UM FEMINISMO DECOLONIAL. Cap.1
UM FEMINISMO DECOLONIAL. Cap.1
DEFINIR UM CAMPO:
O FEMINISMO DECOLONIAL
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sobre gênero, feminismo, as lutas das mulheres e a crítica de luta sem trégua, a revolução como trabalho cotidiano. É nessa
um feminismo que chamo de civilizatório, pois tomou para si temporalidade que situo o feminismo de política decolonial.
a missão de impor, em nome de uma ideologia dos direitos das
mulheres, um pensamento único que contribui para a perpe-
tuação da dominação de classe, gênero e raça. Eu defendo um Continuar reivindicando o feminismo
feminismo decolonial que tenha por objetivo a destruição do
racismo, do capitalismo e do imperialismo, programa ao qual Nem sempre é fácil se dizer "feminista". As traições do femi-
tentarei dar uma dimensão concreta. nismo ocidental são um fator de repulsa, assim como seu de-
"O feminismo envolve muito mais do que a igualdade de gê- sejo violento de integrar o mundo capitalista, de ocupar um
nero. E envolve muito mais do que o gênero", 2 lembra Angela lugar no mundo dos homens predadores, e sua obsessão com a
Davis. Ele também ultrapassa a categoria "mulheres", fundada sexualidade dos homens racializados e com a vitimização das
sobre um determinismo biológico, e atribui novamente à no- mulheres racializadas. Por que se denominar feminista, por
ção de direitos das mulheres uma dimensão política radical: que defender o feminismo mesmo sabendo que esses termos
levar em conta os desafios impostos a uma humanidade amea- estão a tal ponto desgastados que até a extrema direita pode se
çada de desaparecer. Eu me posiciono contra uma temporali- apropriar deles? Se há dez anos as palavras "feminista" e "femi-
dade que descreve a libertação apenas em termos de "vitória" nismo" carregavam ainda um potencial radical e eram usadas
unilateral sobre a oposição. Tal perspectiva mostra "imensa como insultos, o que fazer agora que elas se tornaram parte
condescendência da posteridade" 3 em relação aos/às venci- do arsenal da direita neoliberal modernizadora? Agora que, na
dos/as. Essa escrita da história transforma a narrativa das lu- França, uma ministra pôde organizar uma "Universidade do Fe-
tas dos/as oprimidos/as em uma série de derrotas sucessivas e minismo" na qual o público majoritariamente feminino e que
impõe uma linearidade na qual todo recuo é visto como prova se diz feminista vaia uma moça de véu, mas deixa um homem
de que o combate foi malconduzido (o que é evidentemente lhe dar lição de moral por 25 minutos (sabiamente, os protestos
possível), e não como uma revelação da determinação das for- apareceram no Twitter)?° O que é o feminismo quando ele se
ças reacionárias e imperialistas em esmagar toda e qualquer
dissidência. É o que dizem os cantos de luta — negro spirituals, 4 A Universidade do Feminismo —organizada por Marlene Schiappa, se-
cretária de Estado encarregada da igualdade entre mulheres e homens
canções revolucionárias, músicas gospel, canções de escravos/ no governo de Emmanuel Macron — foi uma ação realizada em Paris nos
as, de colonizados/as: o longo caminho rumo à liberdade, uma dias 13 e 14 de setembro de 2018. Na ocasião, ela declarou: "Nosso desejo
é enfatizar a pluralidade dos movimentos feministas, poiso movimento
2 Angela Davis, A liberdade é uma luta constante, trad. Heci Regina Can- nunca foi monolítico, sempre foi atravessado por diferentes correntes, e
diani. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 99. pautar esse espaço de debates por três palavras de ordem: reflexões, opi-
3 Edward P. Thompson, La Formation dela classe ouvrière anglaise. Pa- niões e ações. O objetivo da grande causa do quinquênio do presidente
ris: Le Seuil, 2017. Emmanuel Macron é garantir que esses debates atravessem a sociedade".
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torna uma empresa de pacificação? Se feminismo e feministas Uma trajetória anticolonial
estão a serviço do capital, do Estado e do império, ainda é pos-
sível restituir o fôlego de um movimento que carrega objetivos A biografia não explica tudo, aliás, muitas vezes ela não explica
de justiça social, dignidade, respeito, políticas de vida contra lá grande coisa, mas em um livro sobre o feminismo preciso
políticas de morte? Não precisamos também defender o femi- dizer algo acerca de minha própria trajetória — não por ela ser
nismo contra os ataques de forças fascistas, nestes tempos em exemplar, mas pelo importante papel que as lutas feministas
que o estupro e o assassinato se tornam as principais armas desempenharam nela. Durante muitos anos, fui militante em
para disciplinar as mulheres? Ou quando até mesmo uma mu- grupos do MLF [Movimento de Libertação das Mulheres]; essas
lher loira, mãe de família, casada com um homem, professora lutas sempre estiveram ligadas a projetos de libertação mais
universitária, em conformidade com todas as normas de res- geral — no presente caso, na minha experiência, à libertação
peitabilidade da classe média branca nos Estados Unidos, já do colonialismo francês pós-1962. A base de meu interesse, de
não está mais protegida da manifestação do ódio — como se minha curiosidade e de meu engajamento em prol das lutas
viu na audiência de Christine Blasey Ford, nos debates para emancipadoras é a educação política e cultural que recebi na
a nomeação de Brett Kavanaugh para a Suprema Corte? Ou ilha da Reunião. Para a garotinha que eu era, criada em um
quando os governos do mundo inteiro fazem do feminismo contexto em que a escola, as mídias e as atividades culturais
uma ideologia antinacional, estrangeira à "cultura da nação", estavam todas submetidas à ordem colonial francesa pós-1962,
para reprimir mais as mulheres? Por muito tempo não me au- essa experiência foi excepcionalmente transformadora. Por
todenominei feminista, eu me dizia uma militante anticolonial muito tempo não me autodenominei militante feminista, mas
e antirracista nos movimentos de libertação das mulheres. Eu "militante da libertação das mulheres". Tive o privilégio de
fui levada a me autodenominar feminista, por um lado, em ra- crescer em unia família de comunistas feministas e anticolo-
zão da emergência de um feminismo político decolonial amplo, nialistas, de estar cercada por militantes de todo tipo de ori-
transnacional e plural; por outro, devido à cooptação das lutas gem, gênero e classe social que me instruíram a respeito do que
das mulheres pelo feminismo civilizatório. são a luta, a solidariedade, a alegria e a diversão associadas à
luta coletiva. A resposta de meus pais ao idealismo que não
Disponível em: www.francetvinfo.fr/societe/droits-des-femmes/uni-
ve rsite-dete-d u-feminisme-m a rl e ne-s chiap pa-ne-ve ut-p as-del ivrer-u n- suportava a derrota e que prevalecia na minha adolescência
brevet -de-feminisme-mais-inviter-a-la-reflexion_2910739.ht m1. Temas me trazia de volta a terra: "São uns brutos, fascistas, crápulas,
como "O véu e o feminismo", "O que vem depois do #MeToo?", "Podemos não devemos esperar nada deles. Eles não respeitam nenhum
ser feministas e mães dentro de casa?" ou "Como alcançar a igualdade
direito, a começar pelo direito à nossa existência". Não há
homem-mulher no trabalho?" estiveram em debate. Laura Cha, porta-
-voz da associação Lallab, foi vaiada durante sua intervenção. Disponí- nada de pessimista nessas observações, elas são muito mais
vel em: informati o n .tv5monde.com/terriennes/en-france-une-premiere- uma lição sobre outra temporalidade das lutas; as imagens da
unive rsite-d-ete-du-fem i n is me-so u s-le-signe-des-polemiques-et.
tomada do Palácio de Inverno, da entrada das tropas de Fidel
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Castro em Havana e das tropas da ALN [Exército de Libertação morte. Aprendi também que é preciso usar as leis do Estado
Nacional] na Argélia eram formidáveis, de mobilizar a imagi- contra ele próprio, mas sem ilusão nem idealismo, assim como
nação, mas se deter nelas seria correr o risco de encontrar um fizeram as mulheres escravas que lutaram para que a lei reco-
amanhã decepcionante. Amanhã a luta continuará. Também nhecesse o estatuto de liberdade que elas transmitiam a seus
aprendi muito cedo que, se o Estado quiser esmagar um mo- filhos,' ou ainda os/as colonizados/as, que utilizaram contra o
vimento, ele recorrerá a todos os meios para isso, usará todos Estado colonial suas próprias leis (liberdade de imprensa, liber-
os recursos à sua disposição para reprimir e para dispersar os/ dade de associação, direito ao voto...). Essa estratégia nunca era
as oprimidos/as. Ele bate com uma mão e com a outra tenta empregada sozinha, ela sempre vinha acompanhada de uma
cooptar. O medo é uma de suas armas preferidas para produzir crítica ao Estado e às suas instituições. As lutas se travam em
conformismo e consentimento. Rapidamente entendi o preço múltiplas frentes e com objetivos que visam a temporalidades
a ser pago por quem se permitiu escapar da injunção: "Passe diferentes. A existência de um mundo vasto, onde resistências
despercebida, não proteste demais e você não terá problemas". e recusas à submissão se opõem a uma ordem mundial injusta,
O decreto Debré, de 196o, foi a prova disso; condenando ao fez parte da compreensão de mundo que me foi transmitida.
