TEOLOGIA
A atualidade da Teologia
André Castro, 4 meses ago 19 min read 434
A interpretação teológica da vida é algo que se
realiza comunitariamente, e não em sugestões
acadêmicas individuais que pretendem redimir o
mundo pelas ideias
The Angel Appearing to the Sheperds, 1634 (Rembrandt)
“Por que teologia?” Era esta a pergunta que eu escutava quando questionado sobre minha escolha de cursar a
graduação depois de terminar a escola. Os interlocutores que não eram crentes se reviravam com a resposta,
normalmente dita depois de uma conversa, que chegava no ponto chave: “mas por que teologia?”. Aos que faziam
parte da igreja, era claro, faz-se teologia para ser pastor. A incompreensão do crente se igualava com a do não crente
quando eu dizia: “Quero estudar teologia, mas não quero ser pastor”. De todo modo, ficava a questão de fundo da
utilidade da Teologia, que rapidamente era respondida, na minha cabeça, com um frívolo protesto contra o utilitarismo
das coisas no capitalismo.
Ao adentrar a graduação, a coisa não melhorou. Basicamente era somente eu que estava naquelas aulas e não queria
ser pastor ou missionário. Os meus amigos de classe também não entendiam muito bem meu interesse naquilo tudo.
Eu também me perguntava. Mas sempre terminava em uma revisão dos motivos para estar lá, geralmente concluindo:
“melhor aqui do que em outro curso”. As coisas ficaram nessa neblina até eu me deparar com outra coisa que me dizia
o sentido da teologia. Essa coisa foi a Teologia da Libertação (TdL). O meu acesso a essa tradição de cristianismo foi
puramente intelectual. Se os primeiros teólogos dessa tradição falavam que o que importa é a prática de fé vivida
enquanto luta política, e que as palavras do teólogo só têm um valor secundário, quando eu estava na graduação, a
única coisa que restava eram as palavras dos teólogos agarradas às páginas dos livros. Nem mesmo os teólogos eu tive
a chance de conhecer. O fato é que, seja por inclinação esquerdista ou coisa que o valha, aquela história sobre uma
forma de viver o cristianismo que organizava a luta política me brilhava muito aos olhos.
Em certo sentido, aquela pergunta que me doía os miolos ganhou uma resposta momentânea. “Tenho que ressuscitar
essa experiência de cristianismo”, até porque o mar da extrema direita já estava batendo em meu castelo de areia. Se o
outro lado do espectro estava avançando, era o momento de nós, do lado de cá, também apostarmos em uma teologia
que fosse politizada. É interessante como me enganava com aquela imaginação de que a teologia em si significava
alguma coisa. De algum modo, eu acreditava que, se fossem organizados da maneira correta, aqueles conteúdos
teológicos convenceriam as pessoas, e elas poderiam ser agentes da sua própria emancipação. A coisa só andava com
alguns amigos curiosos e bondosos que me aturaram enquanto eu não parava de falar sobre algum tema teológico
proscrito nos anos 1980 por algum padre envolvido nas lutas populares, sem perceber que aquelas palavras, apesar de
bonitas e bem intencionadas, não tinham nenhuma relação com a experiência de vida e de fé hoje. Que aquelas
palavras não passavam disso, de palavras. Palavras que estariam sozinhas, porque o tempo que as produziu já não
existe mais. E não simplesmente porque nunca importaram. A bem da verdade, a TdL já idealizava, em certo sentido,
as lutas populares que tentava pensar, enquanto colocava o horizonte político da Teoria da Dependência como
horizonte das lutas populares. Erros que um dos autores dessa tradição, Hugo Assmann, a quem o autor deste breve
ensaio não nega ser herdeiro, nunca assumiu ter cometido, mas o qual, a partir dos anos 1980, deixaria de lado os
termos revolucionários e liberacionistas que marcaram seu livro de 1973. Bem pesados os contrapontos, há algo
naquela tradição que nos diz sobre uma possível relação entre as letras escritas por um teólogo e o rumo do mundo;
afinal, moraria exatamente aí alguma atualidade nessa disciplina.
