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Ciborgue e Imortalidade Da Carne

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CIBORGUE E IMORTALIDADE DA CARNE: TECNOLOGIA E RESSURREIÇÃO DA


CARNE.

Resumo: A pesquisa tem como tema a ressurreição da carne, dom, salvação e sanação de Deus
para o corpo humano frágil e mortal. Reflete-se sobre a possibilidade do pós-humano, onde com a
intervenção da biotecnologia, espera-se superar a fragilidade da natureza. O ser humano
exercendo sua vocação de co-criador, aprimorando a natureza e buscando superar toda fragilidade
e mortalidade humana. Porém, esta busca, possui seu aspecto de condenação do corpo e negação
da própria fragilidade. Com a salvação vinda de Deus, aceita-se a fragilidade e a mortalidade,
além de receber a sanação da carne, não na impessoalidade técnica, mas na relação de Deus. É
uma teologia que auxilia a pensar a biotecnologia e sua relação com a bioética e o futuro do
humano. Principais autores, Jürgen Moltmann e Ruiz de la Peña e Lucia Santaella.

Palavra chave: Pós-humano, Ressurreição da carne, Salvação para o corpo

Abstrat: The theme of this research is the resurrection of the flesh, gift, salvation and God`s
healing for the fragile and mortal human body. A reflection is made on the post-human, where
the fragility of nature is expected to be overcome through the intervention of biotechnology: the
human being following its vocation of co-creator, improving nature and seeking to overcome all
fragility and human mortality. This search, however, includes aspects such as condemnation of
the body and denial of human fragility Through salvation coming from God, fragility and
mortality are accepted, in addition to the healing of the flesh, not in its technical impersonality,
but in its relation with God. It is a theology that helps think of biotechnology and its relation with
bioethics and the future of the human aspect. The main authors are Jürgen Moltmann, Ruiz de la
Peña and Lucia Santaella.
Key Words: Post-Human; Resurrection of the Flesh; Salvation of the Flesh.

O presente trabalho aborda a temática do desenvolvimento da biotecnologia e a reflexão


ética e teológica realizada para confrontar o progresso científico que avança para o
relacionamento com o corpo humano. Graças ao desenvolvimento da biotecnologia um novo
conceito de humanismo começa a ser elaborado. Para refletir sobre este tempo de possível
superação das dependências corpóreas, pós-humano, a teologia entra no debate ético sobre o
corpo. A teologia, trazendo à luz da ressurreição corpórea de Jesus, contribui para o pensamento
ético questionar a atuação tecnológica na vida humana. De onde vem a salvação completa para o
corpo? Trazer salvação significa trazer saúde para o corpo danificado e frágil. Para o debate
inicia-se apresentando o pano de fundo da pesquisa: o contexto do pós-humano. A biotecnologia
avaliada nos seus aspectos positivos para a medicina, mas analisada criticamente nos atos de
desumanização. Após, a resposta da ressurreição da carne como alternativa antropológica para
um novo relacionamento do ser humano com seu corpo e com sua dualidade saúde-doença; vida-
2

morte. Por fim, a antropologia bíblica sobre a criação do ser humano e a salvação pela ação de
Deus que glorifica pelo Espírito Santo a nossa corporalidade.

1) TEMPOS DE PÓS-HUMANO?
A mudança na ciência moderna, resultou numa nova relação do ser humano com a
natureza. A nova mentalidade moderna, possibilitou um novo paradigma e nova forma de
interação com o próprio corpo, com a natureza e com seu futuro. A dessacralização do corpo e do
cosmos legitimaram a intervenção no corpo, a descoberta das leis da natureza com o intuito de
dominá-las. As tendências fixistas do mundo, sacralidade do corpo, entendido com proibição da
manipulação são substituídas pelo antropocentrismo que domina, manipula e intervém com a sua
mente subjugando a natureza.
O domínio da ciência moderna chegou ao tempo atual num estágio de intervenção na
natureza humana como nunca se tinha presenciado. A tecnologia transformada em biotecnologia
possibilita a intervenção nos segredos do corpo humano. Até então, a tecnologia modificava o
exterior; mesmo o corpo era investigado, mas sem a modificação da natureza, aquilo que é
constitutivo do humano. A biotecnologia possibilita ao ser humano um poder impensável: de
modificar a essência do humano. A engenharia genética, exemplo desse poder biotecnológico,
pode modificar, escolher, aperfeiçoar os genes que compõe a base para a vida humana. A
natureza humana não está suspensa sobre o acaso, o destino de recebermos as características dos
progenitores. Agora, os genes podem ser alterados e formar uma nova vida aprimorada, pode-se
dominar a formação de suas características. A natureza não tem mais o poder sobre o humano; e
sim, o humano domina a natureza.
Essa nova situação, gerou uma discussão que está apenas no inicio. O poder do ser
humano se tornou matéria de reflexão e debate ético. A intervenção dentro do corpo humano gera
uma discussão ética sobre os limites do humano. Nos é permitido intervir na vida humana nestas
condições? Estamos brincando de deus? Devem existir limites para o progresso humano?
As questões apresentadas questionam toda a Antropologia Ocidental. Faz-se uma
interrogação sobre o humano, sobre o valor da natureza, a inter-relação do humano e o natural e o
sobre o futuro do humano com o surgimento do pós-humano, ou a era pós-biológica. O que está
em jogo neste debate? Hoje tratar do corpo humano é sem dúvida uma das questões mais
complexas e difíceis. A antropologia ainda não definiu o termo pós-humano; ainda ele não está
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conceitualmente definido, mas a mentalidade está presente no pensamento cientifico e mesmo


