. Como surgiu tipo a Umbanda?
Eu: É. Por exemplo, o Candomblé eles dizem que veio da África, que é
uma religião africana. E no caso da Umbanda, de onde ela teria vindo?
221
MC: Eu acho que ela deve ter vindo dessa área também né?
Eu: Você acha que ela tem relação com o Candomblé também?
MC: É. Uma coisa assim pega a outra porque se bate Candomblé bate
Umbanda tem gente que faz linha traçada, acho que já vem daí sim.
Um ponto em comum entre as entrevistadas é a negação de situações de conflitos
ou discriminações religiosas com o entorno, ou a polícia. Se o debate sobre as origens da
Umbanda é motivado justamente pela necessidade de legitimação e reconhecimento da
prática religiosa como legal e respeitosa, uma vez que não existe ou não se reconhece
uma ameaça externa, a preocupação com uma origem legitimadora se torna sem sentido.
Talvez seja esta uma das razões para não se encontrar entre as entrevistadas interesse ou
preocupação com o tema. Nenhuma delas encontra a necessidade de uma legitimação
pública sobre suas atividades.
Soma-se a isso, o fato de não terem em meios externos de informação, fontes de
conhecimento. A valorização da própria experiência religiosa como fonte de saber e a
despretensão de um saber racionalizado tornam debates e informações que não estejam
diretamente ligados ao “saber fazer” e as demandas cotidianas, desimportantes. Assim, o
acesso a livros, vídeos e outros veículos de informações umbandistas não ganham o
espaço pretendido pelos intelectuais de Umbanda, embora como se viu, sua influência
ainda aconteça.
Considerando justamente que a capacidade de difusão do mito, a análise das
trajetórias dessas lideranças revela um aspecto importante para a potencial aceitação de
Zélio com fundador. Para além de uma correspondência aos valores sociais aceitos como
fruto do branqueamento presentes no mito de fundação ou da potência de difusão da
história a partir dos meios de comunicação, a história de Zélio é plausível dentre de uma
lógica umbandista. Ao se comparar as trajetórias da dirigente Maria do Carmo, da ialorixá
Carmem de Iemanjá e de Zélio Fernandino de Moraes encontram-se vários elementos
comuns na construção de uma liderança religiosa umbandista.
Em primeiro lugar, todos encontram no início da juventude a sua identidade
religiosa. É na adolescência que manifestam os primeiros traços da mediunidade. Todos
passam por problemas em que a única solução é a iniciação religiosa. Zélio tem a sua cura
no mesmo dia em que o Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifesta. Maria do Carmo
entra para o terreiro após sucessivas “crises”. E mãe Carmem se inicia no Omolocô e em
Angola após “crises” semelhantes. E por fim, todos, desde o começo de suas trajetórias
222
religiosas tinham predestinados um lugar de liderança. Portanto, para além dos elementos
já discutidos anteriormente.
O objetivo desde capítulo foi chamar a atenção para a necessidade de novas
pesquisas que não desconsideram a complexidade do campo umbandista que vai muito
além de uma simples relação hegemônica de um grupo sobre outro e que apresenta um
dinamismo próprio no cotidiano e na oralidade dos terreiros. Meus interlocutores, não
apoiam suas motivações e os sentidos de sua história de vida a processos de aceitação ou
integração social. Sobretudo, apresentação a aceitação de um tipo de “determinismo
espiritual” sobre suas ações. Além disso, podem formular novos significados para antigos
termos como no caso do ogã Fernando que ao falar em Umbanda Pura não está se
referindo a mesma realidade que aquela discutida pelos intelectuais de Umbanda no início
do século ou aquela defendida pelo atual mito fundador.
223
Considerações finais
O mito de fundação da Umbanda atribui a Zélio Fernandino de Moraes e à sua
entidade, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, o título de fundadores. Em quinze de
novembro de 1908, como uma reação aos preconceitos dos kardecistas com relação aos
espíritos de negros e indígenas, teria se iniciado uma religião brasileira, que permitiria a
manifestação dos espíritos rejeitados pelo kardecismo. Rohde (2009) atesta o fato de esta
história se tornar central para se pensar as origens do culto por acadêmicos e adeptos.
Autores como Isaia (1999) e Pinheiro (2012) assumem que este mito seja aceito pela
maioria dos umbandistas.
Sob uma análise sociológica, Ortiz (1999), Prandi (1999), Oliveira (2006) e
outros, associam este momento de fundação com as transformações socioeconômicas e
culturais que o Brasil vivia, no início do século XX, decorrentes das passagens do Império
à República e do sistema escravocrata para o sistema de classes. A Umbanda seria uma
das formas de integração do negro à nova sociedade brasileira. Sua formação e
organização se caracterizaria, sobretudo, pelo processo de branqueamento das práticas
religiosas afro-brasileiras. O conceito de branqueamento se refere ao processo de
aculturação em que a população negra, enquanto grupo social desvalorizado, perde as
referências necessárias a uma identidade étnico-racial e incorpora os valores e a ideologia
das elites brancas, grupo socialmente valorizado. Um dos mecanismos de aculturação,
como apontado no primeiro capítulo, é a descaracterização do aspecto étnico de certos
elementos culturais para sua incorporação enquanto elemento cultural da sociedade
global. A Umbanda, segundo os autores estudados, é representativa desse processo em
que as práticas religiosas africanas incorporam a ideologia dominante e ganharam uma
caracterização nacional e nacionalista que descaracteriza sua origem étnica.
Ortiz (1999) e Isaia (2008) destacam o papel dos intelectuais de Umbanda neste
processo. Eles são responsáveis por criar um discurso de legitimação da religião em que
se busca adequá-la aos valores e modelos de “civilização”, “progresso”, “racionalidade”,
e “nacionalismo” propalados pela sociedade englobante. Assim, boa parte de seus
esforços se assenta no distanciamento, negação e, até mesmo, condenação das práticas
religiosas afro-brasileiras. Enaltecendo a Umbanda como religião milenar ou brasileira,
busca-se negar, afastar ou superar suas relações com a África e o africano, sempre vistos
224
de maneira estereotipada como “primitivos” e “atrasados”. Uma das estratégias de
construção dessa “Umbanda branca” está no que Pollak (1989) denomina de “trabalho de
enquadramento da memória”. Ou seja, a formulação de um passado que desvincule a
religião dos demais cultos afro-brasileiros e lhe confira uma origem e uma existência mais
“digna”.
O desenvolvimento do campo de estudo da Memória Social permite compreender
que o fenômeno da rememoração guarda sempre uma dimensão social e não só se
organiza, mas se mantém, na medida em que existe uma estrutura social que a sustente.
“Testemunhas”, monumentos, fotos, cerimônias, instituições e mesmo produções
historiográficas constroem uma memória coletiva e uma referência para que os sujeitos
pensem seu próprio passado. Inevitavelmente, nesta estrutura subjaz relações de poder
entre diferentes grupos que disputam a preponderância de uma memória sobre a outra.
Este é o tipo de análise que leva Pollak (1989) a classificar a memória em dois tipos. A
oficial ou constituída e a subterrânea, sendo a primeira imposta por um trabalho de
enquadramento realizado por uma história oficial e a segunda sobrevivendo na oralidade
de maneira despercebida. No caso estudado nesta dissertação, entretanto, o que se observa
é um campo de disputa entre memórias que não são oficiais por não serem
institucionalizadas, mas que também não são subterrâneas por serem públicas.
A segunda parte deste trabalho aponta para como a memória sobre a origem da
religião é um campo em disputa. E a investigação desta disputa demonstrou também a
própria criação deste campo. Na medida em que se busca racionalizar, organizar e, nos
termos dos próprios intelectuais umbandistas, codificar a Umbanda, ela começa a ser
idealizada como religião independente. Idealizada porque, levados ao campo da
abstração, as práticas mágicas afro-brasileiras passam a ser julgadas e selecionadas para
constituir um ideal do que seja a “verdadeira” e “legítima” Umbanda. Digna do
reconhecimento pela sociedade e pelo Estado.
Parte significativa destes intelectuais vira nos “africanismos” um problema a esse
reconhecimento. Trabalharam para retirar da Umbanda ritos e elementos que a
colocassem no campo das religiões afro-brasileiras e perseguiram uma origem que a
desvinculasse de um passado africano. Nomes como Leal de Souza querem situá-la dentro
do campo kardecista. Porém, a partir da década de 1940 ganha força a imagem da
Umbanda como religião independente. É neste momento que passa a se elucubrar sobre
225
a origem da religião. É demonstrado como, no Primeiro Congresso de Umbanda, a
imagem negativa do negro impele a uma localização do culto em filosofias orientais e
milenares, negando uma pré-existência africana. E quando não conseguem negá-la
lançam mão de ideais de “civilização” e “progresso” que permitiriam um dia superar as
influências africanistas. Assim sendo, ao se falar em branqueamento neste momento, está
se falando em um trabalho de enquadramento da memória que apague não só uma
existência africana anterior da religião, bem como apague a influência de práticas afro-
brasileiras e da identificação da Umbanda com elas.
Conforme as circunstâncias sociais e culturais do Brasil vão se transformando,
novas caracterizações passavam a fazer parte deste enquadramento. O neonacionalismo
da década de 1950 influencia na concepção da Umbanda enquanto religião brasileira.
Com o trabalho de divulgação em jornais essa ideia é disseminada. Quando sua
brasilidade já parece consolidada surge inicialmente a exaltação do Caboclo das Sete
Encruzilhadas como “organizador” da Umbanda no Brasil. Termo que reforça uma pré-
existência, agora transferida de um tempo mítico para um tempo espiritual. A partir da
década de 1960, e principalmente, na da década de 1970 começa a ser divulgada uma
nova versão de origem que aglutinará a concepção de religião milenar e a concepção de
religião brasileira. Aquela que alça Zélio e seu Caboclo ao lugar de fundadores.
Potencializado pela capacidade de reprodução dessas ideias por um grupo de umbandistas
específicos, seja criando templos, seja pelo trabalho de divulgação em meios de
comunicação próprios ou não, e da aceitação da centralidade de Zélio por pesquisadores,
o mito de fundação se estabeleceu e se difundiu.
No mito de fundação se encontra a ideologia do branqueamento em uma
configuração diversa daquela do Primeiro Congresso. Se neste há um projeto civilizador
de superação de um primitivismo africano, no mito há um discurso de superação e
apagamento das diferenças étnico-raciais, idealizando um culto baseado na harmonia
entre as raças. Ele cria esta imagem ao acusar o preconceito kardecista por não permitir a
manifestação de espíritos negros e indígenas. Entretanto, apesar de seu discurso
“antirracista” não é capaz de superar uma subordinação aos valores ocidentais. Como
debatido na segunda parte, uma das estratégias de legitimação das manifestações de
caboclos é a sua desvinculação de uma existência étnica correspondente. Assim, da
mesma maneira que em Leal de Souza e no Primeiro Congresso defende-se que os
226
caboclos possam ser espíritos de europeus travestidos. O mito associa o Caboclo das Sete
Encruzilhadas ao espírito de um padre, posteriormente identificado com o padre jesuíta
Gabriel Malagrida. Além disso, o mito apaga uma concepção de origem que leve em
consideração o desenvolvimento histórico e as influências de africanos, tido como
evidente até a década de 1940. Tudo se reduz a uma construção do campo espiritual, e as
influências de negros e indígenas são reduzidos aos ensinamentos de caboclos e pretos-
velhos. Cabe mais uma vez ressaltar que estas entidades não são, muitas vezes, entendidas
como negros e indígenas, mas imagens ou símbolos de humildade e resignação utilizados
por espíritos “superiores”. Soma-se a isso a ritualística pregada por Zélio que
intencionalmente excluía práticas tidas como afro-brasileiras.
A proposta inicial desse trabalho, era confirmar o predomínio do mito de
fundação. A pesquisa trouxe, pessoalmente, e espero que academicamente, a contribuição
de problematizar a própria aceitação desse domínio e de vislumbrar a complexidade e o
dinamismo do campo umbandista. A reconstituição histórica demonstrou a existência de
uma disputa que perpassou o tempo e dialogou com os diferentes momentos históricos do
Brasil. Paralelamente ao trabalho de embranquecimento da Umbanda existe um
movimento de reafirmação da africanidade da religião. João de Freitas revela uma cultura
umbandista da década de 1930 inegavelmente associada aos negros. Jacy Rêgo Barros,
também demonstrando essa associação, revela ainda a Umbanda como algo de difícil
definição e de diferentes usos. O próprio Congresso de Umbanda é incapaz de negar as
influências africanas e a aceitação pública da Umbanda no campo das religiões afro-
brasileiras. E mesmo quando a sua brasilidade parece se assentar é possível ouvir a voz
de Tatá Tancredo defendo a Umbanda como religião africana. Ainda hoje, apesar de toda
a força que o mito possui, é possível encontrar aqueles que, como Rhode (2009) e Delgado
(2022), questionam a figura de um fundador e a centralidade de se grupo social como
pioneiros.
Ao que tudo indica esta imagem de um discurso hegemônico é o resultado de uma
limitação de fontes. Em primeiro lugar por se concentrarem na expressão literária dos
intelectuais umbandistas, e mais do que isso, por elegerem as obras de maneira arbitrária
como representativas do universo. Mesmo dentro dos limites da literatura é flagrante a
diversidade e os embates, como se demonstrou. Pode-se ainda imaginar quantas novas
representações viriam de uma análise das manifestações artísticas, do rádio e sobretudo
227
dos discursos produzidos nos terreiros. Há de se considerar ainda que ao se pensar os
processos de branqueamento da Umbanda não se pode concebê-lo como simples processo
de subjugação. Mas, mais uma vez, é preciso levar em conta as resistências, apropriações
e ressignificações produzidas a partir das experiências de terreiro.
A terceira parte deste trabalho é uma pequena contribuição neste sentido. Aponta
para a complexidade que implica pensar como as categorias e ideias elaboradas tanto por
intelectuais umbandistas quanto por acadêmicos são apropriados (e se são) pelos adeptos.
Pode-se perceber uma aproximação da Casa de Samir com relação ao espiritismo de
Umbanda. Mas não se encontra nela uma defesa a essa modalidade, nem rigor ao seguir
padrão estabelecido, se valendo de elementos por este modelo condenados, como o uso
dos atabaques. Não se encontrou aí o reconhecimento de Zélio Fernandino como
fundador, mas sim um completo desinteresse pela questão. É justamente, no Ilê Asé
Togun Benã que se reverbera o mito de fundação. Nele se encontra o reconhecimento da
brasilidade da Umbanda e a ideia de ser São Gonçalo o lugar de sua fundação, sem,
entretanto, reconhecer o nome de Zélio Fernandino. Neste terreiro foi encontrado também
uma ressignificação de um termo muito caro na construção da identidade religiosa no
campo afro-brasileiro: a pureza. O “puro” neste caso é o outro. Não se classificando como
puros por sua condição de candomblecistas, não reconhecem, tampouco, a Umbanda do
Caboclo das Sete Encruzilhadas, como pura. Mas mesmo sem reconhecer Zélio e a sua
Umbanda como modelo de Umbanda Pura a ainda associa a brasilidade e a uma
“branquitude” em oposição a “negritude” do Candomblé.
Muitas ainda são as questões em aberto, mas terminado aqui o tempo e o espaço
para investigações, fica a esperança de ter podido contribuir, mesmo que minimamente,
para o estudo do campo e que esta dissertação abra a possibilidade de novas pesquisas.
228
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236
Entrevista Maria do Carmo
Eu: Mas aí, só para eu me situar, no caso, você não é aqui do Rio?
MC: Não, eu sou de Minas.
Eu: De Minas... de onde de Minas?
MC: Cisneiro.
Eu: Cisneiro é interior de Minas? Eu não conheço.
MC: (Inaudível) Acho que é interior. Eu sei que Cisneiros fica no município de Palmas.
Não tem Miracema?
Eu: Ham
MC: Vai caindo lá pra, tem Carangola, é tudo pertinho, Lage Muriaé?
Eu: Hum... Eu não conheço Minas.
MC: Então, tem Muriaé e Lage Muriaé, isso já tudo pertinho já de Minas.
Eu: Entendi. E você nasceu quando? Desculpe perguntar!
MC: Primeiro de Setembro...
Eu: Setembro?
MC: 56, é.
Eu: E você é a mais nova?
MC: Meus irmãos? Não, eu sou... a terceira.
Eu: Terceira? É você, a Hilda que eu conheci...
MC: Era José, a Hilda, eu, e um irmão mais novo.
Eu: E um irmão... E lá era o que? Era roça? Como era lá?
MC: É lá era roça. Fazendas né.
Eu: E seus pais trabalhavam na roça?
MC: Meu trabalhava, eram fazendas né, mas meu pai trabalhava com gado.
Eu: Trabalhava com gado. Mas ele trabalhava na fazenda dos outros, era dele?
MC: Não, não, ele era empregado.
Eu: E sua mãe?
MC: E minha mãe... dona de casa e ajudava ele nas coisas.
Eu: Entendi. E quando é que vocês vieram pro Rio?
MC: Eu... fui pra Campos né, quando, com 9 anos. Eu fiz nove anos, fui pra Campos, na
família... era o irmão de um dos donos da fazenda.
Eu: Aí você foi trabalhar na casa dele?
MC: É fui para lá pra estudar e... na época, lá na época fui fazer companhia, que ela só
tinha um filho, um garoto, pra ele não crescer sozinho. E fiquei com ela lá até...
Eu: Mas era longe da casa dos seus pais? Vocês perderam contato?
MC: Era porque meus pais moravam nessa fazenda que era lá... é... interior né de de de
Pádua né. Pádua, é... Varalquema, aí atravessava o rio onde tinha a fazenda.
Eu: Aí quando você tinha nove anos seus pais te mandaram para casa...
MC: É eles foram lá para me buscar. Né, eram pra parentes né, eles foram lá pra me
buscar.
Eu: E era comum nessa época fazer isso? Mandar os filhos assim pra...
MC: Isso é... nós não, fomos pelo menos assim. Eu fui pra lá, minha irmã já tinha ido
primeiro. Não para essa, ela foi pra um dono da fazenda. Lá em Pádua. Eu fui pra lá,
minha foi: “pode levar, dá estudo, alimenta e veste” é a situação que minha mãe falava.
(Risos) E ela ficou lá até se formar professora. Morando com eles, trabalhava, foi
crescendo, ela foi com 7 anos, aí foi crescendo, aí foi aprendendo a trabalhar, fazer as
coisas e estudava.
237
Eu: E... antes dos 9 anos você frequentava a escola ou você só começou a estudar depois
que foi pra...
MC: Não, já frequentava aqui, não dentro da fazenda. Era numa... era numa outra fazenda
vizinha da fazenda, entendeu? Que tinha uma escolinha. Aí... era lá perto de Campelo.
Aí... aí eu, quer dizer, me alfabetizei lá né. Ai depois estudei um pouco em Pádua também.
Fui ficar uns tempos lá, (risos) mas que eu não me acostumava. Toda vez que minha a
mãe ia levar minha roupa de (risos) (inaudível) eu voltava pra casa com ela. Aí depois
com nove anos é que fui pra Campos. Aí fiquei um ano sem ir em casa.
Eu: Entendi.
MC: Aí fui me acostumando.
Eu: Ah então antes dessa fazenda tentaram te colocar em outra fazenda?
MC: Não, outra família.
Eu: Em outra família...
MC: Que era tudo era parente.
Eu: Ah todos esses conhecidos eram parentes?
MC: É! Todas essas pessoas eram parentes. Aí em Campos eu fiquei... de 9... saí de lá
com... saí de lá em 72. Aí eu tava com... 14 pra 15 anos, uma coisa assim.
Eu: Aí você voltou pra casa?
MC: Aí fui pra ir pra casa da minha mãe. Aí fui lá pra onde ficava minha irmã pra ela me
botar na condução que ia me mandar aqui pra praia de Mauá. Aí cabei ficando pelo meio
do caminho. (Risos)
Eu: Mas com é que você ficou no meio do caminho?
MC: Porque a Dona Geni era mãe dessa família lá em Niterói, aí ela falou pra minha irmã:
“ah Maria Célia tá precisando de compa... de uma pessoa pra ficar com as crianças. Cê
não quer deixar Maria ir não?” Aí ela: “ela que sabe!” Ela me perguntou, eu nunca pensei
em nada assim mesmo aí: “tá, eu vou!”. (Risos) Aí ela me trouxe para Niterói e fiquei.
Eu: Ah então nessa época que você veio pra Niterói e saiu de Minas?
MC: Aham, foi. Aí fiquei desde essa época, de 72, praticamente quase que os dias de
hoje.
Eu: Aí só voltou pra visitar, seus pais no caso?
MC: É minha mãe eu ia só pra passear.
Eu: E... seus pais eram religiosos?
MC: Eram católicos né. Conheci eles assim. Aí eles mudaram, quando foi em 70, quando
eles mudaram aqui pra paria de Mauá, é... eu ainda tava em Campos. Aí... aí um dia meu
pai passando em frente uma igreja evangélica né, Assembleia de Deus, aí... ele sentiu
vontade de entrar e assistir o culto. Aí ele assistiu e nunca mais saiu.
Eu: E sua mãe acompanhou ele?
MC: Aí depois mamãe entrou, logo pra dar mais força a ele, que ele bebia né, nada deixava
aquela bebida, única forma que ele...
Eu: Aí ele parou de beber?
MC: Aí ele parou de beber. Ficou até morrer.
Eu: E... sua mãe também já é falecida?
MC: Já! Já faleceu.
Eu: E como é que foi então essa questão é do espiritismo?
MC: Pra mim? Pra mim isso sempre me chamou a atenção desde criança.
Eu: Quando você morava na casa dos seus pais já tinha, já conhecia casa espírita?
MC Já porque era assim, quando eu tava lá em Campos, eu estudava lá no Julião
Nogueira, perto da usina, usina de Queimados. Ai quando atravessava o campo lá, pra
238
cortar caminho, aí sempre, às vezes via umas arriadas lá, uma macumbinha. Aí depois
que já... eu: “ué, tinha...” Aí eu voltava por curiosidade. Achava aquilo curioso,
interessante e assim foi. Aí depois Dona Theresa começou a frequentar negócio de Kardec
e tinha um dia da semana que a... as outras médiuns lá assim faziam na casa dela, né? De
fluidificar água, aquelas coisas toda. Só que a gente era criança então nessas horas
mandava a gente pra fora, pro quintal pra não perturbar eles lá. Mas nada me afetava
assim não. Bebia a água essas coisas. Mas quando ela tocava no assunto desse pessoal de
Niterói. Que onde eu vim. Que às vezes ela falava com o marido: “fui lá em Niterói
visitar... Maria Célia, Zé Augusto.” Quando eu escutava ela falar de Zé Augusto aquilo
chamava a atenção, aí eu pensava comigo: “um dia vou pra essa casa”. Eu pensava
comigo, não falava nada não. Só pensava assim. E com o decorrer do tempo o que
aconteceu foi isso mesmo. (Risos) Quando essa senhora falou que a filha dela queria uma
pessoa pra ficar com as crianças. Ai foi nela que eu vim ficar. E foi lá que eu comecei a
ver, entendeu? Aí teve uma vez que a casa que eles estava morando, tinha sido do sogro
deles, era morto. Aí um dia ele levou o pessoal que ele, que era do centro que ele
frequentava, foi aí que eu descobrir que ele frequentava centro, lá pra dar uma rezada
assim na casa. Aí quando eles chegaram eu lembro que eu tava jantando, aí fecharam,
tinham uma sala a parte né? Aí eles ficaram naquela sala, os velhos lá todo mundo de
branco tudo, aí aquilo me deu uma agonia, sentia até vontade de correr (risos). Aí toda
hora ia lá abria a porta assim um pouquinho pra ver o movimento. Aí quando eu via se
aproximando da porta ai eu me mandava. Aí dava um tempo depois voltava de novo até
que tinha um homem lá que falava que devia falar tipo Pena Branca sabe? Que eu não
entendia nada que ele falava. Aí eu vendo assim ele conversar com um homem, que acho
que era o cambono, ai ele falava alguma coisa pro Zé Augusto, ai Zé Augusto veio pro
lado da porta, ai ele pegou e falou:
“agora cê não sai não, fica aí!”. Ai eu fiquei meio assim receosa mas fiquei em pé ali. Aí
ele falou assim: “Ele tá perguntando sua data de aniversário.” Aí eu falei... não sei mas o
que ele falou lá que eu... aí ele virou e falou assim: “Ele tá perguntando porque às vezes
você senta num lugar e chora? Você tá muito bem, de repente você faz isso.” Aí eu virei
assim: “É mas quem contou isso pra ele?” (Risos) Aí o homem falou assim: “ninguém
precisa contar nada pra ele não”. Aí depois o moço me falou: “Ele tá dizendo que mais
pra frente você precisa se desenvolver.” Aí o tempo passou. Aí depois começou assim a
ter alguma manifestação mas eu não me dava conta... do que que era. Às vezes tava no
colégio, de noite... Aí de repente sei lá, não sei o que sentia eu saia, ia embora. Aí eu...
José Augusto percebia que eu estava meia estranha, mas eu não me tocava não. Aí eu
comecei mais a prestar atenção nas coisas e teve um dia, eu tomava benção à Zé Augusto...
Aí tinha tido um aniversário do Eugênio. Aí eu me lembro que depois todo mundo foi
embora que ia catando as coisas, ajeitando mais ou menos as coisas eu dormia no quarto
com os meninos. Aí quando chegou de manhã eu fui tomar a benção de Augusto, ele
disse: “Não sei se eu devo te dar a benção”. Ai eu fiquei assim: “hã mas porquê?” Ele:
“Ontem quase você foi”, falou assim. Mas não me dava explicação não. Eu ficava tipo o
que é isso não sei o que. Aí ele virou pra mim e falou assim, tinha, aqui era o quarto dos
meninos, aqui tinha um corredor que ia pra uma das salas e tinha o banheiro que era dos
meninos, do lado de cá ia pra cozinha. Falou assim: “Quando eu passei com Marcelo no
colo pra botar na cama, você estava...” Eu lembro até hoje, Maria Célia falou: “Maria do
Carmo pega um pano dá uma passada no chão do banheiro que tem criança, respinga
água” Eu eu me lembro que eu peguei um pano, a parede era um espelho de fora a fora,
a pia também, cumprida de mármore, eu me lembro até hoje, eu segurei assim do lado da
239
pia e foi (inaudível). É o que eu lembro. Ele disse que nessa hora ele ia passando com
Marcelo quando eu fui cai bati assim no box quebrei (Risos) quer dizer, ai não sei... Ele
me chamou, ele falando comigo, mas isso ai eu não lembrava que eu dizia não sei o que,
acho que tava vendo um preto velho, tava vestido de branco, pela descrição era isso. Aí...
