Estudante: Curso:
Professor FRED CARLOS TREVISAN Data: / / 2024
Disciplina de Filosofia
A T I V I D A D E D E AN Á L I S E E C O M P R E E N S Ã O
Capítulo 5 1
O ideal científico e a razão instrumental
Ciência desinteressada e utilitarismo
Desde a Renascença – isto é, desde o humanismo, que colocava o homem no centro do Universo
e afirmava seu poder para conhecer e dominar a realidade – duas concepções sobre o valor da ciência
estiveram sempre em confronto.
A primeira delas, que chamaremos de ideal do conhecimento desinteressado, afirma que o valor de
uma ciência encontra-se na qualidade, no rigor e na exatidão, na coerência e na verdade de uma teoria,
independentemente de sua aplicação prática. A teoria científica vale por trazer conhecimentos novos sobre
fatos desconhecidos, por ampliar o saber humano sobre a realidade e não por ser aplicável praticamente.
Em outras palavras, é por ser verdadeira que a ciência pode ser aplicada na prática, mas o uso da ciência é
conseqüência e não causa do conhecimento científico.
A segunda concepção, conhecida como utilitarismo, ao contrário, afirma que o valor de uma ciência
encontra-se na quantidade de aplicações práticas que possa permitir. É o uso ou a utilidade imediata dos
conhecimentos que prova a verdade de uma teoria científica e lhe confere valor. Os conhecimentos são
procurados para resolver problemas práticos e estes determinam não só o aparecimento de uma ciência,
mas também suas transformações no decorrer do tempo.
As duas concepções são verdadeiras, mas parciais. Se uma teoria científica fosse elaborada
apenas por suas finalidades práticas imediatas, inúmeras pesquisas jamais teriam sido feitas e inúmeros
fenômenos jamais teriam sido conhecidos, pois, com frequência, os conhecimentos teóricos estão mais
avançados do que as capacidades técnicas de uma época e, em geral, sua aplicação só é percebida e só é
possível muito tempo depois de haver sido elaborada.
No entanto, se uma teoria científica não for capaz de suscitar aplicações, se não for capaz de
permitir o surgimento de objetos técnicos e tecnológicos, instrumentos, utensílios, máquinas,
medicamentos, de resolver problemas importantes para os seres humanos, então seremos obrigados a
dizer que a técnica e a tecnologia são cegas, incertas, arriscadas e perigosas, porque são práticas sem
bases teóricas seguras. Na realidade, teoria e prática científicas estão relacionadas na concepção moderna
e contemporânea de ciência, mesmo que uma possa estar mais avançada do que a outra.
A distinção e a relação entre ciência pura e ciência aplicada pode solucionar o impasse ou o
confronto entre as duas concepções sobre o valor das teorias científicas, garantindo, por um lado, que uma
teoria possa e deva ser elaborada sem a preocupação com fins práticos imediatos, embora possa, mais
tarde, contribuir para eles; e, por outro lado, garantindo o caráter científico de teorias construídas
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Este texto é parte do livro Convite à Filosofia de Marilena Chauí
diretamente com finalidades práticas, as quais podem, por sua vez, suscitar investigações puramente
teóricas.
Pode-se dizer que são problemas e dificuldades técnicas e práticas que suscitam o
desenvolvimento de conhecimentos teóricos. Sabemos, por exemplo, que o químico Lavoisier decidiu
estudar o fenômeno da combustão para resolver problemas econômicos da cidade de Paris, que Galileu e
Torricelli investigaram o movimento dos corpos no vácuo para resolver problemas de carregamento de
grandes pesos nos portos e para responder a uma pergunta dos construtores de fontes dos jardins da
cidade de Florença.
No entanto, o que sempre se verifica é que a explicação científica e a teoria acabam conhecendo
muito mais fatos e relações do que o que era necessário para solucionar o problema prático, de tal modo
que as pesquisas teóricas vão avançando já sem a preocupação prática, embora comecem a surgir e a
suscitar, tempos depois, soluções práticas para problemas novos. Assim, por exemplo, passou-se muito
tempo até que a teoria eletromagnética de Hertz levasse às técnicas de radiodifusão.
