Águas que unem: integração regional e Itaipu
Leonardo Bauer Maggi
INTRODUÇÃO
Tomemos por exercício imaginar a eventual necessidade de se inundar as
Cataratas do Iguaçu. Pois imaginemos agora afogar algo 10 vezes maior que essas
cataratas. Foi isso que aconteceu nos anos 1970, quando governos do Brasil e Paraguai
decidiram construir Itaipu, submergindo as Sete Quedas. Eram dezenas as alternativas
que permitiam levar a cabo a decisão de exploração das águas do rio Paraná no seu
trecho mais caudaloso, mas o capital não hesitou tomar da humanidade esse que era um
dos mais belos espetáculos da natureza. Inicia aí a dívida de Itaipu.
O livro “Águas que nos unem – integração regional e Itaipu” é uma
atualização da dissertação de mestrado “Contribuições de Itaipu no processo de
integração elétrica regional”, do mesmo autor, defendida há dez anos (2013) no
programa de pós graduação de geografia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” – Unesp, campus de Presidente Prudente/SP, então orientada pelos
professores Elizeu Saverio Sposito da Unesp e Dorival Gonçalves da Universidade
Federal do Mato Grosso.
Esse trabalho é também resultado de um grande esforço que organizações de
trabalhadores e seus militantes tem se dedicado a interpretação crítica da realidade
concreta em que estão inseridos, numa expectativa que seja concretamente útil,
qualificando o ambiente da luta. Nesse sentido, vale destacar o grande esforço que
representa a Plataforma Operária e Camponesa da Água e Energia – Pocae/Brasil, o
Movimiento de los Afectados por Represas – MAR assim como as organizações
populares especialmente paraguaias, que realizam uma luta incansável pela soberania
energética.
Nesse livro o autor não se intimidou em tomar emprestado o texto original da
referida dissertação, especialmente os primeiros capítulos. O capítulo 1 descreve de
forma muito sintética pressupostos políticos e econômicos que foram ao longo dos anos
sendo construídos e permitiram pela definição do projeto Itaipu, aspectos que levaram a
escolha do local, o tamanho do empreendimento e as condições de operação. O capitulo
2 parte da análise da Itaipu constituída e como Brasil e Paraguai construíram
instrumentos de gestão capazes de garantir a produção de energia, a expansão do parque
gerador e o pagamento da dívida contraída para sua construção. Uma engenharia
institucional e financeira tão gigantesca quanto a própria obra e que muito do que foi aí
desenvolvido são utilizados até os dias atuais.
O capitulo 3 inicia a estruturação de uma crítica que busca revelar alguns
interesses, além daqueles puramente nacionais, incentivadores e outros atraídos pelo
projeto e como o mesmo conseguiu estabelecer bases sólidas e estáveis do ponto de
vista político, institucional, financeiro, social e inclusive territorial ao ponto de ser
reconhecido pelo autor como exclusivo, único, um território do capital. Território esse
estabelecido por meio de mecanismos espoliativos, violando direitos e culturas, num
dos períodos mais repressivos da política brasileira. Um território dedicado a atender os
interesses industriais, com a venda de energia abundante e relativamente barata, e ao
mesmo tempo irrigar setores financeiros variados, por meio do compromisso assumido
(cumprido) ao longo de quase 4 décadas, que comprometeu 70% de toda a riqueza
produzida.
O capítulo 4 busca preservar a leitura crítica, agora focado na política elétrica
brasileira e como essa fez da Indústria da Eletricidade um ambiente de reprodução
maximizado do capital dede as fases mais industriais, até os dias atuais sendo
apropriada pelo capital rentista. O autor sustenta a tese de que está instalado no Brasil
um verdadeiro esquema de espoliação da riqueza socialmente produzida, riqueza essa
subtraída do conjunto da população por meio da precarização das relações de trabalho,
na apropriação das bases naturais mais vantajosas, sustentado por forte aparato
institucional.
