Aula 8 – Alexis de Tocqueville
Nuno Miguel Cardoso Machado
Biografia e introdução
Alexis de Tocqueville nasceu em Verneuil, em 1805, no seio de uma família
aristocrática. Os seus pais escaparam por pouco à execução durante a Revolução
Francesa, sendo salvos pela reação antirrevolucionária de 1793 (Collins & Makowsky,
1993: 54). Como se verá, este legado aristocrático será crucial para entendermos o
pensamento de Tocqueville. Depois de concluir o liceu em Metz, Tocqueville cursou
Direito em Paris. Em 1827 é nomeado juiz auditor em Versailles (Ferreira et al., 1995:
148).
Entre Maio de 1831 e Fevereiro de 1832 o autor viaja pelos Estados Unidos da
América, com o objetivo de estudar o sistema penitenciário dessa nação (Ibid.).
Todavia, o resultado mais conhecido da sua viagem será um estudo sobre a sociedade
estado-unidense, intitulado Da Democracia na América. O 1º volume da obra – o mais
famoso – é publicado em 1835, enquanto o 2º volume vê a luz do dia em 1840 (Ibid.).
Em relação ao conteúdo, o 1º volume de Da Democracia na América constitui uma
“descrição analítica” detalhada das “instituições [político-sociais, NM] americanas”
(Furet, 2005: xxiii). O 2º volume do livro “estuda de maneira mais abstrata a influência
da democracia sobre os costumes e os hábitos nacionais a partir do exemplo americano”
(Ibid.).
No ano de 1838, Tocqueville torna-se membro da Academia das Ciências Morais
e Politicas. Em 1839 apresenta-se como candidato às eleições legislativas e consegue
ser eleito como deputado por larga margem (Ferreira et al., 1995: 148). Tendo a França,
entretanto, adotado um regime republicano, em 1849 Tocqueville torna-se Ministro dos
Negócios Estrangeiros (Ibid.: 149). Na sequência do golpe de Estado encabeçado por
Luís Bonaparte, em 1851, Tocqueville retira-se da “vida política ativa” (Ibid.).
O autor muda-se para a cidade de Tours, onde empreende uma investigação
sobre a sociedade do Antigo Regime e o período conturbado inaugurado pela Revolução
Francesa. A primeira parte desta obra – a única que foi concluída – é publicada em
1856, justamente com o título: O Antigo Regime e a Revolução (Ibid.). Tocqueville
morre na cidade de Cannes, em 1859 (Ibid.).
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Alexis de Tocqueville viveu num período de enormes transformações
“económicas, políticas e sociais”, na sequência da grande Revolução Francesa de 1789
(Smelser & Warner, 1976: 37). Conforme mencionámos, Tocqueville pertencia a uma
família nobre, pelo que era uma espécie de “representante da velha ordem” social em
plena época do seu desaparecimento (Ibid.: 38). Embora as suas inclinações ideológicas
fossem claramente “conservadoras”, Tocqueville compreendeu que a ascensão da
sociedade industrial e democrática era inevitável (Ibid.).
Neste sentido, Tocqueville constrói um sistema teórico composto por “duas
dimensões” ou polos opostos (Furet, 2005: xv). O primeiro “polo” é a aristocracia, que
encerra um determinado tipo de “sociedade”, de “governo” e de “cultura”, assente na
desigualdade (Ibid.). O segundo polo é a “democracia”, que encerra um princípio de
organização social distinto, baseado no “governo do povo” e na igualdade entre os
cidadãos (Ibid.: xvi). Atente-se que a prioridade lógica é atribuída à democracia
enquanto princípio estrutural de organização social (Ibid.: xlv); a democracia política –
a forma do governo – decorre desse tipo de sociedade particular.
O modelo teórico de Tocqueville é, na verdade, bastante “simples” (Ibid.: xv): a
sociedade aristocrática do Antigo Regime é, historicamente, vencida e substituída pela
sociedade democrática (Ibid.: xvi). Esta teorização denota algum “fatalismo”: “a marcha
para a democracia” será inelutável e marcará a evolução de todas as sociedades
ocidentais (Ibid.). A raison d’être da sua obra é, pois, encontrar uma maneira de
“moderar os efeitos da nova ordem social”, portanto, de “suavizar o processo da sua
institucionalização para que tanto a revolução disruptiva” como a centralização política
“sejam evitadas” (Smelser & Warner, 1976: 38). O grande problema que se coloca é
saber em que medida a igualdade democrática é conciliável com a liberdade individual
(Furet, 2005: xlii).
