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Campos - Introdução - Cartas A Lucílio B

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CARTAS A LUCÍLIO

Lúcio Aneu Séneca

Tradução, Prefácio e Notas de


J. A. SEGURADO E CAMPOS

2.ª edição

. PUCRS/BCE

11111111111111111 11111
0.784.409-6
SERVIÇO DE EDUCAÇÃO EBOLSAS
·FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
PRESERVE SUA FONTE
DE CONHECIMENTO

0 @)
Tradução
do original latino intitulado
L. ANNAEI SENECAE AD LUCILIUM EPISTULAE MORALES
segundo o texto da Oxford University Press, 1965
INTRODUÇÃO
-·1
u~ A '~-
·'.i j n i\
Qôlô){~Co;,.--·]..---·\·
As Cartas a Lucílio - Epistulae morales ad Lucilium
são geralmente consideradas a obra mais importante
:,.~ ..
de quantas subsistem da autoria de Lúcio Aneu Séneca.
Tal importância deriva de circunstâncias várias: o facto
de se situarem cronologicamente entre as produções da
última fase da vida do autor e reflectirem, portanto, a
forma mais amadurecida do seu pensamento; o facto de
essa fase da vida de Séneca (que iria culminar no suicídio)
se ter revestido de formas especialmente dramáticas que
encontram eco, mais ou menos explícito, no texto; o facto
de, pela sua pr6pria amplitude, ,. conterem uma soma de
reflexões sobre enorme variedade de problemas, na sua
totalidade de carácter ético; o facto de tais reflexões, con-
quanto assentes num quadro te6rico perfeitamente delimi-
tado e coerente, se revestirem de um carácter extremamente
prático, isto é, de constituirem uma análise de situações
concretas e de apreciações de grande agudeza sobre a natu-
reza e o comportamento humanos; o facto de o quadro
Reservados todos os direitos de acordo com a lei epistolar escolhido pelo autor para a sua exposição (quer
se pense, como estamos em crer, que as Cartas represen-
Edição da tam uma correspondência efectiva mantida por Séneca
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Av. de Berna - Lisboa
com o seu destinatário, quer, como alguns entendem, que
2004 apenas resultam de uma mera ficção literária) se prestar

V
à inclusão de numerosos elementos informativos sobre a célebre cidade arrasada pela erupção do Vesúvio no ano
múltiplos aspectos da vida e da civilização romanas; o 79 da nossa era. Em dois passos das Epistulae Séneca
facto, enfim, de a natureza dos problemas que suscitam .e refere a sua passagem pela cidade, e em ambos os casos
discutem se revestir de uma pertinência transcendente à escreve: a tua querida cidade de Pompeias. O argumento
época em que foram redigidas e oferecer uma viva fonte não é imperioso, mas é altamente plausível que o filósofo use
de meditação para quem pretenda questionar-se sobre os tal expressão por Pompeias ser a terra natal de Lucílio, ou,
valores da sociedade em que se insere. pelo menos, por este lhe estar associado por algum motivo
Foi, aliás, este último aspecto aquele que acima de muito particu/,ar.
tudo nos determinou a empreender a tradução das Car- Não é conhecida a data do seu nascimento, que, no
tas: a persuasão de que a leitura de Séneca pode ser nos entanto, não havia de andar muito longe da de Séneca.
dias de hoje de uma utilidade prática evidente como pre- Em 26,7 Séneca dirige-se ao amigo dizendo-lhe: tu és
cioso auxiliar no entendimento da natureza humana e mais novo do que eu, mas em 35,2 diz que as idades de
na determinação dos valores da existência. Por esta razão ambos não distavam muito uma da outra.
a Introdução que vai seguir-se não constitui de forma Socialmente Lucílio pertencia à chsse dos cavaleiros
alguma um estudo da filosofia estóica em geral, nem do (equites), não por nascimento, mas certamente porque as
pensamento de Séneca em particular: existem publicadas suas actividades, o zelo posto nas missões confiadas, as ami-
excelentes obras num e noutro âmbito para as quais, na zades de algum aristocrata (o próprio Séneca?) levaram o
bibliografia, remeteremos o leitor interessado. Trata-se imperador a distingui-lo com a sua promoção a eques.
tão só de uma chamada de atenção para alguns pontos Pelo menos é o que pode deduzir-se de um passo em que
que nos parece de importância conhecer previamente Séneca diz que foi a indústria de Lucílio que lhe conseguiu
antes de iniciar a leitura das Cartas. Por isso mesmo evitá- a nomeação para a classe equestre.
mos aqui todo o aparato erudito: informações biográficas, O certo é que Lucílio, graças ao seu talento e diligên-
apoio bibliográfico, referências textuais, considerações filo- cia, conseguiu tornar-se uma personagem de certo desta-
sóficas. Toda essa matéria surgirá, quando tal for perti- que na sociedade romana, para o que de alguma forma
nente, nas notas que acompanham a tradução. A nossa teria contribuído a sua actividade literária, como adiante
Introdução, em suma, para mantermos o quadro sene- veremos. As esperanças de Lucílio poder continuar a fazer
quiano do texto, será apenas uma "Carta ao Leitor das carreira não seriam exíguas, como certamente não o seriam
Cartas a Lucílio".' as probabilidades de o conseguir. Tanto assim é que, quando
O destinatário das Epistulae deve a sua imortalidade Séneca, num momento decisivo da sua vida - quando o
à amizade que o uniu a Séneca, a quem se deve prati- filósofo se entrega ao otium, à contemplação filosófica, à
camente tudo o que sabemos sobre ele. produção literária - o aconselha energicamente a não se
Aparentemente, Lucílio, de seu nome completo Gaio deixar enredar nas malhas dos compromissos sociais e
Lucílio Júnior, era natural de Pompeias, na Campânia, políticos e, pelo contrário, o exorta a seguir o seu exemplo

VI VII
e a dedicar-se a tempo inteiro à filosofia, Lucílio opõe potencialidades latentes. Esse guia era mesmo tanto mais
resistência, uma resistência tenaz que Séneca combate com necessário quanto Lucílio, ao que parece, iniciara a prepa-
não menor tenacidade numa luta que, aliás, acabaria por ração filosófica pela via do epicurismo. Ora é bem conhe-
vencer. cido como as duas correntes filosóficas - epicurismo e
No período em que se situa a correspondência entre estoicismo - são a perfeita antítese uma da outra,
Séneca e Lucílio encontrava-se este a desempenhar o cargo opondo-se como o positivo e o negativo de um mesmo
de procurator imperial na Sicília, cargo que podemos supor retrato. Todavia tal como se verifica no exemplo sugerido,
ter sido o culminar da carreira, uma vez que as últimas se muitas são as diferenças, muitas são igualmente as
cartas de Séneca dão a entender que Lucílio decidira semelhanças entre as duas posições: consequentemente
finalmente seguir os conselhos do seu mestre e amigo e Séneca, numa prática corrente entre os estóicos, utiliza nas
entrar também ele na vida do otium. Do resto da vida de suas primeiras cartas todo um arsenal de máximas e refle-
Lucílio nada mais se sabe; ignora-se igualmente a data da xões extraídos da obra de Epicuro, que, naturalmente, inter-
sua morte, embora seja plausível pensar que de alguma preta depois em sentido estóico, e assim, gradualmente,
forma ele possa ter sido envolvido na mesma desgraça em vai aproximando Lucílio das posições características da
que Séneca incorreu. Escola.
Para além destes pormenores de carácter biográfico, A par de notáveis qualidades morais, não era Lucílio
devemos também a Séneca um entusiástico elogio das vir- destituído de qualidades intelectuais apreciáveis. Ao inte-
tudes morais demonstradas por Lucílio numa fase histórica resse pela formação filosófica juntava ele a inclinação para
(os principados de Calígula e de Claúdio, as intrigas que a literatura, que praticava com méritos, parece, assinalá-
grassavam na corte deste último, sobretudo nos tempos de veis. A sua obra pereceu quase por inteiro, apenas dele
Messalina, etc.) altamente propícia a todas as formas de cor- restando como certo alguns vérsos isolados citados por
rupção e baixeza moral. Aliás, só assim se explica que Séneca em termos elogiosos. Para além destes fragmentos
Séneca tenha tomado a decisão de encarregar-se da direc- indubitáveis, há quem lhe tenha querido atribuir algumas
ção espiritual de Lucílio. Séneca era altamente exigente na obras subsistentes, no todo ou em parte, e cuja autoria
escolha dos seus discípulos, só aceitando encarregàr-se da permanece desconhecida. É o caso do conhecido poema
orientação moral de alguém em quem reconhecesse por Aetna. Sabemos por Séneca (79,5) que Lucílio escreveu (ou
indícios seguros uma vocação filosófica inata. Lucílio pos- estava escrevendo quando Séneca lhe dirigiu esta carta)
suia, a julgar pelo que nos diz Séneca, essa vocação, possuía um poema sobre o vulcão da Sicília, mas nada indica que
um carácter firme e corajoso, insensível à bajulação, não o poema de Lucílio e o Aetna conservado sejam um e o
se deixando impressionar pelos perigos da "polícia polí- mesmo texto. Aliás, no mesmo passo da carta 79 Séneca
tica" dos príncipes, em suma tinha uma tendência natural menciona o facto de o tema de Etna já ter tentado a
para a prática da uirtus, apenas carecendo de um guia musa de três escritores da envergadura de Vergílio, Ovídio
firme e capaz que desenvolvesse e trouxesse à superfície as e Cornélia Severo, e fá-lo para sublinhar o mérito de

VIII IX
Lucílio em ir tratar por sua vez um tema já desenvolvido As cartas a Lucílio não foram as únicas que Séneca
por aqueles poetas. De resto, Lucílio parece que pretende- escreveu e publicou. Diversas fontes, entre elas o próprio
ria estudar o Etna de um ponto de vista cientifico, na Séneca, dão -nos conta de muitas outras cartas dirigidas a
sequência de interesses por temas de ordem física bem outros destinatários. Todas elas se perderam. Em contra-
atestados pelo facto de Séneca lhe dedicar a sua obra partida conserva-se uma colecção de cartas pretensamente
"Questões Naturais" (Naturales Quaestiones). trocadas entre Séneca e S. Paulo, decerto devida ao facto
Também tem havido quem pretenda pôr no crédito de Séneca ser bastas vezes citado com apreço por diversos
de Lucílio, como escritor, outras obras: um fragmento épico Padres da Igreja, que no filósofo viam um justificado pre-
centrado sobre a batalha de Áctio, que modernamente se cursor das doutrinas cristãs.
costuma atribuir a um poeta amigo de Ovídio, Gaio Rabírio; Se é certo que as cartas datam da última fase da vida de
e não faltou quem quisesse ver nele o autor da pretexta Séneca, o conhecimento com Lucílio já vinha sem dúvida
Octailia. Naturalmente que estas tentativas de avolumar a de longe, e de longe vinha também a intenção de Séneca
obra conservada de Lucílio não têm qualquer fundamento converter o amigo à doutrina estóica. Podemos supor que
sólido. Por isso será mais prudente limitarmo-nos a acei- o ensino ministrado a Lucílio se processou durante algum
tar como produção seguramente luciliana apenas os ·versos tempo apenas por via oral. Mas Lucílio, na prossecução da
que dele cita Séneca, a pessoa decerto mais abalizada para sua carreira pública veio a ser destacado para a Sicília, e a
conhecer a totalidade da sua obra. partir desse momento a direcção espiritual só poderia con-
As Epistulae morales ad Lucilium não devem ser con- tinuar por meio da escrita. O afastamento físico dos dois
sideradas como uma obra exclusivamente filosófica, uma amigos foi assim a motivação imediata para a produção
das cartas.
correspondência fictícia dirigida a um destinatário fictício
Que as Epistulae são uma correspondência inequí-
apenas para fugir à técnica da exposição teórica, em suma,
voca e não uma mera forma literária pode ser compro-
um artifício meramente literário. É certo que a forma lite-
vado por uma inúmera série de pormenores, de que apenas
rária da epístola teórica (filosófica ou não) tinha preceden- daremos uma diminuta exemplificação. Abundam nelas
tes na literatura antiga, e quanto ao que fosse uma cor- notações concretas, tais como as frequentes fórmulas com
respondência real entre amigos e familiares, centrada sobre que Séneca acusa a recepção das cartas de Lucílio ou
a troca de informações pontuais podemos ter uma ideia se refere ao prazer que experimenta ao lê-las; não menos
pela leitura da carta VII de Platão ou pelos vários volu- vezes também alude à insistência de Lucílio em que a
mes da correspondência de Cícero. As cartas de Séneca troca de epístolas seja mais frequente; numa outra carta
situam-se, digamos, a meio caminho entre o primeiro e o Séneca limita-se a dizer que recebeu uma obra escrita por
segundo dos tipos de cartas referidos: são uma correspon- Lucílio e que reserva para outra oportunidade pronun-
dência real entre dois amigos em que, na quase totalidade ciar-se sobre os seus méritos; noutra, nega-se a escrever
dos casos, são desenvolvidos por Séneca diversos proble- cartas simplesmente circunstanciais, como fazem muitos
mas de índole filosófica. que se limitam cerimoniosamente a falar do tempo.