cultural da época.

Pós-humano é um conceito recente que pode ser entendido de vários


modos. Entre as teorias do pós-humano, algumas propõe uma visão
eufórica e hiperotimista de um futuro caracterizado pela libertação do
orgânico e dos seus limites (transumanismo, cibercultura etc.). Aqui se
descortina a total transcendência do corpo e da natureza, a completa
ultrapassagem, pelo homem, do processo evolutivo, em nome de um
desprezo do vivente e de tudo o que conta (emoções, corpo finitude,
morte), reduzido ao inútil e residual fardo, a puro ‘peso morto’(...).
(PULCINI, 2006, pg. 11).

Depara-se com um dualismo sobre o pós-humano. A afirmação de um processo evolutivo


da humanidade que se encaminha para a superação de toda fragilidade humana, de limites
impostos pela natureza. O pós-humano representa a libertação e o domínio humano sobre o poder
do acaso natural. O ser humano a mercê das forças naturais que determinam as características
pessoais, recuperação de doenças genéticas e mesmo recuperação de partes do corpo danificadas
por próteses. O corpo humano salvo dos riscos da natureza, das limitações biológicas e podendo
enfrentar a mortalidade e fragilidade do ser humano. Afasta-se da natureza para subjugá-la e
impor sua mentalidade.

O sonho de uma total emancipação do ser humano em relação aos seus limites, a vocação
destinada ao ilimitado guiou os esforços humanos para melhores condições de vida na Terra. Para
se tornar humano, ocorreu constantemente na história, uma superação do humano. A alegação
dos defensores mais entusiasmados do pós-humano lembram que o ser humano somente
consegue se humanizar ultrapassando seus limites humanos. A humanização requer a superação
da natureza. Os desejos de imortalidade, saúde perfeita para o corpo, evitar o sofrimento e
transcendência são características do ser humano que busca superar o próprio humano.
Defensores como Dominique Lecourt (LECOURT, 2005), procuram tirar o impacto negativo que
a biotecnologia pode causar pela opinião mais critica ao pós-humano.

A filosofia do pós-humano também reivindica uma nova postura em frente ao humanismo


Ocidental. Elena Pulcini aponta para o fim de um antropocentrismo ontológico ocorrido no
Ocidente, entendido como um ser isolado no universo. O humanismo até então foi considerado
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como alguém isolado, ontológico e fechado em si mesmo. O pós-humano pretende ser uma
humano integrado com o não-humano. O humanismo até agora foi fechado em si mesmo; o pós-
humano abre o humano para a integração com o não-orgânico (máquinas, próteses,
nanotecnologia) formando um novo ser híbrido. Uma integração harmoniosa entre o humano e o
não-humano, ou seja, harmonia entre o orgânico e o cilício formando o ciborgue, um ser úmido
da junção do molhado do orgânico e do seco do cilício.

Outro pensador italiano, Roberto Marchesini defende a nova posição humana diante do
humano. Rejeita o ser humano como único protagonista da criação e retoma o ser humano como
ser relacional. O humano não está pronto, como ser ontológico fechado em si mesmo. O pós-
humano vive a integração com a técnica formando um ser híbrido com a técnica.
(MARCHESINI, 2006, pg. 19).

