KLEIMAN, Angela. Oficina de Leitura (Cap. 3 e 4)
KLEIMAN, Angela. Oficina de Leitura (Cap. 3 e 4)
OFICINA DE LEITURA
TEORIA E PRÁTICA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Kleiman, Angela
Oficina de leitura: teoria e prática / Angela
Kleiman. - Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade
Estadual de Campinas, 1993.
Bibliografia.
ISBN 85-7113-077-9
1. Leitura I. Título.
93-0472 CDD-302.2244
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o professor se depara: primeiro, focalizando aqueles aspectos que apontam Sabemos, devido a numerosas experiências e observações, que o mo-
para a adequação ou não de abordagens pedagógicas específicas e, segundo, vimento ocular durante a leitura é um MOVIMENTO SACÁDICO, e não li-
focalizando aqueles aspectos do texto que se insinuam como potenciais difi- near. Isto quer dizer que o leitor eficiente não lê palavra por palavra, seguin-
culdades para o processamento, devendo, por isso, ser objeto de ação peda- do, metaforicamente, o seu dedo na linha. Pelo contrário, os olhos se fixam
gógica facilitadora. num lugar do texto, (afixação) para depois pular um trecho (a sacada), e fi-
O processamento do objeto começa pelos olhos, que permitem a per- xar-se num outro ponto mais adiante.
I
cepção do material escrito. Esse material passa então a uma memória de tra-
balho que o organiza em unidades significativas. A memória de trabalho se-
ria ajudada nesse processo por uma memória intermediária que tomaria
acessíveis, como num estado de alerta, aqueles conhecimentos relevantes pa-
ra a compreensão do texto em questão, dentre todo o conhecimento que esta-
ria organizado na nossa memória de longo prazo (também chamada de me-
mória semântica, ou memória profunda).
~ A distância entre as fixações depende da dificuldade do material que
,JJ. está sendo lido, o que indica claramente que é o cérebro que controla o pro-
cesso. O movimento sacádico permite a leitura muito rápida (que NÃO tem
nada a ver com a chamada leitura dinâmica). Lemos 200 palavras por minu-
to quando o material for fácil, mais devagar quando o material for complexo.
Os olhos se movimentam muito mais rapidamente do que a voz consegue
pronunciar.
A Fig. 1 a seguir, representa, de maneira muito simplificada, os princi- Durante a leitura, os olhos vão para frente, num movimento progressi-
pais mecanismos engajados no processamento de um texto: vo, mas também retrocedem, num movimento regressivo. Novamente, o fa-
tor determinante para a direção do movimento é a dificuldade do material, ha-
MATERIAL ESCRITO • - - - - - - - - - - - -.. OLHOS vendo muito mais movimentos regressivos quando o material é mais difícil.
(percepção e interpretação Isto indica que o leitor eficiente vai controlando seu próprio processo de
de "input" gráfico) compreensão e volta para trás, ou relê, quando não compreende.
Durante a fixação, o olho percebe claramente o material focalizado.
/ ~ Durante a sacada, entretanto, a visão fica muito reduzida; antigamente, nos
MEMORIA DE TRABALHO estudos de início do século, pensava-se que o olho não percebia nada duran-
(fatiamento) te esse movimento, hoje acredita-se que há uma visão periférica, mas muito
diminuída, que certamente não permite ao leitor enxergar claramente as pa-
/ ~ /
lavras que ocorrem entre cada fixação. Isso aponta para um fato extremamen-
MEMORIA INTERMEDIARIA •... --+-' I te importante, a saber, que grande parte do material que lemos é adivinhado
(repositório de conhecimento ativado, ou inferido, não é diretamente ercebido. E, ainda, como apontávamos ante-
em alerta) riormente, o que percebemos depende em grande medida de cada indivíduo.
Daí que a leitura seja considerada, do ponto de vista cognitivo, umjo-
/ ~ go de adivinhações. Assim como podemos reconhecer à distância uma pes-
MEMORIA LONGO TERMO/ soa conhecida, a partir de algumas características (altura, cor, maneira de ca-
MEMÓRIA SEMÂNTICA/ •... _-' minhar, por exemplo), assim também, durante a leitura, podemos reconhecer
MEMÓRIA PROFUNDA estruturas e associar um significado a elas, a partir de apenas algumas pistas:
(o conhecimento, e regras mediante a identificação da forma da palavra (sendo que a configuração aci-
para seu uso e organização) ma ou abaixo da linha parece ser extremamente relevante); a nossa familiari-
dade com a palavra (que pode permitir o reconhecimento instantâneo, sem
Figura 1. Mecanismos e capacidades envolvidos no necessidade de análise). Esse reconhecimento está estreitamente relacionado
processamento do texto ao nosso conhecimento sobre o assunto, o autor, a época em que ele escreveu, \
aos nossos objetivos, aspectos estes que determinam a direção de nossas ex- 1
A Percepção do Objeto pectativas sobre o assunto.
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A resposta é: para podermos organizar os traços no papel em material as estruturas
significativo. Uma vez que o material visual é apreendido, começa a interpre-
tação; das letras em sílabas e palavras, destas em frases, destas em proposi- Nesse caso, o leitor poderá ainda ler mais palavras, pois a sua memória
ções com significado. O material vai sendo estocado na memória de trabalho de trabalho não estará sobrecarregada. E assim sucessivamente. Se reconhe-
(v. Fig. 1), que permite a organização em unidades sintáticas, segundo regras cermos apenas palavras isoladas, novamente, poderemos trabalhar com 7 (+
e princípios de nossa GRAMÁTICA IMPLÍCITA, isto é, o conhecimento ou - 2) palavras, mas se conseguirmos agrupar, com base no nosso conheci-
que temos por sermos falantes da língua, que não equivale ao conhecimento mento da estrutura da língua, (e do assunto que estivermos lendo, é claro), es-
gramatical adquirido na escola. A memória de trabalho, cujo funcionamento sas palavras em grupos ou fatias sintáticas, como em as estruturas mais com-
exemplificaremos a seguir, pode ser concebida como a capacidade do leitor plexas são aquelas que foram analisadas nos útimos meses, então nossa ca-
para estocar o material que está entrando mediante a percepção e para agru- pacidade de processar material terá se expandido significativamente: I
pá-lo em unidades significativas com base no seu conhecimento da língua. O
processo de agrupamento e análise é conhecido como FA TIAMENTO. a[ [SN as estruturas mais complexas SN] I fatia
A memória de trabalho é uma capacidade finita e limitada, uma vez
que não pode trabalhar com mais de aproximadamente 7 unidades ao mes- sv [são aquelas que [a 1 fatia
mo tempo: à medida em que vão entrando mais unidades, a memória preci-
sa ser esvaziada das unidades anteriormente estocadas, de maneira que foram analisadas nos últimos meses ] ] ]
o sv a
sempre trabalha com aproximadamente 7, mais ou menos 2 unidades (isto I fatia
é, entre 5 a 9 unidades).
O aspecto mais importante dessa capacidade é que não faz diferença, pa- Como apontávamos, para tal agrupamento o leitor proficiente usa efi-
ra seu funcionamento, o tipo de unidade que usa para o fatiamento: precisa ape- cientemente o conhecimento de gramática que ele tem intemalizado, fazen-
nas ser uma unidade significativa, isto é, ser reconhecida como alguma entida- do predições constantes sobre as ocorrências possíveis. Ao identificar uma
de, seja esta letra, sílaba (agrupamento de letras numa unidade que reconhece- unidade, elefechará essa unidade e voltará sua atenção para a seqüência se-
mos), ou palavra (agrupamento de sílabas numa unidade maior). Também em guinte, sendo que o processamento de uma determinada unidade vem a ser
relação a números o processo é basicamente o mesmo: podemos percebê-I os ajudado tanto pela natureza do material que continua entrando como pelo
como uma série de dígitos, ou podemos percebê-Ios como unidades com signi- material que já foi processado.
ficado. Por exemplo: uma data importante, ou um número telefônico conheci- A relevância desses aspectos do processamento para o desenvolvimen-
do, ou um número de rua num endereço familiar. Assim, quanto maior o ele- to de estratégias flexíveis de leitura é clara. No início, a leitura será muito
mento que tomamos como unidade significativa, maior será a quantidade de mais difícil para o leitor e por isso ela fica quase que limitada à decodificação,
material que poderemos processar e manter na memória ao mesmo tempo. se o professor não tomar a atividade comunicativa, fazendo comentários,
Vejamos um exemplo: suponhamos que a maior unidade significativa perguntas, enfim, fugindo da forma, já saliente demais devido às dificuldades
que o leitor consegue identificar seja a letra, numa seqüência como a seguinte: iniciais do leitor, e focalizando o sentido.
Assim, o professor deve propiciar contextos a que o leitor deva recor-
a-s-e-s-t-r-u-t-u-r-a-s rer, simultaneamente, a fim de compreendê-lo em diversos níveis de conhe-
cimento, tanto gráficos, como Iingüísticos, pragmáticos, sociais e culturais.
Se o leitor estiver lendo letra por letra, ele não conseguirá manter todas O processamento INTERA TIVO corresponde ao uso de dois tipos de estra-
essas unidades na memória de trabalho, porque deverá esvaziar as primeiras tégias, segundo as exigências da tarefa e as necessidades do leitor: aquelas
letras na seqüência quando a sétima, ou oitava, ou nona letra chegar à memó- que vão do conhecimento do mundo ara o nível de decodifica ão dã~
ria. Em termos de compreensão, ele não terá conseguido apreender essa se- envolvendo um tipo de processamento denominado TOP-DOWN, ou des~
qüência, não terá sequer lido as duas palavras, uma vez que as partes não se cendente, conjuntamente com estratégias de processamento BOTTOM-UP,
integram num todo significativo. O mesmo problema estará acontecendo se
o leitor ler sílaba por síliba (isto é, as - es - tru - tu - ras), pois novamen- I. Significado dos símbolos usados:
te quando ele tiver lido a quinta sílaba, apenas duas palavras, a sua memória O=Oração,
de trabalho estará quase no limite de sua capacidade. SN = Sintagma Nominal (isto é, um constituinte gramatical que tem como núcleo o nome e
Imaginemos, por outro lado, que a unidade mínima significativa que o pode ter a função de sujeito, objeto)
leitor identifica seja a palavra, mediante a estratégia de reconhecimento ins- SV = Sintagma Verbal (um tipo de constituinte que tem como núcleo o verbo e que correpon-
tantâneo de palavras em lugar da silabação. de ao predicado).