Eu: Ah então nesse momento você incorporou?
MC: Eu não sei! Eu não sei te dizer!
Eu: Segundo ele né?
MC: É por que ele já é pessoa formada, médium né... já era um cinquentão sei lá. Aí... aí
ficou nisso. Aí teve um outra vez que de manhã... eu às vezes ia na esquina buscar o
jornal. Aí fui, ai fui comprar o jornal, quando voltei a porta da sala da frente que é onde
eles fizeram as reuniões era um porta largona assim de vidro. Aí quando eu entrei assim
no portão, o vidro lá da porta, ai eu vi o vidro rachado assim. Aí cheguei lá dentro dei o
jornal e falei assim: “Zé Augusto você não sabe o que aconteceu. (Risos) Eugênio devia
tá andando de bicicleta deve ter caído lá que rachou o vidro da porta. (Risos)” Ele disse
assim: É... mas não foi Eugênio não, foi a senhora!” (Risos) Eu: “Cê tá maluco! Nem
encostei naquela porta!” “Foi você ontem.” Ele falou: “você tava com a pomba-gira”.
(risos)
Eu: Eita! Ai essa já foi uma outra vez?
MC: É isso já foi uma outra vez. Aí... e de vez em quando acontecia esses lances assim
entendeu. Acho que eu ficava meio aérea, sei lá que que dava. Ai teve uma vez que eu
vim aqui na casa da mamãe, eu não frequentava lugar nenhum né, aí ela me pediu pra
mim assim... é... “Maria vai com seu primo leva ele ali”, nem lembro mais o nome do
homem, “leva no fulano ali pra dar uma rezada nele!” Ai eu fui. Aí lá, rezou meu primo,
tudo. Aí no que virava pra mim e falava assim: “Você tem escutado umas coisas bonitas
né?” Aí eu assim: “Eu?” “É você mesmo! Lá.” Quer dizer, aonde eu trabalhava. Aí... Aí
eu lembrei dessas coisas assim né? E aí ele falou assim: “Mas não se preocupa...” Aí eu
falei: “É! Mas não tá acontecendo mais não, parou.” Aí o...
Eu: Mas esse era um rezador no caso?
MC: É. Pelo que eu sei né. Se ele trabalhava assim eu não sei. Eu... Aí eu: “Mas não tá
acontecendo mais não.” Ai ele assim: “Eu sei. Não tá acontecendo mais porque aquele
moço trabalhou pra você.” Que era o Zé Augusto. Eu fiquei inculcada e não sei o que,
enfim. Aí é... ele explicou, no caso (Tupã?) Mas eu não vo... Ele via e sabia que tava
acontecendo... Ah teve ainda um detalhe. Aí eu comecei a me interar melhor. É... enfim,
como eu não tinha conhecimento desse, então lá no centro não o que, ele pediu que me...
afastasse né? Aí que uma das últimas vezes que eu me lembro assim... é... a tia Maria que
a gente até não se dava não... brigava muito. É... ela sempre passava roupa de noite. Ela
tava lá na área que era a parte assim né? Aqui era a casa, a área era a outra parte assim.
Atravessava o quintal ficava o quarto, o banheiro... Aí eu já tinha botado o Marcelo na
cama... e fui lá pra fora pra falar alguma coisa assim com ela. Cheguei na porta da cozinha
ela tava lá com a, passando roupa na área, aí eu sei que ela disse que olhou pra trás que
eu rodopiei assim e cai (risos), entendeu? Aí me chamou, me chamou, aí ela pegou e me
puxou para dentro, aí botou lá na sala. Aí ficou né? Não foi dormir. Aí Zé Augusto nesse
dia saiu com Maria Célia pra jantar. Aí já chegaram tarde, tipo, meia noite, por ai assim.
Aí quando ele chegou... é... que ele entrou por essa sala da frente, ai que a Maria Célia
ainda pulou por cima de mim que eu ainda estava deitada no chão. “O que que Maria do
Carmo ta fazendo deitada aqui no chão?” Aí ele logo percebeu né? Aí foi lá perguntar pra
dona Maria. Aí a Maria vinha, muito assim meio maluquete, meio debochada (risos) “Ih
seu Augusto!” – ela falava seu Augusto – “Ih seu Augusto! Eu não fui dormir, fiquei
240
esperando cês chegarem que Maria do Carmo tá com pomba-gira aí.” (risos) Ai ele:
“Como é que cê sabe?” “Agora a pouco ela tava rodopiando ai na sala dando gargalhada
aí.” (risos) Ai a partir daí que realmente parou, entendeu? Aí deu trabalho lá pra ela
afastar, enfim. Aí começou...
Eu: Mas então você é inconsciente?
MC: Eu digo, naquele início certas coisa eu não lembrava. Agora depois que eu comecei
a me, entrei mesmo pro centro aí não, aí eu já comecei a perceber alguma coisa de
diferente, entendeu? Hoje não, hoje tem bem mais assim um controle. Mas na época eu
sentia que tava meio estranha, mas não tinha assim o que que era que tava acontecendo.
Eu: Tá. Deixa só eu ver se entendi. É então, quando você era mais novinha você via lá os
trabalhos nos caminhos...
MC: É...
Eu: Olhava, mexia...
MC: Coisas me ligava, coisa do espiritismo, falando assim na Umbanda, aquilo sem eu
entender, mas quilo me chamava a atenção entendeu? Sentia muita curiosidade nessas
coisas.
Eu: Aí dona Thereza que você falou é de Campos? Que é quando você foi lá ela fazia
reuniões kardecistas?
MC: É
Eu: E ai tinha o que você via, mas não te chamava a atenção...
MC: É não essa parte não me chamava muita atenção não.
Eu: Ai quando você veio pra cá pro Zé Augusto em Niterói, não é isso?
MC: É.
Eu: Aí você começou a despertar a mediunidade?
MC: É.
Eu: Isso era mais ou menos com quantos anos?
MC: Ah quando eu tava, acho que eu completei meus 15 anos lá. Uma coisa assim.
Eu: Quando você fez 15 anos você já estava lá?
MC: Já.
Eu: E todos eles são seus parentes?
MC: Não. Parentes de sangue não. Foram da área de patrões dos meus pais. São parentes
dos patrões. A Maria Célia que é mulher do Zé Augusto. Ela era filha de um dos donos
da fazenda que o meu pai trabalhou quase que o tempo todo.
Eu: E ai Zé Augusto fazia trabalho dentro da casa dele?
MC: Não, ele tinha o centro que até hoje eu não sei qual era o centro. O único centro que
eu cheguei conhecer era mais pra área da saúde que era o centro Maria Magdala. Que a
parte de saúde era lá. Inclusive até numa época ele me levou lá. Agora da outra situação
não.
Eu: Mas não lembra não o nome do centro que ele frequentava?
MC: Não, não cheguei a conhecer não.
Eu: Mas fazia alguma coisa em casa né, que você via?
MC: Não, não.
Eu: Que você olhava assim na porta, era aonde?
MC: A única... Não, isso foi quando levou o grupo do centro pra rezar lá fazer uma
limpeza...
Eu: Na casa dele?
MC: Na casa.
Eu: Aí nesse dia aí já começou...
241
MC: Aí aquilo ali que me chamou muita atenção (rs). Mas não tinha atabaque. Nada
dentro de casa não. Só eles com as coisas deles lá, fumando charuto, enfim fazendo uma
reunião assim normal.
Eu: Já era Umbanda então no caso?
MC: É. E depois quando eu realmente conheci alguma coisa, por exemplo, ai depois como
ele tinha uma conhecida que o pessoal dela tinha um centrozinho. Tinha até a casinha a
parte assim. Era ali perto da Sanitária Fluminense antiga onde foi ali o disco. Aquele
mercado grande que tinha o Disco. Era ali naquele pedaço ali perto. Aí lá eu ia de vez em
quando pra tomar uns passes entendeu? Com a vovó que tinha lá. A vovó da Dedélia. Mas
nunca fiz nada não. Só falava que eu precisava, mas nunca quis. Eu só me decidi quando
eu fui conhecer a Cabana do Pai José onde eu botei roupa. Lá eu sentia vontade de ficar
lá junto com aquele pessoal.
Eu: Como você conheceu a Cabana?
MC: Através dessa conhecida minha. Ela que me falou. Ela trabalhava na época no
Tupyara e...
Eu: Tupyara é onde?
MC: Era um centro lá no Rio. Um centro grande. Zé Luiz até conheceu. Ai ela me falou,
mas tem um Niterói que ela conhecia que ela chegou a iniciar lá, mas ela foi pro Tupyara
e ai ela me levou lá pra conhecer.
Eu: Cabana?
MC: Cabana do Pai José. Agora já não existe mais. Já acabou. Quem ficou pra tomar
conta não quis, ai passou o centro pra Federação Espírita. Eles fazem outras coisas lá.
Eu: E quem era o líder na época?
MC: Era seu Reinaldo. Reinaldo Miranda. Já faleceu também.
Eu: E aí ela te levou lá e ai a primeira vez você já sentiu...
MC: Senti. Quando eu entrei pra tomar o passe cai lá no chão. (risos) As pernas
bambearam e eu caí. (risos). Ai ele falou. O dono da casa virou pra mim e falou: “Só me
apareça aqui se você tomar uma decisão. Ou então se afasta.” Eu ai eu fiquei num
desespero que eu não queria. Peguei dinheiro emprestado pra comprar logo minha roupa
e entrei. Porque eu queria fazer parte da quela roda que tava lá. Eu sentia que queria tá lá.
Eu: você tinha vontade de estar lá?
MC: Aí eu fiquei. Duas amigas que eu tinha entraram, depois eu entrei.
Eu: Isso foi em 81 né?
MC: É. Aí eu finalizei o ano de 85 lá e comecei em 86 no Samir.
Eu: Como foi aquele começo lá? Como era o desenvolvimento lá?
MC: Lá?
Eu: É.
MC: Ele via de acordo com sua mediunidade ai separava os médiuns que já davam
consulta essas coisas, os novatos ficavam no outro lado com o caboclo Ubirajara fazendo
desenvolvimento ou...
Eu: Que é o caboclo do líder?
MC: Era o chefe do terreiro. Ou então ele designava um outro pra ajudar no
desenvolvimento.
Eu: E lá era como o Samir? Tinha todo sábado? Como era?
MC: Não, lá era todas as quintas. Aqui eu comecei a ir. Depois tinha também sessão às
terças também justamente pra poder levar crianças essas coisas. E tinha sessão do oriente
que era quartas-feiras. Aí ficou quinta, quarta e tinha terça.
Eu: Aí terça, quarta e quinta. E terça era sessão de que?
242
MC: Terça era essa parte de terreiro só que era durante o dia.
Eu: Terreiro durante o dia?
MC: Mas pra desenvolvimento praticamente não tinha por que as pessoas trabalhavam.
Então era mais pra de noite mesmo.
Eu: E na quarta era Oriente e na quinta era o que?
MC: Sessão de terreiro.
Eu: Sessão de terreiro, mas ai tinha desenvolvimento.
MC: Ai tinha a sessão completa.
Eu: Era mais fechada a sessão?
MC: Não, era aberta ao público.
Eu: Era aberta durante a parte do desenvolvimento... E como era organizado as sessões?
Por exemplo, no Samir tem aquela abertura, a sequência das entidades...
MC: É isso aí também tinha. Você abre com aquela abertura, a prece, prece de caritas,
todo esse...
Eu: O início era...
MC: Cantava os pontos das entidades que iam tomar conta do (inaudível) 32:00
Eu: Então era bastante próximo ao Samir nesse sentido.
MC: É. Até a vestimenta.
Eu: Vai todo mundo de branco...
MC: É. Nada de baiana, essas coisas não.
Eu: E...
MC: Uma vez, depois de um certo tempo, uns dois anos assim mais o menos que você já
estava pegando as entidades ai ele, o Ubirajara né, via lá os médios que estavam propícios
pra isso ai ia lá em Boca do Mato, que a casa tinha um terreno lá e lá fazia as confirmações
dos guias. Aí lá eles eram livres pra usar charuto, usar essas coisas que não se faziam na
casa.
Eu: Ah então na casa não se usava charuto, nada.
MC: Não
Eu: Por que o Samir ainda usa...
MC: Aham, mas lá não. Então lá na mata eles tinham liberdade de chegar, fazer uso dessas
coisas.
Eu: E você lembra qual a razão que eles davam pra não usar?
MC: Acho que... nunca me indaguei isso não. Mas acho que era a questão mais da própria
evolução né. Tanto é que por exemplo eu tinha um caboclo que não era o Mata Virgem.
É o que começou chegar lá primeiro. Ele gostava de charuto.
Eu: Qual era o caboclo, você lembra?
MC: Pena Verde. (Risos). Assim me disseram que ele é um caboclo mais novo. Mata
Virgem é um caboclo mais velho. Mata Virgem chegou assim pouquíssimas vezes e sabe,
não fixava. Chegava e subia (gesto com as mãos indicando uma subida rápida). Caia fora.
Eu: Então desde sempre você trabalhava com os dois caboclos?
MC: Quem chegava constantemente era esse que eu tô falando. Só que até então eu não
dava conta ainda desse outro. Sempre chegava uma entidade ela nunca ficava. Chegava e
logo em seguida ia embora. Quando ele me chamou que eu precisava encontrar um outro
local era por causa dele.
Eu: Do Pena Verde?
MC: Do Mata Virgem. Seu Reinaldo que era o diretor da casa. Ele quando ficou sabendo
que eu ia sair ele falou: “quem que mandou?”. Falei: “Caboclo Ubirajara.” Ele: “Mas eu
não estou sabendo disso. Vou falar com ele.” Ele foi conversou com ele...
243
Eu: Só para eu lembrar Ubirajara é o caboclo do chefe da casa?
MC: Era o chefe lá da Cabana.
Eu: Que era a entidade do seu Reinaldo?
MC: Não! Seu Reinaldo era auditivo.
Eu: Ah ele não recebia...
MC: Era o dono da casa. A casa foi feita pra filha dele. Ele tomava conta. Ai ele conversou
lá com ele para que eu não saísse. “Não! Não tem como segurar ela aqui porque é
problema de guia. Deixa ela ir para ver como é que fica.” Aí vim. Sofri porque eu não
queria sair de lá. Mais aí quando eu vim Pena Verde chegou acho que umas duas, três
vezes no máximo. Aí de repente sumiu. Aí começou a vir esse. Aí que eu vim a descobrir
que era o Mata Virgem. Ele mesmo mostrou em sonho, riscando o ponto dele na Casa.
Eu: Então o Mata Virgem não trabalhava nessa casa?
MC: É! Teve até uma época quando tinha trabalho lá na mata, quando eu fui falar com a
vovó Carolina, que sabia que a gente ia, quando voltei pra comentar com ela que tinha
ido ela virou pra mim e falou: “E aí minha filha, Mata Virgem riscou?” Quando ela falou
isso eu: “Ih vó! Saiu tudo errado então! (Risos) Porque foi fulano de tal que esteve lá.”
Ela que falou pra mim: “Eu sei, mas não é que estivesse errado não. É porque ele é muito
moleque ainda. Ele pulou na frente do Mata Virgem.” (Risos) Entendeu? Ele entrou na
frente e riscou. Aí quando eu vim para aqui eu percebi que não era o Pena Verde que
estava vindo. Mas eu demorei um pouco pra saber. Aí ele me mostrou em sonho. Eu com
ele incorporado e eu... lembra o chão de cimento que tinha, que não era esse que está lá,
era cor de cimento? Era aquele chão ainda quando ele me mostrou riscando ali mesmo
perto do gongá.
Eu: E você sentiu diferença da presença de um e de outro?
MC: Ah senti. Eu não sei se de repente um pouco do meu jeito ou se junta as coisas eu
sinto mais compenetrada. Me sinto mais segura. Talvez seja como ela falou, mais velho
né, mais maduro.
[Entrevista interrompida pela vizinha]
Eu: Por que Mata Virgem não trabalhava lá na Cabana?
MC: Justamente por causa desse detalhe aí.
Eu: Por que o outro pulava na frente lá?
MC: Não, a questão, não sei se vou usar a palavra certa, a missão dele. Depois que eu já
estava aqui, que o Ubirajara disse: “Você vai, fica um ano e volta aqui para eu ver como
você está.” Aí assim eu fiz, ele disse: “Pode continuar lá. Porque lá está mais próximo da
linha dele.” E segundo porque ele é chefe de terreiro. Na época ele até falou comigo: “Vai
preparando a casa porque...” (Risos) Eu: “É muito difícil”. “Então vai ficando lá pelo
Samir.” (Risos)
Eu: Então lá em 85, 86 já falou que você...
MC: Em 85, 86, acho que foi mais ou menos lá por 87.
Eu: Mas aí nesse momento falou que você assumiria então?
MC: Aí ele mandou que eu continuasse pra cá pra me preparar e me deu esse aviso: “Vai
se preparando por que ele é chefe de terreiro, ele vai querer a casa dele. Eu no caso que
falei pra ele: “Ah caboclo vai ser muito difícil.” Aí eu falei pro meu: “O senhor vai ficando
pela Casa de Samir mesmo que vai ser difícil. (Risos). Isso passou anos até que ocorreu
o dia lá da Dona Jacira entregou, ela nem nunca soube nada desse assunto, aí quem entrou
no lugar foi eu né.
Eu: E foi Dona Jacira que indicou você? Por que tinha outros médiuns né?
MC: É! As coisas comigo acontecem meio estranho. Nesse dia era reunião de cigano.
244
Eu: Dona Jacira ainda estava indo?
MC: Estava! Tudo normal. Eu também ia que era sessão de cigano. Só sei que sem mais
nem menos tive uma dor de barriga do nada. Aí eu liguei pra Lúcia, falei “Lucia (logo de
manhã) Lúcia não vai ter condição de eu ir à sessão hoje, estou assim.” “Ah tá, tudo bem.”
Não tinha comido nada... Aí passou, me desliguei. A dor de barriga depois passou, mas
já não adiantava depois eu ir. Aí está bom. Mas eu tinha tido um sonho, tipo da sexta pro
sábado, que era Samir, eu via lá o salão, e era sessão de cigano só que era tanta confusão...
alguns detalhes já não recordo mais, que eu fiz “Ué, que confusão é essa? Sessão de
cigano, não sei o que pá pá pá... Passou. Larguei para lá. Quando deu aqui quase seis
horas, cinco e pouca, sei lá, como eu estou com a porta sempre aqui meio aberta, só vi
quando “Maria do Carmo!” não sei o que... era Regina. Chorando, entrando aqui: “Você
não sabe o que aconteceu!” (risos). Aí que ela me contou a história da confusão que foi
lá que tumultuou a sessão toda e Zefa largou o cargo e não sei o que, e Lúcia também em
apoio à Jusefa também deixou, enfim, aí Dona Jacira...
Eu: Me lembra que eu não lembro dessa confusão não. Eu sei que teve uma confusão,
mas eu não prestava atenção e acho que eu também não estava no dia, não sei.
MC: Aí Dona Jacira então falou, Dona Jacira deixou por problemas médicos, não queria
mais voltar.
Eu: Foi o dia que todo mundo decidiu deixar o cargo?
MC: É! Largou todo mundo, entendeu? Eu vi durante a sessão aquela confusão, mas...
Eu: Mas você lembra porque Zefa desistiu?
MC: A Josefa eu nem sei direito. Estava com muito problema na época. O marido dela, a
cunhada que morava com ela. Muitos problemas de saúde, muitas coisas. E a Dona Jacira
eu tenho certeza de que foi isso. Depois o que eu fiquei sabendo foi isso. Ela em apoio a
Josefa, ela também deixou o cargo.
Eu: Seu Zé ainda estava na casa?
MC: Não, ele já tinha falecido. Foi em 2011, acho que foi em março. E isso aí foi em
outubro, novembro, meio de 2011 eu acho. Dez ou onze. Aí a Regina chegou aqui
contando isso: “Ela disse que agora vai ser você. Ela mandou as papeladas todas lá para
o Felipe, chamou ele, entregou os papeis, não sei o que...” aí eu fiquei meio assim né? Aí
quando foi na semana seguinte, aí estava Zé Carlos, tudo lá... Aí, quer dizer, já tinha
falado que era eu e o Zé Carlos foi o que mais me chamou a atenção assim que ai eu “tá”.
Mas sabe quando você entra assim sem pensar, sem raciocinar sobre a situação, entendeu?
Veio o Zé Carlos me abraçou e disse: “Maria do Carmo, não abandone a gente!”
entendeu? (risos) Sabe, uma coisa sem ação. Aí depois foi aquelas confusões comigo com
Felipe, entendeu? Que já entra Luizinho, foi tanta confusão que eu disse: “gente!” aquelas
brigas do Felipe comigo, me humilhando, entendeu? Entrava lá na frente de calção, até o
dia que eu muito aflita, nervosa ainda pra fazer a abertura, ele meteu o quadril assim pro
lado, me empurrou pro lado “agora quem falar aqui sou eu”, entendeu? Vou te contar! Eu
passei, não sei nem onde foi parar meu gênio que eu não sou assim, entendeu? Acho que
muita coisa me segurava. Para eu explodir ali não custava. Levei muito tempo segurando
a peteca assim, sabe? Muita coisa. Aí depois já um tempo pra frente eu: “ué gente, será
que eu entendi as coisas erradas? Será que seria o Felipe mesmo que está relutando tanto
pelo lugar e eu entendi errado?”
Eu: Ele estava lutando pelo lugar de dirigir?
MC: Aos poucos, para frente, sabe? Você se certifica de algumas coisas. Aí um dia eu
liguei para Lúcia e perguntei: “Lúcia, sou eu mesmo que é para tomar conta do terreiro?
Será que eu entendi errado isso?” Ela disse: “Não Maria do Carmo, está certo. Dona Jacira
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entregou o terreiro, Maria do Carmo e a parte dos papéis, documentos, aquelas coisas
todas, burocrática, com o Felipe e disse: ‘você junto com Maria do Carmo’ quer dizer,
junto, mas não ele no terreiro, no terreiro era você”. Aí eu fiquei até mais tranquila. Estava
achando que era uma coisa e era outra, mas não. Ela que estava na reunião ela sabia
perfeitamente. Aí depois, muito detalhe eu ficava assim colhendo. Uma vez, logo assim
que o Luizinho entrou, a Josefa um tempo antes já tinha até falado assim vez. “Ah ele
está tão interessado pela Casa” que ele era marido daquela menina que morreu né? Felipe
queria que eu pegasse, ficasse como presidente. Aí eu falei: “Ah não Felipe, isso não,
pelo amor de Deus!” “Não que eu gostaria que ficasse algum membro da Casa, não uma
pessoa de fora.” Eu fiz: “Ah não, eu não sei fazer isso.” Aí ele: “Você não sabe administrar
sua casa?” “Minha casa eu sei, mas aqui...” Aí está bom. Foi quando eu falei do Luizinho,
acabou sendo Luizinho. Aí muito tempo depois eu que um dia veio aquilo na cabeça.
Agora eu entendo por que Felipe brigava tanto pelo local. Porque ele queria tomar conta
da parte espiritual. Não queria a parte burocrática. Já que ele, quer dizer, muito mais
esclarecido nesse sentido que eu que não sou nada nessa área mesmo que poderia já até
ter ficado como presidente né. Ele já era vice. Aí muita coisa, aí eu só abri a boca mesmo
quando ele pegou todos os cobertores que tinha lá para doação e fez aquela cachorrada.
Aí que eu abria a boca. Agora eu não engulo mais.
Eu: O que ele fez que eu não lembro?
MC: Era os cobertores, já estavam todos juntos lá para dar para doação, aí um dia ele
ligou para mim e falou: “Ah Maria do Carmo, eu estive pensando esses cobertores aqui
tá tá tá é perigoso por causa de um incêndio tá tá tá” Tudo bem, eu reconheço essas coisas,
mas não só cobertor como ali tinha muito papel. Mas pra evitar aporrinhação eu comentei
com Luizinho, Luizinho tem uma casa lá da parte dele, que morava acho que com a mãe
sei lá o que era. “Tem lugar pra guardar. Aí você fala pra ele guardar isso lá e quando
chegar a época ele traz.” Eu confiei, e bom, tudo bem “avisa com uma semana de
antecedência que ele traz.” Eu falei “tá, tá bom”, meio contra minha vontade, mas tudo
bem. Aí está bom. Quando chegou na época de dar aí eu fiz. Com uma semana antes eu
peguei o telefone e liguei para o Luizinho para pedir para ele trazer. Aí quando eu liguei
o Luizinho falou assim: “Olha os cobertores já foram distribuídos.” “Como assim?” Eu
cheguei ficar gelada. “Ah o Felipe disse que era para distribuir, distribuiu.” Ah eu falei
muito, chamei de puta que pariu, chamei de tudo quanto foi nome, falei mesmo. Aí nem
lembro mais o que falei, falei isso. Só sei, não sei como rendeu o assunto, só sei que teve
uma hora, ah ele ficou acho que receoso de acontecer alguma coisa, pegou o telefone e
ligou para o Noel.
Eu: O Felipe?
