A Casa Como Lugar de Poder
A Casa Como Lugar de Poder
N.52 (2020)
ISSN 2183-7198
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Resumo As Brumas de Avalon de Marion Zimmer Bradley (1979) é
a história do rei Arthur, narrada pela perspectiva das mu-
lheres quando a Deusa era reverenciada. No ambiente
doméstico, elas fiam, tecem, bordam, costuram e resis-
tem, enquanto traçam estratégias de sobreviver e fazer
viver, guardando o poder e a magia. As imagens fílmicas e
poéticas que trazem estes espaços de intimidade da casa,
onde as mulheres estão aparentemente subjugadas en-
quanto os homens guerreiam, são identificadas e unidas
por um fio vermelho. Este fio é trazido até Florianópolis, a
Ilha da Magia, no Brasil, pelo bordado que será utilizado
como processo de origem vernacular na produção artís-
tica. Bordar: tarefa feminina que às vezes parece castigo
e domesticação, mas também promove concentração.
Casa: lugar de privação e clausura, mas também de po-
tência e nutrição. O objetivo é recordar a casa como lugar
de poder, pois como diz Bachelard (1993,p.29),“…as pai-
xões cozinham e recozinham na solidão. É encerrado em
sua solidão que o ser de paixão prepara suas explosões ou
seus feitos”. Entrelaço as relações entre espaço, memória
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Abstract Marion Zimmer Bradley’s Avalon Mists (1979) is the story
of King Arthur, told from the perspective of women when
the Goddess was revered. In the home environment, they
spin, weave, embroider, sew and resist, while devising
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strategies to survive and make life, guarding power and
magic. The filmic and poetic images that bring these
spaces of intimacy from the house, where women are
apparently overwhelmed while men fight, are identified
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and joined by a red thread. This thread is brought to Flo-
rianópolis, the Island of Magic, in Brazil, by embroidery
that will be used as a process of vernacular origin in artis-
tic production. Embroidery: a feminine task that some-
times seems like punishment and domestication, but also
promotes concentration. House: place of deprivation and
enclosure, but also of power and nutrition. The goal is to
remember the house as a place of power, because as Ba-
chelard (1993,p.29) says, “… the passions cook and rejoice
in solitude. It is enclosed in its loneliness that the being of
passion prepares its outbursts or its deeds. I interweave
the relations between space, memory and poetic image
to investigate under what conditions the house can be a
place of power in a country where the “beautiful, modest
and homey” woman is revered at a time of feminist ef-
fervescence. How to weave with these threads, architect
outlets and openings, sew possibilities and plot in these
difficult times ahead? Through the reactivation of memo-
— ry we seek possible perspectives of coping and existence.
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| Subjectivation
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RCL — Revista de Comunicação e Linguagens Journal of Communication and Languages
Texto Baba 1
Quando o fiz não sabia que esse resumo é o que Suely Rolnik (2018b) chama de texto baba,
considerando que as palavras são excreções do corpo, que são baba. Segundo ela, o modo
como o mundo nos afeta enquanto um corpo-vivo cria novas experiências, novas manei-
ras de ver e sentir, que não tem palavra, não tem gesto e não tem imagem, e isso gera uma
inquietação. Encontramos outros autores pela ressonância que tem suas palavras por es-
tarem vivas e serem portadoras dessa experiência de inquietação e, quando sentimos es-
tas palavras pulsando, nos sentimos acompanhados, não para imitar, mas para fazer nos-
sa própria criação. O esforço é para conquistar uma experiência de pensamento, a partir
de outra subjetividade, que vai além da cognição e parte do que nos afeta e ainda não tem
nome, e que é essencial para tomar nas mãos a responsabilidade da vida.
