Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 285
Isso ocorre por uma questão política. O conhecimento indígena sobre
a natureza e a arte de guerra nativa não foi posto em evidência na escrita da
história, uma estratégia que coloca os europeus em condição de superioridade
em uma relação assimétrica, em que a narrativa dos feitos priorizou a figura do
branco. A necessidade da conquista e das alianças deixaram rastros em que é
possível, não com a facilidade com que se faz para os não índios, verificar suas
atuações e presença nas tropas e diligências de guerra.
A partir do quadro de mobilização indígena para atividades militares do
capítulo anterior, essa presença será verificada em alguns momentos importan-
tes da expansão colonial: 1) a fronteira do Amapá através da análise da Guerra
contra os Amanaju (1689); 2) Guerra contra os Aruã do Marajó (1721-1722)
que explica, em grande parte, as disputas pelo Cabo do Norte; e 3) as tropas de
guarda costas enviadas à região e à fronteira do Rio Negro, utilizando o evento
da Guerra contra os Manao e Mayapena (1723-1730).
Para todos esses vetores de alargamento da fronteira colonial, atrelam-se
conflitos de guerra com grupos indígenas hostis, para os quais os indígenas
aliados atuaram na logística, rede de informação e conflitos.
3. Os indígenas e a expansão das fronteiras coloniais.
3.1 A Guerra do Cabo do Norte
Antônio, índio da aldeia dos Tocantins, estava na tropa de guarda costa
capitaneada por João Pais do Amaral que, em 12 de dezembro de 1721, saiu de
Belém até o Cabo do Norte.662 O objetivo era “prender os índios que haviam
sido denunciados como salteadores do litoral do Pará”. Além disso, deveriam
observar os marcos dos domínios entre França e Portugal. 663
As expedições de guarda costa eram organizadas, excepcionalmente, para
verificar e guardar as fronteiras entre o reino de Portugal e o reino da França.
Todos os anos, canoas armadas em guerra, juntamente com soldados e índios,
eram destacadas ao local. Essa prática evidencia um território de fronteira com
662 Relatos de fronteiras: Fontes para história da Amazônia séculos XVIII E XIX. APEP, Códice:
Fronteira francesa (Reinados de D. João V/ D. João VI-1713/1842) transcrito em: P.C.D.L livro
A11, p. 126.
663 Boletim de Pesquisa Comissão de Documentação e Estudos da Amazônia – CEDEAM.
Universidade do Amazonas, Manaus, v. 6, n. 10, p. 37, jan./jun. 1987.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
286 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
definições políticas poucas claras. O tratado de Utrecht, assinado em 1713,
que buscava definir os domínios disputados pelas duas Coroas, não resolveu os
problemas decorrentes de um complexo comércio estabelecido entre as popu-
lações indígenas e os estrangeiros na região.
Os índios descritos no regimento como “salteadores do litoral do Pará”
eram os Aruã. Uma nação indígena que habitava o território da Ilha do Marajó
e atuava como peça-chave em um comércio dinâmico que conectava essa
região ao extremo norte da capitania. Uma rede que incluía, além dos Aruã,
os franceses de Caiena, holandeses e os indígenas do Cabo do Norte, como
a nação Amanaju. Esses sujeitos mantinham complexas relações entre si. A
razão para as guerras contra os Amanaju (1689) e os Aruã (1721-1722) era,
sobretudo, romper essas redes comércio estabelecidas. Portanto, como citado
anteriormente, são partes de um mesmo processo.
Afirmar a presença lusa no Cabo do Norte dependia, em grande parte,
do desmantelamento dessas redes de contato e da influência desses grupos
indígenas na região. Para essa tarefa, os índios aliados dos portugueses foram
centrais, seja pela atuação nas guerras ou pelas informações privilegiadas que
passavam aos colonizadores sobre as práticas e dinâmicas dos sertões. É sobre
esse aspecto que se chama atenção.
Antônio índio era aliado dos portugueses, participava da atividade militar
de vigilância de fronteiras e ao que parece entendia bem as dinâmicas cons-
truídas no Cabo do Norte. Ele foi um dos informantes sobre o comércio esta-
belecido pelos Aruã na região. Antônio explicava com riqueza de detalhes:
liderados por Guaymar, os Aruã “andavam ao negócio de resgate de índios” nos
domínios portugueses, passavam até Caiena e comercializavam essa gente por
“pólvora, balas e armas”. E, não apenas isso, o aliado indígena acrescentava que
os Aruã eram também os guias dos franceses, pois os acompanhavam do lado
de cá da fronteira para “fazer resgates, e assaltos”.664
Outro aliado, José, “índio da terra ladino na língua geral”, que estava na
mesma tropa de guarda costa de João Pais do Amaral e do índio Antonio,
confirmou as informações e acrescentou que o tal “rebelde Guyamar” agia no
664 Relatos de fronteiras: Fontes para história da Amazônia séculos XVIII E XIX. APEP, Códice:
Fronteira francesa (Reinados de D. João V/ D. João VI-1713/1842) transcrito em: P.C.D.L livro
A11, p. 126.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 287
Araguari aprisionando índios que iam aquele rio para colheita de cacau.665
Esses índios que compunham as tropas de guerra e guarda-costas parecem
ter sido excelentes informantes das práticas dos sertões. Sobretudo em um
território como o Cabo do Norte de fronteira aberta, para o qual a estratégia
defensiva dependia de informações e vigilância.
Um espaço emblemático para o qual a Coroa portuguesa despendeu
enormes esforços para assegurar seu domínio, desde o século XVII. Basta lem-
brar que a região foi doada como capitania privada a Bento Maciel Parente, em
1637. Além das ações para manutenção do seu controle e vigilância, como por
exemplo, a constituição da casa forte do Araguari, em 1688, cujo objetivo era
frear a entrada de estrangeiros na região. Mais tarde, a guarnição do presídio de
Macapá que se atrelava também a esse objetivo e, na segunda metade do século
XVIII, a fortaleza de São José de Macapá. Além da atuação de missionários
jesuítas na região, que foi um importante vetor de ocupação.
Todavia, embora com todas essas medidas e com um tratado diplomático
entre Portugal e França, até o avançar do século XIX, a região continuou a
ocupar um lugar com dificuldades próprias para defesa. Um espaço privile-
giado, como explica Fernanda Aires Bombardi pelo “estabelecimento de inten-
sas relações de guerras, comércio e onde se confrontam diferentes experiências
sociais e estratégias de colonização”.666 Na análise de Rafael Ale Rocha, os
limites do Cabo do Norte, nas décadas de 1720 e 1730, inseriam-se em com-
plexas dinâmicas que integram “um contexto macro e extra-amazônico e, por
outro, as políticas transfronteiriças desses diversos agentes em escala local ou,
mesmo, global (índios, negros, mestiços, autoridades, colonos portugueses e
franceses e impérios)”.667
Antônio, índio proveniente da aldeia dos Tocantins, e José, “índios da
terra”, estavam inseridos nessas complexas redes de relações construídas nesse
espaço. Ocupavam um papel central, como aliados dos portugueses, sobretudo
como intermediários que decodificavam aos lusos grande parte do emara-
nhado de relações que resultava desse contato entre diferentes sujeitos sociais.
665 Idem, p. 127.
666 BOMBARDI, Fernanda Aires. p. 62.
667 ALE ROCHA, Rafael. “‘Domínio’ e ‘Posse’: as fronteiras coloniais de Portugal e da França no
Cabo do Norte (primeira metade do século XVIII”. Revista Tempo, v. 23, n. 3, p. 533, set./dez.
2017.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
288 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
É desse canal estabelecido entre portugueses e indígenas aliados nos sertões
que se definem as ações de guerra mais adequadas aos interesses coloniais por-
tugueses. Assim, desse circuito de informação, também se mapeiam as nações
indígenas que são ao longo desse processo consideradas inimigas ou obstáculos
ao avanço da fronteira colonial.
