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Vila Sapo - José Falero

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José Falero

Vila Sapo
Contos
Para Rita,
para Caroline,
para Dalva

Com amor e gratidão


Capa
Folha de Rosto

Atotô
Encontro de negócios
Dignidade‑relâmpago
Rosa‑bebê
Aconteceu amor
O episódio do bodoque
Um otário com sorte

Autor

Créditos
Atotô

Teve a época da cachaça. Eu era bem mandinho nesse tempo, mas


lembro. Os nego tudo se reunia pra tomar caipira de bergamota,
ouvindo Sobrevivendo no inferno. E as bergamota não era comprada,
não. Nada disso. Se os nego mal conseguia juntar dinheiro pra
comprar a cachaça, imagina então comprar as bergamota. Fora de
cogitação comprar as bergamota. Era tudo roubada lá do Zé do
Brejo. E seguinte: naquele tempo, só caipira de verdade; não tinha
suquinho da Xuxa. Os nego até dizia: “a legítima caipira: ou tu cai,
ou tu pira”. Mas caipira era só no meio da gurizadinha mais nova,
tudo moleque, quinze, dezesseis ano. Os malandro mais velho
gostava de tomar a cachaça era purinha mesmo. Deus o livre, os
bicho era ruim! Só demônio, só diabão! Desses aí, boa parte tá
morto hoje em dia, ou tá atirado nos boteco. Virou tudo bêbado,
lógico. Tudo tiozinho bêbado hoje em dia, desses que nem passa
na baia quando chega do trampo: já salta do bonde já na frente do
boteco já e já vai entrando já e já vai pedindo uma dose já e já vai
empinando… A primeira é talagaço e não tem boi; depois, beleza,
só bicando na manhosa. Eu tenho pena é das mulher desses cara,
na real. Os cara chega na baia tapado de marimbondo e não lava
nem os pé pra dormir. Isso quando não bate nas pobre das nega
véia, Deus que me perdoe. Ih, vários e vários malandro da época da
cachaça virou esse tipo de verme aí, esse tipo de imundície, esse
tipo de fraco.
Hoje em dia, vários ano passado da época da cachaça, nós já
tamo na época do gelo já. Que loucura, né, meu? Quem diria, né,
meu? Esse tempo de agora, porra, isso ia ser ruim de imaginar na
antiga, na real. Olha aí, olha bem, só te liga: qualquer cu pelado
chega num boteco e pede um gelo. Ou dois. Três, quatro, se pá até
cinco. Caralho, mano! Na antiga, tinha que fazer cinquenta grau
pro malandro se animar de botar um gelo, a menos que fosse
maluco do dinheiro, que tivesse uma condição melhorzinha. Hoje,
não. Pode ver, pode ver: os boteco tudo cheio de neguinho que não
tem onde cair morto, tudo vá gelo. E vá raio também, mas, enfim,
daí já é outra história já.
O fato é que o meu tempo de medonho foi depois da época da
cachaça, que já tá distante no passado, mas foi antes dessa época
do gelo de agora. Foi no meio, tá ligado. O meu tempo de
medonho foi na época do vinho.
Na época do vinho, garrafa de um litro era de tomar sozinho, de
cantoneira, ou entre dois, no máximo. Pra tomar de mulão, tinha
que ser garrafão de cinco litro. Vou te dizer pra ti: tempo bom pra
caralho! Tempo melhor não teve. Era época de pião zunindo no
chão e pipa voando no céu. Era época de carrinho de lomba: a
Guaíba parecia um autódromo, e os pátio tudo parecia uma pá de
oficina. Era época de futebol: o campo sempre lotado de nego pra
jogar, fora a cambada na volta olhando. Era época de funda: as
lâmpada dos poste sempre estourada, que a piazada não perdoava
nada. Por causa disso, inclusive, o coração da vila Sapo, que é a
praça, ficava um breu só, quando caía a noite.
E nesse breu da praça eu perdi as conta de quantas vez eu e os
nego tudo — sempre uma pá de boneco, às vez dez, quinze nego
—, eu perdi as conta de quantas vez a gente se juntou nesse breu
da praça pra encher a cara de vinho e maconha. Vá garrafão e vá
bomba, Deus o livre! Porra, era massa. Nessa época, porco na boca
era mentira. Só quando alguém matava alguém, daí beleza; mas
não toda hora, que nem é hoje em dia.
Eu lembro que uma vez a cena no breu da praça foi longe. O
assunto parecia que não ia acabar nunca: bomba atrás de bomba,
garrafão atrás de garrafão. Bom, chegou uma hora que só tinha
filósofo ali. E toda vez que eu via o garrafão na finaleira e a bomba
na pontinha e já começava já a me conformar, pensando que era o
fim, os nego tudo começava a se coçar e do nada surgia uma pá de
moeda e nota amassada. Na vila Sapo é assim, sempre foi assim e
sempre vai ser assim: os malandro não conhece limite. A loucurada
se estica até onde dá: enquanto tem de beber, os malandro bebe;
enquanto tem de fumar, os malandro fuma. E outra: ninguém pede
pinico. Jamais visto, pedir pinico. É tudo doido ponta firme, tudo
mil grau. O diabo é que gosta de ver. Na vila Sapo, ele tá sempre
pelos canto, esfregando as mão, só olhando os mano se destruir de
tudo que é maneira.
Mas não tem jeito: sempre chega uma hora que o assunto acaba,
e nessa hora os nego tudo começa a largar, um por um. Naquela
vez, não foi diferente. Quando já não tinha mais vinho, já não tinha
mais maconha e já não tinha mais dinheiro, foi dois palito pro
bandão de mais de dez cabeça se reduzir a trio. E eu fui um desses
três que ficou ali, vegetando no breu da praça, tá ligado. Sei lá,
nunca fez o menor sentido pra mim ficar louco e ir dormir. Hum!,
ficar louco e ir dormir! Pra mim, isso é o maior desperdício. A
minha loucura, eu sempre gostei de gastar ela acordado, na rua,
vendo as coisa acontecer. E o que acontece na vila Sapo, mano, tu
não acredita. Principalmente o que acontece no meio da
madrugada.
O trio que ficou vegetando na praça depois que o resto tudo
saltou era eu, mais o Nego Tiriça, mais o Nego Bota Fé. Na real, eu
nunca cheguei a falar com eles dois sobre essa viagem de gastar a
loucura na rua, mas acho que se pá eles pensava que nem eu.
Tava um frio que parecia até dois, e não tinha nuvem nenhuma
no céu. Interiormente da minha mente totalmente demente, eu
comparei a lua branca e morta que brilhava no céu com uma
lâmpada, dessas que se acende pra iluminar o frio, o vazio e a
fome, quando a gente abre a porta da geladeira no meio da
madrugada. Que viagem! Muita viagem. Eu tava muito viajando.
Daí, teve uma hora que o Nego Bota Fé me resgatou do mar dos
delírio, porque ele tremeu inteirinho, fazendo “brrr!”, igual um
cavalo relinchando, e isso me chamou a minha atenção, tipo, isso
fez eu me alertar e ficar esperto. Eu senti toda a minha viagem
evaporando dentro da minha cabeça enquanto o negão se encolhia
todo, abraçando ele mesmo e esfregando os ombro com as mão.
Daí, ele cantou:
— “Quanto mais frio/ Mais em prol/ Um amante do dinheiro/
Pontual como o sol/ Igual eu…”
Já devia fazer uns dois ano que Nada como um dia após o outro
dia tinha sido lançado. Os fado já tava tudo na ponta da língua dos
malandro. Mas esse aí o Nego Bota Fé não lembrava todo. Ele até
ficou tentando lembrar, mas não conseguiu. Daí, me perguntou:
— Como é que é mesmo, Nego Estavo?
Beleza, beleza, eu não vou me fazer de louco. Eu sei que tu que
tá lendo isto aqui deve ter ficado pensando “meu Deus do céu, mas
por que Nego Estavo?”. Então, seguinte: deixa eu explicar essa
porra desse meu apelido. É dois palito.
Teve uma vez, vários ano antes dessa madrugada fria aí, que eu
comecei a contar uma história pros nego. Na roda, ouvindo eu
falar, só malandro arriado, como sempre. E nessa história que eu
comecei a contar, tinha uns mano comigo — uns mano que tinha
dado fuga dos porco comigo. Tinha sido a minha primeira fuga dos
porco, e por isso eu tava contando a história todo empolgado e pá.
Daí, teve uma hora que eu falei errado: eu disse “nós tavo lá”. Os
nego tudo se arriou em mim, lógico. Ficou tudo tirando onda de
mim e repetindo “nós tavo lá”, “nós tavo lá”, “nós tavo lá”. Daí eu
me irritei e disse que eu não era tão burro, e que eu sabia muito
bem que o certo era “nós estavo lá”. Porra, daí os nego não queria
mais nada: se matou tudo de rir da minha cara. E foi assim que
começou: “Nego Estavo” pra cá, “Nego Estavo” pra lá. Eu ficava
louco com os nego me chamando assim, e foi justamente por isso
que o apelido pegou.
O Nego Tiriça se adiantou na minha frente e cantou uma
carinha do fado pra refrescar a memória do Nego Bota Fé:
— “De roupão e capacete…”
— Isso aí, isso aí, isso aí mesmo — disse o Nego Bota Fé. —
“No frio já é quente/ Ainda usando colete…” — E seguiu cantando
o fado.
O Nego Bota Fé tinha esse apelido porque gostava de ver os
nego se foder. Tipo, quando os nego tava em dúvida se fazia ou não
algum bagulho que podia dar ruim, ele ficava metendo pilha,
dizendo pros nego fazer, sim, só pra ver a merda pegar preço
depois. E seguinte: ele metia essa pilha na maior cara dura,
pagando uma de incentivador e pá. Ficava bem sério e começava a
dizer “vai lá, mano, vai lá, que não dá nada, bota fé, bota fé”. Um
dia os nego se ligaro nessa manha dele e começaro a chamar ele de
Bota Fé.
Já o Nego Tiriça tinha esse apelido porque só queria saber de
sexo. Só falava em sexo. Qualquer assunto, ele dava um jeito de
levar pro lado do sexo. Vivia tentando ver as calcinha das mina,
vivia tentando espiar as tia dele tomando banho ou trocando de
roupa. Já tinha sido pego uma pá de vez batendo punheta, sempre
nos lugar mais inacreditável. Uma vez, parece que uma professora
pegou ele escabelando o palhaço na sala, no meio da aula: vá soco
na bexiga embaixo da classe, bem de cantinho. Não demorou
muito pros nego começar a arriar que ele só pensava em sexo
porque não comia ninguém, porque tava sempre a nadir, porque
tava sempre na seca, porque tava sempre na tiriça. Daí ficou: Nego
Tiriça.
De repente, o Nego Bota Fé parou de cantar, porque três
malandro vinha descendo da Vilinha. Esse é o clima na madrugada
da vila Sapo: se tu não sabe quem vem lá, é melhor ficar frio. O que
mais tem no bucho da noite da favela é malandro batendo coxa pra
lá e pra cá, indo duma vila pra outra, e o motivo não é sempre que
é bom. Pode ser nego que acabou de fazer coisa errada, pode ser
nego que tá indo fazer coisa errada, enfim, pode ser nego que não
quer ser visto e muito menos lembrado.
Nós tava protegido no breu da praça: a gente via os malandro,
mas os malandro não via a gente. E quando eles passaro do lado da
praça, nós demo recunha nos três. Mas, mesmo assim, fiquemo
frio, não demo um pio. Nenhum deles era flor de cheirar. E outra:
a atitude deles tava suspeita pra caralho. Eles tava caminhando
meio rapidinho, tava meio nervoso. Eles tava trocando uma ideia
meio tensa, também. A gente não conseguiu escutar o que que eles
dizia um pro outro, na real, porque eles falava baixinho; mas, pelos
gesto deles, dava pra notar que tinha alguma coisa estranha,
alguma coisa errada… Sei lá, às vez parecia que eles iam parar de
caminhar e largar na mão ali mesmo, no meio da rua; mas aí, do
nada, parecia que eles tava era concordando em algum bagulho,
como se eles tivesse irritado com alguma coisa que tinha
acontecido e tivesse um apoiando o outro. Enfim, não sei. Só sei
que eles passaro e seguiro pela Guaíba, indo lá pros lado da Viçosa.
Nas rua selvagem da selva periférica, ser malandro é obrigação.
A morte não dorme nunca, a morte não descansa nunca, a morte tá
sempre rondando; a gente aprende a sentir o cheiro da morte
desde piá. E seguinte: quando a morte tá pela volta, é melhor ficar
esperto. Não dá pra ratiar.
Só que o cheiro de morte passou, depois que os três malandro
foro lá pros lado da Viçosa, e daí a gente ficou sereno. O Nego Bota
Fé até continuou cantando o fado. Mas daqui a pouco, já calou a
boca de novo. Na real, ele foi interrompido — interrompido por
uma saraivada. Uma saraivada que soou lá pros lado da Viçosa. Não
era fogo de artifício: tá aí outra coisa que a gente aprende a
diferenciar bem cedo na escola da malandragem.
Mais de dez estouro. Uns treze, catorze estouro. Foi tudo um
atrás do outro, bem rapidinho. Mas foi tudo igualzinho, igualzinho,
e não teve dois estouro ao mesmo tempo: foi um de cada vez, do
início até o fim da rajada, só que tudo assim, um atrás do outro,
bem rapidinho. Por isso eu me liguei que tinha sido só uma arma
atirando; não era troca de tiro nem nada: era só um malandro
sentando o dedo noutro malandro, ou se pá atirando pra cima. Eu
também me liguei que a arma só podia ser uma pistola: um
revólver não ia ter dado tanto tiro; fuzil ia ter feito bem mais
barulho; metralhadora ia ter atirado bem mais rápido. Então, a
arma só podia ser uma pistola.
Agora, se parece fácil pra tu que tá lendo isto aqui imaginar que
a saraivada teve alguma coisa a ver com os três malandro que
descero da Vilinha e foro lá pros lado da Viçosa, beleza, palmas pra
tu. Mas eu, o Nego Bota Fé e o Nego Tiriça nem pensemo nisso na
hora. Não pensemo, porque já tamo acostumado com saraivada. A
gente cresceu ouvindo uma pá de saraivada. Saraivada no início das
manhã, quase na hora de sair pro colégio; saraivada no meio das
tarde, quase na hora da coroa da gente chegar do trampo; saraivada
no fim das noite, quase na hora de dormir. Então, mano, tipo, pra
gente que nem nós, não é fácil, não rola esse barato de associar
automaticamente uma saraivada com outro bagulho, com outro
acontecimento. Pra nós, uma saraivada é igual uma brisa que bate
por bater; uma saraivada é só uma coisa que acontece, sem chamar
muito a nossa atenção, e a gente não gasta muito tempo pensando
nela. Tanto que, um segundo depois daquela saraivada, o Nego
Bota Fé seguiu cantando o fado, como se nada tivesse acontecido.
Depois dum tempo, eu comecei a sentir que a minha loucura já
tava querendo chegar no fim: em menos de meia hora eu já ia tá
são de novo, como se simplesmente não tivesse bebido nem
fumado porra nenhuma. Essa é a hora da depressão. É a hora que a
gente lamenta ter bebido e ter fumado, ao mesmo tempo que a
gente lamenta não ter bebido e fumado ainda mais. É a hora que a
gente começa a pensar na cama e a bocejar toda hora. E depois de
cada bocejo que eu dava, quando a boca se fechava e a língua ficava
tentando se acomodar ali dentro, eu ainda podia sentir bem forte
na saliva grossa o sabor do vinho misturado com o sabor da
maconha.
Daí, teve uma hora que o Nego Bota Fé percebeu que o Nego