“Os guaranis, um dos povos originários do Brasil, chamam a garganta de ahy’o, mas tam-
bém de ñe’e rayti, que significa literalmente “ninho das palavras-alma”. É porque eles sa-
bem que embriões de palavras emergem da fecundação do ar do tempo em nossos corpos
em sua condição de viventes e que, nesse caso, e só nele, as palavras tem alma, a alma
dos mundos atuais ou em gérmen que nos habitam nesta nossa condição. Que as palavras
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tem uma alma e a alma encontre suas palavras é tão fundamental para eles que conside-
ram que a doença, seja ela orgânica ou mental, vem quando estas se separam. Eles sabem
igualmente que há um tempo próprio para sua germinação e que, para que esta vingue, o
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ninho tem que ser cuidado. Estar à altura desse tempo e desse cuidado para dizer o mais
precisamente possível o que sufoca e produz um nó na garganta e, sobretudo, o que está
aflorando diante disso para que a vida recobre o equilíbrio — não será esse o trabalho do
pensamento propriamente dito?” (Rolnik, 2018, p.26)
Rolnik (2018a, p.26) chama a atenção para a necessidade de refinar a escuta às nuan-
ces dos gérmens de mundos fecundados pelos efeitos de tais urgências em nossos corpos,
bem como a de buscar palavras cada vez mais afinadas para completar sua germinação,
dando nascimento a um lugar de corpo-e-fala que os injete na corrente sanguínea da vida
social, contribuindo à sua maneira para o trabalho coletivo que visa sua transfiguração.
Rolnik (2018a, p.37) diz que precisamos buscar vias de acesso à potência da criação em nós
mesmos: a nascente do movimento pulsional que move as ações do desejo em seus distintos
destinos. Um trabalho de experimentação sobre si que demanda uma atenção constante.
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radas bruxas.
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Imagem 1
De Avalon a Florianópolis,
Imagem da autora.
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bruxa ou feiticeira. Apesar de ter o seu poder a partir de um simbolismo relacionado
com a casa e o espaço doméstico, ou seja, aos domínios femininos, a benzedeira faz
coisas que, a principio, não seriam da índole das mulheres da comunidade. Ela sai a
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qualquer hora quando é chamada, mesmo à noite, e é capaz de se ausentar da própria
casa durantes vários dias para cuidar de um doente ou de uma parturiente. Pode andar
a cavalo na madrugada para poder chegar a algum local distante onde fora chamada.
Ora, as mulheres que saem à noite, abandonam a familia e a casa e andam a cavalo são
as bruxas. Além disso, a própria condição de poder que existe em torno da benzedeira,
seus atributos, seus conhecimentos secretos, a investem de uma aura que faz com que
ela seja, em muitos momentos, uma estranha dentro de sua própria sociedade, como
são também as bruxas. O medo depositado na bruxa fala de um poder presente de for-
ma virtual em qualquer mulher da comunidade e é o mesmo poder que se instala na
benzedeira, habilitando-a a exercer suas atribuições. Numa certa medida, ela é o duplo
da bruxa e deve a ela uma parte de sua existência.
Por outro lado, a rendeira encarna o modelo ideal de feminino e fazer renda é con-
siderada uma forma de controle das mulheres, para o qual era necessário um treina-
mento desde a infância e um grande empenho cotidiano que resulta em mulheres bem
comportadas. “O serviço da renda faz as meninas mais amorosas e bem amigas das
mães e forma as meninas caseiras’. (Beck; Costa; Torrens; Lacerda, 1983, p.19) Todos
os trabalhos manuais desenvolvidos por mulheres em geral, tem um valor econômico
pequeno e menosprezado, enquanto o valor é deslocado para a moral de quem faz, fa-
zendo com que ser boa rendeira seja atributo para conseguir um bom casamento, já
que aquela mulher é recatada. O dinheiro obtido com a venda da renda era investido
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Imagem 2
Iara, a Mãe das Águas tupi-guarani,
https://www.hipercultura.com/lenda-da-iara/
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Imagem 3
Bordado A Casa como Sereia, Imagem
da autora.