Segundo Tocqueville, a instauração de um regime democrático é normalmente
acompanhada pelo reforço dos poderes do Estado. Esta tendência autoritária deve ser
contrariada através da criação de instituições regionais e locais capazes de assegurar a
participação política efetiva dos cidadãos. Veremos que, na ótica do autor, os EUA
constituem o exemplo de uma “democracia pura” (Ibid.: xxiii), bastante próxima da
perfeição em ambos os aspetos mencionados: “como sociedade e como cultura”, por um
lado, e como forma de autogoverno democrático autêntico, por outro lado (Ibid.).
Através da descentralização administrativa e da proliferação das associações
voluntárias, os norte-americanos “souberam tirar da democracia social a democracia
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política” (Ibid.: xxv). A principal conclusão de Tocqueville é que um “sistema pluralista
de organização social”, como aquele que identifica nos EUA, “é uma melhor garantia da
liberdade do que um sistema mais centralizado e unitário”, como aquele que existe em
França (Smelser & Warner, 1976: 39).
Da Democracia na América
Definição de democracia, igualdade e liberdade
Na obra tocquevilliana, conforme referimos na introdução, o termo “democracia”
não denota simplesmente “um certo tipo de poder” ou constituição política, mas a
organização de um determinado “tipo de sociedade” no seu conjunto (Aron, 2000: 202).
Se a desigualdade era o traço marcante das sociedades aristocráticas do passado, a
caraterística basilar da sociedade democrática é a igualdade (Collins & Makowsky,
1993: 55).
A igualdade diz respeito, antes de tudo, à “igualdade formal perante a lei”
(Smelser & Warner, 1976: 40). A igualdade social traduz-se, em primeiro lugar, na
igualdade jurídica. Em segundo lugar, a igualdade acarreta a extensão do poder político
à maioria da população (Collins & Makowsky, 1993: 55). Isto significa que a igualdade
social possui também uma índole política.
Partindo deste binómio político-jurídico, Tocqueville precisa que “a
democracia consiste na igualdade das condições” dos indivíduos (Aron, 2000: 203),
implicando o fim dos títulos e dos privilégios nobiliárquicos e das diferenças eternas
entre os vários estratos sociais (Collins & Makowsky, 1993: 55). São abolidas as
“diferenças hereditárias de condições”, de maneira que “todas as ocupações, (…)
profissões, dignidades e honrarias são [em princípio, NM] acessíveis a todos” e a cada
um (Aron, 2000: 203).
Este facto conduz-nos à fluidez da hierarquia social democrática, em contraste
com a rigidez da hierarquia aristocrática (Collins & Makowsky, 1993: 55). A ascensão
social é não só possível como expectável numa democracia (Aron, 2000: 228). Assim,
um aspeto-chave da definição tocquevilliana de igualdade é o “princípio da mobilidade
entre grupos de maior ou menor riqueza e de maior ou menor poder” (Smelser &
Warner, 1976: 40).
O acento tónico colocado no cariz social da igualdade revela-nos que o autor
acreditava que a igualdade económica era “impossível” (Aron, 2000: 203). Todavia, a
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desigualdade de riqueza, provocada pelas atividades industriais e comerciais, não
contradiz “a tendência igualitária das sociedades modernas”, pois a riqueza económica é
“móvel”, fluida, transferível (Ibid.: 206). Ela não é monopolizável por indivíduos ou
famílias que, assim, assegurariam uma “situação privilegiada através das gerações”
(Ibid.). O autor acredita que as desigualdades económicas atenuar-se-ão quanto mais
democrática se tornar uma dada sociedade (Ibid.). Acresce que a mobilidade social
referida atrás contraria, supostamente, os efeitos da concentração da riqueza.