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ou ascendente, que come am ela verificação de um elemento escrito ual- 3.2 DIFICULDADES NO PROCESSAMENTO: DIFERENÇAS ENTRE
qUJ<[J1ara,a partir daí, mobilizar outros conhecimentos. O .leitor in.ician!e A FORMA ESCRITA E A FALADA
usa predominantemente o processamento ascendente, ou seja, a decI!ra.çao
da letra ou palavra escrita precede a ativação de conhecimento semantico, Uma questão que pode surgir neste momento da discussão diz respeito
ou pragmático, ou enciclopédico. Como a mobilização de tal conhecimen- à dificuldade no processamento da escrita versus a relativa facilidade no pro-
to também é essencial para a compreensão, esta fica seriamente comprome- cessamento da linguagem oral. Por que tão poucos compreendem a lingua-
tida se o professor não ajudar o aluno, através de perguntas, no diálogo, a gem escrita, enquanto todos compreendem a linguagem falada?
mobilizá-Ia. Há várias razões para a diferença. Em primeiro lugar, devemos verifi-
O aluno que lê vagarosamente, sílaba por sílaba, terá dificuldades para car se quando comparamos, estamos comparando objetos que se intersectam
lembrar o que estava no início da linha quando ele chegar ao fim. Ele deve, em algum lugar. Em geral comparamos a com reensão facilitada do bate- a- ~
portanto, ser capaz de reconhecer instantaneamente as palavras: se apalavra po com a compreensão e um texto e 'ornal ou de texto acadêmico. Se com-
for a unidade reconhecida, ele poderá ler mais rapidamente, conseguindo as- parassemos a compreensão de uma aula exposifiVã com a compreensão de
sim lembrar unidades passíveis de interpretação semântica (isto é, unidades um texto acadêmico, ou o bate-papo com a compreensão de uma carta a um
às quais podemos atribuir um significado). amigo, já as diferenças _não serim:n tão marcad.as, poi~ nesse caso as condi- s:--'
Para tal o leitor deverá estar em estado de "alerta perceptual", pron- ções em que os textos sao produzidos e entendidos tenam semelhanças. Por
to para detectar um série de palavras cuja ocorrência no texto é predizível exemplo, os interlocutores se conheceriam mutuamente, no caso do bate-pa-
pelo assunto. O professor que ajuda o aluno a prever e predizer focalizan- po e carta informais; no caso mais formal da aula e do texto acadêmico, em
do mediante diversas abordagens e atividades prévias à leitura, as pala- vez de um interlocutor conhecido teríamos uma audiência da qual fazemos
vras-chaves no texto, garante que, quando o aluno as encontrar, será capaz uma imagem que substitui o conhecimento direto, pessoal. Também nestes
de reconhecê-Ias rápida ou até instantaneamente. últimos dois casos, haveria mais preocupação com o tópico que esta sendo
-.........,
"-. A prática exclusiva da leitura oral, após a eta~a de ensino da dec.odifi- desenvolvido, isto é, a função referencial da linguagem seria privilegiada en-
--"-. cação, tam em tem desvantagens para o desen l~ffloo. dos mec .J.SID quanto que nos dois primeiros casos, bate-papo e carta íntima, seria a relação
.Y.ͧ.ll~sários para a apreensão rápi a do material escrito uma ~ez que, entre os interlocutores, isto é, a função interpessoal, a mais importante.
como dizíamos, a verbalização fica atrás do olho, por ser a voz mais lenta. Em ambas as situações de uso de linguagem oral, entretanto, o interlo-
Ainda mais importante, a insistência na leitura oral decorre de uma atitude cutor ou a audiência ajudam na construção do texto pois falante e ouvinte re-
que sobrevaloriza a exatidão, a correção na pronúncia de to.das as palavras. significam continuamente o texto do outro. Embora essa construção conjunta
Tal insistência, acreditamos, irá inibir também o desenvolvimento de estra- seja característica construtiva apenas do diálogo, desde a escolha até a mudan-
tégias de adivinhação do material periférico à visão durante a leitura. ça de tópicos, passando pelo desenvolvimento dos mesmos, também na pales-
Dados de pesquisa mostram que a leitura de uma palavra que não está tra há alguma construção conjunta de falante e audiência em momentos críti-
escrita, isto é, o ~siderado erro na leitura em voz alta, não reflete ne- cos, nos quais a compreensibilidade está em jogo: por exemplo, o bom pales-
cessariamente um problema de compreensão: quando a palavra que o aluno trista permite perguntas da audiência e monitora constantemente o nível de
substitui pela palavra do texto faz sentido, es~e..Q aluno estar atenção dos ouvintes para redirecionar, repetir, ou simplificar o material. Já na
~a1l n ão ao.si ificado do texto e não apenas à forma, justamente o leitura, as condições da interlocução são muito diferentes, sendo a distância
objetivo do ensino de leitura para o qual o ensino da forma, do código, é ape- entre os interlocutores uma fonte de grande número de dificuldades. Existe
nas instrumento. um autor responsável pelo fio unitário de significação presente no texto.
Em outras palavras, os dados sobre o processamento visual do texto Considera-se que uma outra fonte importante de dificuldade tem a ver
permitem concluir que as abordagens de leitura que insistem na leitura em com diferenças na linguagem usada no texto escrito e na fala. A maneira em que
voz alta sem permitir a leitura silenciosa prévia, e que valorizam a corre- a escrita pode ser composta, sem a urgência de ir produzindo e ajeitando a pro-
ção da forma ao invês da preservação do significado, podem inibir o de- dução ao mesmo tempo que se está pensando, permite uma maior elaboração e
senvolvimento de estratégias adequadas de processamento do texto escri- cuidado, graças à possibilidade de reescrita e revisão, que resulta em diferentes
to. Tais estratégias, que são conseqüência da leitura eficiente (não são cau- estruturações. Essas estruturações diferentes têm sido caracterizadas como ten-
sas) devem, ntii11Pfimeiro momento, ser modeladas, e o professor deve do maior complexidade sintática e maior densidade e éli~ersificação lexical (is-
promover condições para que sejam imitadas. A leitura silenciosa, tanto to é, de vocabulário). Essas diferenças podem, é verdade, causar dificuldades
por parte do aluno como do professor, e a leitura em voz alta pelo adulto, para o processamento, para a apreensão do objeto do ponto de vista cognitivo.
cumprem os dois objetivos de servir de modelo e de criar contextos de Consideremos algumas dessas diferenças no parágrafo a seguir.
aprendizagem. Lembremos que estamos considerando o objeto apenas do ponto de vista do
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processamento, isto é, das atividades em que devemos nos engajar para de trabalho até chegar a um significado. O trabalho é bastante complexo, por-
apreendê-Io: que há uma outra entidade (processos naturais da conceitualização, em maiús-
culas) que também deverá ser mantida nessa memória para estabelecer a rela-
(1) As concepções de uma criança de 4 anos se orientam no sen- ção com o pronome que a substitui (os, também em maiúsculas no exemplo).
tido de uma predição do significado do escrito, a partir do desenho Estruturas como essas diferem bastante das formas orais, que usam da )
(ou da informação adulta, em outras situações). Essas predições repetição para ajudar na recuperação de antecedentes de pronomes e formas
vão se adequando cada vez mais à realidade da notação gráfica, elípticas. Daí que o processamento de tais formas provavelmente nunca che-
até que finalmente o texto, utilizado como fonte de informação, dá gue a ter o nível automático de formas mais simples.
índice para a verificação das predições cognitivas. Sefalamos de Se o leitor tiver ainda outras dificuldades, como desconhecimento do
instrução sistemática, abstraindo das formas metodológicas con- assunto, ou grande número de palavras desconhecidas, então a compreensão
cretas, é porque cremos que nenhuma delas leva em conta os pro- se toma praticamente impossível.
cessos naturais da conceitualização, ainda que algumas os respei- Por isso, o professor deve es ento ara reso er.as.di culdad s ue o
tem mais, enquanto que outras impõem as concepções adultas des- uso de estruturas ti icas a es .ta odem caus parao.leitor.rnenos proficiente.,
de o começo Porém, além dos fatores relativos ao nível de concei- podendo até comprometer a compreensão. Desafortunadamente, o surgimento
tualização, existem outros determinados pela procedência social de tais problemas é bastante provável, porque o livro didático usa e abusa de es-
das crianças.(Ferreiro, E. & Teberosky, A. Psicogénese da língua truturas complexas desnecessárias para o desenvolvimento do tema ou para mar-
escrita, Porto Alegre: Artes Médicas, 1987, p. 96). car um estilo, e muito inoportunas, uma vez que o assunto que está sendo veicu-
lado mediante essa linguagem é supostamente desconhecido para esse leitor.
Do ponto de vista do processamento, a escrita é complexa porque re-
quer a manutenção na memória de um grande número de palavras antes de
poder fechar a unidade: no parágrafo acima, por exemplo, os sintagmas no- 3.3 TORNANDO O PROCESSO MAIS COMPLEXO: A LEITURA DO
\minais complexos (com oração adjetiva, o texto, utilizado como fonte de in- LIVRO DIDÁTICO
formação, ou com nominalizações: verificação das predições cognitivas)
corresponderiam a pelo menos duas unidades de informação na fala (por Veremos a seguir alguns exemplos retirados do livro didático, conten-
exemplo, a criança faz predições e a criança verifica as predições) cada uma do estruturas sintáticas complexas, e cuja dificuldade potencial é aumentada
a ser processada independentemente] sem sobrecarregar a memória de traba- devido à ambigüidade e/ou má formação da construção.
lho e com o auxílio de pistas PROSODICAS, isto é, pistas que procedem da As estruturas que serão utilizadas como exemplos de complexidade
maneira como pronunciamos, a ênfase, a entoação, o ritmo (mais rápido ou maior na escrita são intercalações ou encaixes, inversões de ordem canônica,
devagar), que facilitam o processamento. anáfora, isto é, mecanismos para ligar e retomar palavras que se referem a
Para compreender um texto escrito, é necessário também identificar, uma mesma coisa no texto.
durante o processamento, pronomes e nomes que estão se referindo a elemen-
tos que já foram introduzidos, e que o autor não quer repetir, até porque a re- Intercalações e Encaixes
petição sobrecarregaria demais a memória de trabalho. Fazemos isto também
quando falamos, mas na escrita a distância entre os elementos que estão liga- Incluímos aqui estruturações que interrompem o processamento de
dos (antecedente e pronome, repetição, ou elipse) pode ser muito maior. uma determinada unidade, como orações com apostos, orações adjetivas, is-
Ainda no mesmo exemplo (I) acima, consideremos o trecho a seguir: to é, casos em que o fechamento de uma unidade, ou fatia, é impedido devido
a algum material intercalado. A continuação pelo processador não se concre-
Se falamos de instrução sistemática, abstraindo das formas me- tiza devido à presença desse material, que interrompe a seqüência.
todo lógicas concretas é porque cremos que nenhuma delas le- Os elementos intercalados geralmente dificultam o processamento pe-
va em conta OS PROCESSOS NATURAIS DA CONCEITUALI- lo fato de tornarem mais complexa uma determinada unidade. No exemplo a
ZAÇÃO, ainda que algumas OS respeitem mais, enquanto que seguir, extraido de um livro didático para a 2ª. série, várias passagens são pro-
outras impõem as concepções adultas desde o começo. blemáticas do ponto de vista de complexidade estrutural (isso sem falar dos
aspectos relativos aos conteúdos, também questionáveis):
Na leitura do mesmo, o leitor deve relacionar as formas em negrito (for-
mas metodológicas concretas, nenhuma delas, algumas, outras) como se refe- (2) Cabral e seus companheiros viajaram e depois de mui-
rindo a uma mesma entidade, e deve manter essa informação na sua memória tos dias descobriram o nosso querido Brasil.
