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Serge Cottet - Uma Razão para Não Interpretar A Transferência

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UMA RAZÃO PARA NÃO INTERPRETAR A TRANSFERÊNCIA

Serge Cottet
Publicado originalmente em: Estudos Clínicos. Salvador:
Fator, 1988, p. 95-100.

O fragmento do caso de que vou falar manifesta uma dificuldade própria do manejo
da transferência. Também a necessidade de distinguir duas coisas, que foram o
tema deste ano na Seção Clínica: o fenômeno da transferência e a estrutura.
Convém, por certo, situar a transferência em relação com a interpretação.
Poderíamos seguir aqui a indicação clássica de não interpretar a transferência e, em
geral, de não interpretar o setting. No Seminário sobre os Escritos técnicos de
Freud, Lacan considera que sua razão essencial reside na existência da ordem
simbólica como tal: o analista deverá evitar situar-se na interlocução,
intersubjetividade, cujo efeito é apagar o equívoco significante, único que o
mantém no lugar do Outro.
Há outro aspecto do problema a considerar: a interpretação tem como finalidade
fazer vacilar a significação, dissipar a espessa névoa da certeza, que por sua vez,
está forçosamente comovida, pela intrusão dos signos que deixam um lugar ao
sem-sentido do desejo.
Se então tomamos a definição da transferência como “amor que se dirige ao
saber”, querer interpretá-la será em vão, na medida em que, o que não tem
sentido não se interpreta. Poderia aplicar-se talvez ao amor de transferência uma
das últimas formulações de Lacan a respeito do amor: está vazio e, como afirma
em um de seus últimos Seminários, em oposição ao desejo que tem um sentido,
“só é uma significação” (1). “Sem objeto”, o amor não se presta à interpretação.

Um caso
O destino que conheceu a senhorita C em sua análise é singular. Depois de dois
anos de tratamento e a partir do aparecimento de uma paixão secreta por um de
seus superiores hierárquicos, se produz uma virada. Começam a vacilar por sua
vez, nela as capacidades que requerem o trabalho analítico: já não tem nada a
dizer. Se usarmos uma linguagem antiga poderíamos dizer que este enamoramento
está posto a serviço da resistência.
A idéia que se impõe, por outra parte, é a de uma estreita dependência entre o
detrimento do trabalho analítico e seu novo centro de interesse: um deslocamento
do acento, com todos os traços de uma “transferência lateral”, entendida como
laços transferenciais extra-analíticos, em relação a uma transferência localizada em
seu lugar natural, o consultório do analista.
Parece, em efeito, que a pessoa que sucessivamente sustenta a função do Outro do
saber, não está em uma posição inocente em relação à análise: inclusive
poderíamos sustentar que o início de sua paixão e a modificação subjetiva que
resulta, se produziram a partir de uma apreciação feita por ele, um médico, sobre a
psicanálise, do tipo: “Isto não serve para nada”.
Desde então, a paciente manifesta a “incompatibilidade” que existe entre essas
duas autoridades, cuja capacidade está fora de dúvida, a minha pelos livros que me
rodeiam, a de seu médico pela experiência e a eficácia na prática, que ela lhe
atribui.
Porém, mais que uma escolha difícil entre dois mestres, o que seria um acaso de
consciência, é sobretudo o ponto de partida de uma mudança de discurso: a
exaltação do seu trabalho, do qual os estados de ânimo estão excluídos, substitui
gloriosa e oportunamente o silêncio correlativo de suas fantasias, de seus sonhos,
que até então trazia não sem audácia e comentava com fervor.
2

A mudança de tom na análise e a virada do eixo da transferência levantam as


seguintes perguntas: trata-se de algo fora da transferência? De um acting-out, ou
da própria transferência afetada por um desdobramento, por uma divisão do
significante do psicanalista?
A partir das manifestações fenomênicas da transferência poderíamos ver, na
mutação subjetiva de nossa paciente, uma mudança de discurso, um acting-out no
sentido que lhe dava por exemplo Melanie Klein em 1951, a propósito do splitting
do analista: o acting-out como resultado da própria transferência, longe de ser sua
negação, é o não interpretável da transferência. Em M. Klein se vê muito bem como
a transferência suscita a angústia porque o analista está em lugar do objeto e, por
conseguinte, como todo objeto, se presta à clivagem entre o bom e o mau.
M. Klein podia assim fundamentar a consideração da transferência como submetida
a esta dialética de maneira tal que a vida amorosa estivesse também sob seu
signo.
Que a transferência considerada em seu aspecto fenomênico e sob sua faceta
amor-ódio seja essencialmente lateral, é também o que afirmava Lacan em 1960:
“O efeito amor-ódio, na situação analítica, se encontra fora”(2).
Esta terminologia, anterior à construção do psicanalista como objeto a, se pode não
obstante deduzir da função de causa do desejo. Já não é necessário perguntar-se
qual é o lugar da transferência, se intra ou extra-analítico, não bem admitimos que
o campo do desejo sofre uma reacomodação a partir da suposição do saber: a/S2
A intrusão de um significante novo no campo do amor, modifica a relação com o
companheiro sexual, perturba o campo do desejo, sem que haja necessidade de
falar de deslocamento ou de deslocalização.
O interessante em nosso caso é que o objeto de enamoramento de nossa paciente
aparece na cena do saber, de uma maneira que põe reparos à continuação da
análise: é estimada, pelo homem que nada quer saber do desejo, ou do destino que
o inconsciente lhe impõe, ou seja, uma encarnação do “eu não quero saber nada”:
o recalque em pessoa, adepto da extensão do recalque a seus colaboradores mais
próximos.
Qual será então o significante da transferência, se estamos de acordo que sua
reticência em continuar a análise e sua paixão repentina por esse desiludido são
uma mesma coisa, a mesma mensagem dirigida ao Outro em forma invertida?
O significante que produz esta divisão e que exerce sua eficácia segundo as duas
faces da transferência, concerne ao pai da paciente. É claro que a virada que se
produziu em sua vida amorosa tem aspectos em consonância com a apreciação
muito negativa que tem de seu pai, como responsável pelo fracasso do matrimônio
deste.
A mãe, livre de toda responsabilidade, passa a ser com muito gosto sua confidente,
enquanto o pai é questionado: tem descuidado da mãe, afastado do lar por suas
numerosas amantes. Dois traços definem a significação paterna: a infidelidade e a
exigência de que a filha seja uma intelectual, que leia em vez de divertir-se.
Nossa paciente, que hoje se preocupa em ler o menos possível, tampouco se
diverte demasiado, e depois de ter deixado de lado numerosos amantes, se vincula
profundamente no transcurso da análise a um colega que não gosta de divertir-se,
nem tampouco gozar dela; o vê pouco e, neste contexto, encontra o personagem
que sustenta a função do ideal de Eu: um “pai” particularmente atento às crianças,
porém precisamente às dos outros, como médico especialista.
Ela também o descreve como sedutor e agressivo com as mulheres: desiludido da
mascarada feminina assim como da psicanálise, este homem hipermoral, e por
outro lado inacessível, termina por convencer a paciente de sua incapacidade em
relação à fantasia. Ela sai desta situação com a emergência de um sintoma: posso
ser uma mãe? E decide renunciar aos homens que não valham como este. Mas de
3