MC: Não, o Luizinho. Falando o ocorrido (risos). Aí isso foi o Noel que me contou. “Falei
mesmo pra ele: tomara que Maria do Carmo te enfie o cacete!” (risos). Agora, isso não
foi um roubo? Foi um roubo. Quebrei o pau. Falei mesmo. “Seu ladrão! Safado!” Falei
para o Felipe mesmo lá. Aí ele falou: “A Casa dá de novo.” Eu falei: “Você tinha que
tirar do seu bolso e dar! Isso foi um roubo!” aí quer dizer, foi quando, não sei o que foi
que saiu o assunto, sei que foi lá na casa da Gisele. Acho que foi aniversário, acho que
foi de criança, foi dela, eu não lembro mais o que foi. Aí acho que ele estava nesse dia,
apareceu lá, aí não sei o que rolou, não sei se Janaízy perguntou qualquer coisa, enfim,
eu sei que depois eu comentei isso com Janaízy. Aí ela: “Eu não estou sabendo disso não”
Aí falei: “Cada hora você descobre um troço.” Aí quando foi um dia, eu não tinha nem
sossego para dormir. Eu dormia daqui a pouco acordava no meio da noite, aquilo vinha
246
na cabeça assim entendeu? Aí um dia foi assim, aquele, um quadrinho que tinha assim
preto e branco, não sei se você se lembra.
Eu: Um quadro de Jesus?
MC: É. Toda vez que você ficava olhando você via assim formar o rosto. Aí cheguei um
dia lá, fui olhar, fiz: “Ué! Cadê aquele quadro?” Não achei o quadro de jeito nenhum.
Quer dizer, quem mexia nessas coisas? Até durante a sessão lá ele fazia essas afrontas.
Tinha um troço pendurado na parede com um cabinho assim que você...
Eu: Um chocalho?
MC: Acho que está lá, sei lá como é o nome daquilo que eu não sei. Tipo um chocalho
né? Ficava lá na frente aí ele encasquetou um dia de repente foi lá na sessão meteu a mão,
tirou que aquilo não é... Quer dizer, tudo o que ele podia para me infernizar o juízo durante
a sessão ele fazia.
[Silêncio]
Eu: Só voltando lá na casa que você falou um negócio e eu fiquei pensando. Essa questão
das linhas diferentes, que o Mata Virgem era mais próximo da linha da Casa de Samir...
MC: É porque na verdade André, assim, lá não tinha campo para ele. O detalhe era esse.
Para fazer o que ele precisaria fazer que no caso dele era dirigir. Na Cabana não tinha
esse campo para ele. Por isso ele se aproximava mais do campo de Samir. Ou ele se tivesse
a casa dele ele mandava direto, mas ali mesmo ajudando já dava campo para ele entendeu?
Eu: Então, no caso, as duas casas são próximas na maneira de trabalhar?
MC: É a forma delas são muito parecidas. Aqui por exemplo a gente usa bebida para fazer
os trabalhos né? Na Cabana já não se usa nada desse termo.
Eu: Mas tem um local, um espaço para fazer isso?
MC: É é, agora tem a firmeza igual nós temos lá das almas, entendeu? Ficava num
corredor que você ia lá atrás para fazer firmeza. Lá por exemplo as entidades vinham e
você firma sua vela ali. Lá já é diferente. O guia chegava, trabalhava, fazia o que tivesse
que fazer, entendeu? Descarregava, descarregava de uma forma assim, Samir a gente faz
na cadeira, lá um consulente, um médium, um consulente, um médium ali em pé numa
roda. E depois com quem fizesse...
Eu: [inaudível]
MC: É aí descarregava assim, invés de botar as mãos nas costas botava mão a mão assim
entre a corrente. Ai depois que cada entidade tivesse feito os trabalhos não sei o que ele
ia lá atrás nas almas, lá ele firmava a vela como se bota ali na coisa...
Eu:
MC É onde ela fazia isso. Então ali era entregue os trabalhos que eles tinham feito.
Eu: E aí você falou que depois de dois anos você fez a confirmação dos guias. Aí você
fazia a confirmação de todos os guias ou fazia de alguns?
MC: Normalmente o guia principal, mas não impede de outros quiserem vir fazer. Você
pode também repetir. Quiser fazer outra vez pode. Por que ali você fazia tipo assim
como... Eu vou dizer, não sei se seria essa a palavra certa, igual você tipo assim um “deita
para o santo”, eu também não sei como é que é porque eu também nunca participei, nunca
vi. Mas a parte ali. Quando você ia na mata, você usava cachaça, champanhe era de Oxalá,
o vinho, a cerveja para Ogum, vinho preto velho. Então você, o seu corpo, era cruzado
com todas as linhagens, cada uma das bebidas referentes de uma linha. As crianças era o
mel...
Eu: Então era...
MC: A...
Eu: Cerveja Ogum né?
247
MC: É. Por exemplo, a champanhe. A champanhe só era usada na cabeça. A única coisa
que se usava na cabeça que era de Oxalá. Agora por exemplo, marafo, era nas mãos e nos
pés.
Eu: Que era de Exu?
MC: É. Dessa forma, assim você fazia a sua preparação. Tanto é que ele avisava “Ó quem
passou por todas essas etapas assim estão aptos para trabalhar no terreiro, quiser ter sua
casa...”
Eu: Ah então a partir desse momento você já poderia ter sua casa?
MC: você já tinha, é. O Sergio, por exemplo abriu. Acho que foi lá no Cala Boca que ele
tinha lá aberto. Ubirajara avisava quem abrir sua casa e quiser que eu vá ajudar a fazer
todas as firmezas que tiver que ser feita ele faria.
Eu: Mas, no caso, você fez em dois anos...
MC: Dois anos não! Dois quem já está... Por isso que eu falo, quando vai ele escolhia os
médiuns que estavam capazes de fazer isso. Porque tinha gente que já estava cinco anos
na casa e ainda não conseguia captar pontuação para riscar. As vezes fazia uma parte, mas
não completava o ponto porque a cabeça ainda não estava...
Eu: Então a partir desse momento você era considerada uma médium desenvolvida, é
isso?
MC: É. Você ainda estava em desenvolvimento, mas já estava dando para você traçar seu
ponto. Se você incorpora, digamos que vai fazer uma estrela, faz três pernas da estrela e
não faz o resto. A conexão ainda não está batendo entendeu? Aí você tem que permanecer
no desenvolvimento até conseguir.
Eu: O Samir já não este trabalho né? Não essa confirmação nesse sentido?
MC: Igual lá não. Tem ali mesmo, se o guia chegar e riscar, ele já está apto a...
Eu: Mas o guia quando risca isso significa que o médium de...
MC: A conexão da sal captação já está boa.
Eu: Então, a minha pergunta é isso significa que essa pessoa pode abrir a casa dela, pode
trabalhar sozinha?
MC: Não, não aí tem muita coisa para desenvolver. Por isso que eu estou falando, quando
eu saí de lá eu ainda estava faltando completar coisa. Tanto é que quando eu voltei pra lá
ele disse: “Você desenvolveu mais três linhas.” Completou mais, entendeu?
[Silêncio]
Eu: E você sabe...
MC: Dois anos, dois anos é porque você já está em desenvolvimento. Às vezes tem gente
que tem mais, mas não consegue ainda...
Eu: Então essa confirmação no caso, ela seria, digamos assim o primeiro nível?
MC: É.
Eu: Aqui você já tem um guia que você já sabe qual é que você trabalha.
MC: Aham.
Eu: Aí você vai ter outros níveis?
MC: é você vai melhorando cada vez mais.
Eu: E lá você incorporava todas as linhas?
MC: Lá tinha... Por exemplo, assim, pombagira, a não ser quando já está um médium bem
desenvolvido, você já tem um bom controle você pode até receber ela ali e... Agora, por
isso que eu falo, tudo tem que ter doutrinação. Tinha uma médium lá, já era antiga e tudo,
um dia Maria Padilha, antes de encerrar ela chegou e pediu licença que ela queria falar.
O caboclo deixou. Ela educadamente falou. Pedia aos assistentes que de acordo com os
pedidos que eles são facas de dois gumes, se você pede uma coisa boa, tudo bem. Mas
248
se você pede uma coisa ruim, vai ser ruim para você e vai ser ruim para ela. Aí, quer dizer,
aquilo regride, faz, quer dizer, ela nem anda. Estaciona ali. Então tudo isso vai da questão
da doutrinação. Agora se chega lá fazendo um escândalo, chamando atenção por demais,
o que ele faz? Cai fora, bota logo para correr. Então por isso que fala, tudo tem que ter
doutrinação.
Eu: Entendi.
MC: E assim como os pais da gente doutrina a gente, a gente também tem que doutrinar
eles.
Eu: E aí, no caso, nessa casa entendia que pelo nível de doutrinação não usava charuto,
não usava esses... cachaça...
MC: É. Porque tem coisa que existe né, os prestos velhos, isso aí para eles é bastante
importante. O lance da fumaça, o ponto dos caboclos também aquilo ajuda na sua
concentração. Mas tem coisas que abrange né? Criança, por exemplo, tudo bem, tudo
voltado ao doce, mas isso é uma coisa muito matéria. Então tem criança que se você
observar ali mesmo que chega e só quer fazer alguma coisa se você der doce. “Ah não,
eu não tenho doce!” Ué, se você é um espírito você não tem que trabalhar só com doce.
Você tem que fazer seu trabalho mesmo sem doce. Você está ali para cumprir uma missão.
Como nós estamos e eles também estão.
Eu: E como é que funciona essa questão que as pessoas falam em sete linhas?
MC: Sete linhas são as linhas preto velho, criança, povo d’agua, são linhas.
Eu: Criança, preto velho, povo d’agua que no caso quando fala povo d’agua tem Yemanjá
e Oxum, não é isso?
MC: Como é que é?
Eu: Povo d’agua tem Yemanjá e Oxum?
MC: Yemanjá, Oxum, tem Nanã.
Eu: Nanã também é povo d’agua?
MC: É.
Eu: Então essas três fazem parte de uma linha, é isso?
MC: É faz parte de linha.
Eu: Então é criança, preto velho, povo d’agua... qual mais?
MC: Iansã também não deixa de ser porque ela também gira e tudo, mas é que
normalmente é Oxum, Yemanjá, Nanã. As outras englobam, é do vento, mas engloba na
parte da água. É complicado, pra gente é uma coisa, você vai em outra linhagem o assunto
já foge para outro ramo diferente, entendeu? Aí quer dizer... 21, não está vindo na minha
cabeça agora, esqueci aqui... desses 21 vem mais 21 e vai por aí a fora (risos) por isso que
eu nem me aprofundo (risos).
Eu: Tem umas coisas que eu não entendo muito bem. Porque fala que são sete linhas, mas
a gente chama muito mais que sete linhas.
MC: é acaba sendo mais. Vai subdividindo.
Eu: Vai subdividindo, entendi. No caso quando foi nesse...
MC: Aí no caso...
Eu: 85
MC: O que pesou mais forte assim depois que eu sair foi a linha de Omulú, a parte também
de Exu, porque queria mais atuação, se soltar mais, entendeu? Lá ele vinha, mas era muito
mais travado.
Eu: E o Samir era menos doutrinado?
MC: Não, não eles tinham um pouco mais de liberdade.
Eu: Entendi. E você saiu em 85 e foi procurar outros? Como é que você chegou no Samir?
249
MC: No Samir? Quando eu sai eu fui procurar, tinha um senhor que era médium de lá,
ele conhecia outros lugares. Tinha um que era incumbência dele [inaudível] que já era
uma senhora cardíaca, eu sei que era lá no Engenho Pequeno. O nome do centro era Sete
Palmos. Pelo nome você já viu né (risos). Era um centro grande também. Mas ai eu fui
conversei com a vovó aí vovó “olha fuplínio”, era Plínio, ela chamava “fuplínio” “eu não
posso ficar com ela aqui. Até gostaria, mas não posso porque o Ubirajara, ela continua
sendo filha do Ubirajara, o Ubirajara ainda não tirou a mão da coroa dela. Aí para eu ir,
tinha que ir para ficar de vez, e o Ubirajara não deu isso. Ele disse para eu ir e depois
retornasse (risos). Mas também eu não quis ir. Aí...
Eu: Não gostou? Mas lá era muito diferente?
MC: Eu já conhecia a casa. Fui lá umas três vezes com a Terezinha que era [inaudível],
mas...
Eu: Mas lá era muito diferente?
MC: Eu não cheguei a pegar sessões assim. Eu assim dia tipo de consulta então... mas era
diferente. Tinha um senhor lá que era marido da Nair que era mulher dele e era mãe
pequena lá. Ele que catava as ervas. Lá era assim de catar ervas, tirar sumo de ervas,
entendeu? Era outro processo diferente da gente. Mas aí fui nesse e em outros que eu nem
me lembro mais. E todo lugar que me falavam “Ai não quero, não quero”. Aí quando eu
fui, dona Wilma, uma senhora que eu trabalhei na praia e ela tinha um conhecido, Almir.
E ele era ali de Icaraí. Aí um dia eu conversando com ela, porque dona Wilma chegou a
ir na Cabana comigo, ficou um período trabalhando lá, mas ela é um médio meio assim...
meio irresponsável né. Ela ia, largava, tempo depois aparecia. Aí o Almir comentou com
ela que tinha conhecido um centro, que era ali em Icaraí, que era Dona Aurinha e que lá
tinha cigano. Aí foi ela que falou comigo. Aí fui procurar então esse local ali.
Eu: Na Cabana tinha Oriente, era cigano?
MC: Não, era só Oriente mesmo.
Eu: Então lá não tinha cigano na Cabana?
MC: Não, o cigano no caso, eu nunca trabalhei com cigana lá, receber, mas a moça que
fazia psicografia, Wanda, inclusive, é quem fez aquele quadro ali para mim. Ela
trabalhava na mesa com uma cigana que é quem trazia psicografia para as pessoas. Aí,
foi até meu aniversário, nesse dia, quando Celso leu a... deve estar guardado por aí o
papel, aí ele leu me felicitando e tal pela minha data natalina, não sei o que, aí era eu né.
Aí era minha cigana. A imagem da minha cigana que ela botou no papel para mim. Aí ela
falou que ela só tinha autorização, que eram três pessoas que tinham cigano ali que ela
foi autorizada a trazer, que no caso era eu, a Nina, que a Nina também ganhou a dela, e a
Terezinha, as três que tinha cigana ali. Faziam parte do grupo da dela. Mas eu só comecei
a receber mesmo ela depois que eu vim para cá.
Eu: Então no caso na Cabana, só essa senhora da psicografia que recebia a cigana?
MC: É. A Wanda que trabalhava com psicografia.
Eu: E tinha alguma linha lá que se trabalhava e no Samir não trabalhava ou o Samir
trabalha e lá não trabalhava?
MC: Médium?
Eu: Alguma linha, tipo lá não trabalha com baiano, no Samir trabalhava ou...
MC: Não entendi a pergunta, como é?
Eu: No Samir por exemplo, a gente canta para baiano, para preto-velho, para cigano...
MC: Ah se cantava na Cabana?
Eu: É. Se na Cabana tinha alguma diferença nesse sentido.
250
MC: Tem diferença em alguns pontos. Por exemplo, de Omulú lá na Cabana se cantava
para Roque. No caso tem Omulú e tem Obaluaie. Lá cantava um ponto Roque na sua
Cabana que acho que no caso é Abaluaie. Eu sentia muita vibração. Os pontos são
diferentes do de cá, entendeu?
Eu: Mas canta para todas as linhas, só muda os pontos.
MC: É. Isso era na parte final quando cantava. E para cigano não, cigano não se cantava.
Eu: Mas no caso não cantava porque não tinha médium para trabalhar?
MC: Não, acho que até tinha. Por que eu tinha por que não cantava mesmo entendeu? Por
exemplo, a Wanda, ela trabalhava coma cigana, mas nunca se cantou para cigana porque
tem médium por exemplo que se você prestar atenção, como eu já falei ali na coisa, “Ah
tem que cantar para o meu guia!” A primeira vez que você sente a manifestação ninguém
está cantando específico para ele. Se tiver que vir ele vem. Aí depois de um tempo que
ele tiver vindo direto tal, tal, tal, aí se canta. Mas enquanto isso, enquanto se está
começando, você nem sabe quem é e ele vem. Independente do ponto ser para ele ou não.
Por isso que eu falo que hora que tem gente que encasqueta com um troço que não tem
nada a ver.
[Silêncio]
Eu: Entendi. E aí no caso você começou a procurar casas e conheceu Dona Aurinha, é
isso?
MC: Aí eu fui na Dona Aurinha, coincidência também caí na mão de um Pai Benedito.
(risos) Aí falei a história lá que o Ubirajara tinha me recomendado procurar um lugar...
Eu: Pai Benedito era um médium...
MC: Era do Seu Roberto, era um médium. De vez em quando ele ia lá em cima. Mas já
faleceu. Aí eu caí com ele, ele fez um sinal que era para chamar o Zé Luiz, aí chamou, aí
ele falou “Estou te chamando que é para você levar ela lá para cima.” Aí ele “Tudo bem.”
Mais depois nem, explicou direitinho ou eu marquei, nem me lembro mais. Eu marquei
com ele, fui junto, não me lembro. Enfim, aí vim. Foi assim, aí o mesmo tempo que
comecei aqui eu também ia na Dona Aurinha. Tinha chance para isso. Aí eu vinha sábado
aqui e ia as quartas lá. Mas [inaudível] Dona Aurinha era pertinho de onde eu trabalhava
né? Por que ele mandou eu vim cá para cima? Ai quando eu vim, primeira vez, que eu
cheguei ali fora naquele gramado assim que eu olhei assim eu disse “é aqui!”. Sabe,
quando você se sente “estou em casa”? Foi o que eu senti.
Eu: E você ainda trabalhava com aquela família que você começou, ajudou, não é isso?
MC: Não, quando eu vim aqui para...
Eu: Quando você trabalhava ali perto da Dona Aurinha?
MC: Então, estava na casa de Ana Lúcia que é uma das filhas do Dr Eugênio lá da fazenda.
(risos)
Eu: Continuou na mesma família?
MC: [Inaudível]
Eu: E ficou indo na Dona Aurinha só na quarta feira, é isso.
MC: É eu fui lá um ano, mas poucas vezes. Umas duas, três vezes assim. Sessão da mesa
de tarde. Eu só ia mesmo às quartas. Aí eu fui uma só de tarde, mas foi só para levar a
velhinha que eu estava trabalhando para ela a tarde.
Eu: E você ficou quanto tempo indo nas duas, indo no Samir e lá?
MC: Eu praticamente parei de ir lá eu já estava trabalhando para Eugeninha que é lá
pertinho mesmo, só uma... faz assim, por trás da rua. Porque à medida que ela foi
necessitando mais que a Fátima que ficava lá com a gente não tinha muita noção de certas
coisas né. Por exemplo, de percepção de certas coisas. Aí eu fiquei com medo de sair, de
251
repente ela sentir qualquer coisa e não estar lá. Aí com isso eu parei. Depois também
porque me assumiu mais aqui aí eu fui parando de ir. Também eu me mudei para cá que
quando eu ficava lá com ela, ainda dava. Algumas vezes ainda fui de noite. Mais depois
foi isso que eu receio de deixar ela sozinha com a Fátima. E algumas vezes eu cheguei ir.
Deixava ela lá com Fátima e ia na Dona Aurinha.
Eu: Mas quando você se mudou para cá você...
MC: Enquanto eu estava trabalhando com ela ainda ia, ainda fui na Dona Aurinha. Mas
depois não, não tinha como eu voltar de lá para cá de noite.
Eu: Mais aí você já tinha parado de trabalhar lá então?
MC: Na Dona Aurinha?
Eu: Não, nessa casa da família?
MC: Eu parei só quando ela faleceu mesmo que foi... nem me lembro que ano que foi.
Foi quando teve aquele acidente com Gelson. Eu e Gelson, no carro. Foi o que?
Eu: Foi aqui?
MC: É foi aqui embaixo, foi... acho que já deve ter uns quatro ou cinco anos.
Eu: Mas nessa época você já estava morando aqui?
MC: Já.
Eu: Mas você não estava, mas a noite lá com ela então?
MC: Não, que depois que ela faleceu não. Deve ter uns cinco anos eu acho, sei lá.
Eu: Mas nesse mesmo ano do acidente ela faleceu?
MC: Não porque eu estava com ela quando sofri esse acidente. Eu ia segunda só voltava
sexta.
Eu: Tinha a casa aqui, mas ficava lá?
MC: Aham.
Eu: Pra mim você já morava aqui há muito tempo.
MC: É que na verdade eu estou aqui desde 2001, aliás.
Eu: Eu não lembro, Dona Aurinha eu fui muito pouco era quarta feira uma sessão...
MC: À noite.
Eu Que é como se fosse no Samir, uma sessão de terreiro?
MC: É sessão de terreiro, sendo que lá é dividido. É a sessão de terreiro o dia de consulta
e o dia de limpeza. Era separado. O dia hoje é terreiro com consulta. Aí se tiver alguém
marca, precisa de limpeza? Aí na próxima sessão de acordo com a marcação vai ser
terreiro mais povo de descarrego.
Eu: Na Cabana tinha atabaque?
MC: Não.
Eu: Só no Samir que foi ter atabaque?
MC: É que o Zé Luiz implantou que no início também não tinha. Tinha só assim de vez
em quando, quando o filho da Manira ia lá que batia. Mas assim, definitivo não. Só com
o tempo mesmo depois.
Eu: E quando você foi para o Samir já era o Seu Zé e Dona Jacira?
MC: Era Seu Zé, Dona Jacira, tinha aquela do Gira Sol que era Manira e Marilda e aquela
loira, como era o nome dela meu Deus?
Eu: Lúcia?
MC: Não.
Eu: Zefa?
MC: Marileine? Não. Ai, esqueci o nome dela aqui agora. É que trabalhava se não me
engano com o Sete Flechas. Ela trabalhava, uma loira.
Eu: Noel já estava lá?
252
MC: Nessa época eu não me lembro direito. Se já estava se estava ainda na assistência.
Eu: E ainda tinha sessão de mesa lá?
MC: A sessão de mesa...
Eu: Eu lembro que já teve sessão de mesa lá.
MC: Tinha uma sessão de mesa quando seu Zé aí falta um, falta outro nananã. Ele acabou
cortando e botando sessão de consulta de pretos velho.
Eu: Então já era basicamente o que é hoje. Quatro sábados...
MC: É os sábados tinham.
Eu: Uma sessão por....
MC: Tinha terreiro, cigano, a sessão de saúde... tinha uma “sessãozinha” pequena que era
junto com a sessão de cigano que era no auge. E agora é que tem essa sessão, não estava
tendo, que a Janaízy está tomando conta.
Eu: A de saúde?
MC: A de saúde, é.
Eu: você já está lá há mais de 30 anos...
MC: Eu?
Eu: no Samir.
MC: é.
Eu: Como é que foi entre chegar lá até, porque você ficou, era uma das auxiliares...
MC: É porque, engraçado, são detalhes que tem assim de depois você fica pensando
"engraçado". Por que ele sempre ficou ali ajudando assim né? Aí às vezes seu Estrela
chegava aí vinha cumprimentava ai falava "recebe seu guia". Aí às vezes eu falava "deixa
eu quieta aqui" entendeu? (risos) Ele "não, recebe seu guia". Aí tudo bem. Tinha outras
vezes que tornava a falar aí falava "recebe ele aqui que eu estou precisando dele aqui."
Aí tudo bem. Aí teve algumas vezes também, uma vez foi o que, José, Josefa, Regina,
tudo aí falava assim alguma outra coisa lá para fazer "bota Maria do Carmo pra fazer" pra
fazer, fazer aquilo aí ela só fazia assim. Não falava, só fazia sinal com o dedo. Aí que é
que tem, por exemplo, negócio de alimento mesmo, algumas vezes falava "bota..." Por
quê: Ele só fazia assim (gesto) que o meu lugar era lá no salão, mas ele não falava só fazia
o sinal. Mas na época também eu não entendia, entendeu? Eu via aquilo e ficava na minha.
Mas acho que é porque ele já sabia que realmente minha função tinha que ser lá dentro
entendeu? (sorriso)
Eu: Então desde o começo...
MC: É quer dizer, muita coisa depois com o tempo que eu ia me atinado as coisas.
Eu: Mas chegou a ficar à frente da parte social.
MC: Fiquei.
Eu: Até agora até...
MC: Enh? É até agora, acho que ano passado. Porque quando eu fiquei, acho que a última
tinha sido a mulher do Gelson, a Rosangela. aí ela começou a largar, começou também a
faltar aí não estava tendo mais ninguém, assim para ficar. Aí foi quando a Josefa falou
com ele "bota Maria do Carmo José Luiz! Ela está constantemente aqui." Aí ele "é... é..."
Aí tá bom. Aí ele mandou fazer as tais continhas. Eu achava aquilo um bicho de sete
cabeças. Eu olhava "não vou conseguir isso não Zé. Não entra na minha cabeça, está
muito complicado." (risos) E assim, estoque lá, tira aquilo, soma aquilo" (risos). Aí ele
ficava balançando assim o pé (risos) "Eu não mando ninguém fazer uma coisa que eu
saiba que não é capaz. Se eu estou falando é porque eu sei que você é capaz." Aí eu fique
tentando mais algumas vezes até que "ah agora entendi!" (risos). Aí fui ficando. Também
chegava na época de mudar, nunca tinha outra pessoa, fui ficando. Aí quando começou,
253
às vezes as coisas acontecem quando tem que ser mesmo também, mas quando agora
houve essas coisas assim Janaízy foi para me ajudar aí daqui a pouco "quer saber de uma
coisa acho que não vai dar para eu voltar mais nisso não" (risos). Que as coisas também,
parece que foi aumentando mais a coisa lá de dentro, tudo. Aí até o dia que eu falei
"Janaízy, nem precisa mais responder nada não, pode ficar porque você vai ficar nisso aí
mesmo" (risos). Aí ela também gosta, entendeu? Não adianta botar uma pessoa que não
gosta. Eu gosto dessas funções. Mas já está muito entendeu? Já estou sentindo "pouca"(?)
é corpo, é tanta coisa aí é melhor assim.
Eu: Ela já fez parte né?
MC: É ela já tinha mexido, ela e Gisele juntas. Ela gosta dessas funções também.
Eu: Está cansada? Quer parar?
MC: Não, não, eu não. Mas sempre foram coisas que eu sempre gostei de fazer. Na
Cabana também me metia a fazer certas coisas, sempre gostei de ajudar.
