Sobre ontens 24.
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Sobre Ontens, 2024, v.1
www.revistasobreontens.blogspot.com
ISSN 2176-1876
Editorial
EDITORES
Prof. André Bueno [UERJ]
Prof. Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Prof. Everton Crema [UNESPAR]
COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Prof. Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS]
Prof. Gustavo Durão [UFRRJ]
Prof. José Maria Neto [UPE]
Prof. Leandro Hecko [UFMS]
Prof. Luis Filipe Bantim [UniVassouras]
Prof. Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Prof. Maytê R. Vieira [UFPR]
Prof. Nathália Junqueira [UFMS]
Prof. Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Prof. Thiago Zardini [Saberes]
Prof. Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Prof. Washington Santos Nascimento [UERJ]
COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Aristides Leo Pardo [UNESPAR]
Prof. Caroline Antunes Martins Alamino [UFSC]
Prof. Jefferson Lima [UDESC]
Periódico produzido e promovido pelo
LAPHIS - Laboratório de Aprendizagem Histórica
SBO 24.1
Rev. SBO 24.1 Jan-Jul
Sumário
HISTÓRIA E A QUESTÃO AMBIENTAL NA SALA DE AULA: DESAFIOS NA
PERCEPÇÃO DOCENTE, A PARTIR DE UM ESTUDO DE CASO NA REDE
MUNICIPAL DE ENSINO NO ESTADO DA BAHIA (2024) por Ayrton Matheus
Nascimento...................................................................................................7
MATERIALISMO HISTÓRICO COMO PARADIGMA HISTORIOGRÁFICO:
APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO DE REVOLUÇÃO por Bruno
Yashinishi e Cristóvão Gouveia ................................................................. 16
TEORIA DAS ELITES POLÍTICAS E O JOGO DO PODER: UMA BREVE
DISCUSSÃO por Daniel Lima e Erick Sampaio ........................................... 28
DEMOCRACIA E DITADURA MILITAR BRASILEIRA: RELAÇÕES DENTRO DA
EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA por Débora Zai Potulski .............................. 48
MEMÓRIA E PERCEPÇÕES DO TEMPO E DA TEMPORALIDADE NO
OCIDENTE PÓS-1989 por George Zeidan Araújo ....................................... 59
POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS E LIVROS DIDÁTICOS: PNLD E ENSINO DE
HISTÓRIA por Mariana de Sá Gaspar ........................................................ 73
OS DEZ LAMENTOS SOBRE A EDUCAÇÃO: UM ANTIGO TEXTO CHINÊS PARA
PROBLEMAS ATUAIS DE APRENDIZAGEM por André Bueno ..................... 88
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OS DEZ LAMENTOS SOBRE A EDUCAÇÃO: UM ANTIGO TEXTO CHINÊS
PARA PROBLEMAS ATUAIS DE APRENDIZAGEM
André Bueno
Resumo: O objetivo deste breve texto é propor uma provocação
intelectual sobre os problemas atuais de aprendizagem e leitura a partir
da conexão com um texto chinês do século 13, intitulado 'Dez Lamentos
sobre a Educação' de Chen Yuanjing. Como veremos, alguns desafios
relacionados a construção de conhecimento e a aquisição de ideias
parecem ser mais antigos e recorrentes do que usualmente supomos.
Segue ainda uma tradução desse texto inédito em língua portuguesa.
Palavras Chave: Ensino; Aprendizagem; Leitura; História; Sinologia.
Summary: The objective of this brief text is to propose an intellectual
provocation about current learning and reading problems based on the
connection with a 13th century Chinese text entitled 'Ten Laments about
Education' by Chen Yuanjing. As we will see, some challenges related to
the construction of knowledge and the acquisition of ideas seem to be
older and more recurrent than we usually assume. A translation of this
unpublished text into Portuguese also follows.
Keywords: Teaching; Learning; Reading; History; Sinology.
Lá se vão três décadas dedicadas ao ensino de história, e nem por isso
deixo de ficar surpreso com as novidades que a vida escolar e acadêmica
apresenta. Não tenho dúvidas que uma delas – e que tem me incomodado
sobremaneira – é uma profunda e complexa dificuldade de realizar o
processo de leitura junto ao público discente. Não se trata de propor, de
forma ligeira, que as pessoas não gostam mais de ler – isso não me parece
verdadeiro. Elas leem, e os mais diversos tipos de coisas. Contudo, essa
leitura é fragmentária, superficial, e com raras exceções, esbarra em
questões psicocognitivas de difícil solução [afinal, como uma pessoa,
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inscrita em um curso de ciências humanas, espera realmente ser bem
sucedida sem desenvolver o hábito/prática da leitura?]. Devemos estar
conscientes de que muitos textos, hoje, representam uma linguagem de
acesso restrito, derivada da complexidade do ambiente científico em que
foram construídos; embora, penso eu, o processo de formação acadêmica
envolve igualmente decifrar esses textos, de modo a compreendê-los e
dar-lhes sentido, seja promovendo-os, criticando ou traduzindo ao público
leigo, entre muitas opções.