X XI
Destarte é perfeitamente natural que as cartas conte- objectivo: converter o amigo às teses estóicas, levá-lo gra-
nham referências a numerosos casos da vida pessoal de dualmente a dominar os princípios teóricos da Escola e a
dois amigos ou alusão a pormenores da vida quotidiana da ser capaz de os aplicar na vida prática, sobretudo a libertar-
·Roma coeva. Exemplos do primeiro ponto temo-los, por -se dos condicionalismos de ordem social e política, a adqui-
exemplo, nas cartas em que Séneca fala a Lucílio de rir a uirtus e a aproximar-se tanto quanto possível do
algum amigo comum com quem se encontrou, da morte ideal do sábio. Por outras palavras, as cartas a Lucílio são
de um outro amigo de Lucílio e que este deplora com textos de direcção espiritual, exercícios de meditação mais
mais intensidade do que convém a um estóico; repetida- do que exposições de ordem e finalidade meramente teó-
mente alude Séneca a passeios que realiza, a estadas que rica, o que, todavia, não significa que Séneca se exima,
faz em alguma das suas propriedades (numa delas encon- quando é caso disso, a discutir amplamente problemas de
trando um velho escravo, seu companheiro de brincadeiras índole teórica.
na infância, cujo aspecto decrépito o leva a pensar na Para cumprir uma tal finalidade a carta apresenta-se
própria velhice e na morte certamente próxima), a via- como um veículo ideal. Séneca nunca foi muito dado, pelo
gens por mar (por exemplo uma em que foi apanhado menos como escritor, à exposição de teorias desligadas da
por uma tempestade e teve de lançar-se à água e alcançar realidade; bem ao contrário, a teoria sempre lhe interessou
a terra a nado); numa carta descreve uma visita que fez à apenas na medida em que era susceptível de aplicação, em
an,tiga vila de Cipião Africano, cuja nobre austeridade des- que podia ser interiorizada e moldar de forma indelével a
creve com complacência; noutra aproveita o facto de Lucí- conduta do homem. Mesmo nos seus tratados puramente
lio se encontrar na Sicília para pedir ao amigo certas teóricos conhecidos por Dialogi a ligação da teoria à prá-
informações geográficas sobre a ilha, decerto destinadas à tica nunca é perdida de vista, e, forçando um pouco,
inclusão em algum trabalho de natureza científica; noutra quase podíamos dizer que os 'tratados são cartas mais
ainda menciona os seus problemas de saúde, aos quais só extensas e as cartas tratados mais reduzidos. A carta é o
dá atenção para satisfazer a vontade de sua mulher Pau- veículo por excelência, porquanto Séneca parte sempre para
lina. Os exemplos poderiam multiplicar-se. Quanto ao a sua exposição de um pormenor de natureza muito con-
segundo ponto pode ler-se a descrição da viagem que creta que utiliza como pretexto para o desenvolvimento
Séneca fez de Baias a Nápoles, a descrição condenatória de um argumento teórico. Um simples exemplo bastará
dos brutais espectáculos do circo, ou ainda a pitoresca nar- para elucidar este ponto. Séneca inicia a carta 91 relatando
ração da poluição sonora a que está sujeito um infeliz que a Lucílio o terrível incêndio que reduziu a escombros a
habite nas proximidades de um balneário público. antes próspera cidade de Lião. A catástrofe afligiu de modo
Muito embora sendo, como acabamos de verificar, uma violento um amigo comum, natural da cidade sinistrada, e
correspondência efectiva, as cartas a Lucílio têm, no entanto, deixou-o moralmente arrasado. Este acontecimento será
uma motivação profunda que transcende a mera transmis- suficiente para suscitar a reflexão que Séneca vai em seguida
são de notícias e troca de informações. Séneca tem um desenvolver: as catástrofes (incêndios, sismos, inundações)

XII XIII
inserem-se na ordem natural das coisas; guiando-se pela contradições, de momentâneas fraquezas, mas também de
razão o homem deve conformar-se com as leis da natu- sempre renovado e fortificado esforço na vida árdua da
reza, e não rebelar-se contra elas; as calamidades naturais sabedoria. O estoicismo não é uma filosofia para fracos:
não são em si mesmas males nem bens, pois o único mal quem disso não esteja convencido acompanhe a carreira
e o único bem são o mal e bem morais, e tudo o mais é de Lucílio e verificará por si que só à custa de muito
indiferente. E assim, servindo-se dum caso realmente esforço (mesmo físico!), de constante meditação e de um
ocorrido, Séneca ensina a Lucílio o que se deve pensar férreo exercício da vontade será possível a alguém apro-
sobre o mal e o bem, e, simultaneamente, indica-lhe o ximar-se da imagem do sapiens tal como Séneca, com
modo correcto de agir nas circunstâncias. Numa outra alguma rigidez resultante de um certo "retorno às ori-
carta, partindo de um evento ou de uma máxima dife- gens", o concebeu.
rente, Séneca não se coibirá de novamente desenvolver Tal como os seus restantes tratados, também as cartas
este tema, de resto um daqueles em que com maior fre- de Séneca a Lucílio, para além dos traços já apontados e
quência reflecte: todo o mal e todo bem são exclusiva- que fazem delas cartas autênticas, revelam com maior ou
mente de carácter moral. menor intensidade a influência da diatribe cínica em alguns
Vemos por conseguinte que o ensino de Séneca não aspectos da sua estrutura. Antes de mais na sua imediata
assume um carácter sistemático, os problemas são tratados e visível função moralizante: cada carta é uma exortação
ou porque um sucesso exterior os sugeriu, ou porque o
a a que o destinatário adapte como sua esta ou aquela
próprio Lucílio pediu expressamente a Séneca que tratasse
ideia, este ou aquele princípio, se comporte em determi-
este ou aquele ponto. Não possui igualmente índole dog-
nada situação concreta deste ou daquele modo. Não seria
mática, antes se agarra sempre à realidade, e, mais signi-
inexacto dizer, portanto, que cada carta (umas mais do
ficativamente, vai sempre acompanhando a evolução do
discípulo, fazendo o ponto da situação, insistindo nos tópi- que outras, naturalmente) se poderá considerar uma ver-
cos em que aquele revela maiores dificuldades, criticando-o dadeira suasoria e, como tal, se reveste dos aspectos for-
quafzdo fraqueja nas suas convicções ou se deixa momenta- mais que caractérizam o género.
neamente seduzir por falsas opiniões, louvando-o quando Entre os mais nítidos abunda o chamado interlocutor
dá provas seguras de progresso, sugerindo-lhe continua- fictício. O processo é bem conhecido, tanto das suasoriae
mente, nessas ocasiões, novos temas de meditação, acom- propriamente ditas, como ainda dos textos filosóficos (não
panhando sempre a teoria_ç_om_exemplos muito ~one<retos, só de Séneca) e também do discurso satírico (que aliás
sempre mantendo a tensão, nunca contemporizando com as também resulta em certa medida da influência d_iatríbica).
convenções, nunca admitindo entorses aos princípios. Um Consiste o processo em o autor imaginar que uma sua
dos motivos de interesse deste corpus epistolar consiste afirmação é objectada por alguém (precisamente um inter-
mesmo em que através dele podemos ir acompanhando a locutor fictício, uma pura criação sua), objecção essa que
progressão de Lucílio, feita de sobressaltos, de dúvidas e lhe dá oportunidade para retomar a sua ideia inicial, compro-

XIV XV
vá-la com novos argumentos ou ilustrá-la com nova e Cícero ou Catão (um dos exempla mais frequentemente
mais impressionante exemplificação. Daí a abundância com utilizados por Séneca), ou ainda Alexandre da Macedónia,
que nos textos de Séneca figuram fórmulas do tipo dicunt Aníbal, Júlio César e Augusto, para só referir as mais
("dizem alguns"), dicis ou dices ("dizes" ou "dirás tu"), familiares; também não faltam personagens da fábula, tais
fórmulas a que evidentemente Séneca faz seguir um volu- como Dédalo ou Ulisses; e ainda figuras anónimas, humil-
moso caudal de contra-argumentação. Nas Epistulae o pro- des no seu anonimato mas grandes na coragem, tais como
cesso torna-se um tanto incómodo, porquanto, sendo as o gladiador que preferiu o suicídio a servir de espectáculo à
cartas, por definição, uma conversa entre Séneca e o amigo, brutalidade do público circence. Muitos tipos humanos estão
fórmula como dizes tu que... deixa-nos muitas vezes igualmente representados por uma extensa galeria de figu-
na dúvida se a objecção teria sido realmente formulada ras cujo nome apenas nos é conhecido pelas cartas mas de
por útcílio na carta a que Séneca está dando resposta ou se, cuja historicidade não há motivos para duvidar, como o
como a segunda pessoa do singular é uma das possibilida- inesquecível Servílio Vátia.
des que o latim tem de exprimir o sujeito indeterminado, Frequentemente estas figuras são protagonistas de
a objecção deverá ser posta na conta de um interlocutor pequenas anedotas características, umas vezes como exem-
fictício, que é como quem diz, será uma objecção imagi- plos a imitar, outras como exemplos a condenar, sempre
nada pelo próprio autor para fazer progredir a demons- com um intuito inequivocamente moralizante. Em caso
tração do ponto em causa. Se às vezes é possível estarmos algum deixa Séneca de pronunciar o seu juízo de valor
seguros de que foi realmente Lucílio quem levantou o sobre a personagem aludida ou o acontecimento narrado,
problema a que Séneca vai dar resposta, outras (talvez a pelo que as citações, as anedotas, os exemplos históricos
maioria) devemos estar perante um mero interlocutor fic- ou literários nunca devem ser entendidos como manifesta-
tício. É pena que se verifique esta ambiguidade, pois se ções de erudição estéril ou éomo simples ornatos de
pudéssemos estar certos das questões levantadas por Lucí- composição.
lio estaríamos em melhor situação para ajuizar dos reais Refira-se enfim como influência diatríbica o emprego
avanços que o discípulo de Séneca ia efectivamente fazendo abundante de· máximas, próprias ou alheias, cunhadas para
ou das dificuldades que a iniciação no estoicismo lhe sus- o efeito ou extraídas da obra de filósofos (como Epicuro)
citava. ou de poetas (como Publílio Siro ou Vergílio), nas quais
Também releva da diatribe o uso contínuo de exem- Séneca sintetiza sob uma forma poeticamente marcante e,
plos (exempla) concretos para ilustrar cada afirmação ou portanto facilmente conservável na memória alguma grande
cada problema. As Epistulae estão cheias de personagens verdade de índole moral. São legião as máximas que seria
cuja atitude nesta ou naquela circunstância é proposta como possível retirar da obra do filósofo, em geral, e em parti-
exemplo a admirar e a seguir, ou, pelo contrário, a censu- cular das cartas a Lucílio; a Idade Média, época durante a
rar. Algumas dessas personagens são figuras históricas bem qual Séneca figurou entre os autores mais lidos e aprecia-
conhecidas de numerosas fontes, tais como Sócrates, Platão, dos, fê-lo sem rebuços, e chegaram até nós amplos reposi-

