A Pandemia A Volta de Keynes e A MMT A C
A Pandemia A Volta de Keynes e A MMT A C
Resumo:
1) Introdução
Com a dimensão mundial que a ação do novo coronavírus sobre a humanidade tomou, os
Estados Nacionais, uns mais e outros menos, adotam medidas de proteção à população
que destacam o papel do Estado na assistência à saúde, no avanço da pesquisa científica
e na adoção de medias anticíclicas para atenuar os impactos negativos gerados na
atividade econômica, nos empregos e na renda das pessoas pelas necessárias medidas de
isolamento social impostas pelos governos para evitar o alastramento da Covid-19.
2
Neste contexto de luta contra o vírus, resta evidenciado para a população que, com a
pandemia, a única saída para vencer o inimigo invisível e letal é o abandono do
individualismo exacerbado, que fundamenta o neoliberalismo, pela adoção de práticas de
coesão social e de solidariedade. Afinal, ninguém se salvará sozinho. E este talvez seja
o principal abalo que a pandemia provoca na ortodoxia neoliberal que, como sustenta
Wendy Brown1, se alicerça, na esteira do pensamento de Hayek2 na fragilização dos
conceitos de sociedade e de política, hoje reconhecidas a olho nu, até pelo cidadão mais
distraído, como peças essenciais na superação da pandemia.
Com isso, em contraposição às tentativas já articuladas, a exemplo do que ocorreu após a Grande
Depressão de 2008, de impor mais austeridade após a pandemia para pagar os gastos incorridos
em seu combate, se espera que haja o despertar de consciências para a importância do papel do
Estado Social e das suas prestações positivas para a população, que foram amesquinhadas pela
revolução neoliberal. Como diz Boaventura Sousa Santos3, vivemos, nos últimos 40 anos de
predomínio do neoliberalismo, em uma quarentena política, cultural e ideológica de um
capitalismo fechado em si mesmo. O fortalecimento do papel do Estado em razão da pandemia,
não passou desapercebido a Slavoj Zizek4, a despeito do exagero retórico de associar, ainda que
sob outra roupagem, o fenômeno à volta do comunismo. De qualquer forma, todo esse panorama
coloca em xeque o discurso hegemônico que legitima o esvaziamento do Welfare State e
dos direitos sociais.
1 BROWN, Wendy. Nas Ruínas do Neoliberalismo – a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Trad. Mario Antunes
Marino e Eduardo Altheman Santos. São Paulo: Politeia, 2020, Capítulos 1 e 2.
2 HAYEK, Friedrich. O Caminho da Servidão. Trad. Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. São Paulo:
Instituto Ludwig Von Mises, 2010.
3 SANTOS, Boaventura Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Almedina, 2020, p. 32.
4 ZIZEK, Slavoj. Pandemia: Covid-19 e a Reinvenção do Comunismo. Trad. Artur Renzo. São Paulo, Boitempo, 2020, p. 104.
3
Como até os economistas neoliberais já reconhecem, as medidas para atenuar a atual crise
econômica decorrente da pandemia não passam pela exposição perigosa de pessoas às
suas rotinas normais de trabalho. Mas no forte aporte estatal de liquidez na sociedade.
Como a maioria dos países, em maior ou menor grau, já estão fazendo, é hora de injetar,
com urgência, um enorme volume de recursos nos serviços de saúde, nas pessoas
vulneráveis socialmente e nas pequenas e médias empresas com a condição de manterem
os postos de trabalho para os trabalhadores que devem permanecer em casa.
De acordo com Laura Carvalho 5, até abril de 2020, o Brasil gastou 5,7% do PIB em
medidas de combate à crise econômica e sanitária decorrente da pandemia, o que segundo
ela, certamente será insuficiente para evitar a maior queda histórica da renda e a elevação
brutal do desemprego e da informalidade. Nos EUA, segundo Stephanie Kelton 6, o
Congresso destinou mais de US$ 1 trilhão, o que equivale a quase 5% do PIB, para
combater a mesma crise, estimando que tais valores precisam ser aumentados em pelo
menos o triplo nos próximos meses. Estes gastos públicos, financiados por recursos que o
discurso oficial dizia serem inexistentes, lançam enormes dúvidas em relação aos
argumentos de austeridade hoje hegemônicos. E geram o temor, tanto aqui quanto lá,
como destacado pelas duas autoras, de que medidas de austeridade sejam adotadas no
pós-pandemia sob a justificativa de pagar a conta da crise, a partir de argumentos
improcedentes, como se verá ao longo do texto.
5 CARVALHO, Laura. Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia, 2020, p. 29.
6 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy. New York: Public
Affairs, 2020, p. 13.
4
Quem vai pagar a conta depois, ou mesmo se há verdadeiramente uma conta a ser paga,
estas sim, são questões ideológicas, baseadas nas discussões sobre a justiça fiscal e
finanças públicas, que já demandam, há muito tempo, uma reflexão profunda em um país
tão desigual como o nosso. E vamos ter que enfrentar esse tema quando a vida voltar ao
normal, pois outro mundo deverá surgir depois que a tempestade passar.
Essa discussão central no campo das finanças públicas passa pelo debate do nosso sistema
institucional, em que o Governo Federal tem a exclusividade dos mecanismos necessários
ao enfrentamento da crise, sejam eles tributários, monetários ou creditícios. Na esfera
tributária, vale lembrar que a competência federal é bem mais ampla, indo muito além
das matrizes sobre o consumo, a que Estados e Municípios estão, na prática, restritos,
bastante abaladas pelo isolamento social. Engloba também a renda e as grandes fortunas.
Além disso, a União pode ainda emitir títulos públicos e aumentar a base monetária do
país, sem o risco da elevação da inflação, em razão da retração da demanda agregada pela
quase paralisação das atividades econômicas no contexto de isolamento social.
Parece ser quase consenso hoje que, em casos de grave recessão, epidemias e guerras, os
tributos deixam de ser a principal fonte de financiamento das despesas públicas, sendo
substituídos por mecanismos anticíclicos como a expansão da base monetária e o aumento
da dívida estatal pela emissão de títulos públicos.7
No entanto, ainda são encontrados em nosso país, bastante resistência à adoção dessas
medidas pela ortodoxia liberal, tão bem representada pelo atual ministro da economia,
Paulo Guedes, que aponta limites econômicos, em geral baseados no crescimento da
inflação, para a adoção dessas medidas.
O objetivo deste trabalho é mostrar que essas ideias não correspondem a uma necessidade
econômica ou financeira, e nem tampouco uma decisão que decorra da Constituição
Federal, mas de uma posição ideológica não admitida, escondida sob o manto de
7 Sobre a possibilidade de custeio das despesas com a pandemia pelo aumento da base monetária e a emissão de títulos públicos, vide:
CARVALHO, Laura. Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado; PIMENTEL, Kaio; MARTINS, Norberto M. Financiamento do
gasto público, controle da(s) taxa (s) de juros e a dívida pública. GESP IE/UFRJ, 2020, disponível em:
https://www.ie.ufrj.br/images/IE/home/noticias/Financiamentodogastopublico.pdf. Acesso em 01/06/2020; PALLUDETO, Alex
Wilhans Antonio; DEOS, Simone. Mitos e Verdades sobre o orçamento do governo federal. Nexo Jornal: 2020, disponível em
https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/Mitos-e-verdades-sobre-o-or%C3%A7amento-do-governo-federal. Acesso em
01/06/2020; DWECK, Esther. Austeridade é a maior aliada do coronavírus no Brasil. Jacobin Brasil, 2020. Disponível em:
https://jacobin.com.br/2020/03/austeridade-e-a-maior-aliada-do-coronavirus-no-brasil/. Acesso em 01/06/2020.