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Como o paradoxo que é a sereia. A casa pode ser lugar de nutrição, de vida, de refazimen-
to, de sustentação, onde vivem “as forças de integração” de Bachelard. Mas é também
lugar de privação, de ocultamento, domesticação, desvalorização e exploração. Metade
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mulher, metade peixe: não é possível escolher nem fazer síntese sem matar a sereia. Tal-
vez seja possível não antagonizar as duas partes e tomá-la não como um monstro, mas
como um ser em que cada parte tem sua potência, e assim torná-la bem-dita ao invés de
mal-dita. Ainda acompanhada de Bachelard, (1993, p.14) busco a “felicidade da palavra
de poeta que domina o próprio drama”, “preciso ultrapassar o drama”. Em Florianópolis,
diz-se que benzer é bem dizer e sinto precisar poder bem dizer a casa, pois como diz Ba-
chelard, (1993, p.11) “o bem dizer é um elemento do bem viver”.
Na busca de mais palavras vivas, acompanho-me de Sílvia Federici (2017) em seu
Calibã e a Bruxa, que descreve como resultado de 30 anos de pesquisa, que a caça às
bruxas na Europa foi uma guerra contra as mulheres; foi uma ação coordenada para
degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social. E foi nas câmaras de tortura e nas
fogueiras onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade.
Centenas de milhares de mulheres não poderiam ter sido massacradas e submeti-
das às torturas mais cruéis por mais de dois séculos se não tivessem proposto um desa-
fio às estruturas de poder. Com a perseguição à curandeira popular e a criminalização
da contracepção, as mulheres foram expropriadas de um patrimônio de saber empírico,
relativas ao uso de ervas e remédios curativos, e à certa autonomia em relação ao nas-
cimento de filhos.
Do mesmo modo que os cercamentos expropriavam as terras comunais do campesi-
nato, a caça às bruxas expropriou os corpos das mulheres, os quais foram assim liberados
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mento do trabalho não remunerado das mulheres por trás do disfarce de inferioridade
natural. Todas as mulheres (exceto as que haviam sido privatizadas pelos homens bur-
gueses) tornaram-se bens comuns, pois uma vez que as atividades das mulheres foram
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definidas como não-trabalho, o trabalho das mulheres começou a se parecer com recurso
natural, disponível para todos, assim como o ar que respiramos e a água que bebemos,
apresentando-se como substituto das terras perdidas na nova organização do trabalho.
Esta mudança substitui uma visão orgânica do mundo — que via na natureza, nas
mulheres e na terra, as mães protetoras — por outra que as degradava à categoria de
“recursos permanentes”, retirando qualquer restrição ética à sua exploração. A mulher,
enquanto bruxa, foi perseguida como encarnação do “lado selvagem” da natureza, de
tudo aquilo que na natureza parecia desordenado, incontrolável e, portanto, antagônico
ao projeto assumido pela nova ciência. O mundo devia ser “desencantado” para poder
ser dominado e a ciência moderna desencantou o mundo, já que a premissa da magia
é que o mundo está vivo, que é imprevisível e que existe uma força em todas as coisas.
Na sociedade capitalista, o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os ho-
mens trabalhadores assalariados: o principal terreno de sua exploração e resistência,
na mesma medida em que o corpo feminino foi apropriado pelo Estado e pelos homens,
forçado a funcionar como meio para a reprodução e acumulação do trabalho. O regime
capitalista impõe uma alienação do corpo pelo processo de trabalho, o que cria uma
nova política sobre o corpo onde não há tempo para o ócio e o prazer. Neste processo,
o que morreu foi o conceito do corpo como receptáculo de poderes mágicos que havia
predominado no mundo de até então.
Silvia Federici (2017) dá palavras que nomeiam e explicam. Mas que dão conta de
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posso pensar diferente. Posso pensar que na mesma medida que para a libertação femi-
nina é fundamental que busquemos e alcancemos o fim da disciplina-trabalho que defi-
ne o corpo (o que está no campo das formas e da macropolítica), também é igualmente
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necessário que a libertação feminina passe pelo corpo (o que está no campo das forças
e da micropolítica).