Voltando às linhas proscritas pelo teólogo brasileiro já citado, a teologia, no caso a TdL, deveria ser a “organização
das esperanças que levam à luta política”. A ação do teólogo, desse modo, não é produzir o conteúdo teológico
propriamente. Ele deve apreender com os crentes aquilo em que acreditam e aquilo que lhes dá esperança. No caso
específico de uma TdL que tinha como proposta o fortalecimento das lutas populares, o critério para essa organização
das esperanças estava no sentido da esperança. Ou seja, se a esperança religiosa era vivenciada na luta política em
favor das classes populares, e, portanto, estava ao lado da luta de libertação, ela deveria ser o material sobre o qual o
teólogo deveria se debruçar, formulando racionalmente a sua defesa. A defesa, é claro, era contra a Igreja Romana,
que, como manda o figurino, vai fazer o que estiver ao seu alcance para desorganizar e destruir essas mobilizações
populares que surgem no seu seio. Há, portanto, uma teologia concreta que é vivenciada por um sujeito coletivo
político teológico. Não se tem dúvida de que a fé cristã é uma fé gregária, e, se ela é vivida de uma forma nova ou
diferente, o será a partir de uma experiência comunitária onde a própria esperança é produzida e vivenciada. Este
sujeito político teológico é a via de acesso do teólogo aos rumos do mundo, e, portanto, o que pode dar atualidade ou
não a uma teologia.
Foi exatamente porque essa experiência de fé coletiva, o cristianismo de libertação, deixou de ser vivenciada, que as
palavras dos teólogos que falavam daquela experiência deixaram de ter atualidade. Mas o curioso é que, em um
movimento interno ao que restou desse cristianismo de libertação, a razão para o seu ocaso foi descrita uma dezena de
vezes por sujeitos individuais diferentes, os quais, a cada vez que iam explicar o motivo do fim da TdL, apontavam a
sua proposta teológica como a saída para essa crise. Os anos 1990 foram marcados na América Latina por uma revisão
teológica que não significou absolutamente nada na experiência de fé do povo pobre latino-americano. Um mar novo
de debates foram instaurados e uma nova linha de teologias filhas da TdL surge a cada vez que uma nova teoria
salvadora entrará em vigência no mercado acadêmico global. Teologia disso, teologia daquilo; todo semestre sai mais
um novo grande lançamento que promete destruir as estruturas do “fundamentalismo” e produzir uma comunidade
cristã libertária. Vivendo em seus mundos autorreferenciados, os nossos grandes teólogos(as) têm muito pouco ou
quase nada a dizer para nossos irmãos que interpretam o fim deste mundo como os desígnios de Deus. Se a demanda
editorial é a crise climática, Ecoteologia. Se for a questão racial, vamos rearticular a Teologia Negra e dizer que o
Brasil é os Estados Unidos. Caso apareça mais algum termo da moda como pós-colonial, decolonial, queer,
processual, pós-moderno, desconstrutivista ou o que estiver ao gosto da clientela, não tenha dúvida de que vai
aparecer um bastião do bom senso apontando como esse novo termo importado vai resolver todos os nossos
problemas. E não é que os temas abordados por esses textos sejam irrelevantes. Relações raciais e racismo, misoginia
e patriarcado, heteronormatividade e violência de gênero são questões que dizem respeito à nossa própria realidade.
Contudo, a mediação feita pelos teólogos que desejam discutir esses temas não passa pela experiência de fé dos
crentes, mas pelas intuições individuais que eles produzem. A mediação entre os signos da tradição e a realidade é
realizada conforme os interesses dos próprios teólogos. Por isso, a via de acesso da teologia ao real, o sujeito político-
teológico autêntico, é substituída pela crença de que esses iluminados teólogos têm a solução para os problemas do
mundo. As esperanças, que nunca deixaram de ser nosso objeto, referem-se à vida desses indivíduos iluminados, e não
às massas cristãs que abarrotam nossas periferias. Estas têm produzido uma imaginação religiosa própria, que reflete
suas experiências de vida e não necessariamente resolve qualquer contradição social. Muito pelo contrário, é parte
dessas contradições e as vivencia da maneira que pode. Ao mesmo tempo que não as resolve, vive na esperança de
que a situação mudará. Que os sofrimentos deste mundo são meramente momentos transitórios comparados às glórias
futuras, para citar um versículo amplamente utilizado nos meios evangélicos.