As informações descritas pelos índios Antônio e José foram tomadas em
interrogatório mandado fazer pelo governador João da Maia da Gama para
que ele pudesse tomar conhecimento do que eles testemunharam na expedi-
ção de Guarda Costa de 1721. Além deles, depuseram o capitão João Pais do
Amaral, dois sargentos, Antônio Freire e Ignácio, cinco soldados, Pascoal de
Freitas, Antônio Coelho da Silva, Pedro de Sousa Passos, Antônio Monteiro e
Antônio Batista dos Santos, que também estavam na tropa.668
A diferença das informações dadas pelos índios e militares diz muito
a respeito do papel que desempenham nesse processo. Os militares foram
interrogados sobre um possível marco fronteiriço entre Portugal e França. Os
índios que serviram de guias e intérpretes na diligência não foram consultados
a respeito, mas sobre dinâmicas internas, alianças e negócios mantidos pelos
índios com os franceses, o comércio e resgates de índios nas possessões por-
tuguesas, a colheita do cacau, a questão dos índios rebeldes e os assaltos que
ocorriam na região.
Ouvir os índios aliados era importante para a administração da defesa
colonial. Se para o governador não era significativo perguntar aos índios sobre
demarcações de fronteiras e os acordos políticos, eles eram as testemunhas
requisitadas para informar sobre a entrada de franceses, a colheita de produtos
do sertão, a navegabilidade dos rios, dentre outros aspectos. Ou seja, o que
interessava dos índios para os portugueses era o conhecimento de um espaço
indígena que os colonizadores desconheciam.
Outra questão que chama atenção são detalhes das informações passa-
das pelos aliados indígenas, como por exemplo, os nomes do chefe dos Aruã,
o Guaymar e dos franceses que mantinham comércio com ele, o que não se
verifica da parte dos militares. Além da clareza que os índios aliados têm do
espaço, apontando os nomes dos rios e indicando as rotas. Portanto, os relatos
668 Relatos de fronteiras: Fontes para história da Amazônia séculos XVIII E XIX. APEP, Códice:
Fronteira francesa (Reinados de D. João V/ D. João VI-1713/1842) transcrito em: P.C.D.L livro
A11.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 289
dos índios Antônio e José são de sujeitos que transitavam entre o espaço colo-
nial e o espaço indígena do sertão. Nessa condição, eram importantes nas ati-
vidades militares da tropa de guarda costa, também para a defesa do Estado.
Os índios Antônio e José não estavam sozinhos, havia também os índios
Vicente, Luís, Cipriano, Nazário, Henrique, Felipe e muitos outros da Aldeia
dos Arapijó e Tupinambá. Além dos índios da aldeia de Maracanã e da nação
Aroaquizes, que são os que aparecem como aliados dos portugueses nas guer-
ras contra os Amanaju e os Aruã. Esses aliados, nas ações militares, foram
centrais para o avanço do domínio luso na região e o rompimento da fronteira
indígena que bloqueava essa expansão.669
Para o combate dos Amanaju em 1689, estavam mobilizados os índios
Tupinambá, os Aroaquizes e os da aldeia de Maracanã. Foram esses aliados
que possibilitaram o enfrentamento aos índios do Cabo do Norte. Por essa
atuação e arte de guerra foram descritos pelo governador Sá e Meneses como
“valorosos índios”.670
Os índios da aldeia de Maracanã, estabelecidos na costa atlântica, foram
centrais nas atividades de defesa, José da Serra se referia a eles como os “mais
fiéis ao serviço de V.M.”.671 Padre João Daniel também oferece indícios sobre
esse grupo, os relaciona com os Tupinambá, que no Pará estiveram reduzidos
juntamente aos Caité, Cabu, Mortigura e muitas outras. Como escreve o reli-
gioso, eram “belicosos”, “bons trabalhadores” e nas guerras “têm ajudado muito
os portugueses”.672 É significativo que três nações tenham participado como
aliadas dos portugueses para um único evento de guerra.
A tropa, portanto, é um complexo dinâmico e multifacetado de práticas
provenientes de diferentes grupos indígenas e militares. Consta que estes alia-
dos entraram “nos sertões dos inimigos” Amanaju. Estes últimos aguardavam
a investida da tropa lusa e seus aliados prevenidos. Atacaram e se “defende-
ram tão valorosamente que se admiraram os soldados mais antigos nas guerras
669 Chama-se de fronteira indígena grupos que se colocavam como obstáculos aos avanços da fron-
teira colonial na Amazônia. O rompimento desse bloqueio só foi possível com uma força espe-
cializada na guerra da floresta, ou seja, outros grupos indígenas aliados dos portugueses.
670 AHU, Avulsos do Pará. Belém, 29 de novembro de 1689. Cx. 3, D. 278.
671 CARTA do governador José da Serra ao rei. AHU, Avulsos do Pará, Cx. 17, D. 1563.
672 DANIEL, João. “Tesouro descoberto no rio Amazonas”. p. 269.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
290 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
destes sertões dizendo que não tinham ainda em nenhum tempo índios com tão
conhecido valor”, o que igualmente se achava “em um e outro sexo”.673
O enfrentamento preparado pelos Amanaju do Cabo do Norte à tropa
de guerra indica questões que devem ser consideradas. Primeiro, há referência
de homens e mulheres na guerra, uma prática distinta dos Tupinambá para
os quais este evento atrela-se ao universo masculino, como já mencionamos.
Outra questão deve-se à organização desses grupos para a guerra. Não há pre-
paro sem que haja conhecimento da iminência do conflito ou da marcha dos
inimigos, o que sugere que estes índios do Cabo do Norte já tinham conheci-
mento da chegada da tropa lusa para combatê-los.
Ou seja, há indícios de uma rede de comunicação e colaboração indígena
que permitiu o preparo dos Amanaju para guerra. Esse fato parece correspon-
der com a prática nativa de espionagem descrita pelo padre João Daniel. Índios
espiões que “escondidos no sombrio das árvores, a que sobem, descortinam, e
vigiam os rios, e dão aviso do que vem ao longe, e dada a parte na povoação
de que vem o inimigo, tocam a rebate, e avisam-se umas nações às outras suas
aliadas”.674
É importante destacar que as tropas lusas desenhavam um caminho previ-
sível. A necessidade de juntar os índios remeiros, guias e guerreiros à diligência
fez com que as canoas passassem necessariamente pelas aldeias e fortificações.
Assim recomendava o governador, em 1728, à tropa de guarda costa, para que
seguisse viagem até as aldeias dos “padres Santo Antônio e Conceição” para
“tomar guias e valer-se de alguns índios que preciso lhes forem”. Além disso,
deveria a tropa averiguar e “visitar as fortalezas do Paru, Pauxi e Tapajós”.675
Esse trajeto foi prontamente interpretado pelos nativos. Na capitania do
Maranhão, por exemplo, a nação Cohy e suas aliadas por duas vezes surpre-
enderam por assalto a tropa do tenente João Nogueira de Souza, que seguia
para combatê-los. Talvez por essa razão por duas vezes tenham conseguido
673 AHU, Avulsos do Pará. Belém, 29 de novembro de 1689. Cx. 3, D. 278.
674 DANIEL, João. “Tesouro descoberto no rio Amazonas”. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de
Janeiro, v. 1, p. 235, 1876.
675 Regimento que há de guardar o sargento-mor Frco de Mello Palheta comandante da tropa de
guarda costa. Belém do Grão-Pará, 22 de outubro de 1728. APEP, códice 7, doc. 05, capítulo 6
do regimento.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 291
surpreender por assalto as investidas das tropas portuguesas.676 O ataque ante-
cipado da nação Cohy à tropa lusa sugere não só que eles tinham conhecimento
da investida militar como também dos caminhos por onde essa tropa passaria.
