Revista Iluminuras
Entre experiências e experimentações com nikkeis no Brasil1
Between experiences and experimentations with nikkeis in Brazil
Entre experiencias y experimentaciones con nikkeis en Brasil
Alexsânder Nakaóka Elias2
Universidade Estadual de Campinas
Campinas, SP, Brasil
[email protected]Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6746-0464
Recebido em: 30 de junho de 2024
Aceito em: 30 de julho de 2024
1
Fonte de financiamento da pesquisa: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq, modalidade bolsa PDJ).
2
Pesquisador do NIISA/Unimontes, Montes Claros, Minas Gerais/Brasil. Também é pesquisador
associado do Navisual (UFRGS), Lágrima (Unicamp) e Leppais (UFPel). Docente e pesquisador,
pós-doutor (2023) em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS)
Iluminuras, Porto Alegre, v.25, n.68, p. 251-285. Outubro, 2024.
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Resumo
Este trabalho, substrato do pós-doutorado que realizei junto ao Núcleo de Antropologia
Visual (NAVISUAL/PPGAS-UFRGS) com financiamento do CNPq (PDJ), busca dar a
ver comunidades e interlocutores/as nikkeis no Brasil, a partir da produção de diários
escritos, fotografias, filmagens e gravações de áudio. Aqui, a questão central será
investigar como relacionar as experiências estabelecidas em campo, a partir da produção
de múltiplas grafias e narrativas, para compor e experimentar o saber antropológico.
Logo, o procedimento da montagem se fará duplamente potente. Primeiramente, porque
tomá-la como um modo de pensamento sui generis é instigante para relacionar
elementos heterogêneos dentro da “antropografia” (Ingold, 2015). Além disso, buscarei
estabelecer um conhecimento por e com imagens, que será obtido a partir de
experimentações gráficas e multissensoriais.
Palavras-chave: Nikkeis; Antropologia da Montagem; experiência; experimentação;
Antropologia Visual.
Abstract
This work, the basis of the post-doctorate I carried out at the Núcleo de Antropologia
Visual (NAVISUAL/PPGAS-UFRGS) with funding from CNPq (PDJ), seeks to reveal
nikkeis communities and interlocutors in Brazil, based on the production of diaries
writings, photographs, filming and audio recordings. Here, the central question will be
to investigate how to relate experiences established in the field, based on the collection
and production of multiple spellings and narratives, to compose and experiment with
anthropological knowledge. Therefore, the montage procedure will be doubly powerful.
Firstly, because taking it as a sui generis mode of thought is instigating to relate
heterogeneous elements within “anthropography” (Ingold, 2015). Furthermore, as I will
seek to establish knowledge through and with images, which will be obtained from
graphic and multisensory experiments.
Keywords: Nikkeis; Anthropology of Assembly; experience; experimentation; Visual
Anthropology.
Resumen
Este trabajo, base del posdoctorado que realicé en el Núcleo de Antropologia Visual
(NAVISUAL/PPGAS-UFRGS) con financiamiento del CNPq (PDJ), busca revelar
comunidades e interlocutores nikkeis en Brasil, a partir de la producción de escritos
diarios, fotografías, filmaciones y grabaciones de audio. Aquí, la cuestión central será
investigar cómo relacionar experiencias establecidas en el campo, a partir de la
recolección y producción de múltiples grafías y narrativas, para componer y
experimentar con conocimientos antropológicos. Por tanto, el procedimiento del
montaje será doblemente poderoso: primero, porque tomarlo como un modo de
pensamiento sui generis instiga a relacionar elementos heterogéneos dentro de la
“antropografía” (Ingold, 2015). Además, buscaré establecer conocimientos a través y
con imágenes, que se obtendrán a partir de experimentos gráficos y multisensoriales.
Palabras clave: Nikkeis; Antropología del Montaje; experiencia; experimentación;
Antropología Visual.
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PREÂMBULO:
O presente artigo3 corresponde a um breve substrato da minha pesquisa de
pós-doutorado, intitulada “Por uma Antropologia da Montagem: narrativas e grafias
nikkeis”, que desenvolvi junto ao NAVISUAL, no PPGAS/UFRGS4, entre 2021-2023.
O intuito, aqui, é oferecer algumas propostas teórico-metodológicas e experimentais a
partir das relações construídas com grupos de nikkeis-decasséguis5, especialmente
aqueles estabelecidos nos estados do Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Por meio
dessas interlocuções, em especial com duas sensei (mestra, professora), Yoshiko Inoue
Honda e Iaioi Tao; pretendo dar a ver as experiências de vida dessas pessoas,
perpassadas pelo encontro desse duplo ethos (Bateson, 1936; Mead & Bateson, 1942),
japonês e brasileiro.
Nesse sentido, partirei de um breve panorama do trabalho para mostrar, então,
algumas experimentações verbo-visuais, ou, melhor dizendo, gráficas e
multissensoriais, que têm na montagem seu ponto de convergência e ressonância.