O pós-humano vem em encontro da tendência humana de superar seus limites. Uma nova
sociedade está surgindo baseada na primazia do espírito livre sem o peso do corpo e de suas
fraquezas. O desejo de sempre transcender os limites humanos impulsiona o ser humano a livrar-
se da naturalidade. Para o processo de humanização, para o ser humano ser mais humano, a
natureza precisa ser vencida. Ser o ser humano permanece no seu estado natural não humaniza-
se; assim, lança-se para superar a sua própria naturalidade.

Neste processo, a fala e a escrita são exemplos citados de superação da naturalidade. Os


órgãos respiratórios não possuem em si a capacidade natural para a fala; nem mesmo braços e
mãos são naturalmente destinados para a escrita. O ser humano ao falar e escrever está superando
a naturalidade, esta usando a técnica para sua humanização. A técnica está a serviço da
humanização. O desenvolvimento do córtex cerebral extrapola a caixa craniana e se desenvolve
fora corpo na forma de cultura, artes, pinturas. Mais uma vez usa-se o principio da utilização da
técnica para a humanização; o ser humano não se humaniza apenas na naturalidade.

A essência do homem não estaria na sua parte animal, mas na sua


inteligência. Por infortúnio, essa inteligência acha-se petrificada na
confusão de emoções com as quais o corpo a agride, e alem disso ela é
terrivelmente limitada por uma duração de vida (...). Vamos libertá-la.
(LECOURT, 2005, pg. 56-57).
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A sutiliza do pensamento da defesa do pós-humano baseia-se na noção de que o ser


humano precisa a todo custo superar a sua naturalidade para se tornar mais humano. A técnica é
uma aliada para superar a mortalidade humana; a natureza criada por Deus se mostra deficiente e
frágil dependendo do ser humano aperfeiçoar pela técnica e alcançar um estágio superior. Busca-
se o rompimento com os limites naturais.
A promessa da técnica, pode-se falar de biotecnologia, de resolução dos problemas
humanos referidos a doenças genéticas, a partes do corpo humano defeituosas sendo substituídas
por próteses, a cura para todos os males causados por um corpo mortal e defeituoso gera na
sociedade um entusiasmo pelas novas descobertas. A promessa de um corpo perfeito, livre de
todos os males causados pela natureza finita parece ser meta deste novo movimento.

Na seqüência dessa evolução, o pós-humano significaria a superação das


fragilidades e vulnerabilidade de nossa condição humana, sobretudo do
nosso destino para o envelhecimento e a morte. Tal superação seria
atingida pela substituição de nossa natureza biológica por uma outra
natureza artificialmente produzida que não sofreria as limitações e
constrangimentos de nosso ser orgânico, hoje obsoleto. (SANTAELLA,
2007, pg. 45).

Mas o pensamento pós-humano merece uma reflexão aprofundada. Se os defensores da


utilização da tecnologia para superar as limitações humanas evitam a “demonização” da ciência,
também deve-se evitar o otimismo exagerado dessas novas tecnologias. A atuação biotecnologica
está inserida num contexto de críticas sobre a manipulação indiscriminada sobre o corpo, de
rejeição da mortalidade e fragilidade humana. A natureza humana pode ser alterada
indiscriminadamente pelo ser humano?
O pós-humano está inserido por outro lado na dificuldade humana de enfrentar a própria
finitude e mortalidade. A busca pelo corpo perfeito, pela negação da fragilidade e dos limites
humanos gera um estado doentio de rejeição de uma característica humana: nossa mortalidade e
fragilidade. A negação de nosso estado natural causa uma enorme discussão ética sobre o valor
do humano e da natureza. Em busca de uma vida prolongada, livre da doença e das limitações, o
ser humano coloca em discussão o próprio futuro da humanidade e a artificialização do corpo.
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Os mais recentes desenvolvimentos do progresso (bio)tecnológico


reavivam e atualizam a reflexão sobre o futuro da natureza humana.
diversos autores partilham a convicção de que as biotecnologias
representam um dos maiores desafios da humanidade. Envolvem
questões do âmbito das ciências naturais, da antropologia, da filosofia e
da teologia, do direito e da política, da ética. (COUTINHO, 2007, pg.
151).

Vive-se o tempo da negação da doença e mortalidade e afirmação da saúde perfeita.