8 Jornal O Globo, de 12/10/2003, disponível em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2013/10/obama-pressiona-republicanos-a-
elevar-teto-da-divida-e-encerrar-paralisacao.html. Acesso em 29/06/2020.
9 CARVALHO, Laura. Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado, p. 21-22.
6
Com a pandemia, surge o espaço para um olhar crítico sobre o modelo vigente e para que
outros caminhos possam ser trilhados.
2) A Volta de Keynes com a Crise das Hipotecas Sub Prime e com a Covid-19
12 Na obra Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado, Laura Carvalho destaca que com a pandemia, a volta do papel do Estado se
mostra decisiva em cinco aspectos: Estado estabilizador, Estado investidor, Estado protetor, Estado prestador de serviços e Estado
empreendedor (CARVALHO, Laura. Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado).
13 LANSLEY, Stewart. The Cost of Inequality - Why Economic Equality is Essential for Recovery. London: Gibson Square, 2012,
Chapter 2, p.1-8.
14 KEYNES, John Maynard. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Trad. Manuel Resende. São Paulo: Saraiva, 2012.
15 KRUGMAN, Paul. “Introdução” da edição brasileira de: KEYNES, John Maynard. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da
Moeda, p. X.
8
. Por vezes, expandir a oferta de dinheiro não será suficiente para convencer
o setor privado a gastar mais, e as despesas públicas terão de preencher a
lacuna.”
De acordo com David Harley16, o traço em comum dos modelos keynesianos do New Deal,
implementado nos EUA e do Welfare State, adotado em vários países europeus, era a aceitação
da ideia de que o Estado deve buscar o pleno emprego, o crescimento econômico e o bem-estar
dos seus cidadãos. E de que o poder estatal deveria ser harmonizado com a atuação do mercado
e, se necessário, nele intervindo ou a ele substituindo, para alcançar esses fins, a partir da adoção
de políticas fiscais e monetárias para suavizar os ciclos de negócios e assegurar o pleno emprego.
Era selado o compromisso de classe entre capital e trabalho como garantia da paz e da
tranquilidade domésticas. Mesmo nos Estados Unidos, onde o Estado Social não chegou tão
longe quanto na Europa17, havia um consenso político, incluindo os republicanos18, a respeito
das conquistas sociais do New Deal.
As três primeiras décadas pós-1945 foram governadas pelo acordo de Bretton Woods,
em homenagem ao homônimo resort em New Hampshire, onde os políticos e
financiastas americanos, britânicos e de outras nações aliadas se reuniram em 1944 para
projetar o sistema econômico pós-Segunda Guerra Mundial. O regime de Bretton
Woods orientou os governos a se concentrarem nas necessidades sociais e de emprego
nacionais, enquanto aguardavam que o comércio global se recuperasse e prosperasse. O
sucesso do sistema se deveu a uma combinação de medidas, como a remoção das
restrições ao fluxo comercial e a liberdade para que os governos executassem suas
16 HARVEY, David. O Neoliberalismo – história e implicações. Trad. Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. 5. ed. São Paulo:
Loyola, 2014, p. 20.
17 Para Paul Krugman, o Estado do Bem-Estar Social nos EUA foi forte na área de previdência social e fraco na área de saúde
(KRUGMAN, Paul. A Consciência de Um Liberal. Trad. Alexandre de Oliveira Kappaun. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 137.):
“No âmbito da previdência social, os Estados Unidos criaram uma garantia pública relativamente generosa para a renda na
aposentadoria, comparável à de outros países ricos ou até mesmo melhor. Em outras questões, todavia, o Estado do Bem -Estar
norte-americano era muito menos abrangente do que o de outros países. Particularmente, os norte-americanos nunca tiveram
assegurada a proteção à saúde.”
18 Sobre a aproximação dos republicanos e democratas norte-americanos nos anos 50, vide: KRUGMAN, Paul. A Consciência de Um
Liberal, p. 93-94.
9
Porém, o regime monetário Bretton Woods deu sinais de esgotamento quando o capital
passou a ser dotado de maior mobilidade internacional, o que foi agravado pelos choques
do petróleo da década de 1970, atingindo duramente as economias avançadas. A crise
econômica, que acabou por atingir o Estado Social, abriu caminho para a ascensão do
neoliberalismo, com os triunfos da primeira-ministra Margaret Thatcher no Reino
Unido, em 1979, e do presidente Ronald Reagan nos EUA, em 1980, o que levou à
substituição, nas décadas de 1980 e 1990, do modelo de Bretton Woods por uma agenda
ambiciosa da liberalização econômica, mobilidade de capitais e profunda integração em
um esforço para estabelecer o que Dani Rodrik20 chamou de hiperglobalização. Os
acordos comerciais foram estendidos além de seu foco tradicional e se sobrepuseram
sobre as políticas internas; os controles sobre os mercados de capitais internacionais
foram removidos; e as nações em desenvolvimento ficaram sob forte pressão para abrir
seus mercados para o comércio exterior e investimento estrangeiro. Deste modo, a
globalização econômica tornou-se um fim em si mesma.
Nesse período houve uma importante transformação ideológica. Os anos 1980 foram a
década da revolução neoliberal capitaneada por Thatcher e Reagan. A ideia de economia
de mercado livre sem qualquer limite estava em ascensão, produzindo o que tem sido
chamado de Consenso de Washington, de fundamentalismo de mercado, ou de
neoliberalismo. Seja qual for a denominação, este sistema de crença combinou o
19 RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy. New York: Norton, 2011,
Introdution: Recasting Globalization’s Narrative, p. 9-10.
20 RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy, Introdution: Recasting
Globalization’s Narrative, p. 9-10.
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excesso de otimismo sobre o que os mercados poderiam conseguir por conta própria
com uma visão muito sombria da capacidade do Estado de agir de forma socialmente
desejável. De acordo com essa cosmovisão, os governos ficaram no caminho dos
mercados em vez de serem considerados indispensáveis ao seu funcionamento, e,
consequentemente, tiveram que ter o seu tamanho reduzido. Tudo o que era considerado
um obstáculo ao livre comércio foi desenhado como uma abominação a ser removida.21
Embora sempre tenha havido desigualdade econômica no mundo e nos EUA, mesmo
durante as chamadas décadas prosperidade partilhada, após a Segunda Guerra
Mundial, de 1947 a 1977, é forçoso reconhecer que, desde o final da década de 1970,
inaugurou-se um período de extremo agravamento do quadro a partir de uma
reordenação vertiginosa da sociedade. Esta redistribuição radical da riqueza para cima
não foi apenas fruto de uma tendência natural do capitalismo, mas o resultado de
medidas conscientemente adotadas por agentes econômicos e políticos. Segmentos
representativos do 1% do topo da pirâmide social pressionaram os políticos por
mudanças nas regras para beneficiar os proprietários de ativos à custa dos assalariados.
Estas mudanças globais de regras acabaram também por beneficiar grandes corporações
transnacionais em detrimento das empresas locais.
21 RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy, Chapter 4: Bretton Wood, GATT
and WTO: Trade in a Politicized World, p. 14
22 PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Trad. Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intríseca, 2014, p. 346 e 483.
23 MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade – os impostos e a justiça. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 176. Vale analisar na obra os projetos de lei apresentados por congressistas norte-americanos visando
maiores restrições à progressividade.