XVI XVII

~· ~ ( - ·.
tórios de tais máximas pacientemente recolhidas pelos mon- que a palavra "humanidades" tão bem exprime. Tal não
ges medievais. Diga-se, contudo, que a preocupação de significa que a retórica, no seu aspecto técnico, não pudesse
Séneca em cunhar sentenças formalmente peifeitas obe- estar ao serviço do artifício e da mentira, como o Cícero-
dece mais a um propósito de utilidade prática (um verso advogado o sabia melhor do que ninguém. Mas apesar de
bem composto e sintético memoriza-se mais facilmente do tudo Cícero não concebia que mesmo a filosofia pudesse
que uma longa e difusa exposição) do que a uma finali- ser transmitida eficazmente sem arte, o mesmo é dizer,
dade estética: a estética cumpria uma função exclusiva- sem retórica.
mente ancilar, nunca surgindo como um valor em si. Séneca nunca se pronunciou sobre a matéria de uma
Confirma esta ideia o facto de Séneca nunca ter dado forma sistemática, embora não faltem nos seus textos passos
demasiado relevo à retórica, o que em parte viria a motivar em que se refira mais ou menos detidamente a questões
o juízo fortemente negativo que sobre ele Jaz Quintiliano. de ordem retórica ou mesmo linguística. De certo modo a
Por obediência à tradição' (é sabido o peso que a obra de sua posição pode considerar-se intermédia entre o rigo-
Aristóteles teve sobre os pensadores posteriores), não dei- rismo da Stoa antiga e a predilecção romana pela arte da
xou o estoicismo antigo de dar, no seu plano de partição palavra. Não esqueçamos que o filósofo iniciou a sua car-
da filosofia, um lugar à retórica, um lugar subordinado, de reira como orador, e, mais, orador famoso . Muitos dos
resto, como parte do esquema organizativo da lógica. Todavia seus textos demonstram à saciedade que ele dominava a
nunca se preocuparam com ela enquanto arte específica do técnica, embora afectasse um altivo desprezo pela retórica;
discurso, mera técnica de persuasão situada à margem, tradicional. Para ele a filosofia era um assunto demasiado
quando não em posição fronteira à moral. Zenão e os sério para que valesse a pena perder tempo enredado em
seus sucessores interessam-se obviamente pela propagação problemas de composição, em ornatos de estilo, em longa
da "verdade'~ ao passo que a retórica visa a convencer o escolha vocabular em detrimento do essencial: as ideias.
auditório da "sua" verdade, que não é forçosamente "a" No entanto, Séneca não deixava de reconhecer a relevân-
verdade. O estoicismo antigo rejeita consequentemente tudo cia que a forma literária pode ter na transmissão de uma
quanto não passe de eloquência balofa, de "ruído'~ de arti- doutrina. Por exemplo, uma verdade filosófica torna-se mais
fício. Quando falam de retórica fazem-no, não no sentido evidente e memoriza-se melhor se for expressa numa forma
habitual do termo, mas antes implicando a forma de expri- sentenciosa, ou se for transmitida em verso, de modo que
mir linguísticamente a verdade. . a própria beleza poética alicia o potencial ouvinte a dar
Quando Séneca escreve, já a retórica tinha uma bri- maior atenção ao discurso. Tal explica que Séneca, que
lhante tradição em Roma, ilustrada prática e teoricamente de não apreciava grandemente o teatro, tenha escrito diversas
forma superior por Cícero. Este, como orador eminente tragédias em que as ideias básicas, os motivos fundamen-
que era, dava da retórica uma imagem elevada em que se tais são de inspiração estóica: dada a predilecção do público
aliavam harmonicamente a técnica mais apurada com a romano pela arte cénica, o filósofo decide-se a comunicar
mais larga cultura gera4 formando um conjunto indissociável a esse público alguns princípios essenciais mediante uma

XVIII XIX
forma literária que ele sabe capaz de atrair as atenções e nalismo histérico e se prepara um tresloucado genocídio.
de assegurar que alguns desses princípios se gravem no Como é possível explicar semelhante contradição ?"
espírito dos espectadores. Nunca Séneca exprimiu de uma forma tão nítida a
Não espanta, por conseguinte, que a prosa senequiana, discrepância verificável entre a cultura entendida e prati-
com o seu ritmo desigual, as suas frases nervosas e curtas, cada como mera soma de conhecimentos e a "incultura"
as suas sentenças abundantes, a sua composição irregular de facto existente nas relações entre os homens, quer se
(desenvolvimentos prometidos que não ocorrem, progra- trate das relações dos indivíduos entre si, do poder e do
mas anunciados e não cumpridos, reiteração de temas já povo, ou das nações umas com as outras. Mas, mutatis
anteriormente tratados, recurso excessivo a neologismos mutandis, é este um problema que subjaz em maior ou
ou a vocábulos arcaicos e vulgares, etc.), tão nos antípodas menor grau a todos os seus escritos. Quando ·ele, por
do classicismo ciceroniano, incorressem como incorreram exemplo, se interroga sobre que interesse pode ter conhe-
no fundo desagrado de um Quintiliano, que o considera cer se Homero foi ou não mais antigo do que Hesíodo, se
um autor tanto menos de imitar quanto era precisamente Hécuba foi mais nova ou mais velha do que Helena ou
um dos mais imitados pelos seus contemporâneos. Apesar que idade tinham Aquiles e Pátroclo, não é isto o mesmo
de tudo Quintiliano não deixa de reconhecer, e di-lo, a utili- que questionar o significado de uma cultura entendida
dade que os escritos de Séneca podem ter para a formação como erudição estéril em detrimento de uma cultura autên-
moral dos jovens romanos. Lamenta, isso sim, é que a emu- tica, assimilada, interiorizada e traduzida numa vivência -
lação que Séneca suscita precisamente entre os jovens se no mais amplo sentido da palavra - humanista?
processe a nível formal, ·com a imitação de um estilo irre- Séneca, talvez num grau mais intenso do que qualquer
gular, sem que se verifique também no que respeita à eleva- outro pensador, é um homem "em situação". Salvo nos
ção dos princípios contidos nas irregularidades desse estilo. últimos tempos da sua existência sempre viveu plenamente
No seu livro Über den Ungehorsam, referindo-se aos inserido na vida e participou nos problemas da Roma do
nossos tempos, escreveu Erich Fromm: tempo, numa carreira ímpar em que conheceu a fama
"É indubitável que nunca como hoje está tão difundido como orador, quase foi vítima de um crime político, sofreu
no mundo o conhecimento das grandes ideias da humani- o exílio ainda em consequência de intrigas políticas, regres-
dade. Nunca, contudo, foi a sua influência também tão sou em triunfo e durante alguns anos exerceu na prática o
diminuta. Os pensamentos de Platão e Aristóteles, dos poder, para conhecer enfim a desgraça e vir a ser cons-
Profetas e de Cristo, de Espinoza e de Kant são hoje
trangido ao suicídio para evitar a execução por alegada
conhecidos por milhões de pessoas cultas na Europa e na
participação numa conjura para derrubar o imperador. A
América. Eles são ensinados em inúmeras Escolas, sobre
sua filosofia, portanto, não é fruto de uma meditação abs-
alguns deles fazem-se prédicas em todo o mundo nas
tracta realizada em qualquer hipermundo, mas sim. resul-
Igrejas de todas as confissões. E tudo isto se verifica simul-
taneamente num mundo em que se presta obediência aos tado de uma luta de todos os dias contra as imposições do
prinápios de um egoísmo sem limites, se cultiva um nacio- momento, contra a fortuna e a adversidade, contra as

XX XXI
próprias fraquezas, o inimigo mais difícil de vencer! Daí meramente intelectual, mas que, pelo contrário, se apre-
que Séneca tenha entendido a sua vida e a sua filosofia senta como uma tare/a ingente e extremamente séria, como
como um combate quotidiano contra o mundo e contra si um acto de que depende todo o sentido da sua existência.
mesmo; uma abundância de passos confirma que a filosofia Subjacente a cada desenvolvimento de Séneca sobre as
é vista como uma militia e o filósofo como um soldado sem- matérias que vai explicando a Lucílio está sempre pre-
pre em pé de guerra. Mas não apenas a sua própria vida sente uma questão: para que serve debater este problema,
Séneca concebia como uma luta: também o é a de todos em que é que este ponto interessa à formação moral?
os homens, só que muitos, talvez a maioria, se abandona Esta, a formação moral, é para Séneca o ponto axial a que
sem resistência às ideias feitas e aos falsos valores impos- tudo o mais está subordinado. Não cativam o seu inte-
tos pela sociedade, sendo vencidos antes mesmo de lutarem. resse as especulações teóricas de teor apenas intelectual,
Quer isto dizer que, talvez n~m grau mais intenso do nem a cultura o atrai se não for traduzível em vivência;
que para qualquer outro pensador, seja indispensável conhe- por esta razão, não obstante domine a matéria, rejeita
cer a fundo a biografia de Séneca, determinar com o categoricamente as elocubrações lógicas que encontrava subtil-
máximo rigor possível a data de cada uma das suas obras mente debatidas nas obras dos antigos mestres, não se
e as circunstâncias em que foi c~mposta, bem como a coibindo de censurar, por vezes com .aspereza, um Zenão,
personalidade do destinatário imediato delas. No que um Crisipo ou um Posidónio; pelo contrário entusiasma-se
concerne às Epistulae estamos satisfatoriamente informa- pelos problemas de física por estes lhe servirem de pre-
dos: sabemos que são fruto de um período em que Séneca texto a conclusões de ordem moral, mas já se insurge
contra a tecnologia precisamente pela sua indiferença ética.
já tinha perdido por completo as ilusões sobre a possibili-
Para Séneca a filosofia, dissemos, exige a sua transmuta-
dade de influenciar num sentido positivo a orientação política
ção em vivência, isto é, concretizando com um exemplo, só
de Nero e em que, consequentemente, a sua única preocu-
é válido saber em que consiste o bem supremo se na nossa
pação se traduzia em consolidar a sua própria formação
vida diária agirmos em função desse conhecimento. Memorizar
moral e filosófica, assim como a do seu amigo Lucílio e, uma doxografia - conhecer o que é o bem supremo segundo
extensivamente, através da publicação das cartas, a do maior Platão, Aristóteles, Zenão, Epicuro ou Cleantes - e prati-
número possível de leitores. Séneca sabe que a sua vida carmos as nossas acções sem referência directa à interioriza-
está chegando ao fim, se aproxima o momento de fazer o ção desse conhecimento é um processo inteiramente estéril.
balanço da sua existência, de fixar as metas que um filó- A filosofia torna-se assim uma prática austera que, se não
sofo deve tentar atingir, de determinar o método a seguir torna o homem materialmente feliz segundo o conceito
para alcançar o seu objectivo. Desta sorte a filosofia con- vulgar de felicidade (felicitas), lhe dá em contrapartida
tida nas Epistulae tem um cunho de urgência vital que se uma forma superior de felicidade, talvez devessemos antes
não limita à discussão de questões casuísticas (embora por dizer beatitude (uita beata), que se aproxima do ideal per-
vezes Séneca, até por solicitação de Lucílio, não possa seguido pelos místicos orientais ou mesmo por certos pen-
fugir a elas), que não prossegue uma marcha de cariz sadores cristãos menos ortodoxos. Séneca, não é demais