Porém, com esta busca o ser humano nega-se a si mesmo, criando uma atitude doentia frente a
doença e a dor. A humanidade criou uma utopia de um sociedade sem dor, sem sofrimento e uma
felicidade ilimitada e saúde perfeita. Moltmann critica o conceito de saúde elaborado pela OMS1,
como sendo apenas a vida sem nenhum sofrimento ou doença. A pessoa humana apenas tem seu
valor enquanto tem saúde perfeita, porque pode assim, ser sujeito de sua vida, trabalhar e
produzir. Com a doença se torna menos pessoa, não podendo consumir, produzir e ter
independência em relação aos outros. O culto moderno pela saúde perfeita produz uma situação
de enfermidade da vida em relação a doença e a nossa mortalidade. O culto de saúde perfeita
tornou-se uma ilusão produzida pela biotecnologia, o sonho da vida sem dor, mas esta justamente
é a grande dor: perceber que ainda o ser humano é frágil. (cf. MOLTMANN, 2007, pg. 81-83).

O culto moderno da saúde produz precisamente aquilo que se quer


ultrapassar, nomeadamente o medo da doença, o receio perante o morrer
e perante a morte. Em vez de ultrapassar as doenças e as enfermidades,
produz uma utopia de um bem-estar universal, da qual são excluídas as
doenças incuráveis, os deficientes e os moribundos. Sempre que o morrer
e a morte não são considerados, qualquer definição de saúde torna-se
ilusória. (MOLTMANN, 2007, pg. 83).

O corpo humano tornou-se problemático, um campo de atuação da biótica que precisa


responder às novas tendências tecnológicas que problematizaram o humano e seus limites. Ocorre
uma interação do humano com a máquina formando um novo ser humano híbrido, numa
harmonia entre o orgânico e o cilício, que chama-se ser úmido, o ciborg. A tecnologia que
atuava fora do corpo passou a intervir dentro do corpo humano alargando suas fronteiras. Numa
fase embrionária, a relação do humano com a técnica era sobreposta.

1
Organização Mundial de Saúde.
7

Um exemplo são as próteses, onde uma parte do corpo é substituída por uma parte
mecânica. De uma forma rudimentar, a prótese permanecia separada do corpo, como um
apêndice. Agora, a prótese faz parte do próprio corpo, interagindo com o sistema nervoso, ligado
aos nervos do corpo e respondendo aos comandos do cérebro. A prótese não apenas preenche um
local, mas se torna o próprio corpo.
A naturalidade humana está sendo posta a prova. O que pensar da lei natural? O que será
do humano? A biotecnologia promoveu uma revolução do pensamento sobre o futuro do humano.
Sem fechar a questão que recém está sendo debatida, busca-se uma visão ética que possa
assegurar a vocação humana de busca de melhores condições de vida, superar a naturalidade que
nos prende a um estado menos humano com os limites e o respeito intrínseco desta mesma
natureza. A tecnologia humaniza e desumaniza, não existem mais fronteiras claras do certo e do
errado; mas cabe encontrar um equilíbrio que possa legitimar a intervenção no corpo humano.
A biotecnologia proporcionou o aumento do potencial humano de preservação da vida,
imortalidade e sanação das doenças do ser humano. Porém, coloca-se em risco o futuro da
humanidade juntamente com a perseguição do corpo perfeito cria-se novas doenças e uma luta
contra o próprio corpo. A natureza tornou-se inimiga a ser vencida pela técnica humana. Em
resumo, a biotecnologia traz sanação e condenação ao corpo. A questão norteadora da pesquisa é
a salvação para o corpo humano. Quem pode salvar o corpo frágil e mortal?
A salvação do corpo frágil não pode passar pela ação humana. Como percebe-se, a ação
tecnológica do ser humano sobre o corpo trouxe benefícios, mas uma serie de dificuldades éticas,
a rejeição do frágil e do imperfeito, a eugênia e uma aniquilação das mediaçoes corporais que são
substituídas pela técnica e pela máquina.

2) A RESSURREIÇÃO DA CARNE: ALTERNATIVA PARA TEMPOS DE PÓS-HUMANO

O pós-humano, mesmo sem ser um conceito elaborado, oferece o questionamento sobre a


