O CRISTÃO E A
SOCIOLOGIA
Uma perspectiva cristã
DAVID LYON
ABU
O CRISTÃO E A
SOCIOLOGIA
Uma perspectiva cristã
DAVID LYON
ABU
EDITORA
O Cristão e a Sociologia
Traduzido do original em inglês The Christian and Sociology
Copyright © David Lyon, 1972
Direitos reservados pela
ABU Editora
São Paulo-SP - E-mail:
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Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a permissão por escrito da ABU Editora.
Tradução de Silêda Silva Steuernagel e Lucy Yamakami (capítulo 6)
Revisão de Norio Yamakami e Lucy Yamakami com nova ortografia.
O texto utilizado neste livro é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da Sociedade Bíblica
do Brasil, exceto quando outra versão é indicada.
1. Edição 1996
-
1ª. Reimpressão: 2000 Reimpressão: 2019
2º. Edição - 2008 nova ortografia - 2013
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lyon, David, 1948-.
O cristão e a sociologia : uma perspectiva cristã / David
Lyon; [tradução Silêda Silva Steuernagel e Lucy Hiromi
Yamakami]. -- 2. ed. São Paulo ABU Editora, 2008.
Título original: The Christian and sociology
ISBN 978-85-7055-075-0
1. Fé 2. Sociologia cristã I. Título.
08-07370 CDD-261
Índices para catálogo sistemático:
1. Sociologia cristã: Cristianismo 261
ÍNDICE
Prefácio: Uma abordagem cristã 5
1. Sociologia e fé cristã 7
=11
2. A sociologia da sociologia
3. Quem é que diz isso? 23
4. “Homo Sociologicus"
5. Estatística e salvação
235
35
51
6. As questões dos anos 90 60
7. Sociologia cristã 65
Glossário 69
Outros livros do autor 70
AGRADECIMENTOS
Aos amigos que criticaram e comentaram o manuscrito
em várias fases, e também à minha esposa, Sue, que,
mesmo em avançado estado de gravidez, fez muito
mais do que simplesmente datilografar o texto, a minha
gratidão.
Prefácio
UMA ABORDAGEM CRISTÃ
A sociologia é uma indústria que cresce. A cada ano que
passa aumenta o número de pessoas que ingressam em cursos de
sociologia, quer como uma opção profissional ou como uma com-
plementação a cursos de educação, serviço social, enfermagem ou
administração. Dentre aqueles que são cristãos, muitos chegam
à escola completamente despreparados para enfrentar a sutil e
persistente tendência da sociologia de despertar dúvidas e minar a
fé. São poucos os que têm alguma noção de qual deveria ser a atitude
do cristão frente à sociologia.
Alguns, especialmente aqueles que, por pertencerem a uma
igreja ou a algum tipo de comunidade cristã, estão "protegidos"
contra o mundo, conseguem permanecer na “fé", mas nem sempre
de uma maneira saudável. Uns dividem a vida em compartimentos
estanques: um destinado à fé e outro aos estudos, sacrificando
assim sua integridade. Outros, que outrora já haviam professado
a fé cristã mas que a veem agora completamente abalada, sim-
plesmente a descartam, incapazes de conciliar a fé cristã com os
postulados da sociologia.
O problema nem sempre é de uma crise de fé. Às vezes, os cristãos
veem-se à beira da esquizofrenia, desejando considerar a sociedade
à luz da sua relação com Deus, mas obrigados - por causa de seus
estudos - a olhar para a sociedade a partir de uma ótica inteiramente
antropocêntrica. Sua fé em Cristo e na Bíblia pode até continuar sen-
do mais forte do que nunca. Talvez eles creiam na absoluta relevância
destes para a sociologia mas não têm coragem de afirmar e defender
isto, pois ainda não conseguiram descobrir uma forma razoável de
explicar essa relevância. Por outro lado, alguém pode até transformar
seu trabalho escolar em um sermão, afirmando que Deus é real e que
o quadro que a Bíblia apresenta sobre a humanidade é verdadeiro,
sem nunca chegar a entender, no entanto, a relação que existe entre
5
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
a fé cristã e os pressupostos sociológicos. Esse tipo de comporta-
mento só irá confirmar a opinião dos colegas e do professor, de que
o cristianismo não passa de mero escapismo do mundo real, e esta
poderá acabar sendo a última tentativa deste estudante de "defender
a fé" entre os sociólogos. É preciso refletir seriamente sobre ambos
os aspectos: a fé cristã em relação à sociologia, e vice-versa.
O propósito deste livro é ajudar qualquer pessoa que esteja
enfrentando pela primeira vez o desafio da sociologia. Queremos
mostrar como a própria sociologia se baseia em certas pressuposi-
ções, como os cristãos podem tirar proveito dos seus desafios e lidar
criativamente com eles e como, no devido momento, poderão dar
uma contribuição positiva como sociólogos.
DAVID LYON
6
Capítulo 1
SOCIOLOGIA E FÉ CRISTÃ
Não se pode negar a influência da sociologia sobre o pensamen-
to contemporâneo. Em qualquer que seja o assunto, os sociólogos
se pronunciam com aparente autoridade. Educadores, advogados,
industriais e, obviamente, assistentes sociais, todos se voltam para a
sociologia em busca de uma melhor compreensão da sociedade em
que eles vivem.
O pensamento sociológico afeta definitivamente a qualquer um,
desde o pedreiro e o operário, o menino de rua e o professor, da
mesma forma que afeta catedráticos e alunos dentro da sala de aula
de uma faculdade. Para muitos cristãos, porém, a sociologia constitui
uma ameaça, um dogma pernicioso cujo único papel é confundir e
corromper.
No início, suas verdadeiras cores aparecem meio obscuras, como
se fossem vistas através de um complicado véu de "sociologuês”. No
entanto, uma vez transposto esse véu e realizados os rituais de ini-
ciação, torna-se quase impossível ao estudante retornar ao nível de
consciência antes considerado normal. Agora nada mais parece ser o
mesmo que antes. Nem mesmo, no caso do cristão, a fé.
Mas, afinal de contas, o que é a sociologia e de onde ela veio?
Mesmo nos nossos dias, de sociologia de alto nível, pouca gente
o sabe. Mas ainda assim os sociólogos continuam escrevendo e
falando com aparente autoridade sobre qualquer tipo de assunto.
Parecem afirmar, por exemplo, que as pessoas não possuem um
"eu", mas sim uma sucessão de papéis a desempenhar; ou então que
a religião nada mais é que uma resposta à frustração, à anomia ou
à socialização. Tais pronunciamentos podem produzir em cristãos
um efeito um tanto perturbador. E acaba surgindo uma tensão entre
o comportamento destes nos círculos acadêmicos e em ambientes
cristãos. Ao participar de seminários levam em conta apenas o ser
humano, enquanto que, nas reuniões de estudos bíblicos, embora
7
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
comportem-se como sempre, acabam descobrindo que suas mentes
estão divididas. Continuam se reunindo com outros cristãos em
grupos de oração ou de debates, mas ao mesmo tempo, a despeito
de si mesmos, mantêm uma certa distância de tudo isso, avaliando
em termos psicológicos ou sociológicos tudo o que eles e os outros
estejam fazendo.
Diante disso tudo, estudantes de sociologia cristãos podem
reagir de várias maneiras. Uma delas é trocando de curso, mudando
para história (ou matemática, ou música, seja lá o que for, desde que
tenham ouvido dizer que outros cristãos conseguiram completar
tais cursos sem problemas). Mas isso é apenas adiar o problema: a
cosmovisão sociológica atinge tantas outras áreas hoje em dia que
dificilmente se consegue fugir por muito tempo.
Outra forma de reagir é continuando o curso, mesmo com a
mente dividida: trabalho e religião não se misturam. A sociologia
transforma-se num mal necessário (um meio de obter um diploma),
mas este passatempo "secular" não pode, em hipótese alguma, afetar
a parte “sagrada” da mente, pelo menos no nível consciente. (Nossa
abordagem sobre a natureza da humanidade, no capítulo 4, ajuda,
em parte, a corrigir este tipo de visão.)
Dentre essas alternativas, creio que a melhor é a primeira. Se
cristãos sentem honestamente que lhes falta preparo ou maturidade
para lidar com a sociologia, então talvez seja melhor escolherem
uma outra área de estudos. Mas se é este o seu caso, continue a ler,
por favor: pode ser que este livrinho o encoraje a prosseguir com
seus estudos, encarando a sociologia à luz de sua fé e dependendo
humildemente de Deus.
A segunda alternativa não me parece nada cristã. Separar o
secular do espiritual é negar a Cristo o direito de ser o Senhor abso-
luto de nossa vida. Significa voltar atrás na declaração de rendição
completa que um dia fizemos, como cristãos, em resposta ao chamado
do evangelho. Será que uma pessoa que reivindica o domínio pessoal
de sua própria mente pode igualmente declarar que "Jesus Cristo é
o Senhor"? A separação entre o sagrado e o secular é sempre uma
divisão perigosa e pode levar àquilo que eu chamo de "mundanismo
super-espiritual". Essa é a condição de pessoas que são capazes de
8
Sociologia e fé cristã
repetir os jargões evangélicos nos momentos apropriados e de negá-
los simultaneamente com seu estilo de vida, inclusive suas atitudes
com relação aos estudos. Aceitar a autoridade da sociologia durante
a semana e a autoridade da Bíblia aos domingos é uma manifestação
evidente de uma mente dividida. E, como diz o apóstolo Tiago, a
pessoa de "ânimo dobre" é "inconstante em todos os seus caminhos".
Existe ainda uma razão sociológica para não se agir assim. Dividir a
atuação de uma pessoa de tal forma que esta tenha que desempenhar
um papel "cristão" e outro "sociológico”, estabelecendo uma distinção
entre os dois, é o mesmo que afirmar uma incompatibilidade entre
os dois papéis. Não se pode pensar como cristão ao estudar sociolo-
gia, ou vice-versa. Portanto, essa divisão de papéis implica que não
existe na teoria sociológica lugar para os valores cristãos, ou que a
perspectiva sociológica é irrelevante para a fé cristã.
Uma terceira possibilidade, e a mais lamentável, é que o cris-
tão venha a abraçar a sociologia como uma nova fé que provê
conhecimentos superiores. Ele passa a engolir indiscriminadamente
qualquer coisa que palestrantes, professores e compêndios acadêmicos
coloquem à sua frente, descartando a Bíblia como se esta fosse uma
simples coletânea de documentos humanos.
A última opção (e, a meu ver, a melhor delas) é a do estudante
cristão que estuda a sociologia com uma mente aberta à sabedoria
originada na Palavra de Deus. Os problemas criados pela sociologia
são sempre um desafio e às vezes um “esclarecimento” para a fé cristã,
e como tal devem ser encarados honestamente e não evitados. É esta
atitude que eu gostaria de despertar em você ao ler este livro. Aqui
você não encontrará todas as respostas; mas eu espero que, pelo me-
nos, a natureza das dificuldades se torne um pouco mais clara e que
você venha a se dar conta de que não é o único que tem problemas
com a sociologia.
Talvez o principal conflito entre o pensamento cristão e a
sociologia atual seja a tendência desta última de "relativizar" as coi-
sas. Enquanto o cristão acredita na existência de padrões divinos e
absolutos, a sociologia nega isso, enfatizando a relatividade social e
cultural das normas, valores e crenças. Isso tem uma íntima relação
com aquilo que o sociólogo americano Peter Berger chama de "fator
9
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
desmascarador". Este aparece constantemente nos escritos socioló-
gicos e, caricaturizado, vai mais ou menos assim: "O consenso e os
contos da carochinha dizem que... Mas a sociologia descobre que..."
Na verdade, certos sociólogos parecem sentir um prazer especial em
desarmar as pessoas e desmascarar seus mitos, mas por trás desse
aparente conflito de valores jaz um conflito entre sistemas inteiros
de pensamento.
O cristão e o sociólogo têm pontos de partida muito diferen-
tes na sua maneira de pensar, e suas respostas diferem totalmente
diante de questões como “O que é possível conhecer?" e "Pode-
mos saber alguma coisa?". Assim, após esboçarmos as origens do
pensamento sociológico, convém retornarmos a esta questão do
conhecimento, pois é aqui que começam todas as divergências e é
aqui que os desafios têm que ser encarados. Consideraremos, pois,
as duas áreas fundamentais de debate entre o cristão e o sociólogo: a
imagem humana e a natureza da religião.
Antes de tudo, convém notar que a sociologia não é um bloco
monolítico. Existe nela uma grande diversidade e variedade: as noções
sociológicas são tão inúmeras quanto os sociólogos! Trataremos aqui
daquilo que geralmente se deveria aceitar como uma interpretação
sociológica das pessoas e das coisas. Falaremos sobre “o cristão e a
sociologia" da mesma forma como debateríamos “o cristão e a filo-
sofia", reconhecendo que tais disciplinas estão sujeitas a mudanças
e a desenvolvimentos, e também que há movimentos e indivíduos
que têm desempenhado um papel singular nesse desenvolvimento e
que merecem, portanto, atenção especial.
10
10
Capítulo 2
A SOCIOLOGIA DA SOCIOLOGIA
Se quisermos compreender a importância da sociologia hoje,
temos que estudar suas origens intelectuais, políticas e sociais. Não
basta dizer que a sociologia consiste na tentativa de "compreender
a sociedade”, pois, embora isso seja de fato uma verdade, não é,
contudo, um fim em si mesmo. Sociólogos, por mais abstratas que
pareçam as suas teorias, desejam compreender a sociedade na qual
se encontram, de tal forma que possam lidar com ela, e quem sabe
controlá-la ou até mudá-la¹. A própria história da sociologia é uma
evidência disso.
A sociologia é um produto direto do humanismo e do ceticismo
do século XIX e deve ser vista como parte dessa tradição. Aqueles
anos desencadearam diversos problemas novos e específicos que até
então não faziam parte do universo de preocupações humanas. O
impacto da industrialização e da revolução na Europa teve implica-
ções tão vastas para todos os setores da sociedade que gerou confusão
e desorientação total. A própria base da sociedade se abalou com o
surgimento de "classes sociais” inteiramente novas; antigos valores,
costumes e alianças foram abandonados, dando lugar a novas ideias,
estilos de vida e instituições. E foi como resposta à necessidade
sentida de uma total reconstrução social diante dessa convulsão do
século XIX que surgiu a sociologia. Mas até mesmo os sociólogos
pioneiros foram diretamente envolvidos nesse cataclismo, sendo
radicalmente afetados por ele.
REVOLUÇÃO
Vamos começar dando uma olhada na revolução que ocorreu na
França no final do século XIX. Foi a primeira revolução na história a
basear suas ideias na nova teoria da "soberania popular”. A vontade
do povo, em oposição à vontade de Deus ou do rei, tornou-se o fator
predominante. O argumento era que o povo devia se envolver no
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O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
processo político para que sua vontade pudesse ser conhecida e posta
em prática, a fim de que algum dia se pudesse alcançar "Liberdade,
Igualdade e Fraternidade”. Como, porém, se poderia determinar a
vontade do povo, e como integrar as massas no processo de decisão?
Essas questões detonaram uma avalanche de teorização social sem
precedentes na história.
A "soberania popular" trouxe consigo um novo senso de
identidade (um enorme grupo de pessoas vivendo no mesmo
território, sob uma mesma bandeira) e uma nova ideologia: o
nacionalismo. Não podemos esquecer que há mais de cem anos a
Itália e a Alemanha, por exemplo, já funcionavam como nações-
estado. Esse sistema moderno era mais uma coisa que precisava ser
compreendida e explicada. O alcance do estado abrange a vida de
todos os membros da sociedade e tem uma enorme capacidade
de influenciar e manipular tanto indivíduos como famílias e de-
mais grupos sociais. A burocracia necessária para fazer funcionar
uma nação-estado era uma novidade, e o sociólogo alemão Max
Weber (1864-1920), explorou tão profundamente essa área em
seus estudos que ainda hoje é citado no início de qualquer debate
sobre burocracia. Além disso, poderíamos certamente dizer que o
pensamento que deu início às nações-estado teve continuidade na
ideia dos "sistemas sociais", a grande preocupação macroscópica de
muitos sociólogos, especialmente dos americanos. Mas acho que
estamos nos antecipando.
INDUSTRIALIZAÇÃO
Enquanto o espírito da revolução varria a Europa, ocorria
simultaneamente uma massiva revolução tecnológica, ou, mais
precisamente, uma evolução tecnológica, com o emprego de novos
métodos na produção. Uma vez mais, o impacto foi forte e aparente-
mente irreversível. Os primeiros escritores sociológicos começaram a
se aperceber de algumas das implicações sociais da industrialização e
lançaram as bases para o estudo sistemático dos efeitos desta na vida
social humana. Os sociólogos de hoje continuam construindo sobre
essas bases, ao estudarem, por exemplo, o impacto da tecnologia no
lar. Grande parte da pesquisa sociológica tenta avaliar o efeito da
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A sociologia da sociologia
televisão nos lares, do carro na vida da família e da automatização
de várias tarefas domésticas sobre a dona de casa².
Falar meramente do efeito social direto das máquinas é, po-
rém, apenas uma parte da história. Uma consequência muito mais
duradoura da industrialização foi a criação de uma sociedade de
trabalhadores urbanos. Isso, mais do que qualquer outro evento, tem
dado muito mais impulso ao desenvolvimento da teoria sociológica e
continua sendo a preocupação fundamental de muitos sociólogos nes-
te final do século XX. A divisão entre "lar” e “trabalho", por exemplo,
foi registrada a primeira vez pouco depois do surgimento do "sistema
de fábricas". Deu-se uma divisão entre a “família” e a "economia"; ou,
dito de uma outra forma, a família se transformou numa unidade
predominantemente consumidora, ao invés de produtora. Segundo
alguns, desde então a família foi perdendo cada vez mais suas funções.
Como cristãos, deveríamos analisar e colocar à prova afirmações desse
tipo, pois elas constituem hoje uma das principais áreas de debate.
