Texto JMB
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Iv) 3::rc: f
Copyright by © Editorial Gustavo Gili. S. A.. Rosellón 87-89. Barcelona, 1987.
Título original
'- De los medios a Ias mediaciones. Comunicación, cultura e hegemonia
Capa
Tita Nigrí
Revisão
Cecília Moreira
Josette Babo
Maria Guimarães
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Editota UFRJ
Apoio:
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1II José
Fundação
Bonirácio
Universitária
I
SUMÁRIO
Prefácio 11
Introdução 15
PRIMEIRA PARTE
POVO E MASSA NA CULTURA:
OS MARCOS DO DEBATE
Capítulo 1
Afirmação e negação do povo como sujeito 23
o povo-mito: românticos versus ilustrados 23
Povo e classe: do anarquismo ao marxismo 31
Emergência do popular nos movimentos anarquistas 32
Dissolução do popular no marxismo 36
Capítulo 2
Nem povo nem classes: a sociedade de massas 43
A descoberta política da multidão 44
A psicologia das multidões 47
Metaflsica do homem-massa 52
Antiteoria: a mediação-massa como cultura 57
Capítulo 3
Indústria Cultural: capitalismo e legitimação 63
Benjamin versusAdorno ou o debate de fundo 64
Do lagos mercantil à arte como estranhamento 65
Uma iconografia para usos plebeus 152
A experiência e a técnica como mediações das
massas com a cultura 71 Melodrama: o grande espetáculo popular 157
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é, que nos permita uma compreensão dos diferentes modos de apro- Outra vertente teórica que é necessário integrar a esta reflexão
priação cultural, dos diferentes usos sociais da comunicação.
é a nova concepção de leitura, desenvolvida na América Latina parti-
Em vários de seus últimos trabalhos, N. Garda Canclini vem cularmente nos trabalhos de Beatriz Sarlo,156nos quais leva adiante as
reunindo elementos para a configuração desse marco,153acompanhan- linhas de pensamento de Hans-Robert Jauss, propondo uma aborda-
do de perto a concepção de Bourdieu, mas ultrapassando-a para abrir gem dos diversos leitores sociais possíveis. Se entendemos por leitura "a
passagem para a práxis, para a transformação e suas formas de produ- atividade por meio da qual os significados são organizados num
ção nas culturas populares da América Latina. Devemos começar sentido",157 resulta que na leitura - como no consumo - não existe
situando o verdadeiro alcance do que procuramos, sua diferença frente apenas reprodução, mas também produção, uma produção que ques-
às teorias funcionalistas da recepção: "Não se trata apenas de medir a tiona a centralidade atribuída ao texto-rei e à mensagem entendida
distância entre as mensagens e seus efeitos, e sim de .construir uma como lugar da verdade que circularia na comunicação. Levar a
análise integral do consumo, entendido como o conjunto dos processos centralidade do texto e da mensagem à crise implica assumir como
sociais de apropriação dos produtoS' .154Não estamos nem no terreno da constitutiva a assimetria de demandas e competências encontradas e
tão combatida "compulsão consumista" nem no do repertório de negociadas a partir do texto. Um texto que já não será máquina unifi-
atitudes e gostos recolhidos e classificados pelas pesquisas de mercado, cadora da heterogeneidade, um texto já não-cheio, e sim espaço globu-
mas tampouco no vago mundo da simulação e do simulacro baudri- lar perpassado por diversas trajetórias de sentido. O que afinal restitui
llardiano. O espaço da reflexão sobre o consumo é o espaço das práticas à leitura a legitimidade do prazer. Não apenas à leitura culta, à leitura
cotidianas enquanto lugar de interiorização muda da desigualdade so- erudita, mas também a qualquer leitura, às leituras populares com seu
cial, 155desde a relação com o próprio corpo até o uso do tempo, o prazer da repetição e do reconhecimento.158 Nas quais falam tanto o
hábitat e a consciência do possível para cada vida, do alcançável e do gozo quanto a resistência: a obstinação do gosto popular por uma
inatingível. Mas também enquanto lugar da impugnação desses limites narrativa que é ao mesmo tempo matéria-prima de formatos comer-
ciais e dispositivo ativador de uma competência cultural, terreno no
e expressão dos desejos, subversão de códigos e movimentos da pulsão
qual a lógica mercantil e a demanda popular às vezes lutam, e às vezes
e do gozo. O consumo não é apenas reprodução de forças, mas também
negociam. O que vem a seguir é um mapa noturno para explorar esse
produção de sentidos: lugar de uma luta que não se restringe à posse
território na encruzilhada formada na América Latina por televisão e
dos objetos, pois passa ainda mais decisivamente pelos usos que lhes melodrama.