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Era o dia 22 de Abril de 1500 e foi em Porto Seguro, ci- do Sol, produzindo as quatro estações do ano: primavera, verão,
dade muito importante da Bahia, "Coroa Vermelha", local outono e inverno. Gasta para isso 365 dias (um ano). (1ª. série)
seguro, que a esquadra ancorou, posteriormente.
Naquele tempo, o Brasil era só mata e indios.Cabral No texto acima, a informação nova que devia ser apresentada relativa
mandou dizer a D. Manuel que o Brasil era lindo e que era aos movimentos da terra é, basicamente, os dois tipos de movimento da Ter-
muito grande. ra, movimento de rotação e movimento de translação. Tal informação, para
No dia 26 de Abril, Cabral mandou Frei Henrique receber a saliência necessária, condizente com sua relevância dentro do tex-
Coimbra celebrar a primeira missa no Brasil, que foi assisti- to, devia ser ordenada antes da explicação: Ela tem dois movimentos: o movi-
da por todos que vieram com Cabral e também por alguns ín- mento de rotação e o movimento de translação. Assim, se imaginarmos o
dios que estavam por perto. texto como uma série ordenada de informações na linha vertical, em que as
Alguns dias depois, outra missa foi rezada e Cabral informações mais importantes são as mais altas, essas duas informações es-
deixou o Brasil. (2ª série). tariam hierarquicamente mais altas do que as definições. E como se trata de
um texto didático para apresentação de novas informações a crianças de pri-
As intercalações, que poderiam contribuir para a dificuldade no pro- meira série, a ordenação dessas informações, mais alta na hierarquia, e por-
cessamento, tomam mais complexas as seguintes unidades: tanto, mais importante, deveria estar marcada explicitamente, isto é, deveria
- os sintagmas nominais com a função de objeto. O primeiro, a pri- ser parte do texto.
meira missa do Brasil que foi assistida por todos que vieram cOfrjCabral, Se assim fosse, então o artifício da topicalização, de levar essa infor-
tem muitos elementos devido à presença de uma oração adjetiva com outra mação para a frente para indicar que dela estamos falando seria desnecessá-
adjetiva nela encaixada. O segundo, índios que estavam por perto, apesar de ria. O anúncio do tópico far-se-ia explicitamente: 2
ter apenas uma adjetiva é também de complexidade maior.
- o sintagma nominal com função predicativa que exibe uma série de (3a) Os movimentos da Terra são dois: o movimento de rota-
intercalações, cidade muito importante da Bahia, "Coroa Vermelha", local ção e o movimento de translação.
seguro, entre a frase, Porto Seguro e a adjetiva que avança a informação per- A terrafaz o movimento de rotação girando em torno de si
tinente, que a esquadra ancorou, posteriormente. mesma, como um pião, produzindo o dia e a noite.
Note-se, neste último caso, que a função desses apostos não está muito
clara, uma vez que eles obscurecem a relação adjetiva entre o nome próprio e Tal estruturação, além de resultar num texto mais claro, resultaria num
a informação nova que supostamente o texto estaria transmitindo. Daí eles texto menos complexo do ponto de vista sintático, uma vez que construções
produzirem o efeito de mero enfeite. tortuosas como o movimento de rotação a Terrafaz girando em torno de si
mesma poderiam ser evitadas.
Inversões da Ordem Canônica É importante lembrar, no entanto, que a quebra da ordem canônica não
constitui necessariamente um fator dificultador do processamento sintático
Outro fator que pode trazer dificuldades para o processamento pode ser / do texto. No trecho a seguir, que tem uma construção passiva, contrariando
causado por diversas rupturas da ordem canônica, a ordem mais usual da lin- portanto uma expectativa canônica de que agentes atuam sobre objetos, e a
guagem. No exemplo (3), a seguir, os objetos o movimento de rotação e o mo- ordem natural da linguagem refletiria essa relação (Sujeito Verbo Objeto), o
vimento de translação são topicalizados (isto é, movidos para o início da ora- uso da construção passiva (Objeto Verbo Sujeito) pode facilitar o processa-
ção) e por isso, eles deixam de ocupar um lugar talvez mais esperado, imedia- mento, uma vez que, através do uso da passiva, o elemento dado, conhecido,
tamente depois do verbo transitivo, na seqüência Sujeito Verbo Objeto: é assim transformado em tema, permitindo uma progressão temática que flui:
(3) A terra é o planeta em que vivemos. (4) A Terra está mostrando as terríveis marcas das feridas
Sua forma é arredondada e está sempre em movimento. que lhe fizemos, e está lançando seu S.O.S.
Ela tem dois movimentos. É preciso ouvir esse apelo, e acudir com urgência.
O movimento de rotação a Terrafaz girando em torno de
si mesma como um pião, produzindo o dia e a noite.
Para realizar esse movimento a Terra gasta vinte e quatro
2. Há outras mudanças que, se realizadas, melhorariam significativamente o texto. Apontamos
horas. aqui apenas aquelas que têm a ver diretamente com a questão em pauta, isto é, formas de to-
O movimento de translação a terra realiza girando ao redor picalizar a informação mais relevante que não dificultem o processamento.
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Se este apelo não for ouvido estaremos condenando nossa Para esse processamento, usamos também nosso conhecimento lingüís-
biosfera à degeneração, com os ambientes aéreo, terrestre e tico, tanto sintático, como nos casos anteriores, quanto semântico, num pro-
aquático comprometidos, podendo em pouco tempo romper o cesso que procura estabelecer relações semânticas entre diversos elementos:
equilibrio desta maravilhosa teia,formada e mantida pelas gra- utilizamos o conhecimento do sistema lingüístico, quando interpretamos dois
duais transformações ambientais e com a constante luta pela so- elementos do texto como sendo idênticos, ou como se referindo a um mesmo
brevivência. (Pacini, A. & Masini, G. S.O.S para o planeta Ter- objeto, ou quando interpretamos um pronome como um substituto de uma ou-
ra, ed. brasileira, Salamandra, 1978). tra palavra no texto.
Também quando construímos ligações para interpretar frases incom-
o sintagma nominal este apelo passa a ser o primeiro elemento da ora- pletas como possuindo um elemento omitido, porque é idêntico a um outro
ção devido à construção passiva, que permite transformar o objeto em tópico elemento do texto, estamos utilizando nosso conhecimento implícito para o
(lembremos que aquilo de que falamos geralmente aparece em primeiro lu- processamento do texto. Um fator potencialmente dificultador para a constru-
gar na oração). Justamente, o assunto desse trecho, cujo título é SOCORRO ção dessas ligações pode ser o maior número de elementos apagados ou elíp-
URGENTE - SENÃO ELA MORRE, é um apelo para salvar a Terra. Em ticos, que devem ser recuperados com a ajuda do contexto. O leitor eficiente I
relação à segunda inversão,formada e mantida pelas graduais transforma-
ções ambientais e com a constante luta pela sobrevivência, acontece fenô-
meno semelhante. Em decorrência da passivização, a informação nova apa-
pode recuperar automaticamente esses elementos, mas o leitor menos profi-
ciente perde de vista, muitas vezes, tanto o que se está dizendo como de quem.
A própria distância que existe entre um pronome e seu antecedente, ou
I
rece em último lugar, ordem que toma essa informação mais recente, e por- entre uma forma elíptica e seu antecedente, pode acarretar dificuldades para
tanto mais saliente e memorável. O efeito seria bastante diferente se a ordem a construção de ligações, e conseqüêntemente para o processamento do tex-
canônica quanto às posições de agente e objeto fosse mantida, como em (4a): to. Na oralidade, o pronome geralmente está muito próximo de seu antece-
dente, sendo utilizado muitas vezes como um recurso facilitador de processa-
(4a) É preciso ouvir esse apelo, e acudir com urgência. mento, pois ele salienta, mediante a repetição, um elemento que fica separa-
Se ninguém ouvir este apelo estaremos condenando nos- do do elemento que naturalmente o seguira, devido a uma intercalação. No
sa biosfera à degeneração, com os ambientes aéreo, terrestre e exemplo
aquático irremediavelmente comprometidos podendo em pouco
tempo romper o equilibrio desta maravilhosa teia, que as gra- Sabe a cozinheira quefaz esse bolo gostoso, aquele de nozes, ela
duais transformações ambientais e com a constante luta pela só vende pra loja agora,
sobrevivênciaformam e mantêm.
a função do pronome repetindo o sujeito - a cozinheira, ela - consiste em
A ordem Sujeito Verbo Objeto, na primeira estrutura (se ninguém ou- facilitar o processamento, ajudando o ouvinte a manter em mente a entidade
vir este apelo), e Sujeito Verbo, na construção adjetiva (as graduais transfor- que é ao mesmo tempo tema e sujeito gramatical, isto, é, a cozinheira. Essa
mações ambientais e com a constante luta pela sobrevivência formam e man- repetição, típica da linguagem oral, tem o efeito de aproximar sujeito e predi-
têm [a teia]), no exemplo acima produz um texto de fato mais difícil de ler de- cado, desfazendo assim a separação devido à presença de uma oração adjeti-
vido a sua progressão temática mal sinalizada, ao contrário do original, em va, modificando o núcleo do sintagma nominal com a função de sujeito.
que os comentários, os elementos novos das orações em questão, estavam Na escrita, porém, a função do pronome anafórico não é a de recons-
claramente marcados pela sua posição final nas frases. truir a estrutura canônica para evitar distanciamentos que comprometeriam o
processamento da fala e, portanto a compreensão. A função dos pronomes é
Anáfora assinalar para o leitor que a entidade à qual ele se refere trata-se de uma enti-
dade que já foi referida no discurso (seu antecedente), evitando assim a repe-
Faz parte do processamento do texto a construção de ligações, ou ELOS tição. Ora, se ao fator distância adicionamos um fator de ambigüidade devi-
COESIVOS, que permitem relacionar e retomar elementos do texto à procura do à má construção sintática, como no exemplo (5), a seguir, fica então mui-
de significados consistentes com o que já processamos e coerentes com o nos- to mais difícil o processamento:
so conhecimento. Um tipo de construção de elos coesivos tem a ver com a atri-
buição de referência extratextual aos elementos que se repetem no texto. Guia- (5) Poluição atmosférica
dos por princípios que têm por objetivo tomar o texto coerente, interpretamos, Um dos grandes problemas das cidades grandes é a gran-
sempre que possível, esses pronomes ou repetições como recorrências, isto é, de quantidade de gases,fumaça e poeira que existem misturados
como palavras que se referem a um mesmo objeto. comoar.
