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A Pandemia A Volta de Keynes e A MMT A C

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A PANDEMIA, A VOLTA DE KEYNES E A MMT:

A CRISE DO PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO ORÇAMENTÁRIO

Ricardo Lodi Ribeiro


Reitor da UERJ. Professor Associado de Direito Financeiro da UERJ.
Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário. Advogado.

Resumo:

Com a pandemia da Covid-19, e a consequente necessidade de


prestações sociais positivas e de coesão social para vencer o vírus, o
Estado, uma vez mais, revela a importância do seu papel. Com o
fenômeno, recuperam prestígio as ideias keynesianas, e ganha destaque
a teoria monetária moderna, que intensificam as críticas à ortodoxia
neoliberal e à limitação das despesas públicas pela arrecadação
tributária, atingida em cheio pelo isolamento social. Com o crescimento
do déficit público decorrente da queda da arrecadação e do aumento de
despesas no combate ao vírus, a expansão da base monetária e a venda
de títulos ganham espaço, levando ao questionamento do princípio do
equilíbrio orçamentário, que vinha sendo idealizado como verdade
científica pairando acima das ideologias. Divorciado da realidade atual,
e identificado o seu compromisso ideológico com o neoliberalismo sob
fogo cerrado, o princípio do equilíbrio do orçamento entra em crise, que
promete sobreviver ao esperado fim da pandemia, com a construção de
um novo paradigma para as finanças públicas, voltadas às políticas de
pleno emprego e de desenvolvimento econômico e social.

1) Introdução

Com a dimensão mundial que a ação do novo coronavírus sobre a humanidade tomou, os
Estados Nacionais, uns mais e outros menos, adotam medidas de proteção à população
que destacam o papel do Estado na assistência à saúde, no avanço da pesquisa científica
e na adoção de medias anticíclicas para atenuar os impactos negativos gerados na
atividade econômica, nos empregos e na renda das pessoas pelas necessárias medidas de
isolamento social impostas pelos governos para evitar o alastramento da Covid-19.
2

Neste contexto de luta contra o vírus, resta evidenciado para a população que, com a
pandemia, a única saída para vencer o inimigo invisível e letal é o abandono do
individualismo exacerbado, que fundamenta o neoliberalismo, pela adoção de práticas de
coesão social e de solidariedade. Afinal, ninguém se salvará sozinho. E este talvez seja
o principal abalo que a pandemia provoca na ortodoxia neoliberal que, como sustenta
Wendy Brown1, se alicerça, na esteira do pensamento de Hayek2 na fragilização dos
conceitos de sociedade e de política, hoje reconhecidas a olho nu, até pelo cidadão mais
distraído, como peças essenciais na superação da pandemia.

Diante do vírus, a ilusão de construção de um éden individual em meio ao caos social


revela-se desfeita, descortinando que o desmonte dos serviços públicos e a exacerbação
da desigualdade não são problemas que se relacionam apenas com os mais pobres.
Afinal, a despeito destes serem as maiores vítimas, é sabido que a epidemia será
superada em nosso país, para ricos ou pobres, pelo sistema único de saúde e pelos
esforços das universidades públicas e centros de pesquisa financiados por recursos
estatais.

Com isso, em contraposição às tentativas já articuladas, a exemplo do que ocorreu após a Grande
Depressão de 2008, de impor mais austeridade após a pandemia para pagar os gastos incorridos
em seu combate, se espera que haja o despertar de consciências para a importância do papel do
Estado Social e das suas prestações positivas para a população, que foram amesquinhadas pela
revolução neoliberal. Como diz Boaventura Sousa Santos3, vivemos, nos últimos 40 anos de
predomínio do neoliberalismo, em uma quarentena política, cultural e ideológica de um
capitalismo fechado em si mesmo. O fortalecimento do papel do Estado em razão da pandemia,
não passou desapercebido a Slavoj Zizek4, a despeito do exagero retórico de associar, ainda que
sob outra roupagem, o fenômeno à volta do comunismo. De qualquer forma, todo esse panorama
coloca em xeque o discurso hegemônico que legitima o esvaziamento do Welfare State e
dos direitos sociais.

1 BROWN, Wendy. Nas Ruínas do Neoliberalismo – a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Trad. Mario Antunes
Marino e Eduardo Altheman Santos. São Paulo: Politeia, 2020, Capítulos 1 e 2.
2 HAYEK, Friedrich. O Caminho da Servidão. Trad. Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. São Paulo:
Instituto Ludwig Von Mises, 2010.
3 SANTOS, Boaventura Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Almedina, 2020, p. 32.
4 ZIZEK, Slavoj. Pandemia: Covid-19 e a Reinvenção do Comunismo. Trad. Artur Renzo. São Paulo, Boitempo, 2020, p. 104.
3

Como até os economistas neoliberais já reconhecem, as medidas para atenuar a atual crise
econômica decorrente da pandemia não passam pela exposição perigosa de pessoas às
suas rotinas normais de trabalho. Mas no forte aporte estatal de liquidez na sociedade.
Como a maioria dos países, em maior ou menor grau, já estão fazendo, é hora de injetar,
com urgência, um enorme volume de recursos nos serviços de saúde, nas pessoas
vulneráveis socialmente e nas pequenas e médias empresas com a condição de manterem
os postos de trabalho para os trabalhadores que devem permanecer em casa.

Ser de direita ou de esquerda não deveria influenciar a decisão do Estado sobre a


necessidade do isolamento social e do amplo gasto público neste momento. Essas
medidas são exigidas pela sobrevivência do povo e da própria economia. Não é à toa que,
mesmo os governos mais conservadores ao redor do mundo, estão implementando
medidas keynesianas dirigidas à manutenção da atividade econômica a partir de
transferências diretas aos mais pobres.

De acordo com Laura Carvalho 5, até abril de 2020, o Brasil gastou 5,7% do PIB em
medidas de combate à crise econômica e sanitária decorrente da pandemia, o que segundo
ela, certamente será insuficiente para evitar a maior queda histórica da renda e a elevação
brutal do desemprego e da informalidade. Nos EUA, segundo Stephanie Kelton 6, o
Congresso destinou mais de US$ 1 trilhão, o que equivale a quase 5% do PIB, para
combater a mesma crise, estimando que tais valores precisam ser aumentados em pelo
menos o triplo nos próximos meses. Estes gastos públicos, financiados por recursos que o
discurso oficial dizia serem inexistentes, lançam enormes dúvidas em relação aos
argumentos de austeridade hoje hegemônicos. E geram o temor, tanto aqui quanto lá,
como destacado pelas duas autoras, de que medidas de austeridade sejam adotadas no
pós-pandemia sob a justificativa de pagar a conta da crise, a partir de argumentos
improcedentes, como se verá ao longo do texto.

5 CARVALHO, Laura. Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia, 2020, p. 29.
6 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy. New York: Public
Affairs, 2020, p. 13.
4

Quem vai pagar a conta depois, ou mesmo se há verdadeiramente uma conta a ser paga,
estas sim, são questões ideológicas, baseadas nas discussões sobre a justiça fiscal e
finanças públicas, que já demandam, há muito tempo, uma reflexão profunda em um país
tão desigual como o nosso. E vamos ter que enfrentar esse tema quando a vida voltar ao
normal, pois outro mundo deverá surgir depois que a tempestade passar.

Essa discussão central no campo das finanças públicas passa pelo debate do nosso sistema
institucional, em que o Governo Federal tem a exclusividade dos mecanismos necessários
ao enfrentamento da crise, sejam eles tributários, monetários ou creditícios. Na esfera
tributária, vale lembrar que a competência federal é bem mais ampla, indo muito além
das matrizes sobre o consumo, a que Estados e Municípios estão, na prática, restritos,
bastante abaladas pelo isolamento social. Engloba também a renda e as grandes fortunas.
Além disso, a União pode ainda emitir títulos públicos e aumentar a base monetária do
país, sem o risco da elevação da inflação, em razão da retração da demanda agregada pela
quase paralisação das atividades econômicas no contexto de isolamento social.

Com a queda da arrecadação tributária e a redução do nível da atividade econômica, o


aumento de gastos necessário ao enfrentamento da pandemia e a compensação da
frustração dessa arrecadação não recomendam, por inocuidade, o aumento da carga
tributária neste momento, o que poderia até agravar a recessão, por retirar ainda mais
recursos da sociedade. No entanto, não há obstáculos exógenos a que a União, se
superasse às amarras ideológicas do ministro da economia e sua equipe de Chicago Boys,
promovesse a emissão de moeda, expandindo a base monetária nacional, de modo a
injetar recursos na economia, conferindo o adequado atendimento às demandas do
sistema único de saúde, dos Estados e Municípios que estão na linha de frente no combate
à pandemia, da população mais vulnerável com a ampliação no tempo, na base e no
montante do auxílio emergencial, em direção à criação de um programa de renda mínima
universal, e às pequenas e médias empresas que assegurassem emprego e renda para os
seus trabalhadores. Tudo o que foi feito nesse sentido até agora, muito mais por pressão
da sociedade e do Congresso Nacional do que por iniciativa do Poder Executivo, é
absolutamente insuficiente diante do tamanho dos desafios enfrentados.
5

Parece ser quase consenso hoje que, em casos de grave recessão, epidemias e guerras, os
tributos deixam de ser a principal fonte de financiamento das despesas públicas, sendo
substituídos por mecanismos anticíclicos como a expansão da base monetária e o aumento
da dívida estatal pela emissão de títulos públicos.7

No entanto, ainda são encontrados em nosso país, bastante resistência à adoção dessas
medidas pela ortodoxia liberal, tão bem representada pelo atual ministro da economia,
Paulo Guedes, que aponta limites econômicos, em geral baseados no crescimento da
inflação, para a adoção dessas medidas.

A ortodoxia monetarista logrou êxito em influenciar a introdução de limites autoimpostos


pelos próprios governos, a partir da ideologia neoliberal muitas vezes positivada em
textos legais, como ocorre nos EUA e no Brasil. Por lá, durante o governo de Barack
Obama, em 2013, os republicanos, em maioria no Congresso, chegaram a paralisar a
administração pública por negarem aumentar o limite autoimposto de endividamento 8.
Entre nós, as metas de superávit fiscal previstas pelas leis de diretrizes orçamentárias
aprovadas nos últimos anos, e as restrições às despesas públicas previstas na Lei de
Responsabilidade Fiscal e na EC nº 95/16, bem como o mito de existir na Constituição
um princípio do equilíbrio orçamentário, constituem as principais peças da legiferação
dessa articulação ideológica que constituem verdadeiros obstáculos autoimpostos às
políticas contracíclicas9.

O objetivo deste trabalho é mostrar que essas ideias não correspondem a uma necessidade
econômica ou financeira, e nem tampouco uma decisão que decorra da Constituição
Federal, mas de uma posição ideológica não admitida, escondida sob o manto de

7 Sobre a possibilidade de custeio das despesas com a pandemia pelo aumento da base monetária e a emissão de títulos públicos, vide:
CARVALHO, Laura. Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado; PIMENTEL, Kaio; MARTINS, Norberto M. Financiamento do
gasto público, controle da(s) taxa (s) de juros e a dívida pública. GESP IE/UFRJ, 2020, disponível em:
https://www.ie.ufrj.br/images/IE/home/noticias/Financiamentodogastopublico.pdf. Acesso em 01/06/2020; PALLUDETO, Alex
Wilhans Antonio; DEOS, Simone. Mitos e Verdades sobre o orçamento do governo federal. Nexo Jornal: 2020, disponível em
https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/Mitos-e-verdades-sobre-o-or%C3%A7amento-do-governo-federal. Acesso em
01/06/2020; DWECK, Esther. Austeridade é a maior aliada do coronavírus no Brasil. Jacobin Brasil, 2020. Disponível em:
https://jacobin.com.br/2020/03/austeridade-e-a-maior-aliada-do-coronavirus-no-brasil/. Acesso em 01/06/2020.
8 Jornal O Globo, de 12/10/2003, disponível em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2013/10/obama-pressiona-republicanos-a-
elevar-teto-da-divida-e-encerrar-paralisacao.html. Acesso em 29/06/2020.
9 CARVALHO, Laura. Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado, p. 21-22.
6

neutralidade científica, que vem acarretando o aumento da concentração de renda no


nosso país e no mundo e a sabotagem dos projetos de desenvolvimento econômico e
social, após o triunfo da revolução neoliberal de Thatcher e Reagan.