Eu: Cabana tinha parte social também?
MC: Tinha. Eu gostava de ajudar também, eles também faziam doação, aí chegava na
época às vezes não tinha bolsas para botar, ai na época tinha muito aquelas bolsas de
mercado de papel, aí eu juntava, lavava, e depois foi ficando mais difícil, aí depois era
pequeno, aí teve uma vez que eu mesma fui na padaria aí eu pedi o cara juntar para mim
essas bolsas que hoje em dia tem, acho que é de ráfia que chama né?
Eu: Uhum
MC: Aí eu pegava aquilo, levava para casa, tinha um tanque grande lá na casa de Ana
Lúcia botava aquilo tudo de molho para tirar aquilo sujo de farinha de trigo, lavava,
botava tudo para secar, depois dobrava aquilo tudo, levava tudo lá para eles botarem que
tinha que botar cobertor tudo junto e levar. Essa parte do cobertor eles distribuíam tudo
lá em Boca do Mato para os idosos que tinham lá. E uma vez também, eu já estava até
fora de lá nessa época, não, foi o que? Eu estava no colégio, ainda estava estudando, aí
não sei o que houve lá aí eu fiz um livro de ouro por minha conta (risos).
Eu: O que é um livro de ouro?
MC: É para você arrecadar dinheiro. Fala livro de ouro. Tem gente que fala... Aí arrecadei
dinheiro, um dia fui lá na porta, essa fase aí eu já estava afastada sim, já estava me
afastando, aí eu lembro que eu fui aí o Carlinhos que era um médium que tinha lá quando
ele me viu ele veio cá na porta falar comigo eu falei "Só para entregar ao Seu Reinaldo".
Aí Seu Reinaldo fez questão de ler lá o valor na época e eu fiz por minha conta. Era uma
ajuda para dar lá, nem lembro o que é que foi. Ah eu sempre gostei de me meter, de fazer
uns troços doidos assim.
Eu: E você lembra o nome do médium do Ubirajara?
MC: Era Faquinete. Tenho uma saudade dele... Era José Antônio dos Reis Faquinete. Ele
era baiano.
Eu: E nesse tempo todo aí, você ou a casa que você frequentava teve algum problema
com vizinho?
MC: Lá?
Eu: Tanto na Cabana quanto no...
MC: De barulho essas coisas?
Eu: É se teve reclamação, o pessoal...
MC: Não, que eu saiba nunca houve não por que de um lado da Cabana era um
“prediozinho”, mas pequeno. Nunca ouvi falar nada não. Do outro lado era um terreno
que se estacionava os carros que do lado dele é onde tem a federação espírita.
Eu: Essa federação aqui de Niterói?
254
MC: É.
Eu: Ah então a Cabana era do lado dessa...
MC: Praticamente do lado. Entre um e outro tinha um terreno que o pessoal estacionava
até o carro.
Eu: Não existe mais né?
MC: Não, porque agora a Cabana não existe mais porque a Beth me falou que uma das
filhas já faleceu.
Eu: A federação eu conheço.
MC: Aí...
Eu: Tem uma loja e tem o “prediozinho” né?
MC: Não sei, tem muitos anos deve ter até construído alguma coisa que se botava carro
que não se ainda é. O pronto socorro era em frente a Cabana. Não sei se ainda existe da
mesma forma. Ali na rua Princesa Isabel. E a Cabana tinha um símbolo, uma coisinha
azul, uma placa azul com uma pomba linha branca e em frente tinha um... é tipo um
coqueiro, não sei o nome daquilo que dá uma folha que parece um leque assim aberto.
Era bem assim em frente.
Eu: Qual o bairro?
MC: É do lado do Antônio Pedro na rua Princesa Isabel.
Eu: ah era ali do lado do Antônio Pedro né?
MC: É naquela rua do lado assim.
Eu: Ah não, a federação que eu conheço é outra que é aqui na Coronel Gomes Machado
não é lá no Antônio Pedro.
MC: Não, então não então é outro. Ou será que estou falando o nome errado? Acho que
não. Aí passou o centro né que a finalidade dele era sempre pra essas coisas aí Arlete que
me falou que passaram para eles. Lá é um centro grande também.
[Telefone- entrevista interrompida]
Eu: Só no caso da Cabana que tinha leitura né?
MC: Era leitura antes da sessão.
Eu: Antes da sessão do Oriente tem essa leitura mais texto kardecista?
MC: É. Ou qualquer outro assunto que seja espírita.
Eu: E tanto no Samir como na Cabana ou Dona Aurinha já se discutiu, você conversando
com o pessoal, sobre de onde vem a Umbanda, como é que surgiu?
MC: Eu não sei. Isso aí eu não sei te dizer. Se teve não sei, nunca participei. O horário
mesmo que eu ia era a noite né. Que lá eu sei que passou a ter outros horários, outras
sessões, mas aí eu não...
Eu: E aí você nunca pensou sobre isso, não tem uma ideia assim?
MC: Se tem?
Eu: Se você tem uma visão sobre isso. De como surgiu?
MC: Não. Tenho não. Como surgiu tipo a Umbanda?
Eu: É. Por exemplo, o Candomblé eles dizem que veio da África, que é uma religião
africana. E no caso da Umbanda, de onde ela teria vindo?
MC: Eu acho que ela deve ter vindo dessa área também né?
Eu: Você acha que ela tem relação com o Candomblé também?
MC: É. Uma coisa assim pega a outra porque se bate Candomblé bate Umbanda tem gente
que faz linha traçada, acho que já vem daí sim.
Eu: E tem algumas pessoas dão nomes para as diferentes tipos de Umbanda. Alguns falam
em Umbanda branca...
255
MC: Eu não sei assim te dizer, mas existe, por exemplo, "ah lá bate Omolocô, bate não
sei o que lá" entendeu? Mas eu não sei falar sobre o assunto.
Eu: Não saberia diferenciar né?
MC: E se você, por exemplo, você disse que a Cabana, Dona Aurinha e Samir são
basicamente a mesma coisa né? O mesmo tipo de Umbanda?
MC: É o mesmo estilo.
Eu: E você daria um nome? Se você fosse dar um nome ou se alguém se referindo a algum
tipo de umbanda você tem esse nome assim ou não?
MC: Acho que se eu sabia eu nem lembro mais.
Eu: Não é uma coisa que se discutia né? Que o pessoal falava sobre...
MC: Não, nunca teve...
Eu: as diferenças de Umbanda? Agora todo mundo sabe que existe né?
MC: Aham
Eu: Não é uma questão...
MC: É porque hoje em dia acho que as coisas são mais faladas né? Antes acho que era
um pouco mais fechado as coisas.
Eu: Como assim fechado? As pessoas não falavam?
MC: Por que hoje em dia você acha esse assunto em qualquer lugar né? Você vai na
internet você acha mil assuntos por ai entendeu? Então, acho que abriu mais.
Eu: Você acha que era mais fechado em cada centro?
MC: Acho que deve ser por aí.
Eu: Entendi. Agora uma coisa também, meu pai por exemplo, é uma pessoa que ia nos
centros, mas sempre trabalhava em casa. Recebia os guias dele em casa, atendia gente em
casa. E é comum as pessoas fazerem isso. Você fazia isso, fez isso em algum momento
da sua vida?
MC: Não eu não...
Eu: Você só trabalhava nos centros?
MC: Sempre gostei assim, do centro.
Eu: E quando te procurava, para pedir ajuda você mandava para o centro?
MC: É. Porque, por exemplo, eu só fui assim muito poucas vezes, que as vezes era uma
situação que não tinha como fugir. O próprio Zé Luiz não admitiu muito isso, foi até de
uma criança que estava com uns problemas, foi até médium que era da Cabana e depois
foi para lá também que não está mais lá, está morando lá fora. Cláudia, uma dos olhos
verdes, uma loura. Aí ela pediu a gente foi lá em São Francisco para atender aí ele me
chamou para ir junto, para ele não ir sozinho com Pena Branca. Aí eu fui, mas ele só foi
lá para atender e eu fui fazer companhia e atender o Pena Branca. Porque lá quando eu
comecei o Ubirajara não não abria muito mão disso. Ele não aprovava muito, só uma
coisa muito extrema. Mesmo assim, e não liga para o Fulano, combina, nunca uma pessoa
ia atender. E dependendo da situação marca, avisa, e que fosse atendido no centro. Então
esse negócio de atender em particular assim... Então com isso, quer dizer, digamos, eu
cresci com esse ensinamento e eu procuro, mas eu me sinto bem mesmo no centro.
Eu: E lá na Cabana eles faziam comida?
MC: Não. Quando eu entrei não, mas eu ouvi dizer que antigamente, tanto é que a mesa
que existia lá quando fazia sessão de mesa, fiquei sabendo eu essa mesa era usada quando
eles faziam a preparação que não sei que tipo, como é que era, entendeu?
Eu: Então no começo eles faziam...
MC: É. Mas eu não sei falar nada a respeito. Parece que se fazia, agora não sei como que
era isso aí, entendeu? Se era para arriar para santo, eu não sei.
256
Eu: E você também nunca foi de fazer comida né?
MC: Para santo?
Eu: É.
MC: Não, eu só fiz uma vez que eu nem me lembro mais o que é que foi feito (Risos).
Foi com um amigo que eu tenho que ele até queria me ensinar, era para baiano, que me
chamou se eu queria ser mãe pequena o menino abrindo a casa dele. Mas aí como eu sou
muito curiosa e receosa (risos) eu fiz assim: "Mas tem que se fazer alguma coisa?"
(gargalhada) aí ele disse é: "Algumas coisas você pode saber, outras não." Aí eu fiz:
"Então não quero não." (Gargalhada). Mas aí nessa coisa eu não lembro ne o que fui fazer
e aí eles exigem certas coisas: você não pode estar menstruada, fazer comida, um monte
de detalhe assim que tem, entendeu? Mas aí nesse coisa eu lembro que ajudei por isso que
ele falou que eu levava jeito para isso aí se eu quisesse ele ia me ensinar que eu tenho que
saber fazer essas coisas (risos).
Eu: No caso então você, qual o título assim, porque no Samir não tem mãe de santo né?
Ou pai de Santo?
MC: Não.
Eu: Tem um dirigente espiritual ou chefe de terreiro. É isso?
MC: Aham. Tanto é que Zé Luiz dizia, alguém falava "Ah o senhor é nosso pai de santo"
ele "Não sou pai de santo, eu sou mestre em Umbanda".
Eu: Ele falava mestre em Umbanda?
MC: É. Foi uma coisa que ele fez que ele disse que era mestre em Umbanda.
Eu: E você se considera mestre em Umbanda?
MC: Não (risos). Eu me considero um médium que dentro da possiblidade que eu possa
ter para ajudar.
Eu: Mas então, no caso, assim, o que te torna dirigente, no caso, é o caboclo ser...
MC: É eu na verdade, desde de que eu entrei ali eu me incluo assim né? Então eu sou
aquilo, por isso que eu sei falar pouco. Porque o que eu sei ele me intui na hora. É o que
eu falo com as pessoas "Gente, ele me passa assim, mas não me pergunta porque na
verdade eu não sei." Tipo assim, faz isso e isso, mas eu lá no fundo não estou sabendo a
finalidade, depois eu posso até vir a saber, mas...
Eu: Então no caso...
MC: É uma coisa que ele faz ali, por isso que eu estou falando me pergunta isso eu faço
ou não faço, mas ele faz ali pra mim assim eu não sinto receio. Eu Maria do Carmo, por
isso que eu falo, me pergunta, entendeu, eu vou dizer "tem que fazer isso, tem que fazer
aquilo", entendeu eu já quero logo saber por onde eu vou passar (sorrindo). Mas essa
coisa ele me dá segurança eu não me sinto assim insegura.
Eu: Então, no caso, o mais importante é a intuição né?
MC: É eu vou por aí. Ele: "Pega aqui, bota aquilo ali, risca assim" eu vou fazendo, mas
eu não estou sabendo te dar explicação ali.
Eu: Entendi. E no caso, então não é necessário saber a explicação?
MC: Não, eu acho que é necessário porque você faz a pergunta aí eu vou saber te
responder, mas...
[Silêncio]
Eu: Mas aí no caso então se ele não dá a explicação também...
MC: Se ele não passar par mim eu não sei explicar não.
Eu: Entendi. E teve algum...
MC: A não ser que eu já tenha um conhecimento sobre aquilo ali. Aí...
Eu: Entendi. É muito na prática né, vai acontecendo as coisas e...
257
MC: Aham é.
Eu: você vai entendendo?
[Silêncio]
Eu: E tem algum umbandista famoso que você lembre aí que todo mundo falava ou que...
[Silêncio]
Eu: Meu pai falou de um Zé Arigor...
MC: Ih lembro, agora que falou o nome eu lembro. Mas eu me lembro assim, nem sei
quantos anos tem isso atrás, lembra do filho do Roberto Carlos?
Eu: Lembro.
MC: Nessa época ele era falado de mais inclusive que o Roberto Carlos acho que levou
o filho dele pra tentar, acho que foi nele pra questão da vista dele.
Eu: Entendi. ele era um...
MC: Ele era muito, muito, muito falado na época.
Eu: Mais algum que você lembre?
MC: Não, agora assim eu não lembro não. [silêncio] O outro mais recente é esse aí que
você sabe a história. (risos)
Eu: João de Deus?
MC: É. De Deus...
Eu: Mas João de Deus é umbandista?
MC: Bom, estou falando assim em termos, não sei que eu nunca peguei nada assim, eu
digo pelo fato de mexer com a parte espiritual né? Mas eu acredito que de repente pode
até ter mudado depois, mas de repente pegou lá né.
Eu: Entendi. Você já ouviu fala em Zélio Fernandino?
MC: Não.
Eu: E... qual era o outro? Zélio Fernandino aparece muito em livro. É... [silêncio] Tatá
Tancredo?
MC: Não.
Eu: Também não. [silêncio] E alguma previsão de voltar o Samir?
MC: É tô esperando ver ai né essa lenga lenga de vacina aí né. Que fica essas variantes
novas estão surgindo aí. Está pior ainda.
Eu: E o Mata Virgem deu alguma...
MC: Não, e...
Eu: orientação? Se manifestou?
MC: Até então não. até falo. De vez em quando aí "oh me dá um sinal, qualquer coisa
né!"
Eu: Sinal de fumaça.
MC: Eles devem, estar todos trabalhando mesmo no astral.
Eu: Acho que é isso Do Carmo. não estou lembrando mais nada para perguntar agora não.
MC: Janaízy que andou sonhando agora recente aí com Zé Luiz.
Eu: Ela comentou alguma coisa. Mas de vez em quando ela sonha né? Não sei se é
saudades.
MC: Eu andei sonhando com ele, mas já faz algum tempinho, mas agora não recordo o
que é que foi. [Inaudível] foi até na Casa de Samir. Eu estava conversando com a Regina
naquele sofazinho assim, você também tava. Aí eu não sei qual era o assunto que tava se
falando aí eu senti a presença assim aí olhei assim para trás, o lado da porta, dava pra
varanda. Aí eu olhei ele estava bem em pé. Todo de branquinho. Em pé com esse pé aqui
naquele degrauzinho da sala aí nisso eu levantei pra ir e ele sumiu. (risos) Tem muito
258
tempo isso não. Aí sei lá devia estar lá. Foi lá observar alguma coisa. [silêncio] Mas aí
eles querem ver se vacina os mais jovens né?
Eu: Já estão vacinando né? Acho que está em 49 anos.
MC: Não, eles querem ver se vacina agora, não sei pra onde ou se vai ser geral como é
que é. Vai pegar os garotos acho de 14 anos.
Eu: Ah os adolescentes...
MC: É pessoal mais jovem.
Eu: É porque cada cidade tá seguindo um caminho né.
MC: É por aqui eu não sei o que eles, porque é aquela história né, eu não sei quem foi
que perguntou "não tem como...
[Gravação interrompida]
MC: Aí eu fui lá pra dentro do salão, aí daqui a pouco eles voltaram, daqui a pouco eles
saíram e voltavam lá para dentro do salão de novo. Aí uma vez eu peguei fui atrás. Que
foi [inaudível] "Essa [inaudível] está demais é de arrepiar os cabelos" (risos) Entendeu?
Então são essas coisas que consegue segurar segura, quem não fica aquelas meninas lá o
chão berrando, não sei o que, fazendo, pô! Eu sempre fui muito controlada. Uma vez a
Nina chegou lá no Therezinha, final de semana. Aquilo era danada de sentir os troços e
ficar aquilo agoniando. Aí eu já estava lá, aí ela "Maria do Carmo para que eu vim", falou
assim "Mas o que é que foi Nina?" "Olha eu estou me sentindo mal" E ela ficou assim,
mas o que, não sei o que? (risos) assim se torcendo na mesa e falando para mim. "E não
sei o que" Aí eu vou lá na cozinha pega um bocado de sal e esfrega na mão (risos) aí ela
foi "E não é que sumiu!" (risos) Por isso que eu falo, eu não tenho, as coisas vêm assim
naquele momento entendeu? E às vezes também não vem nada né, mas não sei. (risos)
[silêncio]
MC: Uma vez eu tive muito medo. Estava lá no Therezinha. Ela tinha uma filha que
também era médium, mas nunca quis saber de trabalhar. Ela começou ela botava até
búzios. Ela recebia a Jurema e botava assim. Qualquer coisinha ela fazia, mas nunca quis
assumir. Aí ela tinha o quarto dela. Uma vez ela "ah mais não sei o que, àquela perna
daquela velha que não sei o que que você entra lá", ela falava assim. Isso era todo final
de semana a gente juntava. Era eu tio Cláudio que era amigo dela que era médium também
e ficava a gente trocando ideia, falando aí um dia ela, o troço está ligado, não né?
Eu: Está. Quer que eu desligue?
MC: Ih meu Deus do Céu!
Eu: Quer que eu desligue? Eu desligo, não tem problema não.
MC: Não, porque eu falei, de repente estou falando alguma coisa que não....
259
Entrevista ialorixá Carmem de Iemanjá
IC: Ialorixá Carmem
F: Fernando
B: Brenno
TD: Tia Dina
Eu: Brenno também pode falar, né Brenno!
IC: Fala alguma coisa também!
Eu: Então, assim, só pra gente ir do começo. Vocês são aqui de São Gonçalo mesmo?
IC: Somos.
Eu: Aqui do Zumbi mesmo?
IC: Somos.
Eu: Eu não entendi a relação de filho. É filho de santo, é filho carnal?
IC: Esse aqui é filho carnal [aponta para o ogã Fernando]. Esse aqui é meu neto que eu
criei. Meu filho também.
Eu: E a senhora nasceu quando, desculpe perguntar?
IC: Quando?
Eu: Isso.
IC: A data? Quinze de julho.
Eu: De qual ano?
IC: 1944. Estou viva viu!
[Risos]
F: Graças a Deus!
Eu: E eram quantos irmãos com a senhora?
IC: Meus irmãos? Treze.
Eu Treze irmãos!
IC: Treze.
Eu: Era filho em!
IC: É!
[Risos]
Eu: E a senhora é a caçula, é a mais velha?
IC: Não, a caçula é outra, Rosângela. A mais velha é morta, raspada de Oxalá. Depois
vem a mãe de Merian, depois vem Aberlado, depois vem Aroldo...
B: Ficou tia Dina, né?
IC: Ficou tia Dina mais velha.
Eu: E os pais da senhora trabalhava com o que?
IC: Lavoura.
Eu: Aqui então era fazenda?
IC: Não, nós tínhamos um sítio em Araruama, Saquarema.
Eu: Ah o sítio era deles.
IC: É
Eu: Eles trabalhavam...
IC: Trabalhavam lá.
Eu: na lavoura?
IC: Na lavoura.
Eu: E, assim, eu não entendo muito, o que eles plantavam?
IC: Aipim, mandioca, milho, feijão, mamão, laranja, tangerina, tudo o que tinha direito.
Que era um sítio enorme! Quatro alqueires. Muita terra.
260
Eu: E era só seus pais que trabalhavam nesse sítio? Era só deles?
IC: Não, minhas irmãs mais velhas trabalhavam também. E meu pai e minha mãe.
Eu: Entendi.
IC: Entendeu?
Eu: E como era a questão da religião quando a senhora era criança na família da senhora,
na casa da senhora?
IC: Era o seguinte: a minha mãe ia, mas era uma macumba meio doidinha que hoje eu
percebi. Tá? Aí mamãe me levava. "Mamãe eu não quero ficar nessa doidera mamãe, isso
é doidera." Eu não [inaudível] Deus do céu! Mamãe a senhora está ficando perturbada.
Eu não quero isso mamãe!" "Minha filha é para te limpar minha filha, pra te limpar."
"Mamãe eu não quero mamãe! Isso é deoideira!" Era aquele chocalho e "chuque chuque
chuque chuque chuque chuque" Não gostei [inaudível]
(Risos)
Eu: Mas porque a senhora acha que era doideira? Como é que era?
IC: Por que eu achava assim "pra quê?", eu era muito criança indo e "pra que isso meu
Deus? Mamãe, sacrificando, mamãe! Rodando à toa pra lá e pra cá, fazendo movimento
pra lá e pra cá." Aí mamãe ainda cantava assim, nunca esqueci. Fernando, pessoal, pera
aí... mais ou menos isso: "Minha terra é muito longe e meu caminho tem areia, moro no
fundo mar, junto com a mamãe sereia."
F: Bonito!
IC: Eu me lembro até hoje.
Eu: Esse era um ponto que cantava...
IC: Cantava. E minha mãe que cantava esse ponto.
Eu: Ela frequentava, ela visitava ou ela participava do...
IC: Minha mãe botava roupa de santo, a minha mãe era parteira... tá? Minha mãe cuidava
de muita gente que passava mal, dava chá, dava...
B: Rezadeira né?
IC: Era. Consegui levantar muita gente que estava caído no chão.
Eu: Mas isso era aqui no Zumbi ou era lá?
IC: Lá. Lá em Araruama.
Eu: Lá em Araruama.
IC: É.
Eu: Entendi. Mas a senhora acha que aquilo que se fazia lá era umbanda ou era outra
coisa?
IC: Era Umbanda.
Eu: Era Umbanda.
IC: Era Umbanda. Era Umbanda atrasada, né? A gente sabe, que depois que eu cresci e
vi o que é uma Umbanda eu achava que aquilo ali não era uma Umbanda. Tocando só
aquela bobagem "tuc tuc tuc tuc". aquele pandeiro "tchuktá tchucktá tchuctá" (gestos com
as mãos) eu acho que isso! "Mamãe sai fora disso!" Mas engraçado que quando eu falei
isso foi no terreiro de dona Ziza. Aí o que aconteceu eu vim andando, tinha uma cobra
enorme o galho, assim, toda enrolada olhando assim pra mim. Eu disse "Ué só porque eu
falei essa bobagem" Eu pensei né. "Ela foi pro lado ali me morder." Eu saí correndo. Sei
lá qual é né. Eu falei bobagem que ali não tinha nada " que é aquilo mamãe, que é
aquilo...". Mamãe era uma rezadeira muito boa. Rezava de tudo que você podia imaginar.
Eu não chego nem na unha do pé da minha mãe.
Eu: Entendi. E, assim, pelo o que eu entendi, eles tocavam pandeiro...
IC: Pandeiro e chocalho.
261
Eu: E chocalho...
IC: É isso "chique chique chique"
F: Era a época né.
IC: É, chocalho. E pandeiro.
Eu: E por isso que a senhora acha que ele era meio atrasado?
F: Eu achava que isso aí não podia existir (risos).
B: Não fazia parte.
IC: É. Minha cabeça era feita de Iemanjá, não era feita em termos, mas eu nasci, né, já
nasce com aquele orixá. Talvez o meu orixá achou que...
B: Não era.
IC: Não era. Não tinha como. Botar roupa, ficar com essas coisas, "a não mãe não quero
não."
B: Era meio que esses catimbó estranho.
IC: É essas coisas doidas.
B: Catimbó que usa muito essas (inaudível) chocalho, pandeiro.
IC: (Inaudível) gosto não.
Eu: E o pai da senhora, frequentava?
IC: Não. Pai não gostava não. Ele brigava para minha mãe não ir.
Eu: Mas ele era católico?
IC: Ele não seguia nada.
Eu: Não...
IC: Não, meu pai não. Quando eu comecei trabalhar, que eu peguei caboclo Tupinambá,
que meu pai veio, que nós fomos buscar meu pai para morar ali naquela casa ali embaixo...
Vendemos o sítio e trouxemos meu pai pra cá. Pai, mãe, irmãos pequenos tal, tal. O que
aconteceu? Aí meu pai achou que eu tinha um caboclo muito lindo. E eu ganhei um
terreirinho pequeno, na casa da minha irmã, onde eu comecei trabalhar. Ali todo mundo
frequentava, ali era gente assim ó (gesto com a mão). Não dava, tinha que botar do lado
de fora. Aí meu pai adorava. Adorava esse caboclo. Iiih! Eu quando pegava esse caboclo
o meu pai sorria, ficava feliz. "Muito bonito seu caboclo! Você pega muito bonito! Você
fica bonita minha filha!" Papai dizia, Fernando.
F: Uhum
IC: "Você fica muito bonita!" E os outros também falam quando ele chega né Fernando?
F: Verdade!
IC: Os outros falam.
F: Verdade!
Eu: Então o pai da senhora começou a aceitar quando a senhora começou a trabalhar?
IC: Quando eu comecei a trabalhar.
Eu: Isso foi com quantos anos?
IC: Eu comecei trabalhar, se eu te contar o caso, o caso é grande. Quatorze anos. Foi
assim, eu trabalhava fora na casa de doutora Rosa, na Ronald de Carvalho, 702. Tudo
bem. Nunca peguei nada na minha vida. Nunca, nem ia a macumba, mas aí a minha patroa
ficou com a mão assim (gesto com mão torcida) (Inaudível). Contou pra você né
Nandinho?
F: É.
IC: Ficou assim com a mão fechada. Aí eu brincando de pegar espírito, eu brincava. "Que
que que! Que que que!" Brincando né. Peguei de verdade (Bateu uma palma).