O quinto e último capítulo apresenta alguns pontos que devem ser discutidos
para Itaipu pós 2023, tendo como perspectiva a construção de um programa de reformas
capazes de criar as melhores condições para que nesse próximo período a riqueza
produzida em Itaipu esteja toda a serviço da população brasileira, paraguaia e da região,
considerando o enorme contribuição que a integração regional pode representar em
relação ao aumento da eficiência, da sustentabilidade e da produtividade dessa indústria,
bem como ferramenta de universalização do acesso a energia na região. Entre as
questões, apresenta-se a necessidade de se discutir uma política tarifária compatível com
as expectativas e necessidades da região, resolução de dívidas históricas, modelos de
contratação, definição de moedas e a necessária participação popular com vistas a
construção de uma transição energética justa.
Itaipu foi um marco da indústria de eletricidade em nível mundial, construiu
inovações tecnológicas, materializou novas formas de remuneração de capitais de todo
mundo, representou um grande avanço no processo de integração elétrica bilateral e
poderá inaugurar uma nova fase da integração elétrica regional, fornecendo energia de
baixo custo, com segurança no suprimento e renovável, algo difícil de se encontrar em
toda a face terrestre nos dias atuais.
Trata-se de uma obra construída por milhões de brasileiros e paraguaios ao
longo de 50 anos. Até então, Itaipu privilegiou o pagamento da dívida aos bancos.
Talvez agora seja a vez de olhar para àqueles que cederam seus territórios para essa ser
instalada, olhar para àqueles que perderam ou não tiveram a oportunidade de conhecer
um dos maiores espetáculos naturais existentes – Sete Quedas, olhar para àqueles que ao
longo de 40 anos mensalmente pagaram seus custos internacionalmente definidos.
Abriu-se a oportunidade de Itaipu estar definitivamente a serviço dos interesses do povo
paraguaio, brasileiro bem como de toda a região.
A integração elétrica com vistas a um desenvolvimento sustentável, a produção
da riqueza em abundância afim de sanar as profundas desigualdades regionais, o acesso
universal a energia e a água, a gestão integrada e participativa das águas, assim como o
manancial do rio Paraná, são águas que nos unem.
1. A constituição de Itaipu
Até 1930, apesar de pequeno, isolado e fragmentado, o sistema de geração e
suprimento de eletricidade brasileiro era suficiente para atender o interesse nacional, até
então fundado numa economia tipo agrário-exportadora, restrita ao atendimento de
alguns poucos centros urbanos e algumas manufaturas, principalmente tecelagens e
pequenas siderurgias. Esse sistema era também responsável por serviços de bondes e
telecomunicações. As dificuldades que o projeto agrário-exportador teve no Brasil em
manter o processo de produção de excedente após 1930 abriu caminho para que setores
menos dependentes do mercado internacional pudessem expandir. A partir de então, o
Brasil inicia um forte processo de ampliação da atividade industrial.
Para tanto, foi necessário constituir todo um arranjo institucional e produtivo
capaz de dar conta das novas necessidades. No caso da energia elétrica, as mudanças
iniciaram com o fim da Cláusula Ouro (que determinava que os valores de serviços de
energia elétrica não teriam mais como indexador principal uma referência monetária
internacional, nesse caso o ouro) e a instituição do Código de Águas (Decreto 24.643 de
10/07/1934, que definiu que todos os recursos hídricos são monopólio do Estado e que
qualquer tipo de exploração da água necessitaria de concessão estatal).
Essas duas medidas jurídico-institucionais representaram clara mudança no
papel do Estado, que também começou a ampliar sua participação no planejamento,
investimento e gestão da indústria da eletricidade. Nas décadas que se seguiram, muitas
foram as ações de Estado, desde o planejamento e levantamento de potenciais
hidráulicos, na interligação das estruturas de geração existentes e na tomada de
concessões privadas de distribuição de energia elétrica. Esse processo culminou com a
criação da Companhia Hidrelétrica do São Francisco - CHESF (Decreto 8.031, de
1945) e da Centrais Elétricas Brasileiras S/A - Eletrobrás (1961) 1 e da própria Comissão
Interestadual da Bacia Paraná-Uruguai - CIBPU2, constituída em 1951 para avaliar o
potencial hidrelétrico das referidas bacias, além da Companhia do Vale do rio São
Francisco - CVSF (1948), a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da
1
Apesar de ter o seu projeto de criação enviado para o Congresso Nacional em 1954, o mesmo foi
aprovado apenas em 25/04/1961, através da Lei 3.890-A;
2
Segundo GARDIN, 2009, pg 19, a “CIBPU e a CVSF (Comissão do Vale do São Francisco) foram
as únicas experiências de planejamento regional no Brasil centradas no desenvolvimento de
bacias hidrográficas, base territorial advinda do modelo do planejamento norte-americano do
vale do rio Tennessee (TVA). Com isso, a CIBPU adotou a concepção de desenvolvimento
regional integral, baseado no planejamento de conjunto da Bacia Paraná-Uruguai”.