Com a pandemia, surge o espaço para um olhar crítico sobre o modelo vigente e para que
outros caminhos possam ser trilhados.

2) A Volta de Keynes com a Crise das Hipotecas Sub Prime e com a Covid-19

Neste contexto de atribulação financeira, ganham mais força os questionamentos à


ortodoxia neoliberal que vinham se intensificando desde a crise da Grande Depressão de
2008, provocada pelo estouro da bolha imobiliária norte-americana, e com a expansão,
que se seguiu, da base monetária dos EUA, Canadá, Japão, Reino Unido e dos países da
Zona do Euro para salvar o sistema bancário. Naquela ocasião, tivemos uma ampliação
da base monetária por meio da aquisição de títulos, que financeiramente equivale à
emissão de moeda, de quase 10 trilhões de dólares10 dos bancos privados pelo tesouro
nacional, a fim de evitar a quebradeira generalizada. O chamado Quantitative Easing
(QE), ou afrouxamento quantitativo, ampliou a base monetária desses países, em até 15
vezes11, não só impedindo a falência geral, mas abalando a crença de que o mercado é
capaz de resolver os problemas do capitalismo e de que a emissão de moeda causa
inflação. Isso não aconteceu em nenhum desses países, que até hoje lutam contra a
deflação.

Na crise atual derivada da pandemia, a relevância do papel do Estado se descortina não


só por sua função protetora exercida por meio do sistema de saúde pública e das pesquisas
cientificas desenvolvidas pelas universidades e institutos públicos, mas também pela sua

10 Veja o total por países em: https://www.swissinfo.ch/por/governos-gastam-quase-us--10-trilh%C3%B5es-com-a-crise/846172.


Acesso em 06/01/2019.
11 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática. São Paulo: Portfolio Penguin, 2020,
p. 53.
7

função estabilizadora da economia,12 trazendo de volta a atualidade das teorias


keynesianas.

As teorias keynesianas sobre como evitar recessões e minimizar as turbulências dos


ciclos econômicos dominaram o pensamento do pós-guerra de uma forma que muito
contribuiu para a estabilidade de toda uma geração. O economista britânico John
Maynard Keynes, nascido em 1883, foi o grande pensador econômico do século XX.
Ninguém teve mais influência na economia política nesse período. Uma de suas ideias
centrais consistia na possibilidade do uso da dívida pública em benefício do pleno
emprego e de medidas que atenuassem os efeito recessivos dos ciclos econômicos. O
sucesso do longo boom do pós-guerra significou que, durante décadas, o keynesianismo
manteve o seu domínio sobre os formuladores de políticas globais, ficando as vozes
mais radicais do liberalismo à margem do pensamento econômico e político. Até o início
dos anos 1970, a política econômica do pós-guerra internacional teve, pelos padrões
históricos, um grande sucesso. O crescimento mundial entre 1950 e 1973, um período
chamado de idade de ouro por historiadores, foi o dobro da média dos anos entre
guerras.13

As ideias contidas em Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, obra principal de


Keynes14 publicada originalmente em 1936, podem ser expressas em quatro pontos, de
acordo com Paul Krugman15:

“. As economias podem sofrer, e muitas vezes sofrem, de uma deficiência


geral de demanda, que leva ao desemprego involuntário.

. A tendência automática da economia para corrigir as carências de

12 Na obra Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado, Laura Carvalho destaca que com a pandemia, a volta do papel do Estado se
mostra decisiva em cinco aspectos: Estado estabilizador, Estado investidor, Estado protetor, Estado prestador de serviços e Estado
empreendedor (CARVALHO, Laura. Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado).
13 LANSLEY, Stewart. The Cost of Inequality - Why Economic Equality is Essential for Recovery. London: Gibson Square, 2012,
Chapter 2, p.1-8.
14 KEYNES, John Maynard. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Trad. Manuel Resende. São Paulo: Saraiva, 2012.
15 KRUGMAN, Paul. “Introdução” da edição brasileira de: KEYNES, John Maynard. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da
Moeda, p. X.
8

demanda, se existe, opera lenta e dolorosamente.

. As políticas adotadas pelo governo para aumentar a demanda, pelo


contrário, podem reduzir o desemprego rapidamente.

. Por vezes, expandir a oferta de dinheiro não será suficiente para convencer
o setor privado a gastar mais, e as despesas públicas terão de preencher a
lacuna.”

De acordo com David Harley16, o traço em comum dos modelos keynesianos do New Deal,
implementado nos EUA e do Welfare State, adotado em vários países europeus, era a aceitação
da ideia de que o Estado deve buscar o pleno emprego, o crescimento econômico e o bem-estar
dos seus cidadãos. E de que o poder estatal deveria ser harmonizado com a atuação do mercado
e, se necessário, nele intervindo ou a ele substituindo, para alcançar esses fins, a partir da adoção
de políticas fiscais e monetárias para suavizar os ciclos de negócios e assegurar o pleno emprego.
Era selado o compromisso de classe entre capital e trabalho como garantia da paz e da
tranquilidade domésticas. Mesmo nos Estados Unidos, onde o Estado Social não chegou tão
longe quanto na Europa17, havia um consenso político, incluindo os republicanos18, a respeito
das conquistas sociais do New Deal.

As três primeiras décadas pós-1945 foram governadas pelo acordo de Bretton Woods,
em homenagem ao homônimo resort em New Hampshire, onde os políticos e
financiastas americanos, britânicos e de outras nações aliadas se reuniram em 1944 para
projetar o sistema econômico pós-Segunda Guerra Mundial. O regime de Bretton
Woods orientou os governos a se concentrarem nas necessidades sociais e de emprego
nacionais, enquanto aguardavam que o comércio global se recuperasse e prosperasse. O
sucesso do sistema se deveu a uma combinação de medidas, como a remoção das
restrições ao fluxo comercial e a liberdade para que os governos executassem suas

16 HARVEY, David. O Neoliberalismo – história e implicações. Trad. Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. 5. ed. São Paulo:
Loyola, 2014, p. 20.
17 Para Paul Krugman, o Estado do Bem-Estar Social nos EUA foi forte na área de previdência social e fraco na área de saúde
(KRUGMAN, Paul. A Consciência de Um Liberal. Trad. Alexandre de Oliveira Kappaun. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 137.):
“No âmbito da previdência social, os Estados Unidos criaram uma garantia pública relativamente generosa para a renda na
aposentadoria, comparável à de outros países ricos ou até mesmo melhor. Em outras questões, todavia, o Estado do Bem -Estar
norte-americano era muito menos abrangente do que o de outros países. Particularmente, os norte-americanos nunca tiveram
assegurada a proteção à saúde.”
18 Sobre a aproximação dos republicanos e democratas norte-americanos nos anos 50, vide: KRUGMAN, Paul. A Consciência de Um
Liberal, p. 93-94.
9

próprias políticas econômicas independentes, erguendo a sua própria versão de Estado


Social. Os países em desenvolvimento, por sua vez, foram estimulados a prosseguir as
suas estratégias de crescimento particulares com restrição externa limitada. Os fluxos
de capitais internacionais permaneceram fortemente limitados. O compromisso Bretton
Woods foi um sucesso estrondoso: os países industrializados se recuperam e tornaram-
se prósperos enquanto a maioria das nações em desenvolvimento experimentou níveis
sem precedentes de crescimento econômico. A economia mundial floresceu como nunca
antes. 19

Porém, o regime monetário Bretton Woods deu sinais de esgotamento quando o capital
passou a ser dotado de maior mobilidade internacional, o que foi agravado pelos choques
do petróleo da década de 1970, atingindo duramente as economias avançadas. A crise
econômica, que acabou por atingir o Estado Social, abriu caminho para a ascensão do
neoliberalismo, com os triunfos da primeira-ministra Margaret Thatcher no Reino
Unido, em 1979, e do presidente Ronald Reagan nos EUA, em 1980, o que levou à
substituição, nas décadas de 1980 e 1990, do modelo de Bretton Woods por uma agenda
ambiciosa da liberalização econômica, mobilidade de capitais e profunda integração em
um esforço para estabelecer o que Dani Rodrik20 chamou de hiperglobalização. Os
acordos comerciais foram estendidos além de seu foco tradicional e se sobrepuseram
sobre as políticas internas; os controles sobre os mercados de capitais internacionais
foram removidos; e as nações em desenvolvimento ficaram sob forte pressão para abrir
seus mercados para o comércio exterior e investimento estrangeiro. Deste modo, a
globalização econômica tornou-se um fim em si mesma.

Nesse período houve uma importante transformação ideológica. Os anos 1980 foram a
década da revolução neoliberal capitaneada por Thatcher e Reagan. A ideia de economia
de mercado livre sem qualquer limite estava em ascensão, produzindo o que tem sido
chamado de Consenso de Washington, de fundamentalismo de mercado, ou de
neoliberalismo. Seja qual for a denominação, este sistema de crença combinou o

19 RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy. New York: Norton, 2011,
Introdution: Recasting Globalization’s Narrative, p. 9-10.
20 RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy, Introdution: Recasting
Globalization’s Narrative, p. 9-10.
10

excesso de otimismo sobre o que os mercados poderiam conseguir por conta própria
com uma visão muito sombria da capacidade do Estado de agir de forma socialmente
desejável. De acordo com essa cosmovisão, os governos ficaram no caminho dos
mercados em vez de serem considerados indispensáveis ao seu funcionamento, e,
consequentemente, tiveram que ter o seu tamanho reduzido. Tudo o que era considerado
um obstáculo ao livre comércio foi desenhado como uma abominação a ser removida.21

Embora sempre tenha havido desigualdade econômica no mundo e nos EUA, mesmo
durante as chamadas décadas prosperidade partilhada, após a Segunda Guerra
Mundial, de 1947 a 1977, é forçoso reconhecer que, desde o final da década de 1970,
inaugurou-se um período de extremo agravamento do quadro a partir de uma
reordenação vertiginosa da sociedade. Esta redistribuição radical da riqueza para cima
não foi apenas fruto de uma tendência natural do capitalismo, mas o resultado de
medidas conscientemente adotadas por agentes econômicos e políticos. Segmentos
representativos do 1% do topo da pirâmide social pressionaram os políticos por
mudanças nas regras para beneficiar os proprietários de ativos à custa dos assalariados.
Estas mudanças globais de regras acabaram também por beneficiar grandes corporações
transnacionais em detrimento das empresas locais.