dão forma social e nos quais se inscrevem demandas e dispositivos de
ação provenientes de diversas competências culturais.
A televisão a partir das mediações
Prova da importância desse novo terreno é a relevância po-
lítica hoje adquirida pelos "novos conflitos", as lutas contra as formas Em um momento em que o meio televisão se encontra no
de poder que perpassam, discriminando ou reprimindo, a vida coti- centro das transformações provenientes da informática - os satélites,
diana e as lutas pela apropriação de bens e serviços. A articulação entre a fibra ótica etc. - a proposta que apresentarmos aqui poderá para
ambas se fez bastante clara nas histórias que recolhemos para estudar muitos parecer anacrônica. Mesmo assim, vamos nos atrever a formulá-
o popular urbano. Ia, porque estamos convencidos de que se o meio sofre o processo de
numerosas mudanças, a mediação159 a partir da qual esse meio opera
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A cotidianidade familiar
social e culturalmente não parece estar sofrendo na América Latina
modificações de fundo. Nem as milhares de câmeras de vídeo que Se a televisão na América Latina ainda tem a família como
anualmente invadem o mercado, nem as antenas parabólicas semeadas unidade básica de audiência é porque ela representa para a maioria das
pela cidade, nem a rede a cabo estão afetando substancialmente o pessoas a situação primordial de reconhecimento. E não se pode entender
modelo de produção de televisão que já conhecemos. Quanto à relação o modo específico que a televisão emprega para interpelar a família sem
dos "usuários" com a televisão, no que diz respeito às grandes maiorias, interrogar a cotidianidade familiar enquanto lugar social de uma
não só na América Latina, mas também na Europa, as mudanças de interpelação fundamental para os setores populares. Motivo de escân-
oferta, apesar da propaganda sobre a descentralização e a pluralização, dalo, como dizíamos acima, para uma intelectualidade que se compraz
parecem apontar para um aprofundamento da estratificação social, em denunciar os aspectos repressivos da organização familiar e para
pois a oferta diferenciada dos produtos de vídeo está ligada ao poder uma esquerda que não vê nisso nada além daquilo que porta como
aquisitivo dos indivíduos. 160 A única coisa que parece importar deci- contaminação da ideologia burguesa, a análise crítica da família foi até
sivamente para os produtores e "programadores" das tecnologias de agora incapaz de pensar a mediação social que constitui. Âmbito de
vídeos é a inovação tecnológica, enquanto o uso social daquelas conflitos e fortes tensões, a cotidianidade familiar é ao mesmo tempo
potencial idades técnicas parece estar fora de seu interesse. 161 Parado- "um dos poucos lugares onde os indivíduos se confrontam como pes-
xalmente a modificação que parece afetar mais profundamente a soas e onde encontram alguma possibilidade de manifestar suas ânsias
televisão que conhecemos é a que segue a linha que estamos propondo e frustrações". 163
aqui: "É preciso abandonar o mediacentrismo, já que o sistema da mídia
Rompendo com as ultrapassadas considerações moralistas -
está perdendo parte de sua especificidade para converter-se em elemen-
a televisão corruptora das tradições familiares - e com uma filosofia
to integrante de outros sistemas de maior envergadura, como o
que atribui à televisão uma função puramente reflexa, começa a se