Tiriça tava muito quieto no canto dele, olhando pro outro lado da
rua.
— Qualé que deu, negão?
— Te liga lá.
O Nego Tiriça disse isso levantando as sobrancelha e fazendo
um biquinho com os beiço, como se tivesse mandando um beijo
pra baia da vizinha, do outro lado da rua. O Nego Bota Fé olhou
pra lá. E eu também.
Tinha uma luz acesa lá dentro: dava pra ver pela porta, porque a
porta tinha um vidro que ia da altura dos joelho até em cima. Era
aquele tipo de vidro que tu pode abrir sem ter que abrir a porta,
tipo uma janela que faz parte da porta.
— Ela acendeu a luz agora há pouco — disse o Nego Tiriça. —
Eu tava esperto quando ela acendeu a luz. Se pá ela tá desfilando só
de calcinha pela baia.
— Nesse frio? — eu duvidei.
— Vai saber. Quando vê, ela é cheia de fogo. Quando vê, dorme
até pelada, se ratiar. Na real, é pra isso que serve as coberta, não é,
não? Ninguém dorme entrouxado de roupa. Eu tô pensando aqui…
Se pá ela foi só no banheiro mijar ou largar um barro e já vai voltar
pra cama. Será que vai dar pra ver quando ela passar de volta pro
quarto?
— Vai dar pra ver é um borrão — eu disse. — Te liga lá: o vidro
da porta é daqueles que não deixa ver nada, que embaça tudo.
— Porra, pior! — concordou o Nego Tiriça, estalando a língua e
balançando a cabeça, inconformado. — Seguinte: acho que eu vou
lá botar a cara no vidro. De pertinho, se pá dá pra ver um
pouquinho melhor.
— Ah, sim, de pertinho deve dar pra ver tudo — disse o Nego
Bota Fé. — Vai lá, mano, mete o carão lá no vidro, vai lá, que não
dá nada, bota fé, bota fé.
E o Nego Tiriça foi mesmo.
Não deu tempo da gente avisar ele: quando ele já tava lá, com a
cara colada no vidro da porta da vizinha, uma viatura da Brigada
apareceu, descendo a Guaíba. Cheiro de morte. Nada tem mais
cheiro de morte do que os porco, ainda mais numa situação que
nem aquela que nós tava. Imagina: madrugada, favela, três preto na
rua, um deles espiando uma baia, nenhuma testemunha pra
desmentir qualquer história que os porco inventasse depois. Porra,
cheiro forte de morte! Não tinha o que fazer, a não ser tentar salvar
a própria pele. Por isso eu e o Nego Bota Fé demo uns passo pra
trás, mergulhando ainda mais no breu da praça, pros porco não ver
nós dois. Mas a minha preocupação maior não era nem ser visto,
na real: era ver! Puta que pariu, eu tava prestes a ver o meu mano,
o Nego Tiriça, tomar uma pá de tiro pelas costa! O meu coração
ficou maluco, parecia um touro mecânico dentro do peito, e a
sensação de pavor parecia que tava me comendo tudo por dentro,
começando pelas tripa e pelo estômago. Ia acontecer! Ia acontecer
bem na minha frente! Eu podia sentir! O cheiro de morte tava mais
forte que nunca, tava insuportável!
Mas o que aconteceu mesmo foi um milagre.
No exato momento que a viatura ia passar na frente da baia da
vizinha, no exato momento que os porco ia ver o Nego Tiriça com a
cara colada na porta, foi bem aí que a vizinha apagou a luz lá
dentro, fazendo o Nego Tiriça desaparecer na escuridão do pátio.
Daí a viatura passou reto, indo lá pros lado da Viçosa.
O Nego Tiriça se ligou que a viatura tinha passado e voltou puto
da cara de lá do pátio da vizinha.
— Dois filho da puta, vocês, meu, dois filho da puta! — bufou
ele, voltando pra junto de nós no breu da praça. — Por que que
vocês não me avisaro dos porco?
O cheiro de morte já tinha passado já. Já tava tudo tranquilo e
sereno, que nem baile de moreno. A minha perna ainda tava
tremendo, mas eu já tinha botado o susto pra fora num suspiro e já
tava no controle de mim mesmo. Por isso, me senti à vontade pra
dar uma pegada no negão.
— Ora, mas é lógico: nós não te avisemo porque tu é um pau no
cu e tem mais é que se foder mesmo — eu falei, brincando.
— Pior, pior! — concordou o Nego Bota Fé. — Na real, nós
tinha era que ter avisado os porco, que passaro sem te ver. “Ali,
seu, ali, seu! Pega, pega, seu, pega!”
O Nego Tiriça não se aguentou e começou a rir com a gente.
— Ah, vai se foder! Dois palhaço, vocês dois. Na real, um
palhaço passa vergonha perto de vocês, vai tomar no cu.
E nós três fiquemo ali, rindo litros. Eu não sei por quê, tá
ligado, eu não sei explicar, mas é massa, é gostoso ver que a morte
passa perto o tempo todo, e ver que a gente tem a manha pra
driblar ela, ou ver que a sorte paga pau pra nós e vive salvando o
nosso pescoço. Claro que é foda ver que a nossa vida tá sempre
numa porra duma corda bamba, só que cada vez que ela balança e
se equilibra de novo, cada vez que parece que ela vai cair e não cai,
aí não tem jeito, mano: a gente sente no peito que a gente é foda, e
o sorrisão se abre de orelha a orelha.
O pátio da vizinha, que por pouco não foi adubado com o
sangue do Nego Tiriça, não tinha cerca nenhuma. A vizinha até
tinha colocado três pau cravado ali (um em cada ponta do pátio e
um no meio), mas acho que se pá faltou dinheiro pro arame
farpado. O fato é que aqueles três pau tava ali já tinha uma pá de
tempo já, e foi apontando pra eles que o Nego Bota Fé falou:
— Olha lá, negão, quem foi que te salvou.
Eu quase não levei fé quando eu olhei. Tinha três coruja pousada
lá, uma em cima de cada pau! Mano, não é querer ser místico nem
nada, mas, fala sério, qualé a chance disso acontecer? Qualé a
chance dum maluco ter o pé‑quente que o Nego Tiriça teve,
justamente embaixo de três coruja? Aliás, qualé a chance de três
coruja resolver aparecer e pousar assim, junto, uma do lado da
outra, cada uma num pau?
Mas o Nego Tiriça estalou os beiço, duvidando que os bicho
tinha salvado a pele dele.
— Coruja significa morte, mano — disse o negão. — Se
dependesse desses bicho aí, agora eu tava era atirado ali no pátio da
mulher, com as paleta tudo furada.
Daí, foi a vez do Nego Bota Fé estalar os beiço.
— Não fala cocozinho, sangue bom. Na real, eu não sei se foi as
coruja mesmo que te salvou ou não, mas coruja não significa morte
porra nenhuma. Coruja é sinal de sabedoria, tá ligado. — Ele falou
isso botando o dedo do lado da cabeça. — A minha coroa era de
religião, na antiga, e me ensina vários bagulho.
— A tua coroa sabe o que que significa os número também? —
eu perguntei.
— Ué, ué, por quê?
— Porque eu não tô encucado com as coruja. Eu tô encucado
mais é com o número três, na real. Te liga só: nós tamo aqui, entre
três, certo? Daí, teve os três malandro que descero a Vilinha e foro
lá pros lado da Viçosa. Agora, três coruja…
O Nego Bota Fé botou a mão no queixo e ficou pensando.
— Na real, eu não sei se o número três significa alguma coisa.
Mas é o número do Obaluaê.
— Obaluaê? — disse o Nego Tiriça.
— Isso. É um orixá. — O Nego Bota Fé enrugou a testa e
inclinou a cabeça pro lado. — Porra, mano, pior que o Obaluaê não
gosta de claridade…
— Tá, e o que que tem de mais ele não gostar de claridade?
Eu fui mais rápido que o Nego Bota Fé e respondi pro Nego
Tiriça:
— Tem que tu podia tá morto agora se a luz da baia da mulher
não tivesse apagado bem na hora certa.
O Nego Tiriça riu.
— Ah, vai cagar, vocês dois! Deve ter sido a mulher mesmo que
desligou a luz. Não tem nada de mais nisso.
— Olha, se foi a mulher que apagou a luz ou não, eu não sei,
porque eu não tô lá dentro da baia pra saber — disse o Nego Bota
Fé. — O que eu sei é que, olha lá, ó: lá vem a dona Márcia, com a
Ju e com o Vini. De novo, três.
Eu olhei lá pros lado da Viçosa. Pior que lá vinha mesmo a dona
Márcia, de mão dada com o Vini e segurando a Ju no colo com a
outra mão. Eu fiquei meio preocupado. Por que será que a tia tinha
saído a bater coxa àquela hora, com as criança embaixo do braço?
Quando ela chegou perto da gente, eu já fui logo perguntando:
— Que que deu, tia?
Ela revirou os olho e apertou os beiço.
— É o Vinícios. Passou a noite todinha miando, com dor de
ouvido. Enfim, tô levando a criatura no posto agora, porque se
deixar pra de manhã, já viu: eu fico até meio‑dia esperando ficha.
Aí, tem mais esse saquinho de batata aqui… Eu não quis deixar ela
sozinha em casa…
Viúva. Marido morto a machadada lá em cima, na Quinze,
confundido pelos traficante com o louco que andava assaltando o
pessoal nas parada do bonde. Duas criança pequena pra criar, fora a
Denise, a mais velha, de catorze, que tinha fugido da baia e agora
vivia troteando por aí, por tudo que é canto, que nem mendiga,
grávida não sei de quem, chupando pau a cinco pila pra fumar
pedra. Mano… Tu quer me ver doente? Canta pra mim uma bossa
nova, dessas que fala da beleza da vida e do mundo.
Eu inclinei a cabeça pro lado pra tentar ver o rostinho da Ju:
tava ferrada no sono, tadinha, com os bracinho em volta do
pescoço da dona Márcia. Depois eu olhei pro Vini: tava de mão
dada com a dona Márcia, e tava com a outra mão no ouvido que
tava doendo.
— E aí, sangue bom, qualé que vai ser? Tá doendo muito?
O guri nem me deu bola. Tava virado pro outro lado, olhando lá
pros lado da Viçosa.
— Que tanto ele olha pra lá, tia? — perguntou o Nego Tiriça.
— Ah, é, eu ia falar, acabei me esquecendo — disse a dona
Márcia. — Tem um infeliz atirado lá na rua do campo. Vocês não
viro?
Eu e o Nego Tiriça respondemo ao mesmo tempo: “Não vimo”.
— Quem é? — perguntou o Nego Bota Fé.
— Pior que nem sei, Bota Fé. De longe não deu pra ver. Tá
atirado lá pra baixo, perto do mato. Mas já tem uma viatura lá na
volta do corpo.
— Porra, eu vou lá dar uma bicada.
— Pior, eu também.
— Vamo lá, vamo lá.
— Então tá, guris — disse a dona Márcia, se despedindo. —
Deixa eu subir essa lomba fodida, que “o tempo ruge e a Sapucaí é
grande”.
A gente respondeu tudo junto: “tchau, tia”.
Daí, quando nós tava indo lá pros lado da Viçosa, o Nego Tiriça
comentou:
— A dona Márcia até que dá um caldo bem gostoso.
E o Nego Bota Fé:
— Mas mete os pé uma hora, negão, mete os pé que ela deve tá
carente, bota fé, bota fé.
Quando a gente já tava descendo a rua de terra que passa do
lado do campo, nós vimo, lá embaixo, o corpo atirado, a viatura
estacionada e os porco na volta. Os três porco na volta.
— Se eles perguntar aonde é que nós vamo, nós dizemo o quê?
— perguntou o Nego Tiriça.
— É melhor não mentir, negão — eu disse.
— Pior — concordou o Nego Bota Fé. — Vamo inventar de
mentir, vamo acabar se atrapalhando ainda. Não: nós tava ali, de
bobeira na praça, a tia passou e falou do corpo, nós viemo ver.
Pronto.
Os porco nem disfarçava a cara de cu. Imagina: um Zé-
Ninguém morto por outro Zé-Ninguém em Lugar Nenhum por
motivo que não interessa: eles não fazia a menor questão de tá ali,
e não via a hora de ir embora dali de uma vez. Quando a gente
chegou perto, um deles, que tava anotando alguma coisa num
bloquinho, perguntou, mas sem se dar ao trabalho de tirar os olho
do bloquinho:
— Vocês conhece esse bosta aí?
Eu olhei pro morto, que tava de bruços, todo torto, deitado por
cima dum braço. Sim, eu sabia quem era. Eu conhecia de vista. Eu
sabia o nome dele. Eu não só sabia o nome dele, como eu também
sabia o nome dos outro dois malandro que tava com ele, um
minuto antes dele ir pra banha. Mas seguinte: eu não sou filho de
pai bobo, e por isso eu respondi assim:
— Nunca vi mais gordo.
O Nego Bota Fé e o Nego Tiriça me acompanharo na mentira,
lógico.
— Eu também nunca vi.
— Nem eu.
Eu notei um detalhe: dero um caminhão de estouro no
malandro, uns treze, catorze estouro, mas só que nem todos
pegaro. É claro que eu não sei o que que aconteceu nos último
momento de vida daquele malandro atirado ali na minha frente,
mas pelo jeito ele tinha se ligado que iam matar ele e tinha saído
correndo. Daí, quem deu os estouro nele teve que atirar de longe,
e por isso errou a maioria dos tiro. Só três tiro pegaro.
— Três tiro no meio da paleta… — eu comentei.
Pela primeira vez, o porco que tava anotando no bloquinho se
dignou a me olhar com o canto do olho. Eu percebi que na real ele
ia dar só uma bicadinha em mim e depois ia continuar olhando pro
bloquinho, mas ele viu alguma coisa em mim que chamou a
atenção dele, e por isso ele deu aquele golpe de vista duplo, tá
ligado? Tipo, olha, não olha, olha, bem rapidinho. Daí, sim, ele
esqueceu aquela porra daquele bloquinho, tirou a bunda do capô
da viatura, botou as mão na cintura e ficou de frente pra nós,
olhando eu e os nego um por um, com a testa enrugada.
— Vem cá: quantos anos vocês têm?
— Quinze.
— Quinze.
— Catorze.
Ele abriu um sorriso — um sorriso cheio de raiva. Não sei do
que que ele tava com raiva, na real. Nunca entendi. Eu acho que se
pá ele pensou em pegar o nosso depoimento, e não deu, porque
nós era de menor.
— Some daqui, seus filho da puta. Acabou a noite pra vocês.
Não sei nem o que que vocês quer na rua essa hora. Vai, vai, vai!
Beleza. Não falemo nada. A gente só se virou e começou a subir
de volta a rua de terra. E quando nós já tava meio longe, o porco
ainda gritou na nossas costa:
— Cada um pra sua casa, hein? Se eu pegar vocês na rua, eu vou
bater em vocês até eu me cansar!
A gente obedeceu: cada um foi pra sua baia.
Eu já tava louco de sono, na real. Cheguei na baia só querendo
me enfiar embaixo das coberta e desmaiar. Mas eu fui dar uma
bicada na hora, antes de deitar. E foi assim que eu descobri que
enquanto eu me estragava lá na rua, o rádio‑relógio também tinha
se estragado dentro da baia. Porque eu tinha noção que já devia
passar de cinco da manhã, já devia tá quase amanhecendo, mas o
rádio‑relógio tinha parado de funcionar no meio da madrugada, e
não tava avançando nas hora, ele ficava só piscando, só mostrando
os número da hora que ele tinha travado: 3:33.
Eu lembro que, nessa vez aí, depois que eu me enfiei embaixo
das coberta e desmaiei, eu sonhei com um maluco cheio de ferida.
Foi um sonho estranho pra caralho, na real. Esse maluco cheio de
ferida me protegia, ele não deixava ninguém me fazer mal. E
ninguém gostava de ficar perto dele, nem de olhar pra ele, por
causa das ferida dele. Mas eu gostava de ficar perto dele, porque
ele me protegia, e quando eu olhava ele de perto, eu conseguia ver
que ele era um cara bonitão. Com as ferida tudo dele, ele era muito
mais bonitão do que as pessoa sem ferida.
Encontro de negócios