Outras questões relacionadas com isso e que a sociologia tomou sob
sua égide foram a sociedade "pré-industrial" (e agora, naturalmente,
a sociedade "pós-industrial"!), a teoria da organização, as relações
industriais e um sem-número de outras questões, quase sempre re-
lacionadas com o efeito social da industrialização e da urbanização.
Vários pensadores importantes, como Owen, na Inglaterra, e
De Toqueville, Fourier e Comte, na França, tentaram solucionar
esses problemas com teorias que variavam do realismo à utopia.
Robert Owen (1771-1858), por exemplo, tentou experimentos na
área do socialismo industrial em sua famosa obra New Lanark Mills.
Já Fourier (1772-1837) sonhava com "falanges", cada uma composta
de quatrocentas famílias e que seriam comunidades cooperativas
baseadas na divisão do trabalho. No sistema de Fourier (que nunca
chegou a acontecer), até crianças de 5 anos de idade deveriam tra-
balhar, aproveitando na função de catadoras de lixo sua tendência
para a sujeira!
Mas foi provavelmente Karl Marx (1818-1883) quem deixou
a influência mais marcante nesta área. Ele percebeu muitas caracte-
rísticas da sociedade industrial que haviam sido negligenciadas ou
talvez mal interpretadas por outros pensadores. Marx acreditava que
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O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
no sistema "capitalista" de produção os operários não passavam de
escravos assalariados, pois tudo que podiam fazer era vender mão-de-
obra aos seus empregadores. Eles não tinham nenhum controle sobre
suas horas de trabalho ou sobre aquilo que produziam. Isso gerava
um distanciamento entre o produto e o trabalhador, entre este e o
empregador e, com o efeito fragmentador resultante da subdivisão
de uma tarefa em uma porção de pequenos trabalhos repetitivos,
distanciamento também dos colegas de trabalho. O termo mais apro-
ximado ao equivalente usado por Marx para esse distanciamento é
"alienação". Embora fosse pouco provável que o próprio Marx viesse
a subscrever um “determinismo econômico" radical, muitos de seus
seguidores têm negligenciado outros aspectos mais "humanísticos"³
da sua obra, introduzindo em suas teorias socioeconômicas uma visão
distorcida do ser humano. Dito isso, o "fator" econômico continua
sendo o componente crucialmente importante do "evangelho" de
Marx. Foi esse fator que o levou a declarar, em 1847, diante de um
bando de cartistas e sindicalistas, que a história humana nada mais é
que história da luta de classes entre trabalhadores alienados e seus
empregadores, ou entre servos e senhores ou seja, o resultado do
conflito entre diferentes formas de se conduzir uma economia.
A industrialização teve muitos outros efeitos. Ela reuniu sob um
mesmo teto mais trabalhadores do que em qualquer outra economia
anterior. Chegaram a especialização e a mecanização. As pessoas
passaram a experimentar novos níveis de relacionamento umas com
as outras (entre colegas de trabalho, entre gerentes e trabalhadores
ou entre gerentes e proprietários) e também com as máquinas.
Divergências de interesses geralmente resultavam em conflitos, e a
resolução dos conflitos e a melhora das condições frequentemente
têm catalizado o desenvolvimento do pensamento social4.
Havia na Inglaterra uma tradição de "investigação e legis-
lação social", ligada a nomes como os de Sidney e Beatrice Webb
(e à Sociedade Fabiana), Charles Booth (1840-1916) e Seebohm
Rowntree (1871-1954). Todos eles usavam material recheado de
estatísticas sobre a situação de pobreza e miséria das áreas urbanas,
como instrumento de pressão em busca de uma legislação que levasse
em conta as condições de trabalho, habitação, saúde pública e assim
14
A sociologia da sociologia
por diante. A combinação dessa tradição com outra mais filosófica
fez da Escola de Economia de Londres a pioneira da sociologia na
Inglaterra. A tradição de estudos comunitários na Universidade de
Chicago teve efeitos parecidos nos EUA.
A sociologia se desenvolveu, portanto, como uma resposta
à desinstalação da vida social provocada pela revolução e pela
industrialização no século XIX. Mas por que razão ela assumiu as
formas específicas que nós vemos hoje, e como foi que ela acabou
alcançando um status tão importante?
DO ILUMINISMO AO EVOLUCIONISMO
As origens intelectuais da sociologia remontam ao “Ilumi-
nismo” do século XIX. Qualquer explicação sobrenatural para
qualquer fenômeno observável, inclusive os da vida em sociedade,
era considerada inválida, e a sociedade passou a ser estudada como
uma parte da natureza. Foi esta forma de pensamento, nova e radical,
que proveu o pano de fundo para as mudanças sociais, econômicas
e políticas do século XIX. A Revolução Francesa gerou um grande
otimismo, levando muita gente a pensar que a humanidade era capaz
de transformar completamente a sociedade por suas próprias forças,
sem qualquer referência a Deus; e o surgimento, no decorrer daquele
século, da "ciência" como sendo supostamente a chave para todos
os mistérios do mundo e do universo veio confirmar esta ideia em
muitas mentes.
Qualquer que tenha sido a proporção real de verdadeiros cren-
tes cristãos durante o século XIX, não há dúvida de que houve uma
mudança de crença dentro da sociedade como um todo. Ao lado da
industrialização e da urbanização, que já vimos em termos gerais,
houve uma secularização das estruturas da sociedade. As instituições
e a prática religiosa (como, por exemplo, a crença de que a família
é uma unidade "dada por Deus") foram pouco a pouco perdendo
o significado social. O pensamento religioso convencional também
perdia a aceitação social. A interpretação religiosa (principalmente a
judeu-cristã) foi descartada, ou pelo menos já não era mais conside-
rada necessária em debates sobre a história e a sociedade. Embora,
em uma visão retrospectiva, se possa pensar que certos ensinamentos
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O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
considerados "cristãos” no século passado não eram plenamente bi-
blicos, a verdade é que já houve uma época em que se aceitava como
guia para a vida social uma cosmovisão bíblica. Aquela cosmovisão
não era simplesmente descartada, como costuma acontecer hoje. No
entanto, na década de 1870, na Inglaterra, e mais tarde em todo o
continente europeu, foi largamente difundida uma nova interpretação
"ortodoxa" do mundo e dos acontecimentos, a qual, na falta de uma
expressão melhor, poderia ser chamada de cosmovisão "científica”.
Veremos, no entanto, que essa nova visão de mundo em nada era
menos "religiosa" do que a anterior. Tratava-se apenas de uma mu-
dança de crença.
Observando as mudanças que se apoderavam da Europa, as
pessoas viam que a ciência tinha muito a desempenhar na formação
das novas nações-estado, especialmente em se tratando das inovações
tecnológicas. Estava-se em época de crise e comoção social e era
preciso encontrar uma explicação coerente para o que estava acon-
tecendo. Se a ciência tinha sido capaz de produzir o mundo que ali
se via, então quem sabe ela mesma pudesse explicá-lo. E, à medida
que o mundo ia sendo cada vez mais domado pela ciência, crescia a
obsessão com o "científico". A essa crença na ciência como capaz de
prover respostas para todas as questões por ela consideradas válidas
nós chamaremos de "cientismo".
O exemplo mais claro de cientismo na teoria sociológica é a
obra do homem que criou a palavra “sociologia”: Augusto Comte
(1798-1857). Ele via a história como um todo unificado, embora
subdividido em etapas. Acreditava estar vivendo em uma época em
que uma etapa, a “teológica e militar”, estava morrendo, enquanto
que nascia uma outra, a "científica e industrial". Esta última etapa ele
chamava de "positiva", querendo dizer com isso que a ciência alcança-
va resultados "positivos" "puramente a partir dos fatos". Segundo ele,
o homem pertencente à etapa positiva não podia acreditar em "reve-
lação” mas, mesmo assim, precisava de uma religião. Comte fundou,
portanto, a bizarra e ritualista Religião da Humanidade. A tendência,
hoje em dia, é considerar esse aspecto como uma excentricidade do
século XIX, mas a verdade é que a Religião da Humanidade tinha
uma íntima relação com a sociologia de Comte. Ele achava que sua
16
A sociologia da sociologia
sociologia era racional e empírica, porém ignorava o embasamento
metafísico (ou religioso) em que se firmavam tanto a sua "religião
científica" quanto a sua sociologia. Era uma institucionalização do
processo descrito pelo apóstolo Paulo em Romanos 1:25, onde as
pessoas estão "adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador".
Somente nos últimos anos é que um grande número de pen-
sadores começou a admitir que por detrás de toda "ciência" existe
uma “metaciência” e que por detrás de toda hipótese científica há
um "paradigma" ou um quadro de suposições (também conhecidas
como "pressuposições"). Comte pressupunha certas "verdades"
que ele considerava evidentes por si mesmas, como, por exemplo,
a falsidade da religião sobrenatural, a inevitabilidade do progresso
moral e tecnológico e a eficácia do seu próprio método de produzir
resultados confiáveis.
Comte é um importante elo entre a sociologia dos "pioneiros"
e a sociologia de hoje. Sua filosofia positiva teve um sucessor no
século XX, o "positivismo lógico”, que levou avante sua doutrina
de que o ser humano só pode ter conhecimento dos fenômenos
tentando determinar se certas declarações têm sentido ou não. O que
une as duas teorias é o fato de ambas descartarem desde o início a
categoria da "revelação" como fonte de verdadeiro conhecimento.
A importância disso tudo para nós é que o positivismo lógico é um
aliado íntimo do empirismo, que afirma rejeitar todo conhecimento
a priori, apoiando-se unicamente na experimentação (com base em
fenômenos). Esses oponentes à "revelação" afirmariam, portanto, que
a Bíblia nada pode dizer acerca da natureza humana ou da sociedade.
O positivismo e o empirismo têm exercido uma grande influ-
ência (senão a maior de todas) no desenvolvimento da sociologia do
século XX. Isso fica ainda mais óbvio no dogma "liberdade de valores",
ou "isenção de valores" (interpretado como "neutralidade ética”), que
foi, durante as décadas de 40 e 50, uma das principais motivações
da sociologia empírica, especialmente a americana. A ideia original
surgiu da wert-frei de Max Weber, mas acabou virando uma justifi-
cativa sociológica para ignorar questões sociais cruciais. Justamente na
época em que irrompia um forte movimento em busca da igualdade
entre negros e brancos, verificava-se na Associação dos Sociólogos
17
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
Americanos uma conspicua falta de interesse pela sociologia da raça.
Assim, ironicamente, a sociologia se isolou, afastando-se da própria
sociedade que ela deveria estudar.
Voltemos, porém, por um momento para o século XIX. Dentre
as causas da crise de mentalidade daquela época, a relação entre
religião e ciência foi talvez a mais importante, e como "crise" ela
virou o tema principal de muitos dos grandes pensadores sociais.
Todos eles queriam ser considerados cientistas, pois achavam que o
pensamento científico era o único método preciso, eficiente e válido.
Durkheim (1858-1917), por exemplo, que era professor de filosofia,
queria que a sociologia estabelecesse uma moralidade não-religiosa,
agora que a religião tradicional estava sendo desacreditada. Naqueles
dias de otimismo, a ciência parecia dispor de todas as respostas para
todos os problemas da vida.
Seria tolice ignorar, a esta altura, o impacto provocado pelas
ideias evolucionistas sobre o pensamento do século XIX¹º. A Origem
das Espécies foi publicada em 1859. Quando veio à tona a ideia de
que o ser humano poderia ser de alguma forma relacionado com o
macaco, era de se imaginar que o "Homem” se sentisse tem-
porariamente destronado. No entanto, não se podia reprimir por
muito tempo a fé otimista dos vitorianos no ser humano, e logo
se sugeriu que nós poderíamos alterar o curso da assim chamada
“evolução", dando-lhe um rumo progressivo. Isto ficou conhecido
como "darwinismo social", sendo Herbert Spencer (1820-1903) seu
principal expoente¹¹.
Como era de se esperar, o sistema de Comte, essencialmente
evolucionista, acabou desembocando na Religião do Humanis-
mo; e o Estudo da Sociologia, de Herbert Spencer, publicado em
1874, completou seu trabalho sobre um sistema de filosofia social
evolucionária que viria a substituir qualquer pensamento anterior,
inclusive, naturalmente, a teologia¹². Confirmava-se o velho ditado
de Pope: "Não ouses esquadrinhar a Deus; o estudo apropriado da
humanidade é o homem." Agora a principal preocupação consistia
em compreender a condição do ser humano, e o ponto de vista
evolucionista-progressivo reforçava a crença de que o homem é
basicamente bom e tem o potencial necessário para se aperfeiçoar e
18
A sociologia da sociologia
governar a si mesmo sem qualquer ajuda ou autoridade externa a
não ser, é claro, da própria ciência.
A atitude científico-positivista, que ainda hoje caracteriza gran-
de parte da sociologia, é uma das principais raízes humanistas desta
disciplina e tem levado a uma forte ênfase na observação e nos dados,
especialmente entre aqueles (geralmente na área da psicologia social)
que se consideram behavioristas. Essa atitude, que, convém lembrar,
surgiu a partir da crença de que a ciência veio substituir a religião,
provavelmente contribui para a aparente arrogância e autoritarismo
de algumas formas da sociologia atual. Ainda hoje existem sociólogos
que se comportam como se fossem os sumos sacerdotes de sua religião
e que saem por aí despejando sua sabedoria com unção e segurança
proféticas, cantando os mantras sagrados do "aburguesamento" ou da
"etnometodologia"!
A SOCIOLOGIA HOJE
A fé cega na ciência, tão característica dos primeiros pensado-
res, tem sido de certa forma suavizada pelas guerras e pelo imperia-
lismo tecnocrata do século XX. Percebe-se no mundo sociológico
uma certa onda de insatisfação com a ingenuidade manifestada
no ato de se fazerem pronunciamentos científicos "definitivos"
acerca da sociedade, ou de se sugerir que as “leis" sociais existem
na sociedade da mesma forma que "leis" como a da gravidade
existem na natureza. Há também uma conscientização cada vez
maior de que os sociólogos, tanto quanto qualquer outra pessoa,
fazem especulações acerca do ser humano e da sociedade e partem
de um juízo de valores específico, que naturalmente influencia suas
percepções e sua maneira de pensar. Por exemplo, a afirmação que
diz que somos fundamentalmente racionais (ou irracionais) ou que
a sociedade é inerentemente estável (ou instável) é na realidade uma
cosmo-hipótese. É, em outras palavras, uma pressuposição ou crença
acerca da natureza das coisas, determinada, em última instância,
pela própria posição religiosa da pessoa. Declarações dessa natureza.
são inverificáveis e devem ser aceitas por algum tipo de fé intuitiva.
Alguém poderia dizer, assim como Marx, que nosso estado "natural"
é o de "espécie existente” (ou seja, ele está em atividade constante,
19
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
caracterizada pela liberdade e pela determinação); contudo, isso não
se pode observar em termos empíricos. É uma questão de fé, uma
pressuposição.
A antiga noção de "liberdade isenta de valores preconcebidos",
tal como usada pelos sociólogos americanos e por alguns britânicos,
significando que eles eram imunes às pressuposições, podendo,
portanto, manter a devida imparcialidade e distanciamento cien-
tífico, é puro mito. Todas as categorias sociológicas são inerente e
inevitavelmente "carregadas de valores". Vamos considerá-las por
um momento. Quer sejam elas áreas de preocupação sociológica,
como a família, a indústria ou a educação, quer sejam conceitos,
como o "desvio" ou a "socialização", estão impregnadas de posturas
ou de conflitos de valores. A tarefa da sociologia deve começar com
o reconhecimento destes fatos.
Na década de 70, os "sociólogos da sociologia" 13 nos encorajavam
a teorizar de consciência própria, não porque não tenhamos valores
preconcebidos, mas sim por basearmos deliberadamente os nossos
argumentos em um fundamento de pressuposições explícitas. Talvez
a antiga crença de que a revelação é irrelevante continue sendo mais
forte do que nunca; mas desde o surgimento de uma sociologia tão
despudoradamente comprometida, apareceu uma nova oportunidade
para os cristãos, dando-lhes a chance de mostrar que suas pressuposi-
ções correspondem àquilo que se pode observar na sociedade.
A fim de compreendermos qual deveria ser a nossa reação, é
melhor pararmos um pouco e remontar-nos às origens sociais e in-
telectuais da sociologia, que já vínhamos considerando antes. Vimos
que a sociologia é uma tentativa de compreender a sociedade e de lidar
com ela, controlando-a ou transformando-a; vimos também que ela
nasceu no século XIX como fruto da revolução, da industrialização
e da mudança de crenças. As preocupações macroscópicas (como,
por exemplo, as grandes migrações dos trabalhadores rurais para a
zona urbana) surgiram como resultado do enorme grupo social que
constituía a nação-estado. Já as preocupações microscópicas, que
geralmente têm a ver com habitação e condições de saneamento,
resultaram das tradições "reformistas" da Inglaterra vitoriana e da
América do Norte na década de 20. Portanto, a sociologia, tal como
20
20
A sociologia da sociologia
se desenvolveu, é fundamentalmente humanística e científica. Os
sociólogos de hoje, no entanto, vão pouco a pouco se apercebendo de
duas importantes verdades: primeira, que os modelos mecanicistas da
ciência natural não podem ser transferidos indiscriminadamente para
as ciências humanas ou sociais (pois são, geralmente, inapropriados);
e, depois, que sociólogos deixam inevitavelmente transparecer em
seus trabalhos certas suposições e pressuposições 14.