Em harmonia com essas ideias, e coerente com a crença na economia de trickle-down,


no cenário fiscal deu-se a vertiginosa queda da progressividade tributária nos EUA e no
Reino Unido, a partir dos anos de 1980, viabilizando, em parte, o salto das remunerações
muito elevadas, com o incremento do aumento da proporção entre o rendimento do
capital e o crescimento econômico nacional.22 Ainda mais grave foram os efeitos nos
EUA, do Economic Growth and Tax Relief Act, de George W. Bush, em 2001, que
reduziu as alíquotas de todas as faixas tributárias, como destacam Liam Murphy e
Thomas Nagel23 e da Reforma Tributária de Donald Trump, com o Tax Cuts and Jobs
Act, no final de 2017, que promoveu a maior renúncia tributária para as grandes

21 RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy, Chapter 4: Bretton Wood, GATT
and WTO: Trade in a Politicized World, p. 14
22 PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Trad. Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intríseca, 2014, p. 346 e 483.
23 MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade – os impostos e a justiça. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 176. Vale analisar na obra os projetos de lei apresentados por congressistas norte-americanos visando
maiores restrições à progressividade.
11

corporações e indivíduos mais ricos, em parte financiada pelo fim de deduções para a
classe média. 24 Tamanha foi a desoneração de Trump para os mais ricos que cerca de
400 milionários norte-americanos, entre eles George Soros, Warren Buffett, Steven
Rockfeller, Bem Cohen e Robert Crandall, assinaram um manifesto contra a medida por
exacerbar a desigualdade norte-americana.25

A explicação da pobreza pela preguiça, que historicamente tinha sido limitada aos
Estados Unidos, começou a se espalhar insidiosamente na Europa, onde anteriormente
predominava o fundamento da progressividade dos tributos na necessidade de
enfrentamento da injustiça social.26

Ao longo de um período relativamente curto de tempo, desde a eleição de Ronald


Reagan em 1980, uma parcela enorme de renda e riqueza mundial vem sendo canalizada
para cima, em direção às contas bancárias do 1% e, dentro desse grupo, para o 0,1%.
Essa não tem sido não apenas uma tendência nos EUA, mas uma diretriz global, como
os mais ricos cidadãos do planeta se desvinculando do resto da humanidade em termos
de riqueza, oportunidade, esperança e qualidade de vida. Por quase quatro décadas, os
Estados Unidos realizaram um experimento social perigoso, que foi exportado mundo
afora. Como indaga Chuck Collins27, que grau desigualdade pode suportar uma
sociedade democrática? Até onde pode ser esticada a diferença entre os super-ricos e
todos os outros antes que algo se rompa?

A resposta não é precisa, mas já é possível se concluir que o livre mercado sem limites
se mostrou incapaz de diminuir a pobreza e combater as desigualdades, o que vem a
legitimar a ação redistributiva do Estado a favor dos mais necessitados, objetivando

24 Vide entrevista da economista Monica de Bolle à Revista Exame em dezembro de 2017:


https://exame.abril.com.br/economia/monica-de-bolle-a-controversa-reforma-tributaria-de-trump/

25 OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. A insensata reforma tributária de Trump. Revista IHU, n. 531, 2018, in:
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/574981-a-insensata-reforma-tributaria-de-trump. Acesso em 03/01/2019.

26 ROSANVALLON, Pierre. La Sociedad de Iguales. Trad. Victor Goldstein. Buenos Aires: Manantial, 2014, p. 333-335.
27 COLLINS, Chuck. 99 To 1 – How Wealth Inequality Is Wreck The World And What We Can Do About It, p. 25.
12

atacar a pobreza pela raiz. 28

Com a crise de 2008 e agora, com a pandemia, e a recuperação do prestígio do Estado


estabilizador e protetor, abre-se espaço para o debate neokeynesiano e para a volta dos
instrumentos contracíclicos sendo regra inclusive para momentos de normalidade, como a
expansão monetária e a emissão de títulos públicos, enquanto mecanismos que, ao lado da
adoção da tributação progressiva, contribuirão com a adoção do pleno emprego, sem o risco de
pressões inflacionárias.

3) A Teoria Moderna da Moeda e o papel do déficit público como instrumento para


o desenvolvimento econômico

Na esteira da ascensão das ideias neokeynesianas advinda do Quantitative Easing (QE), o


afrouxamento quantitativo que se seguiu à crise de 2008, ganhou destaque no debate
político norte-americano dos últimos anos, notadamente na ala mais à esquerda do
partido democrata pelas vozes da jovem deputada Alexandria Ocaso-Cortez, com sua
proposta de Green New Deal, e do Senador Bernie Sanders, assessorado por Stephanie
Kelton29, a Teoria Monetária Moderna, no original, Modern Money Theory (MMT),
inaugurada por Warren Mosler30, com a obra de 2000, The Seven Deadly Innocent
Frauds of Economic Policy.31, e por L. Randall Wray, com o livro Trabalho E Moeda

28 SALAMA, Pierre. O Desafio das Desigualdades – América Latina/Ásia: Uma Comparação Econômica. Trad. Wilson F. Menezes.
São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 246.

29 KELTON, Stephanie. How We Think About the Deficit Is Mostly Wrong. New York Times, de 05/10/2017, disponível em
https://www.nytimes.com/2017/10/05/opinion/deficit-tax-cuts-trump.html. Acesso em 15/04/2019.
30 MOSLER, Warren. The Seven Deadly Innocent Frauds of Economic Policy. Valence, 2010.
31 Eis as sete fraudes apontadas por Mosler:
1. O governo deve arrecadar fundos através de impostos ou empréstimos para gastar. Em outras palavras, para o governo os gast os
são limitados por sua capacidade de tributar ou tomar empréstimos.
2. Com déficits do governo, estamos deixando nosso ônus da dívida para os nossos filhos.
3. Os déficits orçamentários do governo diminuem as economias.
4. O Seguro Social está quebrado.
5. O déficit comercial é um desequilíbrio insustentável que leva a afastar empregos e a produção.
6. Precisamos de poupança para fornecer os fundos para investimento.
7. É ruim que déficits mais altos hoje signifiquem maiores impostos amanhã.
13

Hoje - A Chave Para O Pleno Emprego E A Estabilidade32, de 1998, a partir da Teoria


das Finanças Funcionais de Abba Lerner33, desenvolvida, em 1943, com base nas ideias
cartalistas de Georg Friedrich Knapp e na macroeconomia de Keynes. No livro Modern
Money Theory: A Primer on Macroeconomics for Sovereign Monetary Systems, L.
Randell Wray34 compila, de forma mais organizada, a teoria. No Brasil, embora o livro
primeiramente citado de Wray tenha chegado em 2003, a teoria foi mais difundida a
partir de artigo de André Lara Resende, em março de 2019, para o jornal Valor
Econômico.35

A Teoria Monetária Moderna preconiza o governo que se endivida em sua própria moeda
não enfrenta limites financeiros ao seu financiamento e nem pode quebrar. De acordo com
tal teoria, os governos não necessitam de receitas tributárias ou de venda de títulos para
financiar seus gastos, pois são emissores de suas próprias moedas. Segundo esses autores,
os gastos do governo injetam reservas bancárias nas contas privadas e pressionam as taxas
de juros para baixo, enquanto o pagamento de tributos e a venda de títulos públicos
drenam essas reservas bancárias. Nesta equação, enquanto o gasto público e a compra de
títulos pelo governo criam moeda, a arrecadação tributária e a venda de títulos públicos a
destroem. Assim, os déficits públicos são superávits privados. Em consequência, os
déficits do tesouro não pressionam as taxas de juros para cima, uma vez que o
endividamento do governo, ao contrário do que se dá com os entes privados, não leva ao
aumento da sua fragilidade financeira.36

32 WRAY, L. Randall. Trabalho e Moeda Hoje – A Chave para o Pleno Emprego e a Estabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto,
2003. Entre nós: RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática. São Paulo: Portfolio
Penguin, 2020.

33 LERNER, Abba P, “Functional Finance and the Federal Debt ." Social Research, v. 10, n. 1, 1943.

34 L. Randall Wray, Modern Money Theory: A Primer on Macroeconomics for Sovereign Monetary Systems. 2 ed. Palgrave
Macmillan, 2015.
35 RESENDE, André Lara. Consenso e Contrassenso: déficit, dívida e previdência. Jornal Valor Econômico, de 08/03/2019,
disponível em https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2019/03/08/consenso-e-contrassenso-deficit-divida-e-previdencia.ghtml. Acesso
em 10/04/2019.
36 Para um resumo bem didático dos principais fundamentos da MMT, vide a Introdução da obra DALTO, Fabiano A. S., GERIONI,
Enzo M., OZZIMOLO, Julia A., DECCACHE, David e CONCEIÇÃO, Daniel N. Teoria Monetária Moderna – A chave para uma
economia a serviço das pessoas. Fortaleza: Nova Civilização, 2020, que vem autorizada pelo prefácio do sistematizador da teoria, L.
Randall Wray e de Flávia Dantas.
14

A teoria parte da tradição cartalista que define a moeda como uma unidade de conta
nacional criada pelo Estado na qual se registram débitos e créditos. São as chamadas
teorias creditícias da moeda. Essa visão rompe com a tradição metalista, predominante
nos estudos econômicos, de que a moeda seria um meio de troca, facilitador das
transações, que deu origem às teorias monetárias do crédito, e que a consideram, por
princípio, uma mercadoria nascida no mercado de uso generalizado, ou com lastro em
uma outra mercadoria, como o ouro.

Mesmo com o fim do padrão-ouro e da conversibilidade da moeda nesta mercadoria, em


1971, o monetarismo sobreviveu com a Teoria Quantitativa da Moeda, que teve em
Milton Friedman37 seu grande teórico na segunda metade do século XX , a partir da ideia
de que toda expansão da base monetária acima da expansão da renda real seria
inflacionária. Deste modo, para evitar a inflação, a base não poderia crescer acima da
renda, com o que se mantinha a restrição autoimposta ao poder do Estado na emissão de
moeda. É neste ambiente monetarista que surge a ideia de independência dos bancos
centrais em relação aos anseios democráticos da esfera política não alinhada com os
interesses do mercado.38

Nos anos de 1990, quando restou evidenciado que os bancos centrais não controlavam a
quantidade de moeda, mas apenas a taxa básica de juros, com a qual exercem o controle
das pressões inflacionárias ou deflacionárias, ocorreu a superação da Teoria Quantitativa
da Moeda, tendo, no entanto, a ortodoxia monetarista sobrevivido com o regime de metas
de superávit fiscal, metas para a inflação e com a Regra de Taylor para a taxa básica de
juros a partir de uma suposta neutralidade, advinda do modelo microeconômico de
equilíbrio geral, deixando de ter qualquer pretensão de compreender o papel da moeda.
Assim, com esses novos instrumentos de atuação, lograram êxito as tentativas de
perpetuação da ideia de que o governo não tem como se financiar sem desrespeitar os
limites ditados pela base monetária. A inadequada transposição da lógica do metalismo
para o sistema fiduciário, como observa André Lara Resende 39, está por trás do grande

37 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade. Trad. Afonso Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: LTC, 2014, p. 86.
38 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p, 67 e 128
39 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p. 49.
15

fracasso das políticas monetárias do Brasil e de muitos outros países, como a Argentina,
na crise dos anos 2000.

No entanto, com a grande expansão monetária implementado pelo QE, tais argumentos
tornaram-se insustentáveis, gerando dúvidas quanto às possibilidades da estratégia de
emitir moeda não ser utilizada apenas para salvar o sistema financeiro, mas também,
como provoca André Lara Resende40, para atender às despesas igualmente justificadas
como investimento em saneamento, saúde, educação e segurança. Por outro lado, como
destacam Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo41, a ampliação desmensurada da
moeda promovida pelo QE frustrou os adeptos da Teoria Quantitativa da Moeda, por não
ter gerado inflação e tampouco engendrado expansão do crédito para a produção, mas sim
assegurado, como só o Estado enquanto gestor da moeda poderia fazer, o poder a ela
inerente, ao garantir a qualidade das carteiras dos bancos privados, salvaguardando os
seus patrimônios.