superação dos limites do humano e a salvação para a natureza frágil criada por Deus. O ser
humano busca mais humanidade superando com sua própria potencia seus limites, mas gerando
malefícios para sua própria saúde. A ressurreição da carne, é a resposta de Deus para a sanação
do corpo frágil, sem contudo tornar-se uma obsessão pela saúde, sem correr os riscos do
eugenismo e fazer da saúde uma mercadoria que nem todos possuem capacidade de conseguir.
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Com a influência da ressurreição da carne propõe-se uma nova leitura para a tratar dos
avanços da biotecnologia. A intervenção na natureza humana que pode considerar o corpo
descartável, reduzir a vida humana apenas ao desespero pela saúde pode ser transformada numa
relação harmoniosa entre saúde do corpo e aceitação da mortalidade. Uma nova mentalidade deve
surgir a partir da graça de Deus que salva sua primeira criação. A salvação de Deus para o ser
humano deve reconciliar as relações de inimizade que o projeto moderno fez entre humano e
natural.
O Espírito de Deus recria a criação afetada pelo pecado, salva sem rejeita a mortalidade.
Oferece ao ser humano a cura para suas doenças e para toda a limitação humana. “A natureza não
é nenhum mecanismo híbrido, de cuja absurdez somente a inteligência humana pode salvar.
Como criação possui dignidade” (BRAKEMEIER, 2005, pg. 156).
A interferência do pensamento teológico pode produzir uma reflexão ética sobre os
limites do desenvolvimento humano e sobre princípios fundamentais que devem ser respeitados.
Em nome da busca de saúde deve-se rejeitar a manipulação indiscriminada que gera exclusões na
sociedade. A Teologia propõe dar sentido para o agir tecnológico sobre a vida humana. A
intervenção científica pode prolongar a vida, ocasionar uma melhora significativa, mas o sentido
para a vida e para o morrer lhe foge da sua capacidade. A ressurreição oferecida por Deus para o
ser humano retira a fadiga de perfeição humana que se torna ilusória.
A esperança para o corpo frágil não vem apenas do progresso científico. Juntamente com
a vocação humana de superar a pura naturalidade, de não estar entregue ao acaso, a ação de Deus
traz a vida nova para o corpo humano mortal. Ocorre um salto qualitativo de vida para o ser
humano que por si, não consegue conquistar a vida eterna. As fantasias de onipotência são
desfeitas e o ser humano confronta-se com sua necessidade de salvação fora de si, por graça
divina.
Neste sentido, Deus não é compreendido como um opositor do progresso humano. Sua
criação não se reduz a uma realidade que precisa ser manipulada constantemente. Busca-se uma
ação responsabilizada para a biotecnologia. Evita-se com isso, os extremos: a compreensão do ser
humano dominador de seu corpo e de sua natureza que tudo pode modificar sem se preocupar
com as conseqüências para o futuro da humanidade; outro extremo é considerar a natureza
intocável, fixista, onde qualquer manipulação é violação da lei de Deus.
9

A perspectiva cristã engloba uma vida antes da morte e a esperança de uma


vida após a morte. Um simples prolongamento biológico da vida não
trataria por si nenhuma vida qualitativamente melhor, nem a resposta aos
anseios mais profundos do ser humano. Talvez seja mesmo a consciência
de um limite no tempo que torne mais valioso o tempo da vida.
(COUTINHO, 2007, pg. 176).

2.1) O CORPO CRIADO


As perspectivas do pós-humano fizeram um questionamento de todo o humanismo
Ocidental. Portanto, autores como Moltmann se debruçam numa revisão histórica dos caminhos
seguidos pela antropologia. Claramente tem-se dois pensamentos antropológicos basilares para o
formação dos conceitos do humanismo. A visão bíblica e grega de ser humano. Percebe-se que
existe um predomínio grego na formação da antropologia Ocidental que, pode-se dizer possibilita
o pós-humano, de dominação da alma sobre o corpo. Iniciando por Platão, há uma tendência de
espiritualização da pessoa. A separação do corpo e da alma, onde a alma assemelha-se a
divindade, é imortal, mas fica aprisionada num corpo mortal e transitório. A vida é uma luta pela
alma liberta-se da fraqueza do corpo a enfim, viver no mundo ideal. (cf. MOLTMANN, 1993, pg.
253-254).
A perspectiva continua no contexto moderno, com Descartes. Mantém-se o mesmo
esquema de diferenciação do corpo e da alma, entendida como substância superior. O eu pensante
domina o seu corpo, é seu mandatário que o transforma numa extensão do eu. A dicotomia e a
subordinação do corpo pela alma continua, com nova roupagem: ao invés do alma e corpo; é
sujeito-objeto. (cf. MOLTMANN, 1993, pg. 357-360).
A antropologia dualista legitima o atual pensamento moderno de dominação da mente
sobre o corpo. A biotecnologia continua o ideal moderno de uma imortalidade humana da alma
ou do sujeito pensante tratando o corpo como empecilho mortal para essa realização. A primazia
da mente, da técnica condena o corpo a ser mera coisificação e instrumentalização. O corpo
tratado como máquina defeituosa que precisa de reparos e todo instante e mesmo trocas de peças
por próteses. O corpo perde sua dignidade criatural, seu valor intrínseco e torna-se objeto de
manipulação humana.
10

Essa antropologia não corresponde a visão bíblica da criação do ser humano. Na doutrina
da criação, não existe uma dicotomia entre alma e corpo, mas uma relação integrada entre as duas
dimensões. Muito menos uma dominação ou primazia de um em detrimento de outro. A
corporalidade possui um valor igualitário com a alma. O corpo é o fim de toda a criação; é nele
que a pessoa se relaciona com o mundo, é o destino do amor de Deus.

