Revista África e Africanidades, Ano XIII – n. 36, nov.
2020 – ISSN: 1983-2354
Dossiê Africanidades e Afrobrasilidades: Estudos Literários e Linguísticos.
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AS RELIGIÕES TRADICIONAIS AFRICANAS E AS LITERATURAS
AFRICANAS
Silvio Ruiz Paradiso20
94 RESUMO: Este breve paper objetiva analisar a ideia de “religião tradicional africana”,
bem como sua forma de representação nas literaturas africanas, tanto numa
perspectiva estética, através do Realismo Animista, quanto do construto etnológico
psicossocial do pensamento animista. A discussão parte de um aporte bibliográfico
sobre o tema, perpassando as Ciências Sociais e da Religião, Antropologia, História
e, por fim, a Literatura.
PALAVRAS-CHAVE: Religiosidade. Animismo. Literatura. Realismo animista
DOI: 10.46696/issn1983-2354.raa.2020v13n36.dossielit94-108
20 Professor Doutor de Literaturas Portuguesas e Africanas em Língua Portuguesa da UFRB.
Doutor em Letras (UEL). Pós-doutorado em Literatura Africana Comparada (USP). Membro da
AFROLIC e líder do grupo de pesquisa LITERÁFRIKA (UFRB). Email:
silvinhoparadiso@hotmailcom.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Quando o escritor nigeriano, da etnia ibo, Chinua Achebe lançou o
romance Thinga Fall Apart21 (1958), a temática religiosa mostrou-se importante
dentro dos estudos pós-coloniais, e principalmente nas Literaturas Africanas. O
caso de Achebe foi um divisor de águas, pois ao mesmo tempo que
representava o primeiro romance africano em língua inglesa – levando em
conta o poder do mercado editorial inglês, foi o texto africano mais difundido
nos centros acadêmicos pelo mundo. Things Fall Apart acabou sendo traduzido
95 em mais de quarenta idiomas e vendeu milhões. Não há como ler este texto de
Achebe e não se debruçar com o fenômeno religioso, tanto do colonizador,
quanto do colonizado (PARADISO, 2019). Mas, durante décadas, o tema ficou
em segundo plano, pois os fenômenos religiosos nas literaturas africanas pós-
coloniais ainda não tinham sido sistematizados e teorizados suo modo para a
finalidade dos estudos coloniais, mesmo sendo a religião, o elemento que mais
interferiu nos processos colonizatórios entre os séculos XV e XX por todo
mundo.
A necessidade de se problematizar os aspectos religiosos nas
literaturas pós-coloniais se confirma e é atestada pelos grandes
teóricos dos estudos pós-coloniais. Um ano depois, em 2007, na
segunda versão de The post colonial studies: key concepts. Second
edition (2007:188), Aschcroft et al. revelam a necessidade de se
começar a atrelar os estudos da religião junto com os estudos pós-
coloniais, já que os escopos religiosos e políticos estão atrelados no
âmbito colonial: “Religion could therefore act either as a means of
hegemonic control or could be employed by the colonized as a means
of resistence”. (PARADISO, 2019, pp.43-44).
O problema é que os estudos sobre religiosidade nas literaturas pós-
coloniais sempre se debruçaram, em especial, na perspectiva cristã. Quando a
temática religiosa passou a ser estudada dentro das Literatura Africanas, a
questão tornou-se mais complexa, pois não havia o entendimento de “religião”,
tal qual o pensamento filosófico religioso ocidental desenhava. Era necessário,
primeiro, pensar se existia uma “religião africana” e o que ela seria. Toda essa
questão precisava ser pelo menos problematizada, pois as práticas religiosas
de vários grupos africanos eram recorrentes nas narrativas literárias do
continente, perpassando romances, contos, poesia e drama, de forma indireta
ou direta, através de um imaginário religioso tradicional.
21 A discussão sobre os estudos religiosos na literatura africana ganha notoriedade apenas com
Things Fall Apart (1958), de Chinua Achebe, principalmente por sua disseminação editorial.
Ainda que quase oito décadas antes, o precursor literário da prosa moderna em Língua
Portuguesa em África, Nga Muturi (1882), de Alfredo Troni, citava indiretamente as práticas de
feitiçaria da protagonista, o texto não tinha como foco a questão da religiosidade, e assim
desconsiderou-se a discussão. No caso da África de Língua Inglesa, The Palm-Wine
Drinkard (1946, publicado em 1952), de Amós Tutuola, doze anos antes de Achebe, apresentar
a religiosidade iorubá de forma amplamente, sendo até mesmo um dos primeiros textos com o
Realismo animista, porém, não teve popularidade como a obra achebiana.