Por várias razões, muitos cristãos do século XIX deixaram de
perceber o desafio do mundo intelectual; essa é uma tendência que
nós temos que tentar reverter. Em primeiro lugar, existem muitas
questões que os cristãos ainda precisam considerar. Por exemplo, a
sociologia tem muito a dizer acerca das mudanças sociais; no entanto,
é evidente que, como cristãos, pouco nos temos apercebido de quanto
nos afetam essas mudanças, e muito menos conseguido elaborar uma
visão cristã com relação a elas. Em segundo lugar, precisamos desco-
brir quais são e onde estão os conflitos entre o pensamento cristão
e o sociológico. Precisamos entender que muito das pressuposições
da sociologia histórica e contemporânea entra em contradição com
as posições cristãs e é aqui que devemos desafiar as ideias prevale-
-
centes. Um outro exemplo é a sociologia do relativismo, que produz
teorias magníficas acerca da família e do estado mas desconhece
qualquer ponto de referência fora destes. Os sociólogos podem até
escolher, para fins de análise, pontos de referência arbitrários dentro
da própria sociedade, e propor ideias luminosas; mas jamais poderão
dar a elas um sentido definitivo. É bem verdade que o nosso conhe-
cimento corresponde à nossa situação de simples criaturas. Porém
o nosso Criador nos revela verdades (inclusive a verdade acerca da
sociedade) que não dependem das situações. Isso nós ainda veremos
no capítulo seguinte.
Cabe aqui uma palavra de advertência. Embora muitas vezes
nós, como cristãos, tenhamos que discordar dos sociólogos no que
concerne a pressupostos básicos, isso não significa que toda teoria
sociológica seja necessariamente inválida. Longe disso! Existem na
área da sociologia excelentes trabalhos feitos por não cristãos e cujos
resultados na sociedade certamente agradam a Deus. Muitas reformas
sociais que foram fruto direto da obra de sociólogos apenas podem
21
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
ser descritas como algo que nos ajudou a viver da forma para a qual
Deus nos destinara. Ainda temos, porém, uma longa estrada a per-
correr. A sociologia da sociologia mostra-nos pelo menos uma coisa:
que a nossa compreensão da sociedade está em um estágio muito
elementar e que existe para os cristãos uma nova chance de dar uma
contribuição a partir de uma posição claramente derivada da Bíblia.
NOTAS
1 Ver R. Aron, The Main Currents in Sociologial Thought (Penguin, 1969). Os dife-
rentes desejos de mudar ou controlar a sociedade produziram sociologias diferentes.
2 Ver, por exemplo, J. D. Halloran, The Effects of Television (Panther, 1970), e Judy
Wajcman, Feminism Confronts Technology (Polity, 1991).
3 Humanistas: é a única vez que essa palavra é usada no sentido de "reconhecer a hu-
manidade e dignidade do ser humano". Agora em diante, o termo descreve a filosofia
que coloca os interesses humanos acima de tudo, rejeitando o sobrenatural. Há uma
discussão sobre a influência de Marx no pensamento social em David Lyon, Karl
Marx: A Christian Assessment of His Life and Thought (Lion, IVP, Eerdmans, 1979).
4 ○ sociólogo-teólogo francês, Jacques Ellul, escreveu sobre mecanização em The
Technological Society (Vintage Books, 1973).
"Os filósofos humanistas franceses criam que tinham "iluminação" quando substituíram a
revelação pela razão. Ver Bob Goudzwaard, Capitalism and Progress (Eerdmans, 1980).
6 Ver David Lyon, The Steeple's Shadow: on the myths and realities ofsecularization
(SPCK/Eerdmans, 1985).
'Especialmente desde a publicação em 1962 de T. Kuhn, The Structure ofScientific Re-
volutions (University of Chicago Press, 2a edição, 1970). Há uma discussão cristã disso
em Nicholas Wolterstorff, Reason Within the Bounds of Religion (Eerdmans, 1976).
* Essa filosofia, que procura definir quais as afirmações que têm sentido, afirma que a
linguagem religiosa é sem sentido.
9 Ver A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (Penguin, 1971) onde se encontra uma
exposição desse ponto de vista.
10 Ver J.W. Burrow, Evolution and Society (Cambridge, 1965).
11 Ver R. Hofstadter, Social Darwinism in American Though (Beacon, 1955).
12 Ver D. Lyon, "Sociology and Secularization", Faith and Thought, 102.1, 1975.
13 Por exemplo, A. Gouldner, For Sociology (Allen Lane, 1973) ou R. Friedrichs, A
Sociology ofSociology (Free Press, 1970).
14 Este assunto é discutido em mais profundidade em David Lyon, Sociology and the
Human Image (IVP, 1983) and C.S Evans, Preserving the Person (Baker, 1980).
72
22
Capítulo 3
QUEM É QUE DIZ ISSO?
"Sociólogo é um sujeito que vive perguntando:
'Quem é que diz isso?" "(Peter Berger)
A sociologia tende a desequilibrar as pessoas porque esquadri-
nha coisas que nós tomamos por certas, questionando-as profun-
damente. Muitas suposições confortadoras caem por terra debaixo
do fogo cerrado dos sociólogos, e isso pode ser muito desgastante,
principalmente para quem está despreparado. Nesta seção nós con-
sideraremos uma área vagamente definida da sociologia, conhecida
como "sociologia do conhecimento” e que tenta enquadrar todo
conhecimento em seu contexto social. Esse exercício (de "enquadrar
todo conhecimento") parece bastante inócuo, até nos apercebermos
de que a conclusão implícita em tal estudo é geralmente que, já que
o conhecimento pode ser enquadrado, ele é falso, ou pelo menos
apenas socialmente relativo.
Tomemos como exemplo um verso extraído de All things bright
and beautiful("Tudo que é brilhante e lindo"), um hino inglês muito
conhecido. Neste verso, geralmente omitido, vislumbramos um rico
latifundiário do século XIX que, acompanhado de seus submissos
e respeitosos empregados, canta com todo entusiasmo na igrejinha
da vila:
O homem rico em seu castelo,
O homem pobre ao seu portão,
Deus os criou, nobre e humilde,
E ordenou sua condição.
O charme bucólico da cena poderia ser rudemente arrasado
pelo sociólogo do conhecimento, que iria alegar que o fazendeiro, o
autor do hino e o vigário estavam se valendo do conteúdo do hino
para justificar suas posições, e que este funcionava para manter o
23
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
status quo hierárquico. Aos trabalhadores que cantavam se deixava
bem claro que eles foram divinamente designados para nunca irem
além da sua posição social, frustrando-se assim qualquer aspiração
revolucionária em potencial. O fazendeiro, por sua vez, simplesmente
teria garantida sua segurança como tal.
Desconfio que possa haver uma boa parte de verdade no exemplo
acima, que ilustra muito bem o conceito de "ideologia", tão importan-
te para a sociologia do conhecimento. O autor do hino é o ideólogo;
ele age como porta-voz de uma maneira particular de enfocar as
coisas a serviço de certos interesses da sociedade. Quando se fala em
sociologia, geralmente se pensa em termos políticos; mas ela também
pode ser religiosa, mitológica ou intelectual. O que importa é que se
dê uma justificativa ou explicação para alguma ação, reação ou estado
de coisas. A maioria das vezes, em contexto sociológico, a noção de
ideologia implica uma distorção. Isto acontece particularmente em se
tratando da tradição marxista, onde a consciência burguesa tem uma
visão distorcida da realidade, baseada em sua posição socioeconômica.
Existem variações no uso do conceito de ideologia; daí a neces-
sidade de se elaborar, a partir do contexto, o que se quer dizer em um
caso específico. O sociólogo muito provavelmente estaria se referindo
a um muro de defesa que um determinado grupo levantaria à sua
volta a fim de justificar suas atividades.
Por exemplo, na década de 1930, a Austrália e a Nova Zelândia
viram-se em condições de exportar para a Grã-Bretanha, a preços
muito baixos, grandes quantidades de manteiga. De modo que os
produtores de laticínios da Inglaterra, que não puderam concorrer
com o preço mais baixo dos importados, de repente se viram obri-
gados a procurar outra saída para colocar o seu excedente de leite.
Tiveram a ideia de dar "leite escolar" de graça para as crianças mas
a "ideologia" que eles usaram foi seu desejo de ver as crianças pobres
melhor nutridas.
Um exemplo mais “político”, que nos mostra duas facetas da
ideologia, poderia ser o fato de se ensinar, nos países anteriormente
comunistas, que a supressão das religiões supersticiosas é um pré-
requisito necessário para o progresso. Neste caso se está fazendo uso de
uma ideologia (no sentido não sociológico de "um sistema de ideias")
24
Quem é que diz isso?
para tentar transferir as tendências religiosas do povo, colocando-as
a serviço do Estado. Num sentido sociológico, porém, isso poderia
ser visto como uma ideologia distorcedora, onde se racionaliza um
expediente político a fim de servir a interesses criados (neste caso, os
do Estado). Assim, falsas ideias poderiam ser aceitas como válidas
por um grande número de pessoas e, argumentaria o sociólogo, a
falsidade delas só poderia ser revelada através da análise do contexto
social em que se manifestassem.
Hoje em dia é moda incluir no estudo da sociologia do co-
nhecimento tudo que passe por conhecimento dentro da sociedade.
Em outras palavras, qualquer tipo de senso comum ou de sabedoria
herdada, que sirva para orientar ações na vida cotidiana, torna-se
importante para os sociólogos, que tentarão relacioná-los com as suas
raízes e explicá-los em termos de seu contexto social.
É impossível, pois, escapar ao escrutínio dos sociólogos do
conhecimento. Nada foge ao exame e a religião é um dos primeiros
alvos. (Isto foi uma consequência direta da situação descrita no capí-
tulo anterior, onde a "ciência", durante o século passado, acreditava
que todas as coisas podiam ser explicadas de uma forma científica.)
Estudantes cristãos de sociologia podem ficar bastante desconcertados
ao descobrir que, ao que parece, suas crenças religiosas podem ser
explicadas sem nenhuma possibilidade de refutação, tanto em termos
do contexto social das origens de sua religião quanto das forças sociais
que os levaram ao seu próprio comprometimento.
O sociólogo do conhecimento pode apontar a opressão romana
da nação judaica no tempo de Cristo e também o fato de que os judeus
já tinham um "mito do Messias" como fatores que tornaram muito
mais fácil a adesão popular à figura "carismática" de Jesus. O infeliz
episódio que culminou na crucificação deste como um revolucioná-
rio que ameaçava a estabilidade do domínio imperial em Jerusalém,
logo foi compensado com o "mito da ressurreição", engenhosamente
arquitetado e que reuniu os até então heterogêneos seguidores de
Jesus sob uma bandeira emocional comum.
Seguindo esse raciocínio, é muito fácil explicar a "conversão"
em termos de conformismo de grupo no seio da família ou da escola,
ou em termos de uma busca por reconhecimento ou status social
25
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
motivada por uma necessidade particular. Uma vez "convertido" o
indivíduo, a sua permanência dentro da igreja não passaria de uma
simples resposta à ideologia da "comunhão fraternal", solidificada
,
pela confissão comum (que já virou adesivo): "Jesus vive hoje!"
No entanto, no ocidente, a maioria das pessoas hoje vive no
"mundo dado", que tomam por certo, o qual, embora possa conter
algumas ideias cristãs, é fundamentalmente alienado do cristianismo
bíblico. É essa cosmovisão, com uma enorme variedade de pressu-
postos "auto-evidentes", que os sociólogos estudam. Contudo, o
sociólogo do conhecimento sempre irá argumentar que a cosmovi-
são é constrangida socialmente. Em outras palavras, esse mundo da
"realidade" que se toma como certo é socialmente construído e não
passa de um produto da sociedade. Mesmo assim, ironicamente, os
próprios sociólogos geralmente não possuem nenhum ponto de refe-
rência fora da sociedade. Tudo que eles podem fazer é conscientizar
as pessoas daquilo que elas (na forma de “sociedade") têm ensinado
a si mesmas! Na prática, eles sempre procuram fazer mais do que
isso, porque, na verdade, eles mesmos se apegam a certos valores que,
embora geralmente implícitos, direcionam os seus estudos.
QUEM DIZ É A SOCIEDADE
O sociólogo do conhecimento pergunta “quem é que diz isso?",
desafiando assim qualquer fonte de "autoridade". Então ele passa
a “esclarecer” a pessoa que ousou formular um juízo definitivo,
explicando-lhe que, na verdade, "quem diz é a sociedade". Por que
é que nós pensamos da forma como pensamos? Para o sociólogo do
conhecimento, a resposta sempre se encontra na sociedade. Qualquer
que seja a crença específica, sempre se pode pesquisar sua origem social
e provar ser ela um produto do seu tempo e contexto, reforçado pela
aceitação social e pelo fato de que ela parece dar certo.
Esse espírito questionador tende a criar no sociólogo um certo
cinismo e descrença. Receia-se emitir qualquer juízo positivo, defini-
tivo ou categórico na presença dele, por medo de se tornar objeto de
análise social e de ser enquadrado em alguma categoria, tipificando
um conservadorismo insuportável. Se, por exemplo, expressamos
o nosso contentamento pelo fato de um amigo ter conseguido um
26
Quem é que diz isso?
novo emprego, o sociólogo pode virtualmente registrar o evento
como sendo perfeitamente previsível em termos de aspiração social,
conformidade com a ética de grupo e a reação lógica de aspirações
comprometidas com os ideais burgueses.
QUEM DIZ É A SOCIOLOGIA
Embora, na minha opinião, a sociologia prefira ignorar certas
características da vida social humana com as quais deveria se preo-
cupar, ainda assim os sociólogos fazem grandes reivindicações. Isso
se torna particularmente evidente na sociologia do conhecimento,
cujo espectro, como eu já disse, abrange tudo que passe por conheci-
mento na sociedade! A maioria das disciplinas assume, vez por outra,
posturas totalitárias no que concerne a sua matéria, e a sociologia é
apenas a última a fazer isso. Tais posturas são geralmente implícitas,
mas quando se trata de “assessorar” no campo da indústria, da edu-
cação ou em alguma outra área, elas costumam ser bem dogmáticas.
Se, por um lado, a sociologia é devastadora em sua rejeição da
autoridade (argumentando que esta, sendo sempre um produto da
sociedade, é, portanto, socialmente relativa), ela é, ao mesmo tempo,
extremamente "autoritária”! É perfeitamente compreensível que são
justamente aqueles sociólogos que se aperceberam da futilidade de
realizar investigações neutras que têm que desmascarar a sociologia
autoritária. Eles se dão conta de que eles mesmos, como qualquer ou-
tra pessoa, têm pressupostos com os quais se aproximam de qualquer
coisa, a começar pela sociologia. Porém é muito difícil persuadir as
pessoas acerca disso, pois a sociologia tem se tornado por direito
próprio uma forma de consciência. No seu objetivo de prover uma
perspectiva total sobre a vida social, ela acaba excluindo desde o
princípio qualquer outra interpretação. Assim, somos incentivados
a usar nossa "imaginação sociológica" ao pintarmos nossos "retratos
sociológicos". Fazem-se suposições definidas que transcendem aquilo
que se pode descobrir através da observação.
Tomemos por exemplo o conceito de "funcionalismo” na so-
ciologia. Numa análise funcional, a sociedade é estudada em termos
de suas funções internas como sistema. "A função de qualquer
atividade recorrente", escreveu Radcliffe-Brown, "é o papel que ela
27
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
desempenha na vida social como um todo, e portanto a contribui-
ção que ela traz para a manutenção da continuidade estrutural¹".
Sociólogos posteriores, dentre os quais se destaca Robert Merton,
demonstraram que nem todas as funções mantêm necessariamente
a sociedade². Ele chamou de "disfunções" aquelas cuja tendência era
destruir ou deteriorar as estruturas sociais. Estabeleceu também uma
distinção entre funções "manifestas" e funções "latentes", sendo as
primeiras conscientes e deliberadas, e as outras, inconscientes e não
intencionais. Assim, a função manifesta de se proibir a venda pública
de literatura pornográfica seria suprimir a imoralidade, enquanto que
a sua função latente seria criar um mercado paralelo subterrâneo para
a distribuição ilegal de material pornográfico.
O movimento funcionalista começou como uma reação a um
evolucionismo cru que tentava explicar as instituições sociais em
termos de sua origem "primitiva”. Os funcionalistas, porém, resol-
veram deixar de lado a questão das origens e ver a sociedade como
um sistema em que as crenças e práticas desempenham um papel
funcional. Isto, por sua vez, sugere que uma sociedade “normal” é
uma estrutura não acidental que “vive” como um organismo.
Mais tarde, outros funcionalistas decidiram ignorar tanto as ori-
gens como outros aspectos da vida social. A obsessão com a função pode
levar a uma desconsideração total da intenção. Por exemplo, restringir
o estudo de um determinado costume à sua função social pode levar
à distorção, caso se ignore a intenção com que tal costume começou.
A análise da função, embora possa esclarecer algum aspecto obs-
curo da vida social, pode também, ao concentrar-se nela, obscurecer
a intenção, ou, possivelmente, a responsabilidade e a credibilidade.
Pode também levar a uma desvalorização, por exemplo, do ensina-
mento cristão sobre a família. Nós podemos dizer que, entre outras,
o matrimônio tem uma função sexual. No entanto, o sociólogo pode
apontar para o fato de que muitas pessoas solteiras também se permi-
tem atividades sexuais. E, indo mais além, dirá que, já que a maioria
dos casos de relações sexuais pré-maritais se dá entre parceiros que
pretendem se casar de qualquer forma³, e já que a maioria dos casais
divorciados volta a se casar, o matrimônio, na qualidade de insti-
tuição, continua sendo popular como sempre. Assim, nem adianta
28
Quem é que diz isso?
explicar que Jesus Cristo não estava se referindo ao matrimônio de
direito comum ou a uma monogamia repetida, quando, em Mateus
9, referiu-se à ordem da criação relativa ao casamento! Ainda que
os cristãos devam ser realistas sobre a vida em família hoje em dia e
não devam impor seus pontos de vista sobre os outros, é de extrema
importância que deixem claro a sua posição e as razões desta.
Seria perfeitamente legítimo argumentar que a própria socio-
logia pode ser uma ideologia, um exemplo de falsa consciência. O
próprio relativismo da sociologia significa que existe uma distorção
da verdade acerca do homem e da sociedade. Partindo do pressuposto
de que tudo, inclusive o conhecimento, é socialmente relativo, o
sociólogo nos surpreende com declarações bastante audaciosas. Ele
poderia dizer, por exemplo, que um determinado conceito ou padrão
de comportamento só se torna “humano" através da repetição e da
familiaridade. Seria isto apenas uma demonstração de sua cegueira
diante dos absolutos e dos fatores dados? O sociólogo cristão iria que-
rer “assumir” que existe um conhecimento verdadeiro — e, com base
nisso, afirmar que existem conceitos permanentes e intrinsecamente
humanos, como a determinação e a responsabilidade. Mas, então,
que direito têm os cristãos de se opor às afirmações dos sociólogos?