42 43
É a poluição do ar atmosférico que causa doenças respi- priamente sobre correferencialidade), uma vez que os itens não se referem ao
ratórias, como tosse, espirros, e ue a etam os olhos, que ficam mesmo objeto: a primeira ocorrência do pronome eles remete ao sintagma os
vermelhos e lacrimejantes (3ª, sirie.) índios, enquanto que a segunda e terceira ocorrência retomam, necessaria-
mente, num caso (não é possível inferir qual, a partir do texto) o sintagma os
Quando processamos o texto, vários princípios que têm a ver com a or- portugueses e, no outro, o sintagma os índios.
dem e seqüência dos diversos elementos no texto entram emjogo. Um desses A esse problema devemos adicionar uma progressão temática muito
princípios é o PRINCÍPIO DA DISTÂNCIA MÍNIMA, mediante o qual pro- pobre, já que no lugar de temas desenvolvidos parece haver listas de afirma-
curamos achar o antecedente mais próximo da palavra ou seqüência que está ções: o último elemento de uma oração passa a ser o tópico da oração subse-
sendo processada. Pondo em ação esse princípio, então, na procura do ante- qüente como nos exemplos abaixo. Nessas circunstâncias, a construção de li-
cedente mais próximo do sujeito omitido na forma verbal afetam chega- gações que permitam interpretar o texto toma-se muito difícil para a criança
ríamos à seqüência doenças respiratórias, e teríamos a confirmação da esco- de segunda e terceira série para quem esses textos estão dirigidos:
lha pela concordância verbal. Entretanto, se levamos em consideração o sig- (7) Solo é o chão em que pisamos, é a terra onde plantamos os
nificado, o antecedente só poderia ser poluição do ar atmosférico. Tal re- vegetais, construímos nossas casas, etc.
construção é possível porque sabemos que a poluição também provoca esses O solo é a parte da superficie do nosso planeta e ele é sólido.
efeitos, e porque sabemos que o livro didático contém erros crassos de língua. A superfície da Terra passou por inúmeras transforma-
Ela seria impossível para uma criança que não possuísse esses dados prévios. ções desde sua criação.
A construção de ligações depende ainda da capacidade de identificar, além A princípio era somente pedra, isto é, rocha primitiva.
dos pronomes, outros elementos que no texto estão se referindo a uma mesma en- Após milhões e milhões é, como vemos hoje,jormada de
tidade. Novamente, o leitor precisa manter acessíveis na sua memória de trabalho terra. (3ª série)
os antecedentes de uma nova expressão introduzida, cuja relação semântica com
o item que substitui, deve ser construída para aquele texto. O leitor é auxiliado No texto (7) acima, formado de parágrafos curtos, de uma oração ou
neste processo porque os elementos que mais aparecem em formas pronominal i- duas orações apenas, o tema parece ser o solo, e a palavra terra estaria sendo
zadas, repetidas, ou ainda, substituidas, são elementos ligados ao tema. utilizado, no primeiro parágrafo, como sinônimo de solo. Já no terceiro pará-
Entretanto, no livro didático, nem sempre é fácil descobrir o tema, e as- grafo, entretanto, o uso de maiúsculas parece indicar que agora a palavra Ter-
sim a complexidade é aumentada devido à maneira de escrever o texto. Nes- ra remete ao conceito planeta, e não mais ao conceito inicial significado pela
ses textos abundam os exemplos em que a construção de elos coesivos fica di- palavra solo. No último parágrafo, a palavra terra significa parte branda do
ficultada. No exemplo a seguir, como não está claro qual é o tópico da segun- solo. O texto fica assim praticamente impenetrável, pois nem sequer é possí-
da oração, se os descobridores do Brasil ou os índios que aí já moravam, de- vel determinar do que o autor está falando.
paramo-nos com a possibilidade de haver mais de um provável antecedente
de um pronome, como é o caso da segunda e terceira ocorrências do pronome (8) Fazendo-se um passeio pela cidade, notamos que as ruas
eles; assim, a informação de quem foi se chegando a quem, é irrecuperável não são todas iguais.
(ela também é irrelevante, mas o fato não diminui a gravidade do descuido e Encontramos algumas ruas planas, outras elevadas ou em
do descaso evidenciado): ladeiras, porque a superficie da terra não é plana.
A Terra apresenta pequenas e grandes elevações que rece-
(6) Quando o Brasil foi descoberto, eram os índios seus mora- bem vários nomes.
dores. A essa forma como se apresenta a superficie da Terra cha-
Eles não eram civilizados e tinham medo dos brancos. Os mamos relevo.
portugueses procuravam agradar aos índios e aos poucos eles Montanha é uma grande elevação de terra. (2ª série)
foram se chegando junto a eles. (2ª. série).
Também no texto acima, de diferente autoria e escrito para uma série
A repetição de uma mesma palavra no texto é forte indício de que am- diferente, a repetição do item lexical terra, com apenas a diferença de maiús-
bas palavras estão se referindo a um mesmo objeto. Como dizíamos anterior- cula e minúscula marcando as diferenças quanto às entidades referidas, pode
mente, as predições que fazemos sobre estrutura são auxiliadas (confirmadas levar o leitor de segunda e terceira séries a fazer inferências que dificultam a
ou não) mediante informações sobre o tópico. Entretanto, o livro didático uti- compreensão. Os conceitos Terra no sentido de planeta, terra no sentido de
liza, na introdução de conceitos, itens repetidos sem a mesma significação, parte sólida da superfície do planeta e terra no sentido de parte branda do so-
levando o aluno a fazer inferências equivocadas sobre a identidade (mais pro- lo, utilizados indiscriminadamente em textos que justamente estariam intro-
44 45
duzindo esses conceitos, são, no mínimo, empecilhos para o processamento 4. A noção de gramática implícita é discutida em Perini (1985).
necessário para reconstruir as ligações, uma vez que também fica difícil de- 5. Sobre questões ligadas às diferenças entre fala e escrita na perspectiva utilizada no ca-
terminar qual o assunto, ou tema, do texto. pítulo, ver Chafe & Danielewicz (1987).
6. Os conceitos de coesão e de coerência são discutidos em Koch (1989) e Koch & Tra-
vaglia (1989).
RESUMO
Vimos, neste capítulo, algumas noções elementares sobre o processa- CHAFE, W. & DANIELEWICZ, J. "Properties of Spoken and Written Language", in HORO-
mento do texto escrito, isto é, o uso de nosso conhecimento lingüístico, tanto le- WITZ, R. & SAMUELS, S.J. (orgs) Cornprehending Oral and Wriflen Language.
xical (reconhecimento instantâneo de palavras) quanto sintático (fatiamento) e New York: Academic Press, 1987.
sintático-semântico (construção de elos coesivos) para compreender o texto. GIBSON, E. J. & LEVIN H. The Psychology of Reading. Cambridge, Mass.: The MIT Press,
Os conceitos teóricos sobre o processamento, ainda que simplificados, 1975.
são áridos, porém necessários para tomar decisões informadas em relação à GOODMAN, K.S. "Reading: A Psycholinguistic Guessing Garne", in SINGER, H. & RUD-
metodologia de ensino de leitura e à seleção e análise de textos. No início do DELL, R. B. (orgs.) Theoretical Models and Processes of Reading, Newark, DeI.: In-
aprendizado da leitura, o processamento necessário para juntar as palavras ternational Reading Association, 1976.
em grupos que representem estruturas significativas da linguagem pode so- HUEY, E.B. The Psychoiogy and Pedagogy of Reading. New York: MacMillan, 1902
brecarregar a capacidade da criança e criar obstáculos para a compreensão. KATO, M. O Aprendizado de leitura. S.P.: Martins Fontes, 1985.
Daí que o professor deva conhecer quais são as dificuldades reais, naturais, KLEIMAN, A.B. "Modelos teóricos: fundamentos para o exame da relação teoria e prática na
no momento de aprendizagem em que se encontra a criança, e quais são as di- área de leitura", Trabalhos de Lingüística Aplicada 3, 1984. Também em KLEIMAN,
ficuldades artificiais, conseqüência da péssima redação dos livros didáticos. A. B. Leitura: ensino e pesquisa. SP: Pontes Editores, 1989.
Mediante esse conhecimento, o professor poderá ajudar o aluno, facilitando KOCH, L G. V. Coesão textual. S.P.: Contexto, 1989.
o processamento e selecionando apenas textos bem redigidos. KOCH, L G. V. & TRAVAGLIA, L. C. Texto e coerência. S.P.: Cortez Editora, 1989.
Faz parte do ensino de leitura nesses estágios iniciais, ajudar a criança a MILLER, G. A. The Psychology ofCommunication. Middlesex: Penguin Books Ltd., 1970.
construir o sentido do texto, não só evitando os piores exemplos do livro didá- PERINI, M. A. Para uma nova gramática do Português. S.P.: Editora Ática, 1985.
tico, mas também, e principalmente, pondo o ensino da forma, do código, no SINGER, H. & RUDDELL, R.B. Theoretical Models and Processes of Reading. Newark, DeI.:
seu devido lugar enquanto instrumento para a leitura, e pondo o ensino da lei- International Reading Association, 1976.
tura, no bom sentido da palavra, no seu devido lugar de foco do trabalho com SMITH, F. Compreendendo a leitura. Uma análise psicolingüística da leitura e do aprender a
o texto. ler. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
SPIRO, R. J., BRUCE B. C. & BREWER, W. F. Theoreticat Issues in Reading Comprehension.