11
corporações e indivíduos mais ricos, em parte financiada pelo fim de deduções para a
classe média. 24 Tamanha foi a desoneração de Trump para os mais ricos que cerca de
400 milionários norte-americanos, entre eles George Soros, Warren Buffett, Steven
Rockfeller, Bem Cohen e Robert Crandall, assinaram um manifesto contra a medida por
exacerbar a desigualdade norte-americana.25
A explicação da pobreza pela preguiça, que historicamente tinha sido limitada aos
Estados Unidos, começou a se espalhar insidiosamente na Europa, onde anteriormente
predominava o fundamento da progressividade dos tributos na necessidade de
enfrentamento da injustiça social.26
A resposta não é precisa, mas já é possível se concluir que o livre mercado sem limites
se mostrou incapaz de diminuir a pobreza e combater as desigualdades, o que vem a
legitimar a ação redistributiva do Estado a favor dos mais necessitados, objetivando
25 OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. A insensata reforma tributária de Trump. Revista IHU, n. 531, 2018, in:
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/574981-a-insensata-reforma-tributaria-de-trump. Acesso em 03/01/2019.
26 ROSANVALLON, Pierre. La Sociedad de Iguales. Trad. Victor Goldstein. Buenos Aires: Manantial, 2014, p. 333-335.
27 COLLINS, Chuck. 99 To 1 – How Wealth Inequality Is Wreck The World And What We Can Do About It, p. 25.
12
28 SALAMA, Pierre. O Desafio das Desigualdades – América Latina/Ásia: Uma Comparação Econômica. Trad. Wilson F. Menezes.
São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 246.
29 KELTON, Stephanie. How We Think About the Deficit Is Mostly Wrong. New York Times, de 05/10/2017, disponível em
https://www.nytimes.com/2017/10/05/opinion/deficit-tax-cuts-trump.html. Acesso em 15/04/2019.
30 MOSLER, Warren. The Seven Deadly Innocent Frauds of Economic Policy. Valence, 2010.
31 Eis as sete fraudes apontadas por Mosler:
1. O governo deve arrecadar fundos através de impostos ou empréstimos para gastar. Em outras palavras, para o governo os gast os
são limitados por sua capacidade de tributar ou tomar empréstimos.
2. Com déficits do governo, estamos deixando nosso ônus da dívida para os nossos filhos.
3. Os déficits orçamentários do governo diminuem as economias.
4. O Seguro Social está quebrado.
5. O déficit comercial é um desequilíbrio insustentável que leva a afastar empregos e a produção.
6. Precisamos de poupança para fornecer os fundos para investimento.
7. É ruim que déficits mais altos hoje signifiquem maiores impostos amanhã.
13
A Teoria Monetária Moderna preconiza o governo que se endivida em sua própria moeda
não enfrenta limites financeiros ao seu financiamento e nem pode quebrar. De acordo com
tal teoria, os governos não necessitam de receitas tributárias ou de venda de títulos para
financiar seus gastos, pois são emissores de suas próprias moedas. Segundo esses autores,
os gastos do governo injetam reservas bancárias nas contas privadas e pressionam as taxas
de juros para baixo, enquanto o pagamento de tributos e a venda de títulos públicos
drenam essas reservas bancárias. Nesta equação, enquanto o gasto público e a compra de
títulos pelo governo criam moeda, a arrecadação tributária e a venda de títulos públicos a
destroem. Assim, os déficits públicos são superávits privados. Em consequência, os
déficits do tesouro não pressionam as taxas de juros para cima, uma vez que o
endividamento do governo, ao contrário do que se dá com os entes privados, não leva ao
aumento da sua fragilidade financeira.36
32 WRAY, L. Randall. Trabalho e Moeda Hoje – A Chave para o Pleno Emprego e a Estabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto,
2003. Entre nós: RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática. São Paulo: Portfolio
Penguin, 2020.
33 LERNER, Abba P, “Functional Finance and the Federal Debt ." Social Research, v. 10, n. 1, 1943.
34 L. Randall Wray, Modern Money Theory: A Primer on Macroeconomics for Sovereign Monetary Systems. 2 ed. Palgrave
Macmillan, 2015.
35 RESENDE, André Lara. Consenso e Contrassenso: déficit, dívida e previdência. Jornal Valor Econômico, de 08/03/2019,
disponível em https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2019/03/08/consenso-e-contrassenso-deficit-divida-e-previdencia.ghtml. Acesso
em 10/04/2019.
36 Para um resumo bem didático dos principais fundamentos da MMT, vide a Introdução da obra DALTO, Fabiano A. S., GERIONI,
Enzo M., OZZIMOLO, Julia A., DECCACHE, David e CONCEIÇÃO, Daniel N. Teoria Monetária Moderna – A chave para uma
economia a serviço das pessoas. Fortaleza: Nova Civilização, 2020, que vem autorizada pelo prefácio do sistematizador da teoria, L.
Randall Wray e de Flávia Dantas.
14
A teoria parte da tradição cartalista que define a moeda como uma unidade de conta
nacional criada pelo Estado na qual se registram débitos e créditos. São as chamadas
teorias creditícias da moeda. Essa visão rompe com a tradição metalista, predominante
nos estudos econômicos, de que a moeda seria um meio de troca, facilitador das
transações, que deu origem às teorias monetárias do crédito, e que a consideram, por
princípio, uma mercadoria nascida no mercado de uso generalizado, ou com lastro em
uma outra mercadoria, como o ouro.
Nos anos de 1990, quando restou evidenciado que os bancos centrais não controlavam a
quantidade de moeda, mas apenas a taxa básica de juros, com a qual exercem o controle
das pressões inflacionárias ou deflacionárias, ocorreu a superação da Teoria Quantitativa
da Moeda, tendo, no entanto, a ortodoxia monetarista sobrevivido com o regime de metas
de superávit fiscal, metas para a inflação e com a Regra de Taylor para a taxa básica de
juros a partir de uma suposta neutralidade, advinda do modelo microeconômico de
equilíbrio geral, deixando de ter qualquer pretensão de compreender o papel da moeda.
Assim, com esses novos instrumentos de atuação, lograram êxito as tentativas de
perpetuação da ideia de que o governo não tem como se financiar sem desrespeitar os
limites ditados pela base monetária. A inadequada transposição da lógica do metalismo
para o sistema fiduciário, como observa André Lara Resende 39, está por trás do grande
37 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade. Trad. Afonso Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: LTC, 2014, p. 86.
38 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p, 67 e 128
39 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p. 49.
15
fracasso das políticas monetárias do Brasil e de muitos outros países, como a Argentina,
na crise dos anos 2000.
No entanto, com a grande expansão monetária implementado pelo QE, tais argumentos
tornaram-se insustentáveis, gerando dúvidas quanto às possibilidades da estratégia de
emitir moeda não ser utilizada apenas para salvar o sistema financeiro, mas também,
como provoca André Lara Resende40, para atender às despesas igualmente justificadas
como investimento em saneamento, saúde, educação e segurança. Por outro lado, como
destacam Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo41, a ampliação desmensurada da
moeda promovida pelo QE frustrou os adeptos da Teoria Quantitativa da Moeda, por não
ter gerado inflação e tampouco engendrado expansão do crédito para a produção, mas sim
assegurado, como só o Estado enquanto gestor da moeda poderia fazer, o poder a ela
inerente, ao garantir a qualidade das carteiras dos bancos privados, salvaguardando os
seus patrimônios.
Como se depreende dessas lições, modernamente a moeda não é mais lastreada por
reservas de metal em poder do Estado, a partir do abandono do padrão-ouro pelo
presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971. Hoje, a moeda contemporânea é
uma unidade fiduciária, não havendo restrição financeira para o Estado à sua emissão,
sendo a ideia de que os gastos devem ser suportados exclusivamente pela arrecadação
tributária, segundo afirma André Lara Resende42, uma restrição institucional para evitar
gastos irresponsáveis, introduzida pelo conservadorismo vitoriano do início do século
XX.
Assim, com o fim do padrão-ouro, o Estado que emite a sua própria moeda fiduciária
ganha soberania monetária43, não estando sujeito a qualquer limitação operacional ou
restrição financeira à realização de despesas, uma vez que, ao gastar, sempre e
inevitavelmente, emite moeda, sendo a única limitação econômica a qual está submetido,
40 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p. 27.