Se ‘corporalidade’ é o fim de todas as obra de Deus, então o corpo humano


não pode ser compreendido nem como uma forma inferior de vida, nem
como meio para alcançar o objetivo e muito menos como algo que deva
ser superado. ‘Corporalidade’ também é, correspondendo às obras de
Deus, o objetivo mais nobre da pessoa e o fim de todas as suas obras.
(MOLTMANN, 1993, pg. 351).

A antropologia bíblica afirma a unidade do corpo e da alma. Na criação a


corporalidade é a finalidade da obra de Deus que não rejeita sua mortalidade , mas dá significado
e sentido. A dignidade da carne criada é exaltada na encarnação do Filho de Deus. A Palavra que
se fez carne, como afirma o Evangelho de São João, é a carne assumida por Deus para que a
partir dela possa redimir toda a criação. Deus não rejeita a mortalidade corpórea, sua fragilidade,
mas a partir dela faz acontecer a redenção da carne.
A própria encarnação já antecipa a salvação para o corpo humano e para toda a
criação. No corpo assumido por Deus, Ele já antecipa a reconciliação e a saúde para o corpo
doente. A salvação para o corpo vai além de toda obra biotecnológica. A encarnação é um sinal
de esperança para o corpo que sofre a sua mortalidade.

Tornando-se carne, o Deus conciliador aceita a carne pecadora, doente e


mortal da pessoa e a cura na sua comunhão. A palavra eterna de Deus se
torna corpo humano, uma criança na manjedoura, um salvador das
pessoas doentes, um corpo humano torturado no Gólgota. Nesta forma
corporal de Cristo é trazida a reconciliação do mundo através de Deus
(Rm 8,3). Em sua encarnação, os corpos explorados, doentes e destruídos
experienciam sua salvação e sua dignidade indestrutível. (MOLTMANN,
1993, pg. 352).

A criação de Deus não isola o corpo da alma, mas implanta seu próprio Espírito
vivificador na carne criada. A força redentora do corpo já começa quando a naturalidade corpórea
não é ameaçada. O corpo não é mais tratado como um inimigo que precisa ser domado pela alma,
11

ou simplesmente um máquina imperfeita que precisa de reparos. O corpo e sua mortalidade são
constituintes fundamentais para a pessoa. A vida humana nestes moldes, não consiste em rejeitar
a carne e elevar a alma para um mundo espiritualizado, mas justamente assumir sua
corporalidade. O ser humano humaniza-se na medida que aceita sua carne, sua corporalidade bem
como a mortalidade e finitude. Assumi-se como corpo.
Outro ponto para a reflexão é sobre a vida eterna. Na dicotomia alma-corpo, a
imortalidade humana é garantida pela imortalidade da alma. Ela teria uma qualidade intrínseca de
ser imortal, semelhante a divindade. Por si, o ser humano é imortal. Esta visão é diferente para a
antropologia bíblica. A imortalidade humana não é intrínseca, mas está fundamentada na relação
com o Criador. A relação de amor do Criador com a criatura garante a vida após a morte. É um
dom recebido, uma graça de Deus e não algo imanente no ser humano. O Espírito criador de
Deus permanece na sua criação. A pessoa não está entregue a si própria com a missão de garantir
a vida para si. Ela é acompanhada pelo Espírito que santifica, cura, sana as misérias humanas. A
nossa mortalidade não causa desespero, mas ganha sentido, salvação pela obra de Deus.