Eu tô agendando um encontro de negócios entre a gente. Vai ser


numa esquina qualquer de Porto, depois que o sol afundar lá no
Guaíba. Nessa noite, tu não vai poder tomar um caminhão de
tequila no Barba Azul, infelizmente. Porque não vai te sobrar nem
um realzinho, tá ligado? Mas olha pelo lado bom: depois que o sol
der toda a volta no mundo e vir bater aqui, no esgoto a céu aberto
da vila Sapo, o meu filhote vai tomar um café da manhã esperto,
um cafezão de malandro. E, sabe, cara, eu até queria que tivesse
uma maneira menos traumatizante, menos conturbada de realizar
essa transação financeira. Eu queria que as coisas pudessem ser
resolvidas no diálogo, tá ligado? Eu queria mesmo, de coração!
Mas é que se tu pensa que a tua sede de tequila é mais importante
do que a fome de pão do meu filhote, nesse caso, sangue bom, a
gente não tem nem o que conversar. Na real, pensando bem, a
gente nem fala o mesmo idioma; como é que a gente vai
conversar? A gente nem sequer é do mesmo mundo. Eu uso o
Diário Gaúcho e tu usa Neve Supreme folha tripla: vamo conversar
de que jeito? Então, é isso aí, mano. Até breve. Não te esquece:
numa esquina qualquer de Porto, depois que o sol afundar lá no
Guaíba. Leva o dinheiro. Eu vô tá com o meu advogado, que fala
por mim quando as coisas ficam complicadas. E o danado fala alto,
viu. Fala alto, nunca engasga e tem bafo de pólvora.
Dignidade‑relâmpago

— Tá, e aí, qual vai ser?