Como ousam os cristãos declarar alguma coisa?
QUEM DIZ É DEUS?
Como cristãos, precisamos deixar bem clara nossa posição
desde o início. Existe, no momento, uma crescente preocupação
com o aspecto ideológico da ciência social, e certos sociólogos
realmente apresentam seus pressupostos de maneira bem explíci-
ta. Isso acaba sendo de muita ajuda, pois assim pelo menos nós
sabemos com que precisamos argumentar.
Lucien Coletti, por exemplo, para quem o marxismo é a ciência
social, declara: "Ele é a análise da realidade do ponto de vista da
classe trabalhadora"". Nós também, da mesma forma, deveríamos
explicitar o ponto de vista que nos distingue como cristãos. O que
nós cremos ser verdadeiro e por que acreditamos que certas coisas são
verdadeiras? Claro que não é porque as ideias cristãs sejam socialmente
aceitáveis, pois a maioria das pessoas não acredita nelas!
29
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
Os ensinamentos de Jesus contêm uma porção de declarações
muito duras, que vão contra as tendências da cultura moderna. É
realmente impossível dar, em termos sociológicos, uma explicação
convincente para uma mudança de crença, especialmente em casos
como o do apóstolo Paulo. Tudo aquilo que lhe haviam ensinado em
sua rígida seita judaica militava contra a possibilidade de ele se tornar
um seguidor do "Caminho"; e, de fato, ele fez de tudo para eliminar
os primeiros cristãos. Paulo era um homem sumamente inteligente,
perfeitamente racional e, ao que tudo indica, uma pessoa normal,
antes e também depois do encontro na estrada de Damasco. O gru-
po que o acompanhava naquela ocasião era todo "anti-Caminho", e
mesmo assim, a partir daquele dia, ele mudou completamente. Sua
visão de mundo e, por consequência, seu estilo de vida, sofreram uma
mudança radical, embora aquilo em que agora acreditava mal pudesse
ser considerado socialmente aceitável!
Talvez, enquanto estamos falando em conversão, fosse bom
mencionarmos William Sargant e sua famosa obra Battle for the
Mind, em que ele tenta desmascarar a conversão. Segundo ele, a
conversão nada mais era que levar as pessoas a um estado de hiper-
sugestão, passando-se daí a uma lavagem cerebral com o objetivo de
lhe incutir a fé cristã. A intenção de Sargant era mostrar que aquilo
que para alguns era uma experiência divina e espiritual não passava de
um produto de manipulação humana; portanto, falar do espiritual era
fruto de uma ilusão. Como diz Martyn Baker, no entanto, “afirmar
isso é o mesmo que tentar demonstrar que as tintas que Picasso usava
eram desta ou daquela tonalidade, e de tal e tal intensidade e que,
por conseguinte, suas obras de arte são reduzidas a algo puramente
material, sem valor algum6".
O sociólogo naturalista usa exatamente o mesmo tipo de argu-
mento que Sargant e também ignora (como diz o Dr. Lloyd-Jones
em sua crítica a Sargant7) os aspectos históricos e sobrenaturais do
cristianismo. Peter Berger usa uma linguagem similar à de Sargant
ao dizer que "a possibilidade de conversão aumenta segundo o grau
de instabilidade ou de descontinuidade da estrutura de plausibili-
dade que caracteriza a pessoa naquele dado momento". Neste caso,
Berger não está atacando a religião; mas está claro como, quando
30
Quem é que diz isso?
suas palavras são tiradas do contexto ou destituídas de seus atributos
qualificativos, se poderia concluir que os cientistas sociais estivessem
dizendo que a conversão não passa de um fenômeno psicológico ou
sociológico.
A fé cristã, no entanto, é completamente distinta. Isso se
manifesta naquilo que o cristão acredita quanto à "conversão", e,
mais diretamente relacionado com esta seção, quanto a ser Deus a
autoridade final e o ponto de referência para a nossa visão de mundo.
Os cristãos creem que Deus se revela de várias maneiras. Essa "auto-
revelação” é ao mesmo tempo geral, na personalidade humana e no
mundo lá fora, e especial, em Jesus Cristo e na Bíblia. A revelação
geral de Deus no mundo aponta para o “eterno poder e divindade
de Deus" (Romanos 1:20) e sua invisibilidade. Em sua racionalida-
de e realidade, o mundo (ou o universo) reflete tais atributos. E é
justamente porque esse mundo criado por Deus é racional que o seu
estudo tem sentido. Além disso, o fato de Deus ter criado o mundo
significa que as vidas individuais, como partes significativas da criação
inteira, também têm um propósito. Isso é do conhecimento de todo
mundo, embora alguns prefiram negá-lo ou distorcê-lo. (Na próxima
seção veremos a autorrevelação de Deus na personalidade humana.)
Pode ser que até aqui o argumento tenha parecido circular,
e, como tal, fechado e válido por si mesmo. Como já temos visto,
porém, toda a sociologia depende de suposições que não podem ser
provadas. A revelação de Deus afirma ser a verdade daquilo que é.
Jesus, referindo-se à Palavra de Deus, declarou ser esta a verdade:
"Tua palavra é a verdade”. E não apenas isso: também declarou ser,
ele mesmo, a Verdade. Essas coisas dão margem a questionamento
e escrutinio. Jesus foi totalmente humano: ele suou, chorou, passou
fome, ficou zangado, sentiu amor e compaixão. Sua vida foi coerente
com suas declarações, sua morte foi de acordo com suas predições e
sua ressurreição foi tão completamente atestada como fato histórico
quanto qualquer outro do período contemporâneo. Jesus demons-
trou, de forma perfeita e coerente, o caráter de Deus àqueles que o
cercavam, porque ele era plenamente Deus. Não é para qualquer
um que se pode dizer, como Pedro disse a Jesus: "Tu és o Cristo, o
Filho do Deus vivo".
31
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
Semelhantemente, podemos examinar a validade da Bíblia.
Devemos perguntar-nos: a Bíblia apresenta um quadro coerente
com a realidade histórica? Ela dá respostas satisfatórias a questões
acerca da natureza humana e dos problemas cotidianos da vida em
sociedade? Nossa resposta é “sim”! A Bíblia é verbal e contém verdade
comunicável a respeito de Deus e de seu relacionamento com a cria-
ção; devemos, portanto, esperar respostas. Somente o Espírito Santo
possibilita uma compreensão tal que resulta em vidas transformadas
pela verdade, mas existem coisas na Bíblia que sublinham a verdade
sobre aquilo que nós já sabemos e conhecemos a partir do mundo
criado que nos cerca - assim, nesse sentido, o que a Bíblia diz pode
ser colocado à prova por uma pessoa "não comprometida”.
A pessoa "comprometida", por sua vez, encontra no objeto de
sua fé, ou seja, em Deus, a certeza da fé cristã. Ela crê que Deus tem
falado de uma forma autoritativa e absoluta e pode ver que os ensi-
namentos bíblicos são coerentes com aquilo que pode ser visto à sua
volta. A natureza humana, por exemplo, não é socialmente relativa,
mas é algo universal e fundamentalmente em oposição a Deus — e -
esta atitude religiosa determina todas as outras. As guerras que es-
touram por toda parte, por exemplo, ela as vê como sintomas dessa
inimizade subjacente contra Deus (Tiago 4:1-4), conflitos sociais
resultantes da natureza humana. Isso faz dos cristãos realistas e não
pessimistas. Podemos ter esperança porque Deus está controlando o
rumo da história humana.
Além disso, a própria Bíblia contém os princípios segundo os
quais deveria ser interpretada. Pode-se estudá-la de uma forma inte-
grada, já que ela possui consistência interna, e também comparando
passagens entre si, a fim de obter uma perspectiva global. Existem
através da Bíblia temas principais que, se forem levados em conside-
ração, derramam muita luz sobre o livro como um todo, de forma
a revelar com evidente clareza o plano de Deus para a humanidade,
tanto na história como na sociedade. Dois destes temas principais
são a fidelidade de Deus e, em contraste, a volubilidade pecaminosa
do ser humano.
Voltemos por um momento à "sociologia do conhecimento"
e consideremos a narrativa do Antigo Testamento; veremos o quão
32
Quem é que diz isso?
inadequada e rude é a abordagem da "sociologia do conhecimento” ao
explicar a história dos judeus. O pano de fundo do drama é sempre
uma cultura pagă. Deus falou ao seu povo repetidas vezes, por meio
de seus profetas, dizendo-lhes quem ele era, o que ele esperava do
seu povo em termos de fé e comportamento obediente, e o que eles,
por sua vez, poderiam esperar dele. Os dois "temas principais" que
acabamos de mencionar aparecem sempre de novo: Deus era fiel e a
humanidade, inconstante; porém, mesmo durante séculos de exílio
no meio de culturas completamente estranhas, o “povo escolhido"
sobreviveu, e sempre aparecia um grande número de pessoas que
continuavam acreditando no mesmo Deus!
Os mandamentos de Deus nunca tiveram grande aceitação
popular; como se explica, pois, que o povo continuasse acreditan-
do neles? As pressões para se acomodarem às crenças e práticas das
culturas circunvizinhas eram muito fortes, e mesmo assim eram
poucos os que cediam a elas - por quê? O cristão deve replicar que
os mandamentos dados não eram determinados socialmente; pelo
contrário, eram ditados, em cada situação específica, por um Deus
absolutamente livre, que já provara repetidas vezes ser santo e digno
de confiança. Embora sejam muito fortes e constantes as pressões
que sofremos por parte da sociedade para que nos dobremos diante
dos padrões culturais prevalecentes, como nós mesmos seríamos
os primeiros a admitir, existe um poder ainda mais forte que nos
capacita a resistir, tanto nos dias do Antigo Testamento quanto no
final do século XX.
Nossa viagem nesta seção foi longa e muito rápida, mas espero
que a questão do "quem é que diz isso?" tenha sido respondida, pelo
menos em parte. Como cristãos, nós cremos que existe um conhe-
cimento que não depende de nenhum contexto social (embora seja
afetado), já que nos foi dado, digamos assim, a partir de fora. Isto não
quer dizer, é óbvio, que não exista qualquer fator humano na Bíblia.
Pessoas com estilos e personalidades distintos escreveram a partir de
contextos sociais específicos. Mas aquilo que eles escreveram era sem-
pre palavra de Deus e, como tal, autoritativo e infalível. (Veja o livro
A Bíblia: O Livro para Hoje, John R.W. Stott'). O erro consiste em
se dizer: "A Bíblia foi escrita por seres humanos; logo, ela é falível."
33
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
Lembremos que Deus disse a Jeremias: "Eis que eu ponho as minhas
palavras na tua boca”10. Um outro engano é dizer que, já que a Palavra
de Deus foi dirigida a um determinado contexto histórico e social,
ela é irrelevante para os dias de hoje. J. A. Motyer lança por terra este
conceito errôneo em seu comentário sobre a profecia de Amós (que,
por sinal, poderia ser considerado o primeiro sociólogo da Bíblia!").
A autorrevelação de Deus provê princípios e critérios que nos
permitem avaliar toda e qualquer ideia cuja fonte seja puramente
humana e social. Qualquer análise da realidade que tenha um ponto
de partida diferente pode conter certos aspectos verdadeiros e im-
portantes para o bem-estar da sociedade (pois, de uma forma geral,
Deus tem revelado certas coisas para o ser humano), porém deve ser
julgada sempre à luz da Palavra de Deus.
Se o que eu digo é verdade, então nós, como cristãos, temos
o duplo dever de estudar a Palavra de Deus seguindo a orientação
divina e de aplicar seus princípios a teorias e situações específicas.
Nosso pensamento sociológico deverá refletir a nossa convicção de
que o árbitro final do conhecimento não é o indivíduo nem a so-
ciedade. A primeira palavra pertence a Deus e a ele somente cabe a
última palavra.
NOTAS
1A.R.Radcliffe-Brown, Structure and Function in Primitive Society (Cohen, 1952), p.180.
2 R.K.Merton, Social Theory and Social Structure (Free Press, 1957).
3 M. Schfield, The Sexual Behaviour of Young People (Penguin, 1965).
4R. Fletcher, Family and Marriage in Britain (Penguin 1969), p.143.
5 R. Blackburn (ed.), Ideology in Social Science (Fontana, 1972).
6 Martyn Baker, "The Psychology of Conversion", Faith and Thought, 101.2, 1974.
7D.M. Lloyd-Jones, Conversions: Psychological and Spiritual (IVP, 1959), pp. 21s.
8 P.L. Berger, The Social Reality of Religion (Penguin, 1973), p. 58.
9 J.R.W. Stott, A Bíblia: O Livro para Hoje (ABU, 1993).
10 Jeremias 1:9.
J.A. Motyer, A Mensagem de Amós (ABU, 1984).
34
Capítulo 4
"HOMO SOCIOLOGICUS"
O ser humano em seus relacionamentos sociais é o centro do
interesse sociológico. Assim, a questão da natureza humana, ou a
"imagem" humana, é de importância crucial para a teoria sociológi-
ca. Isto se percebeu desde o começo da sociologia e foi, poderíamos
dizer, a primeira razão de ser da sociologia.
As outras disciplinas, como a economia política (hoje conhecida
como economia) e a biologia, pareciam dar apenas uma visão parcial
do ser humano, e coube à sociologia a incumbência de compensar esse
desequilíbrio. Mas ninguém se deu conta (como costuma acontecer
ainda hoje) de que a sociologia também não pode prover uma visão
"total" do ser humano. Afinal de contas, ela é apenas o estudo de
pessoas em interação umas com as outras. A sociologia dá muitas vezes
a impressão de que os outros aspectos humanos são, de uma certa
forma, menos importantes, ou de que eles podem ser interpretados
a partir de um ângulo sociológico.
Isto não significa que o estudo sociológico seja inválido ipso
facto, mas sim que ele deveria ser considerado como uma perspectiva
limitada, e não total. Este é, creio eu, um aspecto muito importante,
que os cristãos têm ignorado durante muito tempo, em detrimento da
igreja. Vamos considerar brevemente algumas manifestações de homo
sociologicus que aparecem na teoria social, procurando contrastá-las
com a visão bíblica do ser humano, especialmente em sua dimensão
social. Mas antes de prosseguirmos devo esclarecer que esta não é
uma tentativa de fazer uma crítica exaustiva das visões sociológicas
da humanidade, mas sim uma análise experimental e impressionista
de alguns temas comuns nos escritos sociológicos.
HUMANOS COMO SERES MALEÁVEIS
A impressão que se costuma ter quanto à imagem sociológica
é que a natureza humana é essencialmente plástica. A matéria prima
35
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
do aparato psicológico é moldada em forma social por um tipo de
entidade abstrata conhecida como "sociedade". Muitos escritores têm
criticado abertamente este determinismo social, porém a ideia conti-
nua por detrás de muitas declarações sociológicas. Há apenas alguns
anos atrás, Stephen Cotgrove escreveu: "Talvez seja uma analogia
um tanto exagerada comparar os indivíduos com marionetes: con-
trolados através de cordas sociais, eles interpretam os papéis escritos
a eles designados pela sociedade. Mas esses indivíduos decoraram tão
bem o seu papel que já nem se apercebem dos puxões e empurrões
e, ao contrário das marionetes, foram possuídos por um maquinário
interno que passou a controlá-los a partir de dentro."
A"socialização" é um termo significativo no pensamento socio-
lógico e resume bem este ponto de vista. Na maioria das definições, a
socialização é "a transmissão da cultura" e geralmente parece um pro-
cesso tão mecânico quanto o implica a frase. Os sociólogos poderiam
argumentar que as pessoas são apenas minimamente determinadas por
seu componente biológico, e portanto maximamente influenciadas
pela cultura que as rodeia. Pelo que parece, não sabemos nada que
não tenhamos aprendido em sociedade. Os sociólogos geralmente
tendem a minimizar a ideia do "instinto”, optando, ao invés disso,
pelo "comportamento aprendido”; mas, como veremos, esta é uma
dicotomia falsa que surgiu no século XIX, a partir das ideias empíricas
do conhecimento.
Muitos dos termos usados pelos sociólogos implicam que cada
indivíduo começa a vida como algo vazio ou neutro que aos poucos
vai se enchendo com um estoque de cultura e sendo direcionado
para um determinado rumo. Esta é uma versão moderna da antiga
noção de John Locke da tabula rasa, “a folha em branco" da mente
que ainda não recebeu nenhuma impressão ou experiência externas.
Uma outra palavra é "internalização", que sugere que tudo que
integra a personalidade do indivíduo provém de fora, da sociedade.
As pessoas são feitas à imagem da sociedade. De acordo com esta
teoria, somos seres humanos porque partilhamos com outros uma
cultura comum, que é uma entidade histórica relativa e dinâmica.
É a sociologia que impulsiona o movimento da Libertação Fe-
minina. Como disse Simone de Beauvoir, comparando a categoria
36
"Homo Sociologicus"
biológica do sexo com a sociológica, o gênero: "A gente não nasce
mulher, mas, sim, se torna mulher. Nenhum destino biológico,
psicológico ou econômico determinou o papel que a fêmea humana
representa na sociedade; é a civilização como um todo que produz
essa criatura, intermediária entre macho e eunuco, que é descrita
como feminina."1
Precisamos, porém, isolar um pouquinho mais as diferentes
perspectivas sociológicas que dão margem a esse determinismo
claustrofóbico, esta sensação de estar preso num emaranhado de
teias de redes sociais. Gibson Winter² estabelece uma distinção entre
três dessas categorias, e nós iremos analisar, de uma maneira bem
simplificada, o seu esquema geral.