2.2) O CORPO GLORIFICADO


Chega-se ao ápice da salvação oferecida por Deus para o corpo humano. Já na encarnação
percebe-se a insuficiência da técnica humana para a sanação da precariedade corpórea. O ser
humano não é apenas conquista de seus méritos, de sua tecnologia; o ser humano é muito mais
recebimento que produção de si. O corpo é salvo por gratuidade divina. A ação de Deus cura a
carne desumanizada, fraca e mortal. Com a ressurreição da carne, o corpo criado é salvo e liberto
da mortalidade.
Por isso, a ressurreição da carne não se trata de uma esperança para um mundo futuro e
espiritualizado. A ressurreição é uma esperança corpórea, uma esperança para a carne humana. A
salvação oferecida pela graça de Deus já começa a acontecer no tempo presente. O corpo foi
criado não para o fim na morte, mas para transformar-se através dela num corpo glorificado por
Deus. O corpo não é destruído, não é rejeitado, mas salvo e transformado.
O corpo ressuscitado de Jesus leva esperança para toda a criação. Sua ressurreição foi
corpórea, integra no seu corpo mortal transfigurado num corpo imortal donde leva para junto do
reino de Deus toda a natureza criada. No seu Espírito, é salvo todo corpo humilhado pelo
pecado, torturado, doente e desprezado. Todas as injustiças contra o corpo são saradas pelo
12

ressuscitamento de Jesus. Sua carne glorificada não conhece mais a corrupção, a morte, as
limitações naturais bem como não é rejeitada a sua fraqueza. É uma salvação total e corpórea a
partir do corpo mortal.
O fundamento para a ressurreição da carne se encontra na ressurreição da carne de Cristo.
A sua ressurreição abre a criação para a nova criação de Deus que não destrói, mas transfigura a
criação mortal numa nova criação sem sofrimento, sem dor e sem o império da morte. O corpo
perfeito, desejado pelo ser humano, não é uma conquista biotecnológica, mas uma ação salvífica
de Deus. A vida perfeita sem dor e morte é recebida na força do Espírito vivificador de Deus.
Nas disputas entre filosofia grega e a fé bíblica afastam-se no tocante a vida após a morte.
A visão grega-dualista- percebe a alma imortal que vive independente do corpo. Para a visão
bíblica, a imortalidade não é algo próprio da alma humana, mas ação salvadora de Deus que faz a
pessoa na sua integralidade ressuscite num corpo glorioso. A concepção bíblica de imortalidade
não é fruto de um poder inerente à pessoa. A imortalidade é um dom da relação com o criador,
que ressuscita o ser humano por completo. A ressurreição dos mortos é a ressurreição do ser
humano total.
A ressurreição da carne como dom para a salvação da corporalidade. O corpo será salvo
pela ação de Deus, com seu espírito transfigura a nova criação. A corporalidade será sanada pela
ação de Deus e não pela obsessão biotecnológica que no afã de superar toda fraqueza acaba
desumanizando o corpo.
A alternativa antropológica da ressurreição da carne promove uma atitude saudável em
relação a doença, aceitação da fragilidade e contribuição para o pensamento bioético. O Espírito
que ressuscita os mortos é o espírito que transfigura a nova corporalidade dos ressuscitados. A
nova criação inclui o cosmos e o ser humano, pois nenhum dos dois pode ser visto isoladamente.
O ser humano está relacionado com este mundo; é este mundo que Cristo é o redentor. A
humanidade gloriosa, pela força do Espírito que ressuscitou Jesus dentre os mortos, inclui a
matéria, a biologia e toda a relação com este mundo que será transfigurado num mundo sem o
domínio da morte.
O Espírito Santo que ressuscitou o corpo de Jesus ressuscitará a carne humana. “A
ressurreição transformará o corpo e vai lhe sanar as deficiências” (BRAKEMEIER, 2005, pg.
139). Se a busca de perfeição corpórea da biotecnologia acaba como conseqüência a degradação
do corpo, processos de eugenismo, riscos para sobrevivência do humano; a ressurreição como
13

dom de Deus para o corpo, possibilita uma atitude sadia diante da fragilidade do corpo. A carne
glorificada de Cristo é salvação para a carne do gênero humano, não excluindo, selecionando ou
desprezando o corpo.
A teologia da ressurreição da carne questiona a pretensão tecnológica de oferecer salvação
ao humano. A verdadeira salvação e o sentido para a fragilidade não se encontram na técnica,
mas na ação salvadora de Deus que aceita nossa fragilidade e a leva a perfeição pela sua graça. A
salvação pela ação de Deus inclui toda a humanidade e toda fragilidade. O que pela intenção da
tecnologia acaba excluindo e eliminado o frágil.
No entanto a recriação escatológica desta criação deve pressupor toda
essa criação. Pois no fim, o velho não é substituído por algo novo, mas
este velho será criado novo. A transformação para a glória ocorre no dia
do Senhor diacronicamente com toda criação real desde o primeiro dia até
o último dia. Ela não é algo que acontece depois deste mundo, mas algo
que acontece com este mundo. (MOLTMANN, 1993, pg. 351).