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Contudo, esse imaginário religioso, conforme Kimmerle (2011), tem suas
especificidades e suas práticas baseados em um conjunto de manifestações
culturais e espirituais originárias pré-colonização, que têm em comum um
pensamento animista, e são manifestadas através de ritos, hierarquias
definidas e, às vezes, com o uso de objetos, plantas e/ou animais e
experiências de caráter extra-sensoriais. Nem sempre o que nós, ocidentais,
achamos ser uma pratica religiosa, ela o é para os africanos, e vice-versa.
Opuku (2010, p.592) revela que esse entendimento de “religião” ou
96 “religiosidades”, seriam em África, uma concepção própria de mundo e de
homem, que abrangeria: “a percepção do sobrenatural [...], a compreensão da
natureza do universo, dos seres humanos e do seu lugar no mundo, assim
como a compreensão da natureza de Deus, cujo nome variava de uma região
para outra”.
Não se pode ignorar a presença desse conjunto, que chamo de
“religiosidade tradicional africana”22, na literatura africana, pois se permitira
uma lacuna metonímica no sentido geral daquele texto e de sua proposta.
Não existe qualquer dimensão importante da experiência humana
que não esteja ligada ao sobrenatural, ao sentimento popular
religioso [...] tudo isso, constitui parte integrante da estrutura
ideológica da sociedade tradicional e é essencial para uma
interpretação exata da experiência no contexto social tradicional.
(OBIEHINA, 1978, p.208).
Porém, para isso é preciso de uma nomenclatura correta para se referir
a esse universo religioso, a fim de ser debatido dentro da crítica literária,
compreendê-lo e aprofundá-lo.
Deste modo, este texto divide-se em três partes: A Primeira discute
antigas nomenclaturas coloniais; a segunda analisa o termo mais difundido nos
estudos acadêmicos, as Religiões Tradicionais Africanas; e por fim, na última
parte, a importância destas Religiões no estudo das Literaturas Africanas.
ANIMISMO, FETICHISMO E TOTEMISMO: IDEIAS COLONIAIS
Falar de “religião” no contexto africano é um desafio. Primeiro, porque
África é um continente com 54 países, distribuídos em cinco regiões (África
Setentrional, África Meridional, África Central, África Ocidental e África
Oriental), e que além das nações oficiais, ainda abrange territórios não
reconhecidos politicamente. O continente abriga mais de 1,2 bilhões de
habitantes e aproximadamente 500 grupos étnicos, que utilizam ao menos 40
línguas diferentes. Essa diversidade continental garante-lhes, uma variada
cultura, formas políticas, tradições e costumes, e claro, seus respectivos
conjuntos de crenças. Há de se pontuar que o próprio entendimento de “etnia”
já não há consenso, pois o que se entende hoje por grupos étnicos são, talvez,
“categorias históricas” (AMSELLE, M’OKOLO, 2017). Estas categorias
indicariam que dentro das próprias etnias há divergências motivadas
geograficamente (advindas das “novas” fronteiras coloniais) ou pela dinâmica
cultural através do contato com a escrita (pré e pós-colonização). Se dentro do
22 Ou “Religião Tradicional Africana”, como é mais recorrente no meio acadêmico.
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mesmo grupo étnico há diferenças, devemos entender que o conjunto de
crenças deste grupo, também poderá ter distinções, ainda que pequenas.
Até pouco tempo, este conjunto de crenças recebeu vários nomes, como
Animismo, Fetichismo ou Totemismo, pensados a partir do período colonial
africano. O filósofo queniano, John S. Mbiti entende que estes conceitos não
são adequados à análise das religiões tradicionais africanas. (GROMIKO,
1987), pois todos os três termos foram conceituados a partir do contexto
colonial, imbuindo-lhes pensamento etnocêntrico e colonialista.
97 Latour (2002, p.11), em seu texto: Reflexão sobre o culto moderno dos
deuses fe(i)tiches, cita sobre a percepção dos povos colonizados em relação
ao uso do termo “fetiche”: Eles [os europeus] partem em expedição a outras
nações, apropriam-se conspurcando-as com as palavras: “fetiches! fetiches!”,
que em sua língua bárbara parece significar “fabricação, falsidade, mentira.
Latour (2002, p.16) revela que o termo “fetiche” foi dado a essas peças para,
justamente, revelar sua ineficácia, isto é, fetiche, do adjetivo feitiço, originário
de feito, particípio do verbo fazer, forma, figura, artificial, fabricado. O fato é que
o termo fetiche em seu sentido stricto, expõe os próprios povos que o criaram
e, consequentemente, suas crenças. O fetiche, originário da palavra
portuguesa feitiço, seria um objeto para o qual é atribuído poderes mágicos23
e/ou sobrenaturais, dando-lhe caráter sagrado. Em tese, uma cruz em um
contexto religioso é um fetiche. Contudo, o colonizador separou os objetos e a
parafernália mágicos das religiões em dois grupos, relacionando-os às suas
divindades: os objetos sagrados verdadeiros, de culto ao Deus tido como
verdadeiro- no caso o Deus judaico-cristão - e os objetos falsos, os fetiches,
ligados ao culto dos deuses tidos como falsos.