Em Tocqueville a liberdade é tripartida: “liberdade de ação, de consciência e de
estilo de vida” (Smelser & Warner, 1976: 40). Ademais, a liberdade traduz a “ausência
de arbitrariedade”, isto é, corresponde a uma situação em que “o poder (…) é exercido
de acordo com as leis” e os “indivíduos gozam de segurança” (Aron, 2000: 205). De
acordo com Tocqueville, o problema é que a igualdade não conduz necessariamente à
maximização da liberdade individual (Collins & Makowsky, 1993: 58). A igualdade
social pode resultar numa forma perfeita de “autogoverno” democrático – caso dos EUA
– ou dar azo a um Estado hipercentralizado com tendências autoritárias – caso da França
(Ibid.).
Um governo verdadeiramente democrático pressupõe que a “soberania” seja, de
facto, exercida pelo “conjunto dos indivíduos”, portanto, pelo corpo de cidadãos ou
pelos seus delegados (Aron, 2000: 203 e 205). Visto que nenhum ser humano possui “a
virtude necessária para exercer o poder absoluto sem se corromper”, é míster que exista
“uma pluralidade de centros de decisão, de órgãos políticos e administrativos”, cujos
respetivos poderes se equilibram mutuamente (Ibid.: 205). A descentralização é a
melhor salvaguarda da liberdade individual, assim como da sua compatibilização
proveitosa com a igualdade (Ibid.). A finalidade principal de uma sociedade e de um
governo democráticos é assegurar o “bem-estar do maior número possível” de
indivíduos, portanto, a sua “prosperidade e tranquilidade” (Ibid.: 203).
Condições favoráveis ao desenvolvimento da democracia estado-unidense
Tocqueville identifica três conjuntos de fatores que explicam por que a
democracia estado-unidense é “liberal” (Aron, 2000: 207), ou seja, por que ela está
particularmente talhada para conjugar liberdade e igualdade. Em primeiro lugar, o autor
realça o contexto particularmente favorável dos EUA em termos geográficos, históricos
e sociais (Ibid.). Esta condição peculiar engloba um território extenso, escassamente
povoado e rico em recursos naturais (Collins & Makowsky, 1993: 60). Os imigrantes
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europeus foram capazes de explorar estes vastos recursos beneficiando do auxílio dos
avanços técnicos, tecnológicos e científicos da civilização ocidental “desenvolvida”
(Aron, 2000: 207). A ausência de uma classe aristocrática “tradicional” (Ferreira et al.,
1995: 150) desimpediu o caminho para o progresso das atividades industriais e
económicas.
Destaca-se, ainda, a situação histórica e geoestratégica dos EUA. A inexistência
de nações vizinhas hostis assegurou “o mínimo de obrigações diplomáticas e o mínimo
de riscos militares” (Aron, 2000: 207). Acresce que os norte-americanos estavam
bastante distantes da Europa e das suas potências beligerantes. Este aspeto foi decisivo
pois, segundo Tocqueville, a guerra é o principal fator responsável pela centralização
política (Collins & Makowsky, 1993: 60). O mesmíssimo fator torna, como se
perceberá, as perspetivas menos risonhas no que toca à descentralização dos Estados
europeus (Ibid.).
Os EUA possuíam também circunstâncias socioeconómicas sui generis: a
enorme igualdade na distribuição da riqueza cortava pela raiz as paixões revolucionárias
e, assim, a instabilidade política (Ibid.). Com a exceção óbvia da escravatura nos
Estados sulistas, “a igualdade já existia nos Estados Unidos antes do governo
democrático ser estabelecido” (Ibid.).
Em segundo lugar, Tocqueville realça a excelência do ordenamento jurídico e do
sistema político nos EUA. As leis norte-americanas foram especialmente “propícias à
salvaguarda da liberdade” (Aron, 2000: 208). Na ótica de Tocqueville, o Estado tem de
ser “suficientemente extenso”, em termos geográficos, “para dispor da força necessária
à sua segurança” (Ibid.: 209); mas, por outro lado, deve ser “pequeno o bastante para
que a sua legislação se adapte à diversidade das circunstâncias e dos meios” (Ibid.).
Esta “combinação” apenas pode ser alcançada através de uma “confederação”
(Ibid.). Ora, a Constituição federal norte-americana permitiu justamente “combinar as
vantagens dos grandes e dos pequenos Estados” (Ibid.: 208). A estrutura federativa é,
então, “o maior mérito das leis americanas” (Ibid.: 209), permitindo a articulação da
vida económica, isto é, “a livre circulação de bens, pessoas e capitais” (Ibid.).