Essa parece ter sido a estratégia que possibilitou aos Amanaju do Cabo do
Norte o preparo para a guerra. Todavia, conforme a narrativa de Sá e Meneses,
estes foram combatidos pelos “aguerridos aliados muitos destes desprezando as
próprias armas expondo os corpos as dos inimigos. Intrepidamente “trepando
pelos jiraus (fortificação gentílica) nestas partes”.677
A tática de guerra empregada para combater os Amanaju é nativa. Há
elementos que compõem o conjunto de arte de guerra Tupinambá. O combate
corpo a corpo foi descrito por Florestan Fernandes, assim como a paliçada
associada em seu estudo como fortificação nativa, tal como descreveu Artur Sá
e Meneses sobre as táticas de guerra usadas no Cabo do Norte.
A utilização dos jiraus, ou fortificação gentílica, torna evidente que a
determinação da tática foi definida, nesse caso, pelos nativos e não pelas téc-
nicas de guerra europeias a exemplo das fortificações à moderna, tratadas no
capítulo 3. A arte de guerra dos índios aliados colaborou para a bem-sucedida
empreitada colonial, na avaliação de Artur Sá e Meneses.
O combate dos Amanaju, entretanto, não interrompeu o comércio indí-
gena no Cabo do Norte que se estendeu a primeira metade do século XVIII.
Para frear essa relação de comércio existente entre Gurupá e Cabo do Norte
dependia ainda do enfrentamento da nação Aruã que, como vimos atrás,
conectava esses espaços por meio de um dinâmico comércio.678 Combater a
influência dos Aruã na região parecia inadiável aos interesses lusos. A rota
estabelecida pelos indígenas era uma rede fortemente estabelecida que fez do
Cabo do Norte uma região fronteiriça peculiar, cujo domínio não se resolveu
com tratados diplomáticos de tradição ocidental, ou mesmo pelas estratégias
de controle português. Por que isso ocorre?
676 “Certidão do tenente da casa forte do Iguará, João Nogueira de Sousa, para o soldado Manuel
Freire de Andrade, sobre o procedimento deste último numa situação de conflito com índios no
ano de 1709”. 10 de junho de 1710. AHU, Avulsos do Maranhão, caixa 11, doc. 1114.
677 AHU, Avulsos do Pará. Belém, 29 de novembro de 1689. Cx. 3, D. 278.
678 Carta do governador Francisco de Sá e Meneses ao Rei. Belém do Pará 22 de janeiro de 1685.
Cx. 3; D.245.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
292 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
Denise Schaan explica que estudos arqueológicos encontraram seme-
lhanças entre a fabricação de cerâmicas do Gurupá com Amapá e Guianas.
Eram provavelmente produzidas por grupos Arawak679, povo que deu ori-
gem aos Aruã, Aroanis ou Aroaris, assim denominados pelos portugueses.
Dados recentemente divulgados pelo projeto “Origens, Cultura e Ambiente”
(OCA), do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), desenvolvido no muní-
cipio de Gurupá apontaram para novos contatos estabelecidos no período
pré-conquista.680
As cerâmicas encontradas em Gurupá, de acordo com Helena Lima,
coordenadora do Projeto, revelam que o Marajó integrava rotas de “circulação
de informações no sentido norte-sul, passando pelas Guianas e Amapá e indo
até o rio Xingu, atingindo regiões como Volta Grande”. Trata-se de novas rotas
de comunicação, diferente das que até então a arqueologia destacava, “o sentido
leste-oeste, ao longo do Rio Amazonas”.681
Nesses termos é possível afirmar que essas relações se construíram no
período pré-conquista. O estabelecimento do comércio na região, cujo pro-
tagonismo é frequentemente atribuído à presença de feitorias francesas,
holandesas e inglesas, deve ser ponderado. Ao que parece, os estrangeiros só
integraram antigas rotas de contato construídas pelos indígenas no período
anterior à colonização, e não o contrário.
Todavia, é evidente que as possibilidades que o comércio com franceses,
ingleses e holandeses apresentavam tornaram-se atrativas a esses grupos indí-
genas. Ora, os estrangeiros atribuíam novos significados aos produtos cole-
tados da natureza e ao comércio de cativos. Ao passo que as ferramentas, as
armas de fogo e os utensílios europeus despontavam como novidades, as quais
os indígenas da região estavam muito interessados em adquirir. O contato sig-
nificou, a partir dessa perspectiva, um incremento ao circuito de contato e
trocas de produtos já estabelecido.
679 SCHAAN, Denise Pahl. “Uma janela para a história pré-colonial da Amazônia: olhando além
– e apesar – das fases e tradições”. Bol. Mus. Pará. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.
2, n. 1, p. 77-89, jan-abr. 2007.
680 SCHAAN, Denise Pahl; MARTINS, Cristiane Pires (org.). Muito Além dos Campos:
Arqueologia e história na Amazônia Marajoara. Belém: GKNORONHA, 2010. Ver ainda in-
formações publicadas na página do Museu Goeldi: https://www.museu-goeldi.br/noticias/
sitio-arqueologico-em-gurupa-revela-novidades-sobre-ocupacao-milenar.
681 Idem.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 293
Trata-se, portanto, de uma rota indígena. Essa percepção é fundamental
para compreender a permanência do trânsito de gente e mercadoria entre o
Marajó e o Cabo do Norte na primeira metade do século XVIII. Para impedir
a ação indígena era necessário garantir também o domínio da Ilha do Marajó,
especificamente o controle do estratégico território do Gurupá, região conhe-
cida como a “boca dos sertões”.
Gurupá era uma região estratégica, conectada ao Marajó. É importante
lembrar que, em 1623, a tropa de Luís Aranha e Bento Maciel Parente já
havia entrado em conflito com ingleses e holandeses atacando suas povoações
na região do Gurupá e Tucujus no Amazonas. Arthur Cezar Ferreira Reis
explica que essa ação contava com mil índios flecheiros, mobilizados do Pará,
Maranhão e capitanias do Brasil, notadamente Pernambuco e Rio Grande do
Norte.682Um número muito expressivo de aliados indígenas, se considerarmos
por exemplo que nesse ano no Pará todo o efetivo de soldados pagos somava
150 homens (ver tabela 1, capítulo 2). Dados que reafirmam que o sistema
defensivo e a expansão da fronteira colonial dependiam principalmente do
auxílio indígena, desde o início da conquista. Dessa empreitada militar resul-
tou a fundação da fortaleza de Gurupá em (1623), que se manteria durante
o século XVIII como importante controle de rotas de canoas que vinham do
sertão.
Os aliados Tupinambá estiveram envolvidos ao lado dos portugueses na
guerra contra os índios Amanaju do Cabo do Norte e foram os principais
delatores das práticas dos Aruã, o que contribuiu para legitimar a guerra contra
esse grupo, ocorrida entre 1721-1722. Portanto, os índios aliados dos portu-
gueses não eram só importantes como força de guerra contra os grupos hostis.
Revelavam-se também informantes indispensáveis para o conhecimento des-
sas práticas dos sertões.
Vicente, principal da aldeia do Arapijó, por exemplo, denunciou um ata-
que sofrido pela sua aldeia por parte dos Aruã. Estava ele com sua mulher e
mais alguns índios em um igarapé e chegaram em canoas os Aruã que tenta-
ram levá-los como prisioneiros, “como de ordinário fazem por serem sempre
682 REIS, Arthur Cezar Ferreira. A Amazônia e a cobiça internacional. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; Manaus: Superintendência da Zona Franca de Manaus, 1982. (Coleção Retratos do
Brasil, v. 161), p. 31.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
294 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
seus inimigos”; acabaram levando oito índios da aldeia do Arapijó, entre eles
sua mulher.683
Mais detalhes foram incluídos por Sebastião, índio forro da mesma aldeia
e meirinho. Conforme informava, flechas e armas foram usadas pelo Aruã, que
mataram quatro ou cinco índios e os demais levaram prisioneiros, escapando
somente o Principal Vicente “por cair no mar, que fugindo nadando escapou
levando ainda três flechadas”.684
Além deles, Luís, Cipriano, Nazário, Henrique e Felipe índios forros da
mesma aldeia atestaram essas informações. Cipriano relatava serem os Aruã
“seus inimigos capitais”, condição também afirmada por Nazário. Felipe ofere-
ceu mais detalhes da relação com a nação Aruã, pois de acordo com o que rela-
tava havia três anos (1720) estava ele e mais um rapaz de sua aldeia pescando
em uma canoinha quando foram surpreendidos pelos Aruã, que os “cativaram
e levaram a suas terras”. De lá o levaram, mais um rapaz e uma índia da nação
Mexiana “a vender em Caiena de França que logo trouxeram o precedido deles,
que eram três armas de fogo”.685
A partir dessas informações, cada índio cativo equivalia a uma arma de
fogo. A introdução de armas, por meio desse comércio, tornou a relação entre os
Aruã e outras nações mais violenta, a exemplo da Aldeia Arapijó e Tupinambá.