A mesma coisa refere-se aos termos totem e totemismo. Diferente do
fetiche, têm sua origem na América do Norte entre os povos indígenas. Talvez,
sejam oriundos de dodaim ou doodem, do dialeto algoquiano ojibwe, que
significa “clã”, “aldeia” ou “residência”. O Totem seria a representação de seres
vivos, como um animal, pessoa ou planta, e ali residiria antepassados ou
divindades, sendo venerados como símbolo sagrado (JUNOD, 1924). O culto
ao totem, ou seja, o totemismo, é, segundo Lopes (2011, p.1404), uma
“associação simbólica de certos grupos sociais com plantas, animais e objetos,
em geral representativos de ancestrais mitológicos”.
No capítulo Fetiches Animistas e Cristãos, em Religião e Religiosidade
nas Literaturas africanas pós-coloniais (2019) discuto um pouco as
terminologias e a necessidade de ressignificá-las24, e não as cancelar.
23 O termo mágico no contexto africano deve ser usado com cautela. A magia aqui não está
ligada ao “magico” ocidental, refletido na ideia de “fantástico”, ou além do real. A magia africana
não necessariamente está ligada apenas à religiosidade, mas também como a ciência do
continente. A magia africana deve ser entendida como fenômenos de manipulação da natureza,
sendo ela física ou espiritual.
24O termo Fetiche, por exemplo, apesar de ter sido criado pelo europeu, com significado
pejorativo, tem em si uma carga de ressignificação, pois ainda que o fetiche não seja nada
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Lopes, em sua Enciclopédia da Diáspora Negra, conceitua Fetiche,
como: “Designação europeia e ocidental para qualquer objeto material,
trabalhado ou não, em que se deposita a força vital de um ser espiritual”. Já
Fetichismo, o autor conceitua como
Antiga classificação atribuída às religiões tradicionais africanas, na
suposição de que elas envolvem adoração a seres inanimados tidos
como dotados de espíritos sobrenatural. Veja-se, entretanto, que as
religiões africanas, no continente de origem e na Diáspora, apenas
elegem determinados objetos como morada simbólica de seres
98 espirituais. (LOPES, 2011, p.116).
Percebemos que o problema do termo, está mais em sua generalização
do que propriamente em sua etimologia e conceito inicial.
Contudo, os termos Animismo e Animista são os que precisam de maior
reflexão e debate, pois são usados ainda hoje por pesquisadores, dentro e fora
de África. Pessoalmente, não vejo problemas no uso, principalmente, dentro da
perspectiva literária que nos debruçamos. O problema do termo, novamente, é
a possível generalização.
Lopes (2011, p.577) discute o termo animista, não o nega, apenas não o
usa como sinônimo das religiões tradicionais africanas, bem como pontua que
a crença no anima não é a única característica destas religiões.
Em tese, as religiões africanas têm base animista, mas não podem ser
vistas como animista em seu todo, justamente, porque animismo não é uma
religião, mas um modo filosófico de ver o mundo (PARADISO, 2020).
A palavra animismo/animista advém da palavra latina anima25 (alma), e
foi explorada por Georg Ernst Stahl, em 1720, para se referir ao "conceito de
que a vida animal é produzida por uma alma imaterial. Mas redefinida pelo
antropólogo inglês Sir Edward B. Tylor, em 1871, na obra Primitive Culture (A
Cultura Primitiva), significando que “todas as coisas têm anima (alma;
espíritos)” (apud PARADISO, 2019, p.123). Os antropólogos James Frazer e
Edward B. Tylor falharam ao elaborar teorias em que o animismo seria um
primeiro estágio para assim, chegar ao monoteísmo, estágio “superior”. O uso
errado de uma ideia sobre o animismo nos séculos XVIII e XIX, baseou-se na
crença em que o monoteísmo seria o auge da religiosidade humana, levando a
crer que o pensamento animista seria “primitivo”. Entretanto, a ideia nuclear do
conceito animista nada tem a ver com religião em si, mas na ideia que em tudo
há alma, e que esse tudo pode ser passível de culto. Além disso, o pilar do
animismo é o cíclico e continuum processo de transição deste anima, o que
esbarra nas práticas da “ancestrolatria, a primeira e a mais evidente das suas
senão aquilo que o homem faz dele, ele pode inverter a origem da ação, cancelando ou
invertendo a alteridade, tendo opção de criar e destruir criadores e criaturas.
25Tem a mesma ideia do termo hebraico néfesh, do termo sânscrito ãtman e do grego psykhé.
Seu significado perpassa desde “alma” até “força vital”.
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instituições religiosas” (JUNOD, 1974), em que as almas ancestrais fazem um
ciclo entre passado, presente e futuro.
