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Ciclo de Reflexão Grace e Karielle

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Ciclo de Reflexão: grupos reflexivos como caminho possível para o enfrentamento à

violência doméstica no contexto do judiciário pernambucano

Grace Liz Dantas Barros1


Karla Karielle de Meneses Sousa2

Resumo: O presente relato de experiência visa descrever a intervenção intitulada Ciclo de


Reflexão, caracterizada como grupo reflexivo com homens condenados em processos judiciais
pela Lei Maria da Penha. Essa atividade é realizada pela equipe multidisciplinar da Vara de
Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Petrolina-PE desde 2016, totalizando até
o momento 50 grupos, com cerca de 450 participantes. A ação é composta por 4 encontros que
acontecem a partir de agendamento prévio, com frequência semanal, duração de duas horas e
meia cada e participação de até 10 apenados. Para tanto são debatidas 4 temáticas norteadoras:
Lei Maria da Penha e Ciclo de Violência; gênero e implicações; impacto da violência doméstica
nos filhos; álcool e outras drogas e relação com a violência doméstica/avaliação, as quais são
trabalhadas através de exposição dialogada, uso de material audiovisual e dinâmicas de grupo.
Como principais resultados são destacadas 3 temáticas preponderantes: posturas de vitimização
e culpabilização da ofendida; discrepância de direitos entre os gêneros; o lugar da
transgeracionalidade como herança da violência doméstica. Mediante avaliação qualitativa, os
apenados sinalizam superação de expectativas acerca do projeto, grupo como possibilidade de
aprendizado e compreensão da importância da igualdade de gênero. Essa experiência tem
figurado como ferramenta de potência no enfrentamento à violência de gênero e recurso viável
para prevenção de reincidência.
Palavras-chave: masculinidade, gênero, violência doméstica, poder judiciário

Introdução

O desafio no enfrentamento à violência doméstica vem apontando a necessidade de


ações compatíveis com a complexidade que esse fenômeno subjaz, de modo a ampliar a atenção
para além de perspectivas punitivistas dentro do âmbito do Poder Judiciário. Nesse sentido, o
projeto Ciclo de Reflexão caracteriza-se como intervenção psicossocial direcionada ao público
de homens que perpetraram violência doméstica e familiar contra mulheres, na modalidade de
grupo reflexivo, realizada pela Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
comarca de Petrolina-PE, que compõe o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Essa
atividade é conduzida pela psicóloga e pela assistente social da Unidade Judiciária e foi