Para que as coisas não fiquem tão vagas. Vejamos a última empreitada teológica proposta por Frei Betto, aquele que
ficou conhecido pela sua relação com Marighella e se tornou um ícone da TdL e das Comunidades Eclesiais de Base
internacionalmente. Agora está em uma empreitada literária, para a qual já lançou dois volumes — Jesus
militante (2022) e Jesus Rebelde (2024) — e pretende lançar mais dois. Um para cada evangelho, que segundo ele
tem o propósito de enfrentar o sectarismo da direita que usa a religião. Para fazer frente a isso, ele entende que é
necessário disputar a interpretação da Bíblia. Esses “fundamentalistas” teriam uma “leitura equivocada da Bíblia,
lendo o texto fora do contexto. Inclusive, são geralmente muito ignorantes a respeito do contexto bíblico […] pegam
algumas frases e saem falando tolices.” Para reagir a isso, ele se propõe a criar livros didáticos que irão educar essas
massas incultas e não letradas sobre a verdade revolucionária e libertadora da Bíblia.
Talvez um dos exemplos mais explícitos dessa teologia que paira no ar, como uma reflexão criticamente crítica que
busca destruir a dominação em qualquer sentença, seja encontrado em uma interpretação proposta por um importante
nome da Teologia Latino-Americana contemporânea, Nicolás Panotto. No ano passado, o autor publicou, em
colaboração com outro renomado pesquisador, Luis Martínez Andrade, o livro Decolonizing Liberation Theologies:
Past, Present, and Future (2023). Organizado pelos dois, o livro reúne nomes de alta estirpe da teologia. No entanto, o
que nos interessa aqui é um artigo/ensaio de Panotto, cuja tradução do título para o português seria algo como “Outros
mundos, outras epistemes, outros sujeitos: A chama (nunca extinta) das teologias da libertação latino-americanas”.
Panotto argumenta que as Teologias da Libertação da América Latina (TLALs) mantém sua relevância e influência
precisamente porque souberam se adaptar e diversificar ao longo do tempo, absorvendo novas abordagens como a
ecoteologia, a teologia queer e as perspectivas decoloniais.
O teólogo começa o texto retomando a imagem da TdL como “o luto de uma revolução frustrada”, em referência a um
texto de Néstor Miguez. O “luto” simboliza o reconhecimento de que um processo revolucionário não atingiu seu
propósito. As transformações sistêmicas frente à crise do capitalismo levaram a novas formas de acumulação,
consumo e concentração, moldadas por uma lógica econômica global. As forças libertadoras, impulsionadas pelo ideal
de um “novo homem”, foram impedidas de se firmar entre o povo, sendo brutalmente reprimidas pela igreja-
instituição e regimes ditatoriais que impediram o avanço democrático na região. Panotto aponta que esse luto também
reflete as limitações e contradições internas da Teologia da Libertação na América Latina (TLAL), que, mesmo
enfrentando perseguições, não conseguiu sustentar seu processo de libertação. Mas o fato de que essa revolução não
aconteceu não significa que ela tenha falhado, entende o teólogo.1 O que ele quer propor é basicamente que a TdL
pode ter falhado no projeto de transformar a realidade latino-americana, mas que o luto não significa fracasso, dado
que a TdL é um ponto de inflexão na reflexão teológica: uma abertura (da qual não há retorno) para novas formas de
produzir teologia que teriam o papel de criticar as injustiças. E é aí que entra a teoria pós/decolonial e a sua proposta:
Nossa hipótese é a seguinte: o potencial das TLALs está em possibilitar um terreno
epistemológico que, para além das narrativas hegemônicas que caracterizaram sua
configuração inicial, abriu as portas para a construção de diversos tipos de articulações,
metodologias e processos de subjetivação, que inclusive serviram como instância autocrítica
de muitos de seus postulados. Em outras palavras, as TLALs propõem elementos
metodológicos que ampliam as possibilidades de articulação, bem como campos teológico-
filosóficos que abrem caminhos de interdisciplinaridade e até de interseccionalidade, que
levam seus pontos de partida a caminhos não explorados originalmente.2
O valor da TdL estaria em ter aberto o espaço teórico para produções de outras Teologias. No caso, teologias que
