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Leonor

Postado por Snaga em maio 12, 2008


Publicado em: - ÚLTIMOS CONTOS. Marcado: Poe, Séc. XIX. 14 Comentários

Sou oriundo duma raça caracterizada pelo vigor da fantasia e pelo ardor da paixão.

Os homens chamaram-me louco; mas ainda não está resolvido o problema ? se a loucura
é ou não a suprema inteligência ? se muito do que é glorioso ? se tudo o que é
profundo ? não tem a sua origem numa doença do pensamento ? em modalidades do
espírito exaltadas a custa das faculdades gerais. Aqueles que sonham de dia sabem
muitas coisas que escapam àqueles que somente de noite sonham. Nas suas vagas visões
obtêm relances de eternidade e, quando despertam, estremecem ao verem que estiveram
mesmo à beira do grande segredo. Penetram sem leme nem bússola, no vasto oceano da
“luz inefável”; e de novo, como os aventureiros do geógrafo núbio, agressi sunt mare
tenebrarum, quid in eo esset exploraturi.

Diremos, então, que estou doido. Concordo, pelo menos, em que há dois estados
distintos da minha existência mental ? o de uma razão lúcida que não pode ser
contestada, e pertence à memória de acontecimentos que constituem a primeira época da
minha vida ? e um estado de sombra e dúvida, que abrange o presente e a recordação do
que constitui a segunda grande era do meu ser. Por conseqüência, acreditai tudo o que
eu disser do primeiro período de minha existência; e dai ao que eu vier a contar dos
derradeiros tempos o crédito que se vos afigurar justo; ou ponde-o completamente em
dúvida; ou, se não puderes duvidar, fazei como Édipo e procurai decifrar o seu enigma.

Aquela que na minha mocidade amei, e de quem agora, serena e lucidamente, estou
traçando estas recordações, era a filha única da única irmã de minha mãe havia muito
falecida.

Minha prima chamava-se Leonor. Havíamos sempre vivido juntos, sob um sol tropical,
no vale de Many-Coloured Crass. Jamais viandante algum aventurou seus passos por
aquele vale; pois se estendia por entre uma cadeia de montes gigantescos, que sobre ele
debruçavam as suas escarpas, vedando o acesso dos raios solares aos seus mais
aprazíveis recônditos. Nas suas proximidades atalho algum jamais fora trilhado, e, para
chegarmos ao nosso lar, não precisávamos afastar, com força, a folhagem de milhares
de árvores, nem esmagar milhões de fragrantes flores. Assim vivíamos nós sozinhos,
nada sabendo do mundo para além do vale ? eu, minha prima e sua mãe.

Das obscuras regiões de além dos montes, no extremo superior de nossos domínios,
descia um estreito e profundo rio, que excedia em brilho e limpidez tudo menos os
claros olhos de Leonor; e, serpenteando furtivamente em intrincados meandros,
embrenhava-se por fim através de uma sombria garganta, por entre montes ainda mais
negros do que aqueles de que brotara. Denominávamo-lo o “Rio do Silêncio”, pois as
suas águas pareciam ter a faculdade de tudo emudecer. Do seu leito nenhum murmúrio
se erguia, e tão de mansinho ia desfiando seu curso que os diáfanos seixinhos que
esmaltavam o fundo e que nós tanto gostávamos de contemplar, permaneciam
absolutamente imóveis, refulgindo eternamente no lugar onde um dia se quedaram.
A margem do rio e de muitos cintilantes riachos que, por tortuosos rodeios, a ele
afluíam, bem como os espaços que as margens desciam até o leito de seixos do fundo
das águas ? todos estes lugares, não menos de que toda a superfície do vale, desde o rio
até as montanhas que o circundavam, eram tapetados por uma relva verde, macia,
espessa, curta, perfeitamente lisa e perfumada, mas tão profusamente matizada com
botões de ouro, margaridas, violetas e asfódelos que a sua extraordinária beleza dilatava
nossos corações com eloquência e paixão, do amor e da glória de Deus.

E, aqui e além, em maciços que se diriam antes matas de sonhos, brotavam fantásticas
árvores, cujos altos e esguios troncos se não erguiam a prumo, mas, torcendo-se,
inclinavam-se para a luz que ao meio-dia irrompia pelo centro do vale. A sua casca
apresentava ao mesmo tempo o esplendor do marfim e da prata, e seria mais suave do
que tudo não fosse a suave face de Leonor; de sorte que, se não fora o verde brilhante
das enormes folhas que das suas copas se alastravam em linhas compridas e trêmulas,
embaladas pelos zéfiros, poderia alguém imaginá-las gigantescas serpentes da Síria,
prestando homenagem ao seu soberano, o Sol.