Costumo usualmente a analisar, de forma periódica, as questões que
envolvem esse contexto de transformação na história e nos métodos de
ensino. Um dos primeiros caminhos que me deteve a atenção é uma
mudança nos padrões e nos suportes da linguagem, que interferem
diretamente na construção dos processos cognitivos. Como Maryanne
Wolf [2019] apontou, o impacto das mídias digitais no cotidiano tem
influenciado profundamente nossa relação com o processo de aquisição
de informações, e consequentemente, a construção de uma estrutura de
leitura mais coerente e consciente. A par da revolução que se desenrola
no movimento de difusão de conteúdos, como apontado por Yuk Hui
[2020], que permite um acesso nunca antes visto aos mais diversos tipo de
materiais [e de certo forma, a uma democratização mais ampla da
informação], o desenvolvimento cognitivo e crítico das novas gerações
tem acompanhado de forma paradoxal a todo esse contexto. É evidente
que os discentes jovens de hoje conseguem realizar operações eletrônicas
com uma desenvoltura notável, em associação com softwares intuitivos;
por outro lado, tem se tornado cada vez mais patentes alguns dos efeitos
problemáticos dessa relação.
Há uma dificuldade clara de assimilação de informações, bem como de
analisá-las criticamente; as redes digitais tem promovido uma avalanche
de conteúdos equivocados [das quais as fake news são a expressão mais
notável], que são absorvidos quase mecanicamente; não há uma
estruturação cronológica dessa sequência de informações, que leva a
dificuldades de construção de processos e contextos históricos, a
reincidência de anacronismos, e, por conseguinte, à formação da
memória. Por fim, na raiz desses problemas está na dificuldade em
reconstruir a prática da leitura como meio de acesso a linguagem e ao
mundo em relação à dinâmica das redes digitais.
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Tolio [2022] e Coscarelli [2023] se debruçaram sobre os desafios do
desenvolvimento cognitivo e da prática da leitura no século 21,
apresentando as dificuldades e especificidades dessas novas relações.
Seus estudos mostram como as gerações mais recentes operam dentro de
uma nova episteme de aprendizagem, o Conectivismo – que podemos
definir de forma rápida como a construção do conhecimento a partir de
um pensamento em rede. Esse processo apresenta particularidades, no
que toca ao seu desenvolvimento, com todos os problemas e perspectivas
positivas que ele pode representar; mas queda evidente que entre sua
consolidação, á ser estabelecida por um amplo acesso as redes de
pensamento, seja físicas e/ou digitais, existe um atraso, um descompasso,
um ‘delay’ que constrói um cenário perturbador de desconhecimento e
limitações cognitivas. Há um ‘meme’ que tem circulado nas redes e que
expressa, de maneira muito clara, os desafios que a sociedade tem
enfrentado em relação ao domínio das práticas de leitura e de aquisição
de conhecimento:
Referência: https://br.ifunny.co/picture/com-licenca-e-aqui-a-reuniao-
das-pessoas-que-nao-qq1JmTNNA
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Esta imagem revela a sensação incômoda que muitos têm vivenciado em
não conseguirem atingir meios de compreensão efetivos nos processos
comunicativos. Preexiste uma distonia que incapacita o leitor para a
aquisição da informação. É preciso questionar se isso se deve aos meios
de vinculação de informação [o suporte] ou a estrutura cultural e
psicocognitiva que subjaz na formação da individualidade. Uma série de
experiências tem buscado atuar nesse espaço problemático. Apenas para
citar alguns exemplos: Rosenberg [2021] defende uma metodologia
voltada para a construção de novos padrões de diálogo que tornem a
transmissão da informação um processo claro e associativo; já no ensino
de história, o uso de novas mídias tem sido compreendido com um meio
criativo de vincular conteúdos e ideias, aproximando-se dos processos de
construção de conhecimento conectivistas [Bueno e Neto 2020; Neto e
Belchior, 2022]. Via de regra, muitos educadores estão conscientes da
situação atual, buscando meios para dirimir esse contexto de crise
educativa.