Outra caraterística fulcral da democracia estado-unidense é a organização do
regime político. O sistema presidencialista assenta na separação do poder executivo,
detido pelo Presidente, e do poder legislativo, detido pelo Congresso (Collins &
Makowsky, 1993: 58). Atente-se que o Congresso se subdivide em duas câmaras (Aron,
2000: 209): o Senado e a Câmara dos Representantes.
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O sistema judicial independente reforça a solidez desta democracia. Os tribunais
aferem a legalidade das decisões legislativas e ajuízam as disputas entre os cidadãos,
transformando a democracia num verdadeiro Estado de Direito (Collins & Makowsky,
1993: 59). Os julgamentos com recurso a um júri composto por cidadãos controlam o
poder dos juízes e, ademais, servem de educação cívica para as pessoas (Ibid.).
Em síntese, a separação e o respetivo equilíbrio dos poderes evitam que o Estado
seja demasiado forte ou demasiado permissivo (Ibid.). O Estado é, ao mesmo tempo,
respeitador dos interesses gerais da nação e sensível à salvaguarda das liberdades
individuais (Ibid.).
Outro aspeto institucional importante é a descentralização do poder político, que
está organizado em três níveis: federação, estados e condados. O “sistema federalista”
estado-unidense – já mencionado atrás – atribui a Washington o poder de administrar a
política monetária e a política externa, mas relega a maior parte dos problemas para as
autoridades estatais e locais (Ibid.: 58). Há uma espécie de princípio da subsidiariedade:
o governo central apenas deve intervir em assuntos que digam respeito à nação no seu
conjunto. Isto significa que os condados e as localidades possuem “autonomia” para
resolver os seus assuntos (Ibid.). Em França, pelo contrário, todas as questões passam
forçosamente pela alçada da “burocracia central de Paris” (Ibid.).
O elevado grau de descentralização fomenta “a liberdade e a responsabilidade
dos cidadãos” (Furet, 2005: xxx). Em especial, os indivíduos aproveitam plenamente “a
liberdade de associação” para criarem inúmeras organizações voluntárias (Aron, 2000:
210). Portanto, é a própria sociedade que toma a iniciativa na resolução dos problemas,
“independentemente do Estado” (Furet, 2005: xliii). Uma vasta gama de problemas – a
construção de um hospital ou de uma escola, por exemplo – tende a ser tratada a nível
local através da cooperação dos cidadãos (Aron, 2000: 213), que dedicam o seu tempo
livre e o seu dinheiro à “busca de uma solução” (Ibid.: 210).
Deste modo, os cidadãos estado-unidenses são pró-ativos. A intervenção prática
nos assuntos públicos confere-lhes uma “instrução cívica” (Ibid.: 213).
Simultaneamente, criam-se sinergias entre os interesses dos indivíduos e o bem-estar da
comunidade onde vivem (Collins & Makowsky, 1993: 58). Tocqueville defende que a
“proliferação dos grupos intermédios” – nomeadamente das associações voluntárias de
diversa índole – permite uma “multiplicação dos centros de poder” que é benéfica para a
salvaguarda da liberdade individual e para a limitação da autoridade governamental
(Ferreira et al., 1995: 150).
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Finalmente, em terceiro lugar, Tocqueville salienta a importância dos hábitos,
costumes e valores dos norte-americanos. Os “costumes” originam um “estado de
espírito” comum; para além disso, produzem “a independência do social e o seu
primado sobre o político” (Furet, 2005: xxvi). A democracia estado-unidense é
primariamente uma realidade sociocultural que penetra e subordina a “esfera da
política” em sentido estrito (Ibid.: xxix). A ausência de diferenças culturais assinaláveis
mina “as bases do conflito político” (Collins & Makowsky, 1993: 61).
Tocqueville elege a religião protestante, isto é, “o sistema de valores dos
imigrantes puritanos” (Aron, 2000: 207), como o fator-chave sociocultural (Collins &
Makowsky, 1993: 61). A religião cumpre um importante papel “regulador” (Furet,
2005: xxvi), fomentando “a disciplina, a ordem moral e a crença nas leis” (Collins &
Makowsky, 1993: 61). O protestantismo puritano é eminentemente “pluralista”,
promovendo a “igualdade” e, simultaneamente, a “independência” dos indivíduos
(Furet, 2005: xxvi). Acresce que a organização da igreja protestante conferia uma
enorme autonomia às congregações locais, servindo de modelo para a descentralização
política (Collins & Makowsky, 1993: 61).