agora estariam para além das designações do “espectro moderno”. Para deixar isso claro ele faz uma resumida
apresentação da interpretação da modernidade a partir dessas teorias. Em linhas gerais, ele sumariza a teoria da
colonialidade de Aníbal Quijano, que divide a colonialidade em quatro áreas: colonialidade do poder, colonialidade do
saber, colonialidade do ser e colonialidade da natureza. Essas estruturas estariam produzindo relações de inclusão e
exclusão, subalternizando alguns setores em favor de outros. E tudo isso estaria sendo produzido a partir de um
universal: europeu, homem, branco. Ele propõe que a libertação reside em enfrentar as contradições inerentes à
modernidade de dentro, utilizando as fissuras desse próprio sistema. As correntes pós/decoloniais, segundo nosso
autor, oferecem uma alternativa, sugerindo que é possível radicalizar a diversificação das vozes excluídas e criar
novas lógicas e saberes, desafiando o poder hegemônico a partir dessas vozes dissidentes. Esse movimento, descrito
por Mignolo como pensamento crítico de fronteira, visa instrumentalizar “contradições”, como a misoginia, o
racismo, a heteronormatividade, para construir uma alternativa à modernidade.
Adotando esta interpretação, Panotto entende que o que a Teologia deve fazer é uma reflexão que esteja na margem,
ou na exterioridade desse universal. Logo após apresentar esse escopo teórico, ele entra em um debate para
demonstrar como a TdL, mesmo tendo heranças claras da modernidade, mantinha também uma relação de tensão com
os postulados modernos, especialmente no que se refere à experiência da transcendência. Depois de apresentar qual é
o pano de fundo da interpretação e da tarefa pós/decolonial e sua relação com a TdL, ele apresenta quais seriam os
tópicos a serem apresentados em uma nova geração da TdL “em uma chave pós/de-colonial”. No caso, apresenta o
que seria “outra epistemologia”, “outra história” e “outros sujeitos”. O que nos interessa aqui está no último ponto.
Para apontar uma desconstrução à noção moderna de sujeito presente da TdL, ele pergunta:
Aqui reside precisamente um dos elementos mais importantes dessa radicalização epistêmica
das TLALs. Como reler a “opção preferencial de Deus pelos pobres”? É uma opção por um
sujeito em particular ou a constituição de uma lógica de marginalidade que atua como crítica
epistêmica e política?3
Com essa pergunta, ele propõe, como desenvolverá na sequência do texto, que o sujeito da teologia deve estar na rede
dinâmica de identidades que compõem essa “lógica da marginalidade”. É interessante notar que essa reflexão surge
justamente no momento em que o sujeito político-teológico anunciado nos anos 1970 já havia perdido sua relevância
histórica. Nos céus sem estrelas de Tamez, Panotto não percebe que, ao sugerir a diversificação como solução, pode
estar reproduzindo um dos sintomas centrais do capitalismo tardio: a fragmentação do sujeito em uma multiplicidade
de identidades disponíveis no mercado. Essa fragmentação, embora apresentada como resistência à metafísica da
modernidade, acaba por ser expressão do próprio sistema que se pretende criticar, ao transformar a diversidade em
mais uma mercadoria no mercado acadêmico dos papers, momento particular da dinâmica de acumulação do capital
globalizado.4 Até que ponto a crítica de um certo sujeito linear não revela, de forma mais clara, a imobilidade prática
desses teólogos que, tendo perdido o rumo do mundo, continuam sonhando com sujeitos que existem apenas nas suas
construções teológicas?5
A chama ainda acesa da TdL não estaria na relação inicial entre seu arcabouço epistemológico e a prática popular que
dela surgiu; o que realmente importa é que, a partir desse arcabouço, ela criou um terreno epistemológico fértil para o
surgimento de novas formas de produção teológica. A chama acesa está na possibilidade da teologia produzir mais
teologia. O conceito de “terreno teológico-epistemológico” coloca o valor da TdL precisamente na capacidade de
produzir mais teologia; o que realmente importava na TdL foi a abertura de um campo de produções teóricas que
conseguiu adentrar o mundo acadêmico e articular novas tendências no mercado acadêmico, entendidas como um