Foi o que relatou Felipe, índio da nação Arapijó ao destacar que os Aruã man-
tinham “nas suas terras índios escravos de diversas nações, e que estes são os
que comumente remam, e que o estilo observado entre a maior parte destes
mesmos Aruã”. Além disso, esses índios prisioneiros serviam como escravos
“os rapazes e raparigas são os que fazem transporte e comércio com os ditos
franceses de Caiena”.686
O domínio de um comércio de cativos era mantido pela força coerci-
tiva representada pelas armas de fogo. Esse impacto reconfigurou a relação de
poder, que estava agora ligada também a seu domínio e acesso. Foi o que mos-
trou o relato de Alberto, índio da aldeia Arapijó, ao destacar que pelo comércio
683 Boletim de Pesquisa Comissão de Documentação e Estudos da Amazônia – CEDEAM.
Universidade do Amazonas, Manaus, v. 6, n. 10, p. 60, jan./jun. 1987.
684 Idem.
685 Idem, p. 69.
686 Idem, p. 69.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 295
mantido pelos Aruã estes “se fazem temidos por contratarem e receberem armas de
fogo”.687
Aqui destaca-se o reconhecimento do índio Alberto sobre o significado
da arma de fogo. Uma leitura que associa o “fazem-se temidos” pelo porte das
armas europeias. A partir da perspectiva indígena a militarização implica no
domínio das rotas dos rios e na influência de um grupo sobre o outro. Ora, foi
o acesso e domínio de armas e pólvoras através de Caiena que potencializaram
o domínio dos Aruã na região. Pedro, índio da aldeia dos Tupinambá, relatava
que num ataque que sofreu a sua aldeia, os Aruã levaram quinze índios amar-
rados e os outros fugiram “obrigados todos do terror das armas”.688
Como explicou Vicente, índio principal da aldeia de Arapijó, os Aruã nas
suas ações sempre “se achavam com flechas e armas de fogo”.689 Na interpre-
tação de Sebastião, índio da mesma aldeia, essa é a razão pela qual se fazem
“poderosos”.690 “Flechas, terçados (fações) e armas de fogo” foi a síntese de Brás
Estácio, índio forro da aldeia dos Tupinambá, sobre as armas usada pelos Aruã
naqueles sertões para “assaltar as aldeias”. Assim, também afirmava Paulo,
índio forro da mesma aldeia.691
Verifica-se, também, a configuração de um conflito novo, dada a inser-
ção de armas europeias no universo indígena. A arma de fogo estava sendo
prontamente usada pelos indígenas, mesmo em conflitos entre nativos, sem a
tropa lusa. Assim ocorreu no conflito entre os Aruã e os índios da aldeia Toaré,
estes últimos na posse de armas de fogo revidaram o ataque do que resultou na
morte de “um Aruã com um tiro”, e, “retirando-se encontraram umas quinze
canoinhas com gente nas quais fizeram apreensão”. Os índios Toaré, sabendo
disso, consta que se armaram e foram por terra esperar os Aruã.692
Todas essas informações sobre as práticas e ações dos Aruã no Cabo
do Norte e Marajó foram passadas em auto de devassa. Os índios da nação
Arapijó e Tupinambá afirmam estar em muitas ocasiões nas tropas de guarda
costas. Esses índios aliados nas guerras, eram também informantes. Ao que
687 Idem, p. 64.
688 Idem, p. 65.
689 Idem, p. 59.
690 Idem, p. 60
691 Idem, p. 65-66.
692 Idem, p.60.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
296 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
parece, se, por um lado, a Coroa dispunha de uma burocracia que conectava
diversas partes do império português, por meio de um fluxo contínuo de cor-
respondências escritas, por outro, nos sertões, havia uma rede de informações
indígenas pautada nos relatos orais que funcionava trazendo notícias das prá-
ticas dos índios dos sertões. Esses canais informativos funcionaram muito bem
contra os índios Aruã do Marajó que, pelas informações, lhes foi declarada
guerra justa.
Os depoimentos dos índios, na verdade, podem ter influenciado a própria
ação dos portugueses. Assim, os índios inimigos dos Aruã usaram a “máquina”
de guerra dos portugueses (da qual eles próprios participavam) para resolver
suas próprias contendas e diferenças. Uma percepção que só possível pela
inversão da perspectiva.
Na guerra realizada entre 1721-1723 contra os Aruã, a tropa comanda
por João Pais do Amaral, conforme relato do soldado Antonio Freire de
Mendonça, fez arraial na Ilha do Cururu, de onde expediu escolta para a Ilha
de Mapuá, onde havia notícia de estarem os índios “inimigos” e junto ao iga-
rapé encontraram com a canoa dos Aruã, “que se avistaram e se puseram em
armas pelejando largo tempo com os nossos, durante o conflito quase seis
horas matando dois índios nossos e ferindo outros”.693
Francisco Dias Lisboa, soldado que estava na tropa de combate contra os
Aruã, explica detalhes do confronto. Consta que, ao se depararem com a tropa
de João Pais do Amaral, os índios “se levantaram tirando armas de fogo”, o
que também responderam “pelejando com armas de fogo, como com flechas”
ficando eles vitoriosos. Na canoa dos Aruã, estavam três índias domésticas da
aldeia do Tupinambá que haviam sido raptadas para serem comercializadas em
Caiena com os franceses.694
Voltaram ao arraial de onde se mandou escolta a Ilha de Caviana, onde
mais uma vez pelejaram, e, invadindo a casa dos Aruã, encontraram “cinco
índias e um negro todos domésticos que tinham furtado da aldeia de Arapijó
missão dos Padres da Piedade, que foram restituídos aos padres”.695
693 Boletim de Pesquisa Comissão de Documentação e Estudos da Amazônia – CEDEAM.
Universidade do Amazonas, Manaus, v. 6, n. 10, p. 48-49, jan./jun. 1987.
694 Boletim de Pesquisa Comissão de Documentação e Estudos da Amazônia – CEDEAM.
Universidade do Amazonas, Manaus, v. 6, n. 10, p. 44-45, jan./jun. 1987.
695 Idem, p. 49.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 297
O teatro da guerra, portanto, apresenta elementos de guerra europeia,
como a arma de fogo e o estabelecimento do arraial, como os de guerra nativa,
a presença do arco e flecha e da emboscada. A canoa de João Pais do Amaral
surpreendeu a canoa dos Aruã em um determinado igarapé. São circunstâncias
que implicam em um formato novo de guerra, que é “a guerra do mato” carac-
terizada por Pedro Puntoni, ou “guerra do sertão”, como chamou Francisco de
Sá e Meneses, em 1689.
Pelas informações da devassa, os índios que integraram a tropa de combate
aos Aruã eram provenientes das aldeias do Arapijo, Tupinambá, Tocantins. Ou
seja, pelo menos três aldeias auxiliaram na empreitada militar. Uma aliança que
não se restringe à logística da tropa, como a necessidade de guias e remeiros.