exílio treze militantes anticolonialistas, incluindo líderes sin- Não foi chegando à França ou frequentando uma universidade
dicais, a mensagem era clara: toda voz dissidente será punida.' que descobri que capitalismo, racismo, sexismo e imperialismo
O historiador reunionês Prosper Ève cunhou a expressão "Ilha são companheiros de estrada; tampouco foi lendo Simone de
do Terror" para analisar como o escravagismo, o pós-escrava- Beauvoir que reencontrei o feminismo anticolonial e antirra-
gismo e o pós-colonialismo, até os anos 196o, difundiram o cista — ele foi parte de meu entorno desde a primeira infância.
terror como técnica de disciplina.' Certamente, o medo não
é exclusividade do dispositivo colonial, mas lembremos que
a escravidão colonial estava fundada na ameaça constante da A falsa inocência do feminismo branco
tortura e da morte de um ser humano legalmente transfor-
mado em objeto, assim como no espetáculo público de sua Na sequência do que escreveu Frantz Fanon,'A Europa é literal-
mente uma criação do Terceiro Mundo", pois foi construída so-
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bre o roubo das riquezas do mundo e, portanto, "a riqueza dos O feminismo como luta pelo direito de existir
países imperialistas é também nossa riqueza", 8 posso dizer que
a França é literalmente uma criação de seu império colonial e o Dizer-se feminista decolonial, defender os feminismos de polí-
Norte, uma criação do Sul. Assim, fico impressionada com o es- tica decolonial hoje não é apenas arrancar a palavra "feminismo"
quecimento obstinado da escravidão, do colonialismo e dos ter- das mãos ávidas da oposição, carente de ideologias, mas tam-
ritórios ultramarinos 9 nas análises da França atual e da política bém afirmar nossa fidelidade às lutas das mulheres do Sul global
dos sucessivos governos desde os anos 1950. Se comparados que nos precederam. É reconhecer seus sacrifícios, honrar suas
ao império colonial, os territórios ultramarinos fazem menos vidas em toda a sua complexidade, os riscos que assumiram,
parte ainda da história contemporânea: nenhum texto sobre as hesitações e as desmotivações que conheceram. É receber
as questões políticas, abordadas de uma perspectiva filosófica, suas heranças. Também é reconhecer que a ofensiva contra as
econômica ou sociológica, interessa-se por essa sobrevivência mulheres, atualmente justificada e reivindicada publicamente
do império colonial francês. Há aqui algo da ordem de uma von- pelos dirigentes estatais, não é simplesmente a expressão de
tade de apagar esses povos e seus países da análise dos conflitos, uma dominação masculinista descomplexificada, e sim uma
das contradições e das resistências. Qual seria o objetivo desse manifestação da violência destruidora suscitada pelo capita-
afastamento senão o de manter a ideia de que tudo isso — escra- lismo. O feminismo decolonial é a despatriarcalização das lutas
vidão, colonialismo, imperialismo — certamente aconteceu, mas revolucionárias. Em outras palavras, os feminismos de política
no exterior daquilo que constitui a França? Minimizam-se assim decolonial contribuem na luta travada durante séculos por parte
os laços entre capitalismo e racismo, entre sexismo e racismo, e da humanidade para afirmar seu direito à existência.
preserva-se uma inocência francesa. Desse modo, o feminismo
francês se passa por moderado diante da herança colonial e es-
cravocrata. É como se as mulheres, por serem vítimas da domi- Os feminismos de política decolonial 10
nação masculina, não tivessem nenhuma responsabilidade em
face das políticas empreendidas pelo Estado francês. Um dos fatos marcantes do início deste século xxl, que vem se
afirmando há alguns anos, é o movimento de feministas de polí-
8 Frantz Fanon, Les Damnés de Ia terre. Paris: La Découverte, 2002, p. 99 tica decolonial no mundo. Essa corrente desenvolveu uma mul-
[ed. bras.: Os condenados da terra, trad. José Laurênio de Melo. Rio de tiplicidade de práticas, experiências e teorias. As mais motivado-
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968]. ras e originais são aquelas provenientes de movimentos ligados
9 Os territórios ultramarinos são departamentos e países vinculados a
um Estado, mas administrados fora dele. Dentre os territórios ultrama- 10 Utilizo "um movimento", "movimentos" ou "os movimentos" e não digo
rinos franceses, há, por exemplo, a ilha da Reunião, situada a leste de "o movimento"; assim, sinalizo uma pluralidade de feminismos, a possibili-
Madagascar, o departamento da Guiana Francesa, na América do Sul, e dade de alternativas feministas, sendo todas elas, ao menos as que me in-
o arquipélago da Nova Caledônia, na Oceania. [N. T.] teressam, resolutamente antirracistas, anticapitalistas e anti-imperialistas.
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à terra que abordam as questões de modo transversal e inter- Os movimentos feministas de política decolonial, junto
seccional. Esse movimento, de feministas de política decolonial, a outros movimentos decoloniais e a todos os movimentos
não surpreendentemente provoca uma reação violenta nos he- de emancipação, enfrentam um momento de aceleração do
teropatriarcados, nas feministas do Norte e nos governos. Foi capitalismo que atualmente regula o funcionamento das de-
no Sul global que ele se desenvolveu, reativando a memória das mocracias. Eles devem encontrar alternativas ao absolutismo
lutas feministas precedentes, nunca perdidas porque nunca fo- econômico e à fabricação infinita de mercadorias. Nossas
ram abandonadas, apesar dos terríveis ataques sofridos. Apoia- lutas constituem uma ameaça aos regimes autoritários que
dos por feministas da Espanha, da França e dos Estados Unidos, acompanham o absolutismo econômico do capitalismo. Elas
os movimentos que o compõem declararam guerra ao racismo ameaçam também a dominação masculina, assustada por ser
e ao sexismo, ao capitalismo e ao imperialismo na ocasião das obrigada a renunciar a seu poder – e que, por todo lugar, mos-
grandes manifestações na Argentina, na Índia, no México e na tra sua proximidade com as forças fascistas. Elas desestabili-
Palestina. Suas militantes denunciam o estupro e o feminicídio e zam igualmente o feminismo civilizatório que, ao transformar
atrelam esse combate às lutas contra as políticas de desapropria- os direitos das mulheres em uma ideologia de assimilação e
ção, contra a colonização, o extrativismo e a destruição sistemá- de integração à ordem neoliberal, reduz as aspirações revo-
tica da vida. Não se trata nem de uma "nova onda", nem de uma lucionárias das mulheres à demanda por divisão igualitária
"nova geração", para usar as fórmulas favoritas que mascaram as dos privilégios concedidos aos homens brancos em razão da
vias múltiplas dos movimentos das mulheres, mas de uma nova supremacia racial branca. Cúmplices ativas da ordem capita-
etapa no processo de decolonização, que, sabemos, é um longo lista racial, as feministas civilizatórias não hesitam em apoiar
processo histórico. Essas duas fórmulas (onda e geração) con- políticas de intervenção imperialistas, políticas islamofóbicas
tribuem para o apagamento do longo trabalho subterrâneo que ou negrofóbicas.
permite às tradições esquecidas renascerem e ocultam o próprio As consequências são enormes e o perigo imenso. Trata-se
fato de que elas foram soterradas; em outras palavras, essa metá- aqui de fazer oposição ao nacionalismo autoritário e ao neo-
fora confia uma responsabilidade histórica a um fenômeno me- fascismo, que consideram as feministas racializadas inimigas
cânico ("onda") ou demográfico ("geração"). Os feminismos de a serem abatidas. E a democracia ocidental não nos protegerá
política decolonial rejeitam essas fórmulas que segmentam, pois mais quando os interesses do capitalismo forem de fato amea-
eles se apoiam na longa história das lutas de suas antepassadas, çados. O absolutismo capitalista vê com bons olhos todos os
mulheres autóctones durante a colonização, mulheres reduzidas regimes que lhe permitam impor suas regras e seus métodos,
à escravidão, mulheres negras, mulheres nas lutas de libertação abrindo-lhes espaços que ainda não foram colonizados, con-
nacional e de internacionalismo subalterno feminista nos anos cedendo-lhes acesso à propriedade da água, do ar e da terra.