avanço na crítica. A reflexão teológica se mantém suspensa no ar das universidades, sem conexão com os rumos do
mundo. O nome dessas propostas teológicas já diz tudo sobre elas. Se, na época, a Libertação, enquanto expectativa
da luta popular pela emancipação do domínio do capital internacional, dava sentido à luta que se justificava na
reflexão teológica, e por isso era chamada de “Teologia da Libertação”, hoje estamos falando de teologias que se
autorreferem como “pós/decoloniais”, correntes essencialmente acadêmicas.6 O papel da teologia é criticar a realidade
e seus modos de dominação, propondo alternativas para sua transformação a partir das formulações teóricas desses
teólogos individuais, que desconstroem toda e qualquer ideia que represente o projeto colonial. Redimir o mundo
pelas ideias — não era isso que Marx chamava de ideologia em seus antigos pares de crítica? Mas, é claro, as editoras
precisam vender, os acadêmicos precisam produzir, e a classe média precisa ter algo em que acreditar para se levantar
na segunda-feira de manhã e tomar sua fluoxetina.
Retomando o fio da meada, se é a capacidade gregária da experiência da fé cristã que faz com que um horizonte de
esperança seja vivenciado em comunidade e, nessa experiência comunitária, se organize uma ação que parte dessa
esperança comum, é exatamente aí que existe a fé, para o teólogo que não deixamos de acompanhar. A fé é aquilo que
faz dar o passo, caminhar, e, no limite, dar sua própria vida. O milagre pascal. O que faz de uma esperança de fé
concreta ou não é o quanto o horizonte que ela organiza se relaciona com o chão da vida vivida, como aquela imagem
transcendental dá conta de mobilizar a história situada e produzir motivos para caminhar; mas essa produção de
sentidos de esperança, na tradição cristã, é feita em coletividade e na relação entre aqueles que se dizem irmãos mais
novos de um mesmo ser que acreditam estar redimindo o universo. A ação deles estará relacionada com a forma em
que acreditam em Cristo, e isso dependerá da vida que têm e do que faz sentido ou não para sua situação concreta.
Não por acaso, era a isso que Assmann chamava de Teologia concreta já em 1968, e não tinha dúvidas de que era com
uma experiência similar a essa que o Cristianismo de Libertação se solidificava na experiência popular latino-
americana. Afinal, como diz o mesmo teólogo:
Vivemos num continente onde a evangelização chegou como “conquista”, mas se transformou
em patrimônio real dos conquistados, tecendo de maneira determinante a rede de símbolos e
linguagens dos oprimidos. Não é apenas um fato sociológico. É um fato teológico, porque os
oprimidos “se falam” através do uso dessa rede de símbolos e linguagens e somente assim,
puxando para o seu lado esta teia de comunicação, conseguem expressar a sua esperança, a
sua sede de justiça e a sua ânsia de vida e amor. Quem ignora isso, como fato massivo neste
continente, não conhece os pobres de nossa América.7
A interpretação da vida é feita dentro desse universo de sentido do cristianismo, que se faz comunitariamente, e nessa
relação se produz sentido e esperança para esta vida. É sobre essa rede de símbolos e linguagem que o teólogo deve se
debruçar. É na interpretação da realidade experienciada, que se solidifica nessa rede de símbolos, que a teologia tem
algo a dizer sobre o mundo contemporâneo. Alguns anos depois, já pensando sobre a virada evangélica
“fundamentalista”, Assmann sugeria que uma das melhores formas de entender a adesão das massas empobrecidas ao
fundamentalismo seria a interpretação da relação existente entre a mensagem e suas formas simbólicas com a vida
cotidiana dos oprimidos, e, mais especialmente, como essas pessoas que sofrem privações de todo tipo têm sua
experiência de sagrado.8 Em outras palavras, elevar os testemunhos cristãos, que agora interpretam o mundo com os
tons da experiência evangélica, mais especificamente pentecostal, a locus teológico, espaço de revelação do real onde
a teologia pode dizer algo que seja verdade para além dos interesses ideológicos dos teólogos indivíduos. Em uma
cena política onde esses mesmos evangélicos se tornam peça-chave no futuro nacional, talvez esteja aí alguma
atualidade para a teologia. Certamente, um programa fácil de falar, mas difícil de cumprir.