41 BELLUZZO, Luiz Gonzaga e GALÍPOLO, Gabriel. A Escassez na Abundância Capitalista. São Paulo: Contracorrente, 2019, p.
181-183.
42 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p. 108 e 136.
43 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Econom, p. 43.
16
Contudo, existem condições prévias para que o governo goze plenamente de sua
soberania monetária derivada do seu monopólio em emitir moeda. Em primeiro lugar, é
preciso considerar que instituições estatais que não emitem sua própria moeda, como
Estados e Municípios, e nações integrantes de uniões monetárias, como a União Europeia,
não possuem soberania monetária. Ademais, como destaca Stephanie Kelton45, é
essencial que o emissor de moeda não estabeleça a sua conversibilidade com nenhum
bem, como o ouro, ou a moeda de outro país, como fez a Argentina até 2001, no tempo
da conversibilidade do peso argentino com o dólar, estabelecido pelo presidente Carlos
Menem. Também, é fundamental que este país não assuma dívidas em moeda estrangeira,
pois neste caso restará fragilizado o exercício da sua soberania monetária, como é o caso
da Venezuela. Sem soberania monetária, o governo não se livra das limitações financeiras
ao gasto público. De acordo com essas premissas, o Brasil é um país dotado de soberania
monetária, notadamente após o equacionamento da questão da dívida externa no governo
Lula.
Mas, afinal, em que consiste essa soberania monetária, pedra de toque da MMT?
Superada a tese metalista que sustenta a sua criação pelos mercados, encampada por
Locke, bem como pela ortodoxia que lhe é herdeira, sustentada por aqueles que querem
limitar o poder do Estado, a moeda, modernamente, se apresenta como uma instituição
pública, que viabiliza os mercados, que, no entanto, não a criam. Assim, o governo não
precisa adquirir moeda para gastar, mas ao fazê-lo, está criando moeda.46 Como disse
Warren Mosler47, somente após o governo gastar é que alguém tem moeda. Porém, tal
ideia é contraintuitiva, pois, em nossa esfera pessoal precisamos obter dinheiro para
depois gastar. Seguindo uma lógica formal, o pensamento convencional nos leva a crer
que o governo depende de duas fontes de financiamento: aumento de tributos ou
operações de crédito Logo, seria preciso que o governo precisasse obter dinheiro antes
44 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.28.
45 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Econom, p. 18.
46 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.56 e 86.
47 MOSLER, Warren. The Seven Deadly Innocent Frauds of Economic Policy, p. 21.
17
de gastar, como todos nós fomos ensinados, na equação de que tributação e empréstimos
vêm necessariamente antes da despesa. L. Randall Wray48, ilustra bem o pensamento
normalmente adotado:
Mas a MMT revela que tal raciocínio não procede, e por isso causa tanta perplexidade.49
De acordo com essas ideias, o papel dos impostos deixa de ser o financiamento do gasto
público, uma vez que o Estado já detém a moeda antes de gastar. Para Warren Mosler50,
as funções da tributação são: (i) criar a necessidade contínua de obter a moeda estatal para
adimplir as obrigações tributárias, portanto, uma necessidade permanente das pessoas
venderem bens, serviços e trabalho para obtê-la; (ii) reduzir o poder de compra das
pessoas, tornando a moeda mais rara e valiosa e deixando mais espaço para o governo
gastar sem causar inflação. Deste modo, segundo o autor, os impostos funcionam como
instrumento de regulação da economia e não meio para obter dinheiro para os governos
gastarem.
Como explica André Lara Resende51 ao defender o papel atribuído pela MMT aos
impostos:
“do ponto de vista macroeconômico, os impostos são cobrados não para
financiar os gastos do governo, mas para abrir espaço para esses dispêndios sem
que haja pressão excessiva sobre a capacidade produtiva. A distinção é mais
importante do que parece, pois só há necessidade de tributar quando não há
espaço na capacidade produtiva da economia para acomodar o gasto público.
Se a economia tem capacidade ociosa, não há por que tributar para financiar
gastos públicos. Essa é a conclusão lógica do cartalismo, que confirma a intuição
dos que sustentam que a política monetária pode evitar uma depressão, como o
QE de fato foi capaz de fazer, mas só a política fiscal pode levar à recuperação
da atividade econômica.”
48 WRAY, L. Randall. Trabalho e Moeda Hoje – A Chave para o Pleno Emprego e a Estabilidade, p 177.
49 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, p. 21
50 MOSLER, Warren. The Seven Deadly Innocent Frauds of Economic Policy, p. 25, 27 e 30.
51 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.86 e 87.
18
Tais ideias estão de acordo com a Teoria das Finanças Funcionais, de Abba Lerner52,
para quem os governos devem usar o seu poder fiscal por meio de três instrumentos:
gastos públicos, tributação e a emissão de títulos, da maneira que melhor lhe garanta a
manutenção do pleno emprego e a estabilidade dos preços. Segundo ele, o ideal é que o
governo reduza os impostos e aumente o gasto público, deixando esses recursos na
economia, a fim de estimular a demanda. Porém, em caso de excesso de crescimento,
que poderia gerar inflação, o autor recomendava a venda de títulos, o que forçaria o
aumento dos juros, a fim de enxugar o excesso de reservas. Para os adeptos da MMT,
não há independência das políticas fiscais e monetárias, pois se a demanda agregada
pressiona a inflação, deve-se adotar uma política fiscal contracionista, cortando os gastos
ou elevando os impostos, sendo as taxas de juros fixadas o objetivo de maximizar o
investimento e o crescimento, ou seja, o bem-estar da economia.53
Para ilustrar a mudança de visão do papel da moeda e dos impostos que a MMT promoveu
na ortodoxia neoliberal no plano político, vale lembrar a declaração da então primeira-
ministra do Reino Unido, Margareth Thatcher54, de que não existe dinheiro público, mas
apenas o dinheiro do contribuinte e, que se o Estado deseja gastar mais, só pode fazê-lo
por meio de empréstimos ou tributando mais. A MMT muda radicalmente esta visão, ao
afirmar que o próprio governo federal, e não o contribuinte, é quem financia todas as
despesas do governo.55
Muito embora não vejam o custeio dos gastos públicos como a função precípua do tributo,
a maioria dos autores da MMT defende a tributação progressiva dos mais ricos como
medida destinada à redistribuição de renda, do que é exemplo L. Randall Wray56. No
52 LERNER, Abba P, “Functional Finance and the Federal Debt ." Social Research, v. 10, n. 1, 1943.
53 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.88 e 89.
54 “The state has no source of money, other than the money people earn themselves. If the state wishes to spend more it can only do
so by borrowing your savings or by taxing you more. (...) We know that there is no such thing as public money. (...) There is only
taxpayer money.” Apud: KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy,
p. 19.
55KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, Introdução, vii.
56 WRAY, L. Randell. Response to Doug Henwood`s Trolling in Jacobin. New Economic Perspective, 25/02/2019, disponível em
http://neweconomicperspectives.org/2019/02/response-to-doug-henwoods-trolling-in-jacobin.html; .
19
Nos últimos anos, o debate sobre a MMT no ambiente econômico tem sido intenso. Em
relação aos autores libertários, a teoria desperta reações radicais que beiram ao
irracionalismo, como a de Robert Murphy59, seguidor da Escola Austríaca, que sustenta
que as políticas fiscais e monetárias por ela defendidas corroem a poupança privada, se
resumindo, na prática, em o governo utilizar seu poder monopolista sobre o dinheiro
para ditar e controlar a produção, obliterar o livre mercado, suprimir a iniciativa privada,
e empobrecer as pessoas. Para ele, isso é socialismo e o nome mais adequado para a MMT
seria Tirania do Monopólio Monetário.