econômico, cultural e político". 162 Só que na América Latina o aban-
estabelecer uma concepção que vê na família um dos espaços funda-
dono do mediacentrismo está sendo produzido menos pelo impacto mentais de leitura e codificação da televisão.164 Contudo, a mediação
da reconversão industrial dos meios - sua função comunicativa
que a cotidianidade familiar cumpre na configuração da televisão não
relegada como produto residual das opções econômico-industriais -
se limita ao que pode ser examinado do âmbito da recepção, pois
do que pela força com que os movimentos sociais tornam visíveis as inscreve suas marcas no próprio discurso televisivo. Da família como
mediações. Por isso, em vez de fazer a pesquisa partir da análise das
espaço das relações estreitas e da proximidade, a televisão assume e forja
lógicas de produção e recepção, para depois procurar suas relações de
os dispositivos fundamentais: a simulação do contato e a retórica do
imbricação ou enfrentamento, propomos partir das mediações, isto é, direto.165
dos lugares dús quais provêm as construções que delimitam e confi-
Denominamos simulação do contato aos mecanismos medi-
guram a materialidade social e a expressividade cultural da televisão.
ante os quais a televisão especifica seu modo de comunicação orga-
À guisa de hipótese, recolhendo e dando forma a uma série de procuras
nizando-a sobre o eixo da função jática Qakobson), isto é, sobre a
convergentes, embora muitas delas não tenham como "objeto" a
manutenção do contato. Função que opera não apenas pela dispersão
televisão, propõem-se três lugares de mediação: a cotidianidade fami-
da atenção que se apresenta na cotidianidade privada -,-- diante da
liar, a temporalidade social e a competência cultural.
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são não seria justamente esta, a da repetição e do fragmento? E não A competência cultural
seria ao se inserir no tempo do ritual e da rotina que a televisão inscreve
Poucos mal-entendidos são tão persistentes e intricados
a cotidianidade no mercado? O tempo com que organiza sua progra- quanto esse que sustenta e no qual desemboca a relação televisão/
mação contém a forma da rentabilidade e do palimpsesto, um
cultura. De um lado, os críticos que encaram a televisão a partir do
emaranhado de gêneros. Cada programa, ou melhor, cada texto
paradigma da arte - que para eles seria a única coisa que valeria a pena
televisivo remete seu sentido ao cruzamento de gêneros e tempos. chamar de cultura - e que denunciam dia após dia, com os mesmos
Enquanto gênero, pertence a uma família de textos que se replicam e
fatigados argumentos, a decadência cultural que a televisão representa
reenviam uns aos outros nos diferentes horários do dia e da semana.
e acarreta intrinsecamente. Os poucos que, dentre estes, se arriscam a
Enquanto tempo "ocupado", cada texto remete à seqüência horária
abandonar a denúncia e partir para a ação propõem uma elevação
daquilo que o antecede e daquilo que o segue, ou àquilo que aparece
cultural da televisão que se materializa quase sempre num insuportável
no palimpsesto nos outros dias, no mesmo horário.
didatismo. De outro lado, os folclóricos, que situam a verdadeira
Visto a partir da televisão, o tempo do ócio encobre e desvela cultura no povo, mas no povo-povo, ou seja, naquele que conserva a
a forma do tempo do trabalho: o fragmento e a série. Dizia Foucault verdade sem contaminações ou mestiçagens, quer dizer, sem história.