XXII XXIII
repeti-lo, nunca perde de vista a situação concreta do homem aos instintos que nos levam a comer, a beber, a satisfazer,
na multiplicidade das suas relações sociais e políticas, na 1. enfim, aquilo a que chamamos "as necessidades naturais",
interioridade da sua existência peculiar. Neste sentido fun- entre as quais se inclui, naturalmente o instinto de conserva-
damentadamente assevera o Pe. Manuel Antunes que ele é ção. Obviamente estamos aqui perante um conceito "inferior"
o "filósofo da condição humana", não por se preocupar do que seja a natureza, e não é neste sentido que Séneca
em determinar especulativamente os traços que definem exorta Lucílio (e através dele todos os seus leitores) a segui-la.
essa condição humana, mas essencialmente por pretender Passando a um nível "superior" Séneca vai procurar
conferir ao homem uma orientação concreta que lhe seja qual, de entre os seus dados naturais, é aquele que consti-
de utilidade em todos os momentos da sua vida. Daí cer- tui o "bem" específico do homem. Investigando os traços
tos textos que à mentalidade tecnológica de hoje podem que aproximam e separam o homem dos restantes animais
merecer o epíteto (que se pretende depreciativo) de "morali- Séneca considera que, enquanto as necessidades naturais são
zantes". A importância desses textos para o pensamento idênticas para todos, existe algo que é exclusivo do homem,
de Séneca é contudo, imensa, na medida em que consis- e esse será o seu '1bem" específico: a razão. Logo seguir a
tem em meditações sobre as problemáticas mais imediatas natureza toma um sentido diferente do que a expressão
da vida de qualquer um: por exemplo, como reagir perante possui quando aplicada aos animais: para o homem signi-
a morte de um ente querido, como encarar as obrigações ficará única e exclusivamente viver de acordo com os dita-
de natureza social, que valor atribuir aos bens materiais, mes da razão.
como agir perante pessoas de estratos sociais diferentes, Mas o homem, queira-se ou não, é um animal, pelo
que aparentemente, ao incitá-lo a seguir a natureza, está a
como valorizar a aaividade política, como entender o que
cair-se numa contradição: por um lado exorta-se o homem
seja o progresso, como julgar as chamadas "conquistas
a segui-la, por outro toda a marcha da filosofia estóica
tecnológicas", como educar as crianças, como formar os
•. (Séneca muito especialmente) visa a ultrapassar, a vencer
jovens, que conceito fazer do que seja a cultura, etc., etc.
a natureza humana. Dito de outro modo: sendo a razão o
Frequentemente encontramos no texto das cartas uma bem particular do homem deveríamos ser levados a pen-
exortação básica, que Séneca repete à saciedade: é impe- sar que ele vive naturalmente segundo a razão, e portanto
rioso "seguir a natureza" (sequi naturam). Dado que uma segundo a natureza, o que evidentemente se não verifica, e
injunção semelhante se encontra também em textos epicu- daí a urgência de vencer o modo humano de ser para que
ristas importa definir em que sentido Séneca, como estóico, seja possível cumprir o ideal de viver segundo a natureza.
entende a expressão, pois daí decorrerá o seu conceito da Séneca resolve esta dificuldade distinguindo uma dupla
condição humana. natureza na alma humana: uma inferior na qual dominam
O filósofo distingue dois sentidos elementares contidos . os instintos, as paixões (affectus), outra superior que cons-
no conceito de "seguir a natureza". Por um lado considerá titui o domínio próprio da razão (ratio). Toda a questão
a "natureza" biológica, comum ao homem e aos animais, e está, por conseguinte, em atingir um nível em que seja a
nesta instância seguir a natureza significa apenas obedecer 1}4tureza "superior" a exercer o seu domínio sobre a "inferior".

XXIV xxv
Todo o homem tem, enquanto animal, necessidades natu- belecer uma minuciosa hierarquização das "virtudes", dis-
rais de nível inferior, e obviamente tem de responder a tinguit quais as fundamentais, quais as subordinadas e qual
essas carências, mas somente na medida em que a razão a articulação entre elas, enveredando, assim, por um caminho
decida como, quando e até que ponto elas devem ser intelectual talvez mais "científico" mas, sem dúvida, de
satisfeitas. Podem surgir situações em que a razão, em menor interesse prático. Sempre fiel à realidade concreta,
nome da natureza superior, rejeite precisamente a satisfa- porém, Séneca rejeita essa via, limitando-se a considerar a
ção das necessidades naturais, mesmo uma tão imperiosa virtude, por assim dizer, em bloco, sem se preocupar se
como o instinto de conservação. esta virtude particular é mais ou menos virtude do que ·
Podemos assim dizer que o bem específico do homem aquela outra. O seu escopo é levar o orientando à prática
- a razão - existe como potência em todo o ser humano, da virtude, simplesmente, numa intenção pedagógica em
mas para se realizar plenamente importa subjugar o mundo que, como sempre, o importante é o valor real do ensino
das paixões, isto é, viver segundo a natureza humana para a formação moral e não o luxo inteleaual da informação.
implica, senão eliminar, pelo menos manter sob severo Do seguir a natureza conforme a razão, ou, dito por
controlo todo um conjunto de instintos naturais ao homem outras palavras, da prática da virtude decorre para o homem
enquanto animal: exige-se a transformação da potência a obtenção da felicidade (uita beata), a qual é para o
em acto. A actualização da razão é aquilo a que Séneca homem o supremo bem (summum bonum). Conforme o
chama a virtude (uirtus). Em última análise a virtude leitor certamente infere, a felicidade para Séneca nada tem
identifica-se com a razão, dada a oposição diametral que a ver com a obtenção de bens materiais, nem com a posi-
existe entre virtude e paixão por um lado, entre razão e ção social ou o poder que se exerce. A felicidade, como
paixão, por outro. supremo bem, reside apenas no_,bem moral (honestum), o
Assim se completa a identificação entre estes três termos qual pode implicar (e geralmente fá-lo) precisamente a
básicos do pensamento de Séneca (virtude, razão, natu- rejeição daquilo que o vulgo tem como "bens". O bem
reza), e assim chegamos a entender o que o filósofo pre- moral também carece de um certo sentido estético que o
tende quando aponta como objectivo supremo do homem termo grego corresponde ( ro KaÀÓv) de certo modo
sequi naturam: a natureza humana tem de específico o ser conota. O bem moral, para o estoicismo, e muito particu-
dotada de razão; a razão existente potencialmente em cada larmente para Séneca, é dotado de uma severidade sem
ser humano actualiza-se como virtude, pelo que, para o complacências, de uma austeridade a toda a prova, de um
homem, seguir a natureza será, exclusivamente, viver "aristocratismo" que o tornam de realização extremamente
segundo a razão, praticar a virtude. difícil e, para a maioria, talvez até pouco atraente. Trata-se,
Daqui decorre uma consequência extremamente impor- todavia, de um ideal que em épocas históricas determina-
tante para a compreensão da obra de Séneca. O filósofo das e para certas personalidades concretas constitui a única
poderia, na esteira dos antigos mestres do estoicismo, de/esa contra os condicionalismos exteriores. Uma dessas
enveredar pelo caminho da casuística e dedicar-se a esta- personalidades foi precisamente Séneca: os altos e baixos

XXVI XXVII
da sua carreira, as múltiplas situações difíceis em que se exemplo, gastronómicos), a obediência exclusiva às paixões
viu envolvido levaram-no a constantemente meditar sobre de toda a ordem, tais como as vemos representadas nas
os problemas reais que a vida põe. Os seus escritos, além tragédias do próprio Séneca ou nas sátiras de Pérsio, tudo
de serem uma forma de difundir no público as suas ideias isto fazia da sociedade romana uma sociedade doente, à
e de assim realizar (l}Tf!:à tare/a pedagógiêd'J.(que sempre deriva, presa fácil de charlatães e adivinhos (como os
esteve na mira do estok is;;;,o): sito ta,,;;,bém uma/;;~ -·ie ·-;~ astrólogos), aberta a toda a espécie de cultos religiosos que
educ~r ; s/ p;6pnõ;·;i~- ~;ercícios espirituais que propõe propusessem aos seus aderentes qualquer espécie de salvação.
tanto para si como para os outros, são meditações sobre Ora um enfermo, seja ele um homem ou uma socie-
as ocorrências da sua existência, são uma forma de fixar dade, deve procurar tratar-se, e foi isso o que Séneca pre-
as suas ideias, de assegurar para si uma estabilidade, uma tendeu fazer infatigavelmente, não apenas diagnosticando
constância assente na fidelidade aos princípios, um método com precisão a moléstia, mas ainda propondo criteriosa-
para atingir a identidade consigo próprio, para ser sempre mente o remédio. Um homem que, em vez de obedecer à f
igual a si mesmo, para, como ele diz, "querer e não que- razão, se torna escravo das paixões é, obviamente, uma !
rer sempre a mesma coisa" (idem uelle et idem nolle). criatura doente, precisamente porque nela se não desen-
A filosofia senequiana surge, assim, não como mera volveu, se não actualizou a virtude que todos possuímos
especulação, mas sobretudo como uma verdadeira terapia em potência. Um homem em quem a razão (e, portanto, a
que o pensador procura aplicar tanto em si próprio como virtude) não passa a acto é um ser defeituoso. Há, conse-
nos outros. fcom grande poder de observação, Séneca quentemente, que chamar-lhe a atenção para o seu mal,
detectou ag!;J,a e pertinentemente aquilo a que podería- apontando as respectivas causas e propondo o tratamento
mos chamar o mal du siecle da R oma de então, e que em adequado. É ao filósofo que cabe desempenhar tal tare/a,
síntese seria possível definir com a deriva de uma socie-
como se um médico fosse, e como tal entendeu Séneca a
dade carente de valores] Por um lado uma prosperidade
sua missão. A nteriormente referimos que o filósofo conce-
económica acentuada (apesar da crise financeira do fim do
bia a vida e a actividade filosófica como uma' luta; nova
principado de Nero), uma estabilidade política e social que
certas guerras de fronteira ou um ou outro levantamento abordagem permitirá r:Jj__rmar que ele ~"!!~~~"f!~ .iiJI.<Jiiq,
de gladiadores nas províncias não chegavam para pertur- C?J'!!O Uma f arma de medleznã; -meaz~;;;,,.Cf. /Ítf.S .fll'!!ltf~. !J4JJ±~
bar, um nível cultural e artístico de grande sofisticação, ;aj~enie, "pó.rqi:t~Iõ-~ -;;;;ue d,;'Ç?.;:p;,
f!pf_ caf~~~t:..ff!JJ L
de .
tudo (á;;-mpànhêidõ. uma -;;õ~~ ciiié ·dê--:;à10rêi'~ o;~is;, niH;;n~- ~~: ~á1à!·~:mó·;~r,1 :~~l~g~tt, p o_r _Seftif!fa.:_ pq,,r:cuL c.aJI?-~
de que-õi "êspectdc~los .dÔd;~;-'Sffo-;;;;;-;z;s si; õ-;nã;-;·a/ goria dos indiferentes.
obras dos grandes autores do tempo como Lucano, Pérsio A doenÇd ai que -enÍermava a sociedade romana, embora
e o próprio Séneca a decidida denúncia. A ausência q§ podendo revestir aspectos múltiplos, era na base muito
.Qpj<:_ç_!JJ!f?.L l':!f!!riores para .a:...~~jpência, a âns/;-Je; ;;;;Jida simples de definir: tendo a alma uma dupla natureza
dos J; e.n! .~r:z~t_o/:_~-~/j,=·õL~;C~!.s_qi_={e- tQ_jg:~;_~~~~-':.~j_~}p;r (uma "parte" superior que nos equipara aos deuses, uma