Movidas por essa noção de força vital, as comunidades centro-
africanas preservavam o valor da solidariedade, entendida como
vivência compartilhada dessa energia. Nessa teia, a pessoa estava
diretamente conectada aos membros daquela localidade, aos reis,
chefes e sacerdotes, aos seus descendentes, ascendentes,
antepassados, ancestrais e à própria divindade suprema. Todos se
influenciavam mutuamente, seja para aumentar a vida, seja para
99 debilitá-la. Como parte de uma cadeia hierárquica, um ser humano
(em sua própria força vital) estava subordinado a outras forças vitais
maiores (DAIBERT, 2015, p.14).
Assim, esse modo de ver a vida humana e espiritual, ou pensamento
animista, é a base da cosmovisão de grande parte da tradição religiosa
africana. Freud, já no início do século XX, afirmava que “o animismo era uma
concepção de mundo própria de certas sociedades” (apud PARADISO, 2019,
p.129). Em Animismo, Magia e Onipotência das Ideias (1913) o psicanalista fez
um apanhado teórico acerca do animismo e conclui que ele é um sistema de
ideias: “O termo animismo serviu antigamente para designar determinado
sistema filosófico [...] O que provocou a criação desse termo foi o exame das
interessantíssimas concepções dos povos primitivos, pré-históricos ou
contemporâneos, sobre a natureza e o mundo” (apud PARADISO, 2019, p.129.
Grifo do autor).
Esse pensamento animista tem elementos recorrentes, conforme Souza
(2012) e Altuna (1985), como por exemplo: crença numa existência, ordem e
manifestação dos mundos visível e invisível. No mundo invisível: a divindade
suprema, os arquipatriarcas, os espíritos da natureza, os ancestrais e os
antepassados. No mundo visível, os reis, os chefes de reino, tribo, clã ou
família, os especialistas da magia (curandeiros e feiticeiros), os anciãos, a
comunidade, o ser humano, os animais, os vegetais, os minerais, os fenômenos
naturais e os astros. Estes dois mundos podem ser passiveis não só de crença,
mas de culto. Há ainda a crença no pós-morte; culto aos antepassados
(ancestolatria); a existência de possessão espiritual; a crença em magia e na
possibilidade de manipulação dela; o uso de objetos sacralizados de ordem
fetichista (parafernália sagrada: totens, máscaras, fetiches, amuletos, ídolos,
vestes, objetos litúrgicos etc.), entre outras características.
Altuna (1985, p.380) ainda revela que “a essência da religião africana
consiste em vivência prática e não em explicação teológica”, ou seja, o
pensamento animista, bem como as tradições religiosas indígenas de África
fazem parte do dia a dia, sendo um meio para entender a vida dos africanos.
Assim, podemos compreender que o conjunto de crenças religiosas
africanas não podem ser chamado apenas de “fetichistas”, “totêmicas” ou
“animistas”, mas que possuem elementos fetichistas e totêmicos, sem isso
significar algo pejorativo ou primitivo. Também, esse conjunto não pode ser
chamado simplesmente de animista, mas que possui o pensamento animista
como base filosófica. Se estes termos são falhos, a partir da realidade prática
destas práticas religiosas, qual o melhor termo a ser usado?
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CONCEITUANDO RELIGIÕES TRADICIONAIS AFRICANAS
Hoje, na academia em geral, tanto no campo da Antropologia, das
Ciências Sociais, História e áreas fins, o termo usado para o conjunto de
experiências e práticas religiosas anterior da chegada dos colonizadores (e que
permanece até hoje) é Religião Tradicional Africana/Religiões Tradicionais
Africanas. Prefiro o termo Religiosidades Tradicionais Africanas, visto que o
termo Religião, como veremos adiante, é intimamente ligado à instituição, a um
acordo social ou organização, enquanto que Religiosidade se liga ao
100 sentimento, à pratica da fé, sem muitas predeterminações (HOLDCROFT,
2006). A religiosidade se manifesta através de “experiências” mais práticas,
comportamentais e/ou cognitivas. Entretanto, o termo Religião Tradicional
Africana é o mais recorrente e corrente nos meios científicos. Quando o
usamos, referimo-nos às crenças e práticas culturais que constituem a
religiosidade e vida da África Subsaariana, conhecida também como “África
Negra”.
A partir disso, é necessária uma reflexão pontual nas três palavras que
formam este termo. Partindo-se da multiplicidade de grupos étnicos e regiões
em África, a ideia de uma “religião africana” inexiste por si só. Primeiro, pela
ausência de plural – se há, seriam “religiões africanas”. Segundo, o problema
do termo “africanas”. Como vimos, ainda que definíssemos a pluralidade das
práticas religiosas destas várias etnias, cairíamos no essencialismo, a
classificar essa pluralidade como “africana”, considerando uma ideia
continental de “África” e desconsiderando suas especificidades. Novamente, se
houvesse, seriam “religiões moçambicanas”, “religiões angolanas”, “religiões
nigerianas”. Neste ponto, ainda temos que considerar um terceiro elemento,
que diz respeito ao próprio entendimento de moçambicanidade, angolanidade,
nigerianidade, etc. O que é ser moçambicano? Angolano? Nigeriano?