1950–1970, mulheres racializadas que lutam cotidianamente A ascensão dos reacionários de todos os tipos deixa algo
nos dias de hoje. claro: uma feminista que não luta pela igualdade de gênero,
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que se recusa a ver como a integração deixa as mulheres racia- ele subjugava e cuja civilização ele negava. Nosso combate se
lizadas à mercê da brutalidade, da violência, do estupro e do posiciona claramente contra a política do roubo justificado,
assassinato, acaba por ser cúmplice de tudo isso. Essa é a lição legitimado e praticado sob os auspícios ainda vivos de uma
a ser tirada da eleição para presidente do Brasil, em outubro de missão civilizatória. Sem negar as complexidades e as contra-
2018, de um homem branco apoiado por grandes proprietários dições dos séculos de colonialismo europeu, ou aquilo que
de terra, pelo mundo dos negócios e por Igrejas evangélicas; escapou às suas técnicas de vigilância; sem ocultar também
um homem que declarou abertamente sua misoginia, sua ho- as técnicas de empréstimo ou de desvio utilizadas por coloni-
mofobia, sua negrofobia, seu desprezo pelos povos indígenas, zados/as, ainda nos falta um conhecimento aprofundado das
sua vontade de vender o Brasil ao melhor pagador, de violar trocas (culturais, técnicas e científicas) Sul-Sul. Em grande
as leis sociais voltadas às classes mais pobres e as leis de pro- parte, essa falta se deve às políticas de financiamento da pes-
teção à natureza, de voltar atrás nos acordos assinados com quisa. Trata-se de uma luta por justiça epistêmica, isto é, uma
povos indígenas, e tudo isso alguns meses após o assassinato justiça que reivindica a igualdade entre os saberes e contesta
da vereadora queer e negra Marielle Franco. Uma abordagem a ordem do saber imposto pelo Ocidente. Os feminismos de
simples em termos de igualdade de gênero mostra seus limi- política decolonial se inscrevem no amplo movimento de
tes no momento em que partidos de direita autoritária e de reapropriação científica e filosófica que revisa a narrativa
extrema direita elegem mulheres para sua presidência ou as europeia do mundo. Eles contestam a economia-ideologia
escolhem como porta-vozes — Sarah Palin, Marine Le Pen, da falta, essa ideologia ocidental-patriarcal que transformou
Giorgia Meloni... mulheres, negros/as, povos indígenas, povos da Ásia e da
África em seres inferiores marcados pela ausência de razão,
de beleza ou de um espírito naturalmente apto à descoberta
Crítica dos epistemicídios científica e técnica. Essa ideologia forneceu o fundamento
das políticas de desenvolvimento que, grosso modo, dizem:
No magnífico filme de Fernando Solanas, A hora dos fornos "Vocês são subdesenvolvidos, mas podem se tornar desenvol-
(1968), a seguinte frase aparece na tela: "O preço que pagamos vidos, desde que adotem nossas tecnologias, nossos modos
por sermos humanizados/as" [The price we pay to be humanized]. de resolver os problemas sociais e econômicos. Vocês devem
Com efeito, o preço a ser pago foi e continua sendo pe- imitar nossas democracias, o melhor dos sistemas, pois não
sado. O sistema contra o qual lutamos relegou à inexistência sabem o que é liberdade, respeito pelas leis, separação de po-
saberes científicos, estéticas e categorias inteiras de seres deres". Essa ideologia alimenta o feminismo civilizatório que,
humanos. Este mundo europeu nunca conseguiu ser hege- por sua vez, basicamente afirma: "Vocês não possuem liber-
mônico, mas ele se apropriou, sem hesitar e sem se envergo- dade, não conhecem os direitos que têm. Nós vamos ajudá-
nhar, de saberes, estéticas, técnicas e filosofias de povos que -los a atingir o nível adequado de desenvolvimento". O traba-
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lho de redescoberta e valorização dos saberes, das filosofias, apresentadas como "naturais", consideradas um fato de cultura,
das literaturas e dos imaginários não começa conosco, mas um acidente, uma triste contingência em nossas democracias. É
uma de nossas missões é nos esforçarmos para conhecê-los necessário denunciar a violência sistêmica contra as mulheres e
e disseminá-los. As militantes feministas sabem como a di- os transgêneros, mas sem opor as vítimas umas às outras; é pre-
fusão das lutas está suscetível à interrupção; elas enfrentam ciso analisar a produção dos corpos racializados sem esquecer a
frequentemente a ignorância das lutas e das resistências, violência que tem por alvo os/as transgêneros/as e os/as traba-
muitas vezes escutando coisas como "nossos pais baixaram lhadores/as do sexo; desnacionalizar e decolonizar a narrativa
a cabeça, deixaram-se levar". A história das lutas feministas do feminismo branco burguês sem ocultar as redes feministas
é repleta de lacunas, de aproximações, de generalidades. As antirracistas internacionalistas; prestar atenção às políticas de
feministas de política decolonial e das universidades femi- apropriação cultural, desconfiar do interesse das instituições de
nistas racializadas compreenderam a necessidade de desen- poder pela "diversidade". Não devemos subestimar a velocidade
volver ferramentas próprias de difusão e de conhecimento: com que o capital é capaz de absorver certas noções para trans-
por meio de blogs, filmes, exposições, festivais, encontros, formá-las em palavras de ordem esvaziadas de seu conteúdo;
obras, peças de teatro, danças, cantos, músicas, elas fazem por que o capital não seria, então, capaz de incorporar a ideia de
circular narrativas e textos, traduzem, publicam, filmam, decolonização, de decolonialidade? O capital é colonizador, a
tornam conhecidos figuras históricas e movimentos. É um colônia lhe é consubstancial, e para entender como ela perdura,
movimento de destaque, que se empenha em traduzir textos é preciso se libertar de uma abordagem que enxerga na colônia
feministas provenientes do continente africano, da Europa, apenas a forma que lhe foi dada pela Europa no século xtx e
do Caribe, da América do Sul e da Ásia em diversas línguas. não confundir colonização com colonialismo. Nesse sentido, a
distinção que faz Peter Ekeh é útil: a colonização é um aconte-
cimento / período, e o colonialismo é um processo / movimento,
O que é a colonialidade? um movimento social total cuja perpetuação se explica pela
persistência das formações sociais resultantes dessas sequên-
Entre os eixos de luta de um feminismo decolonial é neces- cias. 11 Os feminismos decoloniais estudam o modo como o
sário, primeiramente, sublinhar o combate à violência poli- complexo racismo / sexismo / etnicismo impregna todas as re-
cial e à militarização acelerada da sociedade, que se apoiam lações de dominação, ainda que os regimes associados a esse
na ideia de que a proteção deve ser garantida pelo Exército, fenômeno tenham desaparecido. A noção de colonialidade é ex-
pela justiça de classe / racial e pela polícia. Isso implica recu-
sar o feminismo carcerário e punitivo que se satisfaz com uma
11 Citado por Sabelo J. Ndlovu-Gatsheni, Epistemic Freedom in Africa:
abordagem judicial das violências, sem questionar a morte Deprovincialization and Decolonization. London: Routledge, 2018, p. 64.
de mulheres e homens racializados/as, uma vez que elas são O texto de Peter Ekeh é de 1983.