Como se depreende dessas lições, modernamente a moeda não é mais lastreada por
reservas de metal em poder do Estado, a partir do abandono do padrão-ouro pelo
presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971. Hoje, a moeda contemporânea é
uma unidade fiduciária, não havendo restrição financeira para o Estado à sua emissão,
sendo a ideia de que os gastos devem ser suportados exclusivamente pela arrecadação
tributária, segundo afirma André Lara Resende42, uma restrição institucional para evitar
gastos irresponsáveis, introduzida pelo conservadorismo vitoriano do início do século
XX.

Assim, com o fim do padrão-ouro, o Estado que emite a sua própria moeda fiduciária
ganha soberania monetária43, não estando sujeito a qualquer limitação operacional ou
restrição financeira à realização de despesas, uma vez que, ao gastar, sempre e
inevitavelmente, emite moeda, sendo a única limitação econômica a qual está submetido,

40 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p. 27.
41 BELLUZZO, Luiz Gonzaga e GALÍPOLO, Gabriel. A Escassez na Abundância Capitalista. São Paulo: Contracorrente, 2019, p.
181-183.
42 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p. 108 e 136.
43 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Econom, p. 43.
16

é a da capacidade de oferta da economia, que, quando superada, poderá provocar


desequilíbrio nas contas externas e inflação. 44

Contudo, existem condições prévias para que o governo goze plenamente de sua
soberania monetária derivada do seu monopólio em emitir moeda. Em primeiro lugar, é
preciso considerar que instituições estatais que não emitem sua própria moeda, como
Estados e Municípios, e nações integrantes de uniões monetárias, como a União Europeia,
não possuem soberania monetária. Ademais, como destaca Stephanie Kelton45, é
essencial que o emissor de moeda não estabeleça a sua conversibilidade com nenhum
bem, como o ouro, ou a moeda de outro país, como fez a Argentina até 2001, no tempo
da conversibilidade do peso argentino com o dólar, estabelecido pelo presidente Carlos
Menem. Também, é fundamental que este país não assuma dívidas em moeda estrangeira,
pois neste caso restará fragilizado o exercício da sua soberania monetária, como é o caso
da Venezuela. Sem soberania monetária, o governo não se livra das limitações financeiras
ao gasto público. De acordo com essas premissas, o Brasil é um país dotado de soberania
monetária, notadamente após o equacionamento da questão da dívida externa no governo
Lula.

Mas, afinal, em que consiste essa soberania monetária, pedra de toque da MMT?

Superada a tese metalista que sustenta a sua criação pelos mercados, encampada por
Locke, bem como pela ortodoxia que lhe é herdeira, sustentada por aqueles que querem
limitar o poder do Estado, a moeda, modernamente, se apresenta como uma instituição
pública, que viabiliza os mercados, que, no entanto, não a criam. Assim, o governo não
precisa adquirir moeda para gastar, mas ao fazê-lo, está criando moeda.46 Como disse
Warren Mosler47, somente após o governo gastar é que alguém tem moeda. Porém, tal
ideia é contraintuitiva, pois, em nossa esfera pessoal precisamos obter dinheiro para
depois gastar. Seguindo uma lógica formal, o pensamento convencional nos leva a crer
que o governo depende de duas fontes de financiamento: aumento de tributos ou
operações de crédito Logo, seria preciso que o governo precisasse obter dinheiro antes

44 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.28.
45 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Econom, p. 18.
46 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.56 e 86.
47 MOSLER, Warren. The Seven Deadly Innocent Frauds of Economic Policy, p. 21.
17

de gastar, como todos nós fomos ensinados, na equação de que tributação e empréstimos
vêm necessariamente antes da despesa. L. Randall Wray48, ilustra bem o pensamento
normalmente adotado:

“Com o tempo, é possível que algumas pessoas, em nossa economia hipotética,


“se esqueçam”, de que a população não tem outra fonte de dólares que não o
dispêndio do governo, e que o propósito do tributo é criar um fluxo de bens e
serviços em direção ao governo. Em vez disso, eles passam erroneamente a
acreditar que o propósito do tributo é cobrir o valor do dispêndio – isto é, eles
passam a acreditar que os tributos “financiam” o dispêndio governamental.”

Mas a MMT revela que tal raciocínio não procede, e por isso causa tanta perplexidade.49

De acordo com essas ideias, o papel dos impostos deixa de ser o financiamento do gasto
público, uma vez que o Estado já detém a moeda antes de gastar. Para Warren Mosler50,
as funções da tributação são: (i) criar a necessidade contínua de obter a moeda estatal para
adimplir as obrigações tributárias, portanto, uma necessidade permanente das pessoas
venderem bens, serviços e trabalho para obtê-la; (ii) reduzir o poder de compra das
pessoas, tornando a moeda mais rara e valiosa e deixando mais espaço para o governo
gastar sem causar inflação. Deste modo, segundo o autor, os impostos funcionam como
instrumento de regulação da economia e não meio para obter dinheiro para os governos
gastarem.

Como explica André Lara Resende51 ao defender o papel atribuído pela MMT aos
impostos:
“do ponto de vista macroeconômico, os impostos são cobrados não para
financiar os gastos do governo, mas para abrir espaço para esses dispêndios sem
que haja pressão excessiva sobre a capacidade produtiva. A distinção é mais
importante do que parece, pois só há necessidade de tributar quando não há
espaço na capacidade produtiva da economia para acomodar o gasto público.
Se a economia tem capacidade ociosa, não há por que tributar para financiar
gastos públicos. Essa é a conclusão lógica do cartalismo, que confirma a intuição
dos que sustentam que a política monetária pode evitar uma depressão, como o
QE de fato foi capaz de fazer, mas só a política fiscal pode levar à recuperação
da atividade econômica.”

48 WRAY, L. Randall. Trabalho e Moeda Hoje – A Chave para o Pleno Emprego e a Estabilidade, p 177.
49 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, p. 21
50 MOSLER, Warren. The Seven Deadly Innocent Frauds of Economic Policy, p. 25, 27 e 30.
51 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.86 e 87.
18

Tais ideias estão de acordo com a Teoria das Finanças Funcionais, de Abba Lerner52,
para quem os governos devem usar o seu poder fiscal por meio de três instrumentos:
gastos públicos, tributação e a emissão de títulos, da maneira que melhor lhe garanta a
manutenção do pleno emprego e a estabilidade dos preços. Segundo ele, o ideal é que o
governo reduza os impostos e aumente o gasto público, deixando esses recursos na
economia, a fim de estimular a demanda. Porém, em caso de excesso de crescimento,
que poderia gerar inflação, o autor recomendava a venda de títulos, o que forçaria o
aumento dos juros, a fim de enxugar o excesso de reservas. Para os adeptos da MMT,
não há independência das políticas fiscais e monetárias, pois se a demanda agregada
pressiona a inflação, deve-se adotar uma política fiscal contracionista, cortando os gastos
ou elevando os impostos, sendo as taxas de juros fixadas o objetivo de maximizar o
investimento e o crescimento, ou seja, o bem-estar da economia.53

Para ilustrar a mudança de visão do papel da moeda e dos impostos que a MMT promoveu
na ortodoxia neoliberal no plano político, vale lembrar a declaração da então primeira-
ministra do Reino Unido, Margareth Thatcher54, de que não existe dinheiro público, mas
apenas o dinheiro do contribuinte e, que se o Estado deseja gastar mais, só pode fazê-lo
por meio de empréstimos ou tributando mais. A MMT muda radicalmente esta visão, ao
afirmar que o próprio governo federal, e não o contribuinte, é quem financia todas as
despesas do governo.55

Muito embora não vejam o custeio dos gastos públicos como a função precípua do tributo,
a maioria dos autores da MMT defende a tributação progressiva dos mais ricos como
medida destinada à redistribuição de renda, do que é exemplo L. Randall Wray56. No

52 LERNER, Abba P, “Functional Finance and the Federal Debt ." Social Research, v. 10, n. 1, 1943.
53 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.88 e 89.
54 “The state has no source of money, other than the money people earn themselves. If the state wishes to spend more it can only do
so by borrowing your savings or by taxing you more. (...) We know that there is no such thing as public money. (...) There is only
taxpayer money.” Apud: KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy,
p. 19.
55KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, Introdução, vii.
56 WRAY, L. Randell. Response to Doug Henwood`s Trolling in Jacobin. New Economic Perspective, 25/02/2019, disponível em
http://neweconomicperspectives.org/2019/02/response-to-doug-henwoods-trolling-in-jacobin.html; .
19

entanto, como sustenta Stephan Kelton57, o atendimento às políticas sociais e as políticas


do pleno emprego não dependem disso, pois pode ser custeado pelo poder da moeda.
Nesse ambiente, a tributação dos mais ricos visa ao equilíbrio da distribuição de renda e
riqueza e à proteção da saúde da democracia.58

Nos últimos anos, o debate sobre a MMT no ambiente econômico tem sido intenso. Em
relação aos autores libertários, a teoria desperta reações radicais que beiram ao
irracionalismo, como a de Robert Murphy59, seguidor da Escola Austríaca, que sustenta
que as políticas fiscais e monetárias por ela defendidas corroem a poupança privada, se
resumindo, na prática, em o governo utilizar seu poder monopolista sobre o dinheiro
para ditar e controlar a produção, obliterar o livre mercado, suprimir a iniciativa privada,
e empobrecer as pessoas. Para ele, isso é socialismo e o nome mais adequado para a MMT
seria Tirania do Monopólio Monetário.

Para os economistas mais vinculados ao mainstream, a MMT oferece uma resposta fácil,
para questões complexas, com a mera emissão de moeda para custear o gasto ilimitado,
abrindo caminho para o fantasma da hiperinflação. Nesse sentido, Larry Summers60 dá a
resposta clássica de que não há almoço grátis e que não se pode financiar o gasto público
com déficit sob pena de causar inflação.

No entanto, como destaca André Lara Resende 61, a inflação não é resultado do excesso
de moeda, mas do excesso de demanda agregada ou das expectativas de inflação, como
demonstrado no fenômeno do Quantitative Easing (QE), em que os bancos centrais dos
países desenvolvidos, depois da crise financeira de 2008, implementaram a maior

57 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, p. 23.
58 Sobre a importância da tributação progressiva dos mais ricos como mecanismo de combate às desigualdades sociais, e de defesa
da democracia e do desenvolvimento econômico, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Desigualdade e Tributação na Era da Austeridade
Seletiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
59 MURPHY, Robert. Texto atraído da matéria publicada por Misses Brasil: O tenebroso conto de fadas da Teoria Monetária Moderna
- e de André Lara Resende, em 13/03/2019. Disponível em https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=3003. Acesso em 27/06/2020.
60 SUMMERS, Larry. The left’s embrace of modern monetary theory is a recipe for disaster. The Washington Post, de 04/03/2019,
disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/the-lefts-embrace-of-modern-monetary-theory-is-a-recipe-for-
disaster/2019/03/04/6ad88eec-3ea4-11e9-9361-301ffb5bd5e6_story.html. Acesso em 20/05/2020.

61 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.72.
20

expansão monetária que se tem notícia, comprando os ativos podres do sistema


financeiro. Esse episódio prova a correção da tese da MMT de que o governo não tem
restrição financeira, uma vez que pode aumentar suas despesas creditando reservas
bancárias para terceiros. E completa o economista carioca: “Como ao gastar o governo
“emite” reservas bancárias, não é preciso que obtenha os recursos para gastar, nem
através de impostos, nem através de alguma fonte alternativa de financiamento.”