Destaco, aqui: 1) as produções audiovisuais alicerçadas no conceito de
(foto)etnobiografias (Nakaóka Elias, 2018); 2) as instigantes relações entre imagem e
escrita que podem ser potencializadas a partir de formas de expressão como os
ideogramas, a poesia e o teatro japonês, em especial o kanji, o haiku e o noh/kabuki; e
3) o kamishibai (teatro de papel). Ao tomar como base tais experimentações, o objetivo
será o de delinear algumas possibilidades analíticas, epistemológicas e reflexivas do que
aqui nomeio de uma “Antropologia da Montagem”.
ESBOÇANDO, OU, “MONTANDO” O CAMPO DE PESQUISA:
No projeto de pós-doutorado submetido à UFRGS e ao CNPq, o meu intuito era
o de realizar etnografias multissituadas (Marcus, 1995) com japoneses/as de São Paulo,
3
Este artigo consiste em um versão revisada e expandida da comunicação homônima por mim
apresentada na XIV Reunião de Antropologia do Mercosul, realizada entre 01 e 04 de agosto de 2023, na
Universidade Federal Fluminense (Niterói, Rio de Janeiro), no GT “Antropologia (Áudio)Visual do
analógico ao digital: práticas etnográficas e estratégias teórico-metodológicas com/por imagens”.
4
A pesquisa contou com o auxílio de uma bolsa PDJ do CNPq.
5
Para saber mais sobre as distinções e possíveis aproximações entre os conceitos de “nikkeis” e
“decasséguis”, ver Hikiji e Kishimoto, 2008.
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Paraná e Rio Grande do Sul, buscando definir os fluxos e o ethos que aproximava os
nikkeis no Brasil. Contudo, o início do trabalho se deu ainda no período de pandemia
(2021), contexto que limitou o contato presencial, tendo voltado meu foco de pesquisa
para o “Centro Cultural Internacional Tikufukai no Brasil”, na cidade de Ipatinga,
localizado no Vale do Aço, Minas Gerais, região onde nasci e na qual habitava durante a
quarentena. O Centro é de responsabilidade da atual presidenta, Yoshiko Inoue Honda, e
do seu companheiro, João Satoru Honda. A sensei Yoshiko é mestra nas artes do
ikebana (arranjos florais ou “arte da subtração”), origami (arte de dobrar papel), pintura
com tinta (sumiê), caligrafia e idioma japonês, cerimônia do chá (chadõ), dança
japonesa (bon odori), além de manter um (delicioso) restaurante, o “Recanto Japonês
Takê”.
Após a estabilização do estado pandêmico e a gradual abertura para o convívio
presencial, me mudei para a região metropolitana de Porto Alegre (RS), tendo
direcionado a minha atenção para a maior colônia japonesa do estado, localizada na
cidade de Ivoti, que abriga um Memorial da Imigração com objetos e imagens doadas
pelas famílias pioneiras; além de uma escola de japonês (gakkõ) e um amplo pátio, local
onde acontece, mensalmente, uma feira com produtos agrícolas, comida típica e
exibições culturais. A confecção do que venho chamando de um “duplo diário de
campo”, escrito e gráfico (composto por fotografias, vídeos e áudios), tem início nesse
“Memorial”, localizado próximo das habitações para onde, a partir de 1966, 26 famílias
se estabeleceram. Depois, juntaram-se a elas mais 19, totalizando 45, que adquiriram 37
lotes, formando a Colônia Japonesa de Ivoti. Cada família possuía inicialmente cerca de
5 hectares, cultivando, no começo, uvas do tipo itália. Os 200m2 construídos do
Memorial – que se situa entre as ruas Monte Fuji (montanha/vulcão sagrado no Japão) e
Sakura (árvore símbolo do país) e possui arquitetura em estilo japonês –, assim como os
900m2 do entorno, reúne fotografias vernaculares, objetos de viagem, ferramentas do
trabalho agrícola, roupas, utensílios domésticos, brinquedos, objetos sagrados, vestígios
e narrativas dos/as japoneses/as que ali se instalaram. Além do acervo local, o Memorial
abriga relíquias da província de Shiga (Japão), estado coirmão do Rio Grande do Sul,
com 81 peças representativas da economia e da cultura, como cerâmicas e outros
objetos.