A ideologia cientificista
O senso comum, ignorando as complexas relações entre as teorias científicas e as técnicas, entre
ciência pura e ciência aplicada, entre teoria e prática e entre verdade e utilidade, tende a identificar as
ciências com os resultados de suas aplicações. Essa identificação desemboca numa atitude conhecida
como cientificismo, isto é, fusão entre ciência e técnica e a ilusão da neutralidade científica.
Examinemos brevemente cada um desses aspectos que constituem a ideologia da ciência na
sociedade contemporânea.
O cientificismo
O cientificismo é a crença infundada de que a ciência pode e deve conhecer tudo, que, de fato,
conhece tudo e é a explicação causal das leis da realidade tal como esta é em si mesma.
Ao contrário dos cientistas, que não cessam de enfrentar obstáculos epistemológicos, problemas e
enigmas, o senso comum cientificista desemboca numa ideologia e numa mitologia da ciência.
Ideologia da ciência: crença no progresso e na evolução dos conhecimentos que, um dia,
explicarão totalmente a realidade e permitirão manipulá-la tecnicamente, sem limites para a ação humana.
Mitologia da ciência: crença na ciência como se fosse magia e poderio ilimitado sobre as coisas e
os homens, dando-lhe o lugar que muitos costumam dar às religiões, isto é, um conjunto doutrinário de
verdades intemporais, absolutas e inquestionáveis.
A ideologia e a mitologia cientificistas encaram a ciência não pelo prisma do trabalho do
conhecimento, mas pelo prisma dos resultados (apresentados como espetaculares e miraculosos) e
sobretudo como uma forma de poder social e de controle do pensamento humano. Por este motivo, aceitam
a ideologia da competência, isto é, a ideia de que há, na sociedade, os que sabem e os que não sabem,
que os primeiros são competentes e têm o direito de mandar e de exercer poderes, enquanto os demais são
incompetentes, devendo obedecer e ser mandados. Em resumo, a sociedade deve ser dirigida e
comandada pelos que “sabem” e os demais devem executar as tarefas que lhes são ordenadas.
A ilusão da neutralidade da ciência
Como a ciência se caracteriza pela separação e pela distinção entre o sujeito do conhecimento e o
objeto; como a ciência se caracteriza por retirar dos objetos do conhecimento os elementos subjetivos;
como os procedimentos científicos de observação, experimentação e interpretação procuram alcançar o
objeto real ou o objeto construído como modelo aproximado do real; e, enfim, como os resultados obtidos
por uma ciência não dependem da boa ou má vontade do cientista nem de suas paixões, estamos
convencidos de que a ciência é neutra ou imparcial. Diz à razão o que as coisas são em si mesmas.
Desinteressadamente.
Essa imagem da neutralidade científica é ilusória.
Quando o cientista escolhe uma certa definição de seu objeto, decide usar um determinado método
e espera obter certos resultados, sua atividade não é neutra nem imparcial, mas feita por escolhas precisas.
Vamos tomar três exemplos que nos ajudarão a esclarecer este ponto.
O racismo não é apenas uma ideologia social e política. É também uma teoria que se pretende
científica, apoiada em observações, dados e leis conseguidas com a biologia, a psicologia, a sociologia. É
uma certa maneira de construir tais dados, de sorte a transformar diferenças étnicas e culturais em
diferenças biológicas naturais imutáveis e separar os seres humanos em superiores e inferiores, dando aos
primeiros justificativas para explorar, dominar e mesmo exterminar os segundos.
Por que Copérnico teve que esconder os resultados de suas pesquisas e Galileu foi forçado a
comparecer perante a Inquisição e negar que a Terra se movia ao redor do Sol? Porque a concepção
astronômica geocêntrica (elaborada, na Antiguidade, por Ptolomeu e Aristóteles) permitia que a Igreja
Romana mantivesse a ideia de que a realidade é constituída por uma hierarquia de seres, que vão dos mais
perfeitos – os celestes – aos mais imperfeitos – os infernais – e que essa hierarquia colocava a Igreja acima
dos imperadores, estes acima dos barões e estes acima dos camponeses e servos.