Mas também pela potencialidade da arte de guerra, pelo número e qualidade
dos guerreiros, e, sobretudo, pelas informações que esses têm dos “inimigos”.
Trata-se de um elemento importante da arte de guerra: conhecer as práticas de
combate do adversário, e sobre essa questão parece que os índios aliados dos
portugueses conheciam bem a respeito dos Aruã. Tornaram-se centrais para a
desarticulação do comércio mantido entre Macapá e Gurupá no Marajó.
A interpretação de Pedro Puntoni, que explica a superioridade da tropa
lusa pela sua capacidade de assimilação e adaptação da técnica de guerra nativa,
deve ser ponderada. Ora, o que ocorre é a aliança com os guerreiros indígenas.
É a atuação indígena nas diligências militares que qualifica as ações de defesa
da tropa.
Nessa perspectiva, a adaptação ou assimilação decorre dessa presença indí-
gena. Ou seja, deve-se a um aprendizado de ambos por meio da experiência de
guerra e convivência nas tropas militares. Considerar que foram os portugueses
que souberam assimilar a arte de guerra indígena é, na minha compreensão,
diminuir a importância desses grupos que atuaram decisivamente nos eventos
militares.
3.2 A Guerra do Rio Negro
Além do avanço para fronteira Norte, é possível verificar a presença indí-
gena imbricada em outros momentos de expansão do domínio luso na região
na primeira metade do século XVIII. Tomemos, por exemplo, a expansão da
fronteira Noroeste, especificamente no Rio Negro com a guerra contra os
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
298 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
Manao, entre 1723 e 1724. O comércio de armas e escravos indígenas esta-
belecido entre os holandeses das Guianas e indígenas no rio Branco, afluente
do rio Negro, foi a justificativa para declaração de guerra justa contra os
Manao.696 Nesse caso, novamente os indígenas aliados têm um papel impor-
tante. Inclusive, a morte do “Principal Carunamâ” descrito como “fiel vassalo
de V.M. e amigo dos portugueses” foi o estopim para guerra.
Carunamâ integrava a tropa de resgate que saiu com destino ao Rio
Negro por ordem do governador João da Maia da Gama, em 1723. Descrito
como “amigo dos portugueses”, tinha por tarefa guiar o capitão Manuel de
Braga que comandava a expedição de resgates. Na diligência, a tropa foi ata-
cada pelos Principais Jarau, Beijari e Jariapu pela instrução de Ajuricaba, chefe
da nação Manao. O confronto resultou na morte “aleivosamente” do índio
Carunamâ, aliado dos portugueses, o que motivaria a declaração de “guerra
justa” aos índios hostis.697
Robin Wright explica que as “sociedades indígenas do Noroeste são
interligadas por uma rede de vínculos sociais, comerciais, políticos e religio-
sos”. Essas sociedades no período pré-contato “estavam ligadas a uma rede
de interdependência muito mais ampla estendendo-se desde o Orinoco até o
baixo Rio Negro”. Do que decorriam interações vinculadas à troca de “artefatos
de natureza cerimonial”, “intercâmbio de conhecimento”, “migrações”, “guerras
e formação de alianças”.698
Os Manao atuavam na “condição de mercadores”, em suas palavras como
“peças-chaves” que conectavam “chefias sub-andinas (Tunebo, Chibcha) aos
povos do Amazonas e do Solimões (Yurimagua, Aisuari)”. Entre as trocas
estavam “brincos de ouro, ralos de mandioca e tintas vegetais”. A mudança
696 Sobre a expansão da fronteira ver: FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: povos indígenas no
Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Anpocs, 1991. Da mesma autora: “De
Guerreiros, Escravos e Súditos: O Tráfico de Escravos Caribe-Holandês no Século XVIII”.
Anuário Antropológico, v. 9, n.1, 1985; FARAGE, Nádia; SANTILLI, Paulo. “Estado de sítio:
Territórios e identidade no vale do Rio Branco”. In: CUNHA, Manuela Carneiro (org.). História
dos índios no Brasil. 1992, p. 267-278; OLIVEIRA, Reginaldo Gomes de. O Rio Branco no
Contexto da Amazônia Caribenha: aspectos da colonização europeia entre os séculos XVI e
XVIII. Relações Internacionais na Fronteira Norte do Brasil Coletânea de Estudos, Boa Vista-RR:
Edufrr, 2008.
697 “Regimento de tropas de guerra e resgate no Rio Negro-1726”. Boletim de Pesquisa da CEDEAM.
Universidade do Amazonas, Manaus, v. 5, n. 9 (jul./dez. 1986). p. 3-29.
698 WRIGHT, Robin M. “História indígena do Noroeste da Amazônia. Hipóteses, questões e pers-
pectivas”. In: CUNHA, Manuela Carneiro de. História dos Índios no Brasil. p. 263.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 299
desse vértice de comércio ocorreu a partir do século XVII, quando as atenções
se voltaram para o comércio de escravos com os holandeses no Norte.
Assim como para a fronteira Norte, no Noroeste amazônico as relações
pré-conquista parecem ter construído conexões entre rios e nações indígenas
que continuaram a orientar as redes comerciais a partir do contato com os
europeus. Os Manao do Rio Negro, assim como os Aruã do Marajó, constitu-
íam sociedades-elo que se mobilizavam a partir do incremento das possibili-
dades de comércio vislumbrado por eles no contato com holandeses, ingleses
e franceses. A opção pela interação com esses estrangeiros sinalizava para os
portugueses uma ameaça cuja interrupção pela guerra parecia urgente.
Conforme destacou Márcio Meira, os Manao exerciam o papel de “socie-
dade tampão”, que “fechava o acesso aos portugueses para o médio e alto curso
desse rio”. Faziam parte de uma “rede de comércio interétnica que chegava até
os holandeses”.699 De acordo com Décio Guzmán, o Rio Negro era a passagem
“de todos os indígenas vindos de Quito e das Guianas”, grupos distintos que
estabeleciam “relações comerciais e escravizando-se mutuamente através das
guerras”. Os Manao eram “guerreiros e sobreviviam de guerra”.700
A “desobstrução dos rios” às tropas lusas foi o motivo indicado no 4º
capítulo do regimento de João Pais do Amaral para a guerra. Essa situação
significava para Portugal a rendição ou extermínio das nações indígenas lá
estabelecidas. Para o enfrentamento desses grupos, a força militar das tropas
lusas era insuficiente, a considerar que a partir da introdução de armas pelos
holandeses aliados a um conhecimento guerreiro nativo o potencial de guerra
desses grupos parecia bem superior ao das tropas lusas portuguesas.
De fato, várias investidas militares foram necessárias para combater os
Manao. O primeiro conflito com a tropa de resgate do capitão Manuel de
Braga, em 1723, que resultou na morte do aliado Carunamâ, seria apenas o iní-
cio de várias empreitadas. Em 6 de novembro do mesmo ano, a tropa coman-
dada pelo capitão Belquior Mendes seguia ao Rio Negro com reforço. Dois
anos mais tarde, em 14 de março de 1725, estava a caminho a tropa do capitão
699 MEIRA, Márcio. “Introdução”. In: MEIRA, Márcio (introdução e organização). Livro das
Canoas: documento para a história indígena da Amazônia. São Paulo: Núcleo de História Indígena
e do Indigenismo da Universidade de São Paulo: FADESP, 1994.