Em primeiro lugar vem o “behaviorismo”, cujos adeptos crêem
que as reações são condicionadas: ou o instinto estimula a produção
de uma resposta que tem efeitos calculáveis, ou então forças externas
(forças sociais, por exemplo) produzem efeitos internos. O behavio-
rismo, como doutrina explícita, é mais comum na psicologia, porém
representa o pensamento menos elaborado de certos sociólogos posi-
tivistas. Se esta ideia estivesse correta, o “controle" social poderia ser
obtido através da manipulação de sanções. Arthur Koestler descreve
este tipo de pensamento como sendo “ratomórfico"³, significando que,
na mente dos teóricos, o status dos humanos acaba sendo reduzido
à imagem de um rato em um labirinto de laboratório.
A segunda categoria é o "funcionalismo", que já definimos na
seção anterior. Uma vez mais, se esta é a perspectiva do sociólogo, suas
teorias são menos que humanas. Se a sociedade nada mais é que um
sistema a ser regulado e controlado pela "adaptação funcional", então
o que é feito das necessidades humanas que sentimos e dos pensamen-
tos? Se o conflito social é considerado uma "tensão estrutural", então
o que dizer das incompatibilidades básicas dos interesses e valores?
A terceira perspectiva é a do "voluntarismo”, que tem a ver
com as motivações das pessoas. Os sociólogos desta escola se ocupam
não necessariamente com motivos autoconfessados, mas sim em
atribuir certas tendências e motivações a grupos que podem não estar
conscientes delas. Isto caracteriza particularmente as obras de Marx
e Weber. A ênfase aqui está na variabilidade dos interesses e posições
37
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
de acordo com o contexto e algumas vezes no papel desempenhado
pela luta na transformação social. Os valores e os interesses passam
a ser socialmente relativos, dependendo da sociedade ou da parte da
sociedade em que estão inseridos. Assim, na opinião de Weber, por
exemplo, o espírito capitalista era muito mais forte em sociedades
imbuídas da "ética protestante".
Quais são as implicações destes pontos de vista? Se a sociedade
é responsável pela criação das pessoas, então ela é responsável por
tudo, e não apenas por aquilo que é socialmente aceitável. Portan-
to, a sociedade deve também ser responsável pelos crimes e desvios
de conduta. Descobrimos, assim, que a noção de responsabilidade
individual tem sido abandonada por alguns grupos de pessoas em
favor da responsabilidade social. Certos criminologistas vão além
destas ideias e lutam por uma sociedade que não tenha o poder de
"criminalizar". Embora este seja um ponto de vista extremo, é uma
conclusão lógica da suposição de que a natureza humana é "neutra"
e de que nós só nos tornamos humanos à medida que vamos sen-
do moldados pela sociedade. Desta forma, todos os valores vão se
tornando histórica e socialmente relativos, e até mesmo a liberdade
cristã passa a ser uma ideia inadequada.
Entretanto, do ponto de vista sociológico, o índice de crimi-
nalidade é preocupante. A criminalidade tende a crescer em nível
proporcional ao decréscimo do nível educacional e tem maior inci-
dência em grupos de minorias do que de maioria numa determinada
população. Certos grupos sociais têm uma tendência incontestável
para infligir as normas criminais, e é difícil saber se devemos louvar
ou recriminar seu conformismo fácil. Outros parecem ser alvos para
práticas policiais discriminatórias. Além disso, o número de juízes
provenientes da classe operária (quando aparece algum) é tão insig-
nificante que não é de admirar que haja tanta incompreensão.
Lamentavelmente, o mal social ou estrutural é um fenômeno
que tem sido negligenciado pela maioria dos cristãos nos últimos
anos, e neste ponto a sociologia realmente coloca em evidência a
gritante necessidade de uma compreensão bíblica radical. Um dos
sinais promissores de uma nova contribuição cristã nesta área é o livro
Your God Is Too White" ("Teu Deus É Branco Demais"), de Behm
38
"Homo Sociologicus"
e Salley e o livro Cristãos Ricos em Tempos de Fome de Ron Sider.
Behm e Salley mostram que o papel do cristianismo foi firmemente
estabelecido em relação às opressivas forças institucionalizadas que
negaram aos negros dos Estados Unidos os direitos humanos mais
elementares. Os negros são levados a sentir que o cristianismo é
um sinônimo da exploração branca, da desumanização dos negros
e perpetuação da dominação branca. Neste caso, um grave pecado
social foi apoiado e em certos casos até justificado pelos cristãos.
Sider mostra como uma análise bíblica da pobreza e da distribuição
de renda pode ser aplicada a desigualdades globais contemporâneas.
Existe, portanto, uma clara incidência estrutural de diversas
formas de crime, delinquência e injustiça. Tal incidência é mensurável
e tem que ser compreendida, se é que se deseja que a noção de “justi-
ça" continue existindo na sociedade. Certos sociólogos, no entanto,
têm trabalhado, não com uma noção objetiva, mas sim subjetiva, de
desvio. Eles são conhecidos como "interacionistas" e colaboram com
a já mencionada "nova criminologia”. O que os preocupa é a classifi-
cação mútua das pessoas em sociedade à medida que estas interagem
umas com as outras. Por exemplo, quando um delinquente juvenil
começa a ser rotulado como tal, ele reage adaptando-se cada vez mais
a essa classificação. O “desvio”, então, deixa de ser um ato e vai se
transformar em um processo, e daí a questão da responsabilidade ou
da credibilidade do indivíduo é descartada como algo fora de questão.
O que precisa ser mudado, do ponto de vista dos interacionistas, é
o "sistema", o qual, ao rotular as pessoas, "produz” a criminalidades.
E daí, será a natureza humana simplesmente plástica?Será que
não passamos da soma de nossos papéis? Será que indivíduos são
apenas o palimpsesto dos emaranhados sociais em que vivem? Será
o crime ou o desvio apenas uma interpretação, e a natureza humana
de certa forma neutra? Estas são geralmente as implicações de uma
perspectiva sociológica que enxerga o ser humano como "um ser
maleável", o que é claramente duvidoso de uma perspectiva cristã.
HUMANOS COMO AUTODETERMINANTES
De acordo com uma outra visão, o homo sociologicus é, mais do que
uma criatura plástica, um ser poderoso. Essa pessoa é ativa e auto-
39
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
determinante e tem consciência de seus objetivos. No esquema de
Winter, esta é uma quarta categoria: a da “intencionalidade”. O ser
humano é visto, não em termos de causa, função ou interesse, mas
de intenção. Agora as pessoas transcendem as forças que incidem
sobre elas, podendo, portanto, extrapolar sua sucessão de papéis.
Nesta visão, escreve Berger, longe de sermos fantoches, "nossos
movimentos nos permitem erguer os olhos e perceber o maquinário
através do qual temos sido movimentados. Neste ato jaz o primeiro
passo rumo à liberdade."
Certamente essa segunda visão incorpora algumas ideias im-
portantes, compatíveis com uma visão cristã da humanidade. A
perspectiva da ação leva em consideração a intenção e a consciência,
negando o determinismo puro. Essa visão também enfoca a respon-
sabilidade humana.
Este tema, no entanto, tem uma variação que pode ser tão pre-
ocupante quanto o rígido determinismo social da escola positivista
mais antiga. Conforme esta teoria, nós só podemos nos libertar em
uma comunidade coletiva, unindo-nos a outros num esforço mútuo
para mudar o status quo. Segundo Amitai Etzioni, um dos adeptos
desta teoria, as ciências sociais, que proporcionam muito da “cons-
ciência própria", deveriam de igual forma prover orientação quanto
ao rumo das mudanças sociais. Outros escrevem sobre uma “ética
sociológica" que proporcionaria um padrão de pesquisa e ação.
Mas será que uma ética sociológica é o suficiente? Por detrás de
toda ética sociológica existe sempre uma pressuposição religiosa ou
intelectual. Embora se espere que todos tenham plena consciência
das implicações morais do trabalho sociológico, ainda assim seria
conveniente saber onde é encontrada a “moralidade”. E, de novo,
se a autoridade provém apenas de dentro da sociedade, nós estamos
presos numa armadilha, condenados a uma “liberdade” prescrita
pela sociologia e que poderia se manifestar de qualquer forma, desde
o totalitarismo até a anarquia. A ética sociológica pode facilmente
ser apenas mais uma manifestação da nossa tentativa de autonomia,
cujas raízes estão no Éden, na decisão humana de sermos nossos
próprios árbitros.
Assim, a "intencionalidade", ou ação, traz de fato a possibilida-
40
40
"Homo Sociologicus"
de de uma ação positiva resultante de convicções de valores, como
também dá lugar à existência individual autêntica, em oposição
ao conformismo social. Naturalmente, não devemos esquecer que
existem pressões sociais que agem sobre o pensamento e a ação, e
que os papéis e a posição social são um componente da natureza
humana; mas o ponto de vista intencionalista nos permite ver que
transcendemos os papéis que desempenhamos.
A sociologia marxista, em algumas de suas manifestações popu-
lares, tende a juntar as duas noções (a do homem "maleável" com a do
homem "autoritário") em uma combinação um tanto preocupante.
De acordo com esta percepção, somos “determinados e, ao mesmo
tempo, determinantes". "Como produto do mundo, o homem deriva
o seu aparato conceptual da sua matriz social; e, como produtor do
mundo, ele é capaz de reformar, rejeitar e refletir sobre o seu mundo
e sua consciência; e, à medida que realiza transformações nesse mun-
do, ele também altera a realidade externa da qual deriva categorias
posteriores de pensamento³." Esse é o Marx humanista, para quem
a história é algo que nós criamos e que simultaneamente nos cria.
A PESSOA HUMANA COMO IMAGEM DO CRIADOR
O constante dilema sociológico (que é, na verdade, uma questão
filosófica) surge do desejo frustrado de obter uma perspectiva total,
dada a nossa incapacidade de "ficar de fora” e enxergar a nós mesmos
de uma forma “integral". Por mais que tentemos evitar, sociólogos
são sempre observadores participantes. Estão sempre "envolvidos"
na sociedade que estão observando. Os sociólogos contemporâneos
depositam muita fé na sua metodologia, que é em parte muito sofisti-
cada e que de fato geralmente apresenta novas perspectivas; contudo,
por mais engenhosa que seja a metodologia, mesmo assim ela não
capacita ninguém a "ficar completamente de fora". A esperança de que
a sociologia venha a prover uma perspectiva total nunca será realizada.
Consideraremos agora alguns dos problemas discutidos até aqui,
vendo-os, porém, desta vez, no contexto de um enfoquebíblico do
ser humano. É bastante curioso ver em Eclesiastes uma grande fonte
de alento quando nos deparamos com o problema de querer ver a
pessoa como um ser integral mas só vemos à nossa volta incoerên-
41
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
cia, desigualdade e falta de liberdade. A forma como o autor aborda
situações observáveis, como a existência de “justos a quem sucede
segundo a obra dos perversos", é aplicando-se a conhecer a sabedo-
ria. E ele sabe muito bem que a sabedoria encontra-se na Palavra de
Deus. "Então”, diz ele, “contemplei toda a obra de Deus, e vi que o
homem não pode" (apenas por sua própria razão) “compreender a
obra que se faz debaixo do sol⁹."
Como cristãos, devemos afirmar catego-ricamente que o quadro
total não pode ser visto a não ser à luz da revelação de Deus, e mesmo
assim, teremos somente uma visão parcial. Agora, isso tem causado
dificuldades durante toda a história da igreja; por isso é necessário
explicarmos melhor o seu significado. A Bíblia sempre fala do ser
humano em relação a Deus, e nunca isolado deste. Existe uma ênfase
constante na nossa inclinação religiosa como um indício da nossa
natureza humana. A primeira declaração que aparece nas Escrituras
acerca do ser humano é: “Também disse Deus: Façamos o homem
à nossa imagem, conforme a nossa semelhança 10." Isto nada nos diz
sobre o aspecto sociológico, psicológico, fisiológico ou qualquer outro
"-lógico" de nossa estrutura, mas simplesmente estabelece o "homem
integral" como "a imagem do Criador".
Mas isto levanta outras questões, das quais a primeira é a se-
guinte: "E a Queda?" É muito fácil dizer que o ser humano foi criado
à imagem de Deus; no entanto, a Bíblia não fala de uma alienação
de Deus como consequência da nossa rebelião no Jardim do Éden?
Isto é verdade, e ainda tem mais: existem, tanto no Antigo como no
Novo Testamento, muitas indicações quanto ao caráter definitivo da
Queda (ver, por exemplo, o Salmo 14 e Romanos 3:23). Estamos
"perdidos", "mortos” e “em inimizade contra Deus”. E mesmo assim,
apesar dessa corrupção total, o ser humano é descrito como "homem",
em Romanos 2:3, por exemplo. Portanto, ainda resta algum vestígio
de "humanidade", mesmo depois que perdemos nossa unidade com
Deus e nossa retidão original por ocasião da Queda.
Um outro problema preocupa o cristão, cujo "novo homem...
se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que
o criou". A graça de Deus restaura a imagem no cristão, e assim
de fato parece que ainda resta nele alguma coisa onde se possa dar
42
"Homo Sociologicus"
a obra da restauração, apesar da natureza absoluta da nossa pecami-
nosa separação com relação a Deus. Além disso, temos que admitir
que certas pessoas conseguem levar uma vida íntegra e manter um
relacionamento harmonioso com os outros sem jamais terem tomado
qualquer conhecimento da graça de Deus. O conceito de "imagem"
parece que é muito escorregadio.
Não ousamos minimizar os efeitos da Queda ou do pecado,
dizendo que somos, de certa forma, parcialmente bons e parcial-
mente maus. Nossa separação de Deus é total, e o pecado deturpou
e perverteu cada área da vida humana. De igual forma, convém
evitarmos o dar a entender que as "boas obras" das pessoas que re-
jeitam a Cristo podem aproximá-las pelo menos um pouquinho de
Deus, no sentido redentor. Isto seria minimizar o impacto da graça
de Deus na vida do pecador. Mas dizer isso apenas acentua o fato de
que existem problemas: problemas de liberdade e de determinismo e
problemas de moralidade e de lei, todos eles provocados pela questão
da natureza ou da “imagem” humana.
A teologia já procurou várias saídas para estas aparentes contra-
dições, mas nenhuma delas se mostrou completamente satisfatória.
Uma ideia muito popular é a da "graça comum", segundo a qual
Deus controla o curso da corrupção humana, refreando o mal que,
de outra forma, seria destrutivamente liberado. Abraham Kuyper¹²,
por exemplo, vê a graça comum como parte da “imagem” mediante
a qual Deus limita a extensão do mal no mundo.
Esta doutrina também explicaria as grandes conquistas huma-
nas na sociedade, as descobertas científicas, as invenções, as criações
artísticas e assim por diante. Outros pensam que a consciência é o
que limita a corrupção. Pode ser verdade, pelo menos em parte,
mas a própria consciência foi corrompida pela Queda¹³. Ela pode
ser enfraquecida ou endurecida conforme a inclinação do indivíduo
ou as pressões da sociedade.
Não vamos gastar tempo aqui discutindo outras tentativas de
justificar o bem no mundo, ligadas à ideia da “imagem”. Convém
enfatizar, contudo, que às vezes a forma de pensamento cultural con-
temporâneo, como a filosofia grega ou o individualismo humanístico,
influencia o rumo do pensamento cristão. Assim, uma ideia que tem
43
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
sido subestimada (ou quem sabe evitada, devido a sua tendência a
ser mal interpretada) é a da nossa “humanidade comum”. O teólogo
holandês Berkouwer, que chama a atenção para isto, escreve: "Ao
considerarmos o estado caído do homem, existe de fato mais razão
para refletirmos neste componente social do que na preservação da
compreensão e da vontade humana¹4."
Para Berkouwer, limitar a “imagem" a uma lista de "atributos",
como alguns têm tentado fazer, é ao mesmo tempo arbitrário e indi-
vidualista. Na sua opinião (que considero muito atraente), o caráter
humano é preservado em nossos inúmeros relacionamentos sociais.
Mesmo alienados de Deus, não estamos sozinhos no mundo.
Às vezes ocorrem na sociedade relacionamentos bonitos e
significativos que não se podem explicar através da ideia de que a
"imagem" é simplesmente um vestígio da compreensão e da von-
tade que possuíamos originalmente como indivíduos. Como diz
ele: "Quando Deus, em sua graça, preserva a natureza humana da
demonização e da total desintegração em inimizade mútua, ele o faz
nos relacionamentos da sociedade. Uma das mais impressionantes
características da realidade do homem caído sempre foi e continua
sendo o fato de os relacionamentos entre este e seus semelhantes
funcionarem em meio ao corrupto poder do pecado, que certamente
se volta em especial contra a sociedade e contra qualquer sentimento
de responsabilidade com relação aos outros15."
É a despeito desta humanidade comum, naturalmente, que
pecamos. E isto devido à nossa atitude de rebelião contra Deus que
nos tem caracterizado desde a Queda. Esta rebelião no mais profundo
do nosso ser é a raiz de todas as outras alienações na sociedade.
A VISÃO INTEGRAL
A visão bíblica diz que o ser humano integral é a “imagem" de
Deus. Essa integridade não permite uma divisão em corpo e alma,
nem admite qualquer outra divisão. De fato, talvez ajude mais pensar
no coração como o centro do nosso ser, epitomizando nossa unidade
e integridade. O provérbio exorta: "Sobre tudo o que se deve guar-
dar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida."
De igual forma, Jesus também disse: “O que sai do homem, isso é o
44
"Homo Sociologicus"
que o contamina. Porque de dentro, do coração dos homens, é que
procedem os maus desígnios...”16. Não existem partes "mais nobres"
ou "menos nobres"; o ser humano é uma unida.
O ser humano total, integral, é um ser religioso. A religião
não é um aspecto da vida: ela é a vida. A humanidade depende da
religião. A dimensão horizontal da vida não pode ser plenamente
apreciada enquanto não for vista à luz do nosso relacionamento
vertical com o Criador. O Salmo 139 expressa o assombro da pessoa
que descobre que nenhum relacionamento terreno pode ser visto de
forma abstrata ou isolada, e que o ser humano não é autônomo ou
responsável diante de si mesmo. Já desde o ventre de sua mãe existe
tanto o relacionamento vertical quanto o horizontal: "Tu me conhe-
ces muito bem!" Assim, a revelação de Deus nos leva ao ser humano
integral em relação com Deus.