Para os economistas mais vinculados ao mainstream, a MMT oferece uma resposta fácil,
para questões complexas, com a mera emissão de moeda para custear o gasto ilimitado,
abrindo caminho para o fantasma da hiperinflação. Nesse sentido, Larry Summers60 dá a
resposta clássica de que não há almoço grátis e que não se pode financiar o gasto público
com déficit sob pena de causar inflação.
No entanto, como destaca André Lara Resende 61, a inflação não é resultado do excesso
de moeda, mas do excesso de demanda agregada ou das expectativas de inflação, como
demonstrado no fenômeno do Quantitative Easing (QE), em que os bancos centrais dos
países desenvolvidos, depois da crise financeira de 2008, implementaram a maior
57 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, p. 23.
58 Sobre a importância da tributação progressiva dos mais ricos como mecanismo de combate às desigualdades sociais, e de defesa
da democracia e do desenvolvimento econômico, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Desigualdade e Tributação na Era da Austeridade
Seletiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
59 MURPHY, Robert. Texto atraído da matéria publicada por Misses Brasil: O tenebroso conto de fadas da Teoria Monetária Moderna
- e de André Lara Resende, em 13/03/2019. Disponível em https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=3003. Acesso em 27/06/2020.
60 SUMMERS, Larry. The left’s embrace of modern monetary theory is a recipe for disaster. The Washington Post, de 04/03/2019,
disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/the-lefts-embrace-of-modern-monetary-theory-is-a-recipe-for-
disaster/2019/03/04/6ad88eec-3ea4-11e9-9361-301ffb5bd5e6_story.html. Acesso em 20/05/2020.
61 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.72.
20
Por sua vez, Paul Krugman63 destacou a peculiaridade do momento em que a economia
dos EUA se encontravam, ele escreve em 2011, quando o crescimento do déficit público
não era relevante, pela circunstância de que a capacidade instalada das empresas estava
longe do limite, os juros próximos a zero e inexistia liquidez no mercado. Mas advertia
que essas condições não durariam para sempre e que, em outro cenário, de pleno emprego
e de rápida expansão econômica, poderíamos ter a volta da inflação. Porém, de lá para
cá, há que se reconhecer que houve a crescimento econômico e a inflação não voltou. Ao
contrário. Em texto mais recente, de 2019, Paul Krugman64 alerta que os adeptos da MMT,
como aliás da própria Teoria das Finanças Funcionais, de Abba Lerner, não consideraram
o trade off entre as políticas monetária e fiscal, ignorando as dificuldades políticas para
aumentar os tributos e reduzir os gastos quando a economia estiver superaquecida.
Segundo ele, a demora em obter tais medidas quando se fazem necessárias à
62 PALLEY, Thomas. Modern Money Theory (MMT) vs. Structural Keynesianism, disponível em:
https://thomaspalley.com/?p=1145. Acesso em 27/06/2020.
63KRUGMAN, Paul. Deficits and The Printing Press (Somewhat Wonkish). New York Times, 27/03/2011, disponível em:
https://krugman.blogs.nytimes.com/2011/03/25/deficits-and-the-printing-presssomewhat-wonkish/. Acesso em 27/06/2020.
64 KRUGMAN, Paul. What’s Wrong With Functional Finance? New York Times, 12/02/2019, disponível em
https://www.nytimes.com/2019/02/12/opinion/whats-wrong-with-functional-finance-wonkish.html. Acesso em 19/05/2020.
21
Por sua vez, destaca James K. Galbraith67 que a MMT não é um conjunto de propostas
econômicas, mas uma descrição de como uma economia moderna de crédito realmente
funciona, de como o dinheiro é criado e destruído pelos governos e bancos, de como as
operações monetárias se procedem, de como as taxas de juros são definidas e quais os
poderes que o Estado possui. Isso não significa, de acordo com o autor, que os déficits
não têm importância, pois a MMT reconhece que se a política fiscal for excessivamente
expansionista e não respeitar a limitação real dos recursos, pode haver inflação e a
depreciação do câmbio. A aposta da MMT na garantia do emprego, segundo ele, vai até
o limite da capacidade real da economia e o incentivo a esta expansão tem como teto o
nível necessário ao pleno emprego. Nem mais, nem menos.
Ao contrário do que muitos dos seus críticos sustentam, a MMT, ao destacar a inexistência
de limites financeiros ao gasto público para o governo que emite a sua própria moeda,
reconhece a existência de limites reais para a expansão monetária pelo gasto público na
65 KELTON, Stephanie. Modern Monetary Theory Is Not a Recipe for Doom. Bloomberg, em 21/09/2019, disponível em
https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2019-02-21/modern-monetary-theory-is-not-a-recipe-for-doom. Acesso em
26/06/2020.
66 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.62.
67 GALBRAITH, James K. Modern Monetary Realism. Project Syndicate, em 15/03/2019. Disponível em: https://www.project-
syndicate.org/commentary/modern-monetary-theory-opponents-misunderstanding-by-james-k--galbraith-2019-
03?barrier=accesspaylog. Acesso em 26/06/2020.
22
Por outro lado, está claro que o incremento do crédito público sustentado pela MMT diz
respeito aos empréstimos obtidos no mercado interno na moeda emitida pelo próprio
Estado. Já o empréstimo tomado em moeda não emitida pelo Estado pode gerar efeitos
danosos para a economia. De tal modo, o Estado que emite sua própria moeda não deve
financiar suas despesas por meio de empréstimos em moeda estrangeira, já que tem a sua
própria moeda à sua disposição.
68 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, p. 3.
23
69 Como, por exemplo, a didática obra GALVÃO, Gustavo. Finanças Funcionais e Teoria Monetária Moderna – MMT. Brasília,
2020, que, na esteira de Abba Lerner, sustenta que as despesas públicas devem ser custeadas pela emissão de moeda, e não pela
tributação que guardaria apenas razões regulatórias e redistributivas. Abba Lerner sustentava que o governo dever estar prepa rado
para gastar o que for necessário para sustentar o pleno emprego sem aumentar os impostos ou empréstimos.
70 WRAY, L. Randall e DANTAS, Flávia. Prefácio da obra DALTO, Fabiano A. S., GERIONI, Enzo M., OZZIMOLO, Julia A.,
DECCACHE, David e CONCEIÇÃO, Daniel N. Teoria Monetária Moderna – A chave para uma economia a serviço das pessoas.
Fortaleza: Nova Civilização, 2020 “Adeptos da ortodoxia, assim como muitos economistas heterodoxos, acham que os governos
podem escolher como financiar os gastos: usando impostos, empréstimos (vendendo títulos) ou "imprimindo dinheiro". Eles, dess a
forma, interpretam equivocadamente a MMT como se defendesse o argumento de que o Governo deve apenas "imprimir dinheiro".
Isso é uma deturpação completa da MMT, a qual sustenta que todos os gastos do Governo sempre levam a crédito de reservas
bancárias. Isso é verdade se o orçamento for “equilibrado”, “deficitário” ou “superavitário” ao longo de um período (trimestre ou
ano). Ao final do ano, a mudança líquida do portfólio garantirá uma identidade ex post: os gastos do Governo ao longo do ano serão
iguais a receitas fiscais, emissões de títulos e créditos na conta das reservas bancárias. Em outras palavras, a diferença entre gastos
e tributação será igual a títulos emitidos e reservas líquidas adicionadas. Isso ocorre devido aos procedimentos operacionais
adotados. Não tem nada a ver com uma suposta "escolha" de usar impostos, "pedir empréstimos" ou "imprimir dinheiro". Como a
MMT explica, todos esses itens serão usados normalmente ao longo de um ano, independentemente do resultado final do saldo
orçamentário.”