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tremamente importante para analisar a França contemporânea Contra o eurocentrismo
neste momento em que tantas pessoas, mesmo aquelas que se
posicionam à esquerda, continuam acreditando que o colonia- Para dar o alcance necessário à nossa crítica, é preciso dizer
lismo acabou. De acordo com essa narrativa, a descolonização que o feminismo civilizatório nasce com a colônia, pois as fe-
teria simplesmente colocado um ponto final no colonialismo. ministas europeias elaboram um discurso sobre a opressão se
No entanto, além de a República continuar exercendo controle comparando aos escravos. A metáfora da escravidão é pode-
sobre territórios em estado de dependência, as instituições de rosa, afinal, as mulheres não seriam propriedade do pai e do
poder permanecem estruturadas pelo racismo. Para as feminis- marido? Não estariam submissas às leis sexistas da Igreja e do
tas de política decolonial na França, a análise da colonialidade Estado? O feminismo da Europa das Luzes não reconhece as
republicana francesa permanece central. Trata-se de uma colo- mulheres que participaram da Revolução Haitiana (que será co-
nialidade que herdou a partilha do mundo que a Europa definiu memorada pelos poetas românticos), nem as mulheres escra-
no século xvi e que continuou reafirmando por meio da espada, vizadas que se revoltaram, fugiram, resistiram. A questão aqui
da pena de escrever, da fé, do chicote, da tortura, da ameaça, da não é emitir um juízo de valor retrospectivo, mas se perguntar
lei, do texto, da pintura e, depois, por meio da fotografia e do por quê, tendo em conta essa cegueira, essa indiferença, ainda
cinema; uma colonialidade que institui uma política de vidas não foi feita uma revisão crítica da genealogia do feminismo
descartáveis, humans as waste. Entretanto, não saberíamos li- europeu. Reescrever a história do feminismo desde a colônia
mitar nossa proposta ao espaço-tempo da narrativa europeia. A é primordial para o feminismo decolonial. Não podemos nos
história das decolonizações é também aquela do longo período contentar em pensar a colônia como uma questão subsidiária
de lutas que abalaram a ordem do mundo. Desde o século xvI, da história. É preciso considerar que, sem ela, não teríamos
os povos combateram a colonização ocidental (as lutas dos po- uma França de instituições estruturalmente racistas. No que
vos indígenas e dos/as africanos/as reduzidos/as à escravidão e concerne às mulheres racializadas do Norte e do Sul global, to-
a Revolução Haitiana). Ainda, apagar as transferências e os iti- das as facetas de suas vidas, os riscos aos quais elas se expõem,
nerários das libertações Sul-Sul, ocultando as experiências in- o preço que pagam pela existência da misoginia, do sexismo e
ternacionalistas das forças anticoloniais, leva a crer que a des- do patriarcado ainda estão para ser estudados e visibilizados.
colonização foi apenas uma independência do ponto de vista Lutar contra o femi-imperialismo é fazer ressurgir do silêncio
da lei, até mesmo um engodo. A ignorância sobre a circulação as vidas das mulheres "anônimas", recusar o processo de pa-
Sul-Sul de pessoas, ideias e práticas emancipatórias sustenta a cificação e analisar por que e como os direitos das mulheres
hegemonia do eixo Norte-Sul; não obstante, as trocas Sul-Sul se tornaram uma arma ideológica a serviço do neoliberalismo
foram cruciais para a difusão de sonhos de libertação. Essas (que pode perfeitamente, em outros lugares, promover um re-
releituras em termos de espaço-tempo são fundamentais para gime misógino, homofóbico e racista). Quando os direitos das
estimular a imaginação das feministas de política decolonial. mulheres se resumem à defesa da liberdade — "ser livre para, ter
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o direito de..." —, sem questionar o conteúdo dessa liberdade racistas. Mesmo o apoio aos/às nacionalistas argelinos/as, que
e sem interrogar a genealogia dessa noção na modernidade foi tão importante para as feministas francesas, não resultou
europeia, temos o direito de perguntar se esses direitos não em uma análise do "choque do retorno" do qual fala, admira-
estariam sendo concedidos pelo fato de outras mulheres não velmente, Aimé Césaire em seu Discurso sobre o colonialismo:
serem livres. A narrativa do feminismo civilizatório permanece a colonização trabalha para descivilizar o colonizado. Falar de
encerrada no espaço da modernidade europeia e nunca consi- feminismo civilizatório, ou branco-burguês, nessa perspectiva,
dera o fato de que ela se funda na negação do papel da escravi- adquire um sentido bastante preciso. Ele não é "branco" sim-
dão e do colonialismo em sua própria formação. A solução não plesmente porque as mulheres brancas o adotaram, mas por-
é conceder um lugar, necessariamente marginal, às mulheres que ele reivindica seu pertencimento a uma parte do mundo,
escravizadas, colonizadas ou às mulheres racializadas e prove- à Europa, que foi construída com base em uma partilha racia-
nientes dos territórios ultramarinos. O que está em questão é lizada do mundo. Temos o direito de colocar a seguinte per-
a forma como a divisão do mundo, no qual a escravidão e o co- gunta: como e por que o feminismo teria escapado daquilo
lonialismo operam desde o século xvi (de um lado uma huma- que foi difundido durante séculos de dominação e supremacia
nidade que tem o direito de viver e, de outro, aquela que pode brancas? Uma vez que, frequentemente, confundimos racismo
morrer), atravessa os feminismos ocidentais. Se o feminismo e extrema direita, pogroms e guetos na Europa, não é possível
permanece fundado na divisão entre mulheres e homens (uma medir até que ponto o racismo se espalhou e se propagou na
divisão que precede a escravidão), mas não analisa como a es- surdina, sem furor, por meio da naturalização do estado de
cravidão, o colonialismo e o imperialismo agem sobre essa servidão racializada e da ideia de que algumas civilizações se-
divisão — nem como a Europa impõe a concepção da divisão riam incompatíveis com o progresso e os direitos das mulheres.
mulheres/homens aos povos que ela coloniza ou como esses Salvar as mulheres racializadas do "obscurantismo" continua
povos criam outras divisões —, ele é, então, um feminismo ma- sendo um dos grandes princípios das feministas civilizatórias.
chista. A Europa permanece como seu centro, todas as análises Elas fizeram desse princípio uma política que visa às mulheres
partem dela: as raízes coloniais do fascismo são esquecidas; o das colônias e, em seus países, às mulheres racializadas e às
capitalismo racial não é uma categoria de análise; as mulheres mulheres de classes populares. Não se pode negar que, para
escravizadas e colonizadas não são percebidas como o espe- algumas, essas ações encontram fundamento na boa vontade,
lho negativo das mulheres europeias. Raras são as feministas na ideia de que elas são movidas por bons sentimentos e pelo
europeias que foram claramente antirracistas e anticolonia- desejo de melhorar a situação das mulheres; admite-se tam-
listas. Evidentemente, houve exceções: jornalistas, advogadas bém que colonizados/as souberam tirar vantagem dessas ações,
e militantes declararam solidariedade aos/às colonizados/as, mas há uma diferença entre ajuda e crítica radical do colonia-
mas esse exemplo não constituiu o fundamento do feminismo lismo e do capitalismo, entre ajuda e combate da exploração
francês — que, no entanto, tem uma dívida com as lutas antir- e da injustiça. Ou, para citar a militante indígena australiana
44 45
Lilla Watson: "Se vocês vieram para me ajudar, estão perdendo O feminismo aqui em questão faz uma análise multidimen-
seu tempo. Mas se vieram porque a libertação de vocês está sional da opressão e se recusa a enquadrar raça, sexualidade e
ligada à minha, então trabalhemos juntas " . 12 classe em categorias que se excluem mutuamente. A multidi-
mensionalidade, noção proposta por Darren Lenard Hutchin-
son, responde aos limites da noção de interseccionalidade, com
Por uma pedagogia decolonial crítica vistas a melhor compreender como o "poder racista e hetero-
normativo cria não apenas exclusões precisas na intersecção
As teorias e as práticas forjadas no seio das lutas antirracistas, das dominações, mas molda todas as proposições sociais e sub-
anticapitalistas e anticoloniais são fontes inestimáveis. Os femi- jetivas, inclusive entre aqueles que são privilegiados". 13 Essa
nismos de política decolonial colocam à disposição das lutas que noção ecoa no "feminismo da totalidade", uma análise que se
partilham o objetivo de reumanizar o mundo a sua biblioteca de propõe a levar em conta a totalidade das relações sociais. 14 Eu
saberes, sua experiência de práticas, suas teorias antirracistas partilho da importância atribuída ao Estado e sou adepta de
e antissexistas, incansavelmente associadas às lutas anticapita- um feminismo que pensa conjuntamente patriarcado, Estado
listas e anti-imperialistas. Uma feminista não pode ambicionar e capital, justiça reprodutiva, justiça ambiental e crítica da in-
possuir "a" teoria e "o" método, ela busca ser transversal. Ela se dústria farmacêutica, direito dos/as migrantes, dos/as refugia-
questiona acerca daquilo que não enxerga, tenta descontruir o dos/as e fim do feminicídio, luta contra o Antropoceno-Capi-
cerco escolar que lhe ensinou a não mais ver, a não mais sentir, taloceno racial e luta contra a criminalização da solidariedade.
a abafar seus sentimentos, a não mais saber ler, a ser dividida no Não se trata de reconectar elementos de modo sistemático
interior de si mesma e a ser separada do mundo. Ela deve rea- e, no fim das contas, abstrato, mas de fazer o esforço de ob-
prender a ouvir, ver, sentir para poder pensar. Ela sabe que a luta servar se existem conexões e quais são elas. Uma abordagem
é coletiva, sabe que a determinação dos/as inimigos/as em des- multidimensional permite evitar uma hierarquização das lutas
truir as lutas de libertação não deve ser subestimada, que eles fundada em uma escala de urgência cuja estrutura, via de re-
usarão todas as armas à sua disposição: a censura, a difamação, gra, permanece ditada por preconceitos. Sustentar múltiplos
a ameaça, o encarceramento, a tortura, o assassinato. Ela tam-
bém sabe que na luta há dificuldades, tensões, frustações, mas 13 Michael Stambolis-Ruhstorfer, "La'Multidimensionnalité' comme
também alegria, diversão, descobertas e ampliação do mundo. outil de lutte pour une justice raciale et sexuelle complete", in Hourya
Bentouhami e Mathias Mõschel (ed.), Criticai Race Theory: Une introduc-
rion aux grands textes fondateurs. Paris: Dalloz, 2017, p. 310.