A esta altura cabe aqui uma palavra acerca da liberdade. Uma vez
mais, não vamos perder tempo discutindo as filosofias da liberdade;
o que importa é traçar a linha de argumentação. Muito fôlego já se
gastou em várias controvérsias quanto ao livre arbítrio; no entanto, a
perspectiva bíblica geralmente é eclipsada pelo pensamento não cris-
tão. A tendência do não cristão é polarizar "liberdade" e "compulsão"
ou "determinismo". Valorizando a noção de liberdade, ele procura
"liberdade de discurso" ou de consciência. Em outras palavras, busca
um fim para a compulsão. O pensamento cristão, contudo, coloca
a "liberdade" como o estado em que se encontra o cristão ao ser
libertado pela Verdade¹7.
A Bíblia reconhece francamente que realizamos atos volun-
tários e espontâneos, porém declara que, ainda assim, somos escravi-
zados pelo pecado. Portanto, a pessoa não constitui uma tabula rasa
diante de novas e constantes possibilidades de acertar ou de errar.
Somos responsáveis por nossos atos e palavras, mas nossa capacidade
de tomar decisões não pode ser chamada de liberdade simplesmen-
te, pois estamos ainda sob o controle do pecado. A liberdade cristã
não é algo formal como a “liberdade acadêmica”, ou seja, ele não é
simplesmente um "ser livre" de alguma coisa. Em geral, liberdade de
uma regra ou pressão específica é algo meramente externo e, portan-
to, periférico; a liberdade cristã, porém, é uma qualidade dinâmica.
45
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
interna: é a própria essência da vida de uma pessoa que está "em
Cristo", livre para fazer o bem e para agradar a Deus¹8.
A SOCIOLOGIA DO PECADO
Voltando agora da nossa necessária digressão teológica, per-
cebemos que surgiram diversos e importantes fatores que podem
contribuir para nossa perspectiva sociológica cristã. Traçar as pres-
suposições bíblicas acerca do ser humano nos dá uma estrutura que,
além de nos possibilitar uma posição crítica diante de muitas suposi-
ções sociológicas, também nos ajuda a partir para uma afirmação do
valor de nossa visão cristã. E, como cristãos, veremos que geralmente
nossa sociologia constitui um exame dos efeitos do pecado sobre a
sociedade.
É claro que muitos sociólogos iriam criticar fortemente uma
afirmação dessas. A ideia de que o pecado ou o mal existe lhes é
repugnante. Philip Abrams, por exemplo, em seu livro The Origins
of British Sociology ("As Origens da Sociologia Britânica”), critica
um questionário sociológico do século XIX em que se pressupõe que
o que causa as greves é o próprio interesse econômico dos trabalha-
dores. Sem dúvida esta ideia contradiz uma boa parte da sociologia
industrial moderna; o problema é que o interesse econômico dos
patrões não foi levado em conta. Mas qualquer ponto de vista que
sugerisse não haver nenhum interesse econômico trairia uma visão
religiosa subjacente: a de que o mal não é inato, e sim causado por
fatores determinados pelo contexto social.
O pecado na sociedade pode ser igualmente minimizado de
outras formas. O famoso Relatório Kinsey, sobre o comportamen-
to sexual do homem americano, é um bom exemplo disso. Certos
padrões de comportamento foram observados e daí classificados
como normas sociais. Isto, aliado à suposição naturalista de que não
existem regras universais ou absolutas que deveriam ser observadas,
levou à aceitação posterior da (por exemplo) promiscuidade sexual
como algo normal, e, consequentemente, correto. Estas suposições
são embutidas no relatório, fazendo parte da sua própria estrutura.
Seria irreal afirmar que a sociologia "não pode" se pronunciar
sobre o que é certo ou errado no comportamento social. Isto seria
46
"Homo Sociologicus"
supor que os sociólogos são incapazes de assumir uma posição de
“distanciamento" ao estudarem a sociedade humana com toda a sua
carga de valores. Inserida na sociologia cristã, no entanto, virá a
suposição de que a sociedade retrata a pecaminosidade humana.
e de que os conflitos, os desvios e até mesmo certas instituições
sociais podem existir como consequência do pecado. Eles estão
muito abaixo do ideal; considerando-se a ordem da criação, são até
anormais. Aquilo que “é” não é necessariamente o que “deveria” ser.
A essência do pecado é a desobediência contra Deus. É a nossa
condição "natural" e, mesmo como cristãos, sabemos que seus efeitos
nos acompanham até a sepultura. Ela se revela em nossa busca por
autonomia, na tentativa de decidir por nós mesmos o que é certo
e o que é errado, e sempre se traduz em fracasso quando tentamos
atingir os padrões divinos ou ultrapassar deliberadamente os limites
da lei de Deus. Ao analisarmos a sociedade, não podemos nos atrever
a subestimar a tendência para o pecado e nunca devemos esquecer
que nosso próprio estudo acabará trazendo as marcas desse mesmo
pecado. O pecado é sutil e devastador e tanto pode ser individual
quanto social; e seus efeitos, além de desagradarem a Deus, prejudi-
cam tanto a grupos quanto indivíduos. O caminho de Deus não é
apenas "correto” em si mesmo: ele é o melhor caminho.
Tomemos novamente o exemplo do desvio. Qualquer um que
tenha lido sobre este assunto sabe que o debate crucial gira em torno
das definições. O que é normal e o que é um desvio? O sociólogo
humanista só pode trabalhar a partir de sua própria opinião do que
seja a humanidade comum, o "contrato social" ou qualquer outra
definição dada pela sociedade.
É claro que há uma diferença entre os desvios morais e os es-
tatísticos. Os problemas surgem quando um ato fora da média, seja
criminal ou meramente excêntrico, é reduzido a “desvio social", o que
tende a minimizar sua gravidade moral. O cristão tem todo o direito
de fazer suposições explícitas acerca da normalidade e dos desvios
de conduta baseado em sua visão da humanidade, defendendo seu
ponto de vista de acordo com isso.
Um exemplo tirado dos escritos paulinos nos poderia dar uma
ideia geral. A forma como Paulo trata a mentira e o roubo se ex-
47
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
pressa em termos de uma ética da Criação, ou seja, um argumento
proveniente da estrutura de sociedade dada por Deus (e é por isso
mesmo que a questão das "origens" é tão importante). Paulo adverte
os cristãos de Éfeso a que "deixando a mentira, fale cada um a verda-
de com o seu próximo, porque somos membros uns dos outros"; e
acrescenta que qualquer um que tenha o hábito de furtar deve parar
de fazê-lo: "antes trabalhe, fazendo com as próprias mãos o que é
bom, para que tenha com que acudir ao necessitado.” É verdade que
ele está escrevendo para a igreja; mas, ao fazê-lo, usa argumentos da
Criação (como a necessidade de se trabalhar com as próprias mãos)
e, portanto, aplicáveis a todos. Ele usa também outros princípios do
Antigo Testamento, como, por exemplo, o conceito de "próximo”, e
é possível que as ideias do Novo Testamento, como a dos "membros
de um só corpo", também podem ser usadas como um ideal no
mundo não cristão19.
Façamos agora um apanhado de algumas das abordagens
cristãs às quais nos referimos aqui. De certa forma, somos como
escravos da sociedade, não porque somos maleáveis ou por sermos
joguetes sociais, mas sim porque somos fundamentalmente escravos
do pecado e, portanto, de uma sociedade pecaminosa. Esta é a ra-
zão por que Paulo encoraja os cristãos romanos a não se deixarem
moldar20 pelo mundo (ou pela sociedade ou a cultura). Isto é puro
realismo bíblico. Agindo assim, acabaríamos idolatrando o mito da
liberdade (isto é, a liberdade não cristã) como o fez Caim ao pergun-
tar: "Acaso sou eu tutor de meu irmão?". No entanto, a única coisa
que conse-guiríamos seria uma liberdade "formal". Embora, como
cristãos, nós devamos fazer pleno uso de uma perspectiva não deter-
minista que leve totalmente em conta a intencionalidade e que nos
dê liberdade de escolha, nunca devemos confundir essa "liberdade"
com liberdade cristã. A perspectiva intencionalista abre espaço para a
responsabilidade e a credibilidade; não pode, no entanto, “libertar”.
Convém que se estabeleça uma distinção entre a ideia humana de
liberdade (que, no fundo, é uma pretensa autonomia do domínio de
Deus) e a liberdade cristã, a fim de que a "gloriosa liberdade" desta
última venha a se realizar. E esta é a última questão. Não somos ár-
bitros do bem e do mal. Embora vivamos constantemente lutando
48
"Homo Sociologicus"
por autonomia, somente Deus é mestre, senhor e rei. Esta é a raiz
dos conflitos de pressupostos existentes entre a cosmovisão cristã e
a perspectiva sociológica.
A IMAGEM DE QUEM?
Vimos, em resumo, que na teoria social existem diferentes variedades
de homo sociologicus. Embora de vez em quando certos autores dêem
a impressão de que o tipo que eles apresentam é "total", nenhum esca-
pa à armadilha do relativismo social, nenhum é uma perspectiva vista
"de fora”. O sociólogo cristão, pelo contrário, usa sua visão bíblica
da pessoa humana integral como uma base de pressuposição para sua
teorização sociológica, mas sem jamais sugerir que o aspecto social
seja o todo. Entretanto, uma tendência do pensamento cristão acerca
do "ser humano como imagem do Criador” tem sido negligenciar o
aspecto social, daí resultando um desequilíbrio na compreensão da
nossa natureza. Existe, portanto, para os cristãos envolvidos na área
da sociologia, um desafio, tanto a nível interno quanto externo, para
que resolvam essa questão do significado da “imagem”, aplicando em
seu trabalho as conclusões adquiridas.
A visão cristã da humanidade é inseparável do conhecimento
que o cristão tem de Deus, e mesmo que haja na visão cristã muita
coisa atraente ao não cristão, ela nunca terá para este um significado
autêntico enquanto não aceitar o Deus do cristão. Enquanto isso,
precisamos continuar declarando que somos seres humanos por
sermos a imagem de Deus, e explicitar as implicações práticas desta
visão. A teoria sociológica deveria ser inseparável da vida cotidiana.
da sociedade: como algo abstrato, ela não tem o mínimo sentido.
Assim, o cristão sempre tem que mostrar que sua visão é compatível
com as necessidades reais das pessoas na sociedade. Afirmar com con-
vicção essa visão da “imagem de Deus", além de "dar sabor" à teoria
sociológica, poderia, pela graça de Deus, ser o meio de abrir olhos
cegos para verdade que é Deus. Nós devemos lutar e orar para que
a
esta imagem seja restaurada, a começar em nós e também nos outros.
49
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
NOTAS
Simone de Beauvoir, The Second Sex (Penguin, 1972).
2 Gibson Winter, Elements for a Social Ethic (Collier-Macmillan, 1966).
3 A. Koestler, The Ghost in the Machine (Pan, 1967), p. 30.
4 Lion Publishing, 1973.
51. Taylor, P. Walton e J. Young, The New Criminology: For a Social Theory of Devi-
ance (Routledge, 1973).
6 P.L. Berger, Invitation to Sociology (Penguin, 1970).
7 Por ex. L Sklair, The Sociology of Progress (Routledge, 1974), ou R. Friedrichs, A
Sociology ofSociology (Free Press, 1970).
8 P. Walton, From Alienation to Surplus Value (Sheed and Ward, 1972).
9 Eclesiastes 8:14, 17.
10 Gênesis 1:26.
11 Colossenses 3:10.
12 Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism (Eerdmans, 1931).
13 Por ex. Tito 1:15.
14 G.C. Berkouwer, Man: the Image of God (IVP, 1973).
15 ibid.
16 Provérbios 4:23; Marcos 7:21,22.
17 João 8:32.
18 O Puritano, Samuel Bolton, tem boas exposições sobre o tema da liberdade cristã em
The True Bounds of Christian Freedom (Banner of Truth, 1965).
19 Cf. Efésios 4:25, 28.
20 Romanos 12:2.
50
Capítulo 5
ESTATÍSTICA E SALVAÇÃO
À primeira vista, a sociologia da religião tem uma aparência
muito ameaçadora para o cristão. Existem várias razões para isso.
Uma é a relativa novidade da análise sociológica, que se tornou uma
ferramenta popular de análise somente depois da Segunda Guerra
Mundial. Segue-se a isto o fato de a sociologia parecer "explicar” tantas
características da fé e da prática cristãs em seus próprios termos. Ou-
tra razão importante é que a sociologia traz à tona tantos problemas
inesperados e que implicam em comprometimento que a gente sente
cada vez menos coragem de se comprometer com qualquer coisa que
seja. Certas consequências involuntárias do ensinamento cristão têm
sido alvo de tanta atenção que é preciso lembrar sempre de novo que
podem haver facetas da nossa própria religião que se nos passaram
desapercebidas, mas que são óbvias para o sociólogo inquiridor.
O estudo sociológico da religião levanta grandes problemas, e o
fato de estes já terem surgido em situações anteriores, mesmo que de
formas diferentes, não diminui necessariamente o seu impacto. Há
mais de cem anos, por exemplo, quando o pensamento sociológico
era popular entre certos teólogos germânicos, a Bíblia costumava ser
reduzida ao status de um mero produto social, comparável a qualquer
outra literatura.
É, contudo, bastante tranquilizador notar que essa sensação
de "problema" tem sido mútua e que os sociólogos também ficam
perplexos diante do fenômeno da religião. Talvez isto explique, pelo
menos em parte, porque os sociólogos da religião têm tido uma car-
reira tão cheia de contratempos. Embora sua disciplina nunca tenha
ido muito além dos interesses básicos da sociologia, durante um
tempo bastante longo (especialmente após a última guerra) muitos
sociólogos sentiram que eles nada podiam dizer a respeito da reli-
gião porque ela mantinha uma íntima relação com essa imensurável
entidade denominada crença.
51
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
Hoje a sociologia da religião está florescendo. Reconhece-se
amplamente que simplesmente ignorar a religião é reduzir a com-
preensão que se pode ter acerca da sociedade. A maioria das pessoas
acaba se encontrando, mais cedo ou mais tarde, com a sociologia da
religião, seja na forma de infindáveis debates sobre a relação entre o
protestantismo e o capitalismo, seja em debates concernentes à se-
cularização. Outros são afetados pelos mais vívidos e exóticos relatos
histórico-antropológicos acerca da busca do milênio, dos "CARGO
CULTS", ou dos Novos Movimentos Religiosos e da Nova Era.¹
UM FENÔMENO SOCIAL
A sociologia considera a religião como um “fenômeno social".
Essa abordagem leva o pesquisador a observar manifestações de crença
religiosa, ou então a aderir a um grupo religioso e analisá-lo. Agora, de
uma certa forma, as próprias igrejas usam estatísticas sociais ao com-
pilarem listas de membros comungantes ou da frequência média dos
cultos em ocasiões especiais, ou quando citam a proporção nacional
de casais cujo matrimônio foi feito na igreja. Portanto, considerar a
religião como um fenômeno social é algo que nós mesmos já fazemos.
Nenhuma definição social de religião, no entanto, pode deixar
de conter implicações quanto à verdade da religião. Os funcionalistas,
por exemplo, julgam a religião de acordo com seus efeitos. Ou seja,
pode ser que a religião pareça ter uma função socialmente benéfica
no que se refere à integração de certos grupos, ou quando empresta
sentido a certas instituições, como o casamento, por exemplo. Já o
sociólogo marxista considera automaticamente a religião como falsa,
pois, para ele, esta se baseia em um diagnóstico errôneo da condição
humana. A raiz dos problemas sociais reside unicamente no sistema
econômico, no "modo de produção". A religião, portanto, dá às
pessoas falsas esperanças de salvação.
A posição do sociólogo cristão deve se expressar na afirmação de
que existe uma religião “verdadeira” manifesta em sociedade e que,
além disso, há sempre presente alguma forma de religião. Isso não
significa ignorar as funções da religião ou o fato de que, para alguns,
a religião é usada como "ópio"; mas nenhuma dessas ideias precisa
ser o ponto de partida.
52
Estatística e Salvação
Uma vez estabelecida para o sociólogo a definição de religião,
uma posição terá sido assumida quanto ao caráter desta, sua veraci-
dade ou falsidade, sua eficácia ou futilidade. Obviamente, não são
muitos os sociólogos que tentam definir a religião em poucas palavras;
assim, é preciso encarar diferentes sistemas de análise usados no estudo
da religião. Aqui nós veremos brevemente três enfoques, nenhum dos
quais é mutuamente exclusivo ou hermeticamente fechado, mas que
deveriam nos dar alguma ideia das várias formas como os sociólogos
enxergam a religião. Usaremos deliberadamente exemplos simples e
conhecidos, pois estaremos analisando estas ideias apenas a um nível
simples e direto. Contudo, são exemplos que deveriam interessar a
todo cristão que reflete acerca do seu papel na sociedade.
A RELIGIÃO COMO CONDUTA
Esta categoria geral talvez seja a mais suscetível de investigação
empírica. É fácil conseguir estatísticas sobre a adesão e a prática reli-
giosa, podendo-se extrair delas todo tipo de conclusões. O sociólogo
pode ser capaz de demonstrar qual o grupo étnico ou social que tem
mais probabilidade de ser membro de tal e tal denominação, ou em
que áreas urbanas é mais provável uma maior assiduidade. Existem
provas, por exemplo, de que os grupos étnicos minoritários tendem
a se congregar com os grupos pentecostais mais exaltados, e de que
os moradores de bairros de classe média são muito mais tendentes
a frequentar uma igreja local do que aqueles que residem em vilas
operárias ou na periferia da cidade.