De mãos dadas, durante 15 anos, vaguei com Leonor por este vale, antes de o Amor
penetrar em nossos corações. Era uma tarde, ao cerrar-se o terceiro lustro da sua vida e
o quarto da minha: estávamos sentados, abraçados, debaixo das árvores-serpentes e
contemplávamos as nossas imagens refletidas no espelho das águas do rio. Nem mais
uma palavra pronunciamos durante o resto daquele doce dia, e na manhã seguinte ainda
as nossas palavras eram trêmulas e raras. Do fundo das águas havíamos tirado o deus
Eros, e agora sentíamos que havíamos ateado dentro de nós as almas ardorosas dos
nossos maiores. As paixões que durante séculos haviam caracterizado a nossa raça
acudiam agora de tropel com as fantasias que os haviam igualmente distinguido e
bafejavam venturas e bênçãos sobre o vale de Many-Coloured Crass. Tudo como por
encanto mudou. Sobre as árvores onde jamais se conhecera uma flor desabrocharam
agora estranhas flores em forma de estrela. Tornaram-se mais carregados os tons das
alfombras de verdura; e quando uma a uma murcharam as brancas margaridas, surgiram
em seus lugares, dez a dez, os asfóidelos da cor dos rubis. E a vida brotava em nossos
atalhos; pois o alto flamingo, até aqui nunca visto, com todas as álacres e variegadas
aves, ostentava ante nós a sua plumagem escarlate. Peixes de ouro e de prata acorriam
agora ao rio, de cujo seio se erguia, de mansinho, um murmúrio que, por fim, foi
engrossando até se transformar numa suave melodia mais divina de que a da harpa de
Éolo, mais doce do que tudo, não fosse a voz de Leonor. E agora, também uma enorme
nuvem, que por muito tempo dominara as regiões do Hesper, avançara num
deslumbramento carmesim e ouro e viera pairar serenamente sobre nós, descendo dia a
dia até pousar sobre os cumes dos montes, transfigurando-os com o seu glorioso
esplendor e encerrando-nos, como que para sempre, dentro duma mágica prisão de
magnificência e glória.

O encanto de Leonor era o de um Serafim, mas ela era uma adolescente ingênua e
simples como a curta vida que vivera entre as flores. Nenhum artifício mascarava o
amor que lhe estuava no coração, e ela examinava comigo os seus mais íntimos
recessos, quando passeávamos no vale de Many-Coloured e conversávamos sobre as
notáveis transformações que nele ultimamente se haviam operado.

Um dia, finalmente, tendo falado, banhada em pranto da triste e derradeira


transformação que a Humanidade deve sofrer, nunca mais deixou de discutir este
doloroso assunto, intercalando-o em todas as nossas conversas, como nos cantos do
bardo de Schiraz estão constantemente ocorrendo as mesmas imagens, a cada passo
repetidas em cada impressionante variação de frase.

Ela tinha visto que o dedo da morte se lhe cravara no seio ? que, como o efêmero, ela
fora feita perfeita em encanto e beleza somente para morrer; mas para ela os terrores do
túmulo apenas consistiam numa apreensão, que uma tarde, ao crepúsculo, ela me
revelou, passeando comigo pelas margens do Rio do Silêncio. O que a penalizava era
pensar que, após havê-la sepultado no vale de Many-Coloured, eu abandonaria para
sempre aquelas ditosas paragens, transferindo o amor, que só dela tão apaixonadamente
agora era, para alguma jovem do mundo exterior e banal. E, então, ao ouvir-lhe
expressar este pesar, atirei-me aos pés de Leonor e jurei que nunca me ligaria pelo
casamento a filha alguma da Terra ? que jamais eu, fosse de que maneira fosse, trairia a
sua querida recordação. Invoquei o Onipotente Senhor como testemunha da pia
solenidade do meu juramento. E a maldição de que Deus e dela impetrei, no caso de eu
atraiçoar meu juramento, envolvia uma pena cujo extraordinário horror me não permite
referi-la aqui.

Os olhos de Leonor se tornaram mais claros, quando eu assim exprimi o carinho que a
prendia à minha vida; como se do peito arrancassem um peso mortal; tremeu e chorou
amargamente; mas (que era ela senão uma criança?) aceitou o juramento, que lhe
tornava mais suave o leito de morte. E disse-me, não muitos dias depois, finando-se
tranqüilamente, que, em vista do que eu fizera para alívio e consolo do seu espírito,
velaria sempre por mim depois de morta, e se tal lhe fosse permitido, voltaria
visivelmente a visitar-me nas vigílias da noite; se, porém, isto ultrapassasse o que às
almas no Paraíso é permitido, dar-me-ia, pelo menos, freqüentes indicações de sua
presença, suspirando sobre mim nos ventos da tarde ou enchendo o ar que eu respirasse
com o perfume dos turíbulos dos anjos. E, com estas palavras, exalou a sua inocente
vida, ponto termo à primeira época da minha.