O grande feito da sociedade dos EUA foi saber “unir o espírito de religião ao
espírito de liberdade” (Aron, 2000: 210). Esse é o derradeiro – e sólido – fundamento da
coesão social (Ibid.: 211). A sociedade estado-unidense conservou “o sistema moral dos
seus fundadores” e foi isso que lhe conferiu a sua configuração única (Ibid.: 207). Por
um lado, os norte-americanos eram visceralmente religiosos, enquanto, por outro,
“estavam livres de todos os preconceitos políticos” (Tocqueville apud Aron, 2000: 211).
Assim, “a liberdade política e o rigor religioso” complementam-se harmoniosamente
(Aron, 2000: 211), sendo visíveis “em toda a parte”, mormente “nos costumes e nas
leis” (Tocqueville apud Aron, 2000: 211).
Resta-nos concluir que o autor estabelece uma hierarquia entre estes três
conjuntos de fatores explicativos. Desta forma, os hábitos, os costumes e – acima de
tudo – as crenças religiosas são as principais “causas da liberdade” e da estabilidade
granjeada pela democracia norte-americana (Aron, 2000: 208). As crenças protestantes
impõem uma “disciplina moral” às pessoas mas, ao mesmo tempo, prescrevem a
inviolabilidade da liberdade individual (Ibid.: 212). Seguem-se-lhes, em termos de
importância relativa, as leis e a organização institucional (Ibid.: 208). Só em último
lugar é que surge “a situação geográfica e histórica” dos EUA (Ibid.: 207). Tocqueville
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defende inclusivamente que “nas mesmas condições, mas com outros costumes e outras
leis, teria surgido uma outra sociedade” em solo americano (Ibid.: 208).
Virtudes e defeitos da democracia (nos EUA e alhures)
Tocqueville identifica uma série de aspetos positivos na sociedade estado-
unidense. A igualdade produz “um maior respeito mútuo entre pessoas de diferentes
ocupações e entre os sexos”; para além disso, “reforça a moralidade” e, assim, “facilita
a interação social” (Smelser & Warner, 1976: 41). O espírito igualitário promove, ainda,
a “compaixão” nos seres humanos (Collins & Makowsky, 1993: 56). A caridade e a
entreajuda entre estranhos disseminam-se (Ibid.).
Em particular, a igualdade jurídica altera as relações laborais. A relação
assimétrica entre senhor e servo foi substituída pela relação contratual entre empregador
e empregado (Ibid.). O último aluga o seu trabalho durante apenas um certo período de
tempo (Ibid.) e pode mudar livremente de ocupação. É verdade que o sentido de
lealdade desaparece, mas, no seu lugar, surgem “novos ideais, partilhados por todos”
(Ibid.). A conduta dos indivíduos é pautada pelo “empenho, fiabilidade e parcimónia”
(Ibid.).
Por último, Tocqueville preconiza que as sociedades democráticas são mais
estáveis e, portanto, menos propensas a episódios revolucionários. Isto porque, “à
medida que melhoram as condições de vida, aumenta o número dos que têm alguma
coisa a perder com uma revolução” (Aron, 2000: 232). Neste sentido, “todos, ou quase
todos, estão interessados na conservação da ordem social” (Ibid.: 206).
No entanto, Tocqueville também salienta uma série de aspetos negativos da
democracia norte-americana. Em primeiro lugar, o autor preconiza que a “crença na
igualdade” não apaga “a paixão de se distinguir dos demais” (Furet, 2005: xxxviii). Ora,
visto que as hierarquias impostas pelo nascimento ou pela posição social são
virtualmente inexistentes, o estatuto de cada indivíduo é precário e depende
exclusivamente do seu desempenho na esfera económica: “as comparações entre os
cidadãos fazem-se por meio dos níveis de rendimento de cada um” (Ferreira et al.,
1995: 151). Em face da igualdade jurídica, o estatuto individual reduz-se a uma “pura e
simples contabilidade” dos seus ganhos (Ibid.).