A China como um espelho distante
Mesmo assim, ainda é preciso explorar mais profundamente o problema,
e talvez, compreendê-lo dentro de uma perspectiva histórica mais ampla.
Quero refazer a pergunta: a dificuldade de leitura é um problema atual, ou
uma questão reincidente no desenvolvimento histórico e educacional das
sociedades? Esse questionamento surgiu quando encontrei o texto
intitulado ‘Os Dez Lamentos’ [Shi Keshi 十可惜] de Chen Yuanjing 陳元靚,
escritor chinês do século XIII.
Chen viveu na época da dinastia Yuan, durante o governo de Kublai
Khan忽必烈 [1215-1294] – aquele mesmo que teria ‘adotado’ Marco Polo
na corte, numa das narrativas mais controversas que ainda existem
[Wood, 1995] – período esse marcado por uma profunda sensação de
decadência da cultura chinesa. A China estava dominada por mongóis, e
suas cortes estavam lotadas de funcionários estrangeiros, numa estratégia
empregada pelos conquistadores para equilibrar a balança de poder
dentro das instituições administrativas. Se por um lado os mongóis
aproveitavam toda a estrutura imperial montada pelos chineses, por
outro, os chineses ressentiam-se de estarem apeados de sua
autodeterminação, e identificavam na educação a gênese de suas
fraquezas e incapacidade de reação. Para eles, era a falta de
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conhecimento e de uma identidade cultural comum que enfraquecera sua
capacidade de reagir às pressões externas.
Preocupado em salvaguardar os saberes de sua civilização, Chen produziu
uma imensa enciclopédia intitulada ‘Vasto Registro de Todos os Assuntos’
[Shili Guangji事林廣記], na qual descrevia amplamente os mais diversos
temas relacionados à cultura chinesa [Tian, 2012]. Curiosamente, o
governo de Kublai, publicamente um defensor da diversidade, acabou por
patrocinar a difusão dessa obra, estimulando o resgate de um sentido
mais amplo de sinidade entre intelectuais e diversos leitores chineses.
Dessa publicação gigantesca, nos interessa aqui um fragmento do Volume
9, que trata sobre Educação. Chen selecionou um interessantíssimo texto
chamado ‘Os Dez Lamentos’, de autoria de Zhang Xianwu 張憲武 [um
funcionário imperial] para criticar o problema da leitura e do ensino em
sua época [Dong, 2017]. O texto me chamou a atenção porque, mais de
oitocentos anos depois, parece que estamos a lidar com uma recorrência
hodierna. Precisamos aqui recorrer a François Jullien com seu conceito de
‘Pensar a partir de um fora’ [2012] para entender como a China pode nos
servir como um espelho distante, preservando experiências seculares que
nos guiam na compreensão de problemas humanos antigos.
Os chineses possuem uma das experiências pedagógicas mais antigas do
mundo, construindo - desde o século 12 AEC – currículos, teorias e
metodologias de ensino [Yu e Liu, 2012]. Várias peças da literatura clássica
versam diretamente sobre Educação, como é o caso do Livro 14
[Xueji學記] do Livro da Cultura [ou Livro dos Ritos, Liji禮記], o tratado
sobre educação de Hanyu 韓愈 [Bueno, 2024] ou o Manual de Pedagogia
[Xiaoxue小學] de Zhuxi朱熹[1130-1200 (ver Zhuxi, 1889)]. Esses são
apenas exemples destacados de um tema proficuamente discutido entre
os pensadores chineses. Para eles, a educação estaria indissociavelmente
ligada ao sucesso [ou fracasso] dos projetos sociais. Por essa razão,
quando Chen Yuanjingng publica os ‘Dez Lamentos’, parecia claro que sua
intenção era identificar as razões pelas quais a sociedade chinesa falhara
em manter sua liberdade e identidade.
No entanto, penso que o texto de Chen vai mais além. Ele identifica não
apenas problemas sociais e políticos, mas os desafios cognitivos na prática
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da leitura e no uso dos suportes de aprendizagem. A valoração da leitura
como ato de conhecer o mundo e adquirir sabedoria [ou ao menos,
consciência crítica] atravessam a construção da teoria dos dez lamentos, e
apontam para as áreas de tensão no processo educativo.
A primeira vez que encontrei com esse texto deu-se graças ao sinólogo
Imre Galambos, cujo vídeo resgata este importante fragmento literário e o
analisa do ponto de vista da construção escrita [ver link nas Referências].