Se a astronomia demonstrasse que a Terra não é o centro do Universo e que o Sol não é apenas
uma perfeição imóvel, e se a mecânica galileana demonstrasse que todos os seres estão submetidos às
mesmas leis do movimento, então as hierarquias celestes, naturais e humanas, perderiam legitimidade e
fundamento, não precisando ser respeitadas. A física e a astronomia pré-copernicanas (elaboradas por
Ptolomeu e Aristóteles) serviam – independentemente da vontade de Ptolomeu e de Aristóteles, é verdade
– a uma sociedade e a uma concepção do poder que se viram ameaçadas por uma nova concepção
científica.
Um último exemplo pode ser dado através da antropologia. Durante muito tempo, os antropólogos
afirmaram que havia duas formas de pensamento cientificamente observáveis e com leis diferentes: o
pensamento lógico-racional dos civilizados (europeus brancos adultos) e o pensamento pré-lógico e
préracional dos selvagens ou primitivos (africanos, índios, tribos australianas). O primeiro era considerado
superior, verdadeiro e evoluído; o segundo, inferior, falso, supersticioso e atrasado, cabendo aos brancos
europeus “auxiliar” os selvagens “primitivos” a abandonar sua cultura e adquirir a cultura “evoluída” dos
colonizadores.
O melhor caminho para perceber a impossibilidade de uma ciência neutra é levar em consideração
o modo como a pesquisa científica se realiza em nosso tempo.
Durante séculos, os cientistas trabalharam individualmente (mesmo que possuíssem auxiliares e
discípulos) em seus pequenos laboratórios. Suas pesquisas eram custeadas ou por eles mesmos ou por
reis, nobres e burgueses ricos, que desejavam a glória de patrocinar descobertas e as vantagens práticas
que delas poderiam advir. Por sua vez, o senso comum social olhava o cientista como inventor e gênio.
Hoje, os cientistas trabalham coletivamente, em equipes, nos grandes laboratórios universitários,
nos dos institutos de pesquisa e nos das grandes empresas transnacionais que participam de um sistema
conhecido como complexo industrial-militar. As pesquisas são financiadas pelo Estado (nas universidades e
institutos), pelas empresas privadas (em seus laboratórios) e por ambos (nos centros de investigação do
complexo industrial-militar). São pesquisas que exigem altos investimentos econômicos e das quais se
esperam resultados que a opinião pública nem sempre conhece. Além disso, os cientistas de uma mesma
área de investigação competem por recursos, tendem a fazer segredo de suas descobertas, pois dependem
delas para conseguir fundos e vencer a competição com outros.
Sabemos, hoje, que a maioria dos resultados científicos que usamos em nossa vida cotidiana –
máquinas, remédios, fertilizantes, produtos de limpeza e de higiene, materiais sintéticos, computadores –
tiveram como origem investigações militares e estratégicas, competições econômicas entre grandes
empresas transnacionais e competições políticas entre grandes Estados. Muito do que usamos em nosso
cotidiano provém de pesquisas nucleares, bacteriológicas e espaciais.
O senso comum social, agora, vê o cientista como engenheiro e mago, em roupas brancas no
interior de grandes laboratórios repletos de objetos incompreensíveis, rodeado de outros cientistas, fazendo
cálculos misteriosos diante de dezenas de computadores.
Tanto na visão anterior – o cientista como inventor e gênio solitário – quanto na atual – o cientista
como membro de uma equipe de engenheiros e magos -, o senso comum vê a ciência desligada do
contexto das condições de sua realização e de suas finalidades. Eis porque tende a acreditar na
neutralidade científica, na ideia de que o único compromisso da ciência é o conhecimento verdadeiro e
desinteressado e a solução correta de nossos problemas.
A ideologia cientificista usa essa imagem idealizada para consolidar a da neutralidade científica,
dissimulando, com isso, a origem e a finalidade da maioria das pesquisas, destinadas a controlar a
Natureza e a sociedade segundo os interesses dos grupos que controlam os financiamentos dos
laboratórios.
A razão instrumental
Por que há uma ideologia e uma mitologia da ciência?