XXVIII XXIX
"parte" inferior que nos mantém ao nível dos animais) o homem para todo o homem, prevalece o dever do homem
romano médio (e não só o romano, evidentemente) limita enquanto cidadão para com os seus concidadãos, para com
a sua existência ao nível inferior, onde dominam, como os membros da sua classe social, da sua família, do seu
vimos, os instintos, as paixões. Em contrapartida, todas as grupo político, da sua pátria. O mesmo relativismo se
correntes filosóficas visavam a libertar o homem do domí- verifica no que à amizade concerne, que inclusivamente
nio das paixões e a proporcionar-lhe uma f arma superior pode chegar a limitar-se à designação de uma afinidade
de "felicidade". {jJ. esse estado de vivência superior_
.
de_qug_... política, de partido, em que a amizade como supremo
as paixões estão excluídas chamavam os grego's..}1._m)f)wx; ,\ valor moral carece por completo de cabimento.
Séneca designa-a por tranquillitas animi (tranquilidade · d;" Nada disto se verifica em Séneca. O filósofo de Cór-
alma, título, aliás de um dos seus tratados). A função do dova é um homem do absoluto, não se contenta com os
filósofo, portanto, consistirá basicamente em ajudar o meros valores relativos vigentes na sociedade, os quais,
"paciente" a obter essa tranquilidade que entregue a si precisamente por serem relativos, não devem ser tomados
mesmo não consegue alcançar, mais, de que· as tendências como verdadeiros valores. fá dever ou a amizade tal com:o
da sociedade decisivamente o afastam. Séneca os entende são àbsolutos morais, independentes_
Temos, portanto, a filosofia cumprind_o o papel de das classes sociais, da nação, dos laços familiares, da riquez~J
uma pedagogia e também o de uma J~rapia,-)implicando Assim é que Séneca pode falar como fala, por exemplo,
este termo um maior empenhamento do--sabto no desem- dos escravos. Às vezes critica-se Séneca por não ter levado
penho da sua m,,ifsão do que uma tarefa meramente peda- as suas ideias às últimas consequências e não ter chegado
gógica exigiria. fA filosofia deve curar os males da alma, e a pôr em causa o próprio sistema da escravatura. Tal tipo
não somente dqinir em que eles consistem~ Um "doente" de críticas padece de anacronismo: pense-se nos séculos
renitente pode saber em que consiste o ;u mal e nem que foi preciso ainda atravessar para que o esclavagismo
por isso decidir-se à cura; pode dizer, como a Medeia de viesse a ser oficialmente erradicado. No seu enquadramento
Ovídio, uideo meliora proboque, deteriora sequor. Se tal histórico, dizer como o fez Séneca que o escravo é um
suceder, a filosofia terá falhada o seu objectivo. homem, que um escravo e um homem livre podem ser
Destas considerações decorre a nova inflexão dada por amigos, que um escravo é tão capaz como um homem
Séneca a dois conceitos básicos do pensamento romano: o livre de prestar um benefício ao seu semelhante, e sobre-
conceito de officium (literalmente, "dever") e o conceito tudo(proclamar que um escravo que viva segundo a razão
de amicitia literalmente, "amizade"). Ambos os conceitos e pratique a virtude é incomensuravelmente mais livre do
servem de título a duas obras filosóficas de Cícero, o De que o mais nobre dos cidadãos romanos que se submeta
Officiis ("Sobre os deveres") e o De Amicitia ("Sobre a às paixões, é uma tomada de posição verdadeiramente
amizade"). Em Cícero, porém, sobressai o valor social de revolucionária) Se outro mérito o estoicismo não tivesse,
ambos os conceitos, isto é, mais do que o dever de todo o bastaria o facto de o vermos praticado com igual elevação

xxx XXXI
moral por um aristocrata romano (Séneca), um antigo eventualmente o seu discípulo tenha, sem prejuízo de pos-
escravo (Epicteto) ou um imperador (Marco Aurélio) para teriormente o procurar atrair para os princípio1.JYl Escola.
lhe grangear um lugar à parte na sucessão das correntes Aliás, já atrás vimos como Séneca lidava com(Lucíli~ antigo
filosóficas do mundo antigo. epicurista, não atacando Epicuro, antes dele "ê[Íc!,ndo'jieri-
Dissemos em parágrafo anterior que a natureza humana s~;n;:;ã;; idênticos aos seus próprios, ou pelo menos interpre-
tinha em si algo que a equiparava aos animais e algo que tando-os à luz do estoicismo, sem adaptar uma atitude
a igualava à natureza divina. Será altura oportuna, a fim depreciativa ou dogmática em relação aos seus adversários
de evitar qualquer espécie de mal entendido, para esclare- filosóficos. Neste sentido P<!c±e... cf,ize,r-s_e_qt,t_e_t_od_os. Q.l.' .estói-
cer o que significam para os estóicos os deuses (ou um CQ L ~ã_o . 'f!l:Onoteís~as, porque n_enhum deles qceita .º Poli-
deus, ou Deus); tal precisão é muito particularmente neces- teísmo da religião tradicional, mas _deverá evitar diz€r-se
sária no caso de Séneca, em cuja obra palavras como deus, que são monoteístas no .. sentido_ em que S(i fqla de _rr;,ono-
deuses, divino, divindade ou similares ocorrem com extrema teísmo judaico, cristão ou islqrrt;ic_q, ~ ., ._,; ·
frequência. Dito de outra forma, torna-se necessário entrar - O deus dos estóicos não é mais do que o equivalente , ·;( ;.' /
no domínio da teologia estóica. De facto, nenhuma obra
4t!CJ.tfi.f~. i.~i-~q-~f()"ir;_~;.·~ft.glp{l:,.:~~~~{~:~d.2.;1!.~JJ.~;~~, (d j . ' ' •
de exegese sobre o estoicismo se exime a dedicar algumas anima mundi mundia a que já se referia Aristóteles). Por l.. rj .: •
páginas a este ponto. No entanto, se autores há que pre-
isso não nos devemos espantar por num texto célebre das
tent(lem vincar o panteísmo destes pensadores, outros con-
Naturales Quaestiones Séneca propor toda uma série de
sideram-nos materialistas; não falta também quem veja
equivalências linguísticas para a expressão do mesmo con-
neles monoteístas, nem quem entenda o estoicismo mais
ceito: Júpiter é o guia e o guardião do universo (rector
como uma religião, uma crença, do que, na essência, uma
filosofia. Não será, portanto, inútil chamar a atenção para custosque uniuersi), a alma e o, espírito do mundo (ani- /
alguns pontos que ajudem o leitor a situar-se quando, no mus ac spiritus mundi), o senhor e criador de toda esta
decorrer da leitura das cartas, deparar com alguma das máquina (operis huius dorp.in~_? ~t artifex); mas não erra- i
muitas ocorrências do termo deus. remos se lhe chamarmo/:.'.de.~tif!_p::,_ (f~tlJ!Il);·;ou "causa das '1
Comecemos por eliminar a questão (falsa) monoteís- causas" (causa causarum);
.--·- ..._
também .estaríamos
.-".· ' --.. . ._ certos se lh e li
mo/ politeísmo. Não é de atribuir qualquer valor especial chamássemos, "providência" (prouidentia),) nas igualmente !
--- ~·~~~··· ····· - ---~--- ·-~--· !
ao aparecimento de nomes divinos como Júpiter ou outros; não nos enganaríamos se lhe dessemas o nome de "natu- /
1
primeiro, porque tanto Séneca como os seus predecessores reza" (natura) ou "mundo" (mundus). Falar, como alguns
são muito claros a este respeito, e quando dizem Júpiter, o fazem, de uma certa religiosidade inerente ao pensa-
ou Neptuno, não pretendem referir-se ao deus do panteão mento de Séneca apenas estará correcto se nos entender-
tradicional; segundo, e isto é especialmente válido no caso mos quanto ao sentido da palavra: religiosidade" enquanto
de Séneca, porque o estóico, na sua função de pedagogo, Séneca concebe o homem como um com a natureza, e
obedece ao princípio axial de respeitar as crenças que não à margem e menos ainda acima dela, enquanto pensa

XXXII XXXIII
que o homem deve entender a· natureza e nela se inte- Se bem atentarmos no que Séneca nos diz em passos
grar, e não exercer domínio sobre ela, respeitá-la e não diversos das cartas estamos em crer que a contradição se
destruí-la; "religiosidade" enquanto sentido de transcen- resolverá por si. O caso é que em grande medida o homem
dência, atitude contemplativa. Mas não cremos que se deva é determinado: ninguém escolhe a forma do corpo, a
falar em religiosidade de Séneca se dermos ao termo qual- agudeza dos sentidos, as potencialidades físicas, tal como
quer conotação de cariz cultua!, de crença em alguma divin- ninguém escolhe o lugar e o momento de nascer ou (em
dade transcendente ao mundo, de prática de alguma forma princípio) de morrer. Isto é um dadg_ de facto contra o
de prece, ou de outras manifestações similares. qual nada pode a vontade humana. éJ.liberdade, porém,
No que toca ao materialismo, é inegável que, em certo assume-se no modo como cada homem vive as determi-
sentido, os estóicos (e Séneca não é excepção) são efecti- nações que lhe são impostas ~ela natureza (ou pelo des-
vamente materialistas, não por postularem a matéria com tino, o que significa o mesmo2JNuma frase famosa, Séneca
exclusão de todo o elemento espiritual, mas por entende- escreveu: ducunt uolentem fata, nolentem trahunt "o des-
rem que tudo, inclusive o espírito, é de natureza material. tino guia quem o segue de bom grado, mas arrasta quem
No universo contínuo que é o seu, em que tudo age sobre se recusa a segui-lo". Neste verso sumariza-se claramente
tudo, tal acção de tudo sobre tudo só é pensável se tudo o seu pensamento sobre este problema: aquelas determi-
for de natureza corpórea, material. O espírito é um corpo, nações que nos são impostas pela natureza, tais como a
a alma é um corpo, "deus" é um corpo; neste sentido, nossa condição de mortais ou a situação num mundo sujeito
sim, é lícito dizer que os estóicos são materialistas, mas já a cataclismos naturais, temos de as aceitar com magnani-
não o será pretender fazer deles quaisquer precursores de
midade, sem revolta, pois de forma alguma temos a pos-
filosofias de cariz positivista.
sibilidade, a "liberdade" de lhes fugir; está, todavia, na
De incidência neste capítulo é também importante e
nossa mão a forma como reagimos a essas contingências
controversa a questão do conceito estóico de "destino". O
inevitáveis. Por exemplo, é um facto que nós nascemos
termo não é cómodo, e possui hoje Cf!.!f!.!-~C.ºF'ºtações que
nos parece não existirem no termo(latino_~at:Jfri;'1Quando nesta ou naquela época, neste ou naquele lugar: porquê
se fala em "destino" é praticamente inéviiâvel levantar-se insurgir-nos contra o "destino" que nos fez nascer roma-
a questão de como pode o homem ser livre (e em Séneca I, nos e não gregos, escravos e não cidadãos livres, homens
o conceito de "liberdade" é de grande relevância) num e não mulheres, baixos e atarracados em vez de altos e de
mundo submetido ao mais estrito determinismo. De facto porte atlético? A razão diz-nos que contra isto nada há a
parece haver uma contradição insanável entre determinismo fazer: porquê lamentarmos irracionalmente o que o "des-
e liberdade, e não falta quem veja na firmeza com que tino" nos deu em sorte? Agindo ao revés do que a ratio
Séneca aceita o determinismo e defende a liberdade do nos diz estaremos a ser "estúpidos" (stulti), e "estúpido" é
homem um fruto de certa falta de sistematização, de rigor do todo aquele que não desenvolveu em si as potencialidades
seu pensamento, resultado de muitas leituras, que fariam da da natureza humana, cujo traço essencial é, como vimos, a
sua filosofia uma espécie de eclectismo sem consistência real. razão. O cúmulo da estultícia seria cair naquilo a que