Portanto, o status continua a ser importante nas sociedades modernas. A “paixão
do enriquecimento” é acompanhada pela “comparação permanente com os outros”
(Ibid.), o que faz da “inveja” e da “inquietude” dois “sentimentos” típicos das
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democracias (Furet, 2005: xxxix). Na medida em que os benefícios económicos são
fluidos – podem ser perdidos tão ou mais facilmente do que foram ganhos –, os
privilegiados “fazem (…) questão” de se “exibir durante o tempo em que deles
desfrutam” (Ibid.: xxxviii).
Em segundo lugar, esta a proeminência das atividades mercantis tem um impacto
negativo sobre a cultura; os negócios assentam no pragmatismo em detrimento de
princípios estéticos ou espirituais (Collins & Makowsky, 1993: 57). Quando são
afastados dos assuntos práticos quotidianos, os norte-americanos não revelam qualquer
“refinamento”, sendo incapazes de se distinguir na esfera artística, científica ou
espiritual (Ibid.). O efeito perverso da igualdade é a mediania sensaborona, a
“mediocridade confortável” (Ibid.). Por outras palavras, o nivelamento por baixo da
sociedade massificada. Em síntese, o “individualismo” tende a confinar-se à esfera
económica, enquanto na esfera simbólica grassa um “conformismo” sufocante (Ibid.).
Em terceiro lugar, o principal problema da sociedade democrática é o potencial
efeito prejudicial da igualdade sobre a liberdade individual (Smelser & Warner, 1976:
41). A massa homogénea de cidadãos, que apenas se diferencia subtilmente através da
concorrência na esfera económica, é perfeitamente conciliável com o poder autoritário
do Estado (Collins & Makowsky, 1993: 61). A prevalência dos objetivos de natureza
económica pode relegar cada pessoa para a esfera do seu interesse privado e, assim,
afastá-la das matérias políticas (Ibid.).
Tocqueville sustenta que “na sociedade de massas o indivíduo está disposto a
ceder um enorme poder ao governo central, perdendo a liberdade” e a capacidade “de
opor-se-lhe” (Ibid.). Na ótica do autor, os EUA beneficiavam de um conjunto
extraordinariamente favorável de condições para fazer face aos efeitos negativos da
igualdade; contudo, a esmagadora maioria das nações europeias – começando pela
França – dificilmente seriam capazes de contrariar a ação dos seus governos
hipercentralizados (Ibid.).
Finalmente, em quarto lugar, outro grande problema enfrentado pelos EUA era a
persistência da escravatura nos estados sulistas (Aron, 2000: 215). Tocqueville era
bastante pessimista a este respeito: “à medida que desaparecesse a escravidão, e a
igualdade jurídica tendesse a se estabelecer entre negros e brancos”, surgiriam, no seu
lugar, “barreiras que os costumes criariam entre as duas raças” (Ibid.). Em particular, a
convivência “seria rejeitada pela maioria branca”, o que produziria uma “separação (…)
quase inevitável” (Ibid.).
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O Antigo Regime e a Revolução
Em O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville “quer compreender por que
razão a França encontra tantas dificuldades em ser uma sociedade politicamente livre,
embora seja, ou pareça, democrática” (Aron, 2000: 216). O autor começa por tentar
explicar por que a Revolução eclodiu apenas na França, visto que as instituições
aristocráticas do Antigo Regime estavam “em ruínas em toda a Europa” (Ibid.: 218).
O primeiro fator que explica a Revolução Francesa de 1789 é o elevado grau de
“centralização” e “uniformidade administrativa” da nação antes da Revolução (Ibid.).
Tocqueville defende que não foi a Revolução que dissolveu as “corporações municipais
e provinciais e as assembleias aristocráticas” (Smelser & Warner, 1976: 46), portanto,
as instituições políticas regionais e locais da sociedade feudal. A trajetória decadente do
Antigo Regime já se tinha encarregado de destruí-las (Collins & Makowsky, 1993: 64).
A monarquia degenerou numa burocracia profundamente ineficiente. Na segunda
metade do século XVIII, “praticamente todos os assuntos políticos e económicos
estavam sujeitos aos decretos do Conselho Real” (Smelser & Warner, 1976: 46). Neste
contexto, os indivíduos não conseguiam discutir nem resolver os seus problemas, visto
que lhes faltava o elemento crucial para a criação de um “corpo político” autónomo: a
liberdade (Aron, 2000: 218).