Até aqui é fiel o relato que fiz. Mas, quando transponho a barreira formada pela morte
de minha amada e penetro na segunda era da minha existência, sinto uma sombra
empolgar-me o cérebro e não confio na perfeita sanidade das minhas palavras. Mas,
prossigamos.

Os anos foram-se arrastando pesadamente e eu continuei habitando no vale ? mas uma


segunda transformação se operara em todas as coisas. As flores em forma de estrela
secaram nas árvores e não mais reapareceram. Apagaram-se os matizes do verde tapete
de relva; e, um a um, murcharam os rubros asfódelos e, em seu lugar, surgiram, dez a
dez, escuras violetas sempre carregadas de orvalho.

A vida desapareceu dos nossos atalhos; o alto flamingo já não exibia ante nós a sua
plumagem escarlate, mas tristemente fugiu do vale para os montes com todas as álacres
aves multicores que em sua companhia tinham vindo. Os peixes de ouro e prata nunca
mais esmaltaram o nosso doce rio. A suave melodia que encantara mais do que a harpa
e Éolo e fora mais divina do que tudo menos a voz de Leonor, foi-se pouco a pouco
extinguindo, sumindo-se em murmúrios cada vez mais débeis, até que, por fim, o rio
voltou à solenidade do seu primitivo silêncio. E então ergueu-se de novo a enorme
nuvem e, abandonando os píncaros dos montes à sua antiga tristeza, recuou para as
regiões de Hesper, e consigo levou o áureo esplendor e todas as magnificências que por
alguns anos transfiguraram o vale de Many-Coloured Crass.

Todavia, as promessas de Leonor não ficaram no olvido; pois eu ouvia os sons do


balouçar dos turíbulos dos anjos; correntes dum sagrado perfume flutuavam
permanentemente sobre o vale; nas horas ermas, quando meu coração palpitava
pesadamente, os ventos que me refrescavam a fronte vinham carregados de brandos
suspiros; indistintos murmúrios ? oh, mas só uma vez! fui desperto de um sono, que se
me afigurava o sono da morte, pela pressão de uns lábios espirituais sobre os meus.

Mas o vácuo dentro do meu coração recusava-se, ainda assim, a ser preenchido. Tinha
saudades do amor que o enchera a transbordar. Por fim o vale fazia-me sofrer pelas
recordações, e abandonei-o então para sempre, trocando-o pelas vaidades e pelos
turbulentos triunfos do mundo.

Encontrei-me dentro duma estranha cidade, onde todas as coisas podiam ter servido
para me apagaram da lembrança os doces sonhos que por tanto tempo sonhara no vale.
O luxo e a pompa de uma corte majestosa, o doido clangor das armas e a radiosa beleza
das mulheres desvairaram-me e embriagaram-me o cérebro. Até aqui, porém, ainda a
minha alma permanecera fiel aos seus juramentos, e nas horas silentes da noite ainda até
mim chegavam as revelações da presença de Leonor.

De súbito, cessaram estas manifestações; mundo escureceu de todo ante os meus olhos,
e quedei-me espavorido ante o escaldante pensamento que me possuía ? ante as terríveis
tentações que me empolgavam; pois de muito longe, de uma terra distante e ignota,
viera para a alegre corte do rei que eu servia, uma donzela a cuja beleza todo o meu
perjuro coração imediatamente se rendeu ? a cujos pés me curvei sem uma luta, no mais
ardente, no mais abjeto culto de amor.

Que era, na verdade, a minha paixão pela adolescente do vale comparada com o fervor e
o delírio, o alucinado êxtase de adoração com que eu depunha toda a minha alma em
pranto aos pés da etérea Hermengarda? ? Oh, que deslumbrante era a angélica
Hermengarda! E na minha alma para ninguém mais havia lugar. ? Oh, que divina era a
celestial Hermengarda! E quando eu sondava as profundezas dos olhos inolvidáveis, só
neles pensava ? só neles e nela!

Casei; não me arreceei da maldição que invocara; nem senti o amargor de haver
infringido um juramento solene.

Mas uma vez, no silêncio da noite, chegaram até mim, através das minhas persianas, os
brandos suspiros que havia muito eu já não ouvia e, numa voz familiar e doce, percebi
estas palavras que jamais esquecerei:

– Dorme em paz! ? pois o Espírito do Amor reina e governa e, acolhendo no teu


apaixonado coração aquela que se chama Hermengarda, tu és absolvido, por motivos
que só no céu serão explicados, dos juramentos que fizeste a Leonor!

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