F: (Risos)
262
IC: Juro por Deus! Aí o caboclo chegou disse que aquilo na mão dela era uma macumba
que o baiano fez no trabalho dela. Ela disse que realmente tinha esse baiano. Ela não
podia assinar, fazer ponta, tudo bem. Ele mandou ela fazer uma papa de farinha, nunca
esqueci, com azeite, azeite de salada, com um dente de alho roxo e duas pimentas do
reino. E fizesse aquele mingau. Aí minha irmã que trabalhava com ela, que Dina, minha
irmã, a gente trabalhava junto. Fiz o mingau, o caboclo rezou tudo, botou na mão dela
assim, enrolou, deixou. Amanhã a Lúcia está bem. Isso ela me contando. Amanheceu
boazinha assim ó. Então com isso ela ficou com tanta fé, minha patroa né...
F: Sei.
IC: Ela telefonava pra cá, né Fernando, ela mandava dinheiro para comprar cabrito, ela
mandava dinheiro pra mim, mandava cheque pra mim, me ajudou muito! Muito, muito,
muito, muito! Pode acreditar. Então, eu recebi esse caboclo lá na Ronald de Carvalho. Aí
o caboclo disse que não queria que eu trabalhasse fora que ele ia me dar um terreiro que
eu ia ganhar dinheiro, minha vida, e não precisava ir pra casa dos outros. Não queria. Que
eu ia ser grande mãe de santo. Quando me contaram isso, eu digo "Eu? Eu uma criança?
Mãe de santo da onde? Eu não quero isso! Deu me livre! Cruz credo!"
Eu: Mas isso já com, ainda quando a senhora tinha quatorze anos ele falou isso?
IC: É. Falou isso com meu caboclo. Falou. "Ah não quero não". Mas ele continuou
chegando, trazendo o ponto dele, cantando, rezando, curando, olhava para os outros,
consultava, dizia tudo certinho. Eu continuei o barco para frente, até hoje nessa aí. (bateu
uma palma).
Eu: Mas isso a senhora fazia independente, fora de casa de Umbanda...
IC: Dentro de terreiro?
Eu: É.
IC: Não, logo em seguida eu ganhei um cômodo que é da casa da minha irmã, um sobrado.
Aí eu comecei a pegar meu caboclo de novo ali. Eu peguei caboclo, peguei vovó Catarina,
peguei pombagira, peguei tudo logo. Veio um atrás do outro. Está me entendendo? Aí eu
consultava ali. E também já fazia trabalho ali. Aí eu fiz um trabalho, eu fiz um advogado,
falou pra mim que perdeu o emprego. “Ah eu perdi meu emprego”, chorando. Aí meu
caboclo falou assim "Não, você não vai perder seu emprego. Vai fazer isso, isso, isso e
isso que você vai voltar para onde você veio, você vai voltar pra lá e disse assim "se isso
acontecer eu dou o terreiro que eu sou médium. Eu mando o material, mando tudinho."
Tudo bem. Ele foi, ficou no trabalho. Ele veio e me deu realmente tudo, Brenno! Material,
tudinho, tudinho até lá em cima. E deu mesmo. Não estou pegando mentira. Então eu me
garanti de trabalhar, que eu trabalhava dava certo né (bateu uma palma). Continuei toda
vida e estou aqui até hoje.
Eu: Aí com esse material a senhora construiu essa casa aqui ou era em outro lugar?
IC: Aqui.
Eu: Foi aqui mesmo.
IC: Foi aqui. Me deu aqui. Pode acreditar.
Eu: E nesse comecinho com é que a senhora aprendeu a fazer esses trabalhos?
IC: Até hoje, eu tenho uma dúvida eu e Fernando aqui conversando.
F: Fala!
IC: Fernando é assim "Mamãe como é que a senhora aprendeu a fazer o olubajé?" que
são 18 obrigações fora matança, tudo. Eu digo "Fernando, nunca me ensinaram! Quem
me ensinou? Vovó Catarina. Mandou minha filha de santo de Omulú que está em São
Paulo escrever como fazia, o que tinha que levar, o que tinha que comprar, como que
fazia, como é que não fazia (Bateu uma palma). Aprendi com a minha velha. Meus ebós
263
quem faz é minha velha. Quem faz jogo de búzios é minha velha. Tudo o que eu sei
agradeço a Deus em cima e a ela aqui embaixo. Porque ela é esperta, ela é sabida. Ela
joga para perder não. Pessoa chega doente aí né Brenno?
B: É.
IC: Chega doente, tal, desenganada, caída pelos cantos. Graças a Deus, ela bota a mão e
levanta.
F: Verdade.
IC: Não é meu filho? Eu digo "Ah mamãe como é que você aprendeu a fazer isso?"
"Fernando eu não sei." que meu pai de santo é Ícaro. Você já escutou falar algum dia?
Eu: Não conheço.
IC: Ícaro do Oxóssi, do alto do Oxóssi. Se falar você...
Eu: Que fez a senhora no Candomblé, é isso?
IC: Não, eu já era feita. Ele me tomou a obrigação de 21 anos. Eu fui feita com Diassi de
Oxóssi lá do Catarina, entendeu? Só tenho também meu pai do Oxóssi, mas ele era
homem ela era mulher. Então, Fernando assim "Mamãe você aprende a fazer isso com
quem?" "Não sei Fernando (bateu uma palma) com quem eu aprendi não. Eu sei que eu
sei fazer." Gente raspado chega aqui eu mando fazer um acarajé, amassa, tal, tal não sabe
fazer. "Mamãe quem ensinou a senhora?" "Fernando, eu não sei quem me ensinou. Só sei
que eu sei fazer e os outros comem "que delícia! Que delícia!" (bateu uma palma e risos).
Graças a Deus! Acho que eu nasci mesmo, como diz Vagner, preparada pra ser mãe de
santo. Vagner fala isso. "Querer não é poder. A senhora nasceu mesmo para isso." Por
isso que eu dou valor a Vagner que Vagner tem isso de bom."
F: Verdade.
IC: Ele diz que nem todo mundo nasceu para ser mãe de santo ou pai de santo, mas não é
verdade? Às vezes você faz uma obrigação para seu Orixá tem santo que pede cargo, mas
tem outro que não quer cargo não. Quer que toda vida seja filho. Toda vez você vai ser
filho. Todo ano vai dar comida pro seu santo. Três, quatro anos, passou, mas é filho. Já
pessoas que faz santo, faz hoje, amanhã já quer ser pai de santo. Você já conhece isso,
não conhece?
Eu: Sim, sim.
IC: Também não é por aí não. Entendeu? Eu sei com certeza! O primeiro espírito que eu
recebi foi o caboclo Tupinambá da Aruanda. Ele trouxe o nome, cantou a cantiga dele,
trouxe tudo. Não é bonito? Acho bonito. Eu não conhecia mesmo, então acho que tinha
alguma coisa no meu corpo.
Eu: E nessa primeira vez, por exemplo, o que a senhora sentiu? A senhora lembra?
IC: Não, quem me contou todas essas coisas foi a mãe de Mary que trabalhava junto
comigo Guimar. "Carmem você pegou uma coisa aí o caboclo" "(inaudível) você está
maluca?" "Pegou. Muito forte, muito bonito, consultou doutora Rosa, ensinou como ela
fazer na mão”, parecia uma coisa assim que entrou e saiu eu até me assustei com o que
podia ser. Mas na continuação a gente vai acostumando. Sabe que estou concentrada para
o que? Para aquele caboclo. Concentrei para o que? Para vovó. Aí os outros chegaram
junto né. Ficou ótimo.
Eu: E todos eles apareceram da mesma maneira que o caboclo?
IC: Trabalhando, consultando, fazendo tudo. Tudo, tudo, Tupinambá foi quem me
ensinou a fazer amalá, pessoal lá do Rio.
Fernando: Na Barra?
IC: É. Ensinava fazer amalá, me ensinava a fazer axoxô, tudo assim...
F: Sei.
264
IC: Algum dia você escutou eu pedir pai de santo?
F: Não, não.
IC: Seja sincero! Brenno, algum dia eu pedi meu filho?
B: Não.
IC: Pode falar a verdade.
B: Não.
IC: Não é porque está junto não. Pode usar a verdade! Porque o que eu estou usando é
tudo verdade. E nunca perguntei "Fulano como é que dá uma comida a Iroko?" Eu não
pergunto nada não. Minha cabeça já vai pegar. Não sei porque, não sei se é doidera, não
sei se eu estou certa (Gargalhada). Eu sei que é assim. É assim! Ah meu Deus do céu! Ah
quem ensinou cortar porco? Quem ensinou cortar? Até boi eu já matei meu filho. Eu e ele
aí ó.
F: Verdade.
IC: Não é Fernando?
F: Verdade.
IC: Boi. Meu pai disse assim "minha filha eu acho lindo você cortar cabrito, eu não sei
cortar cabrito" eu "ah meu pai eu corto." Para os meus filhos de santo eu corto. Com é
que eu não corto? "Vou ficar pedindo a quem? Pedindo a um, pedindo a outro, enjoando
os outros, eu corto meu pai!" Já nasci assim acostumada cortando cabrito, tirando galinha
da angola. Sempre fiz tudo, graças a Deus!
Eu: Desde os 14 anos então...
IC: Sim
Eu: a senhora passou a se dedicar...
IC: Direto
Eu: só...
IC: Direto.
Eu: a religião?
IC: É, mas aí eu comecei na Umbanda, depois Fernando tinha sete anos, três anos, ele
tinha três anos. Aí eu comecei tratar de candomblé. Era deste tamaninho. às vezes eu te
conto cada história...
F: Qual?
IC: Vou falar pra ele não.
F: Uhum.
IC: Risos
F: Está gravando aí enh, olha o que a senhora está falando aí enh, tá gravando não está?
Eu: Está gravando.
F: Está gravando, olha bem o que a senhora está falando aí!
IC: Não, não estou falando nada demais.
F: Eu sei, vai falar aquela história pode falar.
IC: Não, vou falar nada não. É uma coisa muito engraçada que ele caçoou o caboclo
Araribe...
F: Ah é (gargalhada) já sei o que a senhora vai falar! Já sei, já sei!
IC: Por isso que eu não posso falar.
F: Já sei!
IC: Entendeu?
F: Já sei.
IC: Mas aí eu frequentei a Umbanda, aqui também eu abri o terreiro com Umbanda. Foi
muito bom...
265
Eu: Mas a senhora frequentou outras casas de Umbanda? Ou a senhora sempre trabalhou
aqui?
IC: Aqui.
Eu: Aqui mesmo na casa da senhora?
IC: Aqui no quarto grande que eu ganhei da minha irmã.
Eu: hum.
IC: O que acontece, que eu ia falar? Eu... deixa eu lembra o que eu ia dizer... Quando eu
tocava Umbanda a minha casa era cheia de juiz, advogado, tudo o que você podia
imaginar! Me acompanhava. Depois que eu fiz santo para Candomblé, muita gente se
afastou.
Eu: E porque, a senhora acha?
IC: Porque eles gostavam de falar com meu Ogum, achava que meu Ogum era o rei. Uma
coisa de outro mundo! Porque ele dava as provas (bateu palmas). "Vai na sua casa que
está existindo um problema na sua casa. Vai lá e vai ver o que que é. Depois você volta."
Chegava lá era briga da mulher dele com outra mulher se atracando parara pepepe. Então
eles tinham muita fé. Porque ele falava mas mostrava o pau, ali certíssimo. Está me
entendendo? Então era Carlinhos que era advogado, a mulher que era advogada, Ana
Maria era a mulher daquele advogado que mora ali na Rua da Conceição, esqueci o nome
dele. José Liboti, Iboti, não me lembro disso. E tudo e muita gente me acompanhava, só
gente das altas, pode acreditar, então, sou sincera, foram embora. Porque estava
acostumado a falar com meu Exu, minha pombagira, meu erê, com isso com aquilo eu
passei para o Candomblé, nem todo mundo gosta da Candomblé. Vamos falar a verdade.
Né, esse povo mais antigo que já chegou, já encontrou a Umbanda, né Fernando?
F: Verdade.
IC: Eles gostam de Umbanda. Aqui eles chegam e perguntam é Umbanda ou Candomblé?
"Ah Candomblé não gosto muito não." Eu digo: "É meu amor, mas eu vou ter de tocar
assim mesmo, nem que seja com uma pessoa só."
Eu: Mas depois que a senhora entrou para o Candomblé a senhora parou de receber as
entidades da Umbanda?
IC: Não! Eu ainda trabalho. Eu trabalho com Pai Joaquim, trabalho com vovó Catarina,
trabalho com Sete Covas, trabalho com Gira Mundo, trabalho com a pomba-gira Rainha
do Encruzo, e o caboclo também. Continuei trabalhando na Umbanda só tem que no dia
que eu toco Candomblé eu não pego nada disso.
Eu: Uhum
IC: Para não mistura as coisas. Por que se não queima né? Ou é uma coisa ou é outra. A
festa de Iemanjá eu dou festa de Iemanjá, é só Iemanjá que vem na minha cabeça, não
vem orixá nenhum, está entendendo? Então é por aí, agora os guias de Umbanda eu pego
todos eles.
Eu: E como é que funciona esta questão do Ogum na Umbanda e o Ogum no Candomblé?
IC: Iiih muito diferente. Explica Fernando agora, vai você!
F: Eu?
IC: É.
F: Olha, tem o seguinte, Ogum é africano, orixá africano, veio da Nigéria...
IC: É
F: da África. E Ogum é da católica, São Jorge, do catolicismo,
Eu: hum
F: Ele é dos brancos no caso da religião na época aí tinha uma mistura, entendeu? Mas
sendo que São Jorge é da Umbanda...
266
IC: É
F: Ogum mesmo de verdade é do Candomblé, da Nigéria
IC: É
F: que veio para o Brasil, (inaudível) para o Brasil na época.
Eu: Entendi
F: Entendeu?
Eu: Então o que a gente chama de Ogum na Umbanda é na verdade São Jorge...
F: São Jorge.
IC: São Jorge, é.
F: Candomblé já é parte de África. Brasil já é diferente, Ogum diferente.
Eu: E a incorporação deles é diferente, né?
IC: É.
F: É diferente de um para o outro, é diferente.
IC: Entra Dona Dina!
F: É a comparação de um é diferente para o outro.
Tia Dina, irmã de Mãe Carmem entra na casa. Cumprimentos
IC: Essa é a puxa saco sua que gosta de você.
Risos
TD: Eu sou puxa-saco dele? Olha só Brenno!
IC: Ela gosta de você "Ah ele é tão bonzinho, tão educado" ela fala.
TD: Mas quem não gosta das pessoas boas né?
Eu: Obrigado!
IC: Dina escuta só eu estava explicando para ele que ele me fez uma pergunta, eu falei
"eu recebi o primeiro orixá foi o caboclo Tupinambá" não foi Dina?
TD: Foi.
IC: Onde?
TD: No trabalho que começamos junto
F: Risos
IC: Viu? Foi o que eu te disse.
F: gargalhada
Risos
IC: Foi assim que ele chegou Brenno. Como é que pode? Falei pra Dina chegou, rezando,
cantando, trabalhando.
TD: Todo mundo falava que ela ia desenvolver e ia trabalhar ia ser uma mãe de santo.
Ela dizia, naquele tempo, ela era bonita né?
IC: Ainda sou até hoje filhinha. Respeito enh.
Risos
TD: Aí ela pegou e disse assim "Vou pegar caboclo o que?" pegou um cabo de vassoura
começou caçoar os outros "Tambor, tambor, vai buscar quem mora longe" aí o caboclo
chegou! "tudududundudu" Aí cruzou comigo, falou com minha irmã, falou assim "você
conhece, você me conhece, salve São Jorge guerreiro, salve não sei quem, salve não sei
quem, mas eu não vou dar meu nome porque Orixá é Orixá, sou da linha de Omulu
(inaudível) no gonga.
IC: É gonga.
TD: Aí tudo bem, ela disse "Não veio nada, Dina não veio nada!" Cantou para ele, ele
chegou outra vez. Aí já chegou um outro santo, não sei se foi Iemanjá, não sei se foi a
vovó, uma outra preta-velha que não era a vovó Catarina aí ela duvidou. No outro dia
veio a mesma coisa...
267
IC: Eu sei lá o que que é isso
TD: Aí (inaudível- barulho de ferramenta) como bom, mas podia vir uma coisa ruim e a
gente não ter como né, desvirar resolver o problema de tudo foi a semana toda quando
chegou aqui em casa quis pegar para os outros ver. Pegou novamente. Aí pegou assim
nos outros assim (inaudível) quando chegou no centro que foi cantou para caboclo,
quando cantou ele chegou. Aí quando chegou o caboclo flecheiro falou assim "pode dar
o vinho, o charuto que está incorporado, está curvado. Aí salvou pronto. Aí veio pegando
tudo assim. Outros dias ela não acreditava.
IC: Não.
TD: Rezando, consultado, fazendo gira para os outros, pegando as coisas para os outros,
pegando as coisas com os outros, curando os outros, tudo...
IC: Dina, ele levantou aquela menina quis dizer morta né Dina.
TD: Qual?
IC: Porque não andava. Filha de Lina.
TD: É veio uma sobrinha, nem sei se é sobrinhas essa aí, prima. Ela, não é meu cunhado.
IC: Ela gosta...
TD: Aí meu cunhado com a gente ela foi disse assim pra mim aí eu soube, eu era garotinha
aquele tempo não tinha muito pulso né. Aí estava aqui o Antônio Pedro, doente, muito
ruinzinho, desenganada do médico tudo tal. Ela foi "acho que eu vou lá visitar. Lá em
casa ver, visitar porque fica chato né o raio não tá muito bom pra gente"
IC: Isso foi eu falando.
TD: Quando ela veio disse que era garotinha naquele tempo não tinha muita condução.
Aí ela estava desenganada o médico perguntou a mãe se queria que morresse no hospital
ou trouxesse para morrer em casa. A mãe botou a garotinha nas costas veio andando
aquele pedaço ali tudo. Botou na cama. Aí ela pegou o caboclo foi rezar. Naquele tempo
Tupinambá que resolvia esses problemas. Aí ele pegou disse que quando (inaudível) aí
foi virando, virou a cabeça, abriu os olhos aí chamou pela tia. "Tia Laíz?"
IC: Conheceu.
TD: às vezes não dá valor né?
IC: É verdade.
TD: Mas foi isso que aconteceu. Aí começou...
IC: Ela não urinava, ela não evacuava, ela não bebia água, não comia nada, não se mexia
Fernando.
F: A quem a pessoa?
IC: É. Ela filha da Lina.
F: Ah sei!
TD: Ela não morava aqui. Ela morava em Araruama. Ela trouxe porque estava aqui
cuidando da menina. Aí ela botou boa essa garotinha. Outras pessoas também né
Carmem?
IC: Várias pessoas que eu tenho certeza!
TD: Teve uma também que veio para aqui. Minha cunhada deu o telefone, endereço daqui
ele veio. Aí vovó disse assim "vou correr um gira" se eu chegar lá e ver depois digo a
vocês. Aí foi, aí veio para cá pra fazer as coisas. Aí fez as coisas, vovó disse assim "pode
deixar até segunda feira você vai chegar lá você vai ter notícia da menina, tá melhor" ela
"ih vovó tá desenganada, tá lá no CTI tatata." Vovó disse ela não vai morrer. Se ela não
passar hoje, amanhã você vem aqui e traz as coisas." Aí chegou lá estava melhor a garota,
a garota recebeu alta, veio aqui fez tudo.
IC: Ai eu curei muito. Muita gente, muita gente, muita gente desenganada. Muita gente.
268
TD: Muita gente mesmo.
IC: Pode acreditar!
TD: De prisão, alguém vai preso à toa sem saber, as mães chorando. Conseguiu tirar até
preso enh!
IC: É. (risos)
TD: Foi preso (inaudível)
IC: Meu amor eu sou Carmem de aleluia querida! Aqui e ali em qualquer lugar.
TD: Não preso por isso né.
(risos)
TD: Mas era mesmo, vovó rezava muito...
IC: Fiz muita coisa Fernando.
F: Eu sei disso.
IC: Muita coisa, só Jesus.
TD: Eu estava trabalhando com o irmão lá no Rio aí não sei o que que houve ficou doente.
Doente, ta ta. Bateu nove radiografias deum uma mancha no pulmão aí ele se cuidar, ia
se internar pra... Carmem deve nem lembra mais disso, lembra?
IC: Eu lembro. Irmão de Lucy.
TD: É. Aí segunda feira ele ia pra poder se internar acho que pra operar o pulmão, não
sei o que que era lá (inaudível)
IC: Doença dele de pulmão.
TD: Aí Tupinambá fez um trabalho, Tupinambá subiu chegou conversou, conversou,
minha mãe disse assim: “Fica aí José Eduardo", minha mãe muito puxa saco deles "Fica
aí, fica aí Carmem vai baixar Tupinambá pra rezar minha netinha" que era minha netinha
aí você vem que..." ele estava passando tão mal que ele em vez de rezar a garota
primeiramente atendeu ele. Aí o Tupinambá subiu, veio um caboclo índio. Ela nem
lembra mais disso.
IC: Eu não lembro muito não.
TD: Ela recebeu o caboclo índio, aí o caboclo índio veio
IC: Faz muitos anos...
TD: Conversou com sei que quando ele fez assim...
IC: Sei que é verdade...
TD: Aquela coisa que estava no pulmão dele pulou longe. Aí ele foi pro hospital,
novamente para o médico para tirar o raio x, não tinha nada. O médico não achou mais.
Aí perguntou a ele o que que houve, não achou mais, não achou, não achou, até hoje está
vivo.
IC: Graças a Deus! ele me deu de presente...
TD: (inaudível) a bola subiu...
IC: Dina ele me deu meu sapato de casamento.
TD: ele te deu as cervejas.
IC: É foi ele quem me deu. No meu casamento...
TD: Até hoje ele está vivo, meu cunhado.
IC: Olha ele está gravando, deixa quieto! Fala meu filho! Fala Fernando...
Eu: Quer sentar aqui? Senta aqui na cadeira!
IC: Ela fala muito
TD: Não, eu fico aqui e vocês aí.
Eu: Só uma observação, a senhora falou do centro que tinha aqui, não é isso? Que a
senhora foi lá...
TD: É frequentava, frequentava lá.
269
Eu: Qual era o nome do centro, a senhora lembra?
IC: De D. Ziza.
TD: O nome do centro a gente não lembra. Antigamente quase não tinha nome, Era mãe
de santo era fulano de tal, era D. Antônia, D. Ziza...
IC:
TD: Nós chamávamos assim Mãe Cutira, aquela coisa assim de centro espírita tal. Eu
acredito que naquele tempo. Ela pegava aqui na esquina Vovó Luiza eu não lembro bem.
Curandeira boa também. Aquela trabalhava assim junto comigo assim, junto com ela
quase igual, mas era boa. Fala que ia fazer, fazia, se ia curar curava. Aquele tempo era
muito bom. Hoje em dia a gente fica meio...
IC: Eu não estou muito acreditando no espírito dos outros não.
TD: Hoje em dia mente mais né...
IC: Sabe por quê? Ele não vê nada, não fala uma coisa que tenha a ver com as coisas que
acontecesse com a gente, que está acontecendo. A não eu sou muito sincera, eu gosto das
coisas certas, eu enh.
TD: Mas é porque ela é da antiga. Não é aquela garotinha que trabalhava solteira e
pegava...
IC: Estou entregando a espada pra Brenno.
TD: Hoje em dia...
IC: Estou entregando
F: risos
TD: ... já não pode mais mentir para os outros.
IC: Estou entregando a espada para Brenno.
TD: Quando ela foi fazer que ela fez, ela não gosta que eu fale, mas ela fez...
IC: O que?
F: (inaudível) pra seu tio enh
TD: Como é aquela nação que fez com mãe Jandira?
IC: Aquilo não existe!
TD: Lá em cima você fez. Você pode dizer que você fez mesmo. Quando ela foi fazer,
como é que foi mesmo? Brenno como é que se fala? Angola, Angola o que?
Brenno: Omoloko
TD: Mas foi muito bem feito.
IC: Eu sei, mas
TD: Que ela não fez em nação que ela explicou assim.
IC: Mas eu tomei Dina, obrigação com...
TD: Mas depois mesmo...
IC: Não, com essa mulher, essa que você está falando.
TD: Essa você fez de omolokô todo.
IC: Com "Diassi".
TD: (Inaudível)
IC: Tomei com... Eu sou zangada. Por isso que eu não fico. Se eu vejo coisa errada eu
saio fora. Diassi, com "Cauodê"...
TD: "Mano “Celoirinho", Zezinho...
IC: Mano “Celourinho” fez umas coisas para mim que ele gostava, cortou um boi. E Ícaro.
TD: Ícaro de Oxóssi.
IC: Tive cinco pai de santo. Jesus!
TD: E você não viu um ainda aqui. (risos)
(Risos)
270
TD: Mas não é isso não. É que ela cisma quando vê uma "tatatata"
IC: Eu sei...
TD: Outros porque morreram. Não, outros porque morreram, faleceram né Carmem?
IC: Qual? Qual deles?
TD: Zezinho...
IC: Zezinho, certo...
TD: Aí você tem que tirar a mão de um pra poder...
IC: É eu passar para outro.
TD: É por isso. Não foi dizer que ela é tão enjoada assim não.
IC: Não eu gostava de "Mano Celoui".
TD: É o pai de santo que ela tinha paixão por ele.
IC: Era ele...
Eu: Mais a senhora trabalhava aqui e fazia as obrigações com outros pais de santo?
IC: Não.
Eu: Não.
IC: Não. Obrigação da minha cabeça.
TD: Desde que ela raspou ela raspou aqui. Ela já tinha o barracão aberto, ela tocava
omolokô, mas já tinha o barracão aqui aberto.
IC: Então a pessoa vinha aqui e fazia aqui?
TD: Vinha aqui os pais de santo via o que era necessário e fazia as coisas.
IC: Fazia as coisas do meu santo. Entendeu?
Eu: Entendi. Primeiro foi no omolocô.
IC: Foi.
TD: Isso mesmo. Muito bem-feito!