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Feiras mensais ocorrem, faça chuva ou faça sol, sempre no último domingo de
cada mês. Nestas ocasiões, as famílias da comunidade vendem alimentos típicos,
hortaliças e objetos como omiyage (souvenir). Foi nesse local, especificamente no
gakkõ, que conheci minha segunda “interlocutora privilegiada” (Nakaóka Elias, 2018),
sensei Iaioi Tao, pessoa articulada e com alta capacidade narrativa, à lá Nikolai Leskov,
de Benjamin (1936). Foi ela quem me recebeu, apresentou e integrou como
“fotógrafo-antropólogo” (Nakaóka Elias, 2018) junto à comunidade. A partir do meu
contato com essas interlocutoras, portanto, conheci muitas outras pessoas, formando um
meshwhork (Ingold, 2012), cuja representação apresento, abaixo:
Dentre as tantas vivênvias em campo, destaco o dia 26 de junho de 2022, quando
ocorreu uma feira especial, em comemoração ao 114º aniversário da imigração japonesa
no Brasil. Tivemos taikô (tambor japonês) e bon odori (dança japonesa); a presença de
autoridades políticas e a exibição de artes marciais como o Judô, Kendô e Aikidô,
encerrando-se o evento com uma tradicional cerimônia do chá (chadõ). Esta mesma
cerimônia foi, inclusive, observada na cidade de Ipatinga (Minas Gerais), junto à sensei
Yoshiko. Além de ter presenciado tal evento em janeiro de 2021, já havia realizado com
ela uma longa entrevista, em tom de conversa informal, no dia 17 de dezembro daquele
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ano. Nesta ocasião, tive acesso a um baú com cerca de 470 fotografias, que me foi
emprestado pela sua guardiã para que eu as fotografasse/reproduzisse digitalmente,
inclusive servindo como uma das possíveis formas de devolutiva, uma contra-dádiva da
pesquisa (Mauss, 1925). Ainda são muito vivas, em mim, as lembranças dos incríveis
sabores e aromas do chá e dos doces que o acompanhavam, pois na cerimônia em Minas
Gerais eu era um dos convidados da sensei:
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Entrevista com Yoshiko sensei e acesso ao acervo
pessoal de fotografias (Ipatinga, MG).
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Sequência dando a ver a cerimônia do chá (Ipatinga, MG).
Na feira de julho de 2022 tivemos duas oficinas de origami (arte de dobrar
papel). Já entre 01 e 02 de agosto do mesmo ano, participei, – observando, fotografando
e filmando –, do curso de ikebana (arte com arranjos florais) da mestra japonesa Tada
Reishu, da escola Sangetsu, a convite do cônsul Takashi Yokoyama. No dia 21 de
agosto, acompanhei o último dia do 9º Festival do Japão em Porto Alegre. O evento
contou com a presença de um grande público, com muitas pessoas fazendo cosplay de
seus personagens favoritos/as. A celebração nos brindou com apresentações de karaokê,
coral, taiko, bon odori e artes marciais diversas, como Aikidõ, Naginata (espada
samurai), Kyudõ, Kempõ e Sumô. Além disso, houve exposições de jogos de tabuleiro
como o gõ e o shõji (xadrez japonês); karuta (literalmente, jogo de “cartas); origami;
ikebana; bonsai; e das escolas japonesas do Rio Grande do Sul (gakkõ), incluindo a de
Ivoti. Neste evento me deparei com o pedido de Igor Hideki Hatanda, que havia
conhecido em Ivoti, e que me incumbiu de realizar um registro fotográfico do seu
trabalho, que consiste na arte do takezaiku ou “bambooworking”.
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Arte de dobrar papel (origami), com o sensei Hideki Murata (Ivoti, RS).
Takezaiku, com o sensei Igor Hatanda (Porto Alegre, RS).
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Tríptico mostrando uma aula de sumiê, pintura e
caligrafia com tinta (Ivoti, RS).
A MONTAGEM COMO METODOLOGIA: TRÊS BREVES EXPERIMENTOS
Esta pesquisa parte de dois grandes desafios, intimamente interligados: (1)
compreender como se dá o conjunto de experiências compartilhadas entre
“fotógrafo-antropólogo” e o grupo/pessoas estudadas e; (2) a partir do estabelecimento
das imbricações possíveis entre diversas formas de expressão, refletir sobre o
conhecimento que é por elas gerado e sobre como experimentar tal conhecimento. Um
trabalho, portanto, formado por um fluxo binário, ou triádico, pensando no movimento
que remete ao próprio ritmo da vida, composto também pelos intervalos/silêncios. Para
tanto, ofereço a seguir três breves experimentos verbo-visuais, alicerçados no conceito
de (foto)etnobiografias e a partir de elementos expressivos da cultura nipônica, a saber,
o kanji/haiku/kabuki e o kamishibai.
Aqui, tomo como alicerces teóricos-metodológicos especialmente dois autores:
Aby Warburg, que em um dos seus inovadores projetos (chamado Atlas Mnemosyne e
realizado entre 1924 e 1929) reuniu aproximadamente 900 fotografias em um
dispositivo de “painéis móveis”, que constantemente eram montados, desmontados e
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remontados. Nessa obra, cíclica e inacabada, imagens heterogêneas (de tempos, origens
e lugares distintos) dialogam entre si, formando e reformulando sentidos, ideias e
sensações. Além dele, tomarei como referência central, inclusive para pensar nas
potencialidades da escrita ideogramática nipônica, as reflexões teóricas e criações
audiovisuais de Sergei Eisenstein, para quem, grosso modo, “tudo era montagem”.
