I
Com grandes olheiras de quem não tem uma boa noite de sono há dias, Enzo, o garoto de
cabelos azuis e roupas pretas, chamava a atenção por onde passava.
Transferido para uma escola no meio do ano, ele tinha um semblante chateado e
melancólico, que reforçava o desejo dele de estar em qualquer lugar menos ali.
— Licença, onde fica a sala da turma 1004?
— Ultima porta a direita — diz a faxineira de mau humor e com cara de que não queria
estar ali.
Ao entrar na sala indicada, ele se depara com uma sapa velha vestindo um terninho de
brechó, sapatilhas rosas e um cabelo loiro oxigenado.
— Boa noite — ela diz sorridente ao ver Enzo entrar na sala. — Sou a professora Sônia de
matemática.
— Boa noite — Enzo responde no tom melancólico de sempre.
No fundo da sala, Enzo abre o livro Harry Potter e as relíquias da morte é simplesmente
ignora a presença da professora e dos outros alunos que iam chegando, até que um grupo
de garotos desperta sua curiosidade, já que se vestiam exatamente como ele.
Durante a tediosa aula, Enzo leu cada palavra do livro com atenção e vez ou outra espiava
o trio de garotos do outro lado da sala, Enzo nunca tinha visto ninguém igual a eles.
Ninguém igual a ele, não era todo dia que criaturas tão exóticas se cruzavam.
Voltando do mercadinho com uma garrafa de vinho vagabundo e um maço de cigarros
pretos, ele ouve o sinal que anunciava o final do recreio tocar e subiu junto dos alunos, mas
não entrou na sala como eles. Ignorando a placa que dizia "Interditado", ele entra no
banheiro. Ele preferia ficar sentado ali do que assistir outra aula da professora Sônia, e
assim os capítulos do livro foram sendo lidos, a garrafa de vinho foi se esvaziando e o
tempo foi passando.
Seguindo o que parecia um bando de loucos que estavam fugindo do hospício, ele
finalmente sai da escola. A lua estava cheia e brilhante. Enzo acende um cigarro preto e o
deixa pendurado nos lábios frouxos, enevoando o brinco de cruz na orelha esquerda e
deixando um rastro com aroma de nicotina e cravos-da-Índia a se dissolver no céu fosco,
ebulindo a têmpora dos que se incomodavam com o sacrilégio ambulante.
— Ei, pode me emprestar o isqueiro? — o menino com blusa do Nirvana cutucou o ombro
dele. — Claro.
Enzo puxa um isqueiro preto do bolso e entrega ao garoto, que acende um cigarro de filtro
laranja comum e de marca desconhecida. Devolvendo o isqueiro e corre para compartilhar o
cigarro com os amigos, Enzo seguiu seu caminho com seus fones de ouvido, suas roupas
pretas o faziam se misturar nas sombras da noite.
II
Após oito minutos andando, o herege era o único erro da natureza na perspectiva
evangélica da maioria das pessoas a sua volta, e para Enzo os símios não passavam de
abortos carientos. Acendendo o segundo cigarro do maço, ele segue com seu All Star
marchando para casa.
Ao abrir o portão de ferro verde descascado, ele grita palavrões impavidamente ao ver o
corpo de seu padrasto alcoólatra caído no chão, Enzo ignora o corpo no chão e continua
seu ingresso para seu quarto. Não era a primeira vez que ele encontrava o símio caído no
chão, desacordado devido às altas quantidades de álcool no sangue, era quase um ritual do
bêbado sair, encher a cara e voltar para casa, isso quando ele não desmaiava pelo caminho
de volta e voltava no dia seguinte.
Enquanto as paredes da sala se mantinham em um tom de branco gelo, as do quarto de
Enzo eram pretas e sem espaços vazios. Na parede da porta havia quatro prateleiras pretas
cheias de livros de magia e ocultismo, do acervo particular acumulado nos últimos três anos
de estudos sérios. Logo abaixo, posters de bandas como Nirvana, Pearl Jam, Ramones,
Salem, Witching Hour e The Black Angels estavam colados na parede em cima da mesa do
notebook, a cama de lençóis pretos e vermelhos serviria sem sombra de dúvidas para a
concepção do anticristo, em cima dela um filtro dos sonhos com penas penduradas feito por
ele.
A água do planeta que se fodesse, Enzo merecia uma eternidade debaixo da ducha
fervente; e talvez o Diabo merecesse se refrescar também.