Ainda que soubéssemos, vou acrescentar mais um dilema – agora
acerca do termo religião. Seria o termo religião ideal para conceituar as práticas
religiosas africanas?
No Mundo Antigo e Medieval, vários pensadores deram ao termo
‘religião’ (religio) vários significados léxicos e filosóficos. Temos que
compreender que o termo “religião” é ocidental, pois carrega em si o próprio
pensamento ocidental do que é religião. A palavra advém de termos latinos
(religio, religere e religare), mas que foi apropriada por sociedades não
ocidentais, já que passou a ser sinônimo de “crenças”. No entanto, precisamos
entender a origem do termo para compreender seu significado mais profundo.
no âmbito do tronco latino, a origem de religio foi o tema de
contestações, na verdade, intermináveis. Entre duas leituras ou duas
lições, portanto, duas proveniências: por um lado, com o apoio dos
textos de Cícero, relegere, [...] e, por outro, [Lactâncio e Tertuliano],
religare”. (DERRIDA; VATTIMO, 2000, p.52).
De formas genéricas, o termo religare é empregado com o sentido de
“atar”, “unir com firmeza”, “prender”, como feixes de fenos e trigo, lenhas ou o
próprio cabelo. Relegere, por usa vez, tem sentido de “fazer nova escolha”,
“retomar” “re-eleger”. Contudo, ambas ideias são inicialmente relacionadas
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com a sociedade romana não-cristã. Somente com Lactâncio, Santo Agostinho
e São Tomás de Aquino, que o viés etimológico passa a levar em consideração
o contexto da religião cristã e, consequentemente, como o conhecemos hoje.
Os filósofos cristãos passam a compreender que a religião é o sistema
que “liga” (religare) o homem a Deus e/ou reelege (relegere) Deus como o
centro da vida humana, em um processo de retorno a Ele (AZEVEDO, 2010).
O pensamento cristão repensou o significado etimológico de religio, baseado,
acima de tudo, na noção de ruptura do homem com Deus, através da queda-
101 humana do Éden, no episódio de Gêneses III.
Desta forma, o conceito de religião pressupõe a ideia judaico-cristã de
rompimento com Deus (queda/pecado). Seria ela apropriada para uma
sociedade em que não considera esse rompimento?
Talvez, o uso de religiosidades ou crenças poderia suprimir este conflito
etimológico. Contudo, ainda que o termo “religião” seja construído sob uma
perspectiva ocidental de “instituição de crenças” e não, necessariamente, de
práticas, é o termo aceito inclusive por pesquisadores e pensadores africanos,
já que assumiu um significado além do etimológico, ou seja, “Ato de professar
ou praticar uma crença religiosa; Veneração às coisas sagradas; crença,
devoção, fé” (MICHAELIS, 2015).
Em 1961 e 1962, segundo Altuna (1985), respectivamente no “Colóquio
de Abidjam” e no “Encontro Internacional de Bouaké”, ambos na Costa do
Marfim, após um exame antropológico e etnológico, decidiu-se chamar de
“Religião Tradicional Africana”, esse conjunto de práticas religiosas por todo o
continente africano, já que se convencionou no meio antropológico o termo
religião nos moldes ocidentais, isto é, religião como crença, já que as tradições
religiosas são, antes de tudo, uma organização em torno de práticas com o
mundo espiritual. Até aquele momento, tais crenças eram chamadas de
animistas, mas entendeu-se que o animismo corresponde à cosmovisão e não
necessariamente à prática. Tais encontros foram importantes para desconstruir
a visão estereotipada e etnocêntrica acerca das religiosidades de vários povos
em África.
Rehbein (1985) revela que que tanto no “Colóquio de Abidjam” como no
“Encontro Internacional de Bouaké”, antropólogos, sociólogos e historiadores
especialistas sobre o tema, estavam de acordo que havia uma estrutura básica
comum nas religiões tradicionais africanas, particularmente na costa ocidental
e centro-sul da África. Desta forma, o termo “Religiões Tradicionais Africanas”
é utilizado levando em conta que a palavra “religião” tem outra interpretação
etimológica em relação àquela baseada no pensamento judaico-cristão, e que
“africanas” é o termo genérico, mas aceito, visto as recorrentes estruturas de
crença, baseadas numa mesma “cosmovisão” (BAUDOIN, 1965).
Essa cosmovisão seria de base e de pensamento animista.