12 A citação foi retirada do discurso de Lilla Watson na Conferência das 14 Félix Boggio Éwanjé-Épée, Stella Magliani-Belkacem, Morgane Mer-
Nações Unidas para a "década das mulheres" em Nairóbi, em 1985, mas teuil e Frédéric Monferrand, "Programme pour un féminisme de Ia tota-
Watson prefere dizer que ela é fruto de uma reflexão coletiva dos grupos lité", in Titti Bhattacharya et ai., Pour Un Féminisme de Ia totalité. Paris:
militantes aborígenes de Queensland, elaborada nos anos 1970. Éditions Amsterdam, 2017, p. 18.
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fios ao mesmo tempo para superar a segmentação induzida banana e meio ambiente (monocultura, água poluída, terras
pela ideologia e "apreender o modo pelo qual a produção e a poluídas), banana e sexualidade, banana e música, banana e
reprodução social se articulam historicamente°, 15 eis o desa- espetáculo (Josephine Baker), banana e branding (Banana Re-
fio. Foi essa abordagem que guiou minha análise de milhares public), banana e racismo (há quanto tempo a banana está as-
de abortos e esterilizações sem consentimento perpetradas sociada à negrofobia?), banana e ciência (a busca pela banana
anualmente na ilha da Reunião nos anos 1970, pois, se eu ti- "perfeita"), banana e consumo (levar a banana aos lares, sugerir
vesse parado na explicação que identificava como únicos res- receitas), banana e ritos aos antepassados, banana e arte con-
ponsáveis por esse crime os médicos brancos e franceses que temporânea. O método é simples: partir de um elemento para
o cometiam, eu o teria reduzido a uma história de ganância revelar um ecossistema político, econômico, cultural e social
de alguns homens brancos; porém, um estudo da totalidade buscando evitar a segmentação imposta pelo método ociden-
dos elementos descortinou uma política estatal francesa a fa- tal das ciências sociais. Aliás, as análises mais esclarecedoras
vor da natalidade na França e contra a natalidade das mulheres e produtivas das últimas décadas foram aquelas que puxaram
racializadas e pobres em seus departamentos "ultramarinos", o maior número de fios, colocando em evidência as redes de
política que se inscrevia no âmbito de uma reconfiguração opressão concretas e subjetivas que tecem a teia da exploração
global das políticas ocidentais de controle de nascimentos e das discriminações.
em um contexto de lutas de libertação nacional e de Guerra
Fria. 1 ' Da mesma forma, em uma apresentação" de pedago-
gia decolonial crítica, utilizei uma fruta conhecida, a banana, O feminismo decolonial como imaginário utópico
para esclarecer certo número de analogias e afinidades eletivas
p rovenientes de sua disseminação da Nova Guiné para o resto No contexto de um capitalismo com o poder destrutivo re-
do mundo: banana e escravidão, banana e imperialismo us (ba- dobrado, de um racismo e de um sexismo mortais, esta obra
nana republics), banana e agronegócio (pesticidas, inseticidas diz sim ao feminismo que chamo de feminismo de política de-
— o escândalo do clordecona nas Antilhas), banana e condições colonial, que precisa ser defendido, desenvolvido, afirmado
de trabalho (regime de plantation, violência sexual, repressão), e colocado em prática. O feminismo de quilombagem oferece
ao feminismo decolonial uma ancoragem histórica nas lutas
15 Ibid., p.23. de resistência ao tráfico e à escravidão. Chamo aqui de qui-
16 Françoise Vergês, Le Ventre desfemmes. Capitalisme, racialisation, lombagem [marronnage] e de quilombolas todas as iniciativas,
féminisme. Paris: Albin Michel, 2017.
todas as ações, todos os gestos, cantos e rituais que noite e dia,
17 Apresentação feita em conferências e ateliês nos países do Sul que
versaram sobre pedagogias decoloniais. Ver o artigo fruto dessa apre- escondidos ou visíveis, representam uma promessa radical. A
sentação: Françoise Vergês, " Bananes, esclavage et capitalisme racial". Le quilombagem afirmava a possibilidade de um futuro mesmo
/ournal des Laboratoires, Cahier C, 19, Aubervilliers, 2018-2019, pp. 9-11. quando ele era negado pela lei, pela Igreja, pelo Estado e pela
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cultura, os quais proclamavam que não havia alternativa à vidindo os cargos igualitariamente entre homens e mulheres
escravidão — considerada tão natural quanto o dia e a noite sem questionar a organização social, econômica e cultural e
— e afirmavam que a exclusão dos/as negros/as da humani- que pretende transformar o gênero, a sexualidade, a classe,
dade era algo natural. Os/As quilombolas tornaram visível o as origens e a religião em um assunto completamente pri-
aspecto fictício dessa naturalização e, ao quebrarem os có- vado ou em mercadoria? Combater o femonacionalismo e
digos, elas/eles operaram uma ruptura radical que rasgou o o fervi-imperialismo (desenvolverei os conceitos posterior-
véu da mentira. Elas/eles desenharam territórios soberanos mente) também é um argumento para defender o feminismo
no próprio coração do sistema escravocrata e proclamaram decolonial, mas não é o bastante. O argumento essencialista
a liberdade. Seus sonhos, suas esperanças, suas utopias, e de uma natureza feminina que seria mais capaz de respeitar
mesmo os motivos de suas derrotas, permanecem espaços a vida e de desejar uma sociedade justa e igualitária não se
de onde se pode tirar um pensamento de ação. Portanto, é sustenta; as mulheres não são, nem espontaneamente nem
uma utopia, no sentido de uma promessa radical, que se co- em si mesmas, uma categoria política. O que justifica uma
loca como uma via contrária ao capitalismo, que também reaproximação do termo "feminismo" de suas teorias e prá-
proclama que não há alternativa à sua ideologia, que ele é ticas ancora-se na consciência de uma experiência profunda,
tão natural quanto o dia e a noite, e chega a prometer solu- concreta e cotidiana de uma opressão produzida pela matriz
ções tecnológicas e científicas que transformam suas ruínas Estado, patriarcado e capital, que fabrica a categoria "mulhe-
em espaços de felicidade. Contra essas ideologias, a quilom- res" para legitimar as políticas de reprodução e de categori-
bagem como política da desobediência afirma que existe a zação [assignation], 18 ambas racializadas.
possibilidade de uma "futuridade" [futurity], para usar a no- Os feminismos de política decolonial não têm por objetivo
ção das feministas negras dos Estados Unidos. Afirmando-se melhorar o sistema vigente, mas combater todas as formas de
quilombola, o feminismo se ancora nesse questionamento opressão. Justiça para as mulheres significa justiça para todos.
da naturalização da opressão; afirmando-se decolonial, ele Eles não cultivam esperanças ingênuas, não se alimentam do
combate a colonialidade do poder. Mas o engajamento no ressentimento ou da amargura. Nós sabemos que o caminho
campo do feminismo seria a resposta adequada ao aumento é longo e cheio de percalços, porém guardamos na memória
do fascismo na política, à predação capitalista, à destruição a coragem e a resistência das mulheres racializadas ao longo
das condições ecológicas necessárias aos seres vivos, às po- da história. Não se trata, portanto, de uma nova onda do fe-
líticas de desapropriação, de colonização, de apagamento e
de mercantilização, à criminalização e à prisão como respos- 18 A assignation, no contexto utilizado, diz respeito a papéis atribuídos
a determinados grupos sociais em função de suas representações pre-
tas para o aumento da pobreza? Faz sentido lutar pelo femi-
dominantes. Nesse sentido, espera-se que esses grupos correspondam
nismo civilizatório, também chamado de mainstream ou de aos papéis que lhes foram designados sob pena de serem considerados
branco-burguês, que acredita poder corrigir as injustiças di- fora da norma.