1
Mestranda de Psicologia na Universidade Federal do Vale do São Francisco. Analista Judiciária/Psicóloga na
Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (comarca de Petrolina-PE, Brasil) – Tribunal de Justiça
de Pernambuco. E-mail: [email protected].
2
Analista Judiciária/Assistente Social na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (comarca de
Petrolina-PE, Brasil) – Tribunal de Justiça de Pernambuco. E-mail: [email protected].
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implantada no mês de novembro de 2016, com suspensão das atividades por aproximadamente
dois anos, em virtude da pandemia do COVID-19, sendo retomada em agosto de 2023 e com
permanência atual.
Como ponto de partida para aproximação com a temática, cabe destacar que esse
trabalho é pautado no entendimento da nomenclatura “Grupo de Homens Autores de Violência
– GHAV” (Beiras et al., 2021), a qual sinaliza o rompimento com a visão identitária e imutável
sobre a qual o predicativo “agressor” poderia incitar. Ainda sobre esse aspecto, é ressaltado
que a ideia de masculinidade aqui embasada se amolda à caracterização dessa categoria de
análise enquanto fundamentalmente situacional e plural, levando em consideração a
multiplicidade de realidades a partir das quais o exercício de ser homem se circunscreve.
Outrossim, o arcabouço teórico utilizado como base para o trabalho em tela perpassa a
discussão acerca da socialização masculina mediante “a casa dos homens” (Welzer-Lang,
2001), bem como da métrica viril e laborativa a partir do “dispositivo da eficácia” (Zanello,
2018).
Enquanto objetivo geral, essa tarefa apresenta o intuito de promover um espaço
educativo de acolhimento e orientação que fomente o processo reflexivo relacionado ao
fenômeno da violência contra a mulher em suas diversas expressões, bem como estimular o
rompimento da dinâmica cíclica do contexto violento e a resolução de conflitos sem uso de
violência. Nessa direção, o desenvolvimento da atividade se orienta a partir de dinâmica de
compreensão sociocultural e psicoeducativa, a partir do fomento ao diálogo. Ademais, há nesse
trabalho consonância com o intuito responsabilizante por meio de processos reflexivos
mediante dinâmica de problematizações que favoreçam a construção de novos sentidos e
significados (Beiras et al., 2021).
Partindo dessas premissas, o projeto em alusão visa ainda promover reflexões acerca da
complexidade implicada no fenômeno da violência, bem como evidenciar a necessidade de
intervenção sobre o conjunto de fatores que interferem direta ou indiretamente na ocorrência e
permanência dos atos violentos. Cumpre salientar que a interação entre as facilitadoras e os
participantes oportuniza a identificação de demandas a serem encaminhadas aos equipamentos
que compõem a rede sociassistencial e de saúde do estado e município. Para tanto, as reuniões
apresentam os seguintes eixos temáticos norteadores: Lei Maria da Penha (LMP) e legislações
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antecessoras relativas ao fenômeno da violência contra a mulher; Ciclo de Violência (Walker,
1979) e possibilidades de rompimento; gênero, masculinidades e violência de gênero; impacto
da violência doméstica nos filhos/transgeracionalidade; álcool e outras drogas e relação com a
violência doméstica.
Mediante o descrito, vale destacar que o conceito de gênero a partir do qual essa
intervenção se fundamenta diz respeito à definição pautada por Judith Butler (2012, p. 187),
que considera gênero enquanto performatividade, como ação de “repetição estilizada de atos”
desempenhada de modo compulsório em dinâmica de coação social. Além disso, tal categoria
de análise também é compreendida aqui de forma a dialogar com os estudos de Joan Scott
(1995), a qual enfatiza a produção dos papéis de gênero como mediada por relações de poder.
A realização dos GHAV encontra-se prevista na Lei 11.340/2006, a qual em seu art. 22
refere-se às medidas protetivas de urgência deferidas em desfavor do suposto autor de
violência, tendo os incisos VI e VII recentemente incluídos pela Lei 13.984/20, os quais
preveem o “comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; [e]
acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo
de apoio”, respectivamente.
No que tange a operacionalização do projeto, tal participação é voltada aos homens
sentenciados nos processos julgados pela Unidade, que optaram pelo benefício do SURSIS
(Suspensão Condicional da Pena), com caráter obrigatório. O encaminhamento dos
sentenciados é realizado por meio da Secretaria da Vara ao Setor Psicossocial, posteriormente
à realização de audiência admonitória. Desse modo, o Ciclo de Reflexão é composto por quatro
encontros, frequência semanal e duração média de duas horas e meia por reunião, realizados
no auditório do Fórum Dr. Manoel de Souza Filho, com a composição de até dez apenados.
Quanto aos materiais e recursos, são utilizados nos encontros: equipamento audiovisual
através do qual é exibida apresentação de slides para norteamento da discussão, bem como para
exposição de imagens disparadoras de diálogo e de vídeos que ilustram os assuntos abordados,
e uso de dinâmicas de grupo. No que concerne aos documentos relativos à intervenção, as
narrativas e principais impressões dos encontros são registradas em cada reunião e arquivadas
de modo sigiloso no Setor Psicossocial, além da assinatura de frequência por parte do apenado
a cada encontro. Para fins processuais, é acrescentada aos autos informação constando a
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situação de presença ou ausência dos sentenciados nas reuniões. Além disso, enquanto
instrumental utilizado para levantamento de perfil dos participantes e planejamento das ações
é realizado o preenchimento de ficha cadastral de cada apenado no ato do agendamento pelas
profissionais facilitadoras.
Como meio de retorno das impressões acerca da atividade, é realizada ao final do
projeto uma avaliação qualitativa composta por questões relacionadas: às opiniões dos
participantes quanto ao conteúdo abordado; ao material expositivo, recursos audiovisuais
utilizados e dinâmica dos encontros; às possíveis reflexões suscitadas e/ou mudanças de
comportamento nas relações interpessoais, sobretudo com as mulheres. Além disso, com o
intuito de monitoramento do projeto é promovido levantamento quantitativo periódico do
índice de absenteísmo. Desse modo, partindo da configuração apresentada, o projeto
supracitado, até o mês de maio do corrente ano, foi desenvolvido junto a 51 grupos, totalizando
446 sentenciados agendados.