Conforme Rolnik (2018a), no inconsciente colonial capitalístico, a subjetividade
está totalmente dissociada da experiência das forças, restringindo-se apenas à experiên-
cia das formas: quando vemos, escutamos, farejamos ou tocamos algo, nossa percepção
e nossos sentimentos já vem associados aos códigos e representações de que dispomos,
os quais projetamos sobre esse algo, o que nos permite atribuir-lhe um sentido. A auto-
ra propõe qualificar tal capacidade de “pessoal-sensorial-sentimental-cognitiva”: “Por
meio dela se produz a experiência da subjetividade enquanto “sujeito”, intrínseca à nossa
condição ser sociocultural e moldada por seu imaginário” (Rolnik, 2018a, p.52, grifo no
original). Na política de subjetivação dominante, tendemos a nos restringir à experiência
enquanto sujeitos, porém ela não é a única a conduzir nossa existência.
De acordo com Rolnik (2018a), outra via de apreensão de mundo que nos permite
captar sinais das forças que agitam seu corpo e provocam efeitos em nosso corpo, de-
correm dos encontros que fazemos e recebem os nomes de percepto ou afeto. Percep-
tos e afetos não tem imagem, nem palavra, nem gesto que lhes correspondam — enfim
nada que os expresse — e, no entanto, são reais, pois dizem respeito ao vivo em nós mes-
mos e fora de nós. Eles compõem uma experiência de apreciação do entorno mais sutil,
que funciona sobre o modo extracognitivo, chamada pela autora de “saber do corpo”,
ou “saber do vivo”, ou ainda “saber eco-etológico”.
Conforme a mesma autora, aqui não há distinção entre sujeito cognoscente e ob-
jeto exterior: o outro, humano ou não humano, não se reduz a uma mera representação
de algo que lhe é exterior, como o é na experiência do sujeito; o mundo vive efetivamen-
te em nosso corpo e nele produz gérmens de outros mundos em estado virtual.
Rolnik (2018a) explica que a fricção entre formas e forças geram um desconforto
que provoca o desejo, e este nos impulsiona a buscar um equilíbrio entre como vivemos
as formas e as forças, criando novos mundos. No inconsciente colonial capitalístico, o
desejo provocado pela fricção entre formas e forças é capturado pelo consumo e não
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criamos novos mundos, mas reproduzimos o mesmo em que já estamos. Se a matriz
do sistema colonial capitalista é essa dissociação da nossa condição de vivo e a cafe-
tinagem da pulsão vital na sua própria nascente, não é possível mudar esse estado de
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mundo só intervindo no plano da macropolítica. Se não houver insurreição no plano da
reapropriação da força de criação tudo volta para o mesmo lugar.
Consideramos, como Federici (2017), que a dissociação entre corpo e natureza jun-
tamente com o estabelecimento da casa e do trabalho feminino como lugar de opressão
foi feita pelo desencantamento do mundo pela ciência moderna. A caça às bruxas pro-
moveu a eliminação da mulher e da magia, não apenas nas formas, mas principalmente
das forças. Sendo assim, a captura se deu não apenas no plano macropolítico, das for-
mas, mas também no plano micropolítico, das forças, de como o mundo nos atravessa.
Quando se exorcisou tudo que a bruxa representava, ela pôde voltar a existir enquanto
forma, porque estava esvaziada das forças que a constituíam.
Assim, juntamente com as representações sociais da mulher e da magia e suas
consequências, foi capturada a maneira como o nosso corpo entra em contato com o
mundo; foi sequestrada nossa capacidade de nos permitir engravidar do mundo; foi ca-
fetinada nossa habilidade de criação e nossa disposição de permanecer no desconforto
até que germine outro mundo que acolha o desejo. E abortamos assim, novas possibili-
dades de mundo.