— Qual vai ser?
— Seguinte, neguin: na real, a gente já tem tudo o que a gente
precisa bem aqui.
Ele tirou o ferro da cinta e me mostrou, assim, fechando os olho
e balançando os ombro, com ritmo, com molejo, como se tivesse
curtindo o baile e pá. Tava tri chapado. Eu também tava, na real.
Nós tinha acabado de queimar o massa.
Calorão do caraio. O sol tava brilhando forte, lá em cima, e fazia
brilhar forte o ferro, aqui embaixo. Eu peguei o bagulho na mão pra
vê qualé que era. Senti o bagulho leve pra caraio. Abri o tambor e
não vi porra nenhuma.
— Cadê as bala?
Ele estalou os beiço.
— Não precisa.
— Beleza, e aí, qual vai ser?
— Qual vai ser? Eu que te pergunto, vagabundo. Tá tudo aí pra
nós, é só querer. O mundo é nosso. Acima de nós, só Deus.
— Um rolê? Tô só pelo rolê. Tô precisando me distrair um
pouco, mano. Tô precisando tomar um vento fresco na cara e
esquecer dos problema.
Ele concordou.
— Um rolê. Sem miséria.
— Sem miséria, mano.
— Sereno, mete uns pano lá.
— Pra quê?
Ele estalou os beiço de novo. Ele gosta de estalar os beiço,
nunca vi.
— Sem miséria, caraio! Sem miséria é sem miséria, mano. Tu já
viu mendigo de Veloster? Tu já viu mendigo de Civic? Vai lá, mete
os melhor pano que tu tem, pra combinar com o carango que nós
pegar. Isso na real torna a gente até menos suspeito. Ajuda, tá
ligado. Vai lá. Eu vô me trocar também.
— Fechô.
Fui na baia e voltei galã. Diretamente do fundão do beco, um
dom-juan da vila Sapo, camisa branca no ombro, óculos escuro na
cara, boné virado no melão, bermuda caindo, uma vírgula
estalando no pé. A preguiça foi pra casa do chapéu. Fazer uma mão
sempre dá preguiça no começo, mas depois a disposição aparece, e
daí é só alegria.
Ele veio da baia dele na estica também, depois dum tempão.
Arrombado do caraio! Uma princesa, pra se arrumar, nunca vi!
Tudo certo, vamo lá: dois malandro cheio de elegância, indo pra
cena. Nós vai é dançando, tio. Que que é? Cada passo é um
balanço, os dente tudo de fora, dedinho no ar e tudo. O couro é
confortável pras paleta; a cento e trinta, o vento na cara é o ouro;
só de imaginar, tu te arrepia, tio, Deus o livre! Vamo lá, vamo lá,
vamo lá! Vamo lá, que a gente é merecedor! Veja: a gente esfrega as
mão só de pensar!
O trecho até o fluxo é grande. Da vila Sapo até as rua tranquila
do Petrópolis é dois bonde, quase uma hora de viagem. E agora nós
tava ali, no momento de tensão. Aquela região ali não combina
nada com a gente, é só bater os olho no naipe dos vagabundo e
comparar com as calçada limpa e com os prédio alto: nada a ver,
nada a ver, algo errado, algo errado. Dois malandro tirando onda
no Petrópolis? Vixe! Se os porco passa, a sirene toca na hora,
certamente: paredão e cana direto, por causa do ferro. Se tem bala
ou se não tem, não interessa. Não ia ter nem blá‑blá‑blá no
radinho. Concha de tonel e cana.
Só que deu tudo certo, graças a Deus. Peguemo uma tia se
matando pra estacionar o CrossFox na sombrinha.
— Caiu, tia! Vamo, desce, desce, desce!
Ele apontava o ferro pra ela com uma mão, e com a outra puxava
ela pelos cabelo. Eu dava um bico em volta, pra ver se não tinha
ninguém olhando.
— Ai, ai, tá bom, tá bom… Não me mata, moço, pelo amor de
Deus! Pelo amor de Deus!
Nessas horas aí, até que me dá um pouco de pena das vítima. O
olhar de pavor das vítima quase me comove. Mas eu não posso me
distrair, tá ligado. Ter pena, se comover, isso aí é uma distração. E
eu tenho que ficar firme e alerta.
— Vem comigo, tia! Aqui, vem comigo! Ei, ei, mano, dá cá o
ferro, que eu vou cuidar da tia. Pilota aí, sangue bom. Vambora,
vambora!
Peguei o ferro e fiquei no banco de trás com a tia, e ele sentou
no volante. Arranquemo com o carro. Pronto: a pior parte já
passou já. Coração a mil, querendo sair pela boca! Sossega,
bichinho! Sossega, que já era, tá suave! Suave na nave.
— Fecha os vidro aí, sangue bom, que é pros bico não vê nada.
Aí, porra, véio, a tia começou a chorar. Que inferno! Isso me
irrita. Por que sempre choram, cara?
— Tá chorando por quê, tia? Nem te fiz nada ainda.
— Moço, pelo amor de Deus…
— Ah, tia, por favor, cala a boquinha! Se a senhora ficar quieta
aí, vai dá tudo certo. Não é pessoal, isso daqui. Eu não quero o mal
da senhora. O lance é grana. E por falar em grana, cadê a carteira?
— Tá ali na frente, dentro da bolsa…
— Tem dinheiro?
— Tem uns trezentos pila só… Mas tem o cartão também…
— Quanto tem no cartão?
— Eu não sei…
— Não sabe é um caraio! Quanto é que tem, porra?
— Uns dois mil só…
— “Só.” “Só.” Tudo a senhora fala “só”, como se não fosse nada.
“Trezentos pila só”, “Dois mil só”. Vamo torrar tudinho, viu? Não
vai ficar nada. Qualé a senha do cartão?
— 0372.
— 0372, 0372, 0372. Beleza. 0372.
— Moço…
— Psiu! A senhora fala outra coisa pra senhora ver o que eu
faço! Dá mais um pio pra senhora ver o que eu faço!
Voltemo pra vila Sapo e passemo na baia dele. Ele desceu do
carango e deu um pulo lá dentro pra buscar fita e arame. Jogo
rápido, voltou rapidão. Depois a gente seguiu pra rua sem saída,
que termina no mato. A tia tremeu na base quando a gente
mandou ela descer do carango ali, bem na frente do mato, no meio
do nada, onde não tinha testemunha nenhuma. Se acabou de tanto
chorar.
— Ai, moço, vocês vão me matar, moço… Pelo amor de Deus,
moço…
— Ei, tia, calma aí! Olha na mão dele. Olha ali na mão dele.
Ela olhou pra mão dele.
— Tá vendo? Fita e arame. Pra que que a gente ia querer fita e
arame se a gente fosse matar a senhora? Fica fria, fica fria,
pianinho, pianinho.
— O que vocês vão fazer?
— A senhora fica tranquila. A gente só vai amarrar a senhora
bem amarrado com o arame, e vamo tapar a boca da senhora com a
fita, e vamo deixar a senhora no porta‑malas.
— Mas, moço, por que vocês não deixam eu ir embora, pelo
amor de Deus?
— Ah, tia, a senhora pensa que a gente nasceu ontem? Deixar a
senhora ir? Pra quê? Pra senhora ligar pra polícia na primeira
oportunidade? Pra senhora dar o seu carro como roubado e os
homi caçar a gente por aí, que nem se a gente fosse bicho?
— Mas, moço, eu juro…
— Ah, jura nada, cacete! Olha, a senhora vai ficar bem, tá bom?
Não vamo te fazer mal. Agora vira. Vira e bota as mão pra trás, pra
gente amarrar as mão da senhora.
Amarremo as mão dela. Tapemo a boca dela com fita. Botemo
ela no porta‑malas. Daí amarremo os pé dela também. Eu olhei pra
ela e disse:
— Vai ser assim, tia: a gente vai usar o carango da senhora pra
dar um rolê por aí. E vamo torrar a grana da senhora todinha.
Enquanto isso, a senhora vai ficar bem quietinha aí, tá bom? Não
tenta fazer barulho, não tenta chamar atenção, que se a senhora
tentar fazer isso, daí não vai prestar. Tá bom?
Ela fez que sim com a cabeça.
— 0372, né?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Beleza.
Eu fechei o porta‑malas.
Agora nós tava de boa, finalmente. Tu já sentou o cu na porra
dum CrossFox? Deus o livre, que delícia! Braço pra fora, vento na
cara, orgulho no peito. Dignidade. Dignidade que, no nosso caso,
não ia durar muito, mas, mesmo assim, dignidade. Quem olha não
sabe que nós peguemo na mão grande. Quem olha não sabe que a
dona tá no porta‑malas. Quem olha pensa que o cara é grandão,
filho de bacana e pá. Então, as mina tudo se bate. A gente passa e
elas tudo molha a tanga. Os malandro olha com inveja e pá.
Queriam tá no nosso lugar, tirando onda que nem nós. Mas não é
filho de bacana e não tem disposição pra tomar na mão grande, que
nem nós. Daí fica ruim, né, tio? Porra, cada qual com o que
merece.
— Qual é o plano?
— Vamo fazer um pit stop naquele mercadinho da Bento, vamo
pegar uns gelo lá. Depois vamo direto na Tuca, pegar um pó e um
baseado.
Paremo no mercadinho e peguemo força de gelo. Só Eisenbahn.
Quem é que não gosta de coisinha boa? E nós tava forte, tio. Veja:
tudo no cartão. Depois a gente foi na Tuca, pegar o pó e o baseado.
Só alegria. Rolê em várias quebrada, parando pra trocar a mó ideia
com os mano de tudo que é lado, os mano que a gente pechava na
Restinga, na Bonja, na Cruzeiro, em tudo que é canto. Rodando e
rodando de CrossFox por Porto o dia inteiro, dum lado pro outro,
daqui prali e dali pra cá, e vá gelo, e vá raio, e vá fumaça, bem
louco, bem tudo, sem miséria. Rolê sem miséria, como a gente
tinha planejado. O couro é confortável pras paleta; a cento e trinta,
o vento na cara é o ouro. Era ele que tava na boleia, e toda hora eu
falava pra ele pisar, porque eu queria o vento na cara, que é o ouro,
eu queria esquecer os problema.
— Pisa, vagabundo, pisa!
Teve uma hora que ele perguntou:
— E aquela mina lá que tu curte e pá?
— Que que tem?
— Como “que que tem”? Tu tava na mó luta pra pegar. Pegou?
— Não. E na real, ela é parte dos meu problema. Eu gosto dela
de verdade, mano. Mas ela não gosta de mim. Vou fazer o quê?
— Isso daí é foda.
— É foda, mano. E tu sabe o que que é pior? Eu não consigo
fazer ela entender que eu gosto dela e pá. Tá entendendo? Eu não
consigo expressar o que eu sinto dum jeito que ela entenda e veja
que é verdade. Eu tenho quase certeza que ela me tira pra
mentiroso, que ela me tira pra enganador. Ela pensa que eu quero
só comer ela, tenho certeza disso daí.
— Que que passa na cabeça dessas mina, né, meu? Será que
elas não sabe que o cara come quem o cara quer? Ainda mais
quando nós tá de rei, que nem nós tá agora. Se fosse só comer, só
comer, porra, daí o cara come qualquer uma. Elas pensa que
vagabundo não tem sentimento.
— Não, mas ela nem sabe que eu sou vagabundo. Na real, se ela
descobre que eu sou do corre, nem fala mais comigo. Ela pensa
que eu sou trabalhador e pá. Deus o livre, se ela descobre que eu tô
agora, por exemplo, com essa tia aí no porta‑malas, andando pra lá
e pra cá, daí ela me tira pra monstro, pensa que eu sou ruim e pá.
— Tô ligado. Mó neurose. Seguinte: larga de mão, então.
— Não dá, mano. Não é o cara que escolhe essas parada aí, tá
ligado. É como se eu te dissesse pra tu deixar de amar a tua coroa,
por exemplo. Como é que tu ia fazer pra deixar de amar a tua
coroa? Não dá, tá ligado. Tá dentro da gente. Eu não consigo deixar
de gostar daquela mina. O máximo que eu posso fazer é deixar ela
quieta no canto dela. É só isso que eu posso fazer. Mas dentro de
mim, mano, dentro de mim tá foda de segurar o rojão. Muita
mágoa. Muita frustração. Muita vontade de tá com ela, de trovar
com ela. E esse na real é um dos motivo de eu tá aqui agora,
contigo. Esse é um dos motivo que eu precisava relaxar e ficar de
boa, que eu precisava tomar esse vento na cara e espairecer, que eu
precisava sentir que a vida é boa e pá. É que eu discuti com ela
ontem, tá ligado. E discutir com ela é uma merda pra mim. Eu fico
me sentindo mal quando eu discuto com ela.
Ele não tava mais prestando atenção em mim. Tava mexendo no
celular da tia, enquanto boleava. Eu perguntei:
— Qualé que deu?
— Mensagem pra tia. Toma aí, responde aí.
Ele me deu o celular da tia na minha mão. A mensagem dizia
assim: “onde andas?”. Era dum tal de Gilberto. Eu digitei assim pra
responder: “falo contigo depois”.
A noite já tinha caído. Nós já tava no fim do nosso rolê. Nós já
tava pensando em voltar pra boca e liberar a tia em algum canto.
Mas a gente parou no posto da Ipiranga com a Antônio de
Carvalho pra abastecer e pra pegar mais gelo. Foi aí que as coisa
começou a dar errado.
Ele ficou dentro do carro, na bomba, e eu saltei pra ir na loja de
conveniência. Tinha uma brigadiana lá dentro, fazendo a segurança
do bagulho e pá, e ela ficou me olhando torto e pá, ficou me
medindo. Até aí, normal. Eu peguei as Eisenbahn, dei o cartão pro
maluco do balcão passar, digitei a senha, tudo certo. Voltei pro
carro. Daí o meu mano falou comigo pela janela:
— Ei, sangue bom, cabô meu crivo. Pega um Marlboro pra mim
lá.
— Sereno.
Eu dei meia-volta. E daí reparei num bagulho: lá dentro da loja
de conveniência, o maluco do balcão tava no mó conchavo com a
brigadiana, os dois me olhando e pá. O que que eu deduzi? O filho
da puta foi lá dizer pra brigadiana que eu tava com um cartão duma
mulher. Ele deve ter visto o nome escrito no cartão e pá. E agora, a
brigadiana viu que eu tava de carrão, eu e mais outro malandro…
Resumindo, a ficha dela caiu. E a minha também. Eu desisti de
voltar na loja de conveniência. Entrei no carro, e fiquei bicando pra
ver o que a brigadiana ia fazer.
— Qualé que deu, mano?
— Salta fora, mano, salta fora…
— Mas qualé que deu?
A brigadiana agora tava saindo da loja, os olho cravado em mim.
— Sujou, vagabundo, salta fora, mano, salta fora, caraio, pisa,
pisa!
Arranquemo com o carro, e eu vi que a brigadiana ficou dando a
fita no radinho.
Seguimo pela Bento, a milhão. Mas tinha uma viatura no
canteiro central, ali na frente do terminal da Antônio de Carvalho.
Essa viatura já veio direto na cola, sirene ligada e tudo. Nós tava
fodido.
— Fodeu, sangue bom!
— Só pisa, só pisa!
Entremo que era uma bala na João de Oliveira Remião. Mas os
porco não tava longe. E ali, naquela subidona reta do começo do
Pinheiro, o sapeco começou a pegar. Chumbo e chumbo na gente.
Eu me abaixei. Um dos tiro fez trincar todinho o vidro de trás.
— Puta que pariu!
— Deus que me perdoe, eu não sou de desejar o mal de
ninguém, mas tomara que eles acertem a tia ali atrás, que é pra eles
se incomodar. Porque se os tiro pegar na gente e a gente morrer,
fica por isso mesmo. Mas se pegar na tia, daí eles se fodem.
Quando nós tava chegando na curva da 5, eu tive uma ideia.
— Ei, mano, te liga: depois da curva, eles vão ficar um tempo
sem ver a gente. Daí, entra naquele bequinho do lado do colégio…
— Não dá, mano! Aquele bequinho ali é curto, não dá pra ir
longe com o carango.
— Eu sei, mano, mas a gente tem que abandonar essa porra, pra
não acabar morrendo. Entra no bequinho, para o carro, a gente
desce e segue correndo a pé pra dentro da favela. Quero ver eles
pegar nós. Eles vão ter que descer do carro também, mano. E essa
vila aí é gigante, vamo atravessar e sair lá do outro lado.
— Sereno, vamo fazer isso aí, então.
Bah, fizemo a curva da 5 voando, daí começemo a descer a
lomba, e em seguida ele freou afu e entrou com o bico do carro no
bequinho do lado do colégio. Daí, ali ele parou o carro e nós
descemo. Mas as coisa não saiu bem que nem eu tinha pensado.
Os porco chegaram ali mais rápido do que eu tinha calculado. E
enquanto a gente corria pra dentro do bequinho, os porco já tava
descendo da viatura e vá chumbo na gente. Eu vi que eles
chegaram rápido e pá, mas pensei que eles não iam atirar. Pensei
que eles não iam atirar porque o beco desce, e eles tava atrás de
nós, e isso significa que se eles atirasse em nós e errasse, os tiro
tudo iam pegar nas baia ali embaixo, baia de gente que não tinha
nada a ver com o bagulho. Eu fui muito trouxa de pensar que eles
iam ter essa preocupação com aquela gente fodida que mora ali.
Sentaram o dedo na gente e foda‑se todo mundo! Erraram os tiro
tudo, e os tiro tudo pegando nas baia ali embaixo, furando as
parede, pegando nas roupa dos varal, pegando nos vidro das janela.
Com o barulho dos tiro, o pessoal tudo correndo pra dentro das
baia, e eu e o meu mano descendo o beco correndo.
O beco quebra pra esquerda e pá. Quando a gente dobrou, eu
tive uma ideia, mas não dava tempo de explicar no meio da
correria. Em vez de seguir correndo pelo beco, eu pulei um muro
dum pátio. Até tentei chamar o meu mano pra ele vir comigo.
— Ei!
Mas tu fica surdo nessas situação aí. Tu fica cego e surdo. Ele
seguiu correndo pelo beco, pra dentro da favela. Eu não. Eu pulei o
muro. E meio que me fodi, porque do outro lado do muro o chão
não era reto. Era tipo uma ladeira, dentro do pátio. E eu só
descobri isso depois que eu já tinha pulado pra lá. Caí pisando em
falso, torci o pé, rolei pela ladeira, dei com os corno numa pilha de
tijolo. Eu não sabia o que doía mais, se era o pé ou a cabeça. Me
levantei. Eu tinha pouco tempo pra agir. Eu tinha pouco tempo pra
me enfiar em algum buraco e me esconder. Logo os porco iam
dobrar no beco também, e certamente iam dá um bico por cima do
muro, e iam me pegar ali cagando. Primeiro, eu olhei em volta pra
ver se algum morador tinha me visto. Mas não tinha vivalma por
ali. A porta da baia tava fechada. As janela tava aberta, mas não
tinha ninguém à vista. Daí eu vi que eu podia me enfiar embaixo da
baia. Porque, tipo, o terreno era uma ladeira, certo?, e a baia,
construída com o chão reto, como toda e qualquer baia, a baia
tinha um espação embaixo, justamente porque o terreno era uma
ladeira. Então eu me arrastei pra baixo da baia e pá. O fedor ali era
insuportável. Acho que os cachorro e os gato da redondeza deviam
cagar e mijar ali embaixo. Muito provavelmente eu tinha me
arrastado num monte de cocô de gato e cachorro, eu devia tá com
os pano tudo cagado, mas tava escuro demais ali, não dava pra ver
porra nenhuma.
Eu fiquei ali um tempão. Ouvi uma pá de tiro, tudo soando lá
adiante. Isso me tranquilizou, por um lado, mas me preocupou,
por outro lado. Fiquei tranquilo porque percebi que os porco já
tinham passado batido por mim e já tavam lá pra dentro da favela.
Mas fiquei preocupado porque se eles tavam sentando o dedo, era
sinal que tavam vendo o meu mano, e tavam tentando matar ele.
— Que horror, meu Deus…
— Gente, onde isso vai parar?
— Pra onde eles foram?
— Ah, eles passaram correndo aí na frente… Ó! Ó! Mais tiro. Tá
ouvindo? Eu acho que eles tão perseguindo alguém. Ó! Ó os tiro!
Meu Deus…
— Cadê a Marcelina? Ela não tinha ido lá na Luísa?
— Eu vou lá ver se eu acho ela…
— Tu não vai a lugar nenhum, guri! Te aquieta aí! Ora! Tá
pensando o quê? Tá pensando que tem peito de ferro? Os porco
dando tiro pra tudo que é lado e tu quer ficar desfilando? Ó! Ó os
tiro! Ó os tiro!
— Mas agora eu fiquei preocupado com a Marcelina…
— Seu João! Corre aqui, seu João!
— Oi!
— Por acaso o seu filho não foi com a Marcelina lá na Luísa?
— Não, o Artur tá aqui, tá no banho… O que que foi esses tiro,
ceis sabem?
— Foi os porco, foi os porco, tão atrás de alguém…
Tudo isso era a conversa da família daquela baia mais o pessoal
da baia do lado. E eu ali embaixo, só ouvindo tudo. As pessoa
foram saindo da baia pra fofocar quando perceberam que o perigo
já tinha passado dali, quando perceberam que o perigo já tava lá
adiante, lá pra dentro da favela. Tinha mais gente chegando pra
fofocar. Eu conseguia ouvir os passo e as voz, eu conseguia ouvir as
conversa tudo, e eu ali, escondido feito bicho, embaixo da baia.
Ninguém ia me procurar ali. Eu só torcia pra não aparecer um
cachorro. Imagina! Ia começar a latir, ia me denunciar!
Eu precisava ficar ali até a poeira baixar. Eu não podia fazer
barulho. Eu não podia falar nada. Eu só podia pensar, naquela
escuridão, no meio daquele fedorão todo. E eu fiquei pensando
nessa viagem mesmo, nessa viagem de eu ali, feito um bicho. O
que que tem no mundo que faz as pessoa se tratar feito bicho? Eu
tratei a tia que nem bicho. Eu amarrei ela com arame, tapei a boca
dela com fita e deixei ela no porta‑malas, feito bicho. Agora era a
minha vez: os porco tavam me caçando, feito bicho. E eu tava ali
embaixo daquela casa, feito bicho. O que que tem no mundo que
as pessoa se trata que nem bicho?
Só saí de baixo daquela baia no meio da madrugada, horas
depois de ter me enfiado ali. E, como eu tinha imaginado, os meu
pano tava tudo cagado. Mas pelo menos eu tava a salvo. O meu
mano, eu não sabia se tinha se salvado. Mas no outro dia eu ia
descobrir. No outro dia eu ia ficar sabendo se ele escapou, ou se
morreu, ou se foi preso. Naquela hora ali, voltando a pé pra vila
Sapo, eu só pensava em tomar um banho. Banho e depois cama. E
no outro dia eu ia dar um abração na minha coroa. Eu tinha que
abraçar ela enquanto eu ainda podia. Agradeci pra Deus por ter me
livrado da cana e da morte, mais uma vez. E fiz uma promessa pra
mim mesmo: na próxima vez, eu ia levar bala no ferro, que era pra
poder revidar. E daí nós ia ver quem é que ia matar quem!
Rosa‑bebê