Resultados

Para fins de resultados do projeto Ciclo de Reflexão, são aqui considerados os conteúdos
apresentados pelos apenados ao longo da participação destes nos quatro momentos que
compõem a atividade. Como eixos temáticos preponderantes foram identificados: posturas de
vitimização e culpabilização da ofendida; discrepância de direitos entre os gêneros; o lugar da
transgeracionalidade como herança da violência doméstica. Esses tópicos observados foram
sinalizados de modo transversal entre os assuntos propostos nas reuniões, sendo constituídos
assim a partir dos diálogos produzidos, os quais passarão a ser descritos a seguir mediante
exposição das experiências de cada encontro.
No tocante aos temas abordados na primeira reunião, mediante as explanações dos
assuntos relativos à LMP, evidencia-se no discurso dos homens autores de violência,
predominantemente, posturas de vitimização e culpabilização das ofendidas, além de
as apontarem como provocadoras e/ou como responsáveis pela ocorrência da situação de
violência, conforme seguintes verbalizações: “Cabe à mulher também não estimular”. Ainda
nesse sentido, foram apresentados de modo reiterado posicionamentos relacionados à má
utilização da legislação em voga por parte das jurisdicionadas, no intento de se beneficiarem
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indevidamente: “Mas também tem muita mulher que se aproveita”. Outrossim, frequentemente
foram realizados questionamentos acerca da existência de legislação direcionada para casos de
violência doméstica e familiar contra homens: “Devia existir uma lei que nos protegesse”.
Além disso, percebeu-se a partir de algumas narrativas a tentativa de diminuição da gravidade
do fenômeno da violência contra a mulher, ao apontarem casos de agressões contra homens,
bem como de descredibilizarem os relatos das mulheres acerca dos conflitos: “Mulher violenta
é pior do que homem”. Ao serem explanados os tipos de violência, especificados no artigo 7°
da Lei Maria da Penha, uma parcela considerável dos participantes identificou a presença de
situações violentas em suas relações conjugais: “Muitas vezes a gente faz essas violências em
casa. Muitas dessas coisas acontecem entre o casal e a gente nem se dá conta, por não ter
conhecimento”.
No âmbito das discussões acerca das medidas protetivas de urgência, foram
predominantes indagações relativas à possibilidade de a requerente se aproximar do suposto
autor de violência, estando sob proteção do recurso legal aludido, bem como as sanções que
podem ser direcionadas à mulher diante dessa aproximação. Quanto aos diálogos referentes ao
Ciclo de Violência, boa parte dos participantes assumiram posturas que denotavam
culpabilização das mulheres por não romperem com o fenômeno em tela: “Apanha uma vez,
não tem vergonha na cara, volta e depois acontece de novo”; “Se ela tivesse denunciado a
primeira vez eu não teria feito isso outras vezes”.
Ainda no que tange ao rompimento do Ciclo de Violência, houve pontuações que
indicavam a prisão do apenado como impulsionadora para a interrupção dos atos violentos por
parte deste. Ademais, algumas posturas dos HAV sinalizaram a romantização da subjugação
feminina, ao pontuarem sobre a necessidade de perdão e recomeço no relacionamento como
prova de amor por parte da ofendida. Outrossim, indicaram perspectiva de mudança de
comportamento advindas das experiências vividas e dos aprendizados adquiridos a partir
destas.
O segundo encontro do projeto é voltado para a discussão sobre gênero e para tanto são
debatidas questões relacionadas às brincadeiras infantis, trabalho, cidadania, patriarcado,
machismo e masculidades. Diante das colocações apresentadas pelos participantes foram
destacadas perspectivas moralistas/moralizantes acerca da relação das mulheres com seus
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corpos/sexualidade e responsabilidade destas quanto à vulnerabilização para ocorrência de
situações violentas. Nesse sentido, foi evidenciada a ideia quanto à necessidade de proteção
maior às mulheres desde a infância no que se refere ao risco quanto à exposição do corpo, em
comparação aos meninos: “Os meninos ficam mais à vontade e as meninas precisam se
preocupar”; “As meninas têm que se proteger pelo fato de ser mulher, aprendem desde criança”.
Seguindo essa compreensão, sinalizaram o estabelecimento de relação direta entre a exposição
do corpo feminino e a incitação ao assédio e violência sexual: “O homem só pensa em sexo, o
corpo da mulher é mais provocativo, o homem soltar piada é normal”.
Ainda como demonstração de atravessamentos de cunho moral em relação às mulheres
foram referidos imperativos de decência e dever feminino de autopreservação quanto à imagens