71 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p. 105.
72 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, p. 86.
24
Como até o crítico Thomas Palley74 reconhece, não se pode desprezar a importância
política do enfrentamento que a teoria faz aos falcões da austeridade, e que, se sua
aplicação prática a libertar dos seus excessos retóricos tão importantes nesse embate, a
MMT não se distinguirá de uma abordagem keynesiana padrão. Nesse sentido, a MMT
não deixa de ser uma versão do keynesianismo levado às últimas consequências. 75
Por outro lado, a principal crítica que os monetaristas fazem tanto aos economistas
keynesianos, quanto aos adeptos da MMT, quando estes dois grupos defendem as
políticas anticíclicas de aumentar o gasto público como medida de combate à recessão
é quase sempre a mesma, e tem origem na vetusta Ley de Say76, segundo a qual, o gasto
público não cria uma nova demanda, uma vez que apenas transfere o dinheiro de um
grupo para outro, já que o governo não gera riqueza, mas a obtém de empréstimos ou
tributos. Na verdade, de acordo com essa visão, não é possível haver falta de demanda
total que prejudique a economia e justifique o gasto público, pois se os consumidores
endividados resolvem evitar realizar determinadas despesas, esse dinheiro ficará com os
73 WRAY, L. Randall e DANTAS, Flávia. Prefácio da obra DALTO, Fabiano A. S., GERIONI, Enzo M., OZZIMOLO, Julia A.,
DECCACHE, David e CONCEIÇÃO, Daniel N. Teoria Monetária Moderna – A chave para uma economia a serviço das pessoas.
74 PALLEY, Thomas. Modern Money Theory (MMT) vs. Structural Keynesianism, disponível em:
https://thomaspalley.com/?p=1145. Acesso em 27/06/2020.
75 GALVÃO, Gustavo. Finanças Funcionais e Teoria Monetária Moderna – MMT. Brasília, 2020.
76 O nome se refere ao seu criador, o economista francês Jean-Baptiste Say, que, no Século XIX, defendia que a existência prévia de
oferta gerava o surgimento de uma demanda.
25
77 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, p. 86: “Observe que o endividamento do governo para gastar não altera a
quantidade de moeda em mãos privadas. O governo, com a mão direita, toma empréstimos de US$ 100 de alguns indivíduos e,
com a mão esquerda, repassa o dinheiro para outros, com que se efetuam as despesas. O dinheiro transita entre diferentes pessoas,
mas a quantidade total do dinheiro se mantem inalterada. ”
78 KRUGMAN, Paul. Um basta à Depressão Econômica – Propostas para uma recuperação plena e real da economia mundial.
Trad. Afonso Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 24-28.
79 STIGLITZ, Joseph, O Preço da Desigualdade. Trad. Dinis Pires. Lisboa: Bertrand, 2014, p. 315.
26
preciso equilibrar o orçamento fiscal seria um mito, cuja função é comparável a das
religiões primitivas: assustar as pessoas, a fim de que elas comportem de maneira
civilizada. Segundo o primeiro economista norte-americano laureado com o Prêmio
Nobel, uma vez desfeita a supertição, correríamos o risco de abalar um dos pilares
necessários a que se evite que os gastos públicos saiam de controle, devido à ausência
de disciplina e racionalidade na alocação de recursos. 80
Sobre o estado da confiança a que alude Kalecki, Paul Krugman82 destaca que a
intervenção do Estado na criação de empregos é vista com relutância pelo mercado, uma
vez que, quando inexistente a atuação estatal, o nível de empregos depende, em grande
parte, do chamado estado de confiança do mercado. Se esse se deteriora, os
investimentos privados declinam, resultando em queda da atividade econômica e do
emprego, conferindo aos investidores um poderoso controle indireto sobre as políticas
públicas. Assim, de acordo com essa lógica, tudo o que puder abalar o estado de
confiança deve ser evitado a fim de afastar o risco de crise econômica. Porém, se o
governo aumenta o emprego por meio dos seus gastos, esse potente dispositivo de
controle perde a eficácia. Por isso, os déficits orçamentários necessários para executar
intervenções governamentais devem ser considerados perigosos: “A função social da
doutrina da ‘finança saudável’ é fazer o nível de emprego depender do estado de
confiança. ” Tais sentimentos geram um ambiente de keynesfobia, na expressão de
80 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.107.
81 KALECKI, Michal. “Political Aspects of Full Employment.” Political Quarterly, vol. 14, p. 322 – 331, 1943.
82 KRUGMAN, Paul. Um basta à Depressão Econômica – Propostas para uma recuperação plena e real da economia mundial, p.
84-88.
27
Krugman, para quem, “a influência da riqueza não teria ido tão longe se não tivesse
sido reforçada por uma espécie de sociologia acadêmica galopante por meio da qual
noções absurdas se converteram em dogma na análise das finanças e da
macroeconomia. ”
Sobre o medo do dirigismo estatal na definição dos investimentos a que alude Kalecki,
há que se considerar que, se, em uma economia de pleno emprego, os investimentos
públicos concorrem com os investimentos privados pelo espaço possível sem que se
acionem as imobilizadoras sirenes antinflacionárias, o mercado finaceiro defende o seu
espaço de atuação, preferindo que a sua poupança se tranforme em dívidas para pessoas
e empresas do que estas tenham renda própria, alavancada por investimentos públicos e
transferências diretas. Deste modo, com a população e com as empresas desprovidas de
liquidez, esperam aumentar os seus lucros emprestando dinheiro a todos.
Por fim, o terceiro elemento destacado por Kalecki deriva do anseio de evitar os efeitos
sociais e políticos do empoderamento da classe trabalhadora decorrente do seu aumento
de renda e do seu poder de barganha em razão desses investimentos públicos,
notadamente das transferências diretas. Com isso, os trabalhadores tenderão a não se
sujeitar a qualquer salário que lhes seja oferecido pelos empregadores. Em oposição, se
os trabalhadores forem destinatários de transferências públicas, os empregadores seriam
obrigados a cobrir as ofertas advindas do Estado, aumentando o valor dos salários. Por
outro lado, com a introdução de transferências diretas, como as políticas de renda
mínima universal83, o trabalhador poderá desenvolver outras potencialidades
existenciais e atividades de maior interesse para a sociedade84.
Assim, essa aversão à atuação do governo em direção ao pleno emprego por meio da
política fiscal associada aos gastos públicos não se traduz apenas em miopia ideológica,
mas na defesa dos interesse do setor financeiro na distribição de riquezas na sociedade.
83 Sobre renda mínima universal, vide: CARVALHO, Laura. Curto-Circuito, p. 77; SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Renda de
Cidadania: A Saída é pela Porta. São Paulo: Cortez/Fundação Perseu Abramo, 2002.
84 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Econom, p. 62-63.
28
Um outro mito, que deriva do primeiro, relativo à confiança dos investidores, é o de que
o orçamento do Estado é como um orçamento familiar, a partir da crença de que cada
família, mais cedo ou mais tarde, tem que viver dentro das suas possibilidades financeiras,
em pensamento assim resumido por L. Randall Wray 85:
Por outro lado, aqueles que estão na parte inferior da distribuição de renda e riqueza
necessitam das prestações estatais, por meio de serviços públicos e transferências,
tornando possível a manutenção de uma classe média a partir das políticas
85 WRAY, L. Randall. Trabalho e Moeda Hoje – A Chave para o Pleno Emprego e a Estabilidade, p 177.
86 STIGLITZ, Joseph, O Preço da Desigualdade, p. 316.
87 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, p. 8.
88 KRUGMAN, Paul. Um basta à Depressão Econômica – Propostas para uma recuperação plena e real da economia mundial, p.
125.