O segundo fator explicativo refere-se à decomposição do tecido social francês
que acompanhou este ímpeto centralizador (Ibid.). Em particular, as “classes
privilegiadas” careciam de uma verdadeira “unidade”, na medida em que se verificava a
“separação entre os grupos privilegiados do passado [o clero e a aristocracia, NM], que
tinham perdido a sua função histórica mas conservavam [os, NM] seus privilégios, e os
grupos da nova sociedade [a burguesia, NM], que desempenhavam um papel decisivo
mas permaneciam separados da antiga nobreza” (Ibid.: 218-219). Os grupos dominantes
encontravam-se “separados por privilégios, maneiras, tradições” distintos (Ibid.: 219).
Ora, recorrendo às palavras de Tocqueville, “quando todos os que compõem a parte rica
e esclarecida da nação não podem mais entender-se e cooperar no governo, a
administração do país (…) torna-se impossível” (Tocqueville apud Aron, 2000: 219).
A terceira razão, intimamente associada à anterior, diz respeito ao facto de a
aristocracia se ter tornado uma mera classe parasitária, não cumprindo qualquer função
social de relevo. Em outros termos, os privilégios dos nobres tinham-se mantido,
enquanto as suas obrigações para com as populações locais tinham sido largamente
eliminadas (Smelser & Warner, 1976: 46). Paralelamente, a ascensão das atividades
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industriais e comerciais trouxe consigo uma população ansiosa por igualdade (Collins &
Makowsky, 1993: 64). Assim, o trabalho forçado, as taxas, impostos e monopólios
foram crescentemente sentidos pelos camponeses e pelos operários como uma
espoliação “anacrónica” (Smelser & Warner, 1976: 47).
A crise orçamental de 1789 foi a gota final que fez transbordar o copo e
desencadeou a revolução há muito em germinação (Collins & Makowsky, 1993: 64). A
luta contra a desigualdade social foi “a paixão suprema geradora dos ímpetos
revolucionários” que assolaram a França (Ferreira et al., 1995: 147). A Revolução
assinalou “a passagem do Antigo Regime para a democracia” no país (Aron, 2000:
220), ou seja, foi o sintoma de uma transição acidentada para a sociedade moderna
(Ibid.).
Todavia, o principal efeito da Revolução foi reforçar ainda mais o poder da
burocracia estatal (Collins & Makowsky, 1993: 64), impedindo a participação dos
cidadãos na coisa pública. Isto ajuda a explicar o período de enorme instabilidade
política que se seguiu, marcado por novas revoltas e sublevações. O movimento
democrático gaulês em prol da igualdade estava, paradoxalmente, associado a um
“despotismo administrativo” (Aron, 2000: 225); a liberdade individual foi
subalternizada. Assim, segundo Tocqueville, a estabilização do regime democrático
exigia que se arrepiasse caminho e se procedesse à descentralização do poder político
(Ibid.).
Será legítimo concluir que, na ótica de Tocqueville, o poder político pós-
revolucionário deu a machadada final nos “corpos sociais intermédios”, assistindo-se à
“hipertrofia” do Estado francês (Ferreira et al., 1995: 147, itálico no original). Os
“indivíduos isolados” são impotentes face a este Estado forte, pelo que não se pode
afirmar que a sociedade moderna francesa seja “mais livre” (Ibid.). Para além disso, a
organização social é instável, visto que o Estado é “omnipotente” mas, ao mesmo
tempo, “anárquico e caótico” (Ibid.). Por fim, a sociedade é menos pacífica porque as
grandes “inovações revolucionárias parecem ter sido as referentes (…) ao campo da
organização militar” (Ibid.).
Tocqueville lança duas críticas principais à sociedade saída da grande
Revolução. Em primeiro lugar, censura os “efeitos perversos” da Revolução (Ibid.,
itálico no original). A tentativa de criar uma sociedade racional, baseada nos ideais da
igualdade, liberdade e fraternidade, produziu resultados opostos aos desejados (Ibid.); o
caos e a violência tornam-se endémicos. Em segundo lugar, Tocqueville critica a
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Revolução “em nome da futilidade ou da inanidade”: os esforços transformadores
revelaram-se “inúteis” porque não conseguiram verdadeiramente modificar nenhum
aspeto “importante” (Ibid., itálico no original).