e comportamentos afetivo-sexuais: “As mulheres deveriam se valorizar mais, até os homens
que saem falam”; “A moral da mulher é mais fácil de cair do que a do homem”. Em
contraponto, não obstante enfatizarem a demanda por proteção às mulheres a partir da ideia de
fragilidade, foi pontuado risco enquanto questão de ordem individual, de modo a ignorar os
aspectos estruturais da violência: “Essa questão da mulher é algo dela mesma, não é uma
situação real, ela fica pensando aquilo e ela mesma que se sente em risco”.
A diferenciação entre os gêneros por meio de justificativas essencialistas quanto aos
comportamentos e tarefas também foi um elemento ressaltado no encontro em questão. Sobre
isso, foram descritas como características femininas a habilidade de organização e observação,
sensibilidade, delicadeza e cuidado com a aparência: “Menina mulher sempre está mais vestida
porque é feminina”. De modo comparativo, eram sinalizados paralelo de fragilidade e
racionalidade como próprias das mulheres enquanto a virilidade e instinto eram associados aos
homens: “As mulheres têm mais raciocínio pra dirigir”; “O cara sempre olha, não tem jeito, é
instinto”; “Prenda suas cabras que meus bodes estão soltos”.
Visões compatíveis com a noção de naturalização de papéis também faziam referência
ao trabalho produtivo e cuidados domésticos. Sobre isso, sinalizaram compreensão de
participação masculina na casa como “ajuda”, com atribuição desse papel à mulher, sendo que
os que participavam das atividades domésticas sinalizavam ter aprendido pelo exemplo do pai
ou pela ausência de quem o fizesse: “Não quero nascer mulher, porque não quero cuidar da
casa e dos filhos, ter essa jornada dupla”. Quando em relação às atividades laborativas externas
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ao âmbito do lar, foi apontada a discriminação sofrida pelas mulheres no contexto do trabalho,
sobretudo no que se refere à credibilidade quando em cargos de liderança: “Eles aceitam serem
mandados por homem, mas não por mulher”.
No momento final desse encontro é abordada a temática do impacto do machismo nos
homens. Nessa oportunidade, os participantes apontam como maior prejuízo as sanções
judiciais decorrentes dos atos violentos e a diminuição da confiança por parte das mulheres.
Questões quanto à saúde física masculina também foram apontadas, sinalizando receio de
demonstração de fragilidade, bem como o compartilhamento da ideia de que a manipulação do
corpo masculino em relação ao planejamento familiar seria compreendida como ação
desvirilizante: “Se fizer vasectomia ia dizer que caparam o homem”. Ademais, foi explicitada
a dificuldade de expressão de sentimentos e preconceito de terceiros diante das questões
emocionais masculinas, apontando que os homens não sabem ouvir seus pares.
O terceiro encontro do projeto Ciclo de Reflexão é composto por diálogos que abordam
temáticas relativas à transgeracionalidade da violência doméstica. Durante a atividade, alguns
participantes verbalizaram lembranças traumáticas referentes a situações de violências
domésticas diretas e indiretas, vivenciadas no período da infância: “Quando pai batia em mãe
eu entrava na frente”; “O meu caso não era bater, era espancar mesmo. Ele me pegava pelo
pescoço”. No ensejo, os sentenciados apontaram valoração positiva referente à oportunidade
de compartilharem experiências semelhantes quando crianças, evidenciando ideia de
pertencimento e identificação com o grupo: “Senti que não estou sozinho”. Ainda acerca desse
assunto, um número considerável dos HAV rememorou circunstâncias nas quais sofreu
violências associadas à situação de trabalho infantil, conforme ilustrado no discurso a seguir:
“Tenho lembranças ruins, meu pai me impedia de estudar para trabalhar, ele bebia todos os
finais de semana e batia na minha mãe que queria que eu estudasse”.
Ao longo do encontro, são explanados os prejuízos mais frequentes, oriundos da
exposição de crianças e adolescentes a situações violentas. Frente a essa discussão, alguns
participantes mencionaram danos que teriam decorrido da vivência de violência doméstica no
período da infância, os quais verbalizaram que tiveram problemas relativos ao uso abusivo de
álcool e de outras substâncias psicoativas, bem como referiram sobre necessidade de saírem do
domicílio que residiam com os familiares no intento de romperem com o ciclo de violência,
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destacando terem permanecido em situação de rua por determinado período. Em contrapartida,
foram expostas memórias afetivas positivas a respeito da educação recebida no período de
infância, com destaque a sentimentos e sensações referentes à proteção e segurança