IC: Depois foi Angola. Depois foi Angola. Depois foi Efon.
TD: A mãe de santo dela fez em Angola, Ela é Diasse de Oxóssi é raspada na Bahia.
Muito inteligente, tinha saber, sabia... Diassi de Oxóssi. Aí depois não sei o que que ela
cismou lá ela ficou...
IC: Sua mãe! (cochicho)
TD: (risos). (inaudível) esse aí que ela gosta. Aquilo quando ela chegava lá era Deus para
ela.
IC: Quem?
TD: Zezinho,
IC: Ah gostava.
TD: Mas era puxa-saco dele, sabe? Ela era puxa-saco e ele também era puxa-saco dele.
IC: Mas o pai de santo tem que agradar. Se a gente só quer explorar o pai de santo também
não gosta não. Isso é verdade. Meu orixá...
TD: pode vir qualquer hora aqui em casa. Meu pai recolheu iaô
IC: E viva minhas entidades.
TD: E pedia pra vir ajudar podia ser meia noite, uma hora da manhã...
IC: Duas horas da manhã estava entrando aí.
Eu: E todos os irmãos da senhora seguiram a senhora?
IC: Todos não.
TD: Todas as irmãs da gente?
IC: Não.
TD: Não.
B: Só quatro.
IC: Só quatro.
271
TD: De (inaudível) só quatro. Uma estava seguindo, depois namorou, casou, foi aquela
coisa assim de (inaudível) éramos nós quatro.
Eu: E a senhora, quando construiu aqui, recebeu esse presente, a senhora tinha quantos
anos mais ou menos?
IC: Quantos anos eu devia ter Dina? Quando eu consegui construir essa casa aqui?
TD: Aqui?
IC: É. Aqui.
TD: Já era casada.
IC: Já era casada.
TD: Então você conta assim o tempo que você era casada você conta mais ou menos um
ano depois foi quando começou a fazer, não foi? Porque...
F: Mamãe a senhora casou com 24 anos, não foi?
IC: Oi?
F: A senhora não casou com 24 anos de idade? A senhora não falou isso?
IC: Foi, foi.
F: 25 anos de idade a senhora tinha então.
IC: Não...
F: A senhora falou que estava com 24 anos, né? Mais um ano, 25 anos.
TD: É você tinha um terreirinho lá em casa.
IC: Eu falei para ele que eu tinha um terreirinho com minha irmã. Eu falei já.
TD: (inaudível)
IC: Não foi?
Eu: Falou.
TD: (...) muito filho de santo. Quando ela foi fazer o omolocô ela levou os filhos de santo
todos. Mais de 50. Tinha muito, muito, muito.
IC: Mas tinha mesmo.
TD: Mas as vezes o pessoal não entendia muito candomblé.
IC: Eles não gostam. Falei para ele.
TD: Da maioria também tem daquela história não gosta muito de (inaudível) do
Candomblé.
IC: Né? Não gosta não.
F: Verdade.
TD: Quando o pessoal quer consultar Angola o pessoal (inaudível). Eu mesma fui uma
que quando vi o caboclo, eu gostava muito do caboclo dela, eu tinha adoração, adoração,
quando ela fez que eu vi, eu comprei a até a roupa né, estou pensando que ia vestir a roupa
do caboclo porque para mim vinha o caboclo Tupinambá. Veio Iemanjá. Na primeira
saída, na segunda, eu com aquela roupa, aquilo tudo na mão (risos) quando eu vi que não
era ele eu "ah não vou jogar mais não" porque eu não entendia o Candomblé também. Aí
foi muito engraçado. O filho de santo da moça pegou um orixá, pegou outro, aí um pegou
Xangô. Aí eu estou quieta assim com aquela coisa quando vejo só ele vem lá com Xangô
passado "bugo, bugo, bugo, bugo" veio perto de mim eu sei que eu levei pof!
IC: Caiu?
TD: Bolei! De tanto que eu falei, de tanto não sei o que foi o bicho... (risos)
IC: Dina está com a cabeça boa (baixinho).
TD: O que? Foi mesmo! Primeira cabeçada...
IC: (Risos) Ela escutou.
272
TD: Quando eu bolei, naquele dia, eu não sabia o que era bolar. Eu sei que foi assim: eu
vi quando eu caí. Escutei o barulho. Aí tinha duas moças que falaram assim "eu pensei
que você ia sair dali com a cabeça partida porque escutaram o barulho."
(risos)
F: Viu?
TD: Eu não entendia né! Eu chorei mais de uns 15 dias.
IC: Por quê?
TD: Porque eu não via o caboclo aí eu dizia "meus Deus! como é que eu vou ver esse
caboclo? Como é que Tupinambá vai conversar comigo? Aí ele chegou no sonho, no
sonho. Apareceu pra mim, me abraçou e falou não chore que eu vou ser o mesmo. Dá o
tempo que eu vou chegar aqui igualzinho. Foi aonde eu acalmei. Eu chorava a noite toda.
IC: É mole!
TD: Chorava mesmo. Eu fiquei emocionada com ele. Nós tínhamos uma ligação muito
grande. Então qualquer coisa eu sonhava com ele na mata, eu sonhava tomando benção a
ele, sonhava ele me abraçando, conversando comigo assim, tinha aquela ligação quase
todo dia. Então quando ele não veio eu morri. Chorei muito. Eu não engano não. Chorava
muito. Os olhos tudo inchado.
IC: Engraçado ela tinha muita cegueira com ele.
TD: É. Eu chorava muito, muito, muito. Meu deus! Como é que eu vou ver Tupinambá?
Como é que vai ser? Ele vai me abraçar, vai fazer o que comigo? Aquele santo mudo né
e eu não sabia o que que era. Agora pode ela falar as coisas delas.
IC: Ele estava perguntando mãe, estava respondendo.
Eu: Quando a senhora foi fazer Omolocô a senhora já tinha aqui e já tinha filhos de santo,
já tinha pessoas que seguia a senhora, que trabalhava com a senhora?
IC: A muito! Ô Dina os filhos de santo tudo graúdo.
TD: Tudo Graúdo! Isso aqui era de cabo de ponta a ponta.
IC: Não é mentira não.
TD: Gente do Rio, muita gente de, ali o barracão assim umas três voltas e as únicas voltas
mais ou menos engraçadinha era a gente. (risos)
(Risos)
TD: Eu trouxe pra ela um cliente que era do, o pai dele era o segundo engenheiro do...
IC: Não sei o que Forte.
TD: João Forte.
IC: Passa a família toda lá. Ele era muito, tinha estudo, aquele negócio todo, então quando
ele vinha trazia 12, 15 pessoas.
IC: Olha Dina falando.
TD: Era mesmo! 12, 15 pessoas. Aquela “homenzarada” toda, aquelas artistas, aquilo
tudo, vinha aquilo tudo.
IC: Contei pra ele. Não contei meu filho que eu tinha tudo isso na minha casa?
TD: Tinha muito! Muita fama! O nome de vovó era vovó do ouro. A vovó dela tinha tanto
ouro que era vovó do ouro.
IC: É mesmo, pulseironas grandes de ouro.
TD: E o povo respeitava. Engraçado, as casas de erva compravam as coisas "Ah Carmem
de Iemanjá" Dizia assim mesmo "Carmem de Vovó do Ouro". Era (inaudível) vovó do
ouro.
IC: Até hoje.
TD: (Inaudível) Brenno, mas foi (inaudível)
(risos)
273
IC: (inaudível) (risos)
TD: Vovó não aceitava qualquer vestimenta. Vovó estava assim ó. Se ela fosse receber
vovó ela mandava a gente descer e mandar a roupa branca pra ela que ela não consultava
sem. É você tá pensando que era... Bebia um vinho...
IC: Esperto.
F: Risos
TD: Esperto.
IC: Um garrafão.
TD: Os sábados 10 horas da noite, 11 horas ainda tinha gente pra consultar. Muita, muita
gente! Três quatro ebos, três quatros canário, tudo assim. A equede falava assim "olha
enquanto os outros ficam sentados rezando pra abrir um ebozinho, um cliente, aqui a casa
está cheia."
IC: Graças a Deus! Tive muita vitória.
TD: Uns vão pra igreja, outros desistem...
IC: Hoje também Dina
TD: Outros o pai não aceita...
IC: (Inaudível)
TD: Às vezes namora um rapaz, "ah eu caso com você, mas você não pode ser espírita"
aí a pessoa, a mulher logo desiste. Uns vão pra igreja, outros também morre, também, que
tem uns que morrem mesmo. Até que aqui não pé de morrer muito não!
F: Oh...
IC: Não, filho de santo na minha casa morreu não.
TD: É aqui não é muito não assim de...
B: (Inaudível)
F: (Risos)
TD: ficar doente, ir para o hospital, ficar lá em coma, a única que ficou fui eu e não morri.
IC: Viu?
TD: (risos)
IC: Você é mulher de Xangô minha filha, pode morrer assim não!
TD: O único que ficou doente para morrer e não morreu fui eu. (Inaudível)
IC: Os médicos desenganaram.
TD: É.
IC: Mas vovó Catarina disse ela volta para casa. Volta, pode dar comida a Xangô, isso,
isso, que ela volta para casa. Esta aí ó falando bobagem até...
TD: A minha viticulite, a minha veio hemorroida, veio tudo...
IC: Não Dina, ele não quer saber isso não. É macumba.
TD: O que eu estou dizendo é uma doença séria, séria, séria. Que tem uns que não curam
assim. O meu não, normalmente, aconteceu normalmente.
Eu: Entendi.
TD: Interessante né. Parecia até que era uma maldade, uma praga, porque pra fazer isso
ninguém acredita. Quando a gente conta ninguém acredita. Mas o resto você deixa com
ela que ela sabe contar direitinho.
YC: Não minha filha, o que ele está perguntando, dentro do que eu estou podendo eu
respondo. Né?
Eu: No caso, porque a senhora fez a cabeça no Omolocô? E como a senhora chegou no
Omolocô?
IC: Se eu contar você não vai nem acreditar. Não sei se eu posso contar isso.
Eu: Se a senhora não puder não tem problema.
274
IC: Melhor, porque eu procurei um terreiro, procurei um terreiro porque eu me casei.
Tudo bem. E Zé Pelintra deitava na minha cama.
F: (Gargalhada)
IC: Junto comigo. Muito estranho.
(Risos)
IC: É... aí que está o babado que ninguém acredita isso.
(palmas)
Eu: Mas o Zé Pelintra é da senhora?
IC: Meu não. Tenho ele não. Não entendia isso. Aí eu saia correndo com medo dele parava
lá na frente de camisola do jeito que eu estivesse. Me assustava que ele queria me
namorar! Como fosse uma pessoa normal. É mole? Aí eu fui num terreiro pra eu descobri
o que era isso que eu não podia ficar assim. Aí D. Antônia veio, disse que eu tinha que
dar uma obrigação lá no Omolocô que era a casa dela porque Zé Pelintra queria comer e
beber aquilo era mandado não era meu, não tinha nada disso, não tinha mesmo não. Era
mandado, tal. Aí desde que eu dei essa obrigação sumiu. Entendeu?
Eu: Entendi. Então pra resolver essa demanda, no caso, a senhora teve que se fazer...
IC: Isso, de fazer isso.
Eu: no Omolocô.
IC: Isso aí. Isso é verdade.
Eu: E qual a diferença entre o Omolocô e o que a senhora praticava, que no caso era a
Umbanda né?
IC: Umbanda.
Eu: Então qual a diferença entre o Omolocô e a Umbanda ou a Umbanda é Omolocô?
IC: Eu não sei por que eu sou muito sincera. Eu não segui o Omolocô. É uma naçãozinha
fraca. Pouca coisa, não tem muita coisa, não raspa, me entendeu? Como ela mandou fazer
para ficar livre desse Zé Pelintra eu fiz. Não que é a Umbanda que a Umbanda é muito
mais forte do que esse (inaudível) de Omolocô.
Eu: Então a senhora só fez o trabalho e não seguiu.
IC: Não. Nunca mais, nunca mais, quis não. Não é Fernando?
F: Uhum
IC: Omolocô não fui não.
F: Verdade.
IC: E aí fiquei com que? Com Diassi do Oxóssi.
F: Foi.
TD: Ela ficou na Umbanda depois Iemanjá pediu feitura.
IC: Então Dina, é o que estou falando.
TD: Você foi procurar o uma mãe de santo...
IC: De Candomblé.
TD: Pois é.
IC: Eu falei para ele. Que tem uma época que o orixá quer feitura. Não quer conversa
fiada. Aí a gente não vai, não cuida, a começa a cair, sentir dor no estômago, cabeça
zonza... e aí foi quando procurei outra mãe de santo pra ver o que eu tinha que fazer que
eu estava caindo. Ela jogou e falou que era problema de santo que eu era de Iemanjá, aliás
ela disse que eu era de Iansã, eu disse a ela eu sou de Iemanjá, eu só faço se for Iemanjá.
E assim eu não faço. Eu sei que eu sou meio “zangadinha”, mas com tudo isso eu sei que
eu sou de Iemanjá. Ela fez Iemanjá.
Eu: Nessa época seu Fernando já tinha uns três anos, é isso?
IC: Não, essa época Fernando já tinha mais.
275
F: Sete anos.
IC: Sete anos. Essa época ela tinha sete anos. Ele fez também junto comigo. Tomou sete
anos junto comigo.
Eu: Mas porque ele tomou já também, teve cobrança?
IC: Ele teve problema também de santo, problema de Ogum, Ogum cobrando aí aproveitei
que eu entrei botei ele também.
Eu: E a senhora teve mais filhos?
IC: Dois.
Eu: Eles entraram também?
IC: São feitos. É o pai de Brenno, um, faleceu. E o outro é ogã, mora em Araruama. É um
gordinho, viu ele aí não? Ele vai estar nessa festa.
Eu: E aí essa feitura que a senhora fez no Candomblé qual era a vertente dele?
IC: A nação?
Eu: É.
IC: A nação primeiro, a nação que eu raspei foi Angola.
Eu: Angola.
IC: É.
Eu: E como é a Angola?
IC: Explica pra ele Fernando, esse negócio de Angola que nem eu entendo muito isso.
F: A Angola, Angola é nação.
IC: Não, ele quer saber o andamento...
Eu: Como é que funciona?
IC: É.
F: Olha a Angola e keto são diferentes. Keto é uma coisa, Angola é outra.
IC: Tem as cantigas...
F: Entendeu? Por exemplo, a Angola, a Angola tem o iaô que faz... tem muito tempo que
eu não estou em Angola mais, então já tô na parte de Keto. Mas tem o sarabocâ, faz a
saída...
IC: É todo pintadinho...
F: Pinta todo, é todo pintadinho. Pinta o iaô, bota o adoxo, euquelê, 21 dias recolhido,
(inaudível) não pode mais. Por causa do custo financeiro está muito alto. Que antes era
21 dias agora 7 dias já tira a iaô. Entendeu? A cuia...
Eu: Desculpa, o que é tirar o iaô?
F: Tirar do roncó. Sete dias iaô, raspado, careca
IC: Raspado, pintado...
F: Isso.
IC: Com a (inaudível) perere, entendeu como é que é? Aí a gente tira de lá de dentro põe
no barracão para todo mundo ver.
F: O nome dos sete anos de Angola é cuia. Cuia é quando você se recolhe para ser um pai
de santo, no caso do Candomblé do...
IC: Angola
F: Angola. Da o nome de...
IC: Cuia.
F: Cuia. Cuia, que a pessoa recebe que é o caso de inkisi que é o pai de santo, é o tata de
inkisi. Pai de santo é tata de inkisi. A cuia, aí vai a navalha, vai o adoxo, vai a faca, vai
tudo que precisar no Candomblé. As ervas, né, tudo o que precisar no candomblé...
IC: Iroko,
F: Iroko...
276
IC: Atim,
F: Atim... vai tudo ali dentro. O tata de inkinsi ou a ia... a mãe de santo no caso, que a
mãe de santo ou o pai de santo dentro do candomblé da pessoa que está se formando. É a
formatura dele ali. Dali em diante vai ser o pai de santo. De sete anos pra cima. Keto é
assim, gêge, é assim, mas estamos falando de angola é angola.
Eu: Uhum
F: Dá o nome de cuia. Recebeu a cuia.
IC: O Keto tem uma diferença...
F: Entendeu? O Keto já é o euê. Recebe o euê. Da-se o iê. O iê é o nome vai diferenciar
uma nação da outra.
Eu Mas o que diferencia é o nome, né, os nomes...
F: Muitas coisas. Cantigas, toques, roupas, roupas (inaudível), mas cantiga, orô, muda
muito muita coisa. O modo de recolher, raspar é a mesma coisa, raspar todos eles...
B: É o fundamento né...
F: Raspar, raspar é a mesma coisa.
TD: Angola (inaudível) abaixadinho, já no Efom (inaudível) em pé. Entendeu? O iaô de
Angola vem do Roncó já incorporado cá fora, o...
IC: O Keto já chama...
TD: Já chama dentro do barracão. São uma separaçõezinhas...
IC: Diferentes.
F: Uma coisa que eu quero deixar claro com você. No candomblé, babalorixá, pai de
santo, na Angola é Tata de Inkinsi. Nome mulher, como minha mãe, mameto de inkisi.
Deixar bem claro pra você...
IC: Em Angola.
F: Entendeu? Angola, entendeu? Mãe de santo, pai de santo em angola, Táta de Inkinsi,
mãe de santo mameto de Inkinsi.
IC: Agora no Keto ia...
F: No keto babalorixá, homem, ialorixá, mulher.
IC: Entendeu?
Eu: Entendi. Inkisi e orixá são a mesma coisa?
F: São os orixás, são os orixás.
IC: Em Angola (inaudível) mesma coisa...
F: Inkinsi é santo. Candomblé é Ogum, Oxossi, são inkisi, mas sendo em Angola. Tempo,
entendeu, enfim...
IC: É a mesma coisa.
Eu: Mas por exemplo, no caso da Umbanda, o Ogum que se recebe na Umbanda ele é o
mesmo orixá do Candomblé, não?
IC: Não, é assim...
F: Ó deixa eu falar pra você eu sou de Candomblé, me aprofundo em Candomblé, santo
sei fazer o Candomblé, meu negócio é Candomblé.
Eu: Entendi.
IC: Não, ele quer saber...
F: É o que eu falei com ele meu negócio é Candomblé, Umbanda eu estou fora.
IC: Então o que acontece, o da Umbanda a gente chama assim, presta atenção, Ogum
Megê, Ogum Iara, Sete Espada, Ogum Sete Ondas, dentro da Umbanda. Já o nosso de
Candomblé tem outro tipo de nome, Fulano vai raspar megi, se raspar... vamos lá diga
outro aí...
B: Ogum Já...
277
IC: Tudo outros nomes diferentes. E a Umbanda dentro de São Jorge Guerreiro né, todo
mundo sabe o que é isso. Mas a nossa nação de Candomblé também vem por Ogum por
São Jorge. É a mesma coisa. Só tem outra diferença uma coisa pra outra. Entendeu o que
eu quis dizer?
Eu: Entendi. Então a senhora começou a praticar Angola depois que foi feita nessa...
IC: Fui feita em Angola. Depois fui pro Keto.
Eu: E no caso porque a senhora foi pra Angola e não para o Keto e depois porque a
senhora foi pro Keto?
IC: É porque antigamente existia mais angola do que Keto, entendeu? Ai como meu ex-
marido conhecia mãe de santo de Angola me levou porque eu estava passando mal. Me
levou, eu gostei fiz. Em Angola. Se é hoje eu não faria não. Porque a cabeça muda. Mas
a gente é boba na época, a gente quer ficar livre de alguma coisa né. Foi o meu caso,
queria ficar livre da tentação. Porque eu estava caindo, machucando sem saber o porquê.
Estava quieta e batia a cabeça no chão. (Inaudível) "Que isso? Isso é normal?" Então por
isso eu procurei uma mãe de santo e ele me levou nesse terreiro de Angola. Era boa! Mãe
de Santo entendida, boa! Muito entendida.
Eu: Mas porque a senhora diz que não faria se fosse hoje?
IC: Porque hoje eu sou do Keto. Acostumei.
TD: Mais evoluído também.
IC: Entendeu? Já acostumei no Keto, já fiz muito filho de santo no Keto, fiz muito ogã
no keto, equede, tudo no Keto, então a gente se habitua no dia a dia. Aí eu acostumei aí
eu gosto mais do Keto.
Eu: Então a senhora acha que o Keto é mais evoluído?
TD: Ah é!
IC: Ah é! É mais.
TD: A Angola tem mais fundamento. Eu acho assim,
IC: Você gasta muito mais em Angola do que no Keto.
TD: É.
IC: Né?
F: É.
IC: (Inaudível)
TD: Eu acho que o princípio de Angola é mais rigoroso. O que Keto já é mais fácil. O
Keto, você vê, com 21 dias tira quelêi, tira tudo. Agora, 3 meses no preceito rigoroso ali
e tal é a roupinha branca, é cabecinha (inaudível)
IC: 21 dias...
TD: A não ser quando a pessoa tem um trabalho. Quando você tem um trabalho você não
pode, não é mesmo?
Eu: Uhum
TD: E a pessoa libera só para o trabalho, pra depois... Quando dá três meses tira o quelê,
tira, tira sete dias de preceito de Oxalá e depois fica liberado. Eu fiz em Keto porque eu
achava muito difícil vir em terra, o meu santo. Ó vinha assim eu achava aquilo difícil pra
eu aprender...
IC: É Muzenza Dina.
TD: Pois é, mas eu achava difícil.
IC: É Muzenza, é Muzenza (não identifiquei as palavras do cântico)
TD: Eu achava difícil, abaixa um pouquinho, mais é bonito.
IC: Não é bonito?
B: É Muzenza?
278
TD: Muzenza em Angola é bonito.
Eu: Entendi.
IC: Tudo pintadinho de toas as cores. Essa nossa não é só o azul. Que é o "az"
Eu: E como foi a mudança da senhora para o Keto?
IC: Eu achei que não foi muito bom não. Eu perdi muita coisa, mas... como diz o outro
"botou o barco pra remar" de qualquer maneira né, não deixei cair a peteca e lutei, ganhei,
consegui dar a volta por cima e estou aqui. Não estou arrependida porque eu gosto muito
do Keto. entendeu?
Eu: Entendi. Eu anotei algumas coisa aqui de quando eu vim na gira de Umbanda...
IC: Sim, aqui de casa?
Eu: Isso.
IC: Ah tá.
Eu: Que eu observei que eram diferentes do que eu conheço.
IC: Sei...
Eu: Só pra senhora comentar alguma coisa.
IC: Uhum
Eu: Primeiro, assim, essa questão das roupas...
IC: Sim...
[silêncio]
Eu: Dentro do que eu conheço, daqueles centros que eu já frequentei tinha-se a ideia de
que você só podia usar branco.
IC: Sim...
Eu: Não se usava roupa colorida né. Mesmo em dia de festa todo mundo só usava branco.
IC: Branco, é Umbanda tem isso.
Eu: E aqui a senhora já tem essa questão das roupas né, das cores...
IC: Eu não ligo não.
Eu: Mas a senhora entende como uma escolha, isso seria parte de um preceito como é que
funciona.
IC: Não, dependendo da nação. As festas que for dar. Se eu der uma festa para Obaluaiê
meus filhos podem vir com roupa estampada, entendeu? Se eu der para Oxóssi pode usar
roupa estampada, mas se for assim a festa das iabas, cada um vem com sua roupa. Se você
é de Oxum vem com amarelo, esse aqui vem com prateado, a dali vem com dourado,
essas coisas, entendeu? E Oxalá, as águas de Oxalá, a gente se veste todo mundo de
branco.
TD: Geralmente (não identifiquei) é branco? Geralmente é branco né.
IC: Mas aqui já veste direto né.
TD: (inaudível) de santo que muda as cores.
B: Vó, acho que ele está falando da Umbanda. Eu acho que na Umbanda é escolha né
porque por a gente frequentar mais o Keto, a gente é do Keto, então a Umbanda a gente
não liga muito. A gente bota uma roupa estampada mesmo como se fosse filho de nação.
Bota aquela roupa e já fica ali normal, fica direto.
TD: Mas agora já estão mudando também né. Agora a Umbanda já bota caboclo vem de
cor, a Oxum já bota tudo de azul, amarelo, sei lá, Iansã já bota uma coisa vermelha, né?
Agora já estão assim.
IC: (Inaudível)
TD: (Inaudível)
Silêncio
Eu: O gongá a senhora já comentou né, que tirou...
279
IC: É eu tinha um gongá. Não foi Dina, não tinha gongá aqui?
TD: Tinha, tinha.
IC: Um gongá grande.
TD: Tinha gongá, assentamento de Xangô lá em cima.
IC: Tinha! Contei pra você né meu filho?
F: Foi sim senhora, você falou.
Eu: Outra diferença também, que essa casa que eu conheço...
IC: Hum
Eu: É o ponto riscado.
IC: Ah riscar ponto.
Eu: Riscar ponto.
IC: Sei.
Eu: Foi uma coisa também que eu não vi.
IC: Aqui em casa?
EU: É.
IC: Não risca ponto.
Eu: Não risca né.
IC: Só para ebó. Só para ebó que eu faço ponto de fogo.
Eu: Entendi.
IC: Para tirar a malignidade da pessoa tal, que está em casa. Só para ebó. Ebó, quando vai
socorrer alguém, também eu boto. Fora disso aqui em casa eu não uso não. Candomblé
não usa ponto de fogo dentro do barracão não, não é Brenno?
B: Não em dia de festa assim...
TD: De Umbanda...
(Inuadível)
B: (Inaudível) as filhas de santo assim, a gente só pede para riscar o ponto quando está
em desenvolvimento. A gente faz um desenvolvimento interno aquele guia que chega a
gente pede para louvar o nome, cantar o ponto, riscar seu ponto, no desenvolvimento.
IC: É. Isso mesmo, é verdade.
B: Entendeu? Feito isso rotina de festa normal não precisa riscar o ponto. Mas tem uns
que trabalham, que gostam...
IC: (Inaudível) gosta.
TD: É.
B: Gostam de lidar com a vela. Cada um usa de um jeito.