700 GUZMÁN, Décio Marco Antonio de Alencar. “História de Brancos”: memória, historiografia
dos Manao do Rio Negro (séculos XVIII-XX)”. p. 27.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
300 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
João Pais do Amaral “para fazer os resgates de S.M. e fazer a guerra” contra os
índios inimigos. No dia 23 de outubro do mesmo ano, um reforço foi enviado
ao capitão pelo ajudante Anacleto de Lalor, que seguia com uma canoa, solda-
dos, índios e munições.701
Todavia, as tropas de guerras dos portugueses eram combatidas com
“ímpeto” devido à “grande articulação e estratégia que Ajuricaba e outros che-
fes, seus aliados, praticaram”.702 Consta que os Manao se mobilizaram estabe-
lecendo alianças com a nação Mayapena contra as tropas lusas.703
Esse episódio foi relatado ao governador, que entendeu ser necessário
dar aos Manao e seus aliados “o castigo merecido com dura guerra”. As pro-
vidências foram tomadas em seguida e o governador mandou “aparelhar duas
canoas grandes de S.M. com todo o necessário para guerra”. O capitão Leandro
Gemaque, responsável por conduzir os reforços militares até o capitão João
Pais do Amaral, levava “armas, munições, resgates, medicinas e mantimentos
com soldado”.704
O governador instruiu o capitão Pais do Amaral para que “com toda bre-
vidade” pudesse punir a nação Mayapena, “matando no furor da guerra todo
que resistir, e cativando todo que se render”. Determinava ainda que se “exe-
cute o castigo em todos os ditos principais e seus vassalos, para que de uma vez
fique desimpedida a entrada do rio e passagem das cachoeiras”.705
Os portugueses tinham grande interesse em repelir a frente de resis-
tência Manao e seus aliados, porque “possibilitava a abertura de um caminho
para o Rio Solimões, Branco e Orinoco”. Nesses espaços, como afirma Décio
Guzmán, realizava-se “desde 1690, aproximadamente, ou até muito antes, um
grande comércio de ouro, armas e escravos entre holandeses e os índios Manao”
701 “Regimento de tropas de guerra e resgate no Rio Negro-1726”. Boletim de Pesquisa da CEDEAM.
Universidade do Amazonas, Manaus, v. 5, n. 9, p. 3-29, jul./dez. 1986.
702 GUZMÁN, Décio Marco Antônio de Alencar. “História de Brancos”: memória, historiografia
dos Manao do Rio Negro (séculos XVIII-XX)”. p. 30.
703 “Regimento de tropas de guerra e resgate no Rio Negro- 1726”. Boletim de Pesquisa da CEDEAM.
Universidade do Amazonas, Manaus, v. 5, n. 9 (jul./dez. 1986), p. 3-29.
704 Idem.
705 Idem.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 301
e outras nações. Caminhos que os “portugueses tinham especial interesse em
tomar posse”.706
A “conquista do Rio Negro”, como escreveu o governador Alexandre de
Souza Freire em 1728, tornou-se urgente após a uma queda abrupta da mão de
obra indígena na capitania do Pará associada à morte pela epidemia de bexigas
nos anos 1724-1725.707 Era imperativo o avanço ao Rio Negro e o rompimento
da influência dos Manao-Mayapena no vale desse estratégico rio. Mas de que
forças militares dispunha o Pará para tal campanha de guerra?
Se considerarmos os anos da guerra, que corresponde o período entre
1720 e 1730, verifica-se que a tropa paga no Pará dispunha dos seguintes quan-
titativos para os anos que se obtêm dados: em 1720, há o número 322 soldados;
em 1724, esse número se reduz para 287; em 1726, o número de gente nas
tropas pagas permanece em decréscimo, já que se computa 262; o quadro se
mantém em 1727, quando se registra 254; 1728 o mapa traz o número de 259;
no ano seguinte, em 1729, há nas tropas 256 soldados; finalmente, em 1730,
um quantitativo de 261 militares distribuídos nas cinco companhias pagas da
capitania (Tabela 1, Capítulo 2). Ora, mesmo que todas as cinco companhias
fossem enviadas ao conflito, o que seguramente não foi o caso, haveria uma
força com poucas capacidades de fazer ofensiva de combate ao chefe Ajuricaba
e seus aliados.
Indo mais ao particular, seguindo a discriminação das atividades desses
sujeitos, feita pelo governador Alexandre de Sousa Freire, em carta de 1728,
a situação parece ainda mais crítica. Na correspondência, explicava a D. João
V a fragilidade de defesa da capitania do Pará, se não bastasse a guerra de
“conquista do Rio Negro”, precisava de soldados para “expedição das tropas de
guerra de resgates”, de “descobrimentos por sítios inundados de bárbaros”. E,
ainda, para “guarnições de fortalezas, como são as que pertencem a esta cidade
do Pará, da Barra, a do Fortim que está defronte à das Mercês, a da cidade”, a
706 GUZMÁN, Décio Marco Antônio de Alencar. “História de Brancos”: memória, historiografia
dos Manao do Rio Negro (séculos XVIII-XX)”, p. 29.
707 Sobre epidemias na Amazônia colonial ver: SOUZA, Claudia Rocha de. “A ‘enfermidade era di-
latada e os enfermos infinitos’: os efeitos epidêmicos no Estado do Maranhão e Grão-Pará (1690-
1750)”. Universidade Federal do Pará. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas- PPHIST, Belém,
2017. E, ainda, CHAMBOULEYRON, Rafael; BARBOSA, Benedito Costa; BOMBARDI,
Fernanda Aires; SOUSA, Claudia Rocha. “‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recru-
tamento na Amazônia colonial (1660-1750). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de
Janeiro, v. 18, n. 4, p. 987-1004, out./dez. 2011.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
302 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
do “Gurupá, a do Paru, a dos Tapajós, a dos Pauxis e a do Rio Negro”. Além da
“tropa de Guarda Costa”, “assistência dos missionários nas Aldeias” e guarni-
ção da cidade, para as quais “muito escassamente poderão bastar os quinhentos
soldados” que pedia na ocasião.708
Nessa mesma carta, cinco anos após a morte do guia aliado dos portugue-
ses Carunamâ, o governador informava ao rei sobre a situação da guerra contra
os “bárbaros Mayapena”. Conforme consta da missiva, na ocasião, os Manao
já se encontravam “conquistados”, mantendo-se resistente ainda a nação
Mayapena, que tinha “o seu reino nos limites em que acaba a dos Manao”.
Faziam frente os índios “armados todos com espingardas que lhe introduzem
os holandeses, e entrincheirados”.709
Alexandre de Sousa Freire apresenta alguns dados. Para essa guerra de
conquista do Rio Negro, foram destacados 60 soldados que acompanharam a
tropa de João Pais do Amaral, o que não bastava. Por essa razão, reforços foram
enviados, como destacamos. Se verificarmos os dados presentes no mapa e lista
da gente de guerra que está em anexo da carta do governador, observa-se que
a tropa de guerra do Rio Negro organizou-se em função do conflito. Ou seja,
a guerra define também uma dinâmica que inclui a escolha do capitão, oficiais
e soldados que podem sair de diferentes companhias.
A tropa de guerra do Rio Negro se constituiu de militares provenientes
de quatro companhias. Da companhia de infantaria de Diogo Pinto da Gaia
saíram nove, dentre estes o cabo de esquadra Luís Coelho; dois desertaram,
Luís da Fonseca e Faustino de Barros. Consta que este último fugiu da tropa e
estava em Cametá, do outro não havia notícias. Da companhia do capitão José
Rodrigues da Fonseca, dez militares foram para a guerra contra os Manao. Da
companhia de artilharia do alferes regente Inácio de Carias, onze soldados no
mapa aparecem destacados a tropa de guerra. E, por último, da companhia de
infantaria de João Pais do Amaral, que teve maior número de gente destacada,
total de vinte incluindo Amaral, que foi como capitão da tropa de guerra, o
708 Carta do governador do Estado do Maranhão, Alexandre de Sousa Freire para o rei D. João V.
Belém do Pará, 14 de setembro, 1728. AHU, Avulsos do Pará, Cx. 11, D. 974.