EXPERIMENTO 1 – (FOTO)ETNOBIOGRAFIAS
Nesse primeiro exercício, busco estabelecer as relações possíveis entre as noções
de “experiência” (Ingold, 2007, 2012; Kofes, 2015; Benjamin, 1987) e
“experimentação”, a partir dos seguintes questionamentos: Quais o(s) lugar(es) das
narrativas etnobiográficas na pesquisa, visto que elas partem da experiência de
interlocutores/as privilegiados/as, mas se consolidam durante o período no qual o(a)
antropólogo(a) se relaciona com eles? Como transmitir as experiências de pesquisa para
que outras pessoas as possam conhecer? Como compartilhar a minha escrita
etnográfica, composta também pelas minhas experiências e percepções em campo,
incorporando, efetivamente, a presença dos/as interlocutores/as?
Na tentativa de solucionar essas indagações, tenho investido no conceito de
“fotoetnobiografia” (Nakaóka Elias, 2018), cunhado a partir da justaposição de dois
vocábulos: “etnobiografia” (Kofes, 2015, Gonçalves, 2015, Cardoso, 2015), que por si
já é a montagem formada pelos termos “etnografia” e “biografia”; e “fotobiografia”, que
consiste na junção das palavras “fotografia” e “biografia”. Dessa forma, a noção de
“fotoetnobiografia” está tendo profícuos desdobramentos ao longo desta pesquisa, cujo
intuito é o de definir os parâmetros relacionais presentes no estilo de vida dos/as
nikkeis”.
Benjamin (1994, p. 204-205) nos dirá que o ato de contar histórias “sempre foi a
arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas”.
Nesse movimento do (re)contar, os ouvintes seriam, também, elos fundamentais, visto
que ao escutar as histórias adquirem, de certa forma e espontaneamente, o dom
narrativo de recontá-las. Adiciono, nesse caso, a forma como eu mesmo recontarei tal
conjunto de vivências com os nikkeis, antropograficamente. Para Kofes (2015) é
necessário, afinal, enfrentar o desafio de compreender o estatuto das narrativas
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biográficas na Antropologia e contestar o uso apenas instrumental das estórias de vida6
nas etnografias antropológicas. Assim, a autora (2001) propõe o uso dos conceitos
“etnografia de uma experiência” e/ou “etnobiografia” como exemplares para sugerir
que uma narrativa biográfica pode ser, propriamente, uma narrativa etnográfica. Nesse
sentido, gostaria de citar dois trechos das narrativas de vida das sensei Yoshiko e Iaioi,
que fazem parte de longas entrevistas (cerca de duas horas e quarenta minutos cada
uma) registradas áudio-visualmente:
Meu nome é Yoshiko Inoue Honda, nasci em 09 de dezembro de 1967. Então,
atualmente tenho 54 anos de idade. Vim ao Brasil com meus seis anos de
idade. Meus pais chamam Kenji Inoue, hoje com 85 anos de idade; minha
mãe, Kikuko Inoue, 82 anos de idade. Nasci na cidade de Shimonoseki, na
província de Yamaguchi, no Japão, e viemos ao Brasil em 1973. Meu avô, pai
da minha mãe, chama-se Kyoharu Ota, nome artístico Tikufu Ota; e minha
avó materna Eiko Ota. Da parte do meu pai, Masadi Inoue, meu avô; e minha
avó paterna, senhora Mitsuko Inoue. Eu morava, então, na cidade de Chiba,
que tem um apoio da Nippon Steel, da época, né? Então era uma cidade mais
siderúrgica, igual aqui, Ipatinga. Eu não me lembro muito bem da minha
infância no Japão, mas principalmente eu me lembro bem das aulas de arte
japonesas, porque minha avó, da parte da minha mãe, era mestre. Então eu,
com meus três anos de idade, praticava já instrumento de koto, que é uma
arpa japonesa, com três anos, quase não aprendi muito porque era pequena. E
também aulas de ikebana com minha avó e com meu avô, que são os
fundadores do Centro de Cultura Japonesa, no Japão. Então, essas aulas eram
regularmente, né? Práticas. E da cerimônia do chá. Também minha avó era
mestre da cerimônia do chá. Ela chamava Eiko Ota, né? Nos ensinava. As
lembranças dessas artes milenares até hoje estão na minha memória e
também na vida da gente... (Entrevista concedida pela sensei Yoshiko Honda,
no dia 17 de dezembro de 2021).