Com o tempo da ressurreição da carne, pretende-se elaborar uma antropologia alternativa


para o corpo mecanizado e manipulado pela intervenção humana. Uma antropologia cristã não
admite dualismos de alma e corpo, onde segundo Moltmann, o Ocidente se caracterizou pela
dominação e desprezo do corpo pela alma. A antropologia cristã proporciona uma integração do
humano com a sua natureza e com todo o gênero humano e com o cosmos. A natureza não é
inimiga a ser superada, corpo danificado, mas destinatário da ressurreição de Jesus.
O tema é importante pela urgência de resposta frente ao avanço da tecnologia, da
manipulação do corpo e suas implicações éticas e religiosas. Pode-se superar o limite humano e a
dependência de Deus? Que implicações isso traz para a Teologia? O desenvolvimento da
biotecnologia provoca um dos grandes debates éticos para a humanidade. Ela estaria diante de
uma evolução que resultaria na extinção do humano. A busca de saúde perfeita a todo custo, os
limites do humano estão no debate dos pensadores éticos, políticos, filosóficos, científicos e
religiosos. O tema propõe um auxílio para atitudes saudáveis diante da mortalidade do corpo.

CONCLUSÃO
O tema do pós-humano ainda está apenas no começo da reflexão. A pergunta crucial
sobre o futuro do humano e se a tecnologia humaniza ou desumaniza não possui uma conclusão.
O que se percebe é que a questão da biotecnologia está em aberto com suas vantagens e uma série
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de desafios éticos, políticos que precisam ser resolvidos. O certo é que a teologia possui um papel
importante neste processo. Mesmo com a recusa de uma ética com base metafísica, a própria
bioética busca a interdisciplinariedade na sua reflexão. A tecnologia precisa avaliar não somente
o humano biológico, mas o humano em todas as suas dimensões. Busca-se com a luz da teologia
uma biotecnologia responsável pela real humanização, preocupada com o futuro das gerações que
correm o risco de receber um planeta em condições inabitáveis.
A ressurreição da carne propõe uma forma de vida para o ser humano. Auxilia na relação
do com o corpo frágil criado por Deus. A obsessão pelo corpo perfeito seja nas academias, mesas
cirúrgicas, pela manutenção da vida a todo custo revelam uma dificuldade de conviver com a
mortalidade humana. O corpo, deixando de ser inimigo a ser superado, pode fazer com que o ser
humano tenha uma atitude mais saudável diante de suas limitações.
A proposta não significa abandonar as pesquisas biotecnológicas, mas de colocar limites e
orientações para esse desenvolvimento. Atualmente, parece que existe um discurso cientifico
onipotente que não aceita dialogar com outras ciências. O progresso cientifico já produziu armas
nucleares e está colocando em risco a sobrevivência do planeta; são motivos para um repensar na
relação humano e ciência.
Pela ressurreição oferecida por Deus para o gênero humano alcança-se esperança para o
corpo humano. A medicina oferece tratamento e qualidade de vida, mas a graça de Deus é que
dará salvação completa ao ser humano. Ciência e teologia buscam a saúde do corpo humano, mas
somente na glorificação do corpo alcança-se a salvação da vida eterna.

REFERÊNCIA

BRAKEMEIER, Gottfried. O ser humano em busca de identidade: contribuições para uma


antropologia teológica. 2 ed. São Lepoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2005.

COUTINHO, Vitor. Artificialização da natureza humana? Biotecnologias à busca de sentido.


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LECOURT. Dominique. Humano pós-humano: a técnica e a vida. São Paulo: Loyola, 2005.

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Humanitas Unisinos, nº 200, dez. 2006.
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MOLTMANN, Jürgen. O que é a vida humana? Antropologia e desenvolvimento biomédico.


Humanística e teologia, Porto, tomo XXVIII, fascículo 1, dez. 2007, p.66- 87.

______. O caminho de Jesus Cristo: cristologia em dimensões messiânicas. 2 ed. Petrópolis:


Vozes, 1993.

______. Deus na criação: doutrina ecológica da criação. Petrópolis: Vozes, 1993.

PULCINI, Elena. Um poder sem controles. In: Revista Humanitas Unisinos, nº 200, Dez.2006.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias á cibercultura. 3 ed.
São Paulo: Paulus, 2008.

______. Linguagens liquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.

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