O último ponto a ser discutido sobre o termo é a palavra “tradição”. O
termo religiões Tradicionais é problemático, pois está marcado pela dicotomia
hierarquizante entre “tradição e Modernidade” (OLIVA, 2019). No sentido
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lexical, “tradição” é uma palavra que advém do termo latino tradere, “passar
adiante”, e tem atualmente a ideia que continuidade de um costume, valor ou
visão de mundo (CONGAR; DULLES, 2004). Logo, devemos entender o termo
“Tradicional” como uma realidade em constante transformação, e não um termo
demarcado e imutável, bem como em oposição à modernidade. A palavra
Tradição, no termo “Religiões Tradicionais Africanas”, deve ser entendida como
“continuidade”, já que se supõe tais práticas “geracionais”. Opuko (2010,
p.593) analisa que a religião tradicional em África, nunca foi estática, “já que de
102 geração em geração ocorriam mudanças e cada uma delas acrescentava sua
parte da experiência à herança religiosa e cultural”. Ademais, essa continuidade
é nítida, principalmente através da oralidade, já que as religiões tradicionais
africanas são passadas já que possuem origem longínqua, e como tal,
transmitidas oralmente (inicialmente) através de várias estratégias: como a
canção, reza, poesia, narrativas mitológicas, fábulas, lendas etc. Entretanto,
mesmo com o advento da escrita ocidental26 e a atual força da da
materialização gráfica, as religiões africanas ainda seguem um modelo
sucessivo oral, o que pressupões um projeto de resistência. Segundo Canedo
(1985), no contexto africanista, o refúgio na tradição é uma espécie de ideologia
de resistência, e resistir é uma constante social.
Ainda que cheguemos no termo “Religiões Tradicionais Africanas” como
o melhor termo a ser usado, haverá ainda discordâncias epistemológicas. O
filósofo Kwame A. Appiah (1992, p.156), por exemplo, reluta em usar o termo
para o universo africano, pois a ideia de religião no Ocidente é diferente da
concepção de vida tradicional africana. Porém, entende que o uso deve ser
compreendido.
Já outros intelectuais africanos como o congolês Vicent Mulago, diretor
do Centro de Estudos das Religiões Africanas de Kinshasa, na República
Democrática do Congo, e o ruandês Alexis Kagame sugerem e ratificam o uso
do termo “Religiões Tradicionais Africanas” para denominar o conjunto de
crenças e práticas tradicionais religiosas africanas (MARTINEZ, 2009;
ALTUNA, 2014). Atualmente, até mesmo grupo contemporâneos pan-
africanistas, como o “Missão Afrikana27”, por exemplo, usa o termo “Religião
tradicional Africana”, visando representá-la enquanto uma religião moderna
pan-africana. Desta forma, precisamos, ao usar o termo “Religiões Tradicionais
Africanas”, que é o mais aceito, compreender seu sentido, limites e
complexidades.
26 O que não significa a presença gráfica e/ou da escrita entre estas etnias, antes da
colonização.
27 Movimento religioso neo-tradicional de Gana que, com uma ideologia radical de africanidade
e identidade religioso-cultural, busca reformar a religião tradicional de modo a colocá-la como
a “religião dos africanos” (WITTE, 2014).
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RELIGIÕES TRADICIONAIS AFRICANAS NAS LITERATURAS AFRICANAS
O estudo das Religiões Tradicionais africanas nas Literaturas de autores
africanos precisa levar em consideração uma série de fatores. Primeiramente,
há de se entender que nem toda sorte de fenômenos presentes nos textos
literários africanos são, necessariamente, “religião”, mas muitas vezes, apenas
uma manifestação comum do dia a dia daquela comunidade.
O que se entende como Religião aqui, como já abordamos, é um
conjunto de manifestações de caráter cultural-espiritual que, muitas vezes, são
103 mais compreendidas em um entendimento de “sagrado” do que propriamente
religioso. Às vezes, o simples ato de se alimentar ou banhar-se, por exemplo,
é tão religioso como um ritual fúnebre, batismo ou de curandeirismo. Altuna
(1985, p. 370) revela que neste universo – africano – “mundo invisível se
entrelaça com o visível e o penetra por completo”, sendo difícil compreender
onde começa e termina o religioso e o secular. Obiechina (1978) em Culture,
Tradition and Society in the West African Novel cita essa relação:
Não existe qualquer dimensão importante da experiência humana
que não esteja ligada ao sobrenatural, ao sentimento religioso
popular e à piedade [...]. Tudo isso constitui parte integrante da
estrutura ideológica da sociedade tradicional e é essencial para uma
interpretação exata da experiência no contexto social tradicional
(OBIECHINA apud OPUKU, 2010, p. 591).