Amazônia - SPVEA (1953), a Superintendência do Plano de Valorização da Fronteira
Sudoeste do País - SPVESUD (1956) e a Superintendência de Desenvolvimento do
Nordeste - SUDENE (1959) (GARDIN, 2009, pg 20).
Com a criação da Eletrobrás (1961), um forte ciclo de expansão da indústria da
eletricidade se estabelece no Brasil. Dados do Ministério de Minas e Energia – MME,
(apud MAGGI, 2013, p 22) demonstram que até 1954, o Brasil possuía uma capacidade
instalada de 2.173 MW. Dez anos depois, em 1964, esse número atinge 4.894 MW e em
1984, com o início das operações de Itaipu, o Brasil passa a ter 34.932 MW instalados.
Ou seja, em 30 anos, a capacidade instalada em base hidráulica brasileira expandiu
quinze vezes, 7 vezes mais que o PIB do mesmo período.
Enquanto se verificava esse crescimento no Brasil, em nível mundial, o período
compreendido entre o Pós-Segunda Guerra Mundial (1945) até os anos 1970
representou grande êxito para a acumulação capitalista. Com o fim da reconstrução da
Europa, não havia mais onde aplicar tanto capital excedente. Uma das saídas
encontradas pelo capital rentista mundial foi fazer investimentos em países não
desenvolvidos. Sobre esse período, Harvey faz a seguinte consideração:
Os bancos de investimento de Nova York, então
lotados de excedentes [...] e desesperados por
novas oportunidades de investimento num
momento em que o potencial de rentabilidade de
investimento dentro dos Estados Unidos estava
exausto, fizeram empréstimos maciços para países
em desenvolvimento como México, Brasil, Chile e
até mesmo para Polônia. (2011, p. 24)
A política de financiamento externo, também conhecida como política de
exportação de capitais (Lenin, 2012), foi bem recebida pelos países latino americanos,
principalmente aqueles que mantinham o poder político sob o comando das forças
armadas. A presença de maciço capital externo foi uma das primeiras marcas da
retomada do crescimento econômico no Brasil e a indústria elétrica foi um dos
principais destinos desses recursos. Esse conjunto de investimentos foi denominado no
Brasil de Plano Nacional de Desenvolvimento (PND – 1972 a 1974). A Itaipu foi
idealizada durante os anos do “milagre econômico” que caracterizou o Brasil pós-64,
período no qual foi imposto um Estado que colocou em prática grandes projetos de
investimento, cuja meta foi de implantar uma indústria de bens de capital (SOUZA,
2002, p. 32).
Nesse contexto, a exploração da bacia do rio Paraná adquire centralidade, por
ser essa uma das principais bacias hidrográficas do continente e incorporando-se a
grande bacia do rio do Prata, transforma-a em uma das principais do mundo. Brasil,
Paraguai e Argentina sabem da importância que a base natural existente nessa região
tem para o desenvolvimento de suas economias. Em março de 1973, a Eletrobrás
divulgou um relatório informando que apenas a parte brasileira da bacia do rio Paraná
detinha um potencial de 23,5 GW (PEREIRA, 1974, p.82), ou seja, quase o dobro de
todo o parque elétrico brasileiro instalado até então.
A iniciativa industrial argentina, anterior à brasileira, instigava o capital local a
resolver questões relacionadas ao suprimento de energia e, para tanto, o aproveitamento
hidroenergético dos rios estava na pauta com essa finalidade. Segundo Moniz Bandeira
(1987, p.18), já em 1907 o engenheiro Edmond J. Forewen e o então Presidente
argentino José de Figueroa Alcorta aprovaram a iniciativa de estudar o aproveitamento
hidrelétrico das águas do rio Paraná. Segundo o autor, elementos contrários alegaram
que as cataratas do Iguaçu estavam situadas muito distantes dos centros industriais.