Rolnik (2018a) coloca que o modo de operação da insurreição micropolítica é por
afirmação da vida em sua essência germinativa. Para desertar das relações de poder e
não ceder ao abuso da pulsão, precisamos fazer a travessia do trauma que tal abuso pro-
voca e que prepara o terreno para o sequestro de sua potência. É esse trauma o que nos
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onde os reprimidos conseguem sobreviver…”2 (Cixous, 1976, p.880).
Bachelard (1993) considera que nosso inconsciente está “alojado”. (1993) Nossa
alma é uma morada. E, lembrando-nos das casas, dos aposentos, aprendemos a morar
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em nós mesmos. Para ele, a imagem poética é uma emergência da linguagem, está sem-
pre um pouco acima da linguagem significante. Ao viver os poemas, temos, portanto, a
experiência salutar da emergência. Trata-se, sem dúvida, de emergência de pequeno
alcance. Mas essas emergências renovam-se; a poesia põe a linguagem em estado de
emergência. Em sua simplicidade, a imagem não tem necessidade de um saber. Ela é a
dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão é uma linguagem criança. Para
especificar que a imagem vem antes do pensamento, seria necessário dizer que a poesia
é, mais que uma fenomenologia do espírito, a fenomenologia da alma. Deveríamos en-
tão acumular documentos sobre a consciência sonhadora. Já podemos ver que as ima-
gens da casa caminham nos dois sentidos: estão em nós tanto quanto estamos nelas.
Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro
universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. A poesia
é um compromisso da alma. A consciência associada à alma é mais repousada, menos
intencionalizada que a consciência associada aos fenômenos do espírito. Nos poemas
manifestam-se forças que não passam pelos circuitos de um saber. Com a poesia a ima-
ginação coloca-se na margem em que precisamente a função do irreal vem arrebatar
ou inquietar — sempre despertar — o ser adormecido de seus automatismos. O mais
2 “Because poetry involves gaining strength through the unconscious and because the unconscious, that other
limitless country, is the place where the repressed manage to survive…”
“Ao escrever-se, a mulher retornará ao corpo que tem sido mais do que confiscado dela,
que se transformou no misterioso estranho em exibição – a figura doente ou morta, que
muitas vezes acaba por ser a companheira desagradável, a causa e a localização das inibi-
ções. Censure o corpo e você censura a respiração e o discurso ao mesmo tempo. 4 Escreva
seu auto. Seu corpo deve ser ouvido. Somente então os imensos recursos da primavera
inconsciente germinarão.(…) Escrever. Um ato que não apenas “realizará” a relação des-
censurada da mulher com sua sexualidade, com sua feminilidade, dando-lhe acesso à sua
força nativa; devolver-lhe-á seus bens, seus prazeres, seus órgãos, seus imensos territó-
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rios corporais que foram mantidos em sigilo; isso a afastará da estrutura superegoizada
em que ela sempre ocupou o lugar reservado de culpada (culpada de tudo, culpada a todo
momento: por ter desejos, por não ter nenhum; por ser frígida, por ser “muito quente”;
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por não ser os dois ao mesmo tempo; por ser muito maternal e insuficiente; por ter filhos
e por não ter nenhum; por amamentar e por não amamentar...) – a afastará por meio desta
pesquisa, desse trabalho de análise e iluminação, dessa emancipação do texto maravilho-
so de si mesma que ela deve urgentemente aprender a falar. Uma mulher sem corpo, bur-
ra, cega, não pode ser uma boa lutadora. Ela é reduzida a ser a serva do homem militante,
sua sombra. Devemos matar a falsa mulher que está impedindo um ser vivo de respirar.
Inscreva o fôlego da mulher inteira”5 (Cixous 1976, p. 880, grifos no original).
“Está na hora das mulheres começarem a marcar seus feitos na linguagem escrita e oral.