Mesmo do lado keynesiano, existem críticas importantes à teoria. Thomas Palley62


destaca que a MMT possui ideias antigas e novas. As antigas, de origem keynesiana,
estariam corretas e são baseadas nas possibilidades de o governo emitir dinheiro a partir
de um espaço fiscal muito maior do que o admitido pela ortodoxia liberal. Porém,
segundo o autor, ter capacidade não significa que se deva fazê-lo. É nisso, segundo o seu
pensamento, que a teoria se desvia, pois não é fácil atingir o pleno emprego sem inflação,
já que a economia é composta de muitas sub economias, de forma que algumas delas
atingem o pleno emprego antes de outras, o que leva a que a inflação surja antes do que
o pleno emprego.

Por sua vez, Paul Krugman63 destacou a peculiaridade do momento em que a economia
dos EUA se encontravam, ele escreve em 2011, quando o crescimento do déficit público
não era relevante, pela circunstância de que a capacidade instalada das empresas estava
longe do limite, os juros próximos a zero e inexistia liquidez no mercado. Mas advertia
que essas condições não durariam para sempre e que, em outro cenário, de pleno emprego
e de rápida expansão econômica, poderíamos ter a volta da inflação. Porém, de lá para
cá, há que se reconhecer que houve a crescimento econômico e a inflação não voltou. Ao
contrário. Em texto mais recente, de 2019, Paul Krugman64 alerta que os adeptos da MMT,
como aliás da própria Teoria das Finanças Funcionais, de Abba Lerner, não consideraram
o trade off entre as políticas monetária e fiscal, ignorando as dificuldades políticas para
aumentar os tributos e reduzir os gastos quando a economia estiver superaquecida.
Segundo ele, a demora em obter tais medidas quando se fazem necessárias à

62 PALLEY, Thomas. Modern Money Theory (MMT) vs. Structural Keynesianism, disponível em:
https://thomaspalley.com/?p=1145. Acesso em 27/06/2020.
63KRUGMAN, Paul. Deficits and The Printing Press (Somewhat Wonkish). New York Times, 27/03/2011, disponível em:
https://krugman.blogs.nytimes.com/2011/03/25/deficits-and-the-printing-presssomewhat-wonkish/. Acesso em 27/06/2020.
64 KRUGMAN, Paul. What’s Wrong With Functional Finance? New York Times, 12/02/2019, disponível em
https://www.nytimes.com/2019/02/12/opinion/whats-wrong-with-functional-finance-wonkish.html. Acesso em 19/05/2020.
21

desaceleração do crescimento, traria a inflação de volta. E conclui daí que não há um


único nível correto de déficit, sendo uma escolha sobre de que forma se mensura esse
trade off.

Em resposta às críticas de Paul Krugman, a economista Stephanie Kelton 65 que


assessorou a campanha do candidato presidencial democrata Bernie Sanders, em 2016,
ressalta que as críticas à Abba Lerner e à MMT, quanto à desconsideração do trade off
entre política monetária e fiscal, não procedem, pois, como previsto por estes, os governos
têm à sua disposição mecanismos de atuação imediata, como a fixação de taxa de juros e
a venda de títulos para enxugar o excesso de liquidez do mercado. Por outro lado, como
os juros são definidos pelo banco central, este pode fixá-lo de modo a ser sempre inferior
à taxa de crescimento, com o que a dívida nunca terá custo fiscal. 66

Por sua vez, destaca James K. Galbraith67 que a MMT não é um conjunto de propostas
econômicas, mas uma descrição de como uma economia moderna de crédito realmente
funciona, de como o dinheiro é criado e destruído pelos governos e bancos, de como as
operações monetárias se procedem, de como as taxas de juros são definidas e quais os
poderes que o Estado possui. Isso não significa, de acordo com o autor, que os déficits
não têm importância, pois a MMT reconhece que se a política fiscal for excessivamente
expansionista e não respeitar a limitação real dos recursos, pode haver inflação e a
depreciação do câmbio. A aposta da MMT na garantia do emprego, segundo ele, vai até
o limite da capacidade real da economia e o incentivo a esta expansão tem como teto o
nível necessário ao pleno emprego. Nem mais, nem menos.

Ao contrário do que muitos dos seus críticos sustentam, a MMT, ao destacar a inexistência
de limites financeiros ao gasto público para o governo que emite a sua própria moeda,
reconhece a existência de limites reais para a expansão monetária pelo gasto público na

65 KELTON, Stephanie. Modern Monetary Theory Is Not a Recipe for Doom. Bloomberg, em 21/09/2019, disponível em
https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2019-02-21/modern-monetary-theory-is-not-a-recipe-for-doom. Acesso em
26/06/2020.
66 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.62.
67 GALBRAITH, James K. Modern Monetary Realism. Project Syndicate, em 15/03/2019. Disponível em: https://www.project-
syndicate.org/commentary/modern-monetary-theory-opponents-misunderstanding-by-james-k--galbraith-2019-
03?barrier=accesspaylog. Acesso em 26/06/2020.
22

capacidade instalada das empresas e na mão-de-obra disponível. Como adverte Stephanie


Kelton68, cada economia tem sua própria velocidade interna, seu limite, regulado pela
disponibilidade dos seus recursos produtivos reais, como o estado da tecnologia e a
quantidade e qualidade de suas terras, trabalhadores, fábricas, máquinas e outros
materiais. Se o governo tentar gastar demais em uma economia que já está funcionando
a toda velocidade, a inflação se acelerará. No entanto, os limites não estão na capacidade
do governo de gastar dinheiro ou no déficit público, mas em pressões inflacionárias
determinadas pelos recursos na economia real. E prossegue a ex-consultora da campanha
de Bernie Sanders: ”A MMT distingue os limites reais das restrições ilusórias e
desnecessárias autoimpostas.”

Se o creditamento pelo Estado de reservas bancárias, chamada popularmente de emissão


de moeda, vai além da capacidade da oferta para atender a demanda, a inflação tende a
aumentar. No entanto, tal limite só existe quando a demanda supera a capacidade
instalada e a mão-de-obra disponível, o que se dá quando a economia se aproxima do
pleno emprego. Assim, ao contrário do que alegam os economistas ortodoxos, o que gera
a inflação não é propriamente a emissão de moeda, mas a impossibilidade de a capacidade
instalada e a mão-de-obra acompanharem o crescimento da demanda gerado pelo
aumento da base monetária, o que só ocorre nos momentos de pleno emprego, quando o
Estado, ao invés de ampliar a base monetária, deve tributar ou vender títulos para enxugar
a liquidez do mercado.

Por outro lado, está claro que o incremento do crédito público sustentado pela MMT diz
respeito aos empréstimos obtidos no mercado interno na moeda emitida pelo próprio
Estado. Já o empréstimo tomado em moeda não emitida pelo Estado pode gerar efeitos
danosos para a economia. De tal modo, o Estado que emite sua própria moeda não deve
financiar suas despesas por meio de empréstimos em moeda estrangeira, já que tem a sua
própria moeda à sua disposição.

4) Contra a Hegemonia da Ortodoxia Neoliberal, a MMT e Keynesianismo Clássico


têm mais pontos em comum do que distinções

68 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, p. 3.
23

Embora alguns adeptos da MMT exacerbem o poder da emissão do gasto público em


detrimento da arrecadação tributária69, em sua concepção original, não há essa opção
prioritária, como destacam L. Randall Wray e Flávia Dantas70 em obra recente, em que o
sistematizador da teoria destaca que a MMT não defende que os governos possam
escolher entre as alternativas de financiamento do gasto público, como a arrecadação de
tributos, a emissão de títulos e a expansão da base monetária, uma vez que todos essas
modalidades serão utilizadas em todos os exercícios financeiros, conforme as
circunstâncias. Como destaca André Lara Resende71, baseado em Abba Lerner, a MMT
serve a qualquer ideologia, seja capitalista, fascista ou socialista, liberal ou
intervencionista, sendo apenas uma descrição da realidade da função da moeda em
qualquer governo, libertando-se dos mitos herdados do tempo do metalismo, em que a
moeda era lastreada por reservas de ouro ou prata, ou da Teoria Quantitativa da Moeda,
que procurava limitar a expansão monetária ao crescimento da renda, sob pena de
promover o crescimento da inflação, como sustentava Milton Friedman72.

69 Como, por exemplo, a didática obra GALVÃO, Gustavo. Finanças Funcionais e Teoria Monetária Moderna – MMT. Brasília,
2020, que, na esteira de Abba Lerner, sustenta que as despesas públicas devem ser custeadas pela emissão de moeda, e não pela
tributação que guardaria apenas razões regulatórias e redistributivas. Abba Lerner sustentava que o governo dever estar prepa rado
para gastar o que for necessário para sustentar o pleno emprego sem aumentar os impostos ou empréstimos.

70 WRAY, L. Randall e DANTAS, Flávia. Prefácio da obra DALTO, Fabiano A. S., GERIONI, Enzo M., OZZIMOLO, Julia A.,
DECCACHE, David e CONCEIÇÃO, Daniel N. Teoria Monetária Moderna – A chave para uma economia a serviço das pessoas.
Fortaleza: Nova Civilização, 2020 “Adeptos da ortodoxia, assim como muitos economistas heterodoxos, acham que os governos
podem escolher como financiar os gastos: usando impostos, empréstimos (vendendo títulos) ou "imprimindo dinheiro". Eles, dess a
forma, interpretam equivocadamente a MMT como se defendesse o argumento de que o Governo deve apenas "imprimir dinheiro".
Isso é uma deturpação completa da MMT, a qual sustenta que todos os gastos do Governo sempre levam a crédito de reservas
bancárias. Isso é verdade se o orçamento for “equilibrado”, “deficitário” ou “superavitário” ao longo de um período (trimestre ou
ano). Ao final do ano, a mudança líquida do portfólio garantirá uma identidade ex post: os gastos do Governo ao longo do ano serão
iguais a receitas fiscais, emissões de títulos e créditos na conta das reservas bancárias. Em outras palavras, a diferença entre gastos
e tributação será igual a títulos emitidos e reservas líquidas adicionadas. Isso ocorre devido aos procedimentos operacionais
adotados. Não tem nada a ver com uma suposta "escolha" de usar impostos, "pedir empréstimos" ou "imprimir dinheiro". Como a
MMT explica, todos esses itens serão usados normalmente ao longo de um ano, independentemente do resultado final do saldo
orçamentário.”
71 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p. 105.
72 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, p. 86.
24

No entanto, a despeito do caráter descritivo sobre a emissão da moeda e do gasto público,


e não prescritivo de como o Estado deve financiar as suas despesas 73, a MMT vem se
constituindo em um importante instrumento de desconstrução no imaginário das pessoas
do mito neoliberal da inevitabilidade da austeridade como a única alternativa disponível
aos governos, e importante instrumento de balizamento das finanças públicas como
instrumento de intervenção do Estado na realidade econômica e social, desde que não se
deixe cooptar por aqueles que a utilizam como fundamento para o agigantamento
ilimitado e irresponsável da despesa pública sem respeitar a capacidade da economia para
atender ao aumento de demanda agregada, ou ainda por aqueles que ignoram a
importância dos tributos como mecanismo redistributivo de combate às desigualdades
sociais.