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minismo, e sim da continuação das lutas de emancipação das nunca levar em conta o "choque do retorno" da escravidão e
mulheres do Sul global. do colonialismo. Sabe-se que, sob um regime de escravidão, a
Os feminismos de política decolonial são respaldados em qualquer momento se podiam arrancar os filhos de suas mães;
teorias e práticas que certas mulheres forjaram ao longo do que elas não estavam autorizadas a defendê-los; que as mulhe-
tempo no seio das lutas antirracistas, anticapitalistas e antico- res negras estavam à disposição dos filhos de seus proprietá-
loniais, contribuindo para a ampliação das teorias de libertação rios como amas de leite; que meninas e mulheres negras eram
e de emancipação no mundo inteiro. O que está em questão é exploradas sexualmente e que todos esses papéis estavam sub-
o combate firme da violência policial, da militarização acele- metidos aos caprichos do senhor de escravos/as, de sua esposa
rada da sociedade e da concepção de segurança que confia ao e seus filhos/as. Os homens eram privados do papel social de
Exército, à justiça de classe/racial e à polícia a tarefa de assegu- pai e de companheiro. Essa destruição de laços familiares, que
rá-la. Essa postura implica a recusa do feminismo do encarce- era estabelecida pela lei, continua a projetar sua sombra sobre
ramento, do feminismo punitivo. as políticas familiares que visam às minorias racializadas e aos
Nessa cartografia das lutas das mulheres do Sul, a escravi- povos indígenas.
dão colonial exerce, a meu ver, um papel fundamental. Ela é a
"matriz da raça", para retomar a expressão tão precisa da filósofa
Elsa Dorlin; ela reconecta a história da acumulação de riquezas, Mulheres brancas e mulheres do Sul global
da economia de plantation e do estupro (fundamento de uma
política da reprodução na colônia) à história da destruição siste- Sabemos que as mulheres brancas não gostam que lhes digam
mática dos laços sociais e familiares e ao núcleo raça/classe/gê- que elas são brancas. Ser branco foi construído como algo tão
nero/sexualidade. A temporalidade escravidão/abolição coloca ordinário, tão despido de características, tão normal, tão des-
a escravidão colonial em um passado histórico, e assim ignora provido de sentido que, como observa Gloria Wekker em White
o fato de que as estratégias de racialização e sexualização con- Innocence: Paradoxes of Colonialism and Race, 19 é praticamente
tinuam projetando suas sombras em nosso tempo. No entanto, impossível fazer uma mulher branca reconhecer que é branca.
a imensa contribuição do afro-feminismo (Brasil, Estados Uni- Se você lhe disser isso, ela fica perturbada, agressiva, horrori-
dos) para a compreensão da importância da escravidão colo- zada, praticamente em lágrimas. Ela acha seu comentário "ra-
nial na formação do mundo moderno e na invenção do mundo cista". Para Fatima El-Tayeb, dizer que o pensamento europeu
branco, assim como do papel exercido pela escravidão colonial moderno deu origem à raça representa uma violação insupor-
na proibição de laços familiares, ainda não afetou as análises tável de algo precioso para europeus e europeias: a ideia de um
do feminismo branco-burguês. Feministas do Ocidente certa-
mente analisaram como se constroem a "boa maternidade", a 19 Gloria Wekker, White Innocence: Paradoxes of Colonialism and Race.
"boa mãe" e o "bom pai" da família heteronormativa, mas sem Durham: Duke University Press, 2or6.
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continente color-blind [daltônico], desprovido da ideologia é necessário educá-las acerca da própria história, mesmo que
devastadora que ele exportou para o mundo inteiro. 20 O sen- uma vasta biblioteca sobre esses temas esteja disponível. O que
timento de ser inocente está no centro dessa incapacidade de as impede? Por que elas esperam para ser educadas? Algumas
se ver como branca e, portanto, de se proteger contra toda e dizem que nós esquecemos a classe, que o racismo foi inven-
qualquer responsabilidade na ordem do mundo atual. Assim, tado para dividir a classe operária, que paradoxalmente nós
não poderia haver um feminismo branco (uma vez que não há favorecemos a extrema direita ao falar em "raça". Cabe sempre
mulheres brancas), mas um feminismo universal. A ideologia às racializadas explicar, justificar, reunir os fatos, os números,
dos direitos das mulheres que o feminismo civilizatório pro- no entanto fatos, números e senso moral não mudam nada na
move não poderia ser racista, pois emana de um continente li- relação de força. Reni Eddo-Lodge expressa um sentimento
vre de todo racismo. Antes de prosseguir, convém repetir — uma familiar e legítimo quando explica: "Porque não quero mais
vez que toda referência à existência de branquitude gera uma falar sobre raça com os brancos". Fingir que o debate sobre o
acusação de "racismo às avessas" — que não se trata aqui da cor racismo pode se dar como se as duas partes estivessem em con-
de pele, nem de racializar, mas de admitir que a longa história dições de igualdade é ilusório, ela escreve, e não cabe àquelas e
da racialização na Europa (que ganhou forma pelo antissemi- àqueles que nunca foram vítimas de racismo impor o formato
tismo, pela invenção da "raça negra", da "raça asiática" ou do da discussão. 21
Oriente) não foi isenta de consequências no que concerne à A mulher branca foi literalmente uma produção da colônia.
concepção do humano, da sexualidade, dos direitos naturais, Em La Matrice de Ia race [A matriz da raça], a filósofa Elsa Dorlin
da beleza e da feiura... Admitir ser branca, isto é, admitir que explica como, nas Américas, os primeiros naturalistas se basea-
privilégios foram historicamente concedidos a essa cor — privi- ram na diferença sexual para elaborar o conceito de "raça": os
légios que podem ser tão banais quanto poder entrar em uma índios do Caribe ou os escravos deportados seriam populações
loja sem ser automaticamente considerada suspeita de roubo, com temperamento patogênico, efeminado e fraco. Passa-se, es-
não precisar ouvir, sistematicamente, que o apartamento que creve Dorlin, da definição de um "temperamento de sexo" para
queremos já está alugado, ser naturalmente tomada como a ad- a definição de um "temperamento de raça". O modelo feminino
vogada e não sua assistente, como a médica e não a auxiliar de da "mãe" branca, saudável, maternal, em oposição às figuras de
enfermagem, como a atriz e não a empregada já seria um uma feminilidade "degenerada" — a feiticeira, a escrava africana
grande passo. Admite-se que mulheres brancas souberam ser —, dá corpo à Nação, conclui a filósofa. 22 As mulheres europeias
de fato solidárias às lutas de antirracismo político. Porém, elas não escapam à divisão epistemológica que opera no século xvi
também precisam compreender o cansaço sentido sempre que
21 Reni Eddo-Lodge, Why 1'm No Longer Talking to White People About
Race. London: Bloomsbury, 2017.
20 Fatima El-Tayeb, European Others. Durham: Duke University Press, 22 Elsa Dorlin, La Matrice de Ia race: Généalogie sexuelle et coloniale de
2011, p. xv. Ia Nationfrançaise. Paris: La Découverte, 2008.
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e que reduz à "não existência" uma quantidade considerável de frentaram, pois, dupla subjugação: a dos colonizadores e a dos
conhecimentos. 23 A seus olhos, as mulheres do Sul estão pri- homens colonizados. A filósofa feminista nigeriana Oyèrónke
vadas de saberes, de uma real concepção da liberdade, daquilo Oyêwúmí também questiona o universalismo das formulações
que faz uma família ou daquilo que constitui o ser "mulher", euromodernas do gênero. Ela vê nele a manifestação da hege-
que não estaria necessariamente ligado ao gênero ou ao sexo monia do biologismo ocidental e da dominação da ideologia
definidos no nascimento. Percebendo-se como vítimas dos euro-norte-americana na teoria feminista. 25
homens (e, de fato, elas permaneceram menores perante a lei
por séculos), elas não enxergam que seu desejo de igualdade
em relação a esses homens repousa na exclusão de mulheres e O feminismo e a recusa da escravidão
homens racializados/as e que a concepção europeia do mundo,
da modernidade na qual se inscrevem, colocam mulheres e ho- Ao estabelecer uma analogia entre a sua situação e a dos escra-
mens que não pertencem nem à sua classe nem à sua raça em vos, as feministas europeias denunciam uma situação de de-
uma situação de desigualdade de fato e de direito. Fazendo de pendência e de menoridade para a vida, mas elas retiram da es-
suas experiências, que costumam ser experiências de mulhe- cravidão elementos essenciais, que tornam essa analogia uma
res da classe burguesa, um universal, contribuem para a divi- usurpação: captura, deportação, venda, tráfico, tortura, nega-
são do mundo em dois: civilizados/bárbaros, mulheres/homens, ção dos laços sociais e familiares, estupro, exaustão, racismo,
brancos/negros, e assim a concepção binária do gênero se torna sexismo e morte conformam a vida das mulheres escravas. Não
um universal. Marfa Lugones falou sobre a "colonialidade do se trata de negar a brutalidade da dominação masculina na Eu-
gênero" nos seguintes termos: a experiência histórica das mu- ropa, mas de fazer essa distinção no que concerne à escravi-
lheres colonizadas não é apenas a de uma desqualificação racial, dão. O Século das Luzes, o da publicação de textos feministas
ela escreve, mas também a de uma determinação sexual. As históricos para o continente europeu, é também o século do
mulheres colonizadas são reinventadas como "mulheres" com auge do tráfico transatlântico (de 7o mil a 90 mil africanos/as
base em normas, critérios e práticas discriminatórias experi- deportados/as por ano, enquanto até o século xvIi o número
mentadas na Europa medieval. 24 As mulheres racializadas en- variava entre 3o mil e 4o mil por ano). As feministas francesas
antiescravistas (pouco numerosas) do século xviii se baseiam
23 Ver sobre esse tema: Boaventura de Sousa Santos, Épistémologies du
Sud: Mouvements citoyens et polémique sur la science. Paris: Desclée de Racines féministes et lesbiennes autonomes de la proposition décolo-
Brouwer, 2016. niale d'Abya Yala" ["As raízes feministas e lésbicas autônomas da propo-
24 Maria Lugones, "Heterosexualism and the Colonial Modern Gender sição decolonial de Abya Yala"], Contretemps, abr. 2017, em duas partes.