Não faz tanto tempo assim que os telefones celulares tinham


tamanho e peso de tijolo, custavam uma dezena de salários
mínimos e só serviam para ligações e torpedos. Dos
computadores, então, nem se fale. O máximo que se podia esperar
daqueles artigos de luxo era que não travassem ao se executar o
reprodutor de músicas e o joguinho de cartas ao mesmo tempo. E
muita gente ainda tinha em casa uma daquelas televisões
pré‑históricas nas quais se trocava de canal aos beliscões, por meio
de um botão giratório que mais parecia uma fechadura de cofre.
É curioso saber que nada disso jamais voltará à voga. É curioso
ter consciência dessa irreversibilidade da evolução tecnológica.
Sim, é curioso, porque, em contraste, o desenvolvimento
humanitário nem de longe se sustenta com a mesma facilidade e
firmeza. Por alguma razão misteriosa, tudo o que é amplamente
reconhecido como avanço em favor da condição humana, tanto no
âmbito individual como no âmbito coletivo, tem sempre de
enfrentar forças contrárias e ameaças de retrocesso. Nada oferece
resistência à dádiva dos circuitos integrados, nem oferecerá à
produção em massa de processadores quânticos, mas a empatia, a
sensibilidade, a solidariedade, a benevolência, o amor e tudo o
mais que nos eleve acima da barbárie são coisas que estão sempre
em apuros, desgastando‑se numa luta eterna contra a má‑fé e o
espírito de porco. A diferença salta aos olhos. A tecnologia é como
uma atleta jovem e incansável correndo livre e desimpedida, sem
parar, numa maratona sem fim, indo cada vez mais longe sob
vigorosos aplausos e gritos de incentivo; a humanidade, coitada,
não passa de uma senhora aposentada e enferma da qual ninguém
mais quer saber, já com sérias dificuldades para respirar, já com
sérias dificuldades para ouvir, já com sérias dificuldades para ver, já
com sérias dificuldades para seguir em frente, às vezes levada de
volta para trás por qualquer vento mais forte; uma senhora que
ninguém em sã consciência apostaria que possa chegar viva até a
próxima esquina.
E, um dia, eu a vi tropeçar.
Não sou um tolo. Sei bem que mesmo naquela época mais
amena o tropeção que presenciei já não poderia ser classificado
como um evento extraordinário. Entretanto, peço ao leitor que não
minimize a gravidade do ocorrido. Lembre‑se de que tomar
conhecimento da tragédia através do telejornal, ou por meio de um
texto como este, é muito diferente de testemunhá‑la. E eu a
testemunhei. Sim, a testemunhei, e antes não a tivesse
testemunhado. Meu trauma é perpétuo. Mesmo hoje em dia sou
incapaz de observar por mais de dois ou três segundos qualquer
coisa que seja rosa bebê. Meu coração acelera, me falta o ar, chego
a suar frio. É a cor do meu pânico e do meu desespero.
Tudo começou num fim de tarde, quando um carro
desconhecido invadiu a praça da vila Sapo e ali estacionou
bruscamente, atraindo o olhar de quem passava. Dele saíram
homens armados e exaltados, envoltos numa aura maligna. Lembro
de um amigo meu inspirando o ar ruidosamente, em sinal de susto,
e emendando:
— Óia aí!
Não tenho dúvida alguma de que lhe ocorria o mesmo que
ocorria a mim: guerra. Aquilo só podia ser um ataque-surpresa, e
dentro de poucos instantes estaríamos no meio de um terrível fogo
cruzado. No entanto, ao nos precipitarmos para tal conclusão,
estávamos enganados. O que se passava, de fato, era algo que não
pudemos decifrar num primeiro momento.
Os homens correram para o fundo da praça e estacaram junto à
cerca, olhando ao redor. Pareciam estar à procura de alguém.
— E aí, cadê? Num era aqui que tu disse que ele ia aparecer?
— Se ele se enfiou no meio do mato lá pelo lado do Cortiço, só
pode sair aqui, ué.
— Nada a ver. Também dá pra sair lá em cima, na Faixa.
— É, só que lá tem gente. No Cortiço também tem gente. Só
aqui que num tinha gente.
Não demorou a surgir uma viatura da Brigada, vindo da Vilinha,
e isso me pôs novamente em estado de alerta, pronto a correr para
qualquer lado. Afinal, imaginei que os policiais estivessem prestes
a tentar conter os sujeitos, ação essa que teria tudo para resultar
em troca de tiros. Contudo, isso não aconteceu. Os homens da lei
nem mesmo se deram ao trabalho de parar o veículo. Apenas
passaram bem devagar. Passaram olhando. Viram as armas em
punho. Viram a animosidade. Viram a intenção diabólica
desenhando‑se a céu aberto. Viram tudo. Nada fizeram. Já deviam
saber. Já deviam estar plenamente a par daquela situação medonha,
que permanecia ainda um mistério tanto para mim como para o
meu amigo, mas que — não podia ser mais evidente —
encaminhava‑se a um desfecho absolutamente infeliz. Sim, já
deviam saber. Já deviam saber, e fizeram vista grossa. Já deviam
saber, e lavaram as mãos. Já deviam saber, e foram embora.
Logo a Guaíba estava cheia de gente. Panelas foram esquecidas
ao fogo, banhos foram interrompidos, televisões foram deixadas
falando sozinhas: não houve quem não saiu do lar para tentar
descobrir o que estava acontecendo na rua. Depois, até mesmo
pessoas vindas de outras vilas começaram a aparecer, movidas pelo
desejo sombrio de ver de perto a tragédia que se anunciava: veio
gente da Nove, veio gente da Serra, veio gente do Mangue. Nunca
antes na história da vila Sapo um ajuntamento tão numeroso como
aquele formara‑se em seu interior. Não fosse tão carcomido o
asfalto da Guaíba, não fossem tão imundas suas calçadas, não fosse
tão sofrido o rosto da multidão ali aboletada, não fossem tão
sarnentos os cães que corriam por todo lado, não fossem tão
humildes as casas ao redor, não fosse aquele pedaço de mundo tão
desprovido de glamour, tão inóspito, tão abandonado, tão afastado
das notícias importantes, não fosse tudo isso, qualquer um poderia
jurar que esperava‑se naquelas redondezas a aparição do maior
astro de rock de todos os tempos, ou talvez a aparição do próprio
papa. E pouco a pouco a noite foi caindo sobre todas as hipóteses
levantadas, sobre o falatório, sobre as informações desencontradas,
sobre os boatos, sobre os palpites, sobre o diz que me diz que.
As buscas prosseguiam. A vila Sapo era vasculhada palmo a
palmo, beco a beco. Ainda que a maior parte das pessoas estivesse
por ali na qualidade de plateia, não era possível contar todos os
homens e mulheres que faziam questão de participar da caçada,
munidos de barras de ferro, facões, pás, madeiras ou qualquer
outra coisa que servisse para matar. Tinham adentrado o matagal:
luzes de lanternas se cruzavam no breu que envolvia as árvores.
Também procuravam nos pátios, debaixo das casas, em cima das
casas, dentro das casas: ninguém se atrevia a barrá‑los. Eram
momentaneamente a autoridade e não descansariam enquanto não
vissem sangue.
Eu devia ter imaginado desde o começo: não havia
desumanidade da qual não seriam capazes aqueles justiceiros,
porque contavam uns com os outros, e eram muitos. O que um
coração cruel e covarde mais quer, mais deseja, mais espera é
justamente a oportunidade ideal para aliar‑se a outros corações
igualmente cruéis e covardes, de modo que possa regozijar‑se na
prática atroz sem o medo de ser execrado sozinho.
De repente, a gritaria.
— Óia lá!
— Lá vai ele, lá!
— Pega!
— Segura!
— Para, safado!
— Agarra esse pau no cu!
— Não corre, filho duma puta!
Foi uma explosão de vozes ensurdecedora. Gelei. Não sabia
para qual lado olhar, até que as pessoas se movimentaram em
direção à entrada da Vilinha. E dali saiu às carreiras um infeliz, já
lavado de sangue e com a camisa em frangalhos, alguns dos
justiceiros atrás, prestes a alcançá‑lo. Os perseguidores, olhos
arregalados, dentes arreganhados, narinas dilatadas, rosto
distorcido pelo ódio, já não apresentavam qualquer traço que
permitisse diferenciá‑los de animais. Tiros eram dados para o alto
para intimidar o fugitivo, que todavia seguia correndo como louco,
desviando daqueles que saltavam da plateia para tentar segurá‑lo.
No entanto, logo um chute anônimo acertou‑lhe as pernas,
fazendo‑o estender‑se de pronto no asfalto. E foi nesse momento
que o meu amigo correu para casa, a fim de evitar a cena seguinte.
Eu sabia que deveria fazer o mesmo, mas não podia. Estava
petrificado. Minhas pernas não me obedeciam.
Sou péssimo com datas, e portanto não sei dizer ao certo
quantos anos eu tinha nessa ocasião. O que sei é que não estava
preparado para presenciar tudo o que presenciei. Não estava
preparado para ver uma vida ser tirada daquela forma. Não estava
preparado para ouvir os gritos de dor. Não estava preparado para
ouvir o choro de desespero. Não estava preparado ver dentes
sendo cuspidos. Não estava preparado para ver alguém afogando‑se
no próprio sangue. Não estava preparado para ver alguém ser
pisoteado até se transformar num boneco inanimado. Não estava
preparado para ver um maxilar sair do lugar a base de pontapés.
Não estava preparado para ver um nariz desaparecer sob golpes de
barras de ferro. Não estava preparado para nada daquilo! Não
estava, não estou, nem nunca quero estar!
Parei de olhar, mas era tarde demais: eu já tinha visto a massa
rosa bebê que surgiu quando uma pedra enorme esmagou a cabeça.
Aconteceu amor