Quando estudamos a teoria do conhecimento, examinamos a noção de ideologia como lógica
social imaginária de ocultamento da realidade histórica. Ao estudarmos o nascimento da Filosofia,
examinamos a diferença entre mythos e logos, isto é, entre a explicação antropomórfica e mágica do mundo
e a explicação racional. Quando estudamos a razão, vimos que alguns filósofos alemães, reunidos na
Escola de Frankfurt, descreveram a racionalidade ocidental como instrumentalização da razão. Se
reunirmos esses vários estudos que fizemos até aqui, poderemos responder à pergunta sobre a
ideologização e a mitologização da ciência.
A razão instrumental – que os frankfurtianos, como Adorno, Marcuse e Horkheimer também
designaram com a expressão razão iluminista – nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de
que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Assim, por exemplo, o filósofo Francis
Bacon, no início do século XVII, criou uma expressão para referir-se ao objeto do conhecimento científico:
“a Natureza atormentada”.
Atormentar a Natureza é fazê-la reagir a condições artificiais, criadas pelo homem. O laboratório
científico é a maneira paradigmática de efetuar esse tormento, pois, nele, plantas, animais, metais, líquidos,
gases, etc. são submetidos a condições de investigação totalmente diversas das naturais, de maneira a
fazer com que a experimentação supere a experiência, descobrindo formas, causas, efeitos que não
poderiam ser conhecidos se contássemos apenas com a atividade espontânea da Natureza. Atormentar a
Natureza é conhecer seus segredos para dominá-la e transformá-la.
O tormento da realidade aumenta com a ciência contemporânea, uma vez que esta não se
contenta em conhecer as coisas e os seres humanos, mas os constrói artificialmente e aplica os resultados
dessa construção ao mundo físico, biológico e humano (psíquico, social, político, histórico). Assim, por
exemplo, a organização do processo de trabalho nas indústrias apresenta-se como científica porque é
baseada em conceitos da psicologia, da sociologia, da economia, que permitem dominar e controlar o
trabalho humano sob todos os aspectos (controle sobre o corpo e o espírito dos trabalhadores), a fim de
que a produtividade seja a maior possível para render lucros ao capital.
Na medida em que a razão se torna instrumental, a ciência vai deixando de ser uma forma de
acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumento de dominação, poder e exploração.
Para que não seja percebida como tal, passa a ser sustentada pela ideologia cientificista, que, através da
escola e dos meios de comunicação de massa, desemboca na mitologia cientificista.
Todavia, devemos distinguir entre o momento da investigação científica propriamente dita e o da
ideologização-mitologização de uma ciência. Um exemplo poderá auxiliar-nos a perceber essa diferença.
Quando Darwin elabora a teoria biológica da evolução das espécies, o modelo de explicação usado por ele
permitia-lhe supor que o processo evolutivo ocorria por seleção natural dos mais aptos à sobrevivência.
Ora, na mesma época, a sociedade capitalista estava convencida de que o progresso social e
histórico provinha da competição e da concorrência dos indivíduos, segundo a lei econômica da oferta e da
procura. Um filósofo, Spencer, aplicou, então, a teoria darwiniana à sociedade: nesta, os mais “aptos” (isto
é, os mais capazes de competir e concorrer) tornam-se naturalmente superiores aos outros, vencendo-os
em riqueza, privilégios e poder.
Ao transpor uma teoria biológica para uma explicação filosófica sobre a essência da sociedade,
Spencer transformou a teoria científica da evolução em ideologia evolucionista. Por quê? Em primeiro lugar,
porque generalizou para toda a realidade resultados obtidos num campo particular de conhecimentos
específicos. Em segundo lugar, porque tomou conceitos referentes a fatos naturais e os converteu em fatos
sociais, como se não houvesse diferença entre Natureza e sociedade. Uma vez criada a ideologia
evolucionista, o evolucionismo tornou-se teoria da História e, a seguir, mitologia científica do progresso
humano.