A partir dessa provocação, procurei o texto original, do qual dou agora a
primeira tradução em língua portuguesa. Minha intenção aqui é notar que
os conflitos relacionados a educação parecem ser sazonais, e mesmo em
uma sociedade profundamente preocupada com questões pedagógicas,
os períodos de transição, causados seja por mudanças culturais, sociais ou
tecnológicas [e todas elas se misturam, eventualmente] são
incontornáveis –mas nem por isso, menos preocupantes. A recorrência de
um problema não significa abandonar a busca de soluções eficazes; e os
desafios contemporâneos apontam para a necessidade urgente de
modificar e aprofundar os meios de leitura e de construção do
conhecimento.
Os Dez Lamentos – Tradução
Prefácio: Eu costumava me culpar por não ter aprendido quando era
jovem, por não ter estudado e ter conhecimentos superficiais. Qual a
minha vergonha? Agora estou velho, inútil para o mundo. Mas sei que o
erro de não aprender também pode ser corrigido. Uma vez, notei como
todos os estudantes da aldeia enfeitavam roupas e bonés enquanto
brincavam no mercado. Por isso eu lhes disse que quando as pessoas
letradas falam entre si, falam sobre altruísmo e ética, quando os
comerciantes falam sobre si mesmos, falam sobre riqueza e lucro. Em tão
tenra idade, já negligenciavam os estudos por prazer. Nos tempos antigos,
as pessoas não se importavam muito com a riqueza material, mas
valorizavam muito o seu tempo. Ou seja, um educado deve se preocupar
com o tempo fugaz. Abandonar os estudos é uma pena! Também ouvi
falar do poema de Han Yu chamado “Este dia pode realmente ser
lamentado”; daí a teoria dos “Dez lamentos”.
Escrito por Zhang Xianwu, Mestre Assistente da Corte, natural de Yanping
***
Nos tempos antigos, as pessoas eram pobres e não conseguiam se
sustentar. Eles carregavam os clássicos consigo enquanto capinavam ou
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recitavam os livros enquanto transportavam lenha. Hoje, as pessoas
comem bastante, vestem-se bem e tem muito tempo livre. Este é o
primeiro lamento.
Nos tempos antigos, as pessoas não achavam muito longe vir de mil li
carregando seus livros nas costas, em busca de um professor. Hoje, as
pessoas têm pais dignos e irmãos mais velhos para ensiná-las, mas ainda
assim não os ouvem. Ou têm um professor digno na aldeia e ainda assim
não sabem nada de sua vizinhança nem estudam. Este é o segundo
lamento.
Nos tempos antigos, as próprias pessoas copiavam os manuscritos, dia e
noite, e sofriam constantemente com a falta de livros. Hoje as pessoas
têm livros impressos prontos e guardam dez mil fascículos amontoados
sem nunca lê-los. Este é o terceiro lamento.
Antigamente, as pessoas passavam três anos aprendendo um único
clássico. Elas tinham trinta anos quando chegavam a dominar os cinco
clássicos. Desde crianças, seu único objetivo era estudar. Hoje, as pessoas
têm livros desde cedo, mas não os lêem. Enquanto isso, os dias e meses
passam rapidamente. Este é o quarto lamento.
Antigamente, as pessoas liam reunindo vagalumes ou sob a luz refletida
na neve. Hoje, as pessoas podem abrir seus pergaminhos perto da luz das
lanternas, mas simplesmente se envolvem alegremente em conversas
inúteis e se divertem jogando xadrez. Este é o quinto lamento.
Houve pessoas que não conseguiam ver o sol e a lua, que não conseguiam
ouvir o som do trovão. Os estudantes da nossa idade têm visão clara e
audição aguçada, todos recebem as lições da sabedoria. Porém, por não
estudarem, não sabem para onde vão e desconsideram a conduta
adequada e os rituais. Na verdade, eles são quase o mesmo que serem
surdos e cegos. Este é o sexto lamento.
Quando uma pessoa tem corpo, tem registro; quando tem registro, tem
deveres. Os alunos da nossa idade têm pais que trabalham para eles ou,
devido aos méritos de longa data da família, estão isentos do serviço. Eles
têm livros, mas não os leem, sendo iguais às pessoas fora dos portões das
cidades e nos campos longínquos. Este é o sétimo lamento.
As pessoas sofriam por causa de suas origens, nunca ouvindo os dizeres do
Livro da Poesia e dos Livros dos Ritos, ou se tornavam agricultores,
jardineiros, artesãos ou comerciantes sem estudo. Hoje, as pessoas
nascem em famílias educadas e começam a exercer a profissão dos pais
desde cedo. Eles têm livros, mas não os leem, simplesmente continuam a
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aventura dos seus antepassados. Isto é o quão longe eles vão antes de se
esborracharem. Este é o oitavo lamento.
