INTRODUÇÃO AO CADERNO ESPECIAL: CAMINHOS PARA OS MUNICÍPIOS NO SÉCULO 21
POLÍTICAS PÚBLICAS E DESAFIOS
PARA A GESTÃO LOCAL
A autonomia no federalismo brasileiro trouxe robusto status
constitucional aos municípios, processo que veio acompanhado de
aumento significativo de responsabilidades.
Fernando Luiz Abrucio – Professor da FGV EAESP
E-mail:
[email protected]Eduardo Grin – Professor da FGV EAESP
E-mail:
[email protected]E
xistem 5.569 municípios no Brasil, o que não é nada trivial, considerando que no federalismo
brasileiro os governos locais são dotados de ampla autonomia garantida constitucionalmente.
Conforme a Constituição Federal (CF/88), a organização político-administrativa da Federação
compreende a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, todos autônomos entre si,
conforme o artigo 1º, gerando um pacto indissociável1. O município é uma unidade integrante
do sistema federativo e não está subordinado a nenhum nível superior de governo, como costuma ser a
regra na maioria das federações, a exemplo dos Estados Unidos, México, Argentina e Canadá, onde municí-
pios são criações dos estados ou das províncias.
A autonomia municipal é a pedra angular de várias disposições constitucionais que atribuem poderes
aos municípios para constituir o seu próprio governo, organizar serviços, elaborar suas próprias leis e se au-
togerir, de acordo com o ordenamento jurídico do país2. A autonomia significa capacidade de autogoverno,
auto-organização, autolegislação e autoadministração3. Em outras palavras: autonomia política, adminis-
trativa e financeira são as dimensões-chave.
A autonomia política municipal ficou assegurada constitucionalmente pela eleição direta do prefeito e
de seus vereadores (artigo 29 da CF/88), pelo poder de se auto-organizar por meio de Leis Orgânicas Mu-
nicipais, pela capacidade de regulação e execução dos serviços públicos sob sua titularidade, pela compe-
tência de legislar sobre assuntos que lhe são reservados de maneira exclusiva e nos demais temas de modo
suplementar4. Após 1988, os municípios foram autorizados a aprovar, nas Câmaras de Vereadores, suas Leis
Orgânicas e as emendas propostas por um terço dos vereadores ou pelo prefeito.
A autonomia administrativa conferida às municipalidades permite legislar sobre questões de interesse
local e complementar a legislação federal e estadual quando possível. Possibilita criar e arrecadar impostos
próprios; organizar e executar serviços públicos de interesse local; manter programas nas áreas de educação
infantil e fundamental e na área de saúde; promover ordenamento e controle do uso do território, além de
parcelamento e ocupação do solo; aprovar, por lei, o Plano Plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamento
anual; e implementar política de desenvolvimento urbano.
A lista de questões sobre as quais os municípios podem legislar é extensa, de acordo com a CF/88: nor-
malizar questões de interesse local; criar e cobrar impostos próprios e aplicar seus rendimentos; comple-
mentar a legislação federal e estadual quando aplicável; criar e suprimir divisões administrativas em seu
território, obedecendo à legislação estadual; prestar, diretamente ou mediante concessão ou autorização,
serviços públicos de interesse local, inclusive transporte coletivo; manter, com cooperação técnica e finan-
ceira federal e estadual, programas de educação infantil e ensino fundamental e atenção à saúde da popu-
lação; promover o ordenamento do território e o controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano
e proteger o patrimônio histórico-cultural.
GVEXECUTIVO | V. 23 N. 3 | 2024 | e92031 | eISSN 2965-0747 1
POLÍTICAS PÚBLICAS E DESAFIOS PARA A GESTÃO LOCAL
Os municípios ampliaram suas faculdades tributárias (arrecadam e instituem impostos sobre imóveis ur-
banos, serviços, transmissão de bens imóveis). Contudo, os municípios não podem criar impostos próprios,
tampouco deixar de cobrar aqueles que a CF/88 definiu. A competência de cobrar impostos sobre imóveis
urbanos (IPTU) ou o imposto sobre serviços (ISS) não pode ser delegada à União ou ao Estado Federado5. No
caso do ISS, as alíquotas são definidas pela legislação federal. O IPTU, baseado na autonomia local, pode ter
seus valores definidos pelos municípios. A CF/88 permite aplicar o princípio da progressão e forma de arre-
cadação de acordo com critérios sobre localização, idade e área do imóvel. Os municípios também decidem
as alíquotas do imposto sobre a transmissão de bens imóveis inter vivos (ITBI). Além disso, as localidades
possuem autonomia para implementar taxas semelhantes aos impostos, mas vinculadas às atividades que o
poder público oferece aos cidadãos, conforme definido no artigo 145 da CF/88. Essa possibilidade no campo
do Direito Tributário se insere no âmbito do exercício do poder de polícia2.