A noção de razão instrumental nos permite compreender:
a transformação de uma ciência em ideologia e mito social, isto é, em senso comum
cientificista;
que a ideologia da ciência não se reduz à transformação de uma teoria científica em
ideologia, mas encontra-se na própria ciência, quando esta é concebida como instrumento
de dominação, controle e poder sobre a Natureza e a sociedade;
que as idéias de progresso técnico e neutralidade científica pertencem ao campo da ideologia
cientificista. Confusão entre ciência e técnica
Vimos que a ciência moderna e contemporânea transforma a técnica em tecnologia, isto é, passa
da máquina-utensílio à máquina como instrumento de precisão, que permite conhecimentos mais exatos e
novos conhecimentos.
Essa transformação traz duas consequências principais: a primeira se refere ao conhecimento
científico e a segunda, ao estatuto dos objetos técnicos:
1. o conhecimento científico é concebido como lógica da invenção (para a solução de
problemas teóricos e práticos) e como lógica da construção (de objetos teóricos), graças à possibilidade de
estudar os fenômenos sem depender apenas dos recursos de nossa percepção e de nossa inteligência. É
assim que, por exemplo, Galileu se refere ao telescópio como um instrumento cuja função não é a de
simplesmente aproximar objetos distantes, mas de corrigir as distorções de nossos olhos e garantir-nos a
imagem correta das coisas. O mesmo foi dito sobre o microscópio, sobre a balança de precisão, sobre o
cronômetro.
Em nosso tempo, os instrumentos técnico-tecnológicos vão além da correção de nossa percepção,
pois corrigem falhas de nosso pensamento, uma vez que são inteligências artificiais (o computador foi
chamado de “cérebro eletrônico”) mais acuradas do que nossa inteligência individual. Evidentemente, são
conhecimentos científicos que permitem a construção desses instrumentos, mas dando-lhes capacidades
que cada um de nós, enquanto indivíduo, não possui. Ora, os objetos técnico-tecnológicos ampliam a ideia
da ciência como invenção e construção dos próprios fenômenos;
2. os objetos técnicos são criados pela ciência como instrumentos de auxílio ao trabalho
humano, máquinas para dominar a Natureza e a sociedade, instrumentos de precisão para o conhecimento
científico e, sobretudo, em sua forma contemporânea, como autômatos. Estes são o objeto técnico-
tecnológico por excelência, porque possuem as seguintes características, marcas do novo estatuto desse
objeto:
são conhecimento científico objetivado, isto é, depositado e concretizado num objeto. São
resultado e corporificação de conhecimentos científicos;
são objetos que possuem em si mesmos o princípio de sua regulação, manutenção e
transformação. As máquinas antigas dependiam de forças externas para realizar suas
funções (alavancas, polias, manivelas, força muscular de seres humanos ou de animais,
força hidráulica, etc.). As máquinas modernas são autômatos porque, dado o impulso
eletro-eletrônico inicial, realizam por si mesmas todas as operações para as quais foram
programadas, incluindo a correção de sua própria ação, a realimentação de energia, a
transformação. São auto-reguladas e autoconservadas, porque possuem em si mesmas as
informações necessárias ao seu funcionamento;
como consequência, não são propriamente um objeto singular ou individual, mas um sistema
de objetos interligados por comandos recíprocos;
são sistemas que, uma vez programados, realizam operações teóricas complexas, que
modificam o conteúdo dos próprios conhecimentos científicos, isto é, os objetos técnico-
tecnológicos fazem parte do trabalho teórico.
Ora, o senso comum social ignora essas transformações da ciência e da técnica e conhece apenas
seus resultados mais imediatos: os objetos que podem ser usados por nós (máquina de lavar, videogame,
televisão a cabo, máquina de calcular, computador, robô industrial, etc.).
Como, para usá-los, precisamos receber um conjunto de informações detalhadas e sofisticadas,
tendemos a identificar o conhecimento científico com seus efeitos tecnológicos. Com isso, deixamos de
perceber o essencial, isto é, que as ciências passaram a fazer parte das forças econômicas produtivas da
sociedade e trouxeram mudanças sociais de grande porte na divisão social do trabalho, na produção e na
distribuição dos objetos, na forma de consumi-los. Não percebemos que as pesquisas científicas são
financiadas por empresas e governos, demandando grandes somas de recursos que retornam, graças aos
resultados obtidos, na forma de lucro e poder para os agentes financiadores.