Toda mulher conheceu o tormento de levantar-se para falar. Seu coração disparando, às
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jetificado”, generalizado: ela desenha sua estória na história”6 (Cixous, 1976, p. 881, grifos
no original).
“Na fala das mulheres, assim como na escrita, aquele elemento que nunca para de ressoar,
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que, uma vez que somos permeados por ele, profunda e imperceptivelmente tocados por
ele, retém o poder de nos mover - esse elemento é a música: primeira música da primei-
ra voz do amor que está viva em toda mulher. Por que esse relacionamento privilegiado
com a voz? Porque nenhuma mulher armazena tantas defesas para combater os impulsos
como um homem. Você não constrói muros ao seu redor, você não renuncia ao prazer
tão “sabiamente” quanto ele. Mesmo que a mistificação fálica tenha contaminado bons
relacionamentos em geral, uma mulher nunca está longe de ser “mãe” (quero dizer, fora
de seus papéis funcionais: a “mãe” como não nome e como fonte de bens). Há sempre
6 It is time for women to start scoring their feats in written and oral language. Every woman has known the torment
of getting up to speak. Her heart racing, at times entirely lost for words, ground and language slipping away-that’s
how daring a feat, how great a transgression it is for a woman to speak-even just open her mouth _in public. A
double distress, for even if she transgresses, her words fall almost always upon the deaf male ear, which hears in
language only that which the masculine. It is by writing, from and toward women, and by taking up the challenge
of speech which has been governed by the phallus, that women will confirm women in a place other than that
which is reserved in and by the symbolic, that is, in a place other than silence. Women should break out of the
snare of silence. They shouldn’t be conned into accepting a domain which is the margin or the harem. Listen to
a woman speak at a public gathering (if she hasn’t painfully lost her wind). She doesn’t “speak,” she throws her
trembling body for- ward; she lets go of herself, she flies; all of her passes into her voice, and it’s with her body that
she vitally supports the “logic” of her speech. Her flesh speaks true. She lays herself bare. In fact, she physically
materializes what she’s thinking; she signifies it with her body. In a certain way she inscribes what she’s saying,
because she doesn’t deny her drives the intractable and impassioned part they have in speaking. Her speech,
even when “theoretical” or political, is never simple or linear or “objectified,” generalized: she draws her story
into history.
Enfim, depois deste mergulho, retomo a pergunta que expressa a inquietação que
moveu o fazer, sentir e pensar deste escrito: como podemos nos reapropriar das forças
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de criação perdidas na “transformação da vis erotica feminina em vis lavorativa — isto
é, na transformação da sexualidade feminina em trabalho”? Retomando o corpo pela
escrita, bem dizendo a casa e o corpo, escrevendo para bem dizer a casa e o corpo, res-
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tabelecendo a potência pelo cuidado com a casa. Acessando o plano das forças (micro-
política) vivendo como cuidado o que no plano das formas (macropolítica) é trabalho.
Restaurando a magia.
Vem de novo Bachelard:
“o que guarda ativamente a casa, o que a mantém numa segurança de ser, é a atividade do-
méstica. Mas como dar ao trabalho doméstico uma atividade criadora? No momento em que
acrescentamos um clarão de consciência ao gesto maquinal, no momento em que fazemos
7 In women’s speech, as in their writing, that element which never stops resonating, which, once we’ve been
permeated by it, profoundly and imperceptibly touched by it, retains the power of moving us-that element is the
song: first music from the first voice of love which is alive in every woman. Why this privileged relationship with
the voice? Because no woman stockpiles as many defenses for countering the drives as does a man. You don’t
build walls around yourself, you don’t forego pleasure as “wisely” as he. Even if phallic mystification has generally
contaminated good relationships, a woman is never far from “mother” (I mean outside her role functions: the
“mother” as nonname and as source of goods). There is always within her at least a little of that mother’s milk.
She writes in white ink.