Eu: Então na verdade existe o ponto riscado, mas ele só...
B: No desenvolvimento. A gente pede para riscar o ponto, louvar de onde veio, trabalha
com o que, se usa o que entendeu?
YC: Que é o certo. Saber que orixá está incorporado ali. Passa mal de repente vai chamar
o que? Não sabe qual a pessoa que está ali, qual o espírito que está ali.
F: Verdade.
Eu: E como é que funciona esse desenvolvimento? Em sentido amplo, como é que é a
transmissão do conhecimento?
IC: Bom...
Eu: Como é que funciona, como é que se ensina tanto a questão da incorporação quanto
a dos fundamentos?
B: Minha vó sempre, ela recebeu a vovó, a vovó é chefe fica ali. Aí tem os ogãs que
ficam, aí a senhora até deu o cargo para Beth de desenvolver as pessoas. Beth é minha
filha de santo, minha rubona, ela já vem de outra casa...
280
F: Aê babá! (risos)
B: ela já veio desenvolvida, mas chegou aqui ela aprendeu as nossas doutrinas e como ela
é muito evoluída na parte de Umbanda que ela sempre foi de Umbanda, não só ela que
tem um monte de filho de santo da minha avó que também são de Umbanda, então essas
pessoas de Umbanda que são mais evoluídas em Umbanda a gente pede ajuda a eles para
desenvolver os mais novos. Aí eles ficam dançando, ensinam a dançar do jeito eu tem de
dançar, aí o guia vem encostando, encostando, aí tudo bem. Chega em outro
desenvolvimento o guia já está mais aflorado, flor da pele né, aí já salva o nome tem toda
essa questão entendeu?
Eu: Entendi. E uma vez você falou que faz parte de grupos de estudo...
B: Faço. Estudo bastante!
Eu: E como funciona esses grupos?
B: Mais interno assim, com os filhos de santo.
Eu: Ah é interno.
B: que eles procuram saber...
Eu: Uhum
B: Aí sempre eu estou ali procurando. A gente até ensinava a ensaiar. A gente chegava,
ensinava...
F: Verdade.
B: O atabaque...
IC: É.
B: Era mais essa coisa interna para os filhos de santo da casa.
Eu: Entendi. E... e aí, acho que até era um preconceito meu, uma ideia que eu tinha por
que algumas casas, não pelo sentido negativo né, mas uma ideia que eu tinha antes.
Porque várias casas que eu já visitei, por exemplo, nessa casa que eu frequentava, não
começava assim, mas várias casas que ei frequentei começa-se cantado para Exú na
Umbanda, nas giras de Umbanda, a primeira que ela começa é com Exú. E eu imaginei
que aqui por ser uma casa de Candomblé quando se tocasse Umbanda também se
começaria assim. Não é assim né?
IC: Não. Responde você para ele.
F: Está bom. Candomblé é assim. Candomblé, antes do Candonblé, Keto. Antes do
Candomblé faz despacho de Exú assim é quatro horas da tarde...
IC: Faz despacho.
F: Antes do candomblé.
Y IC C: Festa de Candomblé.
F: É. Aí vem (inaudível) das mulheres quem faz o despacho em Keto é mulher. Aqui
então (inaudível), mas o certo é mulher. Iabassé, iamorô, iadagã, cidagã, cargo de mulher.
Exú é mulher no candomblé. Bota o padê que é o fubá. É uma água, uma vela, um
(inaudível) e despacha. antes do Candomblé. Keto!
IC: Canta primeiro antes de começar o terreiro.
F: Canta cantiga, usando o toque, Keto. Angola é na hora do candomblé. Cantiga... já
Angola não tem os cargos que Keto tem. Se tem em Angola não é Angola mais, entendeu?
Faz despacho, padê. Vai na rua joga os padê pede para dar prosperidade, saúde, para não
dar briga no Candomblé. Despacha o olorum que é briga no Candomblé. Entendeu? Coisa
ruim pra Exú porque Exú é rua. Encruzilhada, Exú é rua. Passou a rua, Angola, pemba,
aí Ogum aí começa que são os Nkisis do Candomblé, que são os Nkisis de Angola.
Candomblé é Exú primeiro, Candomblé! Angola e Keto é Exú primeiro. Gêge eu não sei.
Gêge é muita coisa para se aprofundar é muita coisa. Quem sabe Candomblé mesmo,
281
quem sabe Candomblé a fundo não sabe tudo. Vive já com essa ideia. Que se Candomblé
todo não sabe a fundo muita coisa inventa umas coisas aí que a pessoa não aguenta. Muita
coisa, muita coisa o Candomblé.
Eu: Entendi.
IC: É complicado né.
F: É complicado. Não é Brenno?
B: É.
Eu: E as coisas vão mudando também né.
F: Mudando mesmo, realmente, realmente. Os antigos, Candomblés antigos não são
iguais aos de hoje, não são iguais. Se uma certa pessoa estivesse aqui hoje ia ficar "Que
isso? Antes não conhecia Candomblé assim. Isso aqui não é assim!"
IC: Eles estão vacilando, né Brenno?
F: Eles não têm uma identidade, uma coisa para a gente seguir. Entendeu? Então chega
um aqui "como é que faz iaô aqui? Como é que faz kuolo?" Oh filho faz assim, assim, ou
então usa internet. Procura na internet, né Brenno?
B: É.
F: Vai vendo assim.
B: Hoje em dia tem muitos.
F: Tem muitos né Brenno? Pai de santo na internet tem muitos! E eu conheço um. Você
quer ser pai de santo ele foi na internet (Palma). Pelo menos está aprendendo a fazer
entendeu?
IC: Assim eu não gosto não. Sei lá se o da internet está errado e eu vou...
F: Justamente, justamente.
IC: cabeça de internet. A não faço não. Assim não. Assim não gosto não.
Eu: Brenno que é a nova geração aí, acompanha muito...
YC: Fala Brenno!
Eu: os vídeos da internet?
F: (Gargalhada)
IC: Pegou ele agora! (Risos)
B: Não, acompanho porque acho que a gente que ver de tudo.
Eu: Uhum
B: então eu acompanho pelo seguinte. A minha casa é de um jeito. Mas acompanho não
é dizendo que eu sigo aquilo que eu vejo.
Eu: Sim, sim.
B: É só para eu analisar por que eu sei que o que é certo na minha casa, aquilo ali que eu
vejo na internet tenho certeza, aquilo ali é loucura.
F: (Gargalhada)
IC: Verdade!
B: Então eu nunca vou seguir aquilo ali que eu estou vendo se eu tenho na minha casa o
certo. Eu tenho quem me ensine. Mas eu vejo e eu até conto muita coisa para mãe Val,
para minha tia, para meu tio eu falo...
IC: (Inaudível): apavorado!
B: Eu vou contar aqui um assunto que esses dias eu vi. Não foi nem de Candomblé para
você ver aonde chegou a situação. Umbanda mesmo, pomba-gira de salto alto, dançando
pagode.
IC: Foi mesmo.
F: (Gargalhada)
B: Eu estou falando sério!
282
IC: Eu sei.
F: Nós todos, nós todos, eu estou rindo assim, mas (inaudível) mesmo, verdade, verdade
mesmo, verdade, verdade.
B: E não foi nem em casa de pessoas estranhas, casa de um conhecido meu. Eu fiquei
assim...
IC: Eu não acredito não.
TD: Nem chego perto.
B: Entendeu? Para você ver o ponto que as coisas chegaram. A pessoa fica tão "louca" da
cabeça que ela não sabe o que seguir. E vem na cabeça ela já está fazendo.
IC: Isso não existe! Que isso?
Eu: E aí você comenta com a pessoa?
B: Não, não comento. (Risos) Comento aqui e com alguns amigos meus que me mandam
também...
IC: Para rir.
B: bastante que eles riem. Acho que é igual a igreja né. Tem o antigo testamento e tem o
novo testamento. Mas nem por isso eles deixam de seguir o antigo.
Eu: aham
B: Entendeu? Eu sou da nova geração, mas nem por isso deixo de seguir o ritmo antigo
da casa.
IC: (Inaudível) pronto
F: Verdade!
B: Mas muita gente, muita gente fazendo loucura...
IC: Muita besteira mesmo.
B: novidade...
IC: muita besteira eu enh! É muita bobeira.
Eu: Eu sei que no Candomblé tem muito a questão do segredo né.
B: Tem.
Eu: E você vê o pessoal colocando segredo assim no...
B: Já, bastante coisa! Coisas internas mesmo de orô, de pai de santo eles tudo contam. A
gente fala assim uma linguagem nossa que é a praça. A praça é o povo de fora saber o
que acontece no seu roncó. Muita gente assim que (inaudível) por aí eles mesmos
queimam a casa deles contando todo o procedimento que passa lá dentro e normalmente
é tudo errado. Então tem hora que a gente fala: "Nossa, mas é assim que fulano faz?" Aí
a pessoa fica assustada né.
Eu: E qual seria o problema, o risco de revelar esses segredos?
B: Porque que cada casa é um jeito. Não que seja errado. Mas cada casa é um jeito, cada
pessoa tem a sua raiz. Então se a pessoa segue aquela raiz é aquela raiz até o fim. Então
não tem por que um filho de santo chegar aqui, passar por aqui chegar lá na frente, contar
o que viu aqui ou deixou de ver quando está lá na frente. Às vezes o nosso certo é o errado
para eles e o errado para eles é o nosso certo. então não tem muito essa coisa assim de...
Eu acho que particularmente a gente não gosta entendeu?
Eu: Entendi.
F: Deixa eu falar uma coisinha. Eu falei uma coisa do padê queria só acertar isso aí. Keto,
esse caso das mulheres, só mulheres, cargo eu falei, cargo de Keto. Da onde roda de padê.
Da onde roda de padê. Entendeu? E quando é aqui a gente despacha Exú. Despacha Exú.
É a mesma coisa sendo que padê é uma coisa mais, mais leva, leva mais coisa no chão,
Exú. É vinho, é água, é padê, é dendê, é mel, padê é só água na quartinha, o fubá ou a
farinha...
283
IC: Com dendê...
F: Só isso. eu falei roda de padê. Keto tem roda de padê. A gente não faz aqui. Eu sei
fazer isso mais ou menos, mas tem que "cabo" da pessoa, tem que fazer... entendeu? Só
isso só tá bom? Só isso só.
IC: Gasto. Ninguém aguenta isso. Candomblé é muito gasto.
Eu: Muito gasto né
IC: Muito! Muito gasto. Não é?
B: É,
Eu: Mas porque vocês acham que, porque eu fico pensando assim né, o Candomblé
começou suas práticas religiosas começaram com os escravos, pessoas que não tinham
dinheiro. Por que o Candomblé então se tornou algo que precisa de muito dinheiro?
B: Eu acho que é a necessidade.
IC: (Risos) Agora ele te pegou. Eu não posso falar mais nada.
B: Antigamente eles cultuavam muito assim a natureza né. Tudo, era uma pedra eles
pegavam aquela pedra, vamos dizer assim fazia de “estimação” dava aquele nome, vamos
supor. Aquele nome ali eu vou acender uma vela, vou acender uma água dali daria o
resultado. eu acho que com o tempo isso acabou. Eles foram fazendo outras coisas.
Tecnologia também. ao longo do tempo não só o Candomblé, mas como o mundo todo
foi renovando, renovando, renovando, chegou no que deu. Mas hoje em dia tem muita
coisa que acontece, não só pelo dinheiro, mas sim pela vaidade. Hoje em dia todo mundo
é muito vaidoso, então é um querendo ser melhor do que o outro, um sai com uma roupa
de "rechilinho" o outro quer vir já com (inaudível). Então isso que gasta. Um faz um bolo
de um andar, outro já quer vir com outro de três andares.
IC: É verdade mesmo.
B: Então é muito (inaudível). Muita vaidade.
IC: Por isso que gasta.
F: Por exemplo, o Candomblé é africano. Falei para você. Na África Candomblé é uma
coisa, no Brasil é outra.
B: É totalmente diferente.
IC: Quando ele veio para o Brasil evoluiu muito. Evoluiu no que? Nas roupas, nos bichos,
no barracão luxuoso, cerâmica, barracão de luxo, barracão caro. Na África não tem nada
disso. África é humildade. África até hoje é assim. Né? Pessoas muito pobres, que nascem
muito pobres, então aqui, o Candomblé evoluiu aqui, evoluiu aqui. É bicho, mata até boi!
(palma) Porco. Já matamos aqui. África não aceita nada disso.
B: Todo mês de agosto a gente mata dois porcos.
F: Entendeu? É um bicho só, é um otá. É uma coisa muito básica, muito pequena.
(Inaudível) veio uma africana aqui na Bahia quando viu o Candomblé tão evoluído ele
fez uma cantiga. Aquela ali. Cantiga está até hoje na roda de Xangô. Irã abê, irã abê... irã
é carne. muita carne, muita fartura, muita carne, muito bicho, muita coisa. "Irã atoko lo
to kun" entendeu? Pra Xangô. Um africano fez pra Xangô por causa da carne, por causa
da prosperidade que o Candomblé teve no Brasil. (Inaudível)
IC: Muita carne.
F: Entendeu? É mais ou menos assim.
B: Que na hora em que eles são abatidos, aquelas pessoas ao ar livre...
IC: Areia pura, terra.
B: Entendeu? não tem uma laje, não tem uma estrutura...
IC: Tem não. A casa é até de sapê. Até a casa é de sapê. A casa de Omulú é de sapê.
F: Para você ter uma ideia: barracão de Gêge ele é no barro.
284
B: É.
F: Até hoje procura preservar aquela humildade do Candomblé do barro. Orixá dançar pé
no chão no barro. Eu vi num candomblé de Angola, eu fui muito pai de santo, eu era
pequeno na época tinha 8, 9 anos, mãe "Simbeui", falecido, lá no Vsita Alegre. O barracão
dele era de Angola, mas era no barro não era mãe?
IC: No barro.
F: No barro! Que Candomblé de bom!
IC: Era. Show!
F: Quando eu conheci Candomblé, foi o primeiro Candomblé da minha vida. Muita gente,
muitos homossexuais, ele também era homossexual assumido, entendeu? Não é por ser
Candomblé, muitos homossexuais, muita gente, muito ogã, muito assistente,
IC: Muito artista.
F: o carro (inaudível), minha mãe fala, o carro, o bagulho era aqui, os carros iam até lá
embaixo de carro. Era muito carro, não era mãe? Era muito carro mesmo, entendeu? E
era um barracão humilde. No barro, entendeu? Eu vi Oxóssi, Oxóssi é uma entidade,
saragoni, eu vi sete lambô, primeiro Oxóssi na minha vida que eu vi dançando, roda para
lá e para cá no barro. Roupa branca. Hoje em dia casa de Oxóssi, Oxóssi faz um ato só,
rola na casa e levanta.
IC: Para não se sujar. Para não se sujar.
F: Para não se sujar. Oxóssi no Candomblé antigo, Oxóssi roda no chão, no chão, quase
não acaba. Ogã cantando, (inaudível) cantando, e ogã fazendo a dança dele no
Candomblé.
IC: Era mesmo.
F: Esse Candomblé ó, antigo (estalou duas vezes os dedos). (Inaudível) Isso era o
“cudalai” eles falam. É antiguidade. Entendeu? Hoje em dia até dança, mas não era
antigamente. Hoje tem que ensinar. Ver, aprender, ensinar filho de santo. "Ó seu Oxóssi
é assim, a cantiga é essa e fazer no chão o ato dele. Rolar para lá e para cá. E levanta,
entendeu?" Candomblé é de humildade. Candomblé é humildade! Religião, se bem que
toda religião tem o soberbo, tem o ignorante, toda religião tem. Mas eu vejo o Candomblé
como humildade. O orixá pintou o caneco, entendeu? Mas viver na África é humildade
pô! Humilde, Candomblé é de África. No Brasil. Entendeu? Mesmo se tiver um barracão
imenso, lindo, entendeu? Pra pai de santo manter, eu, isso sou eu, a humildade. Pode dar
esporro, pode se aborrecer, não tem problema. Mas (inaudível), uma pessoa humilde.
Coração, humilde...
IC: Verdade.
F: (Inaudível) Tem uns dias ruins que todo mundo tem. Todo mundo tem. Todo mundo
tem erro. Todo mundo erra. Essa vida, mas, entendeu?
Eu: Uhum
F: O líder tem que saber o que está falando também, o que está explicando, saber o que
está fazendo. É muita gente. Minha mãe aqui é livre. Minha mãe de santo aqui é o cargo,
é o cargo mais alto do Candomblé. Pai de santo (inaudível) depois vem os ogãs, que sou
eu, depois vem as ekedi, os babalorixás e ialorixás...
IC: A xogum
F: A xogum. Mais ou menos por aí.
Eu: Entendi. E uma coisa que eu observo também, justamente, o Candomblé tem toda
essa hierarquia né, muito estruturada...
F: Sei sei
Eu: E na Umbanda eu não vejo muito isso né?
285
IC: Não tem não.
Eu: não tem essa hierarquia. E, no caso, quando vocês praticam a Umbanda aqui essa
hierarquia se mantém? Se bem que a senhora falou que muitos que vem no Candomblé
não vem na Umbanda né, e quem vem na Umbanda não vem no Candomblé...
IC: É eles não gostam.
F: Verdade.
IC: Eles não gostam não. Entendeu? Ele está perguntando Brenno, responde!
B: Não entendi.
Eu: Essa questão da hierarquia. Quando, hoje é umbanda, por exemplo, e essa hierarquia
se mantém toda ou ela já muda?
B: Há o respeito né que se fala. Eu acho que continua. São as mesmas pessoas quase.
Então continua aquilo ali. Minha vó ali, então minha vó, todo mundo se abaixam, é a
hierarquia dali. Mas na Umbanda, Marquinho que é pai pequeno da Umbanda né?
IC: É. É.
B: Então Marquinho quando ele recebe o guia dele todo mundo respeita, cumprimenta.
Continua a mesma coisa do respeito, entendeu?
Eu: Entendi. Então no caso ele ocupa o segundo cargo na Umbanda...
B: É ele é o pai pequeno porque está ali na ativa. Ele vai lá, passa o defumador.
Campainha toca. Cachorro late.
B: É ele.
F: Da licença.
B: (inaudível) todo mundo respeita ele aqui como pai pequeno da Umbanda.
IC: É.
Eu: Entendi. E como é que foi a escolha para ele ser o pai pequeno da Umbanda?
B: Não sei como Marquinho foi.
TD: Eu sei. Porque ele sempre...
IC: Fala Dina!
TD: gostou de Umbanda e nunca se ligou muito em Candomblé. Embora raspado, ele
nunca se ligou em Candomblé. Ele gosta de Umbanda. Então precisava um pai pequeno
na Umbanda mais para poder cantar, para ele (inaudível)
IC: Ele gosta de cantar.
TD: Ele gosta de cantar essas coisas, as pembas... Fala Dina!
Eu: Pembas. Cruzar o terreiro, cantar, tudo ele gosta.
TD: Aí foi onde tocou (inaudível) deu o cargo a ele (inaudível) do Candomblé é um
menino da (inaudível)
IC: Olha lá Brenno! Sua filhinha chegou Brenno.
Pessoas entrando
IC: A filhinha chegou.
(Conversa inaudível)
F: Desculpa.
Eu: Nada.
F: eu falo agô pelo o seguinte.
IC: Tudo bom?
F: No Candomblé quando a pessoa vai (inaudível), passou, atravessou, como aqui agora
eu vim ver você está vendo aqui agô quer dizer dá licença. Em yoruba. Entendeu? Agô é
dá licença. Você vai numa casa agô, está conversando e tal, agô minha mãe yolorubá. O
que que é meu filho? É isso, isso e isso. Candomblé, agô é dá licença o Candomblé.
Entendeu?
286
Eu: Entendi.
Voz não identificada: Vou te falar.
Eu: Esqueci o que ia perguntar. Pera aí.
(Conversa inaudível)
Eu: Então não tem muito...
IC: Oi amor! Eu estou distraída. Deus te abençoe minha filha.
Filha: Estou bem!
Eu: conflito a Umbanda e o Candomblé no mesmo espaço? Você acha que tem muito
problema? Você acha que tudo funciona em harmonia?
IC: Pode falar a verdade.
F: Tudo funciona em harmonia. Depende da casa né. Da casa e da pessoa, né? Depende
da pessoa. Aqui funciona normalmente né Brenno?
B: É acho que a pessoa...
F: Normalmente.
B: O líder, no caso iabá, ter o pulso muito firme ali. "Olha só fulano é de Umbanda você
respeita fulano que é de Umbanda!" Porque a maioria das vezes tem muita casa que as
pessoas de Candomblé não respeitam as pessoas de Umbanda porque eles se julgam
maiores. Entendeu? Por eles serem de Candomblé. Aqui não acontece isso porque minha
avó sempre botou pulso firme e falou: respeita fulano, fulano é de Umbanda. Respeita
fulano, fulano de Umbanda.
F: Aqui eu falo porque tem Umbanda e Candomblé, Umbanda e Candomblé se dá pela
união pelo seguinte: minha mãe veio de Umbanda. Vários pais de santo que eu conheço
também veio de Umbanda. Toca Umbanda até hoje na casa dele, tranquilo. Tira iaô, festa
de santo dele, obrigação, festa de Oxóssi, olubajé, e vem de Umbanda. Vira tranca-ruas,
um vira caboclo, minha mãe aqui. E o barracão dele é Candomblé igual ao nosso. Toca
Umbanda também normalmente. Não é aquela Umbanda pura, entendeu? De Umbanda
não aprendi ainda. É Umbanda pura. Entendeu? Os ogãs estão na barrica, aquela coisa,
vamos dizer assim, aquela coisa pura, de Umbanda pura, entendeu? Seu Ogum de capa
vermelha, capacete, entendeu? Fumando charuto, tomando cerveja, aquela Umbanda
pura. Não é Umbanda pura. É Umbanda pura, mas misturada com o Candomblé. Quando
é Umbanda é só Umbanda, só Umbanda. Festa de Exu aqui é só Umbanda. Caboclo, canta
para o Anjo da Guarda, depois de Anjo da Guarda já canta para Ogum, caboclo dela e
Exu que é o final, caboclo que é o encerramento, pronto. Umbanda até o final. Nem
Angola a gente canta! Nem Angola a gente canta. (Inaudível) uma boa gira que eu sei
cantar Angola. É Umbanda é Umbanda. Hoje é Umbanda. Chefe da gira é minha mãe,
(inaudível) dela é de Umbanda. É só Umbanda. "Ah..." Hoje é Umbanda. Quando for
Candomblé é só Candomblé também. Aí é só Candomblé, não é mãe? Não canta nem
Angola. Se cantar Angola, se vier um pai de santo de Angola de fora, pai de santo de
Angola conhecido, canta Angola para ele. (inaudível) não gosta de Keto. Não é mãe? Pai
de santo ou mãe de santo. De Angola, se respeitar ele, a nação dele. Agora, caso contrário
fica só Umbanda ou Keto que a casa agora é Keto. Entendeu?
Eu: E como funciona essa questão da Umbanda pura? O senhor falou que não raspa a
cabeça na Umbanda pura, não é?
IC: Não raspa não.
F: Umbanda pura não raspa a cabeça.
B: Umbanda pura é mais aquela coisa povo d'agua, marinheiro...
287
F: Justamente. Bota água na cabeça, é Oxum, na cabeça, na mão, faz, a gente faz também
negócio de macaia. Macaia é banho de ervas, é banho de ervas, entendeu? Não tem
comida igual tem no Candomblé...
MC: Camarinha...
F: Camarinha, não tem igual ao Candomblé. Candomblé é muita comida. Não tem,
entendeu? É coisa mais de branco.
B: Umbanda Pura...
F: Vamos dizer assim, Candomblé é de negro e de branco né Brenno?
B: É.
F: Mas Candomblé vaio mais do negro por causa da mistura do africano. Umbanda foi
feita no Brasil, inventada no Brasil, Umbanda. No Brasil mesmo.
Eu: E como é que foi isso?
F: Aí é uma história, tem que ser umbandista mesmo, aquele umbandista ferrenho para
saber isso. Não é? "Que aí nasceu ali..." Entendeu?
B: É que Umbanda pura que costumam falar é que chama o Anjo da Guarda da pessoa,
na Umbanda pura costuma perguntar: enviado por quem? Entendeu? costuma falar cada
Anjo da Guarda enviado por um santo. Então não é Umbanda, porque todo mundo aqui
também é raspado. Então como não tem ninguém que pega o Anjo da Guarda, não recebe
Ogum de Umbanda, Oxum de Umbanda, nada disso.
Eu: Então aqui mesmo que a pessoa prefira a Umbanda ela é raspada no Candomblé e...
B: É.
Eu: fica na Umbanda?
B: Fica na Umbanda.
Eu: E aí, qual que para de receber quando ela é raspada? O Anjo da Guarda você falou...
B: Os Orixás de Umbanda. De Candomblé que eles para de receber. Por exemplo, Oxum
de Umbanda, Iansã, santos normais. Só recebe caboclo de pensa, boiadeiro, exu, vovô...
Eu: Só recebe no caso essas entidades que não são orixás.
B: Isso!
Eu: Entendi, entendi.
(Comentários sobre o tempo)
Eu: E no caso, essa Umbanda não é Umbanda Pura porque ela sofre influência do
Candomblé?
B: É. Uma Umbanda diversificada.
Eu: Diversificada.
F: Realmente! Mas sendo que quando é Umbanda é só Umbanda.
B: É só Umbanda.
F: A gente aqui não costuma cantar para Oxum, na Umbanda, para Iansã na Umbanda...
B: Não.
F: Pra Xangô na Umbanda, não que a gente não saiba cantar. A gente sabe cantar, sabe o
jeito de dançar, sabe tudo. O que ele fala, assim, tipo lá, Xangô é "rí" mais ou menos
assim. Entendeu, Iansã, a gente sabe. Sendo que não canta por causa do horário hoje
também. Acaba muito tarde, as pessoas querem ir embora por causa do perigo, é uber que
não entra aqui. Muita coisa, então se cantar muita coisa, muito ponto, ponto, ponto, as
pessoas "a gente quer ir embora, tem que trabalhar amanhã." Hoje em dia mudou muita
coisa também. A violência...