Como até o crítico Thomas Palley74 reconhece, não se pode desprezar a importância
política do enfrentamento que a teoria faz aos falcões da austeridade, e que, se sua
aplicação prática a libertar dos seus excessos retóricos tão importantes nesse embate, a
MMT não se distinguirá de uma abordagem keynesiana padrão. Nesse sentido, a MMT
não deixa de ser uma versão do keynesianismo levado às últimas consequências. 75

Por outro lado, a principal crítica que os monetaristas fazem tanto aos economistas
keynesianos, quanto aos adeptos da MMT, quando estes dois grupos defendem as
políticas anticíclicas de aumentar o gasto público como medida de combate à recessão
é quase sempre a mesma, e tem origem na vetusta Ley de Say76, segundo a qual, o gasto
público não cria uma nova demanda, uma vez que apenas transfere o dinheiro de um
grupo para outro, já que o governo não gera riqueza, mas a obtém de empréstimos ou
tributos. Na verdade, de acordo com essa visão, não é possível haver falta de demanda
total que prejudique a economia e justifique o gasto público, pois se os consumidores
endividados resolvem evitar realizar determinadas despesas, esse dinheiro ficará com os

73 WRAY, L. Randall e DANTAS, Flávia. Prefácio da obra DALTO, Fabiano A. S., GERIONI, Enzo M., OZZIMOLO, Julia A.,
DECCACHE, David e CONCEIÇÃO, Daniel N. Teoria Monetária Moderna – A chave para uma economia a serviço das pessoas.
74 PALLEY, Thomas. Modern Money Theory (MMT) vs. Structural Keynesianism, disponível em:
https://thomaspalley.com/?p=1145. Acesso em 27/06/2020.
75 GALVÃO, Gustavo. Finanças Funcionais e Teoria Monetária Moderna – MMT. Brasília, 2020.
76 O nome se refere ao seu criador, o economista francês Jean-Baptiste Say, que, no Século XIX, defendia que a existência prévia de
oferta gerava o surgimento de uma demanda.
25

bancos que emprestarão para outros consumidores.77

Porém, como destaca Paul Krugman78, em momentos em que os investimentos privados


estão deprimidos, o gasto público acaba por movimentar a economia, uma vez que se
converteram em receitas dos seus destinatários, que vão custear despesas com esses
recursos. Estas, por sua vez vão gerar novas receitas para terceiros, pelo fato de “suas
despesas serem as minhas receitas e de minhas despesas serem as suas receitas”.
Segundo Krugman, a Ley de Say deve ser refutada por três razões: (i) a existência de
um nível inadequado demanda total é, de fato, uma possibilidade real; (ii) as economias
realmente podem ficar deprimidas em decorrência de falhas de coordenação, em vez de
falta de capacidade de produção (problema de dínamo do motor da economia); (iii)
aumentar a oferta de moeda é o modo de sair da recessão.

O mito de que a austeridade recupera a economia e de que a presença do Estado a


deprime se baseia na crença de que os empresários, constatando que as contas do
governo estão saudáveis, ficariam mais confiantes para investir. O que é paradoxal é
que a confiança não é despertada pelo investimento estatal, que, decerto geraria mais
oportunidade de negócios e de crescimento econômico, apontando a austeridade em
sentido oposto.79

Por outro lado, o receituário da austeridade deprime a economia, abalando a demanda


agregada e gerando prejuízo às empresas, que não terão a quem vender os seus produtos.
Nesse contexto, não é fácil entender porque as teorias monetaristas baseadas em ajustes
fiscais recessivos recebem tanto apoio das classes empresariais ligadas à produção e
comercialização de bens e serviços. Para Paul Samuelson, a crença de que seria sempre

77 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, p. 86: “Observe que o endividamento do governo para gastar não altera a
quantidade de moeda em mãos privadas. O governo, com a mão direita, toma empréstimos de US$ 100 de alguns indivíduos e,
com a mão esquerda, repassa o dinheiro para outros, com que se efetuam as despesas. O dinheiro transita entre diferentes pessoas,
mas a quantidade total do dinheiro se mantem inalterada. ”

78 KRUGMAN, Paul. Um basta à Depressão Econômica – Propostas para uma recuperação plena e real da economia mundial.
Trad. Afonso Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 24-28.
79 STIGLITZ, Joseph, O Preço da Desigualdade. Trad. Dinis Pires. Lisboa: Bertrand, 2014, p. 315.
26

preciso equilibrar o orçamento fiscal seria um mito, cuja função é comparável a das
religiões primitivas: assustar as pessoas, a fim de que elas comportem de maneira
civilizada. Segundo o primeiro economista norte-americano laureado com o Prêmio
Nobel, uma vez desfeita a supertição, correríamos o risco de abalar um dos pilares
necessários a que se evite que os gastos públicos saiam de controle, devido à ausência
de disciplina e racionalidade na alocação de recursos. 80

Porém, assiste razão a Michal Kalecki81quando identifica o interesse de classe nessa


prevenção contra o gasto público. De acordo com o economista polonês, as razões da
oposição das elites industriais ao pleno emprego alcançado pelo gasto público podem
ser divididas em três categorias: a) eles não gostam da interferência do governo na
questão do emprego, pois tornam menos relevante o estado de confiança; b) não gostam
de ser dirigidos por gastos do governo destinados aos investimentos públicos e ao
consumo das massas; c) não gostam de mudanças sociais e políticas resultantes da
manutenção do pleno emprego, com o consequente fortalecimento da posição social dos
trabalhadores.

Sobre o estado da confiança a que alude Kalecki, Paul Krugman82 destaca que a
intervenção do Estado na criação de empregos é vista com relutância pelo mercado, uma
vez que, quando inexistente a atuação estatal, o nível de empregos depende, em grande
parte, do chamado estado de confiança do mercado. Se esse se deteriora, os
investimentos privados declinam, resultando em queda da atividade econômica e do
emprego, conferindo aos investidores um poderoso controle indireto sobre as políticas
públicas. Assim, de acordo com essa lógica, tudo o que puder abalar o estado de
confiança deve ser evitado a fim de afastar o risco de crise econômica. Porém, se o
governo aumenta o emprego por meio dos seus gastos, esse potente dispositivo de
controle perde a eficácia. Por isso, os déficits orçamentários necessários para executar
intervenções governamentais devem ser considerados perigosos: “A função social da
doutrina da ‘finança saudável’ é fazer o nível de emprego depender do estado de
confiança. ” Tais sentimentos geram um ambiente de keynesfobia, na expressão de

80 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p.107.
81 KALECKI, Michal. “Political Aspects of Full Employment.” Political Quarterly, vol. 14, p. 322 – 331, 1943.
82 KRUGMAN, Paul. Um basta à Depressão Econômica – Propostas para uma recuperação plena e real da economia mundial, p.
84-88.
27

Krugman, para quem, “a influência da riqueza não teria ido tão longe se não tivesse
sido reforçada por uma espécie de sociologia acadêmica galopante por meio da qual
noções absurdas se converteram em dogma na análise das finanças e da
macroeconomia. ”

Sobre o medo do dirigismo estatal na definição dos investimentos a que alude Kalecki,
há que se considerar que, se, em uma economia de pleno emprego, os investimentos
públicos concorrem com os investimentos privados pelo espaço possível sem que se
acionem as imobilizadoras sirenes antinflacionárias, o mercado finaceiro defende o seu
espaço de atuação, preferindo que a sua poupança se tranforme em dívidas para pessoas
e empresas do que estas tenham renda própria, alavancada por investimentos públicos e
transferências diretas. Deste modo, com a população e com as empresas desprovidas de
liquidez, esperam aumentar os seus lucros emprestando dinheiro a todos.

Por fim, o terceiro elemento destacado por Kalecki deriva do anseio de evitar os efeitos
sociais e políticos do empoderamento da classe trabalhadora decorrente do seu aumento
de renda e do seu poder de barganha em razão desses investimentos públicos,
notadamente das transferências diretas. Com isso, os trabalhadores tenderão a não se
sujeitar a qualquer salário que lhes seja oferecido pelos empregadores. Em oposição, se
os trabalhadores forem destinatários de transferências públicas, os empregadores seriam
obrigados a cobrir as ofertas advindas do Estado, aumentando o valor dos salários. Por
outro lado, com a introdução de transferências diretas, como as políticas de renda
mínima universal83, o trabalhador poderá desenvolver outras potencialidades
existenciais e atividades de maior interesse para a sociedade84.

Assim, essa aversão à atuação do governo em direção ao pleno emprego por meio da
política fiscal associada aos gastos públicos não se traduz apenas em miopia ideológica,
mas na defesa dos interesse do setor financeiro na distribição de riquezas na sociedade.

83 Sobre renda mínima universal, vide: CARVALHO, Laura. Curto-Circuito, p. 77; SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Renda de
Cidadania: A Saída é pela Porta. São Paulo: Cortez/Fundação Perseu Abramo, 2002.
84 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Econom, p. 62-63.
28

Um outro mito, que deriva do primeiro, relativo à confiança dos investidores, é o de que
o orçamento do Estado é como um orçamento familiar, a partir da crença de que cada
família, mais cedo ou mais tarde, tem que viver dentro das suas possibilidades financeiras,
em pensamento assim resumido por L. Randall Wray 85:

“A família parcimoniosa se assegura de que suas receitas são superiores a seus


gastos, de modo a acumular reservas de dólares como poupança líquida.
Certamente nenhuma família pode incorrer em déficits contínuos, portanto,
afirma-se, nenhum governo pode fazer o mesmo.”

Na verdade, a comparação é incabível pois o aumento das despesas estatais pode


estimular o aumento da produção, criando novos empregos que serão ocupados por
pessoas que estariam desempregadas, o que acaba por estimular o crescimento
econômico em um múltiplo da despesa estatal, e o aumento da arrecadação tributária
que propiciará a redução da dívida pública. Na esfera familiar, ao contrário, o aumento
de despesas não tem o condão de transformar a macroeconomia, mas apenas elevar o
endividamento.86 Na verdade, quando os governos tentam gerenciar seus orçamentos
como as famílias, perdem a oportunidade de aproveitar o poder de suas moedas
soberanas para melhorar substancialmente a vida de seu povo.87

Em uma economia deprimida, os recursos oriundos dos déficits orçamentários não


competem com os fundos do setor privado e, portanto, não levam a taxa de juros às
alturas. Na verdade, o governo passa a oferecer um destino para o excesso de dinheiro
do setor privado que irá emprestá-lo ao Estado. Assim, sem esses déficits públicos, a
conduta do setor privado de gastar menos do que ganha provocaria profunda recessão.
Com os déficits, esses recursos, que são emprestados ao governo, são por estes
empregados para movimentar a economia. 88

Por outro lado, aqueles que estão na parte inferior da distribuição de renda e riqueza
necessitam das prestações estatais, por meio de serviços públicos e transferências,
tornando possível a manutenção de uma classe média a partir das políticas

85 WRAY, L. Randall. Trabalho e Moeda Hoje – A Chave para o Pleno Emprego e a Estabilidade, p 177.
86 STIGLITZ, Joseph, O Preço da Desigualdade, p. 316.
87 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy, p. 8.
88 KRUGMAN, Paul. Um basta à Depressão Econômica – Propostas para uma recuperação plena e real da economia mundial, p.
125.
29

redistributivas do Estado. Embora aqueles que se encontram na parte de cima da


pirâmide social sejam menos dependentes de tais atividades estatais, também acabam
por sentir o impacto da austeridade em razão da redução do crescimento econômico.

Quando os serviços públicos são cortados por causa do discurso dos gastos perdulários,
que embala a adoção da política de austeridade seletiva89, não serão as pessoas no topo
da distribuição de renda que deverão apertar os cintos, mas sim aqueles que se
encontram na parte inferior, quase sempre recebedores de salários sem aumento real há
muito tempo. Estes são os cidadãos que dependem de serviços públicos e que vêm
tomando uma enorme quantidade de dívida. É por isso que a austeridade é antes de tudo
um problema político de distribuição e não um problema econômico da contabilidade.90

Assim, se os neokeynesianos clássicos reconhecem o papel estabilizador do Estado com


a utilização da moeda e do crédito, e os adeptos da MMT, admitem a necessidade de
utilização desses mecanismos para combater a inflação, bem como a importante função
da tributação progressiva como mecanismo redistributivo91, as distinções entre essas duas
correntes do pensamento keynesiano estão mais na execução das políticas financeiras do
que na divergência quanto às possibilidades existentes à disposição do Estado para o
financiamento das suas despesas. Em comum, a negação da ortodoxia que suprime do
debate público a existência dessas possibilidades, e condena aprioristicamente o déficit
público, entronizando a ideia de que as despesas públicas devem ser custeadas
exclusivamente pelos tributos, a partir do dogma do equilíbrio financeiro do orçamento.