8 A woman’s body, with its thousand and one thresholds of ardor-once, by smashing yokes and censors, she lets it
articulate the profusion of meanings that run through it in every direction-will make the old single-grooved mother
tongue reverberate with more than one language. We’ve been turned away from our bodies, shamefully taught to
ignore them, to strike them with that stupid sexual modesty; (…) Why so few texts? Because so few women have as
yet won back their body. Women must write through their bodies, they must invent the impregnable lan- guage that
will wreck partitions, classes, and rhetorics, regulations and codes, they must submerge, cut through, get beyond
the ultimate reserve-discourse, including the one that laughs at the very idea of pro- nouncing the word “silence,”
the one that, aiming for the impossible, stops short before the word “impossible” and writes it as “the end.”
Isso de que todos fomos destituídos estava presente em todas as culturas que fo-
ram subjugadas a partir do século XV. Os povos originários das Américas, os africanos
escravizados e as bruxas tinham como política do desejo essas duas experiências liga-
das, antes dessa cultura se impor mundialmente. As formas e as forças eram igualmen-
te acessadas, como duas formas de subjetivação distintas e paradoxais. Nós acessamos
apenas a das formas, que dá a noção de identidade e reduzimos nossa existência a esta.
Mas, mesmo estando dissociados, as forças continuam atuando, estão em nós, mas es-
tamos desabituados. Desabituados, sem hábitos, sem habitar: “a casa é um grupo de
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hábitos orgânicos” (Bachelard, 1993, p.33). E podemos acessá-las na memória do nosso
corpo. Não quer dizer que vamos virar índios, negros ou bruxas, mas que precisamos
nos reapropriar disto e inventar um outro mundo a partir do que estamos vivendo. Ha-
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bitar o corpo e habitar a casa a partir das forças que afirmam a vida pode ser uma forma
de insurreição. Deixo-me levar por Ceumar (2014), em sua música Encantos de Sereia:
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Referências audiovisuais
Cesumar. (2014), Encantos de Sereia. Álbum: Silencia. São Paulo: Circus Produções.
Rolnik, Suely. 2018b. Suely Rolnik e o Texto Baba. Novos Povoamentos. Disponível em:
https://novospovoamentos.wixsite.com/novospovoamentos. Acesso em:13/8/19.
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CÉLIA REGINA DA SILVA SORAYA NÓR
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Nota biográfica Nota biográfica
ISSN 2183-7198
Arquiteta e Urbanista graduada pela Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo
Universidade Federal de Santa Catarina em pela Universidade de Brasília — UnB (1985);
2002, Mestra em Arquitetura e Urbanismo Especialização em Urbanismo e História da
pelo PosArq/ARQ/UFSC em 2004, mãe do Cidade pela Universidade Federal de Santa
Caetano e da Diana, Doutoranda pelo PosArq/ Catarina (UFSC) (1998); Mestrado em Geografia
ARQ/UFSC desde 2019. Criadora do Programa pela UFSC (2001); Doutorado em Geografia
Preparando o Ninho e da InuMani Arquitetura pela Universidade Federal de Santa Catarina
dos Sentidos. (2010) e Pós-doutorado em Urban Design —
— Faculty of Technology, Design and Environment
CV — Oxford Brookes University — Inglaterra
http://lattes.cnpq.br/7593516440225704 (2017). Professora do Curso de Graduação em
— Arquitetura e Urbanismo e do Programa de
Morada institucional Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
Servidão Hilário Manoel da Silva, 137, Cachoeira da Universidade Federal de Santa Catarina —
do Bom Jesus, Florianópolis, Santa Catarina, UFSC. Membro do Grupo de Pesquisa Análise
Brasil. CEP 88056-345. Ambiental e Permacultura da UFSC.
—
CV
http://lattes.cnpq.br/3321266808946310
—
Morada institucional
Rua Eng. Agronômico Andrei Cristian
Ferreira, 662, Campus Universitário, Trindade,
Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
CEP:88040-970.