29
Quando os serviços públicos são cortados por causa do discurso dos gastos perdulários,
que embala a adoção da política de austeridade seletiva89, não serão as pessoas no topo
da distribuição de renda que deverão apertar os cintos, mas sim aqueles que se
encontram na parte inferior, quase sempre recebedores de salários sem aumento real há
muito tempo. Estes são os cidadãos que dependem de serviços públicos e que vêm
tomando uma enorme quantidade de dívida. É por isso que a austeridade é antes de tudo
um problema político de distribuição e não um problema econômico da contabilidade.90
Como vimos, não há razões de ordem financeira que determinem que as despesas públicas
só possam ser custeadas pelos tributos, e que os gastos do governo devem ser limitados
89 Sobre o caráter seletivo da política de austeridade neoliberal, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Desigualdade e Tributação na Era
da Austeridade Seletiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
90 BLYTH, Mark. Austerity – the history of a dangerous idea. New York: Oxford University Press, 2013, p. 24.
91 WRAY, L. Randell. Response to Doug Henwood`s Trolling in Jacobin. New Economic Perspective, 25/02/2019, disponível em
http://neweconomicperspectives.org/2019/02/response-to-doug-henwoods-trolling-in-jacobin.html.
30
pela arrecadação dos impostos. Esse equilíbrio financeiro entre receita e despesa é uma
opção ideológica determinada pela ortodoxia neoliberal herdeira do vetusto metalismo
superado em meados do século XX. Se não há limitações financeiras ou operacionais, o
que existem são limitações autoimpostas pelo Estado a partir da positivação pelo
ordenamento jurídico da ideia do equilíbrio financeiro do orçamento.
Mas nem sempre foi assim. Essa tendência é mais uma das facetas da revolução
neoliberal no final dos anos de 1970. Até então, o direito financeiro, aqui e alhures, era
informado pela ideia da função econômica do orçamento, com base no pensamento
keynesiano. Entre nós, é ilustrativa a posição de Aliomar Baleeiro92, na sua clássica obra
Uma Introdução à Ciência das Finanças, cuja primeira edição dada de 1955:
92 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 19 ed. Atualização Hugo de Brito Machado Segundo. Rio de
Janeiro: Forense, 2015, pp. 540-543.
93 Note-se que a utilização da expressão finanças funcionais revela que Aliomar Baleeiro não foi influenciado apenas por Keynes,
mas também por Abba Lerner.
94 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças, p. 600.
31
No entanto, com a onda neoliberal introduzida no final dos anos de 1970, o paradigma do
direito financeiro modificou-se inteiramente, com a adesão dos financistas à ideia de
equilíbrio financeiro do orçamento, do que a obra de Ricardo Lobo Torres95, que sofreu
influência neste ponto do economista neoliberal James Buchanan 96, é bastante
paradigmática, com a ideia de que o equilíbrio orçamentário é princípio de legitimação
que permeia todos os princípios orçamentários específicos, e que, embora não previsto
expressamente na Constituição97, tem sua disciplina recomendada por vários dispositivos
constitucionais:
“O equilíbrio orçamentário é princípio constitucional de legitimação porque
penetra em todos os princípios específicos, do lado da receita e da despesa, quer
se vinculem à justiça, quer derivem da segurança jurídica. (...)
A CF não proclama explicitamente o princípio do equilíbrio orçamentário,
embora o recomende em diversos dispositivos. (...) Até porque estampar o
princípio claramente na Constituição seria uma demasia, pois o equilíbrio
orçamentário depende da conjuntura econômica e não de preceitos jurídicos.
Regras positivas de limitação de endividamento, de transparência orçamentária
e de controle de gastos, como algumas que constam da CF, é que podem conduzir
ao equilíbrio orçamentário. (...)
A CF fez a opção pelo princípio do equilíbrio econômico, sob a reserva do
possível. Aderiu, induvidosamente, à ideia de necessidade de equilíbrio
orçamentário, a se viabilizar pela legislação ordinária; mas não lhe pretendeu
atribuir eficácia vinculante, pois permitiu o endividamento, ainda que limitado.”
95 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, vol. V. O Orçamento na Constituição. 3ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 173, 174 e 182.
96 BUCHANAN, James M. The Limits of Liberty – Between Anarchy and Leviathan. Chicago: The University of Chicago Press,
1975.
97 Ao contrário da Constituição Federal de 1967, que estabelecia a disciplina expressa do princípio do equilíbrio orçamentário, em
seu artigo 66, nos seguintes termos: “O montante da despesa autorizada em cada exercício financeiro não poderá ser superior ao
total das receitas estimadas para o mesmo período.” Ainda mais eloquente, o §3º do mesmo dispositivo: “§ 3º - Se no curso do
exercício financeiro a execução orçamentária demonstrar a probabilidade de déficit superior a dez por cento do total da receita
estimada, o Poder Executivo deverá propor ao Poder Legislativo as medidas necessárias para restabelecer o equilíbrio
orçamentário.“ Tal dispositivo foi suprimido pela EC nº 01/69.
32
Porém, apesar de sua clara defesa do princípio do equilíbrio orçamentário, coerente com
o seu pensamento liberal, a honestidade intelectual que marcou a trajetória de Ricardo
Lodo Torres98 o fez reconhecer que não poderia a Constituição Federal fazer a opção
ideológica neoliberal, em detrimento das soluções keynesianas:
98 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, vol. V. O Orçamento na Constituição, pp.
177 e 178.
33
De outro lado, as leis de diretrizes orçamentárias têm fixado metas de superávit primário,
de modo a que, descontadas as despesas com as dívidas, o governo deva gastar menos do
que arrecada, o que constitui uma regra pró-cíclica por natureza, como destaca Laura
Carvalho100:
“Em particular, a meta de resultado primário—a diferença entre receitas e gastos
do governo excluindo o pagamento de juros sobre a dívida acumulada no
passado—é uma regra pró-cíclica em sua essência. Por estabelecer a cada ano
o quanto o governo deve arrecadar além do que gasta (ou gastar além do que
arrecada no caso de um déficit), o pé fiscal do famoso tripé macroeconômico
acaba forçando justamente esse tipo de atuação desestabilizadora. Isso porque
quando a economia vai mal, levando a uma queda da arrecadação de impostos,
o governo é obrigado a responder cortando gastos e aprofundando a crise. Já
quando a economia vai bem, como nos anos 2000, elevando essa arrecadação, o
governo ganha espaço para expandir gastos e torna a expansão acentuada. Além
disso, quando o orçamento é aprovado para o ano seguinte com base na meta de
resultado primário, utiliza-se uma projeção do que será o crescimento econômico
e, assim, de quanto será a arrecadação de impostos ao final do período. Se a
economia cresce menos do que o esperado, como em 2018 ou 2019, frustrando
as previsões de receitas, o governo tem de fazer contingenciamentos, bloqueando
99 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p 102-103.
100 CARVALHO, Laura. Curto-circuito, p. 21-22.
34
recursos aprovados pelo Congresso. Assim, esse tipo de regra prejudica o próprio
planejamento orçamentário e a execução de políticas pelos Ministérios.”
Em resumo, a meta de superávit fiscal reduz o gasto público nos momentos em que ele é
mais necessário e o libera quando o seu aumento não é recomenável.
Vale lembrar que o cumprimento das metas de superávit fiscal tem sido utilizado pela lei
orçamentária anual para condicionar a abertura de créditos suplementares pelo Poder
Executivo, o que o impede de pagar despesas previstas no orçamento quando a
arrecadação prevista não se confirmou. Neste caso, o direito financeiro brasileiro está
sendo utilizado não só para impedir a expansão do gasto destinada a enfrentar as recessões
econômicas, como para exacerbar os efeitos dessas, proibindo o pagamento de despesas
que já eram previstas no orçamento. Na rígida visão do equilíbrio orçamentário, tais
despesas já previstas não poderiam ser realizadas, obrigando o governo a contingenciá-
las, salvo que haja alteração legislativa da meta fiscal.