5) A Opção Ideológica pelo Equilíbrio Orçamentário Cristalizada pelo Direito


Financeiro

Como vimos, não há razões de ordem financeira que determinem que as despesas públicas
só possam ser custeadas pelos tributos, e que os gastos do governo devem ser limitados

89 Sobre o caráter seletivo da política de austeridade neoliberal, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Desigualdade e Tributação na Era
da Austeridade Seletiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
90 BLYTH, Mark. Austerity – the history of a dangerous idea. New York: Oxford University Press, 2013, p. 24.
91 WRAY, L. Randell. Response to Doug Henwood`s Trolling in Jacobin. New Economic Perspective, 25/02/2019, disponível em
http://neweconomicperspectives.org/2019/02/response-to-doug-henwoods-trolling-in-jacobin.html.
30

pela arrecadação dos impostos. Esse equilíbrio financeiro entre receita e despesa é uma
opção ideológica determinada pela ortodoxia neoliberal herdeira do vetusto metalismo
superado em meados do século XX. Se não há limitações financeiras ou operacionais, o
que existem são limitações autoimpostas pelo Estado a partir da positivação pelo
ordenamento jurídico da ideia do equilíbrio financeiro do orçamento.

Mas nem sempre foi assim. Essa tendência é mais uma das facetas da revolução
neoliberal no final dos anos de 1970. Até então, o direito financeiro, aqui e alhures, era
informado pela ideia da função econômica do orçamento, com base no pensamento
keynesiano. Entre nós, é ilustrativa a posição de Aliomar Baleeiro92, na sua clássica obra
Uma Introdução à Ciência das Finanças, cuja primeira edição dada de 1955:

“A teoria geral keynesiana conduziu a uma política fiscal de despesas intensivas


como terapêutica das crises. (...)
Preocupados com os fenômenos das crises cíclicas, que se agravaram em nosso
século, os economistas tiraram várias ilações, enquadrando as novas ideias não
só nas fases de depressão, mas também nas de pleno emprego ou subemprego,
quando o prognóstico das situações se invertia por força de tendências opostas.
(...)
Conjugando orçamento com a estabilidade econômica e com a propulsão
contínua da prosperidade, de sorte que sirva de corretivo às flutuações cíclicas,
as doutrinas acima expostas relegaram a plano secundário a preocupação de
evitar-se, à custa de todo o sacrifício, o déficit.
O equilíbrio orçamentário é desejável em certos casos. Pode ser impossível e
inelutável em outros. E será nocivo em circunstâncias especiais.
Aquelas técnicas constituem as chamadas finanças funcionais93, que emprestam
o cunho de paradoxo às ideias financeiras contemporâneas quando comparadas
as dos clássicos. (...)
O problema, na atualidade, é encarado em ângulo bem diverso daquele em que
se situavam os financistas clássicos: a preocupação não deve residir em
equilibrar o orçamento como se este fosse um fim em si mesmo e não simples
meio ao serviço da prosperidade nacional. Não se trata de equilibrar o
orçamento, mas fazer com que este equilibre a economia nacional.”

Também em relação ao crédito público, Baleiro94 regista a modificação dos parâmetros


clássicos pelo influxo das ideias keynesianas com a utilização dos empréstimos com a
função que antes era exclusiva dos tributos:

92 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 19 ed. Atualização Hugo de Brito Machado Segundo. Rio de
Janeiro: Forense, 2015, pp. 540-543.
93 Note-se que a utilização da expressão finanças funcionais revela que Aliomar Baleeiro não foi influenciado apenas por Keynes,
mas também por Abba Lerner.
94 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças, p. 600.
31

“Pelo volume astronômico que atingiu em certos países e pelas condições


específicas em que se desenvolve, o crédito público, do ponto de vista econômico,
exerce sobre a coletividade um papel de instrumento da repartição, da
redistribuição da riqueza e da renda nacionais, papel esse que, pouco a pouco,
se aproxima da ação análoga dos imposto. (...)
O impulso keynesiano, excitando a revisão de vários conceitos clássicos, não foi
estranho a essa nova compreensão da utilidade do crédito público.”

No entanto, com a onda neoliberal introduzida no final dos anos de 1970, o paradigma do
direito financeiro modificou-se inteiramente, com a adesão dos financistas à ideia de
equilíbrio financeiro do orçamento, do que a obra de Ricardo Lobo Torres95, que sofreu
influência neste ponto do economista neoliberal James Buchanan 96, é bastante
paradigmática, com a ideia de que o equilíbrio orçamentário é princípio de legitimação
que permeia todos os princípios orçamentários específicos, e que, embora não previsto
expressamente na Constituição97, tem sua disciplina recomendada por vários dispositivos
constitucionais:
“O equilíbrio orçamentário é princípio constitucional de legitimação porque
penetra em todos os princípios específicos, do lado da receita e da despesa, quer
se vinculem à justiça, quer derivem da segurança jurídica. (...)
A CF não proclama explicitamente o princípio do equilíbrio orçamentário,
embora o recomende em diversos dispositivos. (...) Até porque estampar o
princípio claramente na Constituição seria uma demasia, pois o equilíbrio
orçamentário depende da conjuntura econômica e não de preceitos jurídicos.
Regras positivas de limitação de endividamento, de transparência orçamentária
e de controle de gastos, como algumas que constam da CF, é que podem conduzir
ao equilíbrio orçamentário. (...)
A CF fez a opção pelo princípio do equilíbrio econômico, sob a reserva do
possível. Aderiu, induvidosamente, à ideia de necessidade de equilíbrio
orçamentário, a se viabilizar pela legislação ordinária; mas não lhe pretendeu
atribuir eficácia vinculante, pois permitiu o endividamento, ainda que limitado.”

95 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, vol. V. O Orçamento na Constituição. 3ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 173, 174 e 182.

96 BUCHANAN, James M. The Limits of Liberty – Between Anarchy and Leviathan. Chicago: The University of Chicago Press,
1975.

97 Ao contrário da Constituição Federal de 1967, que estabelecia a disciplina expressa do princípio do equilíbrio orçamentário, em
seu artigo 66, nos seguintes termos: “O montante da despesa autorizada em cada exercício financeiro não poderá ser superior ao
total das receitas estimadas para o mesmo período.” Ainda mais eloquente, o §3º do mesmo dispositivo: “§ 3º - Se no curso do
exercício financeiro a execução orçamentária demonstrar a probabilidade de déficit superior a dez por cento do total da receita
estimada, o Poder Executivo deverá propor ao Poder Legislativo as medidas necessárias para restabelecer o equilíbrio
orçamentário.“ Tal dispositivo foi suprimido pela EC nº 01/69.
32

Porém, apesar de sua clara defesa do princípio do equilíbrio orçamentário, coerente com
o seu pensamento liberal, a honestidade intelectual que marcou a trajetória de Ricardo
Lodo Torres98 o fez reconhecer que não poderia a Constituição Federal fazer a opção
ideológica neoliberal, em detrimento das soluções keynesianas:

“Não pode a Constituição determinar obrigatoriamente o equilíbrio


orçamentário, eis que este depende de circunstâncias econômicas aleatórias.
Demais disso, implicaria subverter o princípio da neutralidade ideológica da
Constituição, pela adoção de ponto de vista neoliberal e pela proibição de
eventual retorno à política deficitária que viesse a ser recomendada pelos
keynesianos.”

De todo modo, a despeito da ausência de opção constitucional pelo equilíbrio


orçamentário, é induvidoso que o nosso direito financeiro acabou refém da opção
ideológica pela limitação dos gastos às receitas tributárias em diversos dispositivos. São
exemplos disso, a limitação das despesas com a remuneração de servidores públicos
(artigo 169, CF, e LC nº 19/98), a limitação do endividamento público pelo Senado
Federal (artigo 52, V a IX, Resolução nº 48/2017 do Senado) e a proibição da
transferência voluntária de recursos e a concessão de empréstimos, inclusive por
antecipação de receita, pelos Governos Federal e Estaduais e suas instituições financeiras,
para pagamento de despesas de pessoal ativo, inativo e pensionistas dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios (artigo 167, XIII, CF, com redação dada pela EC nº
19/98), limitando o pagamento dessas despesas aos recursos advindos dos tributos, já que
Estados e Municípios não possuem outros mecanismos de obtenção de receitas.

Em relação às limitações ao crédito público, o artigo 164, § 2º veicula uma norma


proibindo a concessão de empréstimos pelo banco central ao tesouro, o que, se não
inviabiliza a operação, cotidiana na gestão fiscal do governo, a torna mais cara ao exigir
a triangulação com uma instituição financeira privada, o não faz o menor sentido.

98 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, vol. V. O Orçamento na Constituição, pp.
177 e 178.
33

Por sua vez, a introdução da Lei de Responsabilidade Fiscal - LC nº 101, em 2000,


promoveu grandes restrições ao gasto público, à luz do princípio do equilíbrio
orçamentário, em vários de seus dispositivos. São alguns exemplos, além da rígida
limitação do pagamento de pessoal, a classificação como não autorizado, irregular e
lesivo ao patrimônio público do aumento de despesas que não seja acompanhado de sua
adequação orçamentária e financeira e compatibilidade com o Plano Plurianual e com a
Lei de Diretrizes Orçamentárias (artigos 15 e 16). Também, a impossibilidade de criação
ou majoração de benefício de seguridade social sem a indicação de fonte de custeio (artigo
24). Vale citar ainda as limitações às transferências voluntárias (artigo 25), e as restrições
ao endividamento público e às operações de crédito (artigos 29 a 42).

Como reconhece André Lara Resende99, a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal é


resultado da necessidade de satisfazer as exigências do consenso macroeconômico
baseadas na austeridade fiscal, tendo contribuído para “mais de duas décadas de
crescimento desprezível, colapso dos investimentos públicos, uma infraestrutura
subdimensionada e anacrônica, estados e municípios estrangulados, incapazes de prover
os serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação. “

De outro lado, as leis de diretrizes orçamentárias têm fixado metas de superávit primário,
de modo a que, descontadas as despesas com as dívidas, o governo deva gastar menos do
que arrecada, o que constitui uma regra pró-cíclica por natureza, como destaca Laura
Carvalho100:
“Em particular, a meta de resultado primário—a diferença entre receitas e gastos
do governo excluindo o pagamento de juros sobre a dívida acumulada no
passado—é uma regra pró-cíclica em sua essência. Por estabelecer a cada ano
o quanto o governo deve arrecadar além do que gasta (ou gastar além do que
arrecada no caso de um déficit), o pé fiscal do famoso tripé macroeconômico
acaba forçando justamente esse tipo de atuação desestabilizadora. Isso porque
quando a economia vai mal, levando a uma queda da arrecadação de impostos,
o governo é obrigado a responder cortando gastos e aprofundando a crise. Já
quando a economia vai bem, como nos anos 2000, elevando essa arrecadação, o
governo ganha espaço para expandir gastos e torna a expansão acentuada. Além
disso, quando o orçamento é aprovado para o ano seguinte com base na meta de
resultado primário, utiliza-se uma projeção do que será o crescimento econômico
e, assim, de quanto será a arrecadação de impostos ao final do período. Se a
economia cresce menos do que o esperado, como em 2018 ou 2019, frustrando
as previsões de receitas, o governo tem de fazer contingenciamentos, bloqueando

99 RESENDE, André Lara. Consenso e Contraconsenso – Por uma Economia não dogmática, p 102-103.
100 CARVALHO, Laura. Curto-circuito, p. 21-22.
34

recursos aprovados pelo Congresso. Assim, esse tipo de regra prejudica o próprio
planejamento orçamentário e a execução de políticas pelos Ministérios.”