Meu nome é Iaioi Rosane Ueda Tao. Iaioi porque eu nasci em março, não sei
se por falta de ideias de nome. No antigo calendário japonês os nomes de
cada mês tinham nomes femininos, o meu, Iaioi, foi porque nasci dia 20 de
março. Começa por aí. Sobrenome de solteira Ueda, do meu pai; e Tao, do
meu esposo. Tao não é chinês, é japonês (risadas)! Muitos confundem que é
chinês, mas não é! É japonês! Nasci no dia 20 de março de 1965, na cidade
de Cachoeira do Sul, antigamente a capital nacional do arroz, mas hoje em
dia não é mais... De lá, meus pais vieram pra cá, Ivoti. Meus pais são
imigrantes japoneses. Meu pai como técnico avícola veio pro Rio de Janeiro
em 1956. Depois de três, quatro anos, ele veio com três amigos descendo o
Brasil, nos estados, para verem onde iriam se fixar. Encontraram Santa Maria.
Eu não sei se em Santa Maria acabou o dinheiro e eles foram acolhidos por
um padre da igreja batista. E lá eles permaneceram por dois anos. E nessa
época, toda a imigração, o governo japonês tinha o controle das entradas e
sabiam onde as pessoas estavam, né? Aí, disseram: “estamos procurando um
local, uma gleba de terra, onde podemos colocá-los também, se for a vontade
de vocês. Aí escolheram Ivoti e se estabeleceram aqui. A minha mãe veio
depois. Ela veio em 1960 com a minha avó paterna. Então, acho que minha
mãe se casou com minha avó! Porque meus pais não se conheciam. É muito
6
Opto pelo termo “estórias” para me referir às narrativas orais elaboradas pelos interlocutores, em
detrimento do vocábulo “história”, diretamente relacionado ao factual e à disciplina “História”, embora
tenha consciência de que este dualismo caiu em desuso e que, por vezes, “estória” tenha o significado de
algo meramente ficcional, inverídico.
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interessante isso, né? Só se conheciam por cartas e fotografia: “Ah, uma
moça muito trabalhadora”. “Ah, ele também muito inteligente, né?”.
Arranjado em partes, porque ela queria sair, 23 anos, idade já para casar,
meio passando, a idade, na época. E o vizinho da minha mãe era colega de
aula do meu pai. Quando ele soube pela minha avó paterna que meu pai
estava procurando uma moça, ou ele ia casar com uma loira de olhos azuis, a
minha vó ficou então horrorizada, olha só... Xenofobia já começa por aí, né?
Porque não conhece outras pessoas de outras raças e então o pessoal fica bem
assustado. “Ai, vou arrumar uma moça, espere um pouco!”. E conheceu
minha mãe! E gostou da minha mãe... Ela gostou da minha mãe, então meus
pais se casaram no papel. E daí a vó veio junto com a minha mãe. Imagina: a
sogra trouxe a nora para dar pro filho, né? (Entrevista concedida pela sensei
Iaioi Tao, no dia 15 de outubro de 2022).
A partir desses breves relatos, gostaria de enfatizar que a noção de
“experiência”, tanto a minha, enquanto pesquisador, quanto a dos/as pesquisados/as,
constitui, aqui, ponto basilar. Para Ingold (2012), a etnografia, assim como a
antropologia, é transformacional, isto é, o etnógrafo seria influenciado pela sua
“experiência” e isso refletiria no seu futuro trabalho, complexo e exigente. Esses
movimentos e entrelaçamentos entre os sujeitos implicados na pesquisa ressaltam,
novamente, as potencialidades da montagem, capaz de, mais do que unificar, dispor a
etnografia (enquanto experiência) e a tecitura antropográfica (como experimentação) em
uma malha, elencando uma ligação formal-estrutural entre ambas. Dessa forma, ao
considerar os elos possíveis entre os conceitos de “experiência” e “experimentação”
(que requerem do pesquisador uma capacidade inventiva), a montagem tem gerado
experimentos verbo-visuais a partir das vivências de campo.
Portanto, pensar a partir desta definição expandida de montagem permite tomar
o próprio campo como uma “montagem experiencial”: o etnógrafo observa, anota, ouve,
fotografa, filma, desenha, conversa, gesticula, pensa, reflete, performatiza, imagina,
assim como os/as seus/suas interlocutores/as o fazem. Colocam em jogo e
compartilham, dessa forma, uma profusão de relações e sentidos/sensações, no que
anteriormente denominei de “etnografia multissensorial” (Nakaóka Elias, 2018), que é
remontada no momento da composição da “antropografia”.
No que tange ao conceito de (foto)etnobiografia, realizei um primeiro corte da
entrevista com a Yoshiko sensei, que teceu suas narrativas de vida tendo como ponto de
partida seu acervo pessoal de fotos vernaculares (que posteriormente digitalizei). Tal
entrevista pode ser acessada pelo link
https://www.youtube.com/watch?v=JMDU9_Mm0Dw. Esta elaboração se deu a partir
das intersecções entre dois tipos distintos de arquivos visuais/fotográficos, visto que eu
também produzi muitas fotografias da minha interlocutora (tanto na cerimônia do chá,
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quanto durante a entrevista), buscando relacionar esses dois conjuntos visuais a partir da
montagem e obliterando um possível dualismo entre imagens produzidas pelo
pesquisador e àquelas pertencentes aos/às pesquisados/as. Esses e outros experimentos
fazem ressoar reflexões pertinentes ao trabalho com e por imagens, tais como: Quais os
lugares que a fotografia (e as imagens, em geral) possui na Antropologia? O que fazer
com as imagens? Como as imagens nos transmitem afetividade e nos fazem narrar?