A presença das Religiões ou Religiosidades Tradicionais Africanas no
texto literário africano pode se apresentar de várias formas, sendo basicamente
através de fenômenos, atividades e/ou experiências cognitivas, palpáveis,
tangíveis e comportamentais, direta ou indiretamente, que envolvam o conjunto
de crenças autóctones. Por exemplo, quando o texto apresenta ritos sociais
(lobolo, circuncisão, ritos de passagem etc.), rituais (curandeirismo,
manipulação de magia etc.), práticas sobrenaturais28 (possessão, egunguns,
vaticínios etc.), ou até mesmo através de forma indireta, em que a “crença” é
evidenciada (uso de amuletos, crença nos espíritos, sonhos etc.), estas formas
em que a religiosidade aparece estão dentro de uma categoria, que chamo de
“pensamento real animista” ou “inconsciente animista” (fonte inspiradora)
(PARADISO, 2020). Nesta categoria estão manifestações da religião e
religiosidade mais próximas da dimensão humana, material, sociológica e
antropológica. Quando nas narrativas estes fenômenos, atividades e/ou
experiências se encontram numa perspectiva do insólito (além do “real”
Ocidental), como animais falantes, mortos se comunicando, transmutação
(animais em humanos e vice-versa), a presença de seres míticos
extraordinários, por exemplo, soma-se a categoria anterior, a estética do Real-
Animismo, a modalidade literária (PARADISO, 2020).
Ignorar a presença das Religiões Tradicionais Africanas na literatura
africana é ignorar a complexidade estética destas Literaturas, pois ao estudá-
28Sobrenatural aqui deve ser entendido como não comum na natureza.. Sobre este assunto
ver Paradiso, 2020.
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las, evidenciamos o Pensamento Animista e/ou Realismo Animista e, com eles,
o projeto estético literário, de engajamento histórico e social, como novo modelo
de interpretação da realidade africana, conforme Soares (2007), Wittman
(2012) e Paradiso (2014). De acordo com Salvato Trigo (1981) o texto literário
africano “tem sua africanidade latente, quando procura a inspiração no
tradicionalismo religioso, isto é, no animismo” (TRIGO, 1981, p.147), e assim,
precisam do devido protagonismo nas pesquisas, evidenciando que a presença
do pensamento animista, do Realismo-animista e das Religiosidades
104 Tradicionais nas literaturas africanas é mais do que uma simples descrição
folclórica, mas uma estratégia estética que converge a cultura
religiosa/filosófica tradicional e o aparato político do texto pós-colonial. Brenda
Cooper (1998. Grifo Meu) reforça esta ideia, quando pontua em suas pesquisas
que os autores africanos com frequência “aderem a este animismo, incorporam
espíritos, ancestrais e animais que falam às histórias, [...], a fim de expressar
suas paixões, sua estética e sua política”.
Não ignorar a presença destas religiões (ou religiosidades), não significa
generalizá-las ou analisá-las de forma inconsequente. É necessário, antes de
tudo, retomarmos a discussão inicial - se considerarmos textos de Chinua
Achebe, como O mundo se despedaça, por exemplo, devemos considerar as
práticas religiosas não apenas como “africanas”, mas como práticas religiosas
de um grupo especifico, neste caso, os Ibo, cujo conjunto de práticas religiosas
é chamado de Ọdinani, (dibia, dibia afa, ikengas, chi, Chukwu, os alusis,
egwugwu etc.), o mesmo com Fresh Water, de Akwaeke Emezi, que falará
sobre os ogbanjes (conceito próprio da espiritualidade Ibo). Caso o objeto de
estudo fosse um texto de Mia Couto, como O outro pé da sereia, por exemplo,
devemos considerar as práticas dos Shona, (Mwari ou Mulungo, mbira,
amadlozi ou vadzimu,; mhondoro, nganga ou nyanga etc.). O mesmo se vale a
autores como Ben Okri, Wole Soyinka, Debo Kotum, com as crenças iorubás
(egunguns, abiku, iku etc.); Odete Semedo que nos apresenta a religiosidade
dos bijagós e balantas da Guiné-Bissau (djambakus, balobeiros, defuntus etc.);
Pepetela com a religiosidades dos ovimbundos, ambundos e congos; ou
Paulina Chiziane, com as crenças dos tsongas, entre tantos outros exemplos.
Sobre a importância do tema, Mia Couto revela:
Eu acho que quando se fala em África, e agora já posso falar em
África, normalmente se fala em África de uma maneira tão simplista,
como se fosse uma coisa só. Mas em geral em África não se dá a
devida importância àquilo que é a religião, o fator religioso. [...] eu não
posso compreender a África se não compreender uma coisa que nem
tem nome, que é a religião africana, que chamam às vezes de
animista. (COUTO, 2002, s.p)
O escritor Pepetela também avalia a importância deste tema, quando
revela que “de um modo geral o povo angolano é religioso [...] [Assim] é forçoso
que a literatura angolana toque muito no aspecto da religiosidade” (apud
CHAVES, MACEDO, 2009, p.39). Na mesma linha, a autora Paulina Chiziane,
com O sétimo juramento (2000), Na mão de Deus (2012), Por quem vibram os
tambores do além (2013) e Ngoma Yethu (2015), traz como tema central a
Religiosidade Tradicional Africana.