que "o poder se articula diretamente sobre o tempo".!69 Porque é nele E quanto à sua proposta cultural? Tornar televisivo o patrimônio de
que se faz mais visível o movimento de unificação que perpassa a danças e canções, indumentárias e iconografias nacionais. Sobre outro
diversidade do social. Assim, o tempo do seriado fala a língua do sistema eixo, aparece a oposição entre os comerciantes, defendendo à moda
produtivo - a da estandardização - mas por trás dele também se populista as demandas manifestadas pela coletividade através das pes-
pode ouvir outras linguagens: a do conto popular, a canção com refrão, quisas de audiência, e o setor público falando à moda paternalista em
a narrativa aventuresca, aquela serialidade "própria de uma estética em nome das verdadeiras necessidades culturais das pessoas. 172
que o reconhecimento embasa uma parte importante do prazer e é, em
O pior do enredo é que acaba encobrindo o culturalismo em
conseqüência, norma de valores dos bens simbólicos".l?O E mais: aque-
que se movimentam todas essas visões e propostas, ao se situarem fora
la em que, segundo Benjamin, torna possível a reprodutibilidade
do sentido social das diferenças culturais e assim encobrindo os inte-
técnica, aquele sensorium ou experiência cultural do novo público, que
nasce com as massas. resses envolvidos na própria idéia de cultural com que operam. Talvez
em nenhum outro lugar o contraditório significado do massivo se faça
Pode-se falar, então, de uma estética da repetição que, traba-
tão explícito e desafiante quanto na televisão: a junção possivelmente
lhando a variação de um idêntico ou a identidade de vários diversos,
inextricável daquilo que nele é desativação de diferenças sociais e,
"conjuga a descontinuidade do tempo da narrativa com a continuidade
portanto, integração ideológica, e daquilo que ele tem de presença de
do tempo narrado".!?! O que nos permite retomar o que foi dito sobre
uma matriz cultural e de um sensorium que às elites produz asco.
a importância do sentimento de duração inaugurado pelo folhetim do
Desconhecer essa tensão, vendo apenas a eficácia do mecanismo
século XIX, permitindo que o leitor popular transite entre o conto e
integrado r e o jogo de interesses comerciais, é o que justificou e
o romance "sem se perder". A série e os gêneros fazem agora a mediação
continua a justificar que a televisão nunca seja considerada quando se
entre o tempo do capital e o tempo da cotidianidade. Mas isto será
tcmatizado em particular mais adiante. trata de discutir políticas culturais, nem por parte dos governos, nem
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através das quais o "estilo" se incorpora às práticas de trabalho. E, por a televisão na casa, central ou marginal? preside a sala onde se leva a
último, as estratégias de comercialização, que não são algo que se vida "social", ou se refugia no quarto de dormir, ou se esconde no
acrescenta "depois", para vender o produto, mas algo que deixou suas armário, de onde a retiram apenas para ver algo muito especial? A
marcas na estrutura do formato, seja na forma tomada pelo corte leitura da topografia possibilita o estabelecimento de uma topologia
narrativo para a publicidade, na qual dita seu lugar no palimpsesto, ou simbólica configurada pelos usos de classe. Do mesmo modo, é pos-
nos ingredientes diferenciais introduzidos pela diversificação daquilo sível traçar uma tipologia social dos tempos: desde a tela que fica ligada
que só será visto "dentro" de um país ou também fora dele. o dia inteiro até aquela que ligam só para ver o noticiário ou o seriado
Para abordar as lógicas (no plural) dos usos devemos começar da BBC, pode-se observar uma gama de usos que não tem a ver
diferenciando nossa proposta daquela análise denominada "dos usos unicamente com a quantidade de tempo dedicado, mas com o tipo de
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e gratificações", já que estamos tratando de retirar o estudo da recepção tempo, com o significado social deste tempol77 e com o tipo de
Q.. do espaço limitado por uma comunicação pensada em termos de demanda que as diferentes classes sociais fazem à televisão. Enquanto
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mensagens que circulam, de efeitos e reações, para re-situar sua pro- uma classe normalmente só pede informação à televisão, porque vai
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blemática no campo da cultura: dos conflitos articulados pela cultura, buscar em outra parte o entretenimento e a cultura - no esporte, no
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teatro, no livro e no concerto -, outras classes pedem tudo isso só à
:t: das mestiçagens que a tecem e dos anacronismos que a sustentam, e por
U fim do modo com que a hegemonia trabalha e as resistências que ela
televisão.