Empresas britânicas (de base térmica) já estabelecidas na Argentina também foram
contra essa iniciativa (esse tema será recuperado no capítulo três).
Até a metade do século XX, o Paraguai tinha como referência comercial e
política a Argentina. Essa influência se dava desde o período colonial, quando o
principal acesso marítimo paraguaio era pela foz do rio do Prata (DÁVALOS, 2009, p.
111). No entanto, interessava as empresas paraguaias diversificarem as relações também
com mercados de outros países da região, além de construir alternativas de acesso ao
mar. Com a concessão do depósito franco em Paranaguá em 1956, a construção da
Ponte da Amizade em 1965 e o asfaltamento, em 1969, da rodovia de Paranaguá até Foz
do Iguaçu e de Porto Presidente Stroessner3 a Assunção, criou-se um ambiente de
bastante proximidade comercial entre Brasil e Paraguai (PEREIRA, 1974, p. 86).
Quando Brasil e Paraguai firmam o compromisso de construir Itaipu, a
Argentina instala conflito com ambos os países. A disputa foi cheia de acusações de
todos os lados. O Brasil era acusado pela Argentina de não respeitar normas
internacionais, principalmente o direito de consulta prévia em obras de rios
internacionais sucessivos e queria, ao menos, que fosse obrigatória a troca de
informações sobre projetos desse tipo. Essa disputa foi parar na Convenção das Nações
3
Atualmente Ciudad del Este.
Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada em junho de 1972 em Estocolmo. O Item 21
da Declaração Sobre o Meio Ambiente desta Convenção afirma:
De conformidade com a Carta das Nações Unidas e com
os princípios do Direito Internacional, os Estados têm o
direito soberano de explorar seus próprios recursos na
aplicação de sua própria política ambiental e a obrigação
de assegurar que as atividades que venham a ser levadas a
cabo dentro de sua jurisdição ou sob seu controle não
causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou
zonas situadas fora de toda a jurisdição nacional. (ONU,
1972, apud PEREIRA, 1974, p. 139)
Logo em seguida, em 2 de outubro de 1972, os chanceleres do Brasil e
Argentina voltaram a se encontrar, dessa vez em Nova Iorque (EUA), e trataram de dar
passos para resolver o imbróglio na tríplice fronteira. Mais tarde foi levado a Plenária
das Nações Unidas e transformou-se na Resolução nº 2995/1972, com fragmentos do
texto abaixo:
a) [...]
b) [...] se logrará, adequadamente, dando-se conhecimento
oficial e público dos dados técnicos relativos aos trabalhos
a serem empreendidos pelos Estados dentro de sua
jurisdição nacional com o propósito de evitar prejuízos
sensíveis que se possam ocasionar no meio ambiente da
área vizinha;
c) [...] serão dados e recebidos com o melhor espírito de
cooperação e boa vizinhança, sem que isto possa ser
interpretado como facultando a qualquer Estado retardar
ou impedir os programas e projetos de exploração e
desenvolvimento dos recursos naturais dos Estados em
cujos territórios se empreendam tais programas e projetos.
(ONU, 1972, apud, PEREIRA, 1974, p. 140)
Mais adiante, em 1979, foi assinado o Acordo Tripartite entre Brasil, Paraguai e
Argentina, que estabeleceu normas para a exploração dos recursos hídricos na bacia do
rio Paraná, em especial para o conflito entre Itaipu e Corpus 4, definindo-se que a cota de
coroamento do lago à jusante (DÁVALOS, 2009, 141). As obras de CAUBET (1991) e
PEREIRA (1974) apresentam com riqueza de detalhes os desdobramentos diplomáticos
dos conflitos na bacia do Prata nesse período.
4
Projeto de UHE Corpus ou Corpus Christi entre Argentina e Paraguai, imediatamente à jusante de
Itaipu.
Figura 1.1: Projeção horizontal do conflito entre os projetos de Itaipu (Brasil e
Paraguai) e Corpus (Argentina e Paraguai).
Fonte: (PEREIRA, 1974, p. 155)
1.1. A definição do projeto de exploração hidrelétrica para o rio Paraná