O estudo do comportamento religioso e das instituições é
geralmente muito revelador e às vezes é uma vergonha para a igreja
cristã. Um grande desafio é a questão da filiação de classes. A atividade
religiosa é geralmente um sinônimo do status da classe média, e a
igreja parece exercer muito pouca influência sobre as áreas da classe
operária. Além do mais, geralmente se acusa a igreja de proclamar
um evangelho de classe média, excluindo assim outros setores da
comunidade. O sociólogo procurará saber porque é que as crenças
religiosas parecem perder plausibilidade em certas áreas da cidade ou
então abaixo de um determinado nível salarial.
As respostas a questões deste tipo serão dadas em termos socioló-
53
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
gicos. Poder-se-ia argumentar que, devido à natureza do seu trabalho,
os trabalhadores que vendem mão de obra não passam pelas mesmas
necessidades que os profissionais liberais. A cultura moderna tende a
ser muito pragmática e a discussão quanto aos "fins" e "metas”, em
oposição aos "meios", limita-se educativamente a um setor muito
pequeno de pessoas. Além disso, muito da terminologia usada ao se
falar de valores, da morte ou acerca de Deus pode muito bem estar
desaparecendo do vocabulário de certos setores da sociedade.²
Os sociólogos cristãos, embora não ousem ignorar os proble-
mas levantados por este tipo de estudo sociológico, irão abordá-los
baseados em suas próprias pressuposições. Ao realizar sua pesquisa
sociológica, não podem esquecer que todas as pessoas realmente
precisam de salvação em Cristo. Por outro lado, pode ser que a "si-
tuação de trabalho" de diferentes grupos precise ser estudada muito
mais a fundo: ela poderia ser um fator que inibe o reconhecimento
das necessidades religiosas fundamentais.
A questão da linguagem (em relação com a classe social) é
igualmente muito importante. Os cristãos estarão negando a sua
mensagem de oferta gratuita das Boas Novas para todos se falarem em
uma linguagem esotérica ou se tiverem pouco a ver com aqueles cujas
aspirações profissionais podem ser diferentes das suas (ou que talvez
nem tenham uma aspiração profissional). Os sociólogos têm todo o
direito de denunciar esse tipo de hipocrisia, e é bom que os cristãos
lhes deem ouvidos. O apóstolo Paulo disse³ que a igreja seria julgada
de acordo com os padrões da sociedade pagã que a cercava, pois esta
enxergava as falhas que a igreja não via. Lamentavelmente, muitas
vezes as "respostas” cristãs para este tipo de problema não passam
de pura contemporização. Quanto à "linguagem", a solução, para o
cristão, nunca pode ser simplesmente abandonar qualquer indício de
"redenção", "sacrifício" ou "expiação”. Pelo contrário, a igreja deveria
expor o evangelho (que, afinal de contas, é “o poder de Deus para a
salvação de todo aquele que crê”4) sem os acréscimos extrabíblicos do
jargão sectarista ou aqueles provenientes do século XVII.
Mas não é hora de discutirmos essas coisas; queremos sim-
plesmente registrar que elas existem e começar a fazer alguma coisa
quanto à nossa própria situação. Mas vale a pena ressaltar que, embora
54
Estatística e Salvação
a definição sociológica de religião contenha implicações quanto à
veracidade ou falsidade da religião, pode ser que em outros aspectos
ela seja uma avaliação correta da situação. Nós nunca deveríamos
descartar qualquer "achado" sociológico sem antes considerá-lo
cuidadosamente. O importante é que sejamos honestos e coerentes
ao usarmos nossas suposições para lidar com os mesmos problemas.
Pelos exemplos dados até aqui, até parece que o sociólogo cris-
tão deve considerar a evangelização como a única tarefa dos cristãos.
Agora, embora seja verdade que a evangelização, em todas as suas
dimensões, é o meio escolhido por Deus para introduzir as pessoas
na sua família, o cristianismo não equivale à evangelização. A vida
cristã é para ser vivida, e convém lembrar que a fé afeta todo o nosso
ser. Existem outras áreas atingidas pelo sociólogo da religião que
merecem muita atenção. Poderíamos mencionar várias delas, mas
talvez a mais óbvia seja exatamente a prolífica área do elo de ligação
entre a religião e a família. Os ritos de passagem³ ainda costumam
ser realizados em um contexto de igreja.
As solenidades de casamento ainda são realizadas, muitas vezes,
nas igrejas e muitos bebês ainda são batizados. Mas que significado
têm esses rituais hoje em dia? Será que eles ainda significam alguma
coisa para quem deles participa? Existe uma porção de questões para
as quais não se encontram respostas satisfatórias. E se os sociólogos
cristãos comprometidos quiserem pelo menos alcançar os outros,
ainda há muito trabalho pela frente.
A RELIGIÃO COMO CRENÇA
Na prática, o sociólogo vai além da simples pesquisa estatística,
com suas limitadas conclusões, e diz algo a respeito das funções sociais
da religião. Nesta área, a abordagem de Durkheim, que foi provavel-
mente o primeiro "sociólogo da religião", tem tido uma influência
marcante.6
Durkheim chamou a atenção para o significado funcional
dos símbolos e do ritual no sentido de manter a integração e a
coesão social. Este enfoque levou outros também a pensar que o
comunismo e a psicanálise desempenham funções religiosas na
sociedade. A crença religiosa é estudada como sendo algo que
55
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
torna plausíveis e dá significado a certas práticas e instituições. Se
a morte, por exemplo, fosse descrita como “um passaporte para a
outra vida", esta descrição afetaria a maneira de se encarar a morte.
Já sua aceitação social seria completamente diferente se ela fosse
vista como uma aniquilação.
Aqui se vê a importância das obras de Berger e Luckmann (que
seguem as de Durkheim e Weber). Ambos os autores afirmam que a
ênfase positivista nas ciências sociais tem levado a uma negligência do
campo subjetivo da realidade social (como já discutimos em relação à
“intencionalidade"). Esta negligência já tinha sido tipificada anterior-
mente ao se ignorar a "religião como crença". Berger queria colocar
a sociologia da religião no contexto da sociologia do conhecimento,
a qual, como já vimos antes, abrange tudo que se considere como
conhecimento na sociedade. As conclusões de tal posição poderiam
ser resumidas como veremos a seguir.
As fórmulas sagradas e os rituais da religião são repetidos em
tempos de crise, a fim de que o mundo (ou nossa percepção de
mundo) não fuja do nosso controle.³ Para construírem um quadro
da realidade para si mesmas as pessoas necessitam de um sistema de
crença; e a religião desempenha um papel decisivo, tanto na ma-
nutenção como na construção dessa realidade. Esse edifício, uma
vez construído e solidificado, servirá de refúgio contra os graves e
constantes problemas da vida. As crises que mais agudamente se
sentem, segundo eles, são a anomia e a morte. Em tais situações é
bom quando se pode recorrer a um conjunto de normas "dadas",
pois elas nos ajudam a definir prioridades e a tomar decisões. Uma
doutrina como a da "imortalidade" traz esperança e conforto para
os enlutados, especialmente se ela está aliada à ideia de “céu", onde
quem sabe algum dia eles venham a rever os entes queridos. Assim
a fé pode ser "explicada" socialmente.
O interesse dos sociólogos não se limita apenas às crenças já
existentes, mas abrange também a manifestação cada vez menor
da fé religiosa. O estudo da secularização é um tema comum na
maioria das abordagens do fenômeno religioso e se constitui num
dos maiores campos de controvérsia da teoria atual. O sociólogo
poderia perguntar, por exemplo: "Se as instituições e os símbolos
56
Estatística e Salvação
explicitamente religiosos exercem menos impacto sobre a sociedade
e a cultura hoje, então o que é que está ocupando seu lugar, se é que
existe algum substituto?"; ou então: "Qual é a verdadeira causa do
declínio da frequência às igrejas? Será que ele tem algo a ver com
classe social, educação ou alguma outra variante?"
É claro que os cristãos deveriam se esforçar para responder a
estas questões. A sociologia só pode dar respostas a partir de suas
próprias ideias e linguagem. Suas conclusões não são necessariamente
erradas ou inverídicas; mas se a suposição implícita na sua teoria é a
de que a religião é apenas algo similar à "auto-transcendência”, então
talvez acabemos descobrindo que, devido a nossas próprias pressu-
posições, não existe entre nós qualquer comunicação que leve a um
entendimento mútuo. Muitos sociólogos acham que toda religião
não passa de mera elaboração humana, sendo, portanto, apenas uma
esperança vã. O estudo sociológico da religião como crença carece
muito esclarecimento: e, como cristãos, é obrigação nossa desenvolver
uma abordagem diferente.
Vejamos agora apenas uma vaga ideia do que isto significa com
relação à “secularização”. Se o que dissemos a respeito da religiosidade
intrínseca das pessoas (Capítulo 4, pp.63) é verdade, então isto deveria
afetar a nossa compreensão do processo de secularização. Para o cris-
tão, secularização não significa “perda de fé", mas sim "transferência
de crença”. Era justamente isto que queríamos dizer no capítulo 2
com relação à própria história da sociologia. Este é o ponto de partida
de uma concepção cristã de secularização. Além disso, o mostrar a
inter-relação deste assunto com outros temas discutidos nos permite
ver como os enfoques especificamente cristãos se encaixam de uma
forma relevante no mundo da sociologia.
RELIGIÃO COMO REIFICAÇÃO
Uma terceira forma de se abordar a religião, que surge da teoria
marxista, é através da reificação. Esta se refere à objetificação de um
desejo em busca de segurança, talvez de uma figura paterna ou da
esperança de um mundo melhor. As pessoas, especialmente quando
estão sendo oprimidas ou passando por necessidades, imaginam uma
situação "real" completamente oposta àquela em que se encontram, e
57
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
daí então fabricam uma religião. Em sua condição de alienadas, elas
criam (reificam) esse mundo falso a fim de compensar as misérias
presentes. A clara implicação desta visão é que, já que a religião é uma
ilusão, ela é, portanto, indesejável (pelo fato de atrapalhar qualquer
pretensão de se construir um céu aqui na terra).
O próprio Marx, que não acreditava que a religião correspondesse
a coisa alguma transcendente, escreveu que ela é “o suspiro dos opri-
midos, a alma de um mundo sem alma, a esperança de uma situação
sem esperança". Assim, visto a partir deste enfoque, o problema não
é a mudança de padrão da prática religiosa nem a sua decadência,
mas sim a própria presença da religião. A atenção fica voltada, não
para a mera incidência da secularização, mas para as "causas sociais”
da religião.
Marx dizia que a essência da religião se descobre na filosofia,
que revela a alienação básica do ser humano, demonstrando que
"não nos sentimos à vontade" no mundo, tal como está. A verdade
da filosofia, por sua vez, é descoberta na política. As ideias filosóficas
sempre tiveram alguma relação com as questões e os objetivos políti-
cos. No entanto, as próprias formas políticas demonstram ser apenas
relacionamentos sociais, caracterizados por conflitos e divisões. Então,
elaborando novamente este argumento, vemos que transformar a so-
ciedade de tal forma que as divisões de classes venham a desaparecer é
efetivamente tornar obsoleta a religião. Marx continua, portanto: "A
abolição da religião, como ilusória felicidade dos homens, é um pré-
requisito para sua verdadeira felicidade. O chamado para abandonar
as ilusões acerca de sua condição é um chamado para abandonar uma
condição que requer falsas ilusões."
Este, embora apareça agora em uma roupagem mais sofis-
ticada, é o ponto de partida básico para o sociólogo da religião
marxista. Convenhamos que os temas “históricos” é que geralmente
são tratados desta forma; mas nos anos setenta e oitenta este enfo-
que recebeu um novo impulso através de certos movimentos, como
os "Jesus People". Pode-se dizer, por exemplo, que os membros de
comunas cristãs estão fugindo da alienação de um mundo frustrante
para se refugiar num paraíso comunitário que, na realidade, existe
apenas em sua imaginação. A linguagem da alienação, da reificação
58
Estatística e Salvação
(que é, lembrem-se, a cosmovisão alienada) e da ideologia ainda
continua muito em voga.
O problema dos marxistas é a sua tendência de dar a entender
que sua interpretação da religião explica completamente a presença
e as funções desta. Embora esta forma de análise proporcione al-
gumas contribuições úteis, como a que leva à função ideológica da
religião, é simplesmente irreal aplicá-la a toda situação, esperando
encontrar respostas corretas. No entanto, a visão marxista realmente
se presta ao debate com a posição cristã, pois suas suposições básicas
são claramente explícitas e a base de debate é clara. Por exemplo, a
predição de Marx e Engels sobre a decadência cada vez mais acelerada
da religião recusa-se obstinadamente a se tornar verdadeira. Como
cristãos, nós deveríamos nos esforçar ao máximo possível para evitar
que os adeptos desta teoria, ao defenderem o outro ponto de vista,
acabem se metendo em situações constrangedoras. Ou seja: embora
seja verdade que certas pessoas realmente criam suas próprias religiões,
estas não passam de simulacros da verdadeira religião, que é obra de
Deus e, como tal, é irreprimível.
NOTAS
'Norman Cohn é o autor de um livro fascinante sobre o milenarianismo medieval: The
Pursuit ofthe Millennium (Paladin, 1970). Peter Worsley escreve sobre as seitas Cargo
em: The Trumpet Shall Sound (Paladin, 1970). O livro de James Beckford, Religion
in Advanced Industrial Society, (Allen and Unwin, 1989) tem material mais recente
sobre a sociologia da religião.
2 Ver, por exemplo, Alasdair MacIntyre, Secularization and Moral Change (Oxford
University Press, 1967).
31 Coríntios 5:1.
4 Romanos 1:16.
5 Casamentos, batismos ou apresentações, e cerimônias fúnebres.
6 E. Durkheim, The Elementary Forms of Religious Life (Allen and Unwin, 1971).
7 P.L. Berger, The Social Reality of Religion, and Thomas Luckmann, The Invisible
Religion (Macmillan, Nova York, 1967).
* Esses autores não distinguem de imediato entre a magia e a religião. Este problema
pode causar distorções na abordagem da religião.
59
Capítulo 6
AS QUESTÕES DOS ANOS 90
Nossa perspectiva do estudo sociológico hoje depende em parte
da maneira pela qual encaramos os anos 90s: se os vemos como o
final do século XX ou como o início do século XXI. Achamos que
tudo declina, se degenera, adoece, ou que há algo de novo no ar, uma
porta aberta para novos começos?
Os títulos de muitos livros recentes de sociologia e teorias
sociais evidenciam essa ambivalência. Alguns enfocam os "males da
modernidade": o individualismo egocêntrico exacerbado que perdeu
a noção de um propósito maior na vida; a concentração nos meios,
na razão instrumental expressa especialmente na tecnologia, banali-
zando a existência humana; a sensação de se estar preso à burocracia,
de ter perdido a liberdade.' Outros estão interessados em potenciais
positivos ou então em especulações sem compromisso. O velho tema
do progresso, embora tenha recebido vários golpes aparentemente
fatais, recusa-se a cair, e um brilhante futuro ainda nos espera. Ou
então o progresso está mesmo morto, mas isso é um alívio: já não
precisamos nos preocupar com as consequências das ações presentes,
porque, de todo jeito, nossa influência é mínima.
Os últimos vinte e cinco anos testemunharam uma preocupação
considerável com mudanças sociais de monta, a ponto de ser possível
inferir que está surgindo uma sociedade totalmente nova. Por um
lado, algumas teorias afirmam que o impacto social das tecnologias
de informação e comunicação, baseadas na microeletrônica, está nos
impelindo para uma era "pós-industrial" em que o conhecimento,
e não tanto o capital e o trabalho, será o novo eixo de rotação da
sociedade. É certo que tais desdobramentos têm um significado tre-
mendo. Os computadores e as novas telecomunicações estão sofrendo
transformações importantes em todas as áreas, desde o comércio
internacional até a administração doméstica. Mas é bem menos certo
que nos façam de fato superar as velhas desigualdades e os relaciona-
60
As questões dos anos 90
mentos fragmentados das sociedades industriais capitalistas.²
Por outro lado, um número cada vez maior de comentaristas
sociológicos alegam que a modernidade em si _ aquela fórmula socio-
cultural baseada na ciência e na tecnologia, no crescimento econômico
e na democracia está chegando ao fim. Ela está sendo substituída
por uma condição hoje conhecida como "pós-modernidade". No nível
cultural, os antigos compromissos do Iluminismo - com a Razão
e, acima de tudo, com o Progresso caíram em descrédito. Já não
são dignos de confiança. No campo econômico, os antigos sistemas
de produção em massa, inaugurados com as fábricas de automóveis
de Henry Ford deram lugar à produção flexível em lotes, como a que
nos fornece as roupas da Bennetton e os produtos personalizados.
E no campo social, as preocupações com o estilo de vida passaram
para o centro do palco. A defesa do consumidor desbanca a pro-
dução como a nova marca de identidade, integração social e assim
por diante. Movimentos sociais afins (como o de gays e lésbicas) e
questões específicas (como o pró-vida / pró-aborto) põem de lado a
antiga política partidária.
Novamente, alguns desses tópicos levantam discussões (e das
quentes!). Mas, indicando ou não o “fim da modernidade”, certa-
mente precisam ser considerados pelas análises sociológicas de hoje.
Problemas de consumo e sua ligação com propagandas de televisão
e marketing global, com centros de compras e poder aquisitivo, são
assuntos obrigatórios em todos as avaliações da vida social contem-
porânea. O mesmo acontece com a globalização: o fato de os limites
territoriais estarem se tornando cada vez menos importantes para a
vida econômica e política, fazendo-nos cientes de que habitamos num
pequeno planeta e consumimos os mesmos produtos - coca-cola!
-, vem induzindo um novo senso de unidade e diversidade. Um
tema comum a todas as áreas acima, a escolha, também é proeminente
em uma terceira: o estilo de vida. Os movimentos feministas nos
mostraram que “o que é pessoal é político”, mas essa ideia voa agora
para muitos domínios. Queremos liberdade para escolher nosso estilo
de vida, sem os dogmas da tradição ou da convenção que possam
limitar, por exemplo, as relações homossexuais.