XXXIV xxxv
Séneca chama o taedium uitae "o horror à vida". Ao con- nações derivadas do fatum escapam realmente à classifica-
trário do que às vezes se supõe, o estoicismo não ignora a ção bom/mau/indiferente, já o mesmo se não dá quando
"alegria de viver", mas tem dela um entendimento não falamos da fortuna. Não tem sentido dizer que a nossa
semelhante ao do vulgo. condição de mortais é moralmente boa ou má, ou nem
A par do conceito de "destino ': deparamos continua- uma coisa nem outra; a mortalidade simplesmente é, sem
mente em Séneca com um outro conceito aparentemente mais. Já faz sentido, todavia, afirmar que a condição social
similar, o de "fortuna" (fortuna). Na verdade, embora por do homem livre ou do escravo são ambas moralmente
vezes se afigure que as duas ideias se recobrem (nem indiferentes, tudo dependendo do que o homem livre ou o
sempre Séneca escreve com um rigor terminológico irre- escravo façam dela. E já acima sublinhámos que para Séneca
preensível), elas são distintas: enquanto o fatum circuns- nada impedia que um escravo fosse mais livre do que um
-~rf!1/~__,C?S. •~r:a._ço! e_ssen~iais. d;q [t.aiu~"eza . -h~;;;;n~ . (~.g.; . a cidadão livre, desdg que aquele, ao contrário deste, se orien-
condição mortal), a fortuna implica as circunstâncias. exte- tasse pela razão/ Daqui decorre uma diferença de formula -
riores que nos determinam (u.g., o sermos bonitos o"u ção que ocorre ·~m Séneca e que é elucidativa a este res-
feiai,· nascermos ricos ou pobres, etc.). Num caso e noutro peito: ao passo que nós sequimur fatum "seguimos de
o homem não é "livre" de escolher a sua sorte, mas bom grado o destino': o que implica uma atitude activa,
enquanto aquilo que nos é imposto pela fatum está para racional, de aceitação do irrecusável, pelo contrário prae-
lá de toda a determinação moral, já o mesmo se não veri- bemur fortunae "estamos sujeitos à fortuna", em princípio
fica com o que nos é dado pela fortuna. numa posição passiva perante um mundo de indiferentes,
/ Para o estoicismo, todas as coisas são passíveis de uma ··, mas susceptível de, pela razão, pela virtude, pela unicidade
·. tríplice classificação de ordem moral: uma coisa só pode do bem moral, ser por nós dominada e transformada em
\ ser ou "boa", ou "má" ou "indiferente". Tudo quanto se "bem". Por isso mesmo pode Séneca (e outros autores de
, confarme com o bem moral será bom; tudo o que contra- obediência estóica) falar em amor fati "amor pelo des-
• rie o bem moral será mau; toda a coisa que apenas seja tino ': mas já seria destituído de sentido falar em amor
, boa ou má em função do uso que dela fizermos, e não fortunae "amor pela fortuna' Jm suma, se o homem não
1
em si mesma, será indiferente. Concretizando, a virtude é livre de escolher o seu faturo nem a sua fortuna, é, por
será obviamente um bem (será mesmo o único bem); o um lado, dotado da razão que lhe dita a obediência ao
vício (que é o contrário da virtude), será obviamente um fatum e dispõe, por outro, da liberdade de transformar
mal (será mesmo o único mal); uma coisa como a riqueza uma fortuna moralmente indiferente num verdadeiro bem.
e a força física que tanto pode ser utilizada para praticar Da consideração da elassificação de tudo em três gran-
o bem como para praticar o mal, entrará na categoria dos . des categorias - ( ás coisas boas, ~s e indiferentes - ~)
indiferentes. chegamos naturalmente a'"óutrÕ pontÓ d e enôrme impor-
Retomando a oposição fatum/fortuna no âmbito desta tância para Séneca, decorrente da ocorrência constante de
classificação, poderá verificar-se que, enquanto as determi- vocábulos como sapiens (que traduzimos por "sábio") ou

XX.XVI XX.XVII
sapientia (que vertemos por "sabedoria"), ou seja, ao con- essa escala proclamada coincide ou não com os valores
ceito que o filósofo faz do que seja o homem superior, determinados pela filosofia, isto é, pela razão.
que mais não é do que o homem autêntico, o homem na Vimos que o critério único que Séneca admite para a
sua completude ontológica e ética. atribuição de um valor a qualquer coisa reside na sua
Esta tripartição não é naturalmente criação de Séneca, "bondade" moral. Para o filósofo o bem moral não se
pois todos os antigos estóicos a ela se referem. Não será, limita a ser o bem supremo, mais do que isso, é o único
porém, exagerado dizer que ela tem para Séneca uma bem. Neste ponto Séneca é intransigente, talvez mais do
relevância particular, pois é somente em função dela que que os seus predecessores do antigo estoicismo, e certa-
se torna possível atribuir valores. Para já, a própria opção mente muito mais do que os pensadores do chamado
pela filosofia é em si mesma uma atribuição de valor. "estoicismo médio". [Eara ele só tem valor qualquer coisa
Além disso, sendo a filosofia de Séneca mais uma obra de - um objecto, uma acção, uma ideia, uma ocupação inte-
acção pedagógica e de direcção espiritual do que um puro lectual - que vise a obtenção do bem mor~ que se pro-
pensamento especulativo, torna-se evidente que a primeira ponha tornar o homem melhor do que er~A dicotomia
consideração a fazer consiste precisamente na fixação de entre o honestum (o bem moral), que se identifica com a
uma escala universal e rigorosa de valores: sem estes não ratio (razão) e a uirtus (virtude), e o uitium (o mal moral,
há pedagogia ou percurso espiritual minimamente válidos. o mal por excelência) é absoluta. Absoluta também será
A primeira opção a fazer pelo sujeito ético consiste consequentemente a dicotomia entre o homem moralmente
em decidir se se deseja seguir a via da razão (ratio) ou se perfeito (o sapiens "sábio") e o homem moralmente imper-
prefere atender à opinião vulgar (opinio). Por natureza feito (o stultus, insipiens, literalmente, "estúpido, não-sábio").
todo o homem é potencialmente dotado de razão, mas Surge, porém, aqui um escolho: ,se qualquer coisa é passí-
tudo o que existe potencialmente requer condições f avorá- vel de ser boa, má ou indiferente, porque é que o homem
veis para poder passar a acto; se tais condições favoráveis só poderá ser bom (virtuoso, racional, sábio) ou mau (vicio-
se não verificarem uma coisa existente em potência jamais so, irracional, estúpido)? Não será necessário criar uma
se actualizará. Sucede ainda que o homem, na condução da terceira categoria de homens, a que por paralelismo pode-
sua vida, tem de começar por determinar o que deseja ou ríamos chamar "indiferentes", onde coubessem todos aque-
não fazer segundo a atribuição de valores. Toda a socie- les que não são, em termos absolutos, nem "bons" nem
dade possui, explícita ou implicitamente, uma escala de "maus"?
valores (na maioria dos casos o que se verifica é a exis- Para os antigos estóicos, que abordaram o problema
tência de uma escala de valores implícita, não confessada, com o máximo rigor, a resposta é decididamente negativa.
que se mascara atrás de um sistema de valores explícitos Um homem ou é sábio, ou não é, sem que haja qualquer
não praticados). Aquilo a que Séneca chama a communis alternativa. Por muito próximo que alguém se encontre da
opinio, a "opinião vulgar': proclama naturalmente a sua condição ideal de sábio, ainda que seja ínfima a diferença
escala de valores. Ao filósofo cabe distinguir em que medida que o separa de tal condição, esse alguém entrará necessa-

XXXVIII XXXIX
riamente no grupo dos "estultos': dos "insipientes". Este admite gradações en't,re estes dois extremos. Um homem
rigorismo faz obrigatoriamente com que o sábio estóico pode não ser absolutamente "bom': "sábio" (e Séneca afirma
seja uma espécie de Übermensch, um tipo puramente idea4 que esse ideal apenas muito raramente tem sido atingido
ou pelo menos tão raro como a fénix. É o infinito mate- na vida rea4 embora haja alguns exemplos, como Sócrates
mático, um limite para que se pode tender mas que neces- ou Catão), mas, embora permanecendo "insipiente", pode,
sariamente nunca será atingível. Ocorre pensar-se que o no entanto tender para a "bondade". Por outras palavras,
estoicismo seja uma filosofia verdadeiramente desumana, enquanto as categorias de "bom" e de "mau" são absolu-
na medida em que propõe como ideal atingir uma meta tas, imutáveis, polarmente opostas, o homem tem a pos-
por definição inatingível! sibilidade de, usando a razão, procurar aproximar-se do
Conscientes da validade desta crítica, pensadores como tipo ideal do sábio. Uma primeira etapa consistirá no
Panécio ou Posidónio procuraram, por assim dizer, "huma- reconhecimento de que apenas os valores estabelecidos pela
nizar" o retrato ideal do sábio, pondo-o ao alcance, senão filosofia são efectivamente valores admissíveis e na rejei-
de qualquer um, pelo menos de uma boa percentagem de ção dos valores propostos pela communis opinio. Em seguida
homens medianamente dotados. Para tanto, abandonaram procurará tanto quanto possível pôr em prática na sua
o rigor da distinção entre o bem e o ma4 incluindo entre acção esses valores e assim ir-se gradualmente aproximando
os bens muitas coisas que para os estóicos antigos (e, do modelo ideal. Um "não sábio" pode progredir na via
como veremos, para Séneca) entravam, se tanto, na cate- da sapiência, partindo de inícios modestos poderá alcançar
goria dos indiferentes. Assim, por exemplo, Posidónio con- um ponto em que, continuando embora "não sábio", será
siderava digno do nome de sábio um homem cujo saber irreversível a marcha. Para Séneca, portanto, a condição de
fosse essencialmente de cariz tecnológico ou julgava como sábio não se atinge instantaneamente, num momento, diga-
boa uma ocupação intelectual que não visasse expressa- mos, de "iluminação': mas implica uma continuidade de
mente a formação mora4 como a matemática (o que Séneca esforço, uma aplicação incessante e, sobretudo, um férreo
lhe criticou asperamente). Tal crítica por parte de Séneca exercício da "vontade".
constitui, por um lado o retorno a uma certa ortodoxia, a Estamos perante um ponto em que, mais do que em
um certo rigorismo extremo do estoicismo antigo miti- nenhum outro, Séneca se mostra um pensador tipicamente
gado pelos estóicos "médios': mas por outro lado revela-se romano e profundamente original. Ocasionalmente aponta-
igualmente como um aperfeiçoamento da posição da antiga -se o conceito grego de Oiávow como possível modelo
Stoa, tornando-a mais humana, sem, no entanto, lhe dimi- para o conceito romano (e senequiano) de uoluntas ("von-
nuir o rigor. tade"). Uma diferença considerável existe, todavia. Enquanto
Como os antigos, Séneca é definitivo: todo o homem para o grego o conceito é puramente intelectua4 o mesmo
ou é "bom" ou é "mau"; estes dois termos determinam não se verifica no caso dos pensadores romanos. Isto é, o
duas categorias absolutas, que, por serem absolutas, se podem pensamento grego concebe o querer como consequência
ter como limites. Mas, ao contrário dos antigos, Séneca inevitável do conhecer: para Platão, todo o mal é resul-