relacionados aos cuidadores.
Nessa direção, houve narrativas que evidenciaram o reconhecimento da reprodução de
comportamentos violentos perpetrados pelos genitores dos sentenciados contra as mães destes,
os quais os apenados costumavam presenciar na infância e/ou na adolescência: “Acho que
aprendi um pouco com ele”. Cumpre salientar que foram recorrentes considerações de
participantes que pontuaram sobre interesse de não estabelecerem novo
relacionamento afetivo, ao passo que alguns HAV afirmaram que após o conflito que resultou
nas suas condenações, refletiram sobre a necessidade de estabelecer relação conjugal pacífica
com suas companheiras ou ex-companheiras.
Ao verbalizarem sobre a relação de paternidade que estabelecem com seus (suas) filhos
(as), parte dos apenados apresentou em seus relatos alguns desafios que têm enfrentado no
desempenho desse papel. Nesse ínterim, houve demonstrações referentes ao distanciamento
afetivo em relação aos seus ascendentes, bem como pontuações que denotavam vinculação
afetiva recíproca entre os apenados e os (as) filhos (as): “Tenho pouco contato com minha filha,
não a procuro”; “Fiquei longe dos meus filhos depois que foram embora, hoje só pago a
pensão”; “Como pai, eu recebo amor puro”.
No tocante aos relatos sobre a percepção de impactos nos (as) filhos (as) por terem
presenciado episódios de violência perpetrados pelos participantes contra as companheiras,
uma quantidade significativa dos HAV apresentou mobilização emocional. Nesse sentido,
narraram que a circunstância em tela afetou negativamente a relação dos (as) filhos (as) com
os apenados, prejuízo percebido em decorrência da mudança de comportamento dos
ascendentes com estes, bem como mencionaram sobre mudanças no estado de humor e de
comportamento dos (as) filhos (as) após a ocorrência da situação de violência: “No dia minha
mulher chamou a polícia e hoje percebo que minha filha fica assustada quando vê a polícia”.
O último encontro do projeto apresenta como temática o uso e abuso de álcool e outras
drogas e sua relação com a violência doméstica. Quanto aos aspectos gerais, foi sinalizado
significativo interesse e identificação dos presentes com o assunto abordado. Os participantes
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costumavam relatar sobre as substâncias e modos de uso, enfatizando o consumo de bebida
alcoólica e a consideração desta como suposta saída para resolução de problemas.
Nessa relação com a bebida, foi identificada dinâmica de passividade e não
responsabilização de modo duplo: a culpa seria do álcool e/ou da mulher. Dessa forma, haveria
uma espécie de personificação de caráter negativo da substância que passaria a deter o controle
dos comportamentos de seus usuários: “O álcool muda, altera a pessoa”; “O cara não consegue
se controlar”. Em paralelo, as ações violentas teriam, em suas falas, motivação oriunda de
supostas posturas agressivas adotadas pelas companheiras em decorrência de insatisfação
frente à embriaguez de seus cônjuges: “O homem chega em casa alterado ou vai dormir e a
mulher futuca”. Nesses termos, era sinalizada concordância quanto a haver uma relação direta
com a violência, seja no que concerne à mudança de comportamento masculino em estado
etílico ou enquanto reação às supostas atitudes das mulheres.
Durante o compartilhamento de experiências associadas ao tema em questão, eram com
frequência compartilhadas memórias quanto à história pessoal e/ou familiar de uso prejudicial
de substâncias. Sobre isso, foram apresentadas falas relacionadas à necessidade de interrupção
do consumo como alternativa para coibir a violência e demais perdas decorrentes da adição.
Nessa direção, parte dos apenados referiu o fato conflituoso que originou a ação penal como
evento determinante na opção pela abstinência.
A relação do gênero com o consumo de bebidas alcoólicas também foi matéria de
discussão durante o encontro em tela. O uso dessas substâncias por parte de mulheres foi
apontado pelos participantes como um comportamento negativo, que colocaria em questão a
credibilidade feminina: “É mais feio quando é a mulher que bebe, vão falar mais da mulher do
que do homem”. Assim, de modo comparativo, concordam com o fato de que além de ser
naturalizada, a utilização do álcool pelo público masculino é também estimulada,
complementando que quando em ocasiões de recusa da bebida, os homens costumam ouvir
frases vexatórias de seus pares: “Chamam logo de pau mandado ou de mulherzinha”. Além
disso, a ingestão de álcool por parte das mulheres era associada diretamente à sexualidade, em
função de suposta provocação aos homens: “O homem bebe pra criar coragem e a mulher pra
ficar loucona”; “Já vi muita mulher embebedar e ficar fácil”.