Mal pude acreditar quando fiquei sabendo que no posto de saúde


davam camisinhas de graça. Parecia bom demais pra ser verdade!
E era.
Depois de perguntar o que eu desejava e ouvir a minha resposta
com toda a atenção, aquela mulher diabólica que me atendeu teve
o desplante de gargalhar bem na minha cara. O que ela queria,
tenho certeza, era que eu me sentisse envergonhado no meio de
toda aquela gente que tava ali. Ah!, só que ela não me conhecia! Se
os escândalos que a minha família costumava dar nos finais de
semana pra entreter a vizinhança serviram de alguma coisa, foi
justamente pra que eu não ficasse encabulado por qualquer
coisinha.
— Mas, ué! Ceis não dão camisinha de graça? Pois tô pedindo!
Cadê?
— Era só o que me faltava! Não vou te dar é nada!
— Ora! E por que não?
— Porque camisinha não é balão. Agora vai, te manda daqui. Te
manda, que tenho mais o que fazer.
Não me dei por vencido. Continuei insistindo. E eu teria
insistido mais e mais, até ela me dar as benditas camisinhas! Só
não fiz isso porque o segurança do posto não deixou. Ele apareceu
e me tirou dali pendurado pelo cangote, do mesmo jeito que se faz
com um filhote de cachorro indesejado.
— Ah, tira as mão de mim, me larga, me solta, tu não é meu pai,
imundície!
Gritei e esperneei sem parar, mas não adiantou nada. O infeliz
só foi me largar lá fora, na calçada, e ainda por cima me deu um
chute na bunda.
— Vai, vai, vai, anda, anda, te some!
— Tu vai ver só! Vou mandar a minha mãe vim aqui sentar a
mão na tua cara! Ela vai te encher de bolacha, tu vai ver só!
Voltei pra vila Sapo engolindo a vontade de chorar. E a vontade
de chorar não era por causa da dor na bunda, mas por causa do
aperto no peito. Eu tinha prometido pra Marcinha que ia dar um
jeito de arranjar as camisinhas; com que cara agora eu ia dizer pra
ela que, no lugar das camisinhas, eu tinha ganhado um belo dum
pontapé? Não! Eu não podia desistir! Eu precisava arranjar as
camisinhas de alguma forma! Fui pra casa tentar pensar em alguma
coisa.
Eu tinha ouvido falar, uma vez, que cabeça vazia era oficina do
diabo. Mas, na verdade, na verdade mesmo, a oficina do diabo era a
minha própria casa, quando o meu pai e a minha mãe não tavam
por lá. E digo mais: o diabo era eu.
Deitado na minha cama, os braços cruzados atrás da cabeça,
fiquei tentando imaginar uma solução pro meu problema. Logo
cheguei à conclusão de que tudo o que eu podia fazer era apelar
pro desejo de lucro do dono da farmácia. Por mais criança que eu
fosse, ele não ia se negar a me vender algumas camisinhas:
dinheiro é dinheiro. Mas essa ideia me trouxe um outro problema:
onde eu ia arranjar o bendito dinheiro?
Foi nesse momento que me senti mais agradecido do que nunca
por estar sozinho em casa. Devia ter algum dinheiro guardado por
ali, em algum lugar: era só questão de procurar. Quando o meu pai
e a minha mãe voltassem do trabalho, iam perceber a quantia
desaparecida, é claro, e iam saber que fui eu que peguei, é claro, e
iam me dar a maior surra, é claro. Mas eu preferia isso do que
falhar com a Marcinha.
Vasculhei todas as gavetas da sala sem encontrar nada. Deixei
pra ir procurar no quarto dos meus pais só como última alternativa,
porque eu sabia que pegar dinheiro de lá seria um agravante no
meu crime.
Não achei dinheiro no quarto dos meus pais. Achei foi coisa
melhor! Bastou eu abrir a porta do roupeiro e pronto: dei de cara
com várias e várias cartelas de camisinha! Era tanta camisinha que
eu tive certeza que os meus pais não iam nem mesmo dar falta das
quatro que eu peguei pra usar com a Marcinha.
Fui pra casa da minha amada com o coração em chamas. Parei
no portão e chamei. Na verdade, eu cantei o nome dela:
— Marcinhaaaaa…
Cantei, sabe? Usei aquela melodia de suspense, aquela
universal, aquela que todo mundo usa quando tá procurando
alguém. Tornei a cantar, um pouco mais alto:
— Marcinhaaaaa…
Ela apareceu. Deus do céu, como ela era bonita! Toda vez que
eu botava os olhos nela, era uma surpresa. Ela se mostrava sempre
mais bonita do que eu conseguia lembrar. Acho que era boniteza
demais pra caber tudo na minha memória. Que sorte, a minha, um
anjo daqueles gostar de mim!
— Oi, Ronaldo!
— Oi! Adivinha só!
— O quê? Conseguiu as camisinhas?
Fiz que sim com a cabeça, enquanto a Marcinha se aproximava
de mim, no portão. Aí, de repente, o sorriso que ela trazia no rosto
sumiu. Eu percebi que ela tava insegura. Pressenti que tava prestes
a me dizer que tinha desistido de tudo.
— O que foi, Marcinha?
— Não sei se é uma boa ideia — ela murmurou, abrindo o
portão.
Eu peguei nas mãos dela. Ela baixou a cabeça. Eu também
baixei um pouco a cabeça, tentando olhar nos olhos dela. Ela
voltou a levantar a cabeça, pra ficar mais fácil de a gente se olhar
nos olhos. Aí eu fiquei encarando ela um tempo, em silêncio.
Depois, eu disse:
— Confia em mim.
O sorriso dela apareceu de novo.
— Tá bom. Eu confio. Vamos fazer.
Três da tarde daquele mesmo dia. Um sol de rachar. A vila Sapo
deserta. Eu e a Marcinha escondidos atrás do muro da praça.
Vindo do Centro, o ônibus desceu a Guaíba, reduzindo a
velocidade, e parou bem na frente da praça, pra desembarcar
alguém. Todas as janelas do ônibus tavam escancaradas, por causa
do calor. Eu e a Marcinha saltamos de trás do muro. Nós dois
estávamos armados. Armados com uma camisinha cheia d'água em
cada mão. Era hora de se divertir.
O primeiro tiro fui eu que dei. Joguei uma das minhas
camisinhas no para‑brisa do ônibus, bem na frente do motorista,
pra ele tomar um susto e ficar sem saber o que fazer. Gastei a
minha primeira bomba assim por estratégia: eu queria atrasar a
saída do ônibus. Funcionou. O motorista botou a cara pela brecha
da janelinha pra ficar me xingando. Eu até pensei em tentar acertar
a minha segunda bomba na cara dele, mas resisti a essa tentação,
porque aquela janelinha era muito pequenininha, ia ser difícil eu
conseguir acertar a cara dele. Enquanto isso, a Marcinha tentou
acertar lá dentro do ônibus, jogando uma das camisinhas dela
numa das janelas dos passageiros. Foi um bom tiro, mas faltou um
pouco de sorte: a bomba bateu na borda da janela, explodindo
antes da hora. De qualquer forma, não foi um desperdício total:
respingou um pouco de água lá pra dentro, molhando a tia que tava
sentada naquela janela, e a tia ficou louca!
Os passageiros perceberam que tavam sob ataque e ficaram
tentando fechar as janelas, desesperados. Foi tudo em vão.
Qualquer um sabe que é impossível fechar as janelas dos ônibus.
Eu e a Marcinha jogamos cada qual sua última camisinha
praticamente ao mesmo tempo. Foi lindo de ver. Pra mim, pareceu
que foi tudo em câmera lenta. As duas bombas entraram uma atrás
da outra pela mesma janela. A primeira atingiu em cheio um cara
bigodudo que tava de pé; a segunda pegou num daqueles ferros
que servem pros passageiros se segurarem, explodindo e
espalhando água pra todo lado, molhando todo mundo!
Lá dentro do ônibus, os passageiros gritavam e gritavam todos
ao mesmo tempo, indignados; do lado de fora, a gente se acabava
de tanto rir.
Mas no momento seguinte, bateu o medo. O ônibus foi embora
e aí a gente percebeu que o cara bigodudo que tinha sido atingido
em cheio por uma das bombas desembarcou ali, só pra tentar nos
pegar! A gente correu pro fundo da praça. E ele, encharcado e
botando fogo pelas ventas, veio correndo atrás.
— Pera aí! Ah!, ceis vão ver só!
Lá no fundo da praça, eu ajudei a Marcinha a pular a cerca, e
depois pulei também. Agora a gente tava dentro do valão — a
grande vala de esgoto a céu aberto que tinha atrás da praça. A água
escura, fedorenta e cheia de cocô passava lambendo os nossos pés
descalços. O bigodudo com certeza não ia se dar ao trabalho de
pular a cerca e vir atrás da gente. Mas, mesmo assim, a gente ainda
não tava a salvo. Lá do outro lado da cerca, o infeliz já olhava ao
redor, procurando alguma coisa pra jogar em nós.
— Vem, vem, vem! — eu disse, pegando na mão da Marcinha e
levando ela comigo.
A gente se abaixou bem abaixadinho e foi indo por baixo das
moitas, costeando o paredão vertical do valão. Agora o bigodudo já
não podia mais ver a gente, muito menos jogar qualquer coisa em
nós.
A Marcinha era muito esperta. Olhando pro chão e vendo que já
tinha algumas pegadas no nosso caminho, ela comentou, meio
assustada:
— Tem gente que passa por aqui, Ronaldo!
É
— É, eu sei.
Um pouco mais adiante, testemunhei com prazer toda a
surpresa que surgiu no rosto dela. Ela parecia que não acreditava
no que tava vendo. Agora a gente já tava de pé. Ali, naquele
lugarzinho escondidinho, dava pra ficar de pé muito bem, porque
já fazia tempo que eu e os meus amigos tínhamos podado o teto
feito de folhas e galhos emaranhados, antes muito baixo. Além
disso, agora a gente tinha espaço ao nosso redor, porque já fazia
tempo que eu e os meus amigos tínhamos escavado o paredão
vertical do valão, criando aquela sala que tinha levado vários meses
pra ficar pronta.
— Bem‑vinda ao Clube, Marcinha.
A Marcinha tava com a boca escancarada, e com os olhos
cravados nos bancos.
— Meu Deus! Então foi isso que aconteceu aquela vez, quando
a praça amanheceu sem os bancos e ninguém sabia onde tinham
ido parar!
— Pois é.
— Foi tu que fez isso aqui, Ronaldo?
— Eu e os guri. E eles não podem nem sonhar que eu te trouxe
aqui, então, por favor, nunca conta pra ninguém sobre esse lugar. Tá
bom?
Ela fez que sim com a cabeça e se sentou num dos bancos.
Depois, apontou pros vestígios do fogo e perguntou:
— Que é isso?
— A gente assa passarinho e preá aqui.
— Pra quê?
— Pra comer, ora!
Me arrependi de falar sobre isso. Ela ficou horrorizada.
— Ai, meu Deus, que nojo!
Eu ri, todo sem jeito. E, no momento seguinte, tomei um susto.
Acho que foi o maior susto da minha vida. Tinha uma enorme
duma cobra bem do meu lado, se preparando pra atacar. Foi só o
tempo de eu dar um pulo lá pro lado da Marcinha e o bicho deu o
bote, errando a minha canela por um osso de grilo.
Não sou nenhum covarde; só que, por alguma razão, sempre
tive muito medo de cobras. Aranhas e escorpiões nunca me
assustaram, por maiores que fossem, mas as cobras me deixavam
em pânico.
Abracei a Marcinha, tentando ficar na frente dela. Eu precisava
proteger a minha amada, nem que pra isso eu tivesse que levar
uma picada de cobra por ela. E o pior era que devia ser uma cobra
venenosa. Pelo que eu sabia, só as cobras verdes não tinham
veneno. Mas aquela não era verde. Aquela era marrom! Aquela era
marrom, grande e terrível! E tava vindo pro nosso lado!
Me surpreendi quando a Marcinha saiu dos meus braços,
dispensando a minha proteção. E me surpreendi ainda mais com
tudo o que ela fez em seguida. Primeiro, ela deu um pulo,
esticando a mão pra cima, e assim arrancou um galho fininho do
teto do Clube. Depois, deu um passo pra frente e se abaixou,
ficando cara a cara com a cobra. Aí, esticou o galho e ficou
mexendo prum lado e pro outro, bem na frente daquele bicho dos
infernos, provocando o bicho, atiçando o bicho, até que o bicho
deu o bote e mordeu o galho! Foi nessa hora que a Marcinha puxou
o galho pra cima, fazendo a cobra ficar pendurada. E como se tudo
isso já não tivesse sido a maior demonstração de coragem já
testemunhada por mim, ela ainda pegou o bicho pelo rabo e atirou
longe, dentro da água do valão, com galho e tudo.
— Pronto! — disse a Marcinha, limpando as mãos uma na
outra, como se não tivesse feito nada de mais.
Depois de me salvar da morte certa, a minha amada se sentou
do meu lado e ficou me olhando, com um sorriso que me fazia
arder por dentro de tão lindo e de tão mágico. Eu simplesmente
não sabia o que dizer. Por sorte, não precisei dizer nada. Ela botou
a mão na minha bochecha, se inclinou pra cima de mim e me
beijou.
Era o meu primeiro beijo.
O episódio do bodoque