.-.1 mobiliza, do resgate, portanto, dos modos de apropriação e réplica das Não somente a classe social é que fala nos usos, mas também
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U~ classes subalternas. Há, contudo, tentativas de repensar a partir da a competência cultural dos diversos grupos que atravessa as classes, pela
--- comunicação o espaço da recepção, mas re-situando-o, como lucida- via da educação formal, com suas distintas modalidades, mas sobretu-
c; mente propôs Miquel de Moragas, no terreno dos desafios levantados do pela via dos usos que configuram etnias, culturas regionais, "dia-
rCI pela transformação tecnológica à democratização da sociedade. letos" locais e distintas mestiçagens urbanas em relação àqueles. Com-
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Moragas introduz, para isso, a proposta de uma tipologia com base na petência que vive da memória - narrativa gestual, auditiva - e tam-
noção de âmbito de recepção, que permite pensar os distintos tipos de bém dos imagindrios atuais que alimentam o sujeito social feminino ou
competência comunicativa enquanto "ativação ou freio da participa- juvenil. O acesso a esses modos de usos passa inevitavelmente por um
ção social, questão fundamental para uma política democrática dos ver com as pessoas que permita explicitar e confrontar as diversas moda-
meios, e que não consiste somente na democratização de seu controle, lidades e as competências ativadas por aquelas, e pelas narrativas-
mas também na democratização de seu USO".176 histórias de vida - que deles nos contam e dão conta deles.
O plural das lógicas do uso não se esgota na diferença social Entre a lógica do sistema produtivo e as lógicas dos usos,
das classes, mas essa diferença articula as outras. Os habitus de classe medeiam os gêneros. São suas regras que configuram basicamente os
atravessam os usos da televisão, os modos de ver, e se manifestam _ formatos, e nestes se ancora o reconhecimento cultural dos grupos.
observáveis etnograficamente - na organização do tempo e do espaço Claro que a noção de gênero que estamos trabalhando tem pouco a ver
cotidianos: de que espaços as pessoas vêem televisão, privados ou com a velha noção literária do gênero como "propriedade" de um
püblicos, a casa, o bar da esquina, o clube de bairro? e que lugar ocupa texto, e muito pouco também com a sua redução taxonômica, empre-
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endida pelo estruturalismo.178 No sentido em que estamos trabalhan- diferentes conteúdos semânticos das diversas matérias significantes.
do, um gênero não é algo que ocorra no texto, mas sim pelo texto, pois Um gênero funciona constituindo um "mundo" no qual cada elemen-
é menos questão de estrutura e combinatórias do que de competência. to não tem valências fixas. Mais ainda no caso da televisão, onde cada
Assumimos então a proposta de uma equipe de investigadores italianos
gênero se define tanto por sua arquitetura interna quanto por seu lugar
segundo a qual um gênero é, antes de tudo, uma estratégia de na programação: na grade de horários e na trama do palimpsesto. Daí
comunicabilidade, e é como marca dessa comunicabilidade que um a terceira exigência envolvida na abordagem dos gêneros: a necessidade
gênero se faz presente e analisável no texto.179 A consideração dos de construir seu sistema em cada país. Pois, em cada país, esse sistema
gêneros como fato puramente "literário" - não cultural - e, por responde a uma configuração cultural, a uma estrutura jurídica de
outro lado, sua redução a receita de fabricação ou etiqueta de classi- funcionamento da televisão, a um grau de desenvolvimento da indús-
ficação nos têm impedido de compreender sua verdadeira função e sua tria televisiva nacional, e a alguns modos de articulação com a
pertinência metodológica: chave para a análise dos textos massivos e, transnacional.
em especial, dos televisivos.