709 Idem.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 303
Sargento Freire de Mendonça, os cabos de esquadra Teonardo [Leonardo]
Gonçalves e Tomé de Brito.710
Da discriminação nominal dos soldados, e considerando somente aque-
les para os quais havia informação clara de que estavam na tropa de guerra, o
que se obtém é o total de 50 militares (entre oficiais e soldados) saídos dessas
companhias. Um número ainda menor do que o informado pelo governador. A
estratégia foi formar uma tropa com os melhores militares de cada companhia,
comandada por um capitão de “valor e experiência”. Todavia, essa não parece
ter sido a principal força. Como consta na carta de Alexandre de Sousa Freire,
o tenente Belquior Mendes estava no conflito com um socorro de 600 índios
de guerra.711 Um número espantosamente maior que o de soldados pagos, e
muito superior ao quantitativo somado pelas cinco companhias regulares de
que dispunha a capitania do Pará nesse ano, que somava 259. Também um
número jamais alcançado para as forças oficiais durante toda primeira metade
do século XVIII, que não atingiu mais do que 322 militares.
É importante ressaltar que se trata de apenas um evento de guerra para o
qual integra-se um número significativo de nativos. Considera-se que o gover-
nador se refere a um reforço, o que significa que já havia outros que integravam
710 No Mapa de Gente de Guerra da capitania do Pará em 1728, os militares que aparecem desta-
cados a tropa de guerra do Rio Negro saíram de quatro companhias vejamos: Da companhia
de infantaria de Diogo Pinto da Gaia estavam na tropa de guerra do Rio Negro: o Cabo de
Esquadra Luís Coelho; os soldados: Manoel Marques, Baltazar Soares, João Pimenta, Ângelo de
Souza, Manoel Rodrigues dos Santos, Diogo Coelho, José Rabelo da Silva, Faustino de Barros,
Luís da Fonseca. Esses dois últimos, consta terem desertado da tropa. Da companhia do capitão
de infantaria de José Rodrigues da Fonseca foram destacados: Alferes José Antunes Fidalgo;
Sargento João da Silva Bairros. Soldados: Gregório Serrão de Melo, Anacleto de Oliveira,
Lourenço de Sousa, Joseph Elias da Silva, Rodrigo de Melo, Lucas dos Santos, Antônio Vieira
Jardim, Timóteo Ferreira. Da companhia de artilharia do alferes regente Inácio de Carias fo-
ram os soldados: Júlio de Seixas, José e Seixas, Tarciso de Souza, Xavier Pereira, João Correia
Marinho, Pascoal Gonçalves, Simão Pacheco, Geruázio da Mata, Francisco Portilho, Custódio
Evangelho Pahin, Antônio Henriques Campelo. Da companhia de infantaria de João Pais
do Amaral estavam destacados: Sargento Freire de Mendonça, o cabo de esquadra Teonardo
[Leonardo] Gonçalves, o cabo de esquadra Tomé de Brito. Soldados: Pedro Ferreira Pinheiro,
Manoel de Avelar, Diogo Fernandes, João Alves, José Fernandes, Basílio Arnao, Francisco
Gomes, Francisco G. e Souza Maciel, Amaro Gonçalves, Bernardino Xavier Pereira, Agostinho
Ferreira, Pedro de Souza Passos, Antônio Fernandes Brasão, José Moreira, Tome Pais de Amaral,
José Pereira. Mapa está em anexo da Carta do governador do Estado do Maranhão, Alexandre
de Sousa Freire para o rei D. João V. Belém do Pará, 14 de setembro, 1728. AHU, Avulsos do
Pará, Cx. 11, D. 974.
711 Carta do governador do Estado do Maranhão, Alexandre de Sousa Freire para o rei D. João V.
Belém do Pará, 14 de setembro, 1728. AHU, Avulsos do Pará, Cx. 11, D. 974.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
304 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
a primeira campanha. Mesmo com o dado de 600 índios de guerra integrados
a uma tropa lusa com 50 ou 60 militares, não bastava. A guerra contra os
Mayapena bem equipados com uma força indígena que dispunha de armas
nativas e armas europeias exigia bem mais esforços. Em 1728, há ainda refe-
rência ao pedido que fez o capitão João Pais do Amaral, em que solicitava com
urgência 800 índios de guerra.712
Reduzidos apenas a um número, o governador não apresenta mais infor-
mações sobre esses aliados. Todavia, explicava ao rei que os 800 índios, não
sabia como os alcançar, alegando que contra ele “se amotinam os missionários,
praticando-lhe e dizendo-lhes que fujam, e desobedeçam” a suas ordens.713 Ou
seja, há indícios que esses índios saíam dos aldeamentos por meio da relação
que destacamos no capítulo anterior.
O fato é que em 1728, as notícias de Alexandre de Sousa Freire já indi-
cavam a “pacificação Manao”. Isso ocorreu com uma estratégia que tinha por
objetivo prender o Principal Ajuricaba. Para isso, foi necessário dividir o “poder
e as canoas” que compunham a investida lusa. Na boca do rio onde se localiza a
aldeia do Principal se deixou a força menor. A força maior “se mandará entrar
pelo rio Ajurim” de modo que a força maior ataque por trás a aldeia. Assim,
se enganará a força Manao, que dispenderá toda a força para combater os que
estiverem na “boca do rio”, e assim possa invadir facilmente com a maior força
por trás. O desfecho foi a morte do Principal Ajuricaba, que se jogou da canoa
que o levava preso a Belém.714 Conforme se verifica, a estratégia do assalto, que
é uma técnica nativa que visa surpreender o inimigo, foi a empregada contra
os Manao.
Todavia, ainda resistiam seus aliados Mayapena. O reforço de 800 índios
de guerra que pedia João Pais do Amaral, que se destacou atrás, era para com-
bater esse grupo.715 Em carta de 3 de outubro de 1729, o governador informava
ao rei sobre a situação da guerra contra os Mayapena e sobre a nomeação de
712 Idem.
713 Idem.
714 “Regimento de tropas de guerra e resgate no Rio Negro- 1726”. Boletim de Pesquisa da CEDEAM,
Universidade do Amazonas, Manaus, v. 5, n. 9, p. 3-29, jul./dez. 1986. Essa estratégia também é
analisada em: GUZMÁN, Décio Marco Antônio de Alencar. “História de Brancos”: memória,
historiografia dos Manao do Rio Negro (séculos XVIII-XX)”. p. 35.
715 Carta do governador do Estado do Maranhão, Alexandre de Sousa Freire para o rei D. João V.
Belém do Pará, 14 de setembro, 1728. AHU, Avulsos do Pará, Cx. 11, D. 974.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 305
Belquior Mendes de Morais como cabo para guerra. A justificativa da escolha
do militar por cabo da guerra foi o seu bom relacionamento “com todos os
gentios vassalos de V.M., especialmente com o potentado Cabacabary, que
auxilia as tropas portuguesas nos sertões dos seus distritos”.716
Conforme se verifica, a relação com os aliados indígenas também define o
oficialato destinado para a guerra. Aqui temos indícios nominais de uns dos alia-
dos indígenas, mas a documentação não apresenta mais nenhuma informação
sobre esse grupo cujo chefe era o denominado “potentado Cabacabary”. Esses
são mencionados novamente na estratégia de guerra construída para comba-
ter os Mayapena. No acervo iconográfico do Arquivo Histórico Ultramarino,
encontra-se o mapa dessa estratégia. Todavia, não está a descrição ou explica-
ção dos elementos que o compõem.
A parte escrita que completa o mapa se encontrava em outro acervo.
Trata-se do mesmo problema, que destaquei no capítulo 3 ao analisar as forti-
ficações. No processo de organização arquivista os documentos escritos foram
desconectados de mapas e iconografias. Esses últimos desmembrados com-
põem um acervo específico. Cabe ao pesquisador resolver o quebra-cabeça, o
que se exige maior investimento de pesquisa para encontrar as partes e reco-
nectá-las. Foi este o caso.
Vejamos o Mapa da estratégia de guerra montada contra os Mayapena.