Todos os meninos do beco eram intrépidos por natureza — exceto


o pequeno Dô.
Ouvidos sempre atentos, olhos sempre desconfiados, postura
sempre pronta a dar meia-volta, pernas sempre dispostas a correr,
assim aquele pinguinho de gente guardava, desde seus primeiros
verões, uma impressionante relação de respeito com os perigos da
vida. Via-os sucederem-se aqui e ali como quem observa fogos de
artifício: intrigado, seduzido, por vezes mesmo fascinado, mas
grato pela distância segura entre eles e seu nariz. Claro que não
faltaram amiguinhos para enredá-lo na alcunha de “bunda-mole”.
Crianças costumam ser cruéis. Contudo, ainda que a cada chacota
Dô sentisse vontade de comportar-se como os outros meninos do
beco, sua determinação nesse sentido jamais vencia a queda de
braço contra seus instintos. Frustração. Frustração que levava a
mais chacotas. Mais chacotas que levavam a desejo redobrado de
imitar os amiguinhos. Desejo redobrado de imitar os amiguinhos
que levava a maior frustração. Bem, desse círculo vicioso para o
desenvolvimento de problemas de autoestima ao longo da vida era
um pulo. Um pulo que felizmente nunca seria dado. Porque, para a
sorte do pequeno, de vez em quando era ele quem ria por último,
justamente graças a seus cuidados, e então reforçava, de maneira
gloriosa e retumbante, a satisfação com o próprio modo de ser e
estar no mundo.
Foi o que aconteceu no episódio do bodoque, por exemplo.
Para início de conversa, Dô não era lá muito fã de bodoques,
pois serviam principalmente para caçar passarinhos, e, por mais
que se esforçasse, não conseguia compreender a vantagem de
abatê-los. Na verdade, abatê-los, expulsá-los da existência, impedi-
los de cruzar o azul do céu em voos certeiros, condená-los a jamais
cantar ao nascer do sol, tudo isso parecia-lhe mesmo uma
estupidez completa, um desperdício injustificável. Desnecessário
comentar que não refletia com esses meus termos de marmanjo
afetado; aquilo que lhe ia em algum lugar entre o cérebro e as
tripas talvez nem fosse propriamente uma reflexão; era antes um
sentimento, mais ou menos como o que decerto experimentaria
caso testemunhasse alguém jogando um sorvete no lixo, em pleno
verão.
Não gostava de bodoques, portanto. Se possuía um — e se, mais
do que isso, fazia uso dele quando convidado a caçar passarinhos
—, quem, neste mundo de tradições, estaria em posição moral de
recriminá-lo? Naquela tarde, quando Lu o chamou para ir praticar
a estupidez completa, para ir promover o desperdício injustificável,
não foi senão a espada das tradições o que Dô sentiu atravessar-lhe
a alma, enquanto dava de mão no bendito bodoque e saía à rua.
O único prazer que conseguia extrair das caçadas era o de ver os
amiguinhos atribuírem seu fracasso absoluto ao azar ou à falta de
mira, sem jamais suspeitarem que, na verdade, errava os disparos
todos de propósito. E Lu, o melhor caçador entre os meninos do
beco, talvez fosse o que tivesse menores chances de descobrir seu
segredo, já que lhe sobrava em pontaria justamente o que lhe
faltava em perspicácia. Não só acreditava piamente na falta de
habilidade de Dô como precipitava-se a concluir que aquele devia
ser um mal de família.
— A fruta nunca cai longe do pé.
Era o que dizia cada vez que uma pedra disparada pelo
companheiro acertava apenas as folhas das árvores, em alusão a
uma fofoca antiga, segundo a qual o pai de Dô, poucos instantes
antes de morrer em um confronto com a polícia, teria errado seis
tiros a pouca distância do policial que alvejava.
— A fruta nunca cai longe do pé.
De tanto Lu repetir o ditado, referindo-se, ainda que de
maneira indireta, a uma história que envolvia polícia, aconteceu
justamente que uma viatura policial apareceu, como se invocada
por ritual satânico. Os ouvidos sempre atentos de Dô não o
decepcionaram: foi ao captar o som de freio de mão sendo puxado,
quase imperceptível àquela distância, que o pequeno decidiu
lançar seus olhos desconfiados para o outro lado da praça, vendo,
então, o brasão maligno, o símbolo do horror, estampado na lataria.
Na mesma hora, atirou seu bodoque o mais longe que pôde e
empenhou-se em recomendar, com sussurros e mímicas, que Lu
fizesse o mesmo. Este, porém, a princípio não entendeu nada, e
mesmo depois de entender, quando os policiais já adentravam a
praça, achou que não havia motivo para imitar o amigo; em vez
disso, o que fez foi caçoar dele, com um estalo de língua e uma
pequena risada.
— Bunda-mole! Tá vendo como a fruta nunca cai longe do pé?
Entretanto, não foram necessários mais do que uns poucos
segundos para que Lu, mesmo com sua pouca perspicácia,
compreendesse que estava em maus lençóis.
— E esse bodoque, seu merdinha? — rosnou sem rodeios o
policial que vinha à frente. Ato contínuo, olhou dentro dos olhos
de Dô. — E tu? Hem? Cadê teu bodoque?
— Não tenho bodoque, não, senhor, não gosto de bodoque.
— Não?
O pequeno tornou a negar, dessa vez limitando-se a sacudir a
cabeça, sem dizer palavra.
— Então vai, vai, anda, anda, te some daqui!
Dô obedeceu imediatamente, saindo em disparada. Mas, antes
de afastar-se muito, teve tempo de ouvir, às suas costas, o tom
particularmente venenoso que o policial adotou ao voltar a se
dirigir a Lu:
— Não, não, tu não vai a lugar nenhum! Tu fica aqui, que agora
tu vai aprender a não sair estourando lâmpada de poste por aí. E
não adianta chorar…
Quando Dô chegou ao outro extremo da praça, já esbaforido,
atreveu-se a olhar para trás, por cima do ombro, antes de virar a
esquina e seguir correndo para casa. O que viu, de relance, foi o
policial segurando Lu no alto, pelo tornozelo, de cabeça para baixo,
ameaçando soltá-lo dentro da vala de esgoto, enquanto o menino
chorava a não mais poder. Apesar de assustado, Dô logo pegou-se
aos risos, sussurrando assim para o vento, enquanto corria:
— Quem é o bunda-mole agora?
Na noite daquele mesmo dia, leitor, lhe digo que esse pequeno
sonhou com o pai. E dessa vez o sonho não amenizou apenas a
saudade, mas também um outro sentimento, menos definido,
embora igualmente amargo. Sorrindo, o homem acariciou o rosto
da criança, encarando-a cheio de orgulho.
— Não te preocupa, meu filho. O pai também errava os tiros de
propósito.
Um otário com sorte