Enquanto estratégias de interação, isto é, "modos em que se Alguns sinais de identidade
reconhecíveis no melodrama
fazem reconhecíveis e organizam a competência comunicativa, os
emissores e os destinatários",180 os gêneros não podem ser estudados Vendo como vivemos no pleno melodrama - já que o melodrama
sem uma redefinição da própria concepção que se teve de comunica- é o nosso alimento cotidiano - cheguei muitas vezes a me perguntar se
ção. Pois seu funcionamento nos coloca diante do fato de que a o nosso medo do melodrama (como sinônimo de mau gosto) não seria
competência textual, narrativa, não se acha apenas presente, não é uni- devido a uma deformação causada pelas muitas leituras de romances
camente condição da emissão, mas também da recepção. Qualquer psicológicos franceses escritos nos primeiros anos do século. Mas a
telespectador sabe quando um texto/relato foi interrompido, conhece verdade é que alguns dos escritores que mais admiramos jamais tiveram
medo do melodrama. Nem Sábato nem Onetti temeram o melodrama.
as formas possíveis de interpretá-Io, é capaz de resumi-Io, dar-lhe um
Mesmo Borges, quando se aproxima do mundo do gaúcho ou do
título, comparar e classificar narrativas. Falantes do "idioma" dos
fanfarrão, aproxima-se voluntariamente do âmbito de Juan Moreira e do
gêneros, os telespectadores, como nativos de uma cultura textualizada,
tango suburbano.
"desconhecem" sua gramática, mas são capazes de falá-Io. O que, ao
Alejo Carpentier
mesmo tempo, implica uma redefinição do modo de nos aproximar-
mos dos textos da televisão. Momentos de uma negociação, os gêneros O melodrama francês não é igual ao gringo, nem o soviético ao
não são abordáveis em termos de semântica ou sintaxe: exigem a espanhol, mas em compensação se pode estudar a unidade melodramá-
construção de uma pragmática, que pode dar conta de como opera seu tica latino-americana que percorre o continente desde o Rio Grande até
reconhecimento numa comunidade cultural. Assim mesmo, o texto do a Patagônia, porque gemendo, botando a culpa nos outros, cantando
rancheiras mexicanas ou tangos argentinos quando se embebeda, é com
gênero num estoque de sentido que apresenta uma organização mais
isso que o território se identifica plenamente.
complexa do que molecular, e que portanto não é analisável seguindo
Rernando Saleedo
lima lista de presenças, mas buscando-se a arquitetura que vincula os
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Duas expressivas citações, para nos introduzir no gênero em mesmo tempo sujeito para alguém. É a dimensão viva da sociabilidade
que se reconhece a América Latina popular, mas também a culta ... atravessando e sustentando a dimensão institucional, a do "pacto
quando se embriaga. Nenhum outro gênero conseguiu agradar tanto social".
nesta região quanto o melodrama, nem mesmo o de terror - e não
Podemos agora retomar ao melodrama, ao que nele está em
por falta de motivos - ou o de aventuras - ainda que tampouco
jogo, que é o drama do reconhecimento.182 Do filho pelo pai ou da mãe
faltem selvas e rios. É como se estivesse nele o modo de expressão mais
pelo filho, o que move o enredo é sempre o desconhecimento de uma
aberto ao modo de viver e sentir da nossa gente. Por isso, para além
identidade e a luta contra as injustiças, as aparências, contra tudo o que
de tantas críticas e leituras ideológicas, e também das modas e dos
revivals para intelectuais, o melodrama continua a constituir um ter- se oculta e se disfarça: uma luta por sefazer reconhecer. Não estará aí
a secreta conexão entre o melodrama e a história deste subcontinente?