XL XLI
tado da ignorância; quem conhece o bem tem, por força um sábio; com perfeito sentido das próprias limitações,
de praticá-lo. Para os romanos tal concepção é inexacta: é sempre capaz de autocrítica, o filósofo exerce a sua medi-
perfeitamente possível saber teoricamente o que é o bem tação e pratica a filosofia tanto para ajudar os outros
e, apesar disso, continuar a praticar o mal, como faz a quanto para se ajudar a si mesmo. Comprazem-se muitos
ovidiana Medeia do célebre passo atrás citado. O impor- biógrafos de Séneca ou historiadores da filosofia em assi-
tante, portanto, é conseguir a adequação entre o bem que nalar a discrepância entre a nobreza da moral de/endida
se conhece e o bem que se quer praticar. por Séneca nos seus escritos e certas fraquezas condená-
Nas suas meditações sobre a vontade está o ponto veis da sua conduta pessoal: pode dizer-se que é tinta
culminante da obra de Séneca. A mera consideração teó- gasta em má causa, pois, melhor do que ninguém, Séneca
rica da dicotomia bem/mal, sábio/não sábio de modo algum estava ciente de tal discrepância. Toda a sua vida foi uma
o satizfaz. Sempre apegado ao concreto, sempre tendo em luta constante no sentido de colmatar esse fosso, e não
vista a função eminentemente prática da filosofia, Séneca será inexacto dizer que nos últimos anos da sua vida,
situa-se preferencialmente na análise do domínio dos indi- nomeadamente no período em que redigia as cartas a
ferentes, pois apenas aqui se torna possível ao homem Lucílio, Séneca saíu vencedor dessa luta. Somente a morte
exercitar a razão e pôr em acção a vontade. O homem permite fazer um balanço correcto do que valeu a vida de
absolutamente mau, tal como o homem absolutamente bom um homem. Como afirma o Pe. Manuel Antunes, Séneca
(o sábio) situam-se em planos que não admitem mudança. "graças aos seus mestres do Pórtico e graças aos seus
O homem absolutamente mau assemelha-se a um doente também mestres do Jardim, graças à sua intuição e graças
atingido por uma doença incurável perante a qual toda a ao seu longo e lento exercício meditativo, (... ) foi trans-
medicina é impotente; o homem absolutamente bom assemelha- formando o pessimismo em optimismo, o trágico em liber-
-se a um deus que não carece por definição de quaisquer dade e a inquietude em serenidade". E não é, afinal, a
cuidados médicos. É, consequentemente, o homem vulgar, obtenção da serenidade - a tranquillitas animi - o fim
situado entre os dois extremos, aquele a quem pode apro- último da sabedoria?
veitar o exercício da filosofia, é a esse homem que o filó- Toda a vida não é mais do que uma preparação para
sofo deve dedicar a sua atenção e ministrar os seus ensi- a morte, já o asseveravam os Gregos, nomeadamente Sócra-
namentos. Nalguns casos favoráveis (e podemos supor que tes. A consideração da morte, meta inevitável e universal,
tal teria sido o caso de Séneca em relação a Lucílio) o é uma preocupação constante para Séneca. Continuamente
filósofo logrará conseguir que o seu discípulo, embora não ecoa nas cartas o apelo à meditatio mortis, não como
tendo atingido o grau de sábio, pelo menos tenha progre- exercício mórbido e quase masoquista impeditivo da ale-
dido o suficiente para se ter a certeza de que não retrocederá. gria de viver, mas precisamente como forma de permitir
Assim agiu Séneca em relação a Lucílio, e certamente a distinção entre o que é valor e o que o não é e de
também em relação a outros discípulos; mais, assim agiu lograr uma alegria de vida feita de serenidade, nos antí-
ele em relação a si próprio. Nunca Séneca se considerou podas das meras satisfações materiais.. A alegria (gaudium)

XLII XLIII
não se confunde com o prazer (uoluptas); a alegria é um oriundos de filósofos de tendências tão opostas como os
estado interior que nada tem a ver com os falsos "bens" estóicos e os epicuristas. A confirmar a justeza aparente
em que a sociedade - communis opinio - se reconhece. desta visão está a possibilidade de detectar e isolar os
A meditação sobre a morte mais não é do que o instru- elementos provenientes do estoicismo daqueles que são
mento que permite ao homem a transformação da uolup- oriundos de outras tendências ou deste ou daquele pensa-
tas em gaudium. Essa transformação conseguiu-a Séneca dor individual.
no termo da vida: ele próprio seria o primeiro a reconhe- Em contraste com este dado factual deparamos com a
cer que, se em vários períodos da sua existência viveu ocorrência frequente nos texto de Séneca de passos em
mal, soube pelo menos, no momento decisivo, morrer que ele reivindica a sua originalidade, nega todas as ten-
bem. Tal resultado ficou a devê-lo exclusivamente à nunca dências dogmáticas, rejeita Zenão e aproxima-se de Epi-
interrupta prática da filosofia, ao exercício quotidiano da curo, insere uma ideia de Platão num desenvolvimento de
meditação, e acima de tudo à afirmação categórica da vontade. base estóica, critica, às vezes asperamente, as vozes mais
Uma análise de referência positivista não deixará de autorizadas da Escola, em suma, recusa todo o argumento
investigar até que ponto o pensamento de Séneca se reveste derivado da autoridade e reclama o direito de pensar pela
de originalidade, tanto mais que ele é confessadamente própria cabeça. Como conciliar então estes dois dados ins-
adepto de uma filosofia que já encontrou formada, e não critos ambos nos textos?
criador de qualquer novo sistema. Tudo depende afinal do que se entender por originali-
Quais as "fontes" utilizadas por Séneca nos seus escri- dade. Se por tal considerarmos a criação ex nihilo de
tos, e nomeadamente nas Epistulae? A lista dos autores todos os elementos do seu pensamento é evidente ao mais
referidos no texto é considerável (e certamente não com- leigo que a filosofia de Séneca não é original. Mas se,
porta a totalidade dos que Séneca conheceu), desde filóso- olhando o problema por outro prisma, tendermos a bus-
fos a poetas e oradores das mais variadas tendências. Se car a originalidade no modo particular como o filósofo
nos fixarmos apenas na lista dos filósofos, nela encontra- vive o seu pensamento a questão revestirá um aspecto
mos os antigos mestres do Pórtico (Zenão, Cleantes, Cri- diferente. Adaptando esta óptica verifica-se infrutuoso todo
sipo ), os pensadores do estoicismo "médio" (Panécio e o estudo que se faça das fontes de Séneca, pois a vivência
Posidónio ), vários outros adeptos da Stoa, Sócrates, Platão pessoal da sua filosofia é, por definição, algo que se encontra
e Aristóteles, mestres não identificados individualmente mas na vida do próprio filósofo, nas relações que ao longo dos
apenas pelo nome da escola (cínicos, cirenaicos, peripatéti- anos foi mantendo com ela, no modo como esta, em cada
cos), pensadores romanos (Cícero, os Sêxtios), os mestres momento da sua existência, determinou a sua acção e deu
da juventude de Séneca (Papírio Fabiano, Demétrio), e forma às suas atitudes. Afirma I. Hadot que a indepen-
não fica esgotado o elenco. Daqui pensar-se que a filosofia dência tão frequentemente reivindicada por Séneca deve
de Séneca não passa de uma espécie de "mosaico': de um ser encarada mais como expressão de uma disposição inte-
eclectismo mal assimilado em que coabitam pensamentos rior do que como originalidade filosófica propriamente dita.

XLIV XLV
Cremos ser exaçta esta afirmação. A independência de obriga à contínua meditatio mortis, porquanto num mundo
Séneca é, de facto, interior, resultante da interacção entre feito de convenções e constrangimentos de toda a ordem
a vida e o pensamento, é uma conquista gradual que só a morte surge como a única forma possível de assegurar a
no momento de escolher a morte se revelou em toda a liberdade. É de notar, quanto a este ponto, a abundância
sua amplitude; mais do que naquilo que pensou, está na de textos em que Séneca fala sobre o suicídio e a defesa
forma como o pensou. que faz, sob certas condições, desta forma de abandonar a
Não quer isto dizer que seja totalmente impossível existência. Séneca é, em certa medida, um apologista do
reconhecer elementos de originalidade, no sentido tradi- suicídio, até porque é talvez a única situação em que o
cional, na obra da Séneca, em especial nas Epistulae. homem se pode mostrar total e absolutamente livre. Como
Na base de todo o pensamento senequiano está a ele diz numa das Epistulae, nenhum homem é livre de
delimitação rigorosa do bem e do mal que, para o filósofo, escolher o momento de nascer, mas cada um tem a liber-
se situa unicamente na esfera da moral. Daqui decorre dade de escolher o momento em que quer morrer. No
tudo o que ele exprime sobre o valor da actividade inte- entanto não defende o suicídio em quaisquer circunstân-
lectual, sobre a investigação científica, sobre o progresso cias, mas exclusivamente quando o continuar vivo só é
tecnológico. Nestes pontos Séneca é do mais extremo rigor: possível com o abandono do bem moral. Por isso Séneca
o progresso tecnológico não é realmente progresso, por- só aceita o suicídio, por exemplo no caso de uma doença
quanto situado na esfera material, e toda a forma de pro- incurável, se a doença é de molde a obnubilar a razão,
gresso material é estritamente independente do progresso mas já não o aceita se o objectivo for unicamente o de
moral, o único a merecer este nome; a investigação cientí- evitar a dor física. Mas fundamentalmente Séneca de/ende
fica não deve visar qualquer forma de domínio sobre a a morte voluntária quando as condições exteriores, nomea-
natureza, mas tão só um cada vez maior conhecimento da damente as condições de ordem -política, tornarem impos-
mesma que permita uma também cada vez maior integra- sível a vida com dignidade, isto é, conduzida em estrita
ção nela do homem, e quanto às diversas formas de acti- obediência aos valores morais.
vidade intelectual só possuem sentido se, de alguma maneira, E já que falámos de política, impõe-se assinalar, como
tenderem para o aperfeiçoamento moral e não apenas traço original de Séneca, a importância que no seu pen-
para a acumulação de conhecimentos estéreis. samento reveste esta área da actividade humana. Uma
O fim último, portanto, de todo o pensamento é a precisão neste capítulo é tanto mais necessária quanto nas
obtenção daquela serenidade de espírito, daquela tranquilli- cartas que dirige a Lucílio, Séneca está constantemente a
tas animi que permite ao homem a independência em negar o valor da acção política e a aconselhar o amigo a
relação quer aos constrangimentos sociais, quer às obriga- renunciar à carreira. Na realidade os mestres antigos do
ções políticas, quer à tirania da communis opinio, quer Pórtico de/endiam a participação do homem, e nomeada-
ainda à obediência acrítica aos dogmas da própria escola mente do filósofo, na vida da cidade, conquanto se não
filosófica. Em última análise a busca da independência saiba que algum deles tenha pessoalmente desempenhado