Contrariando todas as estatísticas, ontem eu resolvi sair da baia e


fui dar um rolê. Fui ver a mana. Fazia tempo que eu não via ela. Na
real, sempre faz tempo que eu não vejo ela. Um minuto depois de
eu ver ela, já faz tempo que eu não vejo ela. É assim com quem a
gente gosta.
Tem uma lomba piçuda entre a minha baia e a parada do bonde:
a lomba que leva das profundezas da vila Sapo até o alto da vila
Nova São Carlos. É uma lomba que eu já subo desde que eu
aprendi a andar. É uma lomba que eu já subo bebendo desde que eu
aprendi a beber. E dessa vez não foi diferente: um latão, só pra dar
clima. Beber é inevitável, pai. Tem muita coisa, e muita gente
também, que simplesmente não dá pra engolir a seco.
Lá em cima, uma mina jamais vista, acabada, uma morta‑viva,
me abana tremendo.
— Ô cupincha, tu não sabe cadê os guri que ficava aqui?
Ela quer droga. Ela quer pedra. Ela quer a morte. Tem um
monte de gente querendo a morte hoje em dia, das mais variadas
maneiras. A vida tá fora de moda. Só que os mercadores do tipo de
morte que ela quer não tão por ali. Duns tempos pra cá, eles
andam sumidos. Teve guerra, e eles levaram a pior. Pelo menos é o
que parece: morreu mais gente ali do que do outro lado, e aí os que
ficaram vivo sumiram. Mas, enfim, essa é uma novela que todo o
mundo sabe que nunca termina de verdade. Eles vão voltar. E se
eles não voltarem, algum pessoal a fim de fazer grana vai ocupar o
lugar deles, e aí logo tem guerra de novo.
Eu sou um cara inclinado ao sarcasmo. Respondi assim pra
mina:
— Tu já deu um bico ali no salão, pra ver se eles não tão ali
cortando o cabelo?
Mas a mina não curte sarcasmo.
— Ah, se foder, na real, tá até me pegando!
Eu sigo. E, véio, qual é a probabilidade de tu chegar na parada
do bonde no exato instante que o teu latão acaba, no exato instante
que o bonde tá chegando, de modo que tu simplesmente faz sinal
pro bonde, toma o último gole da ceva, joga o latão no lixo e
embarca no bonde, tudo assim, com precisão milimétrica? Foi a
minha proeza. E olha que não era qualquer bonde, esse que eu
peguei: era o melhor que eu podia pegar pro lugar que eu tava
indo: era o R32.1, que passa com a mesma frequência que acontece
um eclipse.
E aí, pá: um dos bancos tá vomitado. Fazia tempo que eu não via
uma nojeira dessa. Mas não foi uma surpresa: era sábado, e aquilo
devia ser obra de alguém que tinha voltado bêbado do baile, de
manhã cedo. O fato de o vômito já estar seco corroborava o meu
raciocínio. Só o que eu não conseguia entender era por que não
tinham dado um jeito de limpar aquilo. Aquela porra já devia estar
ali há mais de oito horas, e o bonde seguia circulando pela cidade
sem problema nenhum. Bom, pensando bem, o descaso não é tão
misterioso assim. É bonde do Pinheiro. Isso jamais teria sido
admitido num T9 da vida, por exemplo. Jamais teria sido admitido
porque, enfim, o T9 passa na PUC, passa no Petrópolis, passa na
Bela Vista, passa até no Moinhos, se não me engano: muita
patricinha, muito playboy, muito universitário, muita gente de
bem, muita gente decente pega o T9. Não pode ter vômito num T9
da vida. Mas num bonde do Pinheiro é sereno, não tem problema.
O bonde tá vazio. Eu sento lá na cozinha, bem no meio. O
cobrador me olha de tempos em tempos, pra ver se eu ainda não
tirei uma pistola da cintura. Eu entendo ele. Não condeno ele. É
sábado, tá tudo morto, não se vê polícia em lugar nenhum, eu subi
na 12 do Pinheiro e não existe nenhuma diferença entre a maneira
como eu me visto e a maneira como se veste um ladrão, assim
como não existe diferença nenhuma entre a maneira como eu
caminho e a maneira como caminha um ladrão. Eu, na real, sou um
ladrão. Um ladrão ou um traficante: é só escolher. Eu só não roubo
nem trafico; tirando esses pequenos detalhes, eu sou um ladrão ou
um traficante. Eu entendo o cobrador, que não para de me olhar;
eu entendo a polícia, que vive me dando paredão; eu entendo as
madames, que atravessam a rua bem ligeiro quando botam os olhos
em mim.
Dois piá sobem no bonde, se agarrando no pau, de frescura.
Disputam pra ver quem vai passar por baixo da roleta primeiro.
Alegres, tá ligado? Felizão pra caralho, os dois, dando risada afu e
pá, no maior arreto. Deviam ter uns nove ou dez anos. Subiram pra
pedir, tava na cara, mas tinha tão pouca gente no bonde, que não
pediram nada pra ninguém. Vieram sentar perto de mim.
— Que hora é, tio? — me pergunta um deles.
Eu odeio que me perguntem as horas. O meu relógio é só um
adorno. Eu uso a porra do meu relógio pelo mesmo motivo que eu
uso o meu boné, ou pelo mesmo motivo que alguém usa brinco:
nenhum. É só um enfeite, o meu relógio. Não funciona faz tempo,
e nunca me sobra dinheiro pra mandar arrumar. Por isso, eu tenho
que puxar o celular pra poder ver as horas. E isso deixa na cara que
a porra do meu relógio é inútil. Não gosto que me perguntem as
horas.
— É duas hora agora.
— Por que tu não olha no relógio, tio?
— Porque não funciona.
— Então pra que tu usa essa merda aí? — O guri era abusado.
— Pra bonito.
— Me dá ele, então?
Eu boto a mão no meio das pernas e digo:
— Eu te dou isto aqui, ó.
O outro piá se mata de rir da minha resposta e, por isso, o que
me perguntou as horas se irrita.
— Do que tu tá rindo? — diz ele, e dá um soco no amigo. Um
soco com força.
O outro estala os beiços.
— Ah, é? — E devolve o soco. — O que tu tá pensando? Quer
ver que eu te mato? Faço a tua cabeça atravessar esse vidro!
Mas foi só um soco pra cada um. Depois disso, ficaram só se
ameaçando.
— Cuzão! Tu sabe que na Bento, é tudo comigo. Quer ver que
eu não deixo mais tu pedir na Bento?
Achei curioso ver o guri falar isso. Claro, era dois piá de merda,
e nenhum deles mandava em porra nenhuma, mas aquela bravata
não podia ter surgido do nada. Acho que eles se espelham em
coisas que veem os mais velhos dizendo e fazendo por aí. Ou seja,
entre os mais velhos que pedem esmola no bonde, ou que vendem
bala no bonde, essas coisas, me parece que deve ter alguma espécie
de divisão de setores da cidade, e alguns grupos devem se adonar
desses setores, como acontece no tráfico de drogas. Tipo, se pá tu
não pode simplesmente começar a vender bala ou pedir esmola
nos bonde que passam na Bento: tu precisa ter a permissão do
pessoal que é dono da Bento, se não eles se pá te espancam, ou te
matam, sei lá. Eu nunca tinha pensado que podia existir algo assim
no submundo de quem pede esmola ou vende coisa no bonde.
— Quanto ceis ganham pedindo? — pergunto, sinceramente
desejoso de saber.
— Ah, dá pra tirar uns quatrocentos, quatrocentos e cinquenta
por dia, por aí. Tem vez que tá foda, e o cara pega só trezentos.
Eu não acreditei. Se aquilo fosse verdade, os guri tavam rico.
— Porra, ceis tão melhor que eu, então. Me apoia um galo aí.
Uma das piores coisas que existem na vida é ser pego na própria
armadilha. O guri botou a mão no meio das pernas e disse:
— Eu te apoio isto aqui, ó!
Os dois ficaram rindo. Eu também ri. O guri era uma águia.
Hoje em dia, toda criança já tá voando, é impressionante. Eu, na
idade daquele pentelho, não podia nem andar de ônibus sozinho
por aí, e não tinha nem uma fração daquela malandragem que ele já
tinha.
— Ah, se foder com essa tua minhoquinha aí, que tu usa só pra
mijar! — eu disse, brincando.
O outro guri riu do que eu disse, e aproveitou pra folgar
também:
— Pior que é, tio! Esse aqui não come ninguém!
— Quem não come ninguém é tu!
De uma hora pra outra, eles começaram a se peitar e se ameaçar
de novo, os dois falando um monte de coisa ao mesmo tempo,
ficando cada vez mais irritados um com o outro. E dessa vez a coisa
foi ficando mais séria. Eu percebi que eles iam acabar brigando de
verdade. Teve alguns sinais de que isso ia acontecer, tá ligado? Dá
pra sentir, sei lá. E eles me pegaram pra juiz, na real. A cada ofensa
que um fazia pro outro, me olhavam, pra ver o que eu tava
achando. Daqui a pouco começaram a se empurrar, e a cada
empurrão, me olhavam, pra ver o que eu tava achando. Eu não
queria ver eles brigarem às ganha, na real.
— Que porra é essa, meu? Ceis vão brigar mesmo? — falei bem
sério.
Eles pararam. Ficaram até sem jeito quando viram que eu não
aprovava a briga deles. Foi uma surpresa pra eles. Ou pelo menos
pareceu que foi. Se pá eles acharam que eu queria mais era ver eles
brigarem pra ver quem ia ganhar, ver quem era mais machão. Mas
eu nunca tive interesse em rinhas de nenhum tipo. Eles ficaram
me olhando, esperando eu dizer mais alguma coisa. E eu disse:
— Olha aqui, meu, olha bem o que eu vou dizer pra vocês: tá
todo o mundo contra vocês, tá ligado? Ceis sobem nos bonde aí, e
o pessoal não gosta muito. Ou ceis acham que o pessoal gosta?
Tem um monte de pau no cu por aí, mano, gente que não quer que
vocês façam o corre de vocês. Aí tem mais a polícia, que também
não gosta de vocês, e que vai gostar ainda menos quando vocês
crescerem. Então, resumindo, é o mundo contra vocês, mano. Pra
apoiar vocês, não vai ter ninguém. E aí ceis vão ficar brigando,
ainda? Não, mano! Ceis têm que se unir, ceis têm que ficar junto e
de boa, ceis têm que um apoiar o outro. Aperta as mãos aí, quero
ver. Vamo, aperta as mãos.
Eles não queriam se apertar as mãos. Ficou cada um virado
prum lado, de braços cruzados. Eu continuei:
— Ei, ei, ei, ficar brabão é barbada. Isso aí qualquer um faz.
Quero ver quem se rende primeiro. Quero ver quem pede
desculpa primeiro. Isso, sim, que é ruim de negócio.
A psicologia reversa ainda funciona, pelo menos com crianças.
Eles se apertaram as mãos, e se pediram desculpas.
Cinco minutos depois, foi como se nunca nenhum
desentendimento tivesse acontecido. Os dois tavam gargalhando e
apontando pela janela, mostrando coisas e pessoas um pro outro.
Essa capacidade de deixar tudo pra lá, de uma hora pra outra, é
uma das tantas coisas que nunca deviam se perder na transição da
infância pra vida adulta.
Eles desceram na Redenção — não sem antes apertar a minha
mão.
— Valeu, tio!
— Valeu, tio!
E eu desci duas ou três paradas depois, naquela porra daquele
colégio, que eu nunca lembro o nome, mas que é do outro lado da
Redenção, antes do R32.1 chegar no túnel.
Vinha vindo uma playboyzada. Uns quatro ou cinco cara, mais
duas mina no meio. Eles tavam distraídos, conversando e rindo e
pá. Um dos cara me viu, e adivinha o que aconteceu? Naquele
exato instante ele se lembrou que, de acordo com o lugar que eles
tavam indo, era melhor atravessar a rua. Ele botou a mão na frente
dos outros, pra que eles atravessassem a rua, como quem diz “é
por aqui que a gente tem que ir, lembra?”. Os outros inicialmente
não pareciam dispostos a atravessar a rua, mas bastou que me
vissem também pra lembrarem que era melhor mesmo ir pelo
outro lado da rua. Atravessaram.
Como eu disse antes, eu entendo essa gente. Mas eu fico
pensando, pai: Porto é uma porra. Se tu quer conhecer Londres e
não tem dinheiro, é só vir pra Porto, principalmente em agosto:
frio, céu nublado, garoa vaivém, gente metida pra caralho pra todo
lado: Londres.
Do outro lado da Osvaldo, apareceu um cara da minha laia. Ele
tava segurando uma caixinha de bala, ou sei lá que porra era aquela.
Era um vendedor e pá.
— Ô meu padrinho! — ele gritou, mas com um baita dum
sorrisão na cara. Ia me morder um cigarro, lógico. Eu soube disso
antes mesmo dele me chamar. É foda, eu tava fumando. — Só tu
pra me salvar, sangue bom! Me apoia um cigarro dos teus aí!
Era o tipo de figura que assusta a burguesada. Na real, tudo nele
era meio assustador. Falava gritando, tava malvestido, fedendo. Até
o sorrisão dele era intimidador. Mas ele não tinha a menor
intenção de me intimidar, no caso. Ele me reconheceu como um
igual. Me reconheceu como o otário com sorte que eu sou. Me
reconheceu como o fodido que eu sou: um fodido que só tinha um
pouquinho mais de sorte que ele, e que por isso não precisava
(ainda não precisava) andar por aí vendendo bala.
Dei um cigarro pra ele.
— Tem a brasa?
— A brasa eu tenho, padrinho, a brasa eu tenho. Valeu, vai com
Deus.
Tem um montão de mendigo morando ali, naquele trecho entre
a Osvaldo e a Independência. Eu nunca tinha passado por ali a pé.
Fiquei olhando os mano ali, tudo atirado. Era vários, cara! Que
porra do caralho ver aquilo ali. Se tu é decente, tu não fica em paz
vendo aquilo ali! A maioria preto. Eu lembrei dum trecho da
música “Eu sô função”, que o Dexter canta com o Mano Brown:

Não vejo nada


Não vejo fita dominada
Eu vejo os pretos sempre triste
Nos canto do mundão

Às vezes, bate uma vontade de fazer justiça, pai! Mas eu tô


esperto, eu não quero morrer mal. Quem faz o certo, o certo
mesmo, sempre morre mal depois. Já é assim desde Jesus. Na real,
já é assim desde antes de Jesus. Sempre foi assim, na real.
Na Independência, mais um cigarro. Ou melhor, menos um
cigarro.
— Meu filho, tu tens um cigarrinho?
O véio tava com frio, tava encolhido, tava de manguinha. Tava
por ali cuidando os carros e pá. Um flanelinha. Outro náufrago da
existência, que nem diz o Machado. Um otário com menos sorte
que eu. Vendo eu catar o cigarro de boa vontade, ele se alegrou e
disse:
— Bah, guri, e esse frio, hem?
— Uma porra, esse frio. Vou te dizer, véio: eu queria tá em casa
agora, peidando embaixo das cobertas.
Ele riu.
— Quem não quer?
— Tem a brasa?
— Tenho, sim, obrigado. Olha aqui: feliz dia dos pais pra ti
amanhã, se tu é pai. Se não, feliz dia dos pais pro teu pai.
— Valeu. O mesmo pro senhor.
Comprei outro latão num boteco da Cristóvão. Comprei já
sabendo que ia me arrepender de comprar. É que eu não gosto de
aparecer pra encontrar a minha irmã já com um latão na mão; não
gosto, embora isso acabe acontecendo com uma frequência
impressionante, de qualquer jeito. E como agora eu já tava perto
do lugar que a gente combinou (a gente combinou na frente do
Shopping Total), eu ia acabar aparecendo na frente dela ainda com
esse latão recém‑comprado na mão. E eu não gosto disso. Não
gosto porque sei que ela não gosta.
Mas, como eu previa, foi o que acabou acontecendo, mais uma
vez: eu apareci com o latão na mão.
Quando eu encontro a minha irmã depois de algum tempo sem
ver ela, ou quando eu encontro a minha mãe depois de algum
tempo sem ver ela, ou quando eu encontro algum bom amigo ou
alguma boa amiga depois de algum tempo sem ver ele ou ela, me
vem na cabeça a ideia de terra firme. É que andar por aí, entre
pessoas estranhas, ou entre pessoas com quem a gente não tem
tanta intimidade assim, isso implica em fingir o tempo todo,
representar. Tu nunca quer mostrar como tu realmente é pra
qualquer um. Tu só mostra quem tu realmente é pras pessoas com
quem tu te sente à vontade; quando tu não tá com pessoas assim,
tu fica constantemente ocultando o teu jeito de ser e pá. E isso
cansa, pai. Isso cansa, como remar pra se locomover no meio do
oceano — ou, mais apropriadamente, cansa como bater braços e
pernas pra se locomover no meio do oceano. Daí a ideia de terra
firme: uma vez na companhia de alguém com quem tu te sente à
vontade, aí já era, tu não precisa mais ficar te esforçando, te
ocultando, tu não precisa mais fazer nada: tu tá em terra firme, é só
relaxar e se deixar ser; mais nada.
E ali tava a mana, pai: terra firme!
Às vezes eu fico pensando… Do meu barraco de pau caindo aos
pedaços, lá na vila Sapo, até o imponente e magnífico Shopping
Total, no bairro Floresta, levou só uma hora. E o que é uma hora,
perto duma vida inteira? Uma hora não é porra nenhuma. E nessa
hora que passou na ida pra eu ver a minha irmã, não aconteceu
absolutamente nada de especial; não aconteceu nada que não possa
acontecer amanhã, e depois de amanhã, e no dia seguinte de novo.
Mas, mesmo assim, eu vi coisa pra caralho nessa uma hora. Deu
tempo de eu ver mil bagulho, e ouvir mil bagulho também. Deu
tempo de eu pensar um montão, aprender um montão. Uma hora,
pai! Só uma horinha. Mas, durante essa horinha, eu vi — vi de
verdade. Durante essa horinha, eu ouvi — ouvi de verdade. E,
infelizmente, a maioria das coisas que eu vi e que eu ouvi não são
boas. São terríveis, na verdade. São tão inaceitáveis, que é
inacreditável que estejam aí, todos os dias, pra serem vistas e
ouvidas.
Na real? Feliz de quem é cego e surdo, e passa pelo mundo, pela
vida, sem tomar conhecimento de porra nenhuma.
Josemar Afrovulto

José Falero nasceu em 1987, em Porto Alegre. Além de Vila Sapo, é


autor do romance Os supridores e da reunião de crônicas Mas em
que mundo tu vive?, também publicados pela Todavia.
© José Falero, 2022

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

capa
Renan Costa Lima
preparação
Claudia Ribeiro Mesquita
revisão
Fernanda Alvares
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida

O conto “O episódio do bodoque” foi publicado originalmente no


site do Instituto Moreira Salles dentro do programa IMS Convida
(2020).
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Falero, José (1987-)


Vila Sapo : Contos / José Falero. — 1. ed. — São Paulo : Todavia, 2022.

ISBN 978-65-5692-350-5

1. Literatura brasileira. 2. Contos. 3. Ficção contemporânea. 4. Vila Sapo – Porto


Alegre. I. Título.

CDD B869.3

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura brasileira : contos B869.3

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB 10/2348


todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br

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