Notas:
1.↑ Nicolás Pannoto, “Other Worlds, Other Epistemes, Other Subjects: The Flame (Never Extinguished) of Latin
American Liberation Theologies”, p. 219. In: Nicolás Panotto, Luis Martínez Andrade (eds.), Decolonizing Liberation
Theologies: Past, Present, and Future (Switzerland: Springer, 2023), p. 217-227.
2.↑ Ibid, p. 219.
3.↑ Ibid, p. 232.
4.↑ É Douglas Barros quem tem levado a sério a relação entre a dinâmica das identidades no capitalismo
contemporâneo e a atual dinâmica de acumulação just in time após a reestruturação econômica dos anos 80. Seu
livro, O que é isto, o identitarismo?, ainda será publicado.
5.↑ Não estamos sugerindo que a luta contra a misoginia, o racismo, a heteronormatividade etc. não sejam nada. O
que há de virtual no argumento que estamos acompanhando é a interpretação dessas lutas como “lógicas marginais”,
que, com o devido apoio, fariam ruir a estrutura moderna de pensamento, sendo que o atual estágio do capitalismo
incorporou essas demandas e faz delas mercadorias. Cf. Pablo Polese, Machismo, racismo, capitalismo
identitário (São Paulo: Hedra, 2020).
6.↑ Sendo, como sugere Arif Dirlik, essa “aura pós-colonial” uma releitura da ideologia francesa feita por intelectuais
de terceiro mundo que migraram para o primeiro mundo e produziram suas razões, as quais refletem a própria
dinâmica do capital transnacional. Se, para a ideologia francesa — ou, para os internos, a virada linguística e seu
absolutismo do sujeito —, que se torna ideologia padrão do establishment acadêmico global, a transformação do
mundo pretendia ser feita pelas desconstruções das ideias, no caso, o projeto decolonial se aplica à experiência de
intelectuais do terceiro mundo que, ao adentrarem este espaço, acabaram por criar, à sua maneira, seu próprio nicho
no mercado acadêmico. Para melhor compreensão ver o artigo “A aura pós-colonial: a crítica terceiro-mundista na era
do capitalismo global”. Novos Estudos Cebrap 49, nov. 1997. Paulo E. Arantes, Formação e desconstrução Uma
visita ao Museu da Ideologia Francesa (São Paulo: Editora 34, 2021).
7.↑ Hugo Assmann, “A Teologia da Libertação faz o caminho ao andar”, p. 57. In: DIVERSOS Fé Cristã e
Ideologia (Piracicaba; São Bernardo do Campo: Editora da Unimep; Imprensa Metodista, 1981), p. 57.
8.↑ Hugo Assmann, La Iglesia electrónica y su impacto en América Latina (San José: DEI, 1988), p. 135-136.
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André Castro
Baiano, graduado em teologia e mestrando em Ciências da Religião pela UMESP. Pesquisa Teologia da
Libertação e Pensamento Crítico Brasileiro e é membro do conselho editorial da revista Zelota.