XLVI 4 XLVII
funções políticas. Séneca, porém, levou a sério a injunção mam as posições de Séneca de algumas formas do pensa-
dos antigos mestres e quer pela escrita quer pela acção foi mento oriental e mesmo da de certos místicos. De entre
um participante activo da política romana. Textos como o elas salientamos a forte disciplina física que Séneca defende
Da cólera ou o Da clemência, até mesmo a Consolação a (e obviamente pratica), e que se evidencia pela recusa das
Políbio ou a Sátira à morte de Cláudio têm, entre outras, "comodidades da civilização" ou dos requintes gastronómi-
uma forte motivação de ordem política. Quando, após a cos. Não se trata de qualquer tipo de "mortificação da
morte de Cláudio e o acesso de Nero ao poder, Séneca carne" como forma de expiação de pecados (a noção de
orientou a política romana a título de conselheiro do jovem "pecado" em sentido cristão não existe para Séneca), mas
imperador, fé-lo porque pensou ter nas mãos uma opor- de uma forma de exercício da vontade e de uma necessi-
tunidade única de agir, através da política, sobre a vida dade de libertar o espírito e torná-lo mais ágil e robusto.
moral de Roma. Só que as realidades do poder e o idea- Aliada à concomitante prática da meditação, a austeridade
lismo da filosofia uma vez mais se mostraram inconciliá- física lembra-nos (embora seja difícil determinar se esta-
veis, e o resultado foi Séneca ter de acabar por afastar-se mos perante um caso de influência ou de simples coinci-
do exercício de um poder que cada vez mais lhe escapava. dência de propósitos) das técnicas indianas do yoga.
Daí que ele tenha afirmado no seu breve escrito Sobre o Também merece realce, na sequência de um ponto já
ócio, em resposta precisamente a uma objecção de Lucílio atrás aflorado (a comparação entre o filósofo e o médico),
que estranhava ver Séneca, contrariamente aos princípios a preocupação manifestada por Séneca pela análise da rea-
da Escola, defender o afastamento do sábio da vida pública: lidade psicológica dos seus "pacientes': não, insistimos, uma
o sábio só deve participar na vida política se o puder análise de tipo meramente científico, mas antes de carác-
fazer dentro da maior dignidade e se a sua acção tiver ter terapêutico: o filósofo interessa-se pelos mecanismos
hipóteses de ser benéfica para a comunidade; se, pelo con- que ditam o comportamento, por exemplo de Lucílio, para
trário, as condições forem tais que o sábio só possa estar pela sua análise ser capaz de detectar a "doença" e propor
na política com o abandono da moral, então deverá retirar- a aplicação de um "tratamento". Será arriscado ver assim
-se. Tais condições impuseram o afastamento de Séneca, e em Séneca um precursor da psicanálise?
constituíram o cenário em que escreveu as Epistulae morales Finalmente refiramos o que Séneca pensa sobre o pro-
ad Lucilium. Não há, pois, contradição, apenas a necessi- blema da acção. Por tudo quanto ficou dito já se viu que
dade de salvaguardar a independência e a dignidade moral Séneca nega qualquer valor à acção em si mesma. O valor
ameaçadas. da acção radica no seu fundamento ético: fazer um benefí-
Mas o traço mais original do pensamento senequiano, cio, orientar, ensinar, meditar, praticar austeridades físicas,
como já temos dito, está na insistência em que a filosofia só vale se praticado com um propósito moral. Viver com
é para ser vivida e nunca se deve limitar a uma acumula- austeridade apenas para grangear fama de filósofo na socie-
ção de conhecimentos desprovidos de valor moral. A vivên- f
dade é por completo condenável. Séneca apenas propugna
cia da filosofia implica uma série de técnicas que aproxi- a acção quando ela é o resultado de um compromisso

XLVIII XLIX
ético. Isto significa que importa distinguir no pensamento
senequiano o que seja acção, não-acção e inacção. Sobre-
tudo não se caia na tentação de confundir não-acção (otium)
com inacção. No que toca às duas últimas categorias, enquanto
não-acção significa renúncia à acção como valor, capaz de
se sobrepor a considerações de ordem moral, inacção não BIBLIOGRAFIA
passa de preguiça quer física quer intelectual e egoísmo
as.sente no _mais crasso materialismo. Para o filósofo a
primeira transparece no otium que pode ser altamente
benéfico, mesmo para a sociedade; a segunda é por com-
pleto estéril. Como diz o filósofo chinês Lao Tse, "do não
agir é que resulta toda a acção': enquanto da acção enten- TEXTO
dida como valor em si somente decorre a confusão, o caos
e a perversão dos valores. A edição que nos serviu de base para a nossa tradução
foi a de Reynolds :
L. Annaei Senacae ad Lucilium Epistulae Morales
recognouit et adnotatione critica instruxit L. D. Reynolds
(Oxford Classical Texts), Oxford University Press 1965.
Muito raramente, num· ou noutro passo devidamente
identificado nas notas, seguimos o texto da Colection des
Universités de France: Séneque, Lettres à Lucilius, texte
• ! \
établi par François Préchac et traduit par Henri Noblot,
Paris, Société d'Édition Les Belles Lettres, 1945-1964 (reim-
pressões várias), ou de algum outro editor citado no apa-
rato crítico da edição Reynolds.

ESTUDOS
A bibliografia sobre o esto1c1smo em geral e sobre
Séneca em particular é extremamente vasta, e não cessa
de crescer. Cada ano assiste ao aparecimento de algumas
largas dezenas de títulos, variamente importantes, quer
sob a forma de livros ou de artigos de revistas e enciclo-

L LI
pédias. Seria manifestamente impossível e excessivo sobre- in A. N. R. W. [=Aufstieg und Nierdergang der romis-
carregar esta tradução das Cartas a Lucílio com uma biblio- chen Welt], I, 4, pp. 3-42.
grafia, já não dizemos exaustiva, pois para tanto seria Sobre a obra de Séneca em geral, vista em correlação
necessário um volume de proporções idênticas às do texto, com a sua biografia, pode ler-se o livro de Marc Rozelaar ,
mas pelo menos razoavelmente completa. O leitor even- Seneca, Eine Gesamtdarstellung, Amsterdam, Hakkert, 1976
tualmente interessado encontrará nos volumes de L'Année e a obra de Pierre Grimal Séneque ou la conscience de
Philologique toda a informação pertinente. Acresce que l'empire, Paris, Les Belles Lettres, 1978; excelente visão de
muitas das obras abaixo enumeradas são acompanhadas de conjunto, embora por vezes de/endendo posições algo polé-
amplas e criteriosamente escolhidas listas de obras a con- micas (por exemplo ao considerar a correspondência entre
sultar. Limitamo-nos por isso a sugerir alguns textos par- Séneca e Lucílio como uma mera ficção literária), o estudo
ticularmente relevantes. de Karlhans Abel Seneca. Leben und Leistung" in A. N.
11

Sobre o estoicismo em geral são imprescindíveis: a R. W., II, 32.2, [Berlin, de Gruyter, 1985] pp. 653-775
colectânea dos fragmentos dos antigos Mestres: Stoicorum (importante bibliografia). Embora já antigo, é, no entanto,
Veterum Fragmenta preparada por Hans von Arnim ainda estimulante pela novidade das suas posições o artigo
[Stuttgart, B. G. Teubner, 1965 (repr.)], que citamos pela 11
do historiador Arnaldo Momigliano Seneca between poli-
sigla S. V. F. seguida do número do volume em algaris-
tical and contemplative life" (conferência realizada em 1950
mos romanos e do número do fragmento em algarismos
árabes; e o estudo, ainda hoje a mais completa obra de mas só publicada no volume de ensaios Quarto contributo
conjunto sobre esta corrente filosófica, de Max Pohlenz alla storia degli studi classici e del mondo antico, Roma,
DIE STOA - Geschichte einer geistigen Bewegung, Got- 1969, pp. 239-256).
tingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1970 [4.ª repr.] Sobre Séneca filósofo, além dos capítulos pertinentes
Úteis ainda os volumes de F. H. Sandbach The Stoics, das obras citadas, podem ler-se:
London, Chatto & Windus, 1975; de Ludwig Edelstein Pierre Grimal, Séneque, sa vie, son oeuvre avec un
The Meaning of Stoicism, Cambridge, Mass., Harvard exposé de sa philosophie, Paris, P. V. F., 1966 (3.ª ed.);
Vniversity Press, 1966 [repr. 1968),' de ]. M. Rist Stoic Estudios sobre Séneca - ponencias e comunicaciones,
Philosophy, Cambridge, at the University Press, 1969; a Octava semana espanola de filosofia, Madrid, C. S. I. C., 1966;
colectânea de artigos de vários especialistas sobre pontos Gregor Maurach (ed.), Seneca als Philosoph, Darms-
diversos da filosofia estóica organizada pelo mesmo ]. M, tàdt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1975; o volume
Rist The Stoics, Berkeley and Los Angeles, University of
paralelo Senecas Tragodien [ibid. 1972], editado por Eckard
California Press, 1978; de A . A . Long Hellenistic Philo-
Lefevre, contém alguns artigos dedicados aos aspectos filo-
sophy - Stoics, Epicureans, Sceptics, London, Duckworth,
[1974]. Sobre os problemas decorrentes da introdução e sóficos das tragédias senequianas.
adaptação do estoicismo em Roma veja-se o artigo de Em português, é merecedor de uma leitura o ensaio,
Gérard Verbeke "Le stoicisme, une philosophie sans frontieres" pequeno em tamanho, mas estimulante pela reflexão, do

UI LIII
Padre Manuel Antunes "Séneca, filósofo da condição
humana", in Grandes contemporâneos, Lisboa, Verbo,
[1973], pp. 11 -20.
Sobre a incidência política do pensamento senequiano
merece uma leitura a tese de Fernando Prieto El pensa-
miento político de Séneca, Madrid, Revista de Occidente, LIVRO I
1977.
Finalmente recomendamos a leitura de uma obra de (Cartas 1-12)
Ilsetraut Hadot, Seneca und die griechisch-romische Tradi-
tion der Seelenleitung, Berlin, de Gruyter, 1969, indispen-
sáv~l para entender os objectivos de Séneca como filósofo 1
não meramente teórico, mas antes como pedagogo, como Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de 1
maitre à penser, ou ainda, conforme alguém já lhe cha- dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até
mou, director de consciência, bem como para compreender
agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das
a razão de ser de certas aparentes contradições no pensa-
mãos. Convence-te de que as coisas são tal como as des-
mento do filósofo e para avaliar na sua justa medida o
crevo : uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-
carácter da sua originalidade e importância.
-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o
pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se
bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal,
durante a maior parte não agimos nada, durante toda a
vida agimos inutilmente. ,
1
Podes indicar-me alguém que dê o justo valor ao tempo 2
(
\ aproveite bem o seu dia e pense que diariamente morre '
~ um pouco? É um erro imaginar que a morte está à nossa
~ frente : grande parte dela já pertence ao passado, toda a
1
l nossa vida pretérita é já do domínio da morte!
'. Procede, portanto, caro Lucílio, conforme dizes: preen-
!1 che todas as tuas horas! Se tomares nas mãos o dia de
! ho!e conseguirás .depender m~nos ?º dia de amanhã. De Í'
1 adiamento em adiamento, a vida vai-se passando. 1
/

\ Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nossa. 3


A natureza concedeu-nos a posse desta coisa transitória e

uv 1

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