Conclusão
Alexis de Tocqueville é um “fatalista” que acredita na evolução “inevitável” de
todas as sociedades para o regime democrático (Furet, 2005: xxii). Embora seja um
aristocrata, o autor convence-se de que igualdade é o princípio estruturante do “futuro”
(Ibid.: xxxiv), ou seja, a âncora legitimadora das “sociedades modernas” (Ibid.: xlvii).
Nas suas próprias palavras, a democracia veio para ficar e é “o único meio que nos resta
de ser livres” (Tocqueville apud Furet, 2005: xxi). Mesmo “sem amar o governo da
democracia” é preciso “adotá-lo como o remédio mais aplicável e mais honesto que se
pode opor aos males atuais da sociedade” (Ibid.).
Na perspetiva de Tocqueville, os EUA demonstram em que condições o enigma
da democracia pode ser resolvido, portanto, em que contexto a democracia – enquanto
princípio estruturante da sociedade – se torna igualmente num determinado tipo de
governo condizente com a igualdade e, sobretudo, com a liberdade humana (Furet,
2005: xxii). Tocqueville defende que um “sistema social pluralista”, assente na
multiplicação dos centros de poder, é bastante importante para a salvaguarda da
liberdade numa sociedade democrática (Smelser & Warner, 1976: 44, itálico no
original).
Os EUA evidenciam justamente esse pluralismo institucional. Os seus costumes
e, em particular, as suas crenças religiosas fomentam o civismo e a resistência à tirania
política (Ibid.). A descentralização administrativa, consubstanciada numa rede de
municípios autónomos, providencia um espaço onde os cidadãos podem supervisionar
e/ou intervir diretamente nos problemas que os afetam (Ibid.). Os norte-americanos
possuem ainda o hábito salutar de criar “associações voluntárias” da mais variada índole
(Ibid.). Essas associações são um contrapeso imprescindível face às tendências
centralistas de qualquer governo democrático (Ibid.: 45).
Vimos que a transição para a democracia é um processo “comum ao Velho e ao
Novo Mundo” (Furet, 2005: xxii). Todavia, somente “o povo americano desenvolveu
costumes e leis adaptados a esse estado social e cultural” democrático (Ibid.). Já as
nações europeias herdaram “Estados [políticos, NM] centralizados, contraditórios com o
desenvolvimento de instituições políticas e costumes nacionais democráticos” (Ibid.). É
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imperioso, por isso, transformar “as leis e os costumes” europeus e colocá-los “em
harmonia” com a realidade democrática (Ibid.).
Em suma, encontramos na obra de Tocqueville uma teorização “bastante
poderosa das instituições políticas” (Collins & Makowsky, 1993: 62). O principal
problema é que o autor idealiza, de certo modo, a sociedade norte-americana, fazendo-a
“parecer uma democracia mais perfeita que realmente era” (Ibid.). Os EUA eram
francamente mais desiguais do que Tocqueville acreditava (Ibid.). Com efeito, “em
meados do século XX muitos dos fundamentos da descentralização que Tocqueville
julgava serem importantes na manutenção da democracia americana tinham
desaparecido” (Ibid.: 63). De modo análogo, o autor “sobrestima a rigidez” da
sociedade gaulesa da época (Smelser & Warner, 1976: 48).
Referências Bibliográficas
Aron, Raymond (2000), As Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins
Fontes. 5ª Edição.
Collins, Randall & Makowsky, Michael (1993), The Discovery of Society. Nova Iorque:
McGraw-Hill. 5ª Edição.
Ferreira, José Maria Carvalho et al. (1995), Sociologia. Lisboa: McGraw-Hill.
Furet, François (2005), “Prefácio – O sistema conceptual da Democracia na América”,
in Tocqueville, Alexis de, A Democracia na América – Leis e Costumes. São
Paulo: Martins Fontes, pp. xi-xlix. 2ª Edição.
Smelser, Neil J. & Warner, R. Stephen (1976), Sociological Theory: Historical and
Formal. Morristown: General Learning Press.
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