Como narrar a partir das imagens? “Como pensam as imagens e como elas nos fazem
pensar?”.
EXPERIMENTO 2 – KANJI, HAIKU E KABUKI
Para Eisenstein (2002a, 2002b) a montagem é a metodologia para a construção
não apenas do Cinema, ofício no qual obteve destaque, mas também a de todas as outras
formas artísticas e de pensamento. Não obstante, para Eisenstein (2002a, 2002b “tudo é
montagem”, e isso inclui a pintura, o desenho, a fotografia, o teatro kabuki, a escrita
ideogramática (como o kanji japonês ou os hieróglifos egípcios), a poesia haikai e, até
mesmo, a memória e a imaginação. De fato, o cineasta soviético formulou sua
concepção “dialética” de montagem (ou montagem intelectual) partindo dos
ideogramas, do poema e do teatro japonês.
Isso porque as escritas ideogramáticas (também a hieroglífica) possuem
diferenças importantes em relação à escrita fonética, visto que os ideogramas são
pictóricos e cada um representa uma palavra/ideia (são icônicos). Assim, na escrita
japonesa, formulações que não podem ser representadas por “um” desenho (ideograma)
passam por uma espécie de montagem: a combinação de kanjis é fruto, portanto, de uma
“montagem dialética”. Na imagem a seguir, temos, por exemplo, as re(a)presentações
visuais de ideogramas básicos como fogo (火), sol (日), montanha (山), lua (月),
campos de arroz (田), rio (川), árvore (木) e água (水), nas quais as relações com as
coisas/objetos representadas são elementares:
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Contudo, é importante destacar que a escrita japonesa não se constitui
inteiramente como ideogramática (ou como justaposição de imagens), sendo que tal
designação serve melhor à escrita chinesa antiga, que cedeu seus caracteres ao kanji.
Enquanto o chinês antigo não é uma língua flexional e cada signo escrito representa
“uma coisa entre coisas”, uma unidade de sentido relativamente autônoma (e não uma
junção de vários morfemas que, se considerados isoladamente, são desprovidos de
sentido), a escrita japonesa, num dado momento (749 d. C-1185 d.C), necessitou da
criação de sistemas silábicos (hiragana e katakana) auxiliares, surgidos como
simplificação dos kanjis. Enquanto o hiragana é utilizado para possibilitar a transcrição
de desinências próprias da língua japonesa e representar termos nativos, o katakana é
utilizado para representar, por exemplo, onomatopeias e estrangeirismos. A inovação
linguística da escrita japonesa (em relação ao chinês antigo) é, certamente, um elemento
importante para compreensão dos haiku (como jogo da métrica dos versos, portanto, da
sonoridade silábica, ou dos “ons”) e contribui com o próprio conceito de “montagem”
aqui explorado, uma vez que agrega mais um sentido (o sonoro) às imagens poéticas
dos ideogramas.
Ingold (2015), em “Sete variações sobre a letra A”, nos mostra que os caracteres
do alfabeto grego-romano também possuíam, em sua gênese, uma ligação visual/gestual
com aquilo que nos era apresentado. Indo além desta reflexão, Carlo Severi nos revela o
instigante conceito de “imagens quiméricas”, que tem seu alicerce empírico nos rituais
xamânicos por ele pesquisados. Ao partir da análise do grafismo ameríndio, o autor
mostra que tais quimeras se apresentam como “imagens complexas”, levando em conta
a abordagem iconológica proposta pelo historiador da arte alemão, Aby Warburg. Os
ideogramas japoneses seguem a mesma proposição, comportando-se como imagens
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dialéticas e complexas, que unidas formulam conceitos, nos apresentam ideias,
constituindo não somente uma simples adição de termos, mas conformando algo
exponencial:
Evolução(?) da letra A, que em sua gênese re(a)- Pássaro-serpente hopi, em cerâmica
presentava a cabeça de um boi (Ingold, 2015). Policromada (Severi, 2007).
Na imagem a seguir, por exemplo, o termo higashi (que significa “leste”, ou
“onde o sol nasce”), é a montagem da estilização dos ideogramas sol (日) e árvore (木),
simbolizando os primeiros raios de sol que aparecem atrás de uma árvore.