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Já na África anglófona, Achebe cita:
Eu estava mergulhado na religião, na religião dos estrangeiros, pois
eu não estava lá quando meu pai se converteu, e isso é um aspecto
da vida. Eu não estava questionando isso. Na verdade, eu pensei que
o cristianismo era muito bom e algo muito valioso para nós. Mas
depois de um tempo, comecei a sentir que a história que me fora dito
sobre essa religião não foi, talvez, completamente toda ela, alguma
coisa foi deixada de fora. Não houve nenhuma tentativa de entender
o que estava por trás da religião Ibo. Foi simplesmente descartada
105 como uma religião de adoração de pedras e, sabe, não tão boa
quanto o Cristianismo. (ACHEBE, 2008).
Esta experiência sobre as religiões (cristã e a tradicional africana) da
vida do escritor nigeriano, reaparece fortemente em sua obra, sendo então
problematizada. Wole Soyinka, também autor da Nigéria, porém da etnia
iorubá, é outro nome da literatura que vê na necessidade de escrever sobre as
práticas religiosas ou experiências “metafisicas” dos colonizados e
colonizadores, algo essencial para explicar a Nigéria colonial e pós-colonial
(REIS, 2011). Especificamente sobre suas obras teatrais, Soyinka afirma:
A crítica dramática ocidental reflete, habitualmente, o abandono de
uma crença na cultura definida pelo conhecimento que o homem
possui da relação imutável e fundamental, entre ele e a sociedade,
dentro do contexto maior do universo observável. (SOYINKA, 1976,
p. 38).
Cada vez mais, as Religiões Tradicionais Africanas - e suas nuances -
começam a ter seu protagonismo nos estudados literários africanos, e partem
do entendimento do que seriam essas religiosidades e da importância do papel
delas na cultura e identidade do continente africano no período colonial, no
período de descolonização, e hoje, em sua ressignificação na
contemporaneidade (MBEMBE, 2013).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto objetivou fazer uma discussão sobre a ideia de “religião
tradicional africana”, bem como sua forma de representação nas literaturas
africanas, tanto numa perspectiva estética, através do Realismo Animista,
quanto do construto etnológico psicossocial do pensamento animista.
Apresentamos as justificativas iniciais, baseadas no fato que, durante
muito tempo essa temática ficou em segundo plano, tanto nos estudos pós-
coloniais, como nas literaturas Africanas. A partir do momento que o tema
começou a ser sistematizado e teorizado suo modo, o conceito do que seria
“Religião Tradicional Africana” precisaria ser analisado e problematizado para,
enfim, ser utilizado como termo adequado.
Vimos que até pouco tempo, este conjunto de crenças recebeu vários
nomes, como Animismo, Fetichismo ou Totemismo, mas que são termos
pensados e conceituados a partir de um pensamento etnocêntrico e
colonialista. Animismo, pois ainda que essas religiões tenham como base o
inconsciente/pensamento animista, não podemos generalizar essas Religiões
no termo em si, pois o Animismo é um modo de ver o homem e o mundo, não
uma crença religiosa. Totemismo é um termo mais adequado,
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antropologicamente falando, ao universo das populações nativas da América
do Norte, bem pelo fato que o termo não pode sintetizar as religiões tradicionais
africanas, pois daria entender que todas seriam totêmicas, o que não é
verdade. Por fim, o termo fetichismo também não seria adequado, pois sua
origem parte de um pensamento colonial, de um Deus europeu de “verdade”
versus deuses africanos “falsos”. Salientamos, porém, que estes termos devem
ser ressignificados.
Em seguida, vimos que o termo adequado precisaria levar em conta a
106 multiplicidade de manifestações e crenças religiosas do continente,
especialmente na região chamada “África Negra”. O termo academicamente
mais usado hoje na academia é: “Religiões/ Religiosidades Tradicionais
Africanas” que, no entanto, também precisa ser problematizado, a partir das
palavras “Religião”, “Tradição” e o que seria “Africano”.
Por fim, depois de termos compreendido o termo “Religiões Tradicionais
Africanas”, seu significado e abrangência, discutiu-se que não se pode ignorar
a sua presença na literatura africana, pois a religiosidade tradicional é parte
essencial do entendimento global da estética literária destas produções. As
várias nuances das Religiões Tradicionais Africanas, no âmbito do pensamento
animista, da presença da magia, da estética Real-Animista, a ancestralidade, o
contraponto dela com as religiões alóctones, são recorrentes em obras de
vários importantes autores como Chinua Achebe, Wole Soyinka, Ben Okri,
Akwaeke Emezi, Mia Couto, Pepetela, Paulina Chiziane, Odete Semedo, entre
outros.
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