Hillsdale, N.J.: Lawrence Earlbaum Asso, 1980.
NOT AS BIBLIOGRÁFICAS
46
47
CAPÍTULO 4
o ENSINO DA LEITURA: A RELAÇÃO ENTRE MODELO E
APRENDIZAGEM
49
As estratégias do leitor são classificadas em ESTRATÉGIAS COGNI- 4.2 MODELANDO ESTRATÉGIAS METACOGNITIV AS
TIV AS e ESTRATÉGIAS MET ACOGNITIV AS. As ESTRATÉGIAS
ME.IbCOGNITIVAS seriam aquelas operações (não regras), realizadas A característica mais saliente do leitor roficiente é sua flexibilidade
com algum objéfívõ em mente, sobre as quais temos controle consciente, no na le· ra. e não tem apenas um procedimento para chegar aonde ele quer,
sentido de sermos capazes de dizer e explicar a nossa ação. Assim, fe con- ele tem vários possíveis, e se um não der certo, outros serão ensaiados. Por is-
cordarmos com autores que dizem que as estratégias metacognitivas da so, o ensino e modelagem de estratégias de leitura não consiste em modelar
leitura são, primeiro, autoavaliar constantemente a própria compreensão, e um ou dois procedimentos, mas em tentar reproduzir as condições que dão a
segundo, determinar um objetivo para a leitura, devemos entender que o esse leitor proficiente essa flexibilidade e independência, indicativas de uma
leitor que tem controle consciente sobre essas duas operações saberá dizer riqueza de recursos disponíveis.
quando ele não está entendendo um texto e saberá dizer para que ele está O leitor experiente tem duas características básicas que tornam a sua
lendo um texto. leitura uma atividade consciente, reflexiva e intencional: primeiro, ele lê
As atividades em que o leitor poderá se engajar quando ele não or ue tem algum objetivo em mente, isto é, sua leitura é realizada sabe;;-::-
entender o texto são diversificadas e flexíveis, e constituem o indício do do para que esta en o, e, segundo, ele com reende o ue lê o que seus
funcionamento de uma estratégia para conseguir mais eficiência na leitura: olhos percebem seletivamente é interpretado, recorrendo a diversos proce-
por exemplo, se o leitor perceber que não está entendendo, ele poderá voltar dimentos para tornar o texto intelígivel quando não consegue compreender.
para trás e reler, ou poderá procurar o significado de uma palavra-chave que Consideramos que a segunda estratégia, chamada de automonitoração
recorre no texto, ou poderá fazer um resumo do que leu, ou procurar um da compreensão, será desenvolvida naturalmente, uma vez que o leitor tenha
exemplo de um conceito. Enfim, dependendo do que ele detectar cem o cau- objetivos para sua leitura. Nesse caso, e só nele, o leitor ficará ciente de um pro-
sa, ele adotará diversas medidas para resolver o problema. Para a realização blema de compreensão, porque passar o olho pela página não o levará a atingir
desses diversos comportamentos faz-se primeiro necessário que ele esteja seu objetivo. Passaremos a discutir, então, ações pedagógicas que poderiam
ciente de sua falha na compreensão. mostrar ao aluno a importância de ler com um objetivo e que poderiam suprir,
As ESTRATÉ COGNITIV AS da leitura seriam aquelas opera- num primeiro momento, a ausência de objetivos definidos pelo próprio leitor.
ções inconscientes do leitor, no sentido de não ter chegado ainda ao nível Que diferença faz para a atitude do leitor a posse de um objetivo pessoal?
consciente, que ele realiza para atingir algum objetivo de leitura. Por exem- Em primeiro lugar, o objetivo, que não precisa ser altamente especifi-
plo, o fatiamento sintático é uma operação necessária para a leitura, que o lei- cado, determina escolhas pessoais, daí que todo programa de leitura deva ter
tor realiza, ou não, rápida ou cuidadosamente, isto é, de diversas maneiras, um componente livre, em que o aluno vai à biblioteca da escola e lê o que qui-
dependendo das necessidades momentâneas, e que provavelmente não pode- ser, sem cobrança de nenhuma espécie.
rá descrever. Como apontávamos no capítulo anterior, o conhecimento utili- Em segundo lugar, o leitor proficiente faz escolhas baseando-se em ~
zado para realizar a operação é também um conhecimento implícito, não ver- predições quanto ao conteúdo do livro. Essas predições estão apoiadas no co-
balizado e que seria quase que impossível de verbalizar para a grande maio- nhecimento prévio, tanto sobre o assunto (conhecimento enciclopédico), co-
ria dos falantes. mo sobre o autor, a época da obra (conhecimento social, cultural, pragmáti-
=> O processamento, que consiste, em grande parte, em procedimentos co), ~ gênero (~onhecimento textual). Daí ser necessário que todo programa
para os quais utilizamos conhecimento sobre o qual não temos reflexão nem de l.eltur~ permIta ao aluno entrar em contato com um universo textual amplo
controle consciente (esses procedimentos são de fato chamados também de e diversificado. Devemos lembrar que o tipo de texto já coloca restrições
automatismos da leitura) é, portanto, realizado estrategicamente e não atra- qu~n~o aos nossos possíveis objetivos: fica mais difícil, por exemplo, se meu
vés de regras. objetivo for saber o que aconteceu no mundo, pensar na página dos anúncios
Dentro dessa visão do processo de leitura, isto é, como um conjunto de classificados como o texto que melhor me permitirá alcançar esse objetivo.
estratégias cognitivas e metacognitivas de abordagem do texto, o ensino es- Alguns objetivos que o leitor proficiente se auto-impõe podem ser imi-
tratégico de leitura consistiria, por um lado, na modelagem de estratégicas tad~s diretamente no contexto escolar: a leitura em busca de informações que
metacognitivas, e, por outro, no desenvolvimento de habilidades verbais sub- nos mteressam pode ser a base de uma atividade relevante, que vai além do va-
jacentes aos automatismos das estratégias cognitivas. Este último tipo de ins- go "pesquisar sobre tal ou qual assunto", bastante comum no contexto escolar.
trução seria realizado através de análise textual característica da desautoma- Conhecemos algumas experiências com atividades visando a ensinar o
tização do rocesso. - al~no, m~diante o modelo, a ler com objetivos pré-deterrninados. Um objetivo
Será essa concepção do ensino que passaremos a desenvolver: o ensi- pre-defirndo pelo professor numa 6ª série consistia na leitura de um relatório so-
no de estratégias metacognitivas será discutido neste capítulo, e o ensino de bre a gestão de um ex-prefeito da cidade, a fim de se preparar uma entrevista com
habilidades no próximo. o mesmo ex-prefeito que havia encomendado a elaboração do relatório. O obje-
50 51
tivo de outra atividade, numa 2ª série, consistiu em descobrir, a partir de uma fo-
to das personagens de uma estória já lida (Pedrinha esqueleto, de Stella Carr), (1)
quem é quem no livro, o que levou as crianças a realizar uma atividade lúdica de
investigação que envolvia a leitura e releitura cada vez mais minuciosa do livro,
e a realização de inferências cada vez mais elaboradas. No primeiro caso, as
crianças leram e resumiram textos informativos com uma fmalidade que extra-
polava a mera leitura desse tipo de texto; no segundo caso, as crianças procura-
ram detalhes para sustentar uma tese como parte de uma atividade lúdica que
também permitia extrapolar o objetivo do professor de leitura. Esse objetivo em-
bora fosse relevante para o professor pode não parecer relevante para a criança.
Quando os professores das demais matérias se envolvem com o ensino
de leitura, como deveriam fazê-lo, as oportunidades de criar objetivos signifi-
cativos para a leitura de diversos textos se multiplicam. As oportunidades de di-
versificação e ampliação do universo textual do aluno são ilimitadas, desde que
a atividade de leitura seja deslocada de uma atividade meramente escolar, sem
outra justificativa a não ser cumprir programa, até uma atividade para cujo de-
senvolvimento e realização a leitura sirva como instrumento importante.
Como apontamos anteriormente, o leitor eficiente faz predições-basea-
das no seu conhecimento de mundo. Na aula de leitura é possível criar condi-
ções para o aluno fazer predições, orientado pelo professor, que além de per-
mitir-lhe utilizar seu próprio conhecimento, supre eventuais problemas de
leitura do aluno, construindo suportes para o enriquecimento dessas predi-
ções e mobilizando seu maior conhecimento sobre o assunto.
Analisaremos, a seguir, duas situações de leitura em que o professor,
ou o leitor mais experiente, orienta o aluno na definição de objetivos. ~i-
Obrigado por não ter aditivos,
l1!eiro exemplo,yeremos co.!!!Q..oconhecimento do te !O-publicitário e a ~i-
vação ou mobilização desse conhecimento antes e durante a leitura odem Caixinha.
enriquecer a reflexãoso~ segundo, mostraremoJ;
cemo o conhecim~sobre o ass nto.e,a ativação ~wJlh~nto po-
É natural que você pense que o Você deve desconfiar quando
dem preparãrpãra a compreensão de uma argumenta ão complexa. -
~ ~ Leite Longa Vida tenha alguma coi- um leite não é nada disso.