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No encerramento dos encontros é apresentada proposta de avaliação qualitativa aos
participantes através de roteiro de perguntas, com a finalidade de retorno destes acerca do
desenvolvimento do projeto, principais impressões, análise de possíveis impactos e sinalização
de sugestões de melhoria. Nessa oportunidade, a maioria dos apenados costuma verbalizar suas
opiniões e indicar posicionamento em conformidade com a aprovação da atividade. As
considerações positivas dos sentenciados eram acompanhadas pela narrativa de superação de
expectativas, haja vista o entendimento inicial de que a intervenção seria realizada se utilizando
de atitudes corretivas, de caráter meramente punitivo: “Pensei que fosse totalmente diferente,
mais agressiva, pra castigar”; “Não pensei que iria mexer tanto com meus sentimentos”.
Enquanto contribuições propiciadas pelo projeto em questão, o aprendizado a respeito
das temáticas abordadas, a reflexão acerca dos próprios comportamentos e o acesso a questões
relacionadas às emoções foram itens de destaque mais frequente. Nessa direção, o caráter
educativo dos encontros foi evidenciado, com menção à ausência dessas discussões nos outros
espaços que costumam participar: “Tiveram muitas coisas que antes eu não compreendia, foi
como se fosse uma aula”. A possibilidade de pensar nas atitudes violentas pareceu favorecer a
identificação do atravessamento do machismo e sinalização de necessidade de mudanças: “A
gente consegue, dentro de nós mesmos, voltar a enxergar o início de tudo, se pudesse evitar”;
“O Ciclo fica direto na minha mente”; “Como se fosse o motor, identificar a peça que está
faltando pra melhorar”. Nesse ínterim, a construção de um espaço para expressão livre e segura
de pensamentos e sentimentos foi indicado como favorável para a realização da atividade:
“Achava que ia ficar acuado no fundo da sala, aqui ninguém tá julgando o cara, fala à vontade”.
Na ocasião do desfecho da intervenção, foi evidenciada também a natureza preventiva
do projeto e de compartilhamento das informações debatidas nos encontros junto aos seus
pares. Dessa forma, a recusa à repetição de novos atos de violência foi sinalizada em referência
aos relacionamentos, bem como no que concerne aos filhos e o receio de reprodução dos
conflitos por parte destes: “Pensei que era falando sobre agressão, aqui foi mais pra
conhecimento, se não tivesse vindo não saberia, a gente faria violência doméstica sem perceber,
hoje a gente só pratica se for sem noção, sei as consequências”; “Às vezes alguma coisa dentro
de casa, a gente lembra, lembrei quando fui gritar com meu filho e parei”. Ainda no que tange
a prevenção, foi sinalizada a adoção de postura de observância das atitudes dos homens que
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compõem seus círculos pessoais, de modo a partilhar os assuntos conversados e chamar a
atenção necessária: “Foi um aprendizado meu que passei para outras pessoas”; “Eu abri o olho
já de três colegas que agridem as mulheres”; “Esse trabalho de vocês faz muito efeito porque
eu mesmo vou convencer um monte de homens”.
Por fim, a colaboração do Ciclo de Reflexão para a melhoria das relações íntimas de
afeto e no convívio com o público feminino de modo geral foi explicitada ao longo das
avaliações. Quanto ao posicionamento junto às suas parceiras, os apenados demonstraram
dinâmica de identificação de pensamentos e ponderação de consequências como predecessores
de comportamentos, com fins de evitar ações violentas reativas: “A gente passa a analisar as
coisas antes de agir”; “Mudei muito o comportamento com minha esposa, a gente conversa,
não briga mais”. As opiniões referentes à igualdade de gênero também foram mencionadas
como impacto da intervenção: “A mulher tem seu direito sim, e a gente precisa saber disso,
ficar lado a lado”.