Em nosso país, a ortodoxia fiscal fez do direito financeiro não só instrumento para a
frustração dos direitos sociais e do desenvolvimento econômico, mais da própria
democracia, como se deu no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Foi
a abertura de créditos suplementares por decreto, antes da edição de lei que autorizasse
da modificação da meta fiscal, um dos dois pretextos utilizados pelo Congresso Nacional
para interromper o mandato presidencial, juntamente com o atraso do pagamento de
subvenções econômicas custeadas pelo Banco do Brasil, as chamadas pedaladas fiscais,
outra tese criada para condenar o adimplemento de direitos fundamentais em contexto de
crise econômica.101
Com impeachment, não se condenou apenas Dilma Rousseff, mas também as medidas
contracíclicas keynesianas, com o discurso de condenação ao déficit público. Mas essa
não é uma exclusividade nacional. Aliás, L. Randall Wray102 foi capaz de preconizar que
um dia ocorreria de um governo seria derrubado por este motivo:
101 Para um exame detalhado das razões do impeachment da presidente Dilma Rousseff sob a ótica do direito financeiro, vide:
RIBEIRO, Ricardo Lodi. “A ilegitimidade do impeachment da Presidente Dilma Rousseff à Luz do Direito Financeiro Brasileiro”,
in: Direito e Política em Tempos Sombrios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 1- 46, 2020.
102 WRAY, L. Randall. Trabalho e Moeda Hoje – A Chave para o Pleno Emprego e a Estabilidade, p 177.
35
“Essa gente reage ao déficit com horror! Seguramente déficits são um sinal de
imprudência fiscal e um caminho certo para a ruína. (...)
Eles acusam o governo de “gastador”, e, vamos supor, desencadeiam uma
campanha de “responsabilidade fiscal” e são capazes de derrubar o governo.”
Por fim, o ápice do controle dos gastos públicos, em nome da política de austeridade
neoliberal sob a égide do equilíbrio orçamentário, foi a aprovação da EC nº 95/16, que
congelou os gastos públicos. De acordo com emenda, as despesas realizadas em 2016,
atualizadas monetariamente pelo IPCA, constituiram teto para as despesas em 2017. E
assim sucessivamente pelos próximos vinte anos. Ao limitar a proposta apenas às receitas
primárias, deixando de fora o pagamento da dívida pública, se reserva para os credores
do Estado todo o crescimento econômico que o Brasil vier a conhecer nos próximos dois
decênios, constitucionalizando, a partir da proposta de um governo não eleito, uma
decisão que deveria ficar a cargo do legislador orçamentário a partir das prioridades
definidas pela sociedade, ano a ano.
Ou seja, o governo não eleito pelo povo e o Congresso que o colocou no poder,
estabeleceram as prioridades para todos os próximos governos escolhidos pelos eleitores:
apesar do aumento da população, das demandas sociais, do incremento das necessidades
de atendimento das políticas públicas, não será possível elevar despesas acima da
inflação. Todo o crescimento real da arrecadação verificado será canalizado para uma
única finalidade: o pagamento de dívida pública. Tal solução trágica não tem precedentes
na história das finanças públicas, seja no Brasil, seja no exterior.
Para os fins deste trabalho, o mais importante é que a fixação do teto dos gastos por
emenda constitucional não se relaciona com qualquer apreciação pelo governo do cenário
econômico, constituindo medida acíclica, como adverte Laura Carvalho103:
“Se a meta de resultado primário é pró-cíclica, a regra do teto de gastos
aprovado na emenda constitucional 95 é essencialmente acíclica. Em outras
palavras, a meta não tem qualquer relação com o estado da economia. Cada
Poder tem exatamente o mesmo montante para gastar todos os anos, ajustando-
se esse valor apenas pela inflação do ano anterior. Se a inflação não muda de um
ano para o outro, isso significa que o governo pode arrecadar mais ou arrecadar
menos e o teto fica exatamente no mesmo lugar. Alterações na taxa de inflação
até afetam o teto em termos reais, mas estão longe de torná-lo uma regra
anticíclica.”
Com a pandemia, boa parte dessas restrições que o direito financeiro brasileiro estabelece
com base no princípio do equilíbrio orçamentário e em homenagem à ortodoxia
monetarista, restou temporariamente afastada pela chamada PEC do Orçamento de
Guerra, a EC nº 106/2020, com vigência até o final do exercício financeiro em que a
104 Notícias do STF, de 10/10/2016, a respeito do julgamento do Mandado de Segurança nº 34448, em que PT e PCdoB questionavam
a PEC nº 241/16, que deu origem à EC nº 95/16.
105 GALVÃO, Gustavo. Finanças Funcionais e Teoria Monetária Moderna – MMT: “Os termos “limite fiscal”, “responsabilidade
fiscal”, “austeridade fiscal”, “espaço fiscal” e “problema fiscal” não têm sentido claro. Para fazerem algum sentido, eles precisam
tratar de problemas em legislações associadas à contabilidade pública e para restringir juridicamente a liberdade democrática de
gasto público. Reiteremos: em termos estritamente econômicos, eles não têm sentido. A expressão “política fiscal” é válida po rque é
só um conceito sem conteúdo valorativo. Refere-se a políticas que envolvem gastos públicos ou tributação, simplesmente. As
legislações que impõem restrições contábeis à política fiscal são feitas para atender interesses do setor financeiro e de outros grupos
que desejam limitar a atuação da soberania democrática na gestão da política de gastos públicos e de tributação. Talvez o Brasil
seja a evidência global mais óbvia dessa proposição.”
106 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy. New York: Public
Affairs, 2020.
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Pelas razões expostas neste trabalho, se foi possível fazê-lo durante a pandemia, é possível
transformar essas regras mais flexíveis em normas permanentes, em nome do
desenvolvimento econômico e social e do adimplemento dos direitos fundamentais.
6) Conclusão
Com a pandemia, que demonstrou a todos a importância dos serviços públicos, da ciência
e das universidades, bem como da coesão social necessária à superação da Covid-19,
volta-se a se destacar o papel do Estado Social e das políticas públicas. Esse cenário abre-
se ao reflorescimento das ideias keynesianas que já haviam sido ressuscitadas na crise
econômica mundial de 2008, bem como o desenvolvimento da teoria monetária moderna,
que fazem agudos questionamentos à ortodoxia neoliberal, em especial, à ideia de que os
gastos públicos devem ser limitados à arrecadação tributária.
compreensão das relações jurídicas reguladas pelo direito financeiro, a fim de que os
mecanismos que a política democrática naturalmente dispõe para promover o
desenvolvimento econômico e social, bem como a inclusão de todos no mercado de
trabalho, não sem limitados por normas e concepções ideológicas produzidas a partir de
mitos introduzidos para atender aos interesses de poucos.
Deste modo, poderão ser abertos caminhos para que a sociedade brasileira, abandone os
parâmetros burocráticos e, por decisões democráticas, possa decidir o seu destino, com a
fixação de um orçamento funcional, que juntamente com a imposição de uma tributação
progressiva destinada a promover a redistribuição de riquezas e rendas, seja viabilizada a
construção de uma sociedade mais justa e solidária para todos, sem que gerações inteiras
percam suas potencialidades no desemprego, na miséria e na falta de condições para o
desenvolvimento de todas as suas potencialidades emancipatórias de sua condição
humana.
Afinal, se foi possível promover a expansão monetária para socorrer bancos, para atender
as despesas da pandemia, também é possível fazê-lo para efetivar direitos fundamentais
há muito sonegados à maioria das pessoas.