Em resumo, a meta de superávit fiscal reduz o gasto público nos momentos em que ele é
mais necessário e o libera quando o seu aumento não é recomenável.

Vale lembrar que o cumprimento das metas de superávit fiscal tem sido utilizado pela lei
orçamentária anual para condicionar a abertura de créditos suplementares pelo Poder
Executivo, o que o impede de pagar despesas previstas no orçamento quando a
arrecadação prevista não se confirmou. Neste caso, o direito financeiro brasileiro está
sendo utilizado não só para impedir a expansão do gasto destinada a enfrentar as recessões
econômicas, como para exacerbar os efeitos dessas, proibindo o pagamento de despesas
que já eram previstas no orçamento. Na rígida visão do equilíbrio orçamentário, tais
despesas já previstas não poderiam ser realizadas, obrigando o governo a contingenciá-
las, salvo que haja alteração legislativa da meta fiscal.

Em nosso país, a ortodoxia fiscal fez do direito financeiro não só instrumento para a
frustração dos direitos sociais e do desenvolvimento econômico, mais da própria
democracia, como se deu no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Foi
a abertura de créditos suplementares por decreto, antes da edição de lei que autorizasse
da modificação da meta fiscal, um dos dois pretextos utilizados pelo Congresso Nacional
para interromper o mandato presidencial, juntamente com o atraso do pagamento de
subvenções econômicas custeadas pelo Banco do Brasil, as chamadas pedaladas fiscais,
outra tese criada para condenar o adimplemento de direitos fundamentais em contexto de
crise econômica.101

Com impeachment, não se condenou apenas Dilma Rousseff, mas também as medidas
contracíclicas keynesianas, com o discurso de condenação ao déficit público. Mas essa
não é uma exclusividade nacional. Aliás, L. Randall Wray102 foi capaz de preconizar que
um dia ocorreria de um governo seria derrubado por este motivo:

101 Para um exame detalhado das razões do impeachment da presidente Dilma Rousseff sob a ótica do direito financeiro, vide:
RIBEIRO, Ricardo Lodi. “A ilegitimidade do impeachment da Presidente Dilma Rousseff à Luz do Direito Financeiro Brasileiro”,
in: Direito e Política em Tempos Sombrios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 1- 46, 2020.
102 WRAY, L. Randall. Trabalho e Moeda Hoje – A Chave para o Pleno Emprego e a Estabilidade, p 177.
35

“Essa gente reage ao déficit com horror! Seguramente déficits são um sinal de
imprudência fiscal e um caminho certo para a ruína. (...)
Eles acusam o governo de “gastador”, e, vamos supor, desencadeiam uma
campanha de “responsabilidade fiscal” e são capazes de derrubar o governo.”

Por fim, o ápice do controle dos gastos públicos, em nome da política de austeridade
neoliberal sob a égide do equilíbrio orçamentário, foi a aprovação da EC nº 95/16, que
congelou os gastos públicos. De acordo com emenda, as despesas realizadas em 2016,
atualizadas monetariamente pelo IPCA, constituiram teto para as despesas em 2017. E
assim sucessivamente pelos próximos vinte anos. Ao limitar a proposta apenas às receitas
primárias, deixando de fora o pagamento da dívida pública, se reserva para os credores
do Estado todo o crescimento econômico que o Brasil vier a conhecer nos próximos dois
decênios, constitucionalizando, a partir da proposta de um governo não eleito, uma
decisão que deveria ficar a cargo do legislador orçamentário a partir das prioridades
definidas pela sociedade, ano a ano.

Ou seja, o governo não eleito pelo povo e o Congresso que o colocou no poder,
estabeleceram as prioridades para todos os próximos governos escolhidos pelos eleitores:
apesar do aumento da população, das demandas sociais, do incremento das necessidades
de atendimento das políticas públicas, não será possível elevar despesas acima da
inflação. Todo o crescimento real da arrecadação verificado será canalizado para uma
única finalidade: o pagamento de dívida pública. Tal solução trágica não tem precedentes
na história das finanças públicas, seja no Brasil, seja no exterior.

Para os fins deste trabalho, o mais importante é que a fixação do teto dos gastos por
emenda constitucional não se relaciona com qualquer apreciação pelo governo do cenário
econômico, constituindo medida acíclica, como adverte Laura Carvalho103:
“Se a meta de resultado primário é pró-cíclica, a regra do teto de gastos
aprovado na emenda constitucional 95 é essencialmente acíclica. Em outras
palavras, a meta não tem qualquer relação com o estado da economia. Cada
Poder tem exatamente o mesmo montante para gastar todos os anos, ajustando-
se esse valor apenas pela inflação do ano anterior. Se a inflação não muda de um
ano para o outro, isso significa que o governo pode arrecadar mais ou arrecadar
menos e o teto fica exatamente no mesmo lugar. Alterações na taxa de inflação

103 CARVALHO, Laura. Curto-circuito, p. 22.


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até afetam o teto em termos reais, mas estão longe de torná-lo uma regra
anticíclica.”

Todas essas medidas legislativas estabeleceram no direito financeiro brasileiro uma


tomada de posição ideológica, de adesão ao equilíbrio orçamentário que prestigia a
ortodoxia neoliberal, embora esconda suas colorações sob o manto da neutralidade
científica. Essa tendência acaba por influenciar até os liberais igualitários, como revela
a declaração emblemática do Ministro do STF, Luís Roberto Barroso104, por ocasião do
julgamento da ação dirigida contra a tramitação da proposta de emenda constitucional
que desaguou na EC nº 95/16: “A responsabilidade fiscal é fundamento das economias
saudáveis, e não tem ideologia.” Tal afirmativa é uma contradição em termos, pois, ao
utilizar a expressão economias saudáveis que faz alusão ao termo finanças saudáveis,
serve-se da chave que abre a senha da linguagem normalmente empregada pela ideologia
neoliberal, e que foi contraposta pela expressão finanças funcionais, por Abba Lerner.
Ou seja, até as palavras escolhidas demarcam a divergência ideológica, que, embora
escondida por uma suposta neutralidade, não é, no entanto, capaz de sepultar do ambiente
de discussão a influência de quarenta anos de predomínio das ideias keynesianas, apesar
dos quarenta anos de hegemonia neoliberal. Por outro lado, a expressão responsabilidade
fiscal não tem sentido unívoco105, já que, como atesta Stephanie Kelton106, nunca é usada
senão em contexto seletivo, para inviabilizar o financiamento dos direitos sociais.

Com a pandemia, boa parte dessas restrições que o direito financeiro brasileiro estabelece
com base no princípio do equilíbrio orçamentário e em homenagem à ortodoxia
monetarista, restou temporariamente afastada pela chamada PEC do Orçamento de
Guerra, a EC nº 106/2020, com vigência até o final do exercício financeiro em que a

104 Notícias do STF, de 10/10/2016, a respeito do julgamento do Mandado de Segurança nº 34448, em que PT e PCdoB questionavam
a PEC nº 241/16, que deu origem à EC nº 95/16.
105 GALVÃO, Gustavo. Finanças Funcionais e Teoria Monetária Moderna – MMT: “Os termos “limite fiscal”, “responsabilidade
fiscal”, “austeridade fiscal”, “espaço fiscal” e “problema fiscal” não têm sentido claro. Para fazerem algum sentido, eles precisam
tratar de problemas em legislações associadas à contabilidade pública e para restringir juridicamente a liberdade democrática de
gasto público. Reiteremos: em termos estritamente econômicos, eles não têm sentido. A expressão “política fiscal” é válida po rque é
só um conceito sem conteúdo valorativo. Refere-se a políticas que envolvem gastos públicos ou tributação, simplesmente. As
legislações que impõem restrições contábeis à política fiscal são feitas para atender interesses do setor financeiro e de outros grupos
que desejam limitar a atuação da soberania democrática na gestão da política de gastos públicos e de tributação. Talvez o Brasil
seja a evidência global mais óbvia dessa proposição.”
106 KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy. New York: Public
Affairs, 2020.
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calamidade pública decorrente da pandemia estiver vigente, por absoluta impossibilidade


de cumprimento dessas regras face às necessidades de gastos e a frustração da arrecadação
tributária decorrente da Covid-19.

Pelas razões expostas neste trabalho, se foi possível fazê-lo durante a pandemia, é possível
transformar essas regras mais flexíveis em normas permanentes, em nome do
desenvolvimento econômico e social e do adimplemento dos direitos fundamentais.

6) Conclusão

Com a pandemia, que demonstrou a todos a importância dos serviços públicos, da ciência
e das universidades, bem como da coesão social necessária à superação da Covid-19,
volta-se a se destacar o papel do Estado Social e das políticas públicas. Esse cenário abre-
se ao reflorescimento das ideias keynesianas que já haviam sido ressuscitadas na crise
econômica mundial de 2008, bem como o desenvolvimento da teoria monetária moderna,
que fazem agudos questionamentos à ortodoxia neoliberal, em especial, à ideia de que os
gastos públicos devem ser limitados à arrecadação tributária.

Outrora demonizados, a emissão de moeda, os empréstimos e o déficit públicos voltam,


como na fase áurea do Estado Social, bem como no enfrentamento da Grande Depressão
de 2008, a fazer parte do rol de opções do governo em direção ao combate à recessão
decorrente das políticas de isolamento social.

No âmbito desse novo panorama, é necessário revisitar o direito financeiro brasileiro,


que, desde a revolução neoliberal, tem sido permeado pelo princípio do equilíbrio
orçamentário que, embora ausente da Constituição, tem encontrado aplicação prática
como se fosse um axioma de origem divina, impassível de ser questionado por qualquer
outro pensamento, já que blindado pela suposta neutralidade científica.

Identificadas as origens neoliberais dos institutos do direito financeiro pátrio, e


viabilizado o questionamento dessa ortodoxia que tanta desigualdade, miséria e
subdesenvolvimento trouxe ao nosso país e a tantos outros, é preciso reconstruir a pré-
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compreensão das relações jurídicas reguladas pelo direito financeiro, a fim de que os
mecanismos que a política democrática naturalmente dispõe para promover o
desenvolvimento econômico e social, bem como a inclusão de todos no mercado de
trabalho, não sem limitados por normas e concepções ideológicas produzidas a partir de
mitos introduzidos para atender aos interesses de poucos.

Libertando o direito financeiro dessas amarras ideológicas neoliberais, o princípio do


equilíbrio financeiro do orçamento é substituído pelo princípio do equilíbrio econômico
pelo orçamento, ou pelo orçamento funcional, para prestigiar a expressão de Abba Lerner,
tão cara aos adeptos da MMT.

Deste modo, poderão ser abertos caminhos para que a sociedade brasileira, abandone os
parâmetros burocráticos e, por decisões democráticas, possa decidir o seu destino, com a
fixação de um orçamento funcional, que juntamente com a imposição de uma tributação
progressiva destinada a promover a redistribuição de riquezas e rendas, seja viabilizada a
construção de uma sociedade mais justa e solidária para todos, sem que gerações inteiras
percam suas potencialidades no desemprego, na miséria e na falta de condições para o
desenvolvimento de todas as suas potencialidades emancipatórias de sua condição
humana.

Afinal, se foi possível promover a expansão monetária para socorrer bancos, para atender
as despesas da pandemia, também é possível fazê-lo para efetivar direitos fundamentais
há muito sonegados à maioria das pessoas.

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