reno precioso para o estudo da não-contemporaneidade e das mesti-
Em todo caso, o des-conhecimento do "contrato social" no melodrama
çagens de que estamos feitos. Como nas praças de mercado, no me-
lodrama está tudo misturado, as estruturas sociais com as do senti- fala, em alto e bom som, do peso que têm, para aqueles que nele se
reconhecem, essa outra sociabilidade primordial do parentesco, as so-
mento, muito do que somos - machistas, fatalistas, supersticiosos-
lidariedades locais e a amizade. Seria então sem sentido indagarmos até
e do que sonhamos ser, o roubo da identidade, a nostalgia e a raiva.
que ponto o sucesso do melodrama nesses países testemunha sobre o
Em forma de tango ou telenovela, de cinema mexicano ou reportagem
fracasso de certas instituições políticas que se desenvolveram des-
policial, o melodrama explora nestas terras um profundo frlão de nosso
conhecendo o peso dessa outra sociabilidade, incapazes de assumir sua
imaginário coletivo, e não existe acesso à memória histórica nem pro- densidade cultural?
jeção possível sobre o futuro que não passe pelo imaginário. 181De que
filão se trata? Daquele em que se faz visível a matriz cultural que É claro que a compreensão dessa pergunta nos recoloca no
alimenta o reconhecimento popular na cultura de massa. âmbito dos movimentos sociais que chamamos acima de movimentos
de bairro e no sentido do cotidiano familiar nas culturas populares.
Dentre os planos de significação, ou isotopias, articulados
Aquelas em que o tempo familiar é "esse tempo a partir do qual o
pela noção de reconhecimento, o racionalismo imperante só atribui
homem se pensa social, um homem que é antes de mais nada um
sentido a um: o negativo. Porque no plano do conhecer, re-conhecer
parente. Daí que o tempo familiar se reencontre no tempo da coleti-
é pura operação de redundância, ônus inútil. E se uma tal isotopia é
vidade".183 De modo que entre o tempo da história - que é o tempo
projetada sobre a questão ideológica, então o resultado se torna ainda
da Nação e do mundo, o dos grandes acontecimentos que se dão na
mais radical: estamos no reino da alienação, onde re-conhecer consiste
comunidade - e o tempo da vida - que é aquele que vai do
em des-conhecér. Existe, porém, outro sentido, bem diferente: aquele
nascimento à morte de cada indivíduo, balizado pelos ritos que assi-
no qual re-conhecer significa interpelar, uma questão acerca dos sujei-
nalam a passagem de uma idade a outra - o tempo familiar é o que
tos, de seu modo específico de se constituir. E não só os sujeitos
medeia e possibilita sua comunicação. A propósito dos setores operá-
individuais, mas também os coletivos, os sociais, e inclusive os sujeitos
rios na cidade, e não mais de camponeses distantes do tempo do
políticos. Todos se fazem e refazem na trama simbólica das interpe-
progresso, Hoggart afirma que "os acontecimentos só são percebidos
la~:ões, dos reconhecimentos. Todo sujeito está sujeito a outro e é ao
quando afetam a vida do grupo familiar".184 Uma guerra, assim, é
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percebida como "a época em que meu tio morreu", e a capital, como tratam, nas anedotas que apresentam, que não seriam senão
"o lugar onde mora minha cunhada". Desse modo, família e vizinhan- epifenômenos da mensagem transmitida?" 186Começamos a suspeitar
ça - pois esta tem sido hoje uma espécie de "família aumentada" nos de que o que faz a força da indústria cultural e o que dá sentido a essas
bairros populares das grandes cidades, dada a brutal migração, o narrativas não se encontra apenas na ideologia, mas na cultura, na
desenraizamento e a precariedade econômica - representam no dinâmica profunda da memória e do imaginário.
mundo popular os modos da sociabilidade mais verdadeira, mesmo
Como nos velhos tempos do folhetim, agora, em sua versão
com todas as suas contradições e os seus conflitos.