As pessoas costumavam sofrer porque não havia lugar onde pudessem se
refugiar e se cultivar. Hoje existem academias e escolas locais onde
podem procurar professores. Então eles colocaram o chapéu de estudante
e roupas largas, e desfilam alegremente chamando-se de “estudiosos”.
Mas na realidade eles não conhecem um único clássico, não conseguem
não compor um único poema; eles são uma vergonha para os sábios do
passado. Este é o nono lamento.
Existiam grandes laços entre o senhor e seu ministro, entre o pai e seu
filho, existiam as grandes condutas de lealdade e piedade filial, de
benevolência e ética. Os alunos da nossa época não estudam e não
praticam, e por isso os grandes laços e as grandes condutas servem
apenas para varrer o chão. Yang Xiong disse: “Se uma pessoa não estudar,
mesmo que ela não tenha nada com que se preocupar, não será como um
passarinho?” Este é o décimo lamento.
Conclusão
Uma vez, Confúcio teria dito ‘que esclareço os empolgados, oriento os
dedicados. Mas se eu aponto um lado da questão e o estudante não
percebe as outras três, não repito’ [Lunyu 論語, 7:8]. Apesar de ser uma
postura tentadora, Confúcio morreria de fome se tivesse que dar aulas
nos dias de hoje. A situação é mais complexa do que parece. Dada as
milhares de pessoas que precisam ser educadas, a própria
sustentabilidade social depende de amplas redes de ensino, que ajudem a
compor minimamente algum tipo de estrutura macrossocial. Contudo, a
leitura de Chen Yuanjing revela que desde o século 13, os chineses já
lidavam com problemas muito similares aos nossos, e que um projeto
pedagógico nacional era uma necessidade real. Esse projeto não lidava
somente com questões políticas ou dos costumes, mas com o problema
da própria construção do conhecimento e do acesso a informação. Notem
que o texto nos informa que o acesso aos livros, às escolas e aos
profissionais de ensino estavam amplamente difundidos [dentro das
possibilidades da época, é claro], mas a desconexão com a prática do
estudo, com a conscientização individual, com o respeito as instituições,
parece ser muito similar ao dos dias de hoje.
Esse espelho distante nos incita a uma reflexão mais atenta: estamos
vivenciando um contexto de transição em que novamente esse tipo de
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crise se impõe? E que respostas podemos dar para esses novos desafios?
Aparentemente, os empreendimentos tecnológicos de agora estão a
modificar de maneira ainda mais séria e densa as estruturas cognitivas de
aprendizagem, e fragmentam constantemente a distribuição das
informações, bem como sua avaliação. Noutro sentido, não parece nem
um pouco viável o saudosismo reacionário que propõe a abolição dos
meios digitais como se esses fossem a grande doença da modernidade;
mas estudos recentes mostram que uma relação mais saudável [isto é,
menos intensa] e equilibrada com os meios eletrônicos pode contribuir
para uma melhoria significativa na qualidade de vida [Cunha e Souza,
2019; Abjaude, 2020].
Por essa razão, pode parecer estranho recorrer a um texto do século 13
para discutir questões contemporâneas; mas questiono, novamente, o
quão modernas podem ser essas mesmas questões. Na época de Chen,
não havia meios digitais, nem internet. Nem por isso o abandono em
relação aos livros, a leitura e a conscientização sociocultural pareciam ser
menores, se pudermos acreditar no autor. Os professores da época já
sofriam com o descaso, a educação parecia ser apenas um verniz social
para visões equivocadas e desarmônicas de mundo, e mesmo com toda a
informação disponível, o domínio dos sabres reduzia-se a pedaços de
coisas. O qual atual não parece isso?
Dessa ponderação, constata-se que o enfrentamento aos problemas
educacionais é um projeto sem fim, construindo perenemente a partir do
desenvolvimento das sociedades e culturas humanas. Porém, essa
conclusão não nos exime da ação; ao contrário, ela revela o quão
necessário é, sempre, empreender para a melhoria de uma civilização a
partir de uma estrutura educacional compromissada. Os chineses já
sabiam que, sem educação, não há futuro garantido. A definição de ser
humano parte de conhecer a si mesmo e se refletir no outro, razão final
da busca de alteridade. Sem isso, a ignorância e a exclusão serão sempre a
regra de leitura do mundo, impondo visões restritivas na aquisição de
conhecimento e, consequentemente, no desenvolvimento dos próprios
seres. Se Chen Yuanjing já sabia desses problemas no século 13, o que
falta para nós escutar esse aviso?
Referências
André Bueno é professor adjunto de História Oriental na UERJ.
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