Nihongo Challenge N4-N5 (2010)
Nihongo Challenge N4-N5 (2010)
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Já na imagem acima, é claramente perceptível que o ideograma 魚, que significa
peixe (sakana), é a estilização do ser/coisa representado. A partir desse ideograma e
complexificando um pouco mais a análise, temos a composição 漁師, que significa
pescador (ryoushi). Nessa montagem (dialética), temos o radical estilizado 水 (sanzui,
água) e o ideograma 魚 (sakana, peixe) unidos, articulados com 師 (que significa
kyoushi, professor/mestre). Sozinhos, portanto, são ideogramas que representam
objetos. Quando combinados são “multiplicados”, tendo como “produto” algo que
representa um conceito, “mestre da pesca”.
Para Eisenstein, a montagem deve ser tomada sob este ponto de vista, sendo o
“conflito” a sua essência. A própria impressão de movimento do cinema viria dessa
relação dialética entre imagens estáticas. Para ele, se o conflito entre os planos é fraco,
ele não será capaz de formar um “conceito significativo”. Quando este for significativo,
ele “movimentará a montagem”.
Outro exemplo é o haiku (haikai), cuja forma é análoga à estrutura do
ideograma, com frases curtas que exprimem conceitos abstratos e poéticos (como se
fossem planos cinematográficos), a partir de “metáforas visuais”. Segundo o autor, os/as
cineastas devem exprimir ideias e contar uma história (criar uma narrativa) por meio de
combinações de imagens, não de explicações semânticas. Em “A greve” (1925,
31’46”-32’20”), a montagem, analogamente aos ideogramas, combina duas imagens e
cria uma “metáfora visual”, que expressa o conceito de “greve” (31’46”-32’20”).
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A greve (Eisenstein, 1925).
O haiku é uma forma curta de poesia japonesa, conhecida no Brasil como haikai,
cuja essência é a ideia do “corte” (kiru). O tradicional consiste de 17 “on”, dispostos em
três frases de 5, 7 e 5 on, respectivamente. Embora o on seja traduzido como “sílaba”,
ele funciona a partir de uma lógica distinta do alfabeto greco-romano, sendo que
cada on pode corresponder a um caractere ou a dígrafos:
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Em relação ao teatro japonês (noh e kabuki), atores e atrizes usam máscaras que
não respeitam as proporções do rosto, para enfatizar determinada carga emotiva. Essa
combinação, análoga às metáforas visuais dos ideogramas, consiste no mesmo elemento
utilizado no cinema de Eisenstein, a partir, por exemplo, das câmeras lenta/rápida, dos
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planos detalhes e/ou gerais, dos ângulos (plongée/contra-plongée), etc. Isto é notório na
cena da escadaria de Odessa, em “O encouraçado Potemkin” (1925, 47’42”-54’31”):
Imagem de acesso livre na Internet
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O encouraçado Potemkin (Eisenstein, 1925).
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Na sequência acima, os elementos tempo e espaço são “manipulados” para
determinados fins expressivos e associativos. Neste caso, as forças de repressão
czaristas marcham sobre a escadaria e atiram no povo, que busca escapar pelos degraus
que parecem infinitos. A montagem alterna planos abertos/gerais com enquadramentos
fechados, que mostram ações isoladas e/ou detalhes, como pessoas se escondendo,
sendo baleadas, guardas atirando. Os planos gerais às vezes se repetem, e essa
alternância não respeita uma representação linear ou “natural” do tempo, mas constrói
sentidos por meio da associação de planos. O ambiente/espaço da escadaria e o tempo
para descê-la são tensionados pela montagem, assim como o teatro kabuki altera as
proporções com suas máscaras, pantomimas e maquiagens.
Além de Eisenstein e o seu conceito de “montagem dialética”, tomo como
referência fundamental os importantes estudos de Aby Warburg (2000) e as reflexões de
alguns dos seus mais importantes exegetas (Didi-Huberman, 2009, 2010; Samain, 2012;
Michaud, 2013). No caso de Warburg, o seu atlas de fotografias me serve de inspiração
desde o início do doutorado (Nakaóka Elias, 2018, 2019), especialmente para refletir
sobre as relações possíveis entre imagens heterogêneas, de tempos, lugares, estéticas,
autorias e origens distintas. É o que veremos nas duas pranchas verbo-visuais a seguir,
onde eu, seguindo os passos de Warburg, monto sobre o mesmo fundo, ou
“mídia/corpo” (Belting, 2005, 2014), fotos vernaculares analógicas, em p/b e sépia, que
fazem parte do acervo pessoal da Yoshiko sensei, dos idos da fundação do Instituto Tiko
Fukai, em Ipatinga (MG); com fotografias em cores por mim realizadas, recentemente,
na colônia japonesa de Ivoti (RS). Tal elaboração se dá a partir das intersecções desses
dois tipos distintos de arquivos visuais, relacionando-os a partir da montagem e
obliterando, novamente, um possível dualismo entre imagens produzidas pelo
pesquisador e aquelas pertencentes aos/às pesquisados/as.