System". Hypatia, n.1, v. 22, Bloomington, 2007, pp. 186-219, e "Colonia- 25 Oyèrónke Oyèwìtmí, The Invention of Women: Making an African
lidad y género", Tabula Rasa, n. 9, jul.-dez., Bogotá, 2008, pp. 73-101. Em Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minne-
francês, a apresentação dessa teoria foi traduzida por tules Falquet: "Les sota Press, 1997.
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em uma visão sentimentalista, em uma literatura da piedade, cravos. Em Paul e Virginie, uma das obras mais lidas do século
para denunciar o crime da escravidão. 2ó Uma das obras mais xvttl, Bernardin de Saint-Pierre suaviza a natureza das relações
célebres desse gênero, a peça de Olympe de Gouges Zamore e entre brancos e negros. Um dos episódios mais impressionan-
Mirza, atribui a uma branca o papel principal: é ela que permite tes do romance coloca em cena uma jovem escrava que, tendo
a emancipação dos/as negros/as da escravidão. Após correções fugido devido aos maus-tratos de seu senhor, aparece um do-
exigidas pela Comédie-Française em 1785, passou a ser cha- mingo de manhã em frente à casa de Virginie. Ela a acolhe e
mada de L'Esclavage des noirs ou l'heureux naufrage [A escra- lhe dá comida antes de persuadi-la a voltar para seu senhor e
vidão dos pretos, ou feliz naufrágio]; a peça conta a história de pedir-lhe perdão por ter fugido. A jovem escrava é mandada
dois jovens escravos fugitivos, refugiados em uma ilha deserta. de volta pela doce Virginie a seu senhor que, evidentemente,
Um deles, Zamore, que matou um comandante, está sendo pro- pune-a. A insensatez de Virginie é apenas fruto de sua inocên-
curado. Ele salva do afogamento um jovem casal francês, que cia teimosa que a impede de ver o racismo. Ela faz da escravi-
inclui Sophie, filha do governador Saint-Frémont. Sophie ajuda dão uma simples relação individual em que a violência pode
então Zamore e Mirza a escapar do estatuto de servidão e o ser reparada pelo perdão do senhor. Os testemunhos que mu-
governador libera os escravos de sua plantação ao fim da peça. lheres escravas puderam deixar contradizem absolutamente
Sem a mulher branca, nada de liberdade. Observemos que essa inocência de consequências brutais, mas a mulher branca
mesmo essa tentativa tímida, em razão de seu tom e conteúdo, recusa-se a ver. No século xix, a maioria das feministas, com
causou, ainda assim, um escândalo. A peça foi julgada subver- raras exceções, como Louise Michel ou Flora Tristan, apoiam o
siva, pois a autora deixara entrever "uma liberdade geral [que] império colonial, pois enxergam nele uma alavanca para retirar
tornaria os homens pretos tão essenciais quanto os brancos"; mulheres colonizadas dos grilhões do sexismo de suas socie-
que eles seriam um dia "os produtores livres de suas terras as- dades. Elas não negam a missão civilizatória, mas querem ga-
sim como os trabalhadores da Europa, que eles não deixariam rantir que seu lado feminino seja respeitado. Elas criam escolas
mais seus campos para ir às nações estrangeiras"?" Essa narra- para as moças, incentivam os trabalhos religiosos e domésticos,
tiva em que a intervenção dos brancos muda o destino dos/as protestam contra abusos, mas nunca atacam a colonização em
escravos/as negros/as, em que os/as negros/as, para merecer a si mesma. Elas a aceitam com sua estrutura e suas instituições,
liberdade, deviam apresentar qualidades como bondade, sacri- encontrando na colônia a possibilidade de implementar princí-
fício e submissão, foi hegemônica. Os textos que questionavam pios e valores do feminismo que defendem, um feminismo que
esse modelo eram testemunhos diretos de ex-cativos e ex-es- adere à ordem republicana colonial. Diante da hostilidade dos
colonos, elas sublimam suas ações. O estudo dos diários das
26 Sobre a política da piedade e o abolicionismo francês, ver: Françoise
mulheres viajantes, e dos relatórios de feministas pode, então,
Vergês, Abolir l'esclavage: Une uto pie coloniale. Les ambiguïtés d'une po-
litigue humanitaire. Paris: Albin Michel, zool. fazer-nos esquecer de que a conquista colonial é a base de sua
27 Olympe de Gouges, Réflexions sur les hommes nègres. Fevereiro, 1788. ação, que é graças aos Exércitos coloniais que se abrem rotas
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de viagem e se constroem lugares onde as europeias podem igualdade dos homens brancos burgueses e tem lugar apenas
viver. Na narrativa hegemônica das lutas pelos direitos das mu- na França. A surdez e a cegueira ante os reais fundamentos dos
lheres, um esquecimento em particular evidencia a recusa de "direitos das mulheres", ante o papel do colonialismo e do im-
considerar os privilégios atribuídos à branquitude. Essa narra- perialismo na concepção desses direitos, só poderiam alimen-
tiva põe em cena mulheres privadas de direitos que passam a tar uma ideologia feminista abertamente nacionalista, desigual
adquiri-los progressivamente, até que se beneficiem daquele e islamofóbica, na qual a palavra "francês" passa a abranger
que é o emblema das democracias europeias, o direito ao voto. não apenas um espaço de língua comum, com uma ferramenta
Ora, se por um longo tempo as mulheres brancas não pude- de uso comum, mas o espaço do nacional/imperial.
ram gozar efetivamente de inúmeros direitos civis subsidiários, Qual gênero está, então, em questão no regime da escra-
essas mesmas mulheres tinham o direito de possuir seres hu- vidão? As mulheres reduzidas à escravidão são negras e mu-
manos; elas possuíam escravos e plantações e, após a abolição lheres, mas nas plantations todos os seres humanos escravi-
da escravidão, estiveram à frente de plantações coloniais onde zados são bestas de carga. Aos olhos dos/as escravocratas, as
prevalecia o trabalho forçado. 28 O acesso à propriedade de se- mulheres negras são objetos sexuais e não seres cujo gênero
res humanos não lhes era negado e esse direito foi concedido demandaria que fossem tratadas com doçura e respeito. Como
porque eram brancas. Uma das maiores escravistas da ilha da escravas, elas têm o status legal de objeto, não pertencendo,
Reunião foi uma mulher, Madame Desbassyns, que não tinha portanto, à humanidade plena. Dito de outro modo, o gênero
direito ao voto, a prestar vestibular, a ser advogada, médica ou não existe em si mesmo, ele é uma categoria histórica e cultural
professora universitária, mas tinha o direito de possuir seres que evolui no tempo e não pode ser concebido da mesma ma-
humanos, classificados como "bens móveis" em seu patrimô- neira na metrópole e na colônia. Tampouco pode ser concebido
nio. Enquanto a história dos direitos das mulheres for escrita do mesmo modo em colônias diferentes ou no interior de uma
sem levarem conta esse privilégio, ela será enganosa. única colônia. Para as mulheres racializadas, afirmar o que é,
Ignorando o lugar que mulheres escravas, quilombolas, tra- para elas, ser mulher, foi um campo de luta. As mulheres, como
balhadoras engajadas e colonizadas ocuparam nas lutas pela eu disse, não constituem em si uma classe política.