Eu: Sim.
F: Entendeu? Não pode, tem uns caras que você pira! Canta muito! Não quer saber que a
pessoa vai acordar cedo amanhã, não quer saber de nada! Nem o ogã cantar muita coisa
288
o ogã pode mais. Geralmente quem canta é o ogã. Nem pode mais. "A gente sabe cantar
mais". Não é isso, não é isso. Pensando nas pessoas também, não é só ele. As pessoas
também...
MC: (Inaudível)
F: É Umbanda é Candomblé é tudo.
B: Aqui querendo ou não a gente mora aqui. É diferente pra você que é visitante, pra ela
que é filha de santo. A gente quando acabar, a agente entra aqui, fica aqui. E vocês? Vocês
têm que sair, tem que pegar uma condução. Não saber se vai passar, não sabe se uber vai
entrar. Não sabe o que espera lá fora. A gente aqui está resguardado. Então a gente tem
esse limite de horário às vezes que respeita.
Eu: E uma coisa que a senhora falou né, antigamente tinha muito Angola e hoje a senhora
acha que tem menos Angola, tem mais Keto, tem mais Gêge?
F: (Risos)
IC: Muita!
B: A Angola está em extinção.
Eu: Está em extinção a Angola?
IC: Não tem manto, quase.
B: Entrou extinção bastante.
IC: Tem não.
Eu: E por que vocês acham que aconteceu isso?
IC: Porque o pessoal quis evoluir achou que o Keto é mais forte. Não é Fernando?
F: Verdade.
IC: Eu não sei. Eu sei que o povo...
B: É entrou em extinção porque os pais de santo também alguns faleceram...
IC: É muita gente, muita gente.
B: Os que eram famosos mesmo né tio de Angola...
F: Os que eram famosos.
B: É...
F: Faleceram, (inaudível), faleceram, faleceram. (Inaudível) conheci pessoalmente.
B: Faleceram. Então muitos filhos de santo deles entraram para o Keto...
F: Gomeia lá no Rio.
B: É!
F: Gomeia lá no Rio, Joãozinho Gomeia também.
B: Foram tudo evoluindo. Então uns abandonaram, saíram, outros foram para o Keto,
então entrou em extinção mesmo.
IC: (Risos)
F: Angola, Angola que nós tínhamos aqui, eu com sete anos de idade, eu lembro muita
coisa.
IC: Angola-Congo.
F: Angola-Congo. Minha está falando, não é mentira minha. Eu não preciso mentir pra
você. Angola-Congo. Hoje em dia se você procurar Angola-Congo você não vê mais...
B:Não tem.
F: Hoje em dia você vê Tumba-Jussara, vê muito, Tumba-Jussara, Angola-Congo,
Gomeia, também está em extinção. Morreu a muitos anos, morreu em 71. Mas tinha um
monte de filho de santo por aí. Gomeia, conhecida, atualmente a mais conhecida é Tumba-
Jussara. Atualmente é Tumba-Jussara. Depois Bate-folha. angola-Congo que eu fiz santo
sete anos, de idade, bobear não tem mais.
MC: Não tem mais.
289
F: Acabou! Você não encontra em lugar nenhum. Você estudar isso aí você vai ver que
não é mentira minha. São as três famosas: Tumba-Jussara, Angola-Congo, joazinho da
Gomeia que era o nome da rua dele. O nome da rua era Gomeia aí ficou chamado
Joãozinho da Gomeia. O pai de santo famoso de Angola era ele, Joaozinho da Gomeia,
deles todos. Joaozinho da Gomeia, entendeu? Angoleiro, angoleiro dessa época. Agora,
agora Angola não tem mais por aí. Pouca né. É mais Keto, hoje é mais Keto. Eu
conheço casa mais de Keto que Angola.
B: Eu acho que você pode contar até nos dedos.
(Todos falando juntos sobre os terreiros que conhecem - inaudível)
F: Tumba-Junsara, Tumba-Junsara.
B: Não, eu conheço Natasha, Janderson...
F: Tumba-Jussara!
B: É.
IC: Kátia que fica...
F: Tumba-Jussara. Tumba-Jussara também.
B: Tem aquela Mirian lá do...
F: Da entrada de Neves?
B: É de Neves...
F: Jussara também. Tudo Tumba-Jussara. Vê se é Gomeia? Vê de Bate-Folha? Tumba-
Jussara! Entendeu?
B: Tem Bombom também.
F: Tumba-Jussara também, Tumba-Jussara também. É que atualmente, o que é mais
falado, no presente mais, Tumba-Jussara.
Eu: Entendi.
F: Angola Tumba-Jussara. Que foi criada por Ciriaco. Quem inventou a Tumba-Jussara
foi Ciriaco.
Eu: Quem foi Ciriaco?
F: Ham?
Eu: Quem foi Ciriaco?
F: Pai de santo.
Eu: Pai de Santo?
F: Pai de Santo. Ciriaco.
Eu: E onde foi isso?
F: Ele é baiano. Ele era baiano. Tem até uma cantiga que fala de "Ginade". Como é?
Ciriaco sim. Quem inventou o Angola Tumba-Junsara, Ciriaco. Tumba-Junsara. E o
outro,e ele com outro pai de santo inventou a Bate-Folha. Inventou os dois. O outro, é
muita coisa na cabeça, então esquece um pouco, mas Ciriaco, você já sabe. Tumba-
Jussara. Gomeia, foi Joaozinho que eu já falei com você já. Mais ou menos assim. (bate
palma)
Eu: O Joãzinho eu já ouvi falar.
F: O mais famoso deles todos, até hoje que você vê, vai procurar é ele ainda. Até o
carnaval pô! Quase ganhou a escola de samba em 2019. Grande Rio falou dele. Não foi
Brenno? Falou da vida dele toda. Caboclo dele, caboclo Pedra Preta, Joãozinho da
Goméia. homenageado até hoje. Faleceu em 71, homenageado até hoje para você ver enh!
Eu: Sim, sim.
F: Não é mãe? Homenageado até hoje Joãozinho da Goméia. Já está morto há muitos
anos, muitos anos mesmo.
IC: Já.
290
F: Homenageado até hoje. Passou até um quadro falando da vida dele. Religião dele, filho
de santo dele, iaô dele. Tinha filha de santo até na França pô! Faleceu agora a francesa.
Faleceu agora. (Inaudível). A tal da francesa Undá de Euá, Undá de Euá. Que a pessoa de
jeje mesmo, de Keto não tem gringo. Não tem gringo. Se ela é Dory de Euá foi filha de
santo dele mesmo. De Goméia. Ele morreu, ela foi para outra nação.
IC YC: Quando eu raspei eu tinha de Gina.
F: Sim, eu também tenho! Tem em mim também.
IC: Kaia Cisoi. Por causa da nação onde eu raspei Angola.
Eu: O que é isso?
IC: Se fala Xangô é de Gina, é de Gina. O nome de outro santo. Assim junta você esse e
esse. Dofono, Dofonitine e Upan. Candomblé tem isso também. Quantas pessoas
recolherem quantas pessoas vão dizer efan, egão, essas coisas assim. Entendeu?
Eu: Entendi. E a senhora do Keto, o Efon, já é outra...
IC: Outra nação.
Eu: Outra nação.
IC: Outra nação.
Eu: A senhora do Keto, a senhora foi para o...
Y IC C: A gente toca um pouco de Efon junto. Efon baba (inaudível), depois já vai para
o Keto, entendeu com pe que é? Que meu pai de santo também é Efon.
Eu: Entendi. Então só para eu me situar. A senhora tinha 14 anos quando a senhora
recebeu o...
IC: Caboclo Tupinambá.
Eu: Aí quando a senhora tinha uns 25 começou aqui, construiu aqui?
IC: É mais ou menos.
Eu: Já vinha trabalhando...
IC: É.
Eu: com as entidades da senhora.
IC: Isso, isso.
Eu: aí quando ele tinha uns 7 anos a senhora...
IC: Ele raspou.
Eu: Aí ele raspou e a senhora raspou também.
Y IC C: Também, sete anos.
Eu: Foi quando mais ou menos isso?
IC: Eu não estou muito a par (baixinho)
F: O quê?
Eu: Quando o senhor tinha sete anos foi que ano?
F: Sete anos... agora você pegou, pera aí.
IC: Deu Branco.
F: É...
B: (Inaudível)
F: Sete anos você nasceu de, 88 não! não, não! Pera aí deixa eu ver aqui... não...
Eu: O senhor nasceu quando?
F: 18 de dezembro de 72.
Eu: 72... 79. 79,80.
F: Por aí, por aí, por aí. É isso aí. não, já 80. Isso aí, verdade. 79...
Eu: E o Omoloko foi antes...
IC: Muito antes.
F: Muito antes.
291
IC: ele não era nem nascido.
B: Foi acho quando ela ainda estava ali.
IC: Foi.
Eu: Foi antes dos 25 ainda.
B: Foi.
IC: Isso!
B: Antes ela já tinha aquele terreiro lá. Aqui ela já 25 anos, casada, com filho.
Eu: Entendi. E aí quando a senhora foi pro Keto foi mais ou menos quando?
IC: Eu tinha...
Eu: Já foi quando... a não, foi Angola primeiro, quando ele tinha sete anos, é isso?
IC: É foi.
Eu: Aí depois...
B: Porque eu acho quo o Keto já foi o ano 2000 não foi não?
F: É, Keto, eu tinha 24 anos de idade. Keto. Conforme eu tô conversando eu tinha 24 anos
de idade. Aí eu lembro disso. Você quer saber o que?
Eu: Não, só para eu marcar aqui a linha do tempo né.
F: A minha idade eu sei. 24 anos de idade. Minha idade, meus 21 anos.
IC: Que você entrou.
F: Foi que eu entrei pro Keto. Entrou eu e minha mãe, entramos juntos não foi mãe?
Y IC C: Foi.
Eu: Então, o senhor nasceu em 72 não é isso?
F: 72, 72.
Eu: 24, 96.
F: Foi 96 no caso?
Eu: 96. É 96...
F: 24, 96.
Eu: 70, 80...
F: É por aí, 96, isso aí. 92 eu estava trabalhando por aí mesmo. Por aí. Foi 96 isso mesmo.
Eu: E a senhora depois foi para o Efon?
IC: É a mesma coisa.
B: É o mesmo pai de santo.
IC: É o mesmo pai de santo.
Eu: A entendi. Então Keto e Efon é diferente?
IC: É outra nação. Um é um outro é outro.
B: Mas canta a mesma coisa.
YC: Mas canta a mesma coisa, (inaudível) é a mesma coisa, a matança é mesma coisa,
tudo igual.
Eu: E por que chama diferente então?
IC: Não tem não. Não tem diferença não. Eles para poderem fazer "Não porque eu sou de
Efon!" querem encher a boca. Tem nada a ver. Mas meu pai realmente é filho de Baiano
né, ele é de Efon mesmo. Então toca um pouquinho de Efon por causa do meu pai. Vê se
entendeu.
Eu: Entendi, entendi. E nesse período todo que a senhora, duas perguntas no caso, como
é que funciona a relação de um terreiro para o outro, no passado e hoje, e se nesse período
todo como é que funciona a relação com a comunidade, se já teve problema com a
comunidade se nunca teve problema?
IC: Problema nunca tive, só tem uma coisa, eu nunca fui chegada a ir (inaudível) de
ninguém.
292
F: É verdade.
IC: O único terreiro que eu vou é do meu filho de santo Luiz Paulo e André de Iemanjá.
Terreiro dos outros eu não vou. Não gosto de mistura.
B: Eu que vou.
IC: Ele é que vai.
F: Gargalhada.
F: Era eu né, agora é você. Era eu. Rodei foi Candomblé enh.
B: Pra ter noção meu tio já foi para Curitiba.
F: Fui... Curitiba, já rodei foi Candomblé!
B: Eu só fico aqui mesmo, São Gonçalo, no máximo aonde já fui foi no Rio. Mas...
F: Gargalhada
B: A diferença é grande...
IC: De um pra outro, não é isso?
F: Gargalhada
B: É... a diferença é bem grande mesmo. Em questão da hierarquia, em questão da
vestimenta. Até mesmo da educação. A diferença é grande.
F: Gargalhada
B: Mas na comunidade, você fala da comunidade aqui dentro?
Eu: É a comunidade do entorno né. Os vizinhos...
B: Não, aqui são ótimos!
IC: São ótimos!
B: Não tem problema nenhum.
IC: Todos se dão coma gente.
B: Lá fora também os barracões não têm problema nenhuma com a gente assim, pelo
contrário, eles vêm aqui até pedir... (risos) muitos ligam, já ligou bastante gente pedindo
a minha avó ajuda, né vó?
Y IC C: É pedindo folha, pedindo isso, pedindo aquilo, pra poder fazer santo... sou amiga.
B: (Inaudível) casa de amigo meu, de pessoas conhecidas, mas não tenho problema
nenhum também. Aonde eu chego, né, "Manda um beijo pra Carmem!"
F: (Risos)
B: Assim, onde chego é assim.
Eu: E você participa das giras?
B: De lá?
Eu: É.
B: Ah se for de dançar eu danço, se não for fico no meu canto, sou mais de ficar no meu
canto só observando. Mas...
Eu: Porque quando eu vim no Candomblé aqui e também vieram outras pessoas...
B: Vieram. Amigos meus.
Eu: Então é comum então essa...
B: É a união faz a força.
IC: Tem que se unir.
B: Aí eles ligam aí "Ah tem como você vir aqui no Candomblé me dar uma força? Vô."
Ai quando tem aqui aí eles vêm me ajudar.
Eu: E tem algumas, tanto, na Umbanda existe, no Candomblé eu não sei, eu sei que já
existiu federações né, organizações...
B: Ah... Tia Dina o padê, padê.
TD: É mesmo? (Inaudível)
IC: A gente pagava, mas ele não veio mais buscar
293
B: Aqui a gente tinha...
IC: Não sei se o senhor morreu, não sei o que aconteceu
B: Não sei o que aconteceu. Eu sei que a gente pagava a federação...
IC: 30 reais todo mês.
B: E vinha aqui, entregou o diploma, muita moção assim, só que é da prefeitura. Tem
muitas tá.
IC: (Risos)
B: Minha avó ganhou de Niterói do primeiro presente de Iemanjá na praia de Gragoatá.
Ela foi, 2019 não foi tio? Ou 2020.
F: O que?
B: Que a gente foi lá no dia 02 de fevereiro em Niterói.
IC: Na festa de Iemanjá.
F: Foi por aí.
B: Foi o primeiro evento de Iemanjá lá na baia de Gragoatá. Foi homenageada com muitas
moções uma das mais velhos de São Gonçalo...
F: 2019!
IC: Mais bonita também né!
F: (Risos)
IC: Mais bonita!
B: Uma das mais antigas.
F: Por aí, por aí.
B:Mas a federação hoje em dia a gente não tem. Mas tinha.
Eu: Mas ela...
B: Vinha aqui buscar o dinheiro, não veio mais.
F: Verdade.
Eu: Vale a pensa fazer parte da federação? Qual era a vantagem?
B: A vantagem é que eles entregavam...
F: Quer dar uma entrevista? (Gargalhada)
B: A gente sempre ganhava moção de licença, assim, caso chamasse a polícia, a gente
tinha aquela...
F: (Gargalhada)
B: Adotar certos horários, ninguém pode brigar...
IC: (Inaudível) não.
B: (Inaudível) não. Então tinha essa vantagem, entendeu? Mas hoje em dia tendo a
federação ou não, não tem muita diferença. Porque o terreiro de minha vó ele tem
licenciatura na prefeitura.
Eu: Uhum
B: Entendeu?
Eu: E foi difícil conseguir essa licenciatura?
IC: Nada, eu tenho muita sorte.
(Risos)
IC: É ruim enh. Veio aqui me trouxe assim de bandeja. Senhora D. Carmem, ele queria
até botar o nome dessa rua de Carmem. Eu não quis. É, verdade, eu não quis não.
Entendeu, não quero não, botar macumba em cima...
B: Antigamente, quando era de Umbanda, o nome do terreiro era Centro Espírita
Tupinambá de Aruanda.
IC: Era.
294
B: Foi quando ela conseguiu a licenciatura da prefeitura. Foi cadastrado com esse nome.
Centro Espírita Tupinambá de Aruanda. Um tempo depois, que veio as moções novas da
prefeitura mudou o nome para Ilê Asé Togum Benã que é o atual.
Eu: E a senhora chegou a ter problema com a polícia?
IC: Eu não! Graças a Deus!
F: Nem eu! (Gargalhada)
B: Aqui ninguém nunca...
IC: Graças a Jesus!
B: Nunca implicou de vizinho, incomodando...
IC: Também a gente acaba cedo né.
B: Pelo contrário. Os vizinhos no dia seguinte ainda pedem comida.
F: (Gargalhada)
B: Minha avó gosta, minha avó gosta de dar. O que sobrou.
Eu: Aham
F: (Gargalhada)
B: Aí ela pega feijoada, tem a vizinha aqui do lado também...
IC: Né?
B: Tem problema não.
IC: Dou bolo...
B: É...
F: Olha, liga não! Faz uma feijoada te contar em! Muito boa em! Quem comeu... Essa
aqui, ó, essa aqui é cozinheira da maior. Comeu, esse aqui cozinha pra caramba também.
Gostaram muito, mentira?
Coro: Não!
F: Esse aqui comeu dois pratos. Feijoada arrumada que eu faço mesmo com couve, farofa,
uma feijoada.
IC: Então faz um dia e chama ele pra vir almoçar com você. Melhor.
F: Se quiser vir será um prazer! Será bem-vindo!
IC: Vamos fazer depois da festa. Marcar e vem.
(Inaudível)
F: (Risos)
IC: Fica caro nada! (Inaudível)não come mais meu filho.
F: (Gargalhada)
Eu: Verdade. E o senhor falou do Suri... que era o rapaz que fundou o...
F: Ciríaco. Ciríaco o pai de santo tatá de Inkisi foi o fundador do Tumba-Jussara.
Eu: E, além da senhora, outros pais de santos famosos que vocês conhecem tanto do
Candomblé quanto da Umbanda assim que vocês lembram?
IC: Fala aí
F: Falecido?
Eu: Famoso. Falecido, vivo. Fala uma das histórias que o senhor diz. Falou do Joãozinho
da Gomeia...
F: Falei.
Eu: Ciríaco...
F: Sei, sei.
Eu: Quem mais seriam...
F: Baiano.
Eu: Baiano?
F: "Evaldivino" Baiano. Foi um grande pai de santo.
295
B: Mãe menina.
F: É. Os dois. Ela foi uma grande mãe de santo e ele foi um grande pai de santo. Os dois...
IC: Carlos de Oxaguiã.
F: Baianos também. São baianos.
B: Ele é atual.
F: Quem?
B: Carlos de Oxaguiã.
F: Atual.
B: Atual.
F: Carlos de Oxaguiã está no Cantuá atualmente.
B: É.
Eu: Ele também é bem famoso, respeitado...
F: Cantuá?
Eu: É.
F: É. Da Bahia, do Rio também, São Paulo, muito diferenciado. É um axé só de mulher.
Eu: Só de mulher?
F:Sim de mulher. Só aceita mulher.
IC: Tem a Guiar.
F: A Guiar é aqui em Itaboraí pô.
IC: Itaboraí. Pai de santo vivo Aguiar também. Conheço pessoalmente Aguiar também.
Eu: E na Umbanda vocês lembram de algum nome famoso assim que... ficou famoso.
IC: Aqui só Ícaro.
F: Na Umbanda, Umbanda mesmo.
IC: Ah na Umbanda...
F: Umbanda. Umbanda.
B: Seu Valde.
IC: (Inaudível)
F: Seu Valde, Seu Valde. Ele é de nagô, da nação nagô, mas tocava só umbanda.
B: Wilson Bandeira Branca.
IC: Wilson Bandeira Branca.
F: Wilson Bandeira era Nagô-vodun.
B: Nagô-Vodun.
F: Nagô-vodun. Mais do que Candomblé, mais do que Umbanda. Pai de santo de
Umbanda mesmo só conhecia um.
IC: Fernando!
F: Falecido Valde. Só ele mesmo.
IC: Aquele que morreu.
F: Conheço mais Candomblé.
IC: Lá do morro.
B: Ah Miguel! Mas ele era Umbanda.
F: Angola. Falecido Miguel Beuzebú era Angola. Angola também entendeu?
IC: Era um alto, alto (inaudível)
B: De Umbanda (inaudível)
F: Infelizmente eu não conheço. Só conheci o falecido Valde.
B: Umbanda assim...
IC: Umbanda Pura eu não sei quem.
B: Tem Cristiano, mas Cristiano não é pura.
F: Não, não é Umbanda pura não. Faz filho...
296
B: De vida, mas é no toque...
F: Não, da Umbanda, da Umbanda, da Umbanda da Umbanda.
IC: (Inaudível) de Omolu.
F: Mas é raspado.
IC: Não.
F: Candomblé.
IC: É.
F: Manda ela ver, Cristiane, bem lembrado é. Verdade.
IC: Lá no Barreto.
F: É.
B: Não tem muito pai de santo...
F: (Inaudível)
IC: Eu conheço pai de santos novinhos que estão começando agora.
B: É.
IC: Assim Brenno. (risos)
F: (Risos)
B: Eu não sou de Umbanda.
IC: (Risos)
F: (Gargalhada)
B: Eu conheço um...
IC: Olha a filha de santo dele lá ó sentadinha.
B: Tem o Roberto da nove horas.
IC: Viu?
F: É de Umbanda, é de Umbanda ele.
IC Roberto é.
F: Umbandista.
IC: Umbanda pura. Aquele é umbandista mesmo.
Eu: De onde é o Roberto?
B: Acho que ele nem toca hoje em dia mais.
F: É. É. (Inaudível) Eu não sei onde ele toca. Eu também não sei.
B: Eu acho que parou. Tinha um na falecida Ana da Jurema.
F: É faleceu. Era aqui em baixo aqui ó na Pio Borges. Aqui no Barro Vermelho, sabe
onde é? No sobrado verde. É ali.
Eu: Entendi.
IC: Antes de chegar no posto...
F: Isso antes de chegar no posto Campeão. Aqui é o posto Campeão.
IC: É ali. Naquela ruazinha sobe...
F: Aqui é o posto é uma ruazinha antes.
IC: Segunda casa.
F: É antes.
IC: Segunda casa.
F: É. Segunda casa, isso aí.
Eu: Entendi. E vocês já ouviram falar em Zélio FErnandino de Moraes?
F: Nunca ouvi falar. Eu nunca ouvi falar.
IC: Também não.
Eu: E Tata Tancredo?
F: Pior ainda. (risos) Nunca...
B: É o que? São...
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F: Umbandista? Mas são umbandista mesmo?
Eu: O Tata Tancredo ele é do Omolokô...
F: Ah entendi.
Eu: que ele foi muito atuante nos anos 60 e 70...
F: Sei.
Eu: e ele era um que defendia que a Umbanda também veio da África. A Umbanda
também era africana.
F: Eu acho, tem que ver imitando. Umbanda é tipo uma imitação. Começou aqui, levou a
frente
Eu: E o Zélio Fernandino é esse rapaz que dizem que ele criou a Umbanda aqui em São
Gonçalo, em Neves.
F: Como é o nome?
Eu: Zélio Fernandino de Moraes.
F: Hum. Sabia disso também. Neves.
Eu: Isso.
F: Só não quis falar porque não gosto da Umbanda, entendeu?
IC: Fernando, aquele barrigudinho que disseram que morreu e estava vivo em Neves?
F: Carlinhos.
IC: É.
F: Ele é de Umbanda
IC: Umbanda pura.
F: Não toca mais não. Pelo menos onde ele tocava não toca mais não.
IC: Hum. Então não sei.
Eu: Então esses são dois que estão muito em livros. Esse Zélio Fernandino e o Tatá que
são duas vertentes. Um diz que veio da África o outro diz que a Umbanda nasceu aqui
com ele, ele que criou.
F: O pouco que eu sei de Umbanda nasceu em Neves.
Eu: Então.
F: Em Neves mesmo. Começou em Neves dai que expandiu, entendeu?
Eu: Entendi. Acho que é isso. Então uma hora e quarenta já.
F: Deixa eu falar uma coisa para você, essa entrevista vai para onde? É para que isso aí?
Eu: É uma pesquisa que eu estou fazendo. Eu estou fazendo mestrado e é um curso que a
gente faz e ai durante dois anos eu tenho que entregar uma pesquisa no final. E aí é pra
estudo. Então no final de dois anos eu vou escrever um texto. Um livro digamos assim...
F: Sei, sei.
Eu: E aí vai ser disponibilizado para outras pessoas, para outras pessoas que estudam
também...
F: A religião né.
Eu: Isso.
F: Aprendendo, vendo, ah entendi.
Eu: Entendeu?
F: Pessoas antigas do Candomblé respeita a religião né? Mais ou menos assim né.
Eu: É. Na verdade assim, eu vou trazer, quando eu escrever, eu trazer pra vocês lerem...
F: Tudo bem. Tudo bem.
Eu: Mas geralmente a gente escreve pra acadêmico mesmo né, não muito pro religioso.
F: Sei, sei.
Eu: Eu vou tentar fazer, escrever, seja acessível a todo mundo, mas...
F: A melhor forma de entender.
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Eu: É.
F: Tudo bem.
Eu: Mas geralmente ele é destinado pra esse da universidade né que estuda mais assim.
Esse e outros textos né que a gente vai produzindo ao longo do tempo e conforme eu for
produzindo eu trazendo pra vocês até pra vocês irem me corrigindo se eu não entendi
alguma coisa, se eu desvirtuei.
F: Entendi.
Eu: E aí eu quero saber se vocês autorizam eu usar as falas de vocês nesses trabalhos.
IC: Pode! Autorizo!
F: Mas isso ganha um ganho financeiro não? (Gargalhada) Tenho filho pra sustentar, sabe
como é a coisa né. (Gargalhada) Ó se ganha um dinheiro divide comigo enh. (Gargalhada)