Por não percebermos o poderio econômico das ciências, lutamos para ter acesso, para possuir e
consumir os objetos tecnológicos, mas não lutamos pelo direito de acesso tanto aos conhecimentos como
às pesquisas científicas, nem lutamos pelo direito de decidir seu modo de inserção na vida econômica e
política de uma sociedade.
Eis porque, entre outros efeitos de nossa confusão entre ciência e tecnologia, aceitamos, no Brasil,
políticas educacionais que profissionalizam os jovens no segundo grau – portanto, antes que tenham podido
ter acesso às ciências propriamente ditas – e que destinam poucos recursos públicos às áreas de pesquisa
nas universidades – portanto, mantendo os cientistas na mera condição de reprodutores de ciências
produzidas em outros países e sociedades.
O problema do uso das ciências
Além do problema anterior, isto é, de teorias científicas serem formuladas a partir de certas
decisões e escolhas do cientista ou do laboratório onde trabalham os cientistas, com consequências sérias
para os seres humanos, um outro problema também é trazido pelas ciências: o de seu uso.
Vimos que uma teoria científica pode nascer para dar resposta a um problema prático ou técnico.
Vimos também que a investigação científica pode ir avançando para descobertas de fenômenos e relações
que já não possuem relação direta com os problemas práticos iniciais e, como consequência, é frequente
uma teoria estar muito mais avançada do que as técnicas e tecnologias que poderão aplicá-la. Muitas
vezes, aliás, o cientista sequer imagina que a teoria terá aplicação prática.
É exatamente isso que torna o uso da ciência algo delicado, que, em geral, escapa das mãos dos
próprios pesquisadores. É assim, por exemplo, que a microfísica ou física quântica desemboca na
fabricação das armas nucleares; a bioquímica e a genética, na de armas bacteriológicas. Teorias sobre a
luz e o som permitem a construção de satélites artificiais, que, se são conectáveis instantaneamente em
todo o globo terrestre para a comunicação e informação, também são responsáveis por espionagem militar
e por guerras com armas teleguiadas.
Uma das características mais novas da ciência está em que as pesquisas científicas passaram a
fazer parte das forças produtivas da sociedade, isto é, da economia. A automação, a informatização, a
telecomunicação determinam formas de poder econômico, modos de organizar o trabalho industrial e os
serviços, criam profissões e ocupações novas, destroem profissões e ocupações antigas, introduzem a
velocidade na produção de mercadorias e em sua distribuição e consumo, modificando padrões industriais,
comerciais e estilos de vida. A ciência tornou-se parte integrante e indispensável da atividade econômica.
Tornou-se agente econômico e político.
Além de fazer parte essencial da atividade econômica, a ciência também passou a fazer parte do
poder político. Não é por acaso, por exemplo, que governos criem ministérios e secretarias de ciência e
tecnologia e que destinem verbas para financiar pesquisas civis e militares. Do mesmo modo que as
grandes empresas financiam pesquisas e até criam centros e laboratórios de investigação científica, assim
também os governos determinam quais as ciências que irão ser desenvolvidas e, nelas, quais as pesquisas
que serão financiadas.
Essa nova posição das ciências na sociedade contemporânea, além de indicar que é mínimo ou
quase inexistente o grau de neutralidade e de liberdade dos cientistas, indica também que o uso das
ciências define os recursos financeiros que nelas serão investidos.
A sociedade, porém, não luta pelo direito de interferir nas decisões de empresas e governos
quando estes decidem financiar um tipo de pesquisa em vez de outra. Dessa maneira, o campo científico
torna-se cada vez mais distante da sociedade sem que esta encontre meios para orientar o uso das
ciências, pois este é definido antes do início das próprias pesquisas e fora do controle que a sociedade
poderia exercer sobre ele.
Um exemplo de luta social para intervir nas decisões sobre as pesquisas e seus usos encontra-se
nos movimentos ecológicos e em muitos movimentos sociais ligados a reivindicações de direitos. De um
modo geral, porém, a ideologia cientificista tende a ser muito mais forte do que eles e a limitar os resultados
que desejariam obter.