mais nova e mais latino-americana - tanto que junto com os grandes
Diante dessa concepção e dessa vivência, as transformações textos do realismo mágico, a telenovela é o outro produto cultural que
operadas pelo capitalismo no âmbito do trabalho e do ócio, a a América Latina conseguiu exportar para a Europa e os Estados
mercantilização do tempo da rua e da casa e até das relações mais Unidos - o melodrama se acha mais próximo da narração, no sentido
primárias, pareceriam ter abolido aquela sociabilidade. Na verdade, que lhe deu Benjamin, que do romance, ou seja, do livro, e mais
não fizeram mais do que torná-Ia anacrônica. Mas esse anacronismo é próximo da literatura dialógica tal como Bakhtin a entende, que da
precioso, é ele que hoje, em "última instância", dá sentido ao melo- monológica. Investiguemos minimamente essas pistas.
drama na América Latina - desde a permanência da canção romântica
Da narração, o melodrama de televisão conserva uma forte
até o surgimento da telenovela - o que lhe permite mediar entre o
ligação com a cultura dos contos e das lendas, 187a literatura de cordel
tempo da vida, isto é, de uma sociabilidade negada, economicamente brasileira,188 as crônicas cantadas nas baladas e nos vallenatos.189 Con-
desvalorizada e politicamente desconhecida, mas culturalmente viva,
serva o predomínio da narrativa, do contar a, com o que isso implica
e o tempo da narrativa que a afirma e permite que as classes populares
de presença constante do narrador estabelecendo dia após dia a conti-
se reconheçam nela. E que a partir dela, melodramatizando tudo, nuidade dramática; e conserva também a abertura indefinida da narra-
vinguem-se à sua maneira, secretamente, da abstração imposta à vida
tiva, sua abertura no tempo - sabe-se quando começa mas não quan-
pela mercantilização, da exclusão política e da despossessão cultural.
do acabará - e sua permeabilidade à atualidade do que se passa en-
Mas onde ficam a alienação, a ideologia e as argúcias dos quanto a narrativa se mantém, e as condições mesmas de sua efetivação.
comerciantes? Também aí, como parte da trama de desconhecimentos Uma telenovela peruana acabou incorporando como um fato da vida
e reconhecimentos. Trabalhando não a partir do exterior e menos real uma greve dos taxistas de Lima, que tinha impedido a gravação de
ainda como os "verdadeiros" protagonistas de um drama em que o algumas cenas, incorporou-se à telenovela como um fato de vida.
pobre povo não seria outra vez mais do que o coro. E o coro se rebelou Funcionamento paradoxal é a de uma narrativa que, produzida segun-
há muito tempo.185 Depõe sobre essa rebelião, muito a seu modo, o do as regras mais exigentes da indústria, e incorporando a tecnologia
desconcertante prazer que as pessoas do povo continuam a procurar no mais avançada, responde no entanto a uma lógica oposta à que rege
melodrama. "Que tipo de masoquismo de massa, ou que comporta- seu modo de produção: a qualidade da comunicação que alcança tem
mento de classe suicida pode explicar tal fascínio?", pergunta-se Michel pouco a ver com a qualidade de informação que proporciona.
Mattelart, que responde com outra pergunta: "Será possível que o
Segunda pista: o melodrama como literatura dialógica ou,
poder das indústrias culturais não resida inteiramente nos temas de que
segundo uma versão brasileira ancorada na proposta bakhtiniana,
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como gênero carnavalesco, aquele "onde autor, leitor e personagens Continuar pensando o massivo como algo puramente exte-
trocam constantemente de posição".190 Intercâmbio que é confUsão rior ao popular - como algo que só faz parasitar, fagocitar,
entre narrativa e vida, entre o que faz o ator e o que se passa com o vampirizarl92 - só é possível, hoje, a partir de duas posições. Ou a
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