Considerações finais

Diante das informações explicitadas acerca do projeto Ciclo de Reflexão, observa-se


que tal experiência oportuniza o fomento a reflexões que contribuem para o enfrentamento à
violência contra mulheres, sobretudo a violência de gênero. Nesse sentido, a partir das
considerações verbalizadas pelos sentenciados quanto às reflexões durante a atividade em
questão, foram evidenciadas sinalizações que denotam intenção de rompimento com a prática
de crimes contra mulheres.
Outrossim, foi possível identificar a necessidade da construção de processo avaliativo
que demonstrasse de forma fidedigna a realidade dos sentenciados que participam do aludido
projeto, no que tange à reincidência/reiteração. Cabe ressaltar que atualmente são encontradas
limitações no desenvolvimento da avaliação do impacto dessa estratégia de grupo reflexivo no
que diz respeito às questões de ordem judicial, mais especificamente, às restrições de acesso à
consulta processual em âmbito nacional, haja vista a ausência de sistema unificado. A resolução
dessa demanda favoreceria a elaboração de futuras publicações que abranjam informações
pertinentes aos resultados do projeto em tela.

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Referências
BEIRAS, A.; MARTINS, D.F.W.; SOMMARIVA, S.S.; HUGILL, M.S.G. Grupos reflexivos
e responsabilizantes para homens autores de violência contra mulheres no Brasil:
mapeamento, análise e recomendações [recurso eletrônico]. Dados eletrônicos. CEJUR. 2021.
Disponível em: < https://ovm.alesc.sc.gov.br/wp-content/uploads/2021/11/grupo-
reflexivo.pdf>. Acesso em: 01 jul.2024.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 4 ed. Civilização


Brasileira, 2012.

WALKER, L. The battered woman. New York: Harper and How, 1979.

WELZER-LANG, D. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia.


Estudos Feministas. 9(2). p. 460–482, 2001. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-
026X2001000200008>. Acesso em: 01 jul.2024.

ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação.


Curitiba: Appris editora, 2018.

Title:
Reflection Cycle: Reflective Groups as a Potential Strategy for Tackling Domestic Violence
within the Pernambuco Judicial System

Abstract: This experiential report aims to describe the intervention entitled "Reflection Cycle,"
characterized as a reflective group with men convicted in legal processes under the “Maria da
Penha” Law. This activity has been carried out by the multidisciplinary team of the Domestic
and Family Violence Court Against Women in Petrolina, State of Pernambuco, Brazil, since
2017, totaling 50 groups with approximately 450 participants to date. The action consists of
four meetings scheduled in advance, held weekly, each lasting two and a half hours, with the
participation of up to 10 people serving a sentence. Four guiding themes are discussed: “Maria
da Penha” Law and the Cycle of Violence; gender and implications; the impact of domestic
violence on children; alcohol and other drugs and their relationship with domestic
violence/assessment. These themes are addressed through interactive lectures, the use of
audiovisual materials, and group dynamics. Three predominant themes are highlighted as the
main results: victimization and blaming attitudes towards the victim; gender disparities in
rights; the role of transgenerationality as an inheritance of domestic violence. Through
qualitative evaluation, the convicts indicate exceeding expectations regarding the project,
viewing the group as a learning opportunity, and understanding the importance of gender
equality. This experience has served as a powerful tool in combating gender-based violence
and a viable resource for preventing recidivism.
Keywords: masculinity, gender, domestic violence, judiciary.

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