716 Carta do governador ao rei sobre a guerra Mayapena e a nomeação de Belquior Mendes de
Morais a cabo. Belém 3 de outubro de 1729. AHU, Avulsos do Pará, Cx 11; D. 1056.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
306 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
Imagem 20. Mapa da Aldeia Majuri, 1728
Fonte: “Mapa da aldeia do Principal Majuri”. AHU, CARTm- 20, D. 0773.
De acordo com o documento explicativo do mapa, a aldeia dos Mayapena
constituía-se de um grande povoamento formado por várias aldeias vizinhas,
grande parte aliadas do Principal Majuri. Um forte sistema defensivo de
“dobrada fortificação”, formado por pedras, indicado na imagem pelo numeral
3 (três), conectadas por guaritas indicadas pelo numeral 1 (um), e resistentes
cercas de madeiras “tão fortes que combatidos com balas de artilharia não pode
abrir brecha”.717
A estratégia diferente da usada para combater os Manao que foram
tomados por assalto (tática nativa de guerra), no caso da aldeia dos Mayapena,
a estratégia foi o sítio ou cerco. Trata-se de uma tática de guerra usada na
717 “Escrito da explicação do mapa da tomada da aldeia do Principal Majuri”. 6 de julho de 1728.
AHU, Avulsos do Rio Negro, Cx. 1, D. 1.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 307
Europa, conhecida desde antiguidade, sobretudo na época medieval. Os cas-
telos amuralhados eram mantidos em sítio até se exaurir os recursos de água e
alimentos, ocasião propícia ao ataque do oponente.
Essa parece ter sido a estratégia contra os Mayapena. Consta que a
tropa de João Pais do Amaral chegou à aldeia desses índios e logo os colocou
em estado de sítio que durou doze dias, sendo obrigado “os defensores a sair
dela por lhe faltar água, lá dentro na Aldeia”. Essa foi a ocasião do ataque
que com “armas de fogo e zagaias” se matou um grande número de gentio
desertando a maior parte”, principalmente pela atuação na guerra do Principal
Cabacabary.718
O documento apresenta mais detalhes da estratégia do cerco. As letras
que aparecem no mapa, indicadas pelos círculos, correspondem à seguinte
descrição:
• na letra A, “ocupava o ajudante Tomas Teixeira “com alguma infantaria
guarnecendo a cortina que ficava no caminho que desce ao rio da água de
beber”;
• a letra B “mostra a parte do Rio Negro”;
• na letra C, “guarnecia o soldado Narciso de Souza e seus companheiros”;
• na letra D, guarnecia o alferes Manoel da Cunha o “caminho do porto”;
• na letra E, guarnecia o soldado Baltasar Soares com seus companheiros;
• na letra F, estava o alferes Angélico Ribeiro com sua campanha;
• na letra G, se pôs o soldado Júlio de Seixas e alguns soldados;
• e na letra H, estava o Principal Cabacabary.
O desenho dessa estratégia reafirma o argumento que tenho levantado
ao longo desta obra, os indígenas aliados participaram ativamente das ativi-
dades militares. Aparecem como parte integrante desse processo. A ausência
da tropa auxiliar tornava essa presença imprescindível. Ora, basta verificar que
para essa guerra a força disponível foi a tropa regular e a força indígena, não
havendo em nenhuma correspondência trocada entre militares, governadores
e Coroa qualquer referência a uma força intermediária (companhia auxiliar).
718 Idem.
GENTE DE GUERRA, FRONTEIRA E SERTÃO:
308 Índios e Soldados na Capitania do Pará (Primeira Metade do Século XVIII)
Isso é evidente nos dois reforços solicitados pelo capitão João Pais do Amaral,
em que ele pede índios guerreiros.
Aqui, na estratégia do cerco, o principal Cabacabary é posto ao lado dos
militares, ocupando inclusive um papel fundamental na definição do conflito.
Consta na descrição da tática de guerra que este pelejou “abrindo brecha na
trincheira” do sistema defensivo dos Mayapena, o que possibilitou a entrada
dos militares lusos, agindo “com o valor conhecido, causando inveja aos valo-
rosos soldados”.719
Portanto, o avanço da fronteira colonial para Noroeste, a partir da con-
quista do Rio Negro, com uma força formada por 50 ou 60 militares pagos,
600 índios de guerra, com pedido de auxílio de mais 800, caracteriza uma
guerra luso-indígena. Essa composição se justifica em grande parte pela força
adversária. Uma força como a constituída pela frente Manao-Mayapena não
seria possível vencer sem o auxílio da gente nativa porque era destes a arte
militar capaz, combinada com a experiência do oficialato experimentado, e o
recurso a diversas armas como armas de fogo, arco e flecha, azagaias, além de
táticas indígenas e europeias, que bem representam essa heterogeneidade de se
fazer a guerra.
•••
A presença indígena nas atividades militares, na primeira metade do
século XVIII, pode ainda ser observada em outros momentos, como por exem-
plo, na expansão da fronteira do Rio Tocantins a partir de Tropa de descobri-
mento de minas de ouro do Tocantins (1727) e da Tropa de Guerra do Tocantins
(1730). Pelos limites deste estudo, não será possível analisar mais essa frente
de expansão.
Todavia, é importante destacar a atuação dos Tupinambá, Maracanã e da
nação Aroaguini Nhengatê liderados pelo principal José Aranha, para o qual
recomendava-se “ir com algum título ou posto de governador de sua gente,
pois assim se animará de melhor vontade praticar e fazer pazes com os gen-
tios”. Conforme explicava o militar, esse auxílio indígena era necessário “para
a boa direção do descobrimento de ouro dos Tocantins, o que de outra sorte
719 Idem.
Defesa luso-indígena: militares, indígenas e alianças na capitania do Pará 309
senão poderá conseguir como a experiência tem mostrado”, razão pela qual
pedia 100 índios para a empreitada.720
O impacto da presença militarizada de europeus no vale Amazônico
e a consequente introdução da arma de fogo implicaram na ressignificação
da guerra no período colonial, provocou migrações internas e extermínio de
populações indígenas. O estado de alianças e enfrentamentos que caracteri-
zaram o contato com o sistema colonial desenhou um ambiente de guerra
significativo pelo volume de conflitos verificados entre os primeiros anos de
presença portuguesa na região até 1750, para os quais as alianças com os nati-
vos tornaram-se imprescindíveis para a defesa da capitania. Mas afinal, por que
os indígenas se aliavam aos portugueses?
4. As razões para as alianças: algumas reflexões
Uma das indagações desta pesquisa foi refletir porque alguns grupos indí-
genas resolveram aliar-se aos portugueses e colaborar com o sistema defensivo
com auxílio de gente, arte de guerra, logística, guias, remeiros e informações.
Para essa pergunta não há uma única resposta. E, ainda, não há resposta
simples. A natureza dos documentos, pautada pelos registros oficiais, não dei-
xou nenhum escrito das mãos dos próprios índios que explicasse as razões
para essas alianças. Por outro lado, esse foco documental nos conquistadores
portugueses na expansão das fronteiras coloniais atribui pouca ou nenhuma
visibilidade a esses sujeitos. Além disso, essas alianças são resolvidas por um
conjunto de relações estabelecidas entre grupos indígenas e com os estrangei-
ros que parece um emaranhado ainda pouco claro.
Talvez o que se apresente seja resultado de um esforço analítico de indí-
cios que podem apontar reflexões, mas não conclusões. Trata-se de inferên-
cias para possíveis respostas por meio da análise da relação de interesse que
os índios aliados têm com a guerra, contra outros grupos envolvidos no con-
flito, ou ainda pelo que resulta da guerra para o grupo que colabora. Isso, é
óbvio, não está posto. Primeiro porque as motivações são diversas e segundo
porque as fontes não fazem referência sobre as razões das alianças. Todavia,
720 Requerimento de Francisco de Potflis para o Rei solicitando autorização para fazer descobri-
mento de minas de ouro e o envio de índios e soldados. 12 de fevereiro de 1727. AHU, Avulsos
do Pará, Cx. 10; D. 886.