Antropologia da Religião II
Religião e nação: a hegemonia católica
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Nesta webaula, estudaremos as abordagens teóricas e análises do quadro religioso brasileiro.
Panorama nacional quanto às religiões
Para tanto, a fim de pensar sobre como as religiões dos brasileiros, são reconstruídas, à luz da interpretação de
Giumbelli (2008), alguns episódios históricos que revelam a complexidade e a diversidade do panorama nacional
quanto às religiões, a se influenciarem constantemente em um jogo de aproximações e afastamentos, conforme
as condições nas quais os atores religiosos se inserem.
Como esses episódios, você pode perceber o tom
dessas discussões é por vezes dissonante e poroso. A
partir da análise sobre esses casos, inclusive alguns
deles que você mesmo pode chegar a ter tido
conhecimento, é possível afinar cada vez mais o olhar
para perceber a multiplicidade de fatores que estão em
pauta quando se discute religião – muitas vezes fatores
que não são tipicamente deste universo, como por
exemplo a questão do patrimônio, da cultura, da
legislação, contudo, que incidem diretamente sobre a
maneira como os indivíduos vivenciam suas adesões e
práticas religiosas.
Fonte: Shutterstock.
Emerson Giumbelli (2008) narra duas situações diferenciais que expressam o esforço feito para que cultos
afro-brasileiros conseguissem adquirir sentido positivo e conformar sua existência e presença como religião.
Por uma via “generalista” ou “particularista”, se lançam na batalha por legitimação social junto da categoria
“religião”.
Via generalista
A primeira repousa na década de 1980 em São Paulo, houve uma situação que envolveu o tombamento de um
terreiro de candomblé como forma de proteção ao patrimônio cultural. Esse processo ocorreu como forma de
enfrentar um impasse sobre os direitos de propriedade do imóvel, á que o pai de santo, fundador do terreiro,
havia falecido, o que desencadeou uma disputa civil pela possibilidade de herança.
O tombamento foi a solução encontrada para que a herdeira, cuja autoridade religiosa havia se consolidado na
sucessão, pudesse ter garantida a posse do imóvel. A situação revelou um caminho jurídico alternativo e singular
para solucionar a questão de transferência da propriedade, com atenção às formas de autoridade presentes
nessa cosmogonia religiosa.
O tombamento foi realizado com base em fundamentos antropológicos, tendo em vista o entendimento do
terreiro como espaço cultural, concebendo a religião como uma dimensão importante da cultura, para a qual
a legislação operou para sua efetivação.
Via particularista
A segunda situação narrada pelo autor apresenta a controvérsia jurídica ocorrida no estado do Rio Grande do Sul,
desde 2003, quando foi aprovada uma legislação de proteção aos animais que incluía a proibição às práticas e
eventos que envolvessem maus-tratos ou morte, inclusive “cerimônia religiosa ou feitiço”, atingindo diretamente
religiosidades com a prática do sacrifício animal, pois a lei impedia que o animal fosse ofendido ou agredido
fisicamente.
Movimento religioso e movimento negro
Reagindo contrariamente a essa legislação, houve
grande mobilização de lideranças do movimento
religioso e do movimento negro, para impedir que suas
disposições ferissem a prerrogativa de realização dos
cultos afro. O engajamento surtiu efeito, e na segunda
versão da legislação foi acrescido um adendo de que a
lei não competia ao exercício dos cultos e liturgias das
religiões de matriz africana. Isto gerou tentativas de
revide, que tentavam derrubar a nova versão. Contudo,
em 2006, o Tribunal de Justiça indeferiu esta
solicitação, em prol dos defensores da legitimidade dos
sacrifícios animais.
Fonte: Shutterstock.
Na fundamentação, foram explorados os argumentos da impossibilidade de garantir que de fato todo o animal
pudesse ser abatido dentro das condições sanitárias ideais, o que incidia como absurdo ou discriminatório, já que
o próprio abate para o consumo alimentar envolve algum grau de crueldade, evidenciando, portanto, que aquilo
que estava em jogo eram modos de legitimação, que qualificam o sacrifício religioso em condições mais gerais,
para outros fins.
Em outras palavras, também quer dizer que, por ser religioso, o abate pressupõe todo um ritual, uma
tradição, carregando um signo distintivo. Essa segunda via de argumentos, expressa uma prerrogativa de
exceção, já que apenas as religiões de matriz africana realizam os sacrifícios animais como uma prática
intrínseca às suas maneiras de existir.
Mobilização evangélica e o novo Código Civil
No ano de 2003 houve uma mobilização feita pelos evangélicos contrária ao novo Código Civil que criaria
ferramentas de controle das igrejas por parte do Estado, ferindo a liberdade religiosa, e por meio da qual as
organizações religiosas foram concebidas como qualquer outro tipo de associação. Esse código não trouxe
nenhuma mudança com relação à maneira como as organizações religiosas eram tratadas até então, contudo,
talvez por outros dispositivos, ou da jurisprudência, ou de outras práticas administrativas, as igrejas receberam
tratamento diferenciado.
Destacam-se os assuntos da imunidade tributária e ainda itens que adotavam como referência à Igreja Católica,
por exemplo para estabelecer a permissão para coletivos religiosos. Por este aspecto fazia sentido que os
protestantes reivindicassem a falta de singularidade para os coletivos religiosos.
Essa reação gerou uma mudança no texto da lei, constando formalmente a liberdade de criação e
organização das associações religiosas, constando a proibição do poder público de negar reconhecimento ou
registro dos atos constitutivos e necessários ao funcionamento. Além disso, a principal consequência foi a
criação de uma modalidade de pessoa jurídica de direito privado para as “organizações religiosas”, o que as
desvincularam dos mecanismos regulatórios destinados para outras associações.
Isso quer dizer que passou a ser mencionada a especificidade dos coletivos religiosos dentro da principal lei civil
brasileira. E assim, portanto, as igrejas passaram a se apresentar como exceções à norma geral. Contudo, a
despeito da reivindicação inicial dos evangélicos de deixar como estava antes, a lei não providenciou quaisquer
outros dispositivos ou deu novos direcionamentos, o que se refletiu na perpetuação das ações dissonantes por
parte dos representantes religiosos.
Porém, ainda assim, é possível perceber como a presença do religioso, ao invadir o espaço público, por meio da
mediação cultural, tem de fazer com que ela se adeque a um argumento do tipo generalista. Esse fato, nesse jogo
de argumentos, com aproximações e afastamentos, contraposições, porosidades, se articula nas mais inesperadas
formas de associações e dissensos.
Para finalizar esta webaula, sugerimos a leitura do artigo “Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil”, de
autoria da antropóloga brasileira Paula Montero.
Nesse texto, e em diálogo com as ideias desenvolvidas nesta web aula, a autora também discute sobre o
modo como o campo religioso brasileiro assume configurações específicas em esferas nas quais, segundo os
princípios secularizadores, deveria estar ausente. Dados etnográficos apresentados pela autora sobre a
realidade brasileira e sobre o catolicismo no Brasil revelam o quanto as fronteiras são fluídas e as lutas por
legitimidade irrompem contra elas.
MONTERO, P. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 74, 2006, P.
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