1)
sa. Afinal, os de saquinho duram 1 Pensando bem, você nem pre-
Um exemplo fundamentado na exploração do conhecimento sobre o ou 2 dias e o leite Leite Longa Vida cisa agradecer o fato do Leite Lon-
texto publicitário. dura meses. Isto porque ele não tem ga Vida fazer tudo isso por você.
bactérias. Porque, no fundo, isso não é
o aluno que lê pela primeira vez uma propaganda pode deixar de perce- Como não tem bactérias o mais que uma obrigação do Leite
ber a função de certos aspectos lingüísticos, porque seu conhecimento sobre a Leite Longa Vida não precisa de Longa Vida com todos aqueles
intencionalidade desse texto não é mobilizado para a tarefa de leitura. En- aditivos nem conservante algum. que confiam no leite da caixinha.
tretanto, se o aluno for orientado a pensar no contexto em que essa propaganda Por não conter conservantes, Lei-
foi produzida, qual era o leitor previsto, e qual a intenção que está atrás de textos te Longa Vida, uma vez aberto,
desse tipo, então a leitura deixa de ser uma análise de palavras para passar a ser precisa ser colocado na geladeira.
uma conscientização sobre os usos (e abusos) da linguagem mediante a leitura. Não porque acabou a mágica, mas
Consideremos o texto a seguir, em que se combinam eficientemente a porque lá dentro da caixinha só
linguagem não verbal e a linguagem verbal. Ambas constroem explicitamente tem leite puro, seguro e nutritivo.
uma imagem de um leite puro, seguro, nutritivo (adjetivos estes de fato usados Você não deve desconfiar
no texto), e natural (esta através das associações que a figura do animal traz): quando um leite é tudo isso. Beba Leite. Este. -_..v~
52
53
Ao ajudarmos o aluno a pensar na intenção do autor, ou de quem enco- do do leitor, o que tomaria a expressão muito mais vaga, pois seriam múlti-
mendou o texto, estaremos analisando o texto na procura das marcas lingüís- plos os possíveis referentes. Assim o autor sugere, sem precisarexplicitar, re-
ticas dessa intencionalidade. Nessa perspectiva, podemos perguntar, por forçando ao mesmo tempo a proximidade com o leiotr. Por último, a quarta
exemplo, por que o autor usa você em vez de vocês, este último também ade- ocorrência do pronome, em
quado do ponto de vista formal. Uma razão bastante plausível, e comprensí-
vel para o aluno, já que no discurso em sala de aula ele vive a diferença entre Porque, no fundo, isso não é mais que uma obrigação ...
o você e o vocês do professor, está no fato do uso de você permitir a constru-
ção de uma relação mais próxima, mais íntima, própria da díade, muito mais deixa também em aberto qual seria o significado, uma vez que o antecedente
difícil de alcançar com um grupo, que o uso do pronome plural vocês impli- desse pronome parece ser fazer tudo isso, por sua vez vago.
caria. O tom intimista é reforçado pela forma do monólogo, que sugere e evo- Como apontamos, a hiperlexicalização, isto é, a iteração de um mesmo
CÇ\ o diálogo: o texto, excetuando o segundo parágrafo, parece consistir de ítem lexical, é muitas vezes um índice de relevância tencionada pelo autor. O item
respostas e objeções implícitas de um interlocutor, o leitor, que também é assim sobreusado fica mais saliente, adquire uma importância maior relativa-
consumidor potencial: mente aos outros itens. Esse é também o caso do pronome você, que pela
repetição salienta a entidade a quem ele se refere, o leitor ou consumidor, obscu-
É natural que você pense que o Leite Longa Vida ... recendo assim õfato de que, dado o tipo de texto, o mais importante é o produto,
Você não deve desconfiar quando um leite é tudo isso. cuja imagem positiva deve ser vendida ao leitor. O fenômeno de hiperlexica-
Você deve desconfiar quando um leite não é nada disso. lização também faz com que o uso dos verbos desconfiar e confiar como possí-
Pensando bem, você nem precisa agradecer o fato ...~..... veis estados mentais do leitor-consumidor destaque os estados significados por
esses verbos como preocupações importantes do autor.
Existem, no texto, outros aspectos lingüísticos que poderiam ser refle- Note-se que a análise acima não diz respeito ao efeito produzido no leitor.
xos da intencionalidade. Por exemplo, a reiteração excessiva de um elemen- Este pode ou não gostar da propaganda, ou mesmo aderir ou não ao uso desse tipo
to textual, que constitui a HIPERLEXICALIZAÇÃO. Um exemplo de hiper- de leite. Isto é, leitores diferentes, em diversas leituras, poderão divergir na
lexicalização é o uso do pronome dêitico isso. O dêitico não tem, por defini- interpretação das pistas lingüísticas. Por exemplo, a vagueza referencial no uso
ção, um significado independente do contexto em que funciona. Daí que, de- dos dêiticos pode ser interpretada por alguns como mecanismo para contornar o
pendendo desse contexto, ele possa significar muitas coisas diferentes para problema da vagueza conceitual e factual em relação ao produto, ou pode ser
diferentes pessoas. Como o autor constrói uma estrutura quase que dialoga- interpretada por outros como o mecanismo que melhor capta a multiplicidade de
da, o pronome isso pode, além da referência interna, sugerir uma referência imagens que o produto quer produzir, uma vez que sua audiência está formada
fora do texto, ligando-se aos elementos da falta desse interlocutor imaginá- por múltiplos e diferentes consumidores: para uns pode ser abuso para tirar
rio. Assim, quando o antecedente está no texto, a palavra isso no enunciado vantagem, para outros será sinal de genialidade. Lembramos, em relação a essa
questão, as palavras de Paulo Freire: O educador, num processo de conscienti-
Você não deve desconfiar quando um leite é tudo isso zação (ou não), como homem, tem o direito a suas opções. O que não tem é o
direito de impô-Ias.
remete ao parágrafo anterior (isto é, não tem bactérias, não precisa de aditivos, Nessa perspectiva é que podemos dizer que, para o desenvolvimento do
nem conservantes, quando aberto precisa ser colocado na geladeira (7), é leite leitor, e para que haja uma possibilidade de interação com o autor, é crucial que a
puro, seguro e nutritivo). Também o pronome disso que encontramos em divergência na interpretação esteja fundamentada na convergência que se
fundamenta, por sua vez, não em uma leitura autorizada, mas na análise crítica
Você deve desconfiar quando um leite não é nada disso dos elementos da língua que o autor utiliza para conseguir o que ele tenciona
conseguir.
teria o mesmo antecedente. Já em
2)
Você nem precisa agradecer ofato do Leite Longa Vida fazer tu- Um exemplo baseado no conhecimento do assunto.
do isso por você
O segundo exemplo a ser discutido baseia-se na elaboração de um ob-
não está claro, do ponto de vista formal, qual poderia ser o antecedente, uma jetivo de verificação de hipóteses de leitura (isto é, exigindo leitura tipo son-
vez que não foram apresentadas ações relativas ao produto. Devido ao estilo dagem para verificar se o que procuramos está no texto), após um trabalho de
dialogado, seria razoável supor, entretanto, uma ligação que remete ao mun- sala de aula que promove condições para predizer o tratamento e organização
54 55
do tema do texto, facilitando assim essa primeira leitura ao mesmo tempo que Solicitou-se aos alunos a leitura do trecho a seguir, que transcrevemos tal
um comportamento do leitor experiente é modelado. qu~ apresentado, seg~ido d.os dados do contexto: autor, jornal de que foi ex-
Fazer predições baseadas no conhecimento prévio, isto é, adivinhar, traído, data em que foi publicado (o texto completo, que foi lido pelos alunos
informados pelo conhecimento (procedimento que chamamos de formulação após a atividade de predição e adivinhação encontra-se no fim deste capítulo):
de hipóteses de leitura), constitui um procedimento eficaz de abordagem do
texto desde os primeiros momentos de formação do leitor até estágios mais
avançados, e tem o intuito de construir a autoconfiança do aluno em suas. es- (2) TENDÊNCIASIDEBA TES
tratégias para resolver problemas na leitura. As predições não precisam ficar
reduzidas apenas àquelas baseadas em conhecimentos mais fechados, como ASSASSINO EM NOME DO POVO
as hipóteses a partir do conhecimento sobre o gênero textual no exemplo an- Dalmo de Abreu Dallari
terior, mas podem ser sobre questões muito mais abertas, como por exemplo,
o assunto. Como o professor já conhece o texto, ele pode servir de orientador Não existe pena de morte sem carrasco.
para as predições sobre o desenvolvimento do tema, forne~endo ao aluno Assim como há pessoas que contratam um matadorprofis-
aquelas pistas necessárias para a predição. Este enfoque, muito c.omum .nos sional para matar alguém, o Estado, em nome do povo, contrata
cursos de leitura em língua estrangeira, será exemplificado a seguir, median- um matador profissional para a execução da pena de morte: é o
te o relato de uma experiência de leitura com adultos. carrasco. Do ponto de vista da legislação brasileira, em caso de
Antes, porém, uma palavra sobre a viabilidade desse tipo de atividade homicídio contratado, tanto é considerado criminoso aquele
no ensino de leitura nas primeiras etapas de alfabetização. Relatos de expe- que executou diretamente a ordem, matando uma pessoa, como
riências de ensino de leitura nas primeiras duas séries mostram que o traba- o contratante, que pagou para que outro matasse. Ambos são as-
lho de elaboração de hipóteses sobre uma estória, a partir das ilustrações do sassinos; o que matou e o que mandou matar.
texto, é um trabalho que engaja o interesse das crianças: a tarefa assume ca- Mas desde que o povo, por ampla maioria, decida assumir
racterísticas lúdicas, com as crianças defendendo hipóteses divergentes e a condição de assassino, encarregando o Estado de contratar o
construindo argumentações sólidas para defender as suas, especialmente executor, será necessário observar as regras constitucionais re-
porque muitas vezes as ilustrações não encaixam nas hipóteses em curso, lativas à execução desse serviço público. E aqui surgem alguns
promovendo assim condições para a discussão polêmica. problemas interessantes, que o povo brasileiro e as autoridades
Como a ontamos anteriormente ara a e - o de uma hi ótes e governamentais deverão considerar.
leitura é necessário ativar o conhecimento réyi<Ldü--lei1Qrsob f!-.o-ªssunto.
Folha de São Paulo, 15/5/1991
Quanto maiSõleltor souber sobre o assunto, mais seguras serão suas predi-
ções. Assim, embora o desenvolvimento de um tema específico, como polui- A formulação de hipóteses foi orientada chamando a atenção do leitor
ção atmosférica, por exemplo, não seja o objetivo da aula de leitura, uma vez p~a a descrição do trabalho do carrasco como a execução de um serviço pú-
que o texto interessa mais enquanto representativo desse tipo, é de qualquer blico (para acompanhar melhor a predição, transcrevemos o texto completo
modo aconselhável abordar uma mesma relevante temática de diversos pon- no fim do capítulo). Uma vez que os leitores fizeram a inferência de que nes-
tos de vista, para assim o leitor poder construir uma rede de conhecimento, ou se caso, o executor do serviço seria um servidor público, solicitou-se aos lei-
família de conceitos I que lhe permita aprender e fazer mais e melhores predi- tores ~ue pensassem quais seriam os problemas interessantes que o autor
ções sobre o assunto. anunciava em relação a essa questão.