Contudo, se os municípios adquiriram um novo e robusto status constitucional, não menos importante é
considerar que esse processo veio acompanhado de um aumento significativo de responsabilidades. Os gover-
nos locais passaram a ser os principais responsáveis pela provisão de políticas sociais universais, que foram
crescentemente descentralizadas pelo governo federal. A provisão descentralizada de políticas sociais uni-
versais tornou-se uma realidade para os municípios. Essa não é uma tarefa trivial, principalmente porque a
CF/88 universalizou o acesso aos cuidados de saúde, por exemplo. A razão para a municipalização de serviços
públicos apoiada pelo governo federal foi garantir aos cidadãos das localidades acesso a cuidados de saúde e
educação com base em programas nacionais e padrões mínimos, independentemente do lugar onde vivem.
Nas últimas três décadas, os municípios tornaram-se a unidade federativa central para a implementação
e a prestação de políticas sociais. Novas atribuições descentralizadas ampliaram as demandas para qualifi-
car a gestão municipal para responder aos novos papéis e responsabilidades. Embora o aumento dos pode-
res tributários, um símbolo básico de autonomia financeira, permita expandir a receita local, a tarefa requer
modernização gerencial. O aumento de responsabilidades também requer mais servidores, o que impacta a
capacidade de gestão de recursos humanos, afora seus efeitos fiscais. A assunção de novas responsabilida-
des por políticas públicas requer avanços no seu planejamento local. Em resumo, mais responsabilidades
requerem mais capacidades estatais para responder às atribuições assumidas pelos municípios.
Nesse sentido, esta edição especial apresenta sete artigos que contribuem para a compreensão de áreas-
-chave de políticas públicas para a atuação dos municípios. A reflexão sobre alternativas que os governos
locais podem adotar faz-se importante para informar postulantes e eleitas(os) aos cargos de prefeitas(os) e
vereadoras(es). A autonomia desfrutada pelos municípios é ampla e permite a adoção de muitas políticas
públicas pelos governos locais. Também é verdade que os municípios vêm ampliando crescentemente suas
atribuições, sobretudo aquelas derivadas do governo federal – especialmente nas áreas de educação, saúde
e assistência social. Faz-se necessário aprofundar a discussão sobre caminhos e rotas que qualifiquem a
gestão municipal diante da relevância que essa esfera de governo ocupa na vida de cidadãos e cidadãs. Com
esse espírito, os trabalhos apresentados neste volume oferecem análises sobre as políticas públicas de mo-
bilidade urbana, educação, saúde, desenvolvimento local, cidades inteligentes, meio ambiente e mudanças
climáticas, além de gestão e planejamento municipal. Esperamos que as contribuições aqui apresentadas
sirvam para adensar o debate sobre instrumentos de ação pública que os governos locais podem adotar. De
modo especial, que as análises e propostas apresentadas nos artigos desta edição possam ser úteis para os
prefeitos e prefeitas que assumirão a condução da vida dos municípios brasileiros a partir de 2025.
NOTAS
1. Souza, C. & Grin, E. J. (2021). Desafios da federação brasileira: Descentralização e gestão municipal. In E. J. Grin, Demarco, D. J., & F. L.
Abrucio (Eds.), Capacidades estatais municipais: O universo desconhecido no federalismo brasileiro (pp. 86-124). Editora da UFRGS/CEGOV.
2. Pires, W. (2016). Municipalismo no Brasil: Origens, avanços pós-1988 e desafios atuais. Cadernos Adenauer, XVII(3), 125-146. https://
encr.pw/QUZPe
3. Resende, A. J. C. (2008). Autonomia municipal e lei orgânica. Cadernos da Escola do Legislativo, 10(15), 7-42. https://dspace.almg.
gov.br/handle/11037/1266
4. Losada, P. R. (2008). O Comitê de Articulação Federativa: Instrumento de coordenação e cooperação intergovernamental de políticas pú-
blicas no Brasil. XIII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Buenos Aires, Argentina.
5. Silva, A. C. (2009). Estado federal e poder municipal. Prismas: Direito, Políticas Públicas e Mundialização, 6(2), 351-378. https://www.
publicacoesacademicas.uniceub.br/prisma/article/view/759
GVEXECUTIVO | V. 23 N. 3 | 2024 | e92031 | eISSN 2965-0747 2