Tais alterações em nosso panorama social, no entanto, têm
61
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
seu preço. Em contraste com nossos antepassados, cujas vidas eram
muitas vezes dominadas pelas condições "naturais", tais como clima
e doenças, a modernidade faz com que nosso mundo corra riscos em
massa. Tememos hoje, em escala global, a disseminação da Aids,
a proliferação das armas nucleares e os males dos vazamentos de
materiais radioativos, os grandes problemas ecológicos dos recursos
não renováveis, dos ambientes devastados, da destruição da cama-
da de ozônio, da poluição, e da pobreza e da fome endêmicas que
continuam. Isso significa que já não basta simplesmente "planejar
o futuro" como faziam nas sociedades tradicionais. Somos agora
constantemente obrigados a calcular riscos e a viver à luz desses ris-
cos, até a próxima notícia. A esperança do Iluminismo de que um
entendimento melhor nos levaria a uma convivência melhor ficou
um tanto quanto esvaziada.
As condições sociais e culturais em transformação também
afetam radicalmente a nossa maneira de investigar e explicar essas
mesmas condições. Na era presente, os processos e as instituições
sociais passaram a se referir cada vez mais a si mesmos do que a
qualquer fonte “externa" de sabedoria ou conhecimento. As fábri-
cas, os escritórios e até hospitais e escolas são dirigidos segundo suas
próprias regras internas. Princípios de administração em lugar de um
código de ética ou de um compromisso com a justiça ou saúde. É
difícil reintroduzir questões de valores ou propósitos em tais sistemas
fechados. E mais: se antes a noção de um conhecimento adicional
era tida como um alvo aceitável, hoje a análise tende para a suspeita.
Queremos questionar os motivos, "as agendas e os currículos escon-
didos" das práticas econômicas, educacionais, religiosas etc. Marx,
Freud e Nietzche, os "mestres da suspeita", fizeram um bom serviço.
Com tudo isso, como ficam os que não apenas resistem ao rela-
tivismo, mas o fazem em nome de uma verdade única? Para começar,
é preciso deixar bem claro que tal compromisso não envolve atitudes
autoritárias nem intolerância. Aliás, muito pelo contrário. A atitude
básica do cristianismo em todas as áreas, inclusive intelectual e polí-
tica, é de humildade. O entendimento social é construído em torno
do amor ao próximo, não do controle, da manipulação ou de uma
preocupação cínica. Mas essa atitude tem suas raízes na revelação,
62
As questões dos anos 90
não na razão. Não que os cristãos sejam irracionais, mas que tentamos
submeter todos os nossos processos de raciocínio à sabedoria superior
de Deus. Reconhecendo abertamente nossa tendência para pensar de
forma errada e equivocada, tentamos encontrar meios de integrar a
avaliação cristã da sociedade com a análise sociológica. Não temos a
pretensão de achar que podemos gerar padrões sociais definitivos a
partir de nós mesmos ou da sociedade, nem que haja respostas fáceis.
Lutamos para moldar nossas explicações sociológicas e escolher
as teorias segundo nossos compromissos cristãos, mantendo ao mes-
mo tempo o máximo de honestidade e fidelidade possível em relação
as todas as informações que possamos colher. Esses compromissos
incluem tanto o que sabemos em princípio a partir dos propósitos
de Deus para o mundo social, revelados na criação, quanto dos indí-
cios de que eles serão cumpridos no futuro.6 A ligação entre ambos
é, obviamente, a cruz de Cristo, em que Deus já está trabalhando,
"reconciliando todas as coisas". Aqueles que conheceram a Deus
em Jesus percebem que ser discípulo implica crescimento em vários
níveis, inclusive econômico (dividir), político (justiça) e assim por
diante. Mas os que ainda não foram tocados por Cristo também
podem perceber alguns princípios essenciais, porque eles brotam da
criação, o ambiente em que todos vivemos. Os cristãos se esforçam
em todas as coisas para progredirem rumo aos “novos céus” e à “nova
terra", cujos contornos dão forma às nossas esperanças e estratégias
presentes.
Por fim, os cristãos sempre estarão atentos para o lugar da igreja.
Embora muitas vezes precisemos nos arrepender de erros passados,
que vão desde exploração econômica até abuso sexual, em que a igreja
tem se envolvido, os cristãos ainda desejam defender a igreja como
um agente de transformação. A secularização, que alguns consideram
trágica, também pode ser vista como uma liberação para que a igreja
seja ela mesma. A separação entre a autoridade secular e as igrejas
estatais e oficiais pode diminuir o poder e o privilégio da igreja (e
isso dói para alguns). Mas, ao mesmo tempo, liberta a igreja para
que ela possa oferecer as Boas Novas e exemplificar diante do mundo
uma vida de cuidado uns pelos outros, pelas nossas comunidades e
pelo mundo. Isso também afeta a maneira de fazer a análise social.
63
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
Há dois perigos gêmeos nas maneiras pelas quais a igreja se
relaciona com a sociedade. Ou nos acomodamos às ondas de mu-
danças tornando-nos ilhas reclusas de conforto e consumo, ou
adotando padrões sexuais da cultura ao redor - ou resistimos. Esta
segunda opção pode nos levar a nos associar com a política reacio-
nária de direita ou a adotar uma postura sectária intolerante, mais
preocupada com pureza doutrinária do que com um compromisso
público sincero com Jesus. Os sociólogos muitas vezes entendem que
é uma ou outra: não há meio termo. Mas, na realidade, entre esses
dois extremos está o caminho bíblico de “estar neste mundo mas não
ser deste mundo". Essa tensão é o pano de fundo, tanto da vida da
igreja propriamente dita como da análise social que fazemos dela.
NOTAS
1 Veja p. ex. Charles Taylor, The Malaise of Modernity, Toronto: Anansi, 1991.
2 Daniel Bell discutiu essas questões num texto clássico: The Coming ofPostindustrial
Society, Nova York: Basic Books, 1973. Veja também meus comentários em The
Silicom Society, Grand Rapids: Eerdmans, 1986 e em The Informations Society: Issues
and Illusions, Cambridge: Polity Press / Nova York: Blackwell, 1988.
3 Ulrich Beck, The Risk Society, Londres / Beverly Hills: Sage, 1992
* Anthony Giddens, Modernity and Self-Identity, Stanford: Stanford University Press,
4
1991.
> Alan Storkey, A Christian Social Perspective, IVP, 1980
6 Veja também Brian Walsh e Richard Middleton, The Transforming Vision, IVP. 1984
'Richard Mouw comenta a esse respeito em Politics and the Biblical Drama, Eerdmans,
1976. O assunto também é tema de meu livro, Future Society, Lion, 1984.
64
Capítulo 7
SOCIOLOGIA CRISTÃ
A esta altura já deve estar bem claro que existem abordagens
cristãs da sociologia. É igualmente claro que, no momento, a voz
cristã é virtualmente inaudível no teatro sociológico. Espero ter con-
seguido demonstrar que estudar sociologia não é anticristão e que,
pelo contrário, nós temos o dever de "levar cativo todo pensamento
à obediência de Cristo",1―e isto inclui o pensamento sociológico!
Alvin Gouldner, refutando a ideia de que a informação sociológica
é neutra, defendeu uma sociologia moral autoconsciente que vise a
transformar a sociedade de acordo com seu sistema de valores ex-
plícito. Que vergonha para os cristãos! É isto exatamente o que nós
deveríamos estar dizendo e fazendo. Ainda se ouve pelo vale o eco
desse desafio.
Na verdade, a expressão “sociologia cristã” não é nova. Lá pelos
idos de 1880, houve até um bispo que, demostrando profunda cons-
ciência social, viu a necessidade de uma sociologia cristã orientada
pela Bíblia! Desde então, já se fizeram diversas tentativas no sentido
de lançar as bases para uma sociologia cristã, resultando daí algumas
reflexões significativas. Nenhuma delas, porém, chegou a se concre-
tizar de fato; o que geralmente aconteceéque essas iniciativas logo
acabam sendo desviadas para a ação social (que deveria ser parceira
e não uma, substituta do pensamento sociológico) ou então se com-
prometendo com um "cristianismo” sub-bíblico. É uma tarefa um
tanto solitária.
Mas falar de sociologia cristã hoje é expor-se à controvérsia e a
sérias críticas. Já há muito tempo e por diversas razões, os próprios
cristãos têm revelado um forte receio de "invadir" o mundo acadê-
mico com ideias cristãs. Eles têm engolido, por exemplo, a senha da
"neutralidade", acreditando ser possível manter uma “objetividade
imparcial", mesmo no campo das ciências sociais. Porém isto, se é
que existe, excluiria uma sociologia cristã. Mas uma outra razão,
65
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
igualmente séria, é que alguns acham que uma sociologia cristã po-
deria arrogar-se o direito de ser a única forma válida de compreender
a sociedade, equiparando-se de certa forma à Bíblia. Embora seja
impossível tentar delinear aqui uma sociologia cristã, pelo menos
três coisas nós deveríamos fazer: demonstrar que essas objeções são
falsas, sugerir uma forma de se criar uma sociologia cristã e mostrar
por que esta precisaria existir, mesmo que levasse outro nome.
Sem dúvida, uma boa parte da sociologia moderna discorda,
a nível de pressuposições, com a nossa visão cristã da sociedade. A
sociologia é apenas um produto de um mundo cujos valores e es-
truturas têm sido relativizados. Produto, pelo menos em parte, do
século XIX, que rejeitou a cosmovisão cristã. A sociologia assumiu
uma autoridade própria, usando a “sociedade" como único ponto
de referência. Assim, ela elimina a possibilidade da existência, por
exemplo, de uma religião autêntica ou de um padrão correto para a
nossa vida em sociedade. Por um lado, os sociólogos afirmam que
não têm direito algum de se pronunciarem quanto a essas questões,
e, por outro lado, dão a entender, pelas próprias coisas que escre-
vem, que acreditam que a sociologia tem explicado a existência de
alguma prática ou instituição na sociedade. O sociólogo tem que
fazer grandes suposições acerca da natureza humana e da "vida
social normal" a fim de que a sua sociologia pareça uma disciplina
acadêmica viável. É a este nível pressuposicional que se deve dar o
debate em primeiro lugar.
A sociologia cristã jamais poderia ser monolítica ou ser consi-
derada o único meio de se conhecer a verdade acerca da sociedade. A
sociologia produzida por qualquer pessoa é, mesmo assim, sociologia,
e em geral apresenta dados com os quais o cristão não pode deixar
de concordar. (Afinal de contas, os descrentes suprimem a verdade
que está aí, mesmo que seja numa forma distorcida. 2) Portanto, o
fato não é bem assim, que os sociólogos que não professam a fé cristá
simplesmente vendam "falsa" sociologia"! Não esqueçamos que os
sociólogos cristãos, mesmo fazendo tudo que está em seu poder para
evitar erros, acabam inevitavelmente cometendo equívocos devido
à ação pervertedora do pecado que ainda permanece. Mesmo assim
nós cremos que Deus nos deu sua Palavra e seu Espírito a fim de nos
66
Sociologia cristã
capacitar a interpretar a realidade de uma maneira agradável a Deus.
Cabe aqui uma advertência sobre como se deve ler a Bíblia,
embora já tenhamos tocado neste assunto antes. A sociologia cristã
não é apenas a sociologia "comum" salpicada aqui e ali de textos.
bíblicos adequados a cada situação! A Bíblia é a Palavra de Deus e
é considerada um livro consistente, coerente e de toda autoridade.
Nós devemos depender do Espírito Santo para que nos capacite a
compreender a Bíblia e, portanto, aproximar-nos dela com humil-
dade, conscientes de que nós mesmos somos cheios de falhas. Temos
que examinar com seriedade o contexto de certos ensinamentos es-
pecíficos, sem esquecer, contudo, que o ensinamento vem "de fora":
ele não provém de autores humanos. Acima de tudo, a Bíblia deve
ser vista como um todo, um livro integrado, e seus detalhes devem
ser vistos na perspectiva dos temas centrais da criação, redenção,
do Senhorio de Cristo e assim por diante. Somente assim seremos
capazes de definir nossos próprios pressupostos acerca da sociedade,
para depois usá-los como base para a nossa sociologia.
Resumindo: ao falarmos em uma "sociologia crista" não estamos
nos referindo a uma sociologia que deixe completamente de lado
toda sociologia “não cristã”, mas sim uma sociologia que desenvolva
seus pressupostos sociológicos específicos, usando-os para criticar ou
modificar outras sociologias. Existe também lugar para uma teoria
sociológica alternativa, de características claramente cristãs. O perigo
consistiria em transformar a sociologia em uma nova arma sectarista
-
e certamente não é esta a intenção que jaz por detrás do uso do
termo. No entanto, falar meramente dos cristãos em sociologia seria
insinuar uma divisão de funções (cristão/sociólogo) que é, conforme
já vimos, irreal, tanto do ponto de vista cristão quanto do sociológico.
Seria negar, por um lado, que Cristo é o Senhor do nosso pensar so-
ciológico; e, por outro lado, que nossos pressupostos cristãos tenham
qualquer relevância para nossa vida como sociólogos. É por isso que
defendemos o uso apropriado do termo "sociologia crista".
Oxalá os cristãos se orgulhassem das Boas Novas, sem se en-
vergonharem da sua cosmovisão bíblica e prontos a lutar por suas
convicções cristãs na arena sociológica! Como em qualquer outra
atividade, nós deveríamos orar para que, ao estudarmos sociologia,
67
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
fossemos cheios do Espírito de Deus! Necessitamos urgentemente
de uma “mente crista"³ ao considerarmos a sociedade em toda a sua
complexidade e no seu distanciamento cada vez maior das normas
e valores dados por Deus. A soberania divina não é uma doutrina
“teórica”, mas sim um incentivo prático que deve desafiar os cristãos
à conquista de novas áreas para o seu Senhor.
Como cristãos, temos o dever de denunciar, com tato e com
mansa autoridade, a inadequação de toda teoria que não admita
qualquer coisa que não seja positivista ou naturalista. Em última
análise, a prova da veracidade da nossa visão de mundo reside, não
em altas teorias (que, mal empregadas, não passariam de um simples
dogmatismo condescendente) mas em vidas transformadas. O soci-
ólogo cristão deveria se caracterizar pela humildade, honestidade e
integridade intelectual, tanto em sua vida quanto em seus escritos.
Eis como o apóstolo Pedro resume tudo isto: "Estai sempre
preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da es-
perança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor,
com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra
vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom
procedimento em Cristo."4
NOTAS
12 Coríntios 10:5.
2 Romanos 1:18.
3 The Christian Mind (SPCK, 1963) é o título de um livro excelente escrito por Harry
Blamires, no qual ele pede que os cristãos pensem "cristãmente" em todo tempo.
4 1 Pedro 3:15-16.
68
GLOSSÁRIO
Anomia: é um estado em que há ausência de normas ou de um padrão
de comportamento socialmente aceito ao qual adaptar-se.
Behaviorismo: é o estudo da conduta humana (ou qualquer outra)
como reação a certos estímulos, geralmente em condições controladas.
Desvio: consiste em desviar-se das normas e valores sociais.
Determinismo: é a doutrina segundo a qual todas as coisas são der-
minadas por alguma causa; segundo o determinismo econômico, as
forças econômicas produzem os mesmos resultados em todo lugar.
Empirismo: é a doutrina que diz que o conhecimento só pode ser
obtido a partir da experiência, ou seja, mediante a experimentação.
Internalização: é a aprendizagem das coisas de tal forma que elas
acabam se transformando em hábitos, capacidades, crenças e opiniões.
Naturalismo: é a doutrina que rejeita sistematicamente o sobrena-
tural.
Secularização: é o processo mediante o qual as crenças, práticas e
instituições religiosas perdem o seu significado social. (Ver pág. 80)
Socialização: é a transmissão da cultura, ou o processo mediante o
qual as pessoas aprendem as regras e as práticas dos grupos sociais.
(Ver pág. 50)
69
O CRISTÃO E A SOCIOLOGIA
OUTROS LIVROS DO AUTOR
KarlMarx: A Christian Assessment ofhis Life and Thought, Oxford:
Lion/Grand Rapids: Eerdmans, 1979.
Sociology and the Human Image, Leicester / Downers Grove: In-
terVarsity Press, 1983.
Future Society, Oxford: Lion, 1984.
The Streple's Shadow: On the Myths and Realities ofSecularization,
Londres: SPCK, 1985; Grand Rapids: Eerdmans, 1987.
The Information Society: Issues and Illustrations, Cambridge: Polity
Press Nova York: Blackwell, 1988
The Rise of Surveillance Society: Computers and Social Control in
Context, Cambridge: Polity Press, 1993.
The Electronic Eye: The Rise of Surveillance Society, Cambridge:
Polity, 1994.
Postmodernity, Open University Press 1994.
Computers, Surveillance, & Privacy, (Com Elia Zureik) University
of Minnesota Press, 1996.
Jesus in Disneyland: Religion in Postmodern Times, Cambridge:
Polity, 2000.
Surveillance After September 11, Cambridge: Polity, 2003.
Surveillance as Social Sorting: Privacy, Risk and Digital Discrimina-
tion, Taylor & Francis, 2003.
Surveillance Studies: An Overview, Cambridge: Polity, 2007.
70
O CRISTÃO E A
SOCIOLOGIA
Uma perspectiva cristã
Muitos cristãos ficam desnorteados quando se deparam com a
sociologia. Alguns perdem a fé. Outros conseguem manter a
fé, mas não sabem como juntar as duas coisas. São poucos os
que conseguem utilizar os recursos da sociologia de maneira
totalmente coerente com a fé cristã.
David Lyon, professor de sociologia em Kingston, no Canadá,
vem nos prestar um serviço muito valioso por meio deste livro.
Ele mostra que não precisamos temer a sociologia, provando,
aliás, que podemos aprender muito com seus insights.
Além disso, ensina que devemos enfrentar os problemas da
sociologia, dispondo-nos a contribuir para que ela se aperfeiçoe
no conhecimento do ser humano e da sociedade.
ISBN 978-85-7055-075-0
ABU
EDITORA
Respostas bíblicas
para o mundo hoje
www.abueditora.com.br
9788570550750