que saber pode ser o significante qualquer, este médico? Não poderia ser o seu
próprio inconsciente que “não pensa”? Fechamento do inconsciente no sentido
experimental do termo, ela haveria transferido a seu médico – o mais obtuso dos
homens em relação com a psicanálise seu “não penso” a/S2, segundo Telévision(3).
Esta fórmula nos é necessária para distinguir o objeto da transferência, segundo a
fórmula de Lacan nos Escritos, e o significante da transferência.
Se nos referirmos a “Proposição de 9 de outubro”, que sublinhe a equivalência do
grafo e do agalma, não pode resultar surpreendente nossa interpretação que faz
equivaler o “não quero saber nada de psicanálise”, ou seja, não saber nada da
verdade, com os encantos do novo cúmplice de C.
Recordo assim que o efeito Sócrates, analisado por Lacan a partir de O Banquete,
formula uma correlação entre o suposto saber sobre o desejo e a inacessibilidade
de Sócrates como desejante. Porém esta dialética contém um terceiro elemento,
um “nada”. Sócrates disse que não sabe nada, salvo isso. Ao reter este nada
engendra a significação de saber, não dando mostras de seu desejo ao não
encarná-lo.
Assim comprometida no caminho do sacrifício, C se esmera em sustentar
eficazmente a tarefa de seu novo mentor e renuncia ao dever do bem dizer por este
outro dever.
Seu “não sei” e a renúncia a seus ex-amantes são correlativos. Já não tem fantasia,
disse: tem só um desejo: pelas crianças incapacitadas.
Fica assim no interior do país, longe do analista, trabalhando como criada destas
crianças enfermas, a serviço do desejo de um chefe que conjuga a vaidade do
significante com a beneficência, com o “serviço dos bens”.
É claro que a apreciação de seu chefe acerca da psicanálise coincide com certa
exaltação de sua própria tarefa profissional, em particular, esta presença junto às
crianças incapacitadas.
Afirmo que a criança enferma é o pivô do eixo do desejo, o objeto em causa no
desejo da paciente. O médico entra no campo do amor só em função de produzir
uma significação construída sobre um vazio, um vazio completo que corresponde ao
lugar do gozo em seu desejo de um filho dele, sobre o qual ela não saberá nunca
nada.
Efeito Sócrates, porém ao inverso, o médico entra na cena do trabalho como quem
não quer saber nada do desejo do Outro, e quer saber tudo sobre as necessidades
da criança.
Nem por isso deixa de produzir um efeito de transferência como efeito de
significação, fechado a todo gozo.
A “transferência lateral” só sublima aqui uma dimensão do amor como puro efeito
do discurso: o ex-sexo que o caracteriza, proíbe ver nele um fragmento de sua
fantasia.
Nestas condições, o que seria a interpretação da transferência? Caso se afirme que
a interpretação deve referir-se à causa do desejo, mais que à causa da
transferência, parece claro nesse exemplo que um assinalamento acerca da infância
de C e seu modo de acesso ao objeto fálico estaria melhor orientado.
O pseudo objeto do amor, o médico, não cumpre pelo contrário nenhuma destas
condições: encarnação da ausência do objeto fálico, tanto por ser aquele que lhe
priva deste objeto, como pela castração, que revela como Outro do dever, não
chama de maneira nenhuma à interpretação.

Notas:
1. Jacques Lacan. “Vers um signifiant, Nouveau”. Ornicar? 17/18. Navarin éditeur,
Paris, p.11.
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2. Jacques Lacan. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente


freudiano”. In: Escritos. Perspectiva, SP, 1978, p. 309.
3. Jacques Lacan. Telévision. Seuil, Paris, 1974, p. 10.

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