liberdade e igualdade racial, o feminismo branco estabelece o
modelo único das lutas das mulheres. Essa luta se afina com a
O excepcionalismo francês: a República da inocência
28 Lembremos do filme Indochina [Indochine, de Régis Wargnier,1992j:
na Indochina dos anos 1930, Éliane Devries administra uma plantação Na França, onde a doutrina republicana lida com os impensados
de seringueiras com seu pai, Émile. Ela adotou Camille, uma princesa do passado colonial e com os desafios do presente pós-colonial,
anamita órfã. Ambas se apaixonam por um jovem oficial da Marinha
francesa. O resto é parecido: à nostalgia colonial se combina uma versão o feminismo veio em socorro associando feminismo à República.
abrandada da luta anticolonial. Mesmo que as mulheres só tenham obtido os direitos mais ele-
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mentares muito tardiamente, a República será considerada de estrutural: nem a escola, nem o tribunal, nem a prisão, nem
natureza aberta às diferenças. Apaga-se dessa narrativa o fato de o hospital, nem o Exército, nem a arte, nem a cultura, nem
que os direitos foram obtidos a preço de lutas. Esquece-se tam- a polícia. Se o debate sobre o racismo estrutural na França é
bém que, enquanto as mulheres francesas obtiveram o direito tão difícil, isso se deve também a uma paixão por princípios
ao voto em 1944, esse direito foi dificultado nos departamentos abstratos e não ao estudo das realidades. Apesar dos relató-
chamados de ultramarinos até os anos 1980. Nem todas as mu- rios, mesmo aqueles provenientes de órgãos governamentais
lheres que vivem no espaço da República francesa se beneficiam que provam a existência de discriminações racistas/sexistas, a
automaticamente dos direitos concedidos às mulheres francesas cegueira persiste.
brancas. E não apenas as mulheres burguesas são racistas. Em Outro obstáculo à desracialização da sociedade francesa
1976, o boletim informativo das mulheres militantes revolucio- é o narcisismo cultivado em torno de sua singularidade, de
nárias nas fábricas chama a atenção para o racismo antiárabe seu excepcionalismo. A língua francesa chega a ser apresen-
das trabalhadoras da Renault em Flins, explicado "em parte pela tada, no século xxl, como um vetor da missão civilizatória (fe-
atitude reacionária dos árabes em face das mulheres [e em parte] minista), pois ela seria portadora da ideia de igualdade entre
pelos preconceitos toxicamente veiculados pela burguesia que mulheres e homens. É um raciocínio como esse que justifica
chocam os princípios dessas trabalhadoras: os árabes foram os a prioridade dada às jovens africanas na obtenção de bolsas
primeiros a serem alojados pelas prefeituras. Eles não querem de estudos do governo. 30 A língua, porém, não é neutra e o ra-
deixar suas espeluncas, eles são sujos; se voltassem a seu país, cismo se insinua nela. A história das palavras que começam
haveria menos desemprego na França". 29 com "N" no feminino e no masculino, e que são insultos racis-
Ainda hoje, o acesso aos cuidados pré-natal e pós-parto tas, é esclarecedora. No fim do século xvttl, o "N" adquiriu to-
não é distribuído igualitariamente; as mulheres racializadas talmente o sentido de "escravo negro" e "N" e negro passaram
são mais privadas do acesso a esses cuidados e vítimas mais a ser utilizados de modo indiferenciado. Um questionamento
frequentes da indiferença dos serviços médicos, quando não legítimo pode então ser feito: por qual milagre o vocabulário
de maus-tratos. Em maio de 2017, a morte de Naomi Musenga, do feminismo teria sido preservado do racismo? Tomemos o
uma jovem de 27 anos cujas chamadas aos serviços de emer- exemplo de Hubertine Auclert, uma das grandes figuras do fe-
gência não apenas ficaram sem resposta como também foram
objeto de zombarias, lançou luz sobre essas discriminações 30 O atual governo francês, recorrendo a argumentos coloniais acerca
racistas. Nenhuma instituição me parece escapar ao racismo da taxa de natalidade das africanas, que seria a causa da pobreza do con-
tinente, promete-lhes acesso à modernidade graças à adoção da língua
29 Fanny Gallot, "Le'Travail femme' quotidien de'Révo', puis de 1'ocT francesa. Emmanuel Macron, em 8 de julho de 2017, falava assim sobre
dans les entreprises (1973-1979)", in Ludivine Bantigny, Fanny Bugnon e a África: "Uma vez que os países apresentam, ainda hoje, uma média de
Fanny Gallot (eds.), "Prolétaires de tous les pays, qui lave vos chaussettes?" sete a oito filhos por mulher, você pode decidir investir milhões lá, isso
Le genre de 1 ' engagement dans les années 1968. Rennes: PUR, p. 119. não estabilizará nada".
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minismo republicano francês do século xix, conhecida por sua recenseamento sob o pretexto de que, se as francesas não votam,
luta incansável pela obtenção do direito ao voto das mulheres, também não devem pagar para serem contadas. 32
contra o Código Napoleônico (que fez da mulher uma menor
de idade e uma pessoa submissa ao marido) e contra a pena de Em 1881, ela funda seu próprio jornal, La Citoyenne [A Cidadã],
morte. Secretária do jornal L'Avenir des femmes [O Futuro das e nele demonstra que os princípios da República são ridiculari-
Mulheres], ela subscreve a fórmula de Victor Hugo ("As mulhe- zados, aborda o 14 de Julho como uma festa da masculinidade
res: aquelas que eu chamo de escravas"), estuda o papel das e o Código Napoleônico como um sobrevivente da monarquia.
mulheres nas revoluções e denuncia a "escravidão das mulhe- Para Auclert, existe uma linha divisória, a linha de cor. Em seu
res". 31 Laurence Klejman e Florence Rochefort, autoras de uma texto "Les Femmes sont les nègres" [As mulheres são os pretos],
obra de 1989 sobre o feminismo francês, assim resumem a luta ela protesta contra a concessão do direito ao voto a homens ne-
de Hubertine Auclert: gros nas colônias, após a abolição da escravidão, em 1848: "O
passo à frente dado pelos pretos selvagens, em relação às bran-
Ela baseia toda sua formação política no feminismo e, impaciente, cas cultivadas da metrópole, é uma injúria à raça branca". O
revolta-se contra seus antepassados que se contentaram com uma direito de voto ganha cor sob a pluma da feminista: "Já que os
reivindicação de princípio ou que se recusaram completamente negros podem votar, por que as mulheres brancas não podem?".
a considerar o voto das mulheres em razão do perigo que tal re- "Em nossas propriedades distantes", ela prossegue, "permitimos
forma representaria para o regime. Ela escolhe a provocação como que um grande número de negros vote, negros que não estão
tática. Astuciosa, imaginativa, ela já começa afirmando uma iden- interessados em nossas ideias, em nossos negócios; todavia,
tidade política por meio de diversos atos de desobediência civil: negamos o direito ao voto às mulheres esclarecidas da metró-
a inscrição em listas eleitorais, a greve dos impostos, a recusa do pole, um direito que as impediria de ser esmagadas na engre-
nagem social". A coloração do direito ao voto revela a força do
31 Édith Taieb, "Hubertine Auclert: "dela République dans le ménage" à preconceito racista dessa feminista: "Esse paralelo entre `pretos'
Ia "vraie" République". Auclert era uma feminista republicana civilizató- meio selvagens, sem encargos ou obrigações, mas com direito
ria. Em sua obra Les Femmes arabes en Algérie (Paris: Société d'éditions ao voto, e mulheres civilizadas, porém não eleitoras, demonstra
littéraires, 1900), ela defende a assimilação colonial contra um colonia-
lismo do desprezo e contra a crueldade dos funcionários. Ela afirma que
os "árabes" desejavam ser assimilados e que o sonho das muçulmanas 32 Laurence Klejman e Florence Rochefort, Le Féminisme, une utopie
era ser como as mulheres francesas (p. 24). Esse texto orientalista reúne républicaine,1860—1914. Colóquio "Femmes et pouvoirs, xIxe—xxe siècle".
os elementos do feminismo civilizatório colonial: um pouco de etnogra- Disponível em: senat.fr/colloques/colloque_femmes_pouvoir/colloque_
fia e de sociologia turística, clichês sobre a personalidade "resignada" dos femmes_pouvoirs.html. A apresentação de Laurence Klejman e Florence
árabes, a poligamia e o "casamento árabe", que é um "estupro de criança" Rochefort não aborda a atitude das feministas em relação ao racismo e
(p. 42). Para Auclert, as mulheres francesas que, por sua condição, eram ao colonialismo, dando assim continuidade a uma tradição dominante
próximas aos árabes, estavam mais bem posicionadas para estudá-los. na pesquisa francesa: ignorar o papel da colônia no campo do político.
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claramente que os homens conservam sua onipotência em face ciência infinita, a disseminação de