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Na primeira prancha verbo-visual, temos imagens do Memorial da colônia
japonesa de Ivoti por mim produzidas, mostrando objetos pessoais, ilustrações, peças
simbólicas e rituais e a imagem do jardim. Já as fotos centrais, em preto e branco e
sépia, são do acervo de Yoshiko sensei e representam a chegada dos/as primeiros/as
imigrantes e o início da formação da comunidade japonesa de Ipatinga.
A segunda prancha mostra o curso de ikebana ministrado pela mestra Tada
Reishu, em Porto Alegre, com fotografias por mim produzidas, associadas com imagens
em sépia do acervo de Yoshiko sensei. Aqui, além das fotografias provenientes de
origens, tempos e autorias distintas (produzidas pelo autor e outras de acervo), temos
uma contraposição de planos e ângulos, mesclando closes e tomadas mais abertas, com
ênfase nos gestos e movimentos, com fotografias tiradas em plongée (mergulho, de
cima para baixo), contra-plongée (de baixo para cima) e ângulo normal, criando um
“choque” entre as imagens.
Já na prancha abaixo, que apresenta a cerimônia do chá (chadõ), temos
fotografias feitas na cidade de Ipatinga, onde Yoshiko sensei realizou a prática, e
imagens produzidas em Ivoti, onde um outro mestre realizou a mesma cerimônia. Todas
as fotos foram por mim coletadas e também apresentam uma variedade de planos e
ângulos, enfatizando as posturas, os gestos e os objetos presentes no chadõ.
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EXPERIMENTO 3 – KAMISHIBAI (TEATRO DE PAPEL):
O kamishibai (紙芝居, literalmente, “teatro de papel”) é uma forma de contação
de histórias que data do século XII, época na qual monges budistas usavam
o emakimono (rolo de pintura) para transmitir histórias com lições de moral para
pessoas predominantemente não-alfabetizadas. Essa prática, embora não muito
conhecida no Brasil, inclusive é a base para o mangá (famoso estilo de quadrinhos
japonês) e os animês (desenhos animados a partir dos mangás), que fazem parte do
J-pop, elementos da cultura popular japonesa muito difundidos no ocidente. O
kamishibai se caracteriza, ainda, pela associação entre as imagens/desenhos/pinturas,
que ficam de um lado do suporte de papel (kami), com ideogramas japoneses (hiragana
e kanji) que ficam na parte de trás, para que o/a contador/a os possa ler.
A partir do meu campo em Ivoti, tenho acessado essas histórias, visto que a
Iaioi sensei mostra-se uma exímia mestra no kamishibai, narrando cada conto de forma
única, em cada uma das feiras coloniais mensais. Característico desse momento, Iaioi
acrescenta novos elementos a cada contação, considerando as reações do público
presente. Além disso, narra as histórias em japonês e traduz, simultaneamente, para o
português, preservando a língua, mas também tornando acessível para aqueles/as que
não dominam um dos dois idiomas. Aqui, demonstro uma dessas narrativas, um
primeiro experimento a partir do conceito de fotofilme, que consiste na animação e
montagem de fotografias/imagens estáticas:
https://www.youtube.com/watch?v=kmhhuaA-y6I.
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Pranchas verbo-visuais do kamishibai
Para a construção dessa experimentação verbo-visual, inicialmente filmei a
contação de história da Iaioi sensei e, posteriormente, fotografei cada uma das pranchas
verbo-visuais do kamishibai. Depois, com o auxílio de um software de edição, montei o
experimento a partir da animação dessas imagens e textos estáticos, tentando seguir o
ritmo e os direcionamentos das falas de Iaioi, com mergulhos e afastamentos, e
incorporando os sons ambientes para a composição de uma paisagem sonora.
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BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Este artigo, pensado e elaborado em tom ensaístico, consiste em uma primeira e,
certamente, apressada tentativa de me debruçar sobre as múltiplas e ricas experiências e
acervos verbo-visuais que teci junto aos/às interlocutores/as da pesquisa, a partir do
contato com comunidades japonesas das quais, certamente, também faço parte não
apenas como pesquisador e outsider. A intenção, aqui, foi a de mostrar e narrar, por
meios de texto, fotografias, vídeos e sons, como se deram alguns dos muitos e
instigantes encontros etnográficos.
Para tanto, tentei construir essa apresentação tendo como fundamento o potente
conceito de “montagem”, a partir de três exercícios (fotoetnobiografias,
kanji/haiku/kabuki e kamishibai), uma abordagem epistemológica e metodológica que
busca apresentar minhas experiências de campo a partir de experimentações que levam
em conta elementos fundamentais da cultura japonesa, como a escrita ideogramática, a
poesia, o teatro e a contação de estórias. Ao articular textos, ideogramas, imagens e
sons, almejei colocar essas diversas formas de expressão, outrora referidas como
“linguagens”, em pé de igualdade, na busca por esboçar, ainda de forma incipiente, o
que tenho denominado de “Antropologia da Montagem”.
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