O texto a seguir, escolhido para os leitores fazerem predições, traz uma Apesar de o texto dar um tratamento singular, extremamente original
maneira original e criativa de lidar com uma questão altamente polêmica. Daí ao tema, os leitores conseguiram elaborar hipóteses sobre o desenvolvimen-
que seja surpreendente a capacidade dos leitores para predizer não só a posi- to da questão bastante próximas da argumentação do autor. Assim, uma vez
ção do autor, facilmente inferível para quem conhece outros trabalhos do ~ue a figura do carrasco foi concebida como a de um servidor público, ques-
mesmo, mas também a maneira como ele desenvolveu a questão para apre- toes relativas ao regime de trabalho, à maneira de selecionar os candidatos
sentar a sua posição. (se por ~oncurso ou des!gnação), aos conhecimentos e experiências exigido~
do candidato, como senam eles aferidos, foram todas levantadas pelos leito-
res. Outro aspectos relativos à vida funcional foram também discutidos, co-
I. Em alguns casos, quando se trata de conhecimento episódico, como por exemplo, conheci- ~o carga horária desse funcionário, tipo de remuneração, gozo de férias; en-
mento genérico sobre a festa de aniversário, sobre uma viagem aérea, as estruturas de conhe- fim, a tese original do autor foi levada à sua conclusão lógica mediante uma
cimento são chamadas de esquemas. paródia de uma situação conhecida. Nas duas aulas em que o texto foi lido, a
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ironia do autor pareceu ficar traduzida em muitos risos nervosos dos alunos, petindo exercícios para fazerem bonito perante a comissão exa-
quando os argumentos eram levados às suas últimas conseqüências. minadora.
Se compararmos essas predições com o tratamento dado p~l<:autor a?
texto, podemos comprovar que embora haja diferenças entre as predlçoes?o lei- Quanto aos riscos do nepotismo e a incompetência, no parágrafo 9, o
tor e o desenvolvimento do autor, a exploração, até às últimas conseqüências, de autor mantém que
ter que contratar uma assassino para realizar um serviço públic~ é, de f~to, ce~-
trai em ambos. Assim, a partir do quarto parágrafo, em que se poe em discussão Isso cria a possibilidade de carrascos incompetentes, que pode-
a questão da competência estadual ou federal para a execução da pena de morte, rão fazer o condenado cair daforca e sofrer alguma fratura por-
os parágrafos desenvolvem as conseqüências de tal decisão, abor?ando pnmel- que o nó estava mal dado ou que acabarão misturando a ligação
1'0 as conseqüências se o cargo for efetivo (parágrafos 6-8) e depois, apr~se~tan- da cadeira elétrica com a do ar condicionado ou dos computa-
do as conseqüências quanto à forma de emprego se o cargo for por cormssao. O dores, com resultados imprevisiveis.
contraste é marcado pela conjunção contrastiva mas do parágrafo 9.
As diversas conseqüências são apresentadas como problemas, dificul- A paródia continua em todas as propostas culminando no parágrafo 11,
dades ou riscos decorrentes da situação: um problema complicado será a no- em que o defensor da pena de morte não é mais ridicularizado, mas novamen-
meação ou contratação do carrasco (parágrafo 5), será indispensável a rea- te acusado, desta vez de assassino hipócrita: E muitos empreiteiros da execu-
lização de concurso público (parágrafo 6), poderá haver certa dificuldade da ção continuarão a dizer-se cristãos e irão à missa, participando compungidos
fixação das provas e dos critérios de avaliação (parágrafo 7), um pe9ueno da santa comunhão exibindo solenemente a celebração de sua hipocrisia.
complicador será a preparação dos candidatos ... (parágrafo 8), havera o ris- A criatividade e riqueza de elaboração dos argumentos utilizados pelo au-
co de nepotismo ou da utilização do cargo para a colocação de cabos eleito- tor só poderão ser percebidas durante a leitura, mas antes de o leitor iniciar a lei-
rais (parágrafo 9), outro problema importante é o regime de trabalho do car- tura do texto, ele já terá uma idéia aproximada da linha argumentativa do autor.
rasco, pois existe um grande risco de se criar um marajá (paragráf? 1O!. De fato, tal idéia é bem mais detalhada do que um leitor teria, numa si-
O sarcarmo das soluções ou resoluções, entretanto, reflete a ironia em tuação de leitura na vida real, antes de começar a leitura do texto. O maior de-
que o tema global é tratado, contrastando com a seriedade na descrição do talhamento deve-se ao fato de que atividades como a demonstrada acima são
problema. Sobre o problema da competência, no parágrafo 4, vemos que utilizadas para orientar alunos mediante o modelo idealizado da atividade. O
objetivo é a elaboração de uma espécie de mapa textual (que os próprios
... quem acredita que o criminoso é um calculista, que primeiro alunos elaborariam junto aos seus colegas, orientados por um leitor
analisa as penas possíveis para depois resolver se vai ou não experiente), o que facilitaria a entrada no texto. Esse mapa faria com que as
praticar o crime, deverá admitir que, por hipótese, haverá os dificuldades na leitura desse tipo de texto fossem reduzidas: palavras-chaves
que decidirão praticar homicídios no Piaui, enquanto que ou- (e, mais importante, os conceitos que elas representam) já fazem parte da
tros irão preferir São Paulo ou o Rio Grande do Sul, por acha- discussão inicial e são escritas pelo professor à medida em que elaboram esse
rem melhor a forca, a cadeira elétrica ou a câmara de gás. mapa. No exemplo citado houve predições sobre os temas, subtemas, a
organização dos mesmos e até sobre o tipo de argumento utilizado pelo autor.
Sobre a possibilidade de candidatos de notório saber virem a substituir Note-se a diferença entre a atividade descrita acima e a discussão
os concursados, no parágrafo 6, o autor afirma que motivadora, passo comum em aula de leitura, tal como foi descrita no Capítulo
2. Esta última reduz-se a uma discussão, provavelmente polêmica, sobre o
É bem verdade que o presidente da República ou os governadores tema, isto é, a pena de morte. Esse tipo de motivação é genérica demais para o
poderão invocar a notória especialização para dispensa do con- objetivo facilitador de entrada no texto. Após a elaboração de hipóteses,
curso. Nesse caso os assassinos de líderes rurais, os justiceiros e entretando, e de posse do mapa textual resultante desse trabalho, a primeira
os integrantes de esquadrões da morte serão fortes candidatos. leitura do texto fica muito mais fácil, até para o aluno com problemas de
leitura, que pode assim começar a ler com um objetivo específico, como o
Sobre a preparação dos candidatos, no parágrafo 8, somos informados exemplificado aqui, ou seja, o de confirmar ou desconfirmar suas hipóteses.
de que Apesar de que uma tarefa de leitura para confirmar uma predição
pareceria envolver apenas uma leitura ao pé da letra, consideramos que ela
.., todos logo perceberão a necessidade de estudar para o con- não rouba à atividade de leitura aquilo que lhe é essencial, constitutivo, a
curso e, certamente, os mais estudiosos passarão noites em cla- saber: a erce ão da inten ão do autor do texto, ró ria de uma atividade
ro (ou será melhor dizer" no escuro" ?) revendo a matéria e re- comunicat~va. Isto porque, para a atividade ser bem sucedida, o leitor precisa
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conhecer qual a posição do autor em relação à polêmica questão tratada no devem ser claras, específicas, e devem ainda ser fornecidas; do contrário, so-
texto. Esta é fornecida tanto pelo conhecimento prévio que temos sobre o licitar ao aluno de 5ª série (e ao aluno de 3ª e 4ª séries também) que faça uma
autor, como pelos parágrafos iniciais fornecidos ao aluno, que marcam essa pesquisa sobre "a nutrição" só pode trazer os resultados que traz, de o aluno
posição inequivocamente contra a pena de morte pela designação de povo as- geralmente copiar o trecho correspondente ao assunto na enciclopédia, sem
sassino, matador profissional, contratante, para os que a defendem. que a compreensão tenha mediado essa cópia.
~ O aluno pode não perceber como esse léxico está marcando uma atitude
(de fato, numa das turmas houve vários leitores que não conseguiram por si
mesmos chegar a inferir essa atitude), mas novamente o papel do adulto ou do RESUMO
leitor mais experiente consiste em promover as condições para que ele consiga
fazê-lo independentemente. Essa atividade é coerente com a observação de que O ensino da leitura é um emprendimento de risco se não estiver funda-
quando o aluno ainda não é proficiente na leitura, é na interação que se dá a mentado numa concepção teórica firme sobre os aspectos cognitivos envol-
compreensão. vidos na compreensão de texto. Tal ensino pode facilmente desembocar na
Também a atividade não se reduz a uma leitura ao pé da letra, porque a exigência de mera reprodução das vozes de outros leitores, mais experientes
argumentação do autor está baseada numa premissa implícita, anterior aos ou mais poderosos do que o aluno.
argumentos apresentados, inferível seja mediante a ativação do conhecimen- Uma concepção clara do processo cognitivo, entretanto, permite reprodu-
to prévio sobre o autor e seu contexto, seja através da leitura dos parágrafos zir em sala de aula, mediante tarefas que imitam o comportamento de leitor pro-
iniciais. Essa premissa é a seguinte: a pena de morte é indefensável do ponto ficiente, aquelas estratégias que caracterizam o comportamento reflexivo, de ní-
de vista ético ou moral. #
vel consciente do leitor. Tal imitação, acreditamos, é um passo anterior, neces-
Essa foi, de fato, uma inferência bem mais difícil para um dos grupos sário ao desenvolvimento dessas estratégias no aluno. Tal imitação, ainda, cons-
de leitores, que ficaram incomodados com a paródia frente a um assunto tão titui, se bem elaborada, um suporte temporário, a ser retirado mais tarde, para re-
sério, que deveria ser tratado, segundo eles, primeiramente do ponto de vista criar o comportamento do leitor experiente. Ao recriá-lo, o professor mostra pa-
ético. De fato, os risos nervosos de muitos alunos eram expressão desse des- ra o aluno que o texto não precisa ser necessariamente impenetrável, muito em-
conforto, conseqüência da incapacidade de construir um elo inferencial cru- bora sua experiência inicial com o texto escrito tenha criado essa expectativa.
cial para a compreensão: se o carrasco é um assassino, o povo que lhe permi- A nossa proposta nesse sentido consiste no modelamento de estraté-
te executar seu serviço, o mandante, é um povo assassino, e o serviço, isto é, gias metacognitivas, mediante a formulação de objetivos prévios à leitura e à
a pena de morte, um crime e, embora legal, indefensável ~o ponto de vista éti- elaboração de predições sobre o texto. O aspecto mais importante dessa pro-
co e moral. posta é que ela propõe atividades, baseadas na convergência na leitura, até
Tal dificuldade explica-se pela complexidade na inferência da premis- que ele possa desenvolver as estratégias necessárias para uma leitura pessoal,
sa, que depende da percepção anterior do argumento analógico na compara- individual, singular. Para que haja uma possibilidade de interação com o au-
ção da pena de morte com assassinato e pela pouca familiaridade do leitor tor, é crucial que a divergência na interpretação esteja fundamentada na con-
com uma argumentação em que uma posição que é considerada por eles ain- vergência, que se fundamenta, por sua vez, não em uma leitura autorizada,
da polêmica é considerada pelo autor como um dado, uma verdade, um fato mas na análise crítica dos elementos da língua que o autor utiliza.
que não se discute, em resumo, uma-premissa anterior.
Quando questões como essas surgem durante a atividade de elaboração
de hipóteses, como de fato surgem, então não existe o perigo de a tarefa resul-
tar em mais uma atividade mecânica de abordagem do texto, apesar de a ati- NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
vidade apresentar uma visão parcial da leitura, e de modelar uma atividade
que exagera ou talvez idealiza a construção de hipóteses pelo leitor experien- I. A noção de estratégia cognitiva e metacognitiva de leitura, é apresentada em Brown
te. Este último, após uma primeira hipótese baseada no seu conhecimento (1980) e reformulada em Kato (1984, 1985); van Dijk e Kintsch (1983) discutem as bases para
prévio, que muitas vezes também lhe orienta no sentido de optar ou não pela um modelo estr~tégico da leitura... /
leitura daquele texto, não faz predições nesse nível de detalhamento antes de 2. O fenomeno da hiperlexicalização enquanto recurso do falante para destacar aquilo
começar a ler, mas prediz em função do que está lendo, à medida em que ele que considera importante é discutido em Fowler e Kress (1979).
vai lendo, mudando suas predições também no decorrer da leitura. 3. A teoria de esquemas incorporada a uma teoria de leitura encontra-se em Rumelhart
Tão logo o leitor adquira confiança na sua capacidade de leitura, os ob- (1980).
jetivos podem então passar a ser aqueles pelos quais o professor geralmente 4. A noção de convergência na leitura enquanto base para a divergência está subjacente
começa: ler para "fazer uma pesquisa", sendo que as perguntas de pesquisa nos trabalhos de Kleiman (1989).
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BROWN, A. L. "Metacognitive Development in Reading", in SPIRO, RJ., BRUCE B. c., & pouco escolhidos poderão reclamar da provas práticas. A única solução que me
BREWER, W. F. (orgs.) Theoreticat Issues in Reading Comprehension. Hillsdale, discriminação. ocorre para esse impasse é pedir às pes-
N .1.: Lawrence Erlbaum Asso., 1980.
Um problema complicado será a no- soas que estão convencidas de que a pena
van DIJK, T. A. & KINTSCH, W. Strategies in Discourse Comprehension. New York: Acade- meação ou contratação do carrasco, que de morte é um benefício para a sociedade
por exercer atividade pública estará ocu- que comprovem seu espírito público e
mie Pres, 1983.
pando cargo ou função ou terá um em- sua preocupação com o bem social, ofe-
FOWLER, R. & KRESS, G. "Critical Linguistics", in FOWLER, R., HODGE, B., KRESS, G.
prego público. Em qualquer dessas hipó- recendo-se como voluntárias para possi-
& TREW, T. (orgs.) Language and Controlo London: Rout1edge & Kegan Paul, 1979.
teses, ele terá que ser brasileiro, pois a bilitar a realização da boa seleção dos
FREIRE, P. Extensão ou comunicação? R.1.: Paz e Terra, 1983. Trad. de Rosisca Darcy de Oli-
Constituição expressamente o exige, carrascos.
veira. mas será necessário estabelecer se ele Um pequeno complicador será a pre-
KATO, M. "Estratégias cognitivas e metacognitivas na aquisição de leitura", Anais do I Encon-
poderá efetivar-se no cargo, se a contra- paração dos candidatos para o concurso.
tro de leitura, Londrina, 1984. Também em O aprendizado de leitura, S.P.: Martins
tação será por tempo determinado, ou se, Como todos sabem, brasileiro adora em-
Fontes, 1985. em lugar disso, será preferível a criação prego público e além disso há muito de-
KLEIMAN, A.B. Leitura: ensino e pesquisa. S. P.: Pontes Editores, 1989. de cargo de confiança, para exercício em semprego no Brasil. Por esses motivos é
RUMELHART, D. E. & ORTONY,A. "The Representation ofKnowledge in Memory", in AN- comissão. fácil prever que o número de candidatos
DERSON, R. c., SPIRO, R.1., & MONTAGUE, W. E. (orgs.). Schooling and the Ac- Se for preferida a criação de cargo será muito grande. Assim sendo, todos
quisition of Knowledge. Hillsdale, N.J.: Lawrence Erlbaum Asso., 1977. para preenchimento em caráter efetivo ou logo perceberão a necessidade de estu-
mesmo para contratação por prazo deter- dar para o concurso e, certamente, os
minado, será indispensável a realização mais estudiosos passarão noites em cla-
APÊNDICE de concurso público. É bem verdade que ro (ou será melhor dizer "no escuro"?),
o presidente da República ou os governa- revendo a matéria e repetindo exercícios
Assassino em nome dores poderão invocar a notória especia- para fazerem bonito perante a comissão
lização para dispensa do concurso. Nesse examinadora. E por falar nisso, qual será
do povo caso, os assassinos de líderes rurais, os a qualificação exigida para alguém ser
justiceiros e os integrantes dos esqua- examinador?
DALMO DE ABREU DALLARI drões da morte serão fortes candidatos. Mas poderá também ocorrer que se
Mas será preciso tomar cuidado com os dê preferência ao preenchimento em
Tribunais de Contas, que às vezes exage- comissão, considerando-se como de
Não existe pena de morte sem car- à execução desse serviço público. E aqui ram no seu zelo e poderão pedir provas da confiança o cargo de carrasco. Nesse
rasco. já surgem alguns problemas interessan- especialização. Assim também será im- caso haverá o risco de nepotismo ou da
Assim como há pessoas que contra- tes, que o povo brasileiro e as autorida- portante verificar se a contratação não utilização do cargo para a colocação de
tam um matador profissional para matar des governamentais deverão considerar. ocorre em período eleitoral, pois às ve- cabos eleitorais. Isso cria a possibilidade
alguém, o Estado, em nome do povo, Em primeiro lugar, será preciso defi- zes, mesmo quando é óbvio o interesse de carrascos incompetentes, que poderão
contrata um matador profissional para a nir se a competência para execução da público em salvar vidas, há tribunais que fazer o condenado cair da forca e sofrer
execução da pena de morte: é o carrasco. pena de morte será da União ou dos Es- negam a urgência. Imagine-se então se o alguma fratura porque o nó estava mal
Do ponto de vista da legislação brasilei- tados. No caso de a competência ser es- problema for eliminar vidas ... dado ou que acabarão misturando a liga-
ra, em caso de homicídio contratado, tan- tadual, será razoável permitir que cada No caso de ser realizado o concurso, ção da cadeira elétrica com a do ar condi-
to é considerado criminoso aquele que Estado decida sobre a forma de execu- poderá haver certa dificuldade na fixa- cionado ou dos computadores, com re-
executou diretamente a ordem, matando ção. E quem acredita que o criminoso é ção das provas do concurso e dos crité- sultados imprevisíveis. Tudo isso vai
uma pessoa, como o contratante, que pa- um calculista, que primeiro analisa as rios de avaliação. Como a escolha é para exigir a celebração de acordos políticos,
gou para que outro matasse. Ambos são penas possíveis para depois resolver se o exercício das atribuições de carrasco, pois alguns não abrirão mão da faculda-
assassinos; o que matou e o que mandou vai ou não praticar o crime, deverá ad- não importará saber se o candidato sabe de de indicar o carrasco de sua confiança.
matar. mitir que, por hipótese, haverá os que ler e escrever, sendo indispensável esco- Outro problema importante é o regi-
Mas desde que o povo, por ampla decidirão praticar homicídios no Piauí, lher o que souber matar melhor. E pela me de trabalho do carrasco, pois existe
maioria, decida assumir a condição de enquanto que outros irão preferir São natureza das funções, ninguém há de um grande risco de se criar um marajá.
assassino, encarregando o Estado de Paulo ou o Rio Grande do Sul, por acha- acreditar que uma simples prova teórica Como o serviço é de grande responsabi-
contratar o executor, será necessário ob- rem melhor a forca, a cadeira elétrica ou permita a melhor escolha, tomando-se lidade, a remuneração deverá ser alta.
servar as regras constitucionais relativas a câmara de gás. Os Estados que forem absolutamente necessária a realização de Mas como o número de crimes puníveis
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com pena de morte é muito pequeno, o mano, certamente um miserável que já
carrasco terá muito pouco serviço. É nasceu marginalizado, ou um louco.
possível que alguém pense no pagamen- Povo e carrasco serão assassinos, mas
to por tarefa, o que não é conveniente se muitos irão no mesmo dia a uma reunião
forem considerados o custo e as dificul- de ecologistas, para impedir que uma
dades da escolha do carrasco em cada foca seja morta ou que se ponha em risco
caso. Talvez se cogite da privatização, a vida dos jacarés. E muitos empreiteiros
mas neste caso surgem novamente todos da execução continuarão a dizer-se cris-
os problemas da licitação, com a dificul- tãos e irão à missa, participando com-
dade de que não será fácil o enquadra- pungidos da santa comunhão, exibindo
mento nos cadastros de contribuintes de solenemente a celebração de sua hipo-
empresas especializadas, embora exis- crisia.
tam hoje no Brasil inúmeros grupos es-
pecializados, no campo e na cidade. DALMO DE ABREU DALLARI. 58,
Finalmente, supondo-se que todos advogado, é profesor titular da Faculdade de
esses obstáculos sejam superados, che- Direito da USP e secretário dos Negócios
ga-se ao dia, ansiosamente esperado por Jurídicos da Prefeitura de S.Paulo. Foi
muitos, da execução da pena de morte. O presidente da Comissão Justiça e Paz (SP).
carrasco, contratado e pago pelo povo
para fazer a parte suja, matará um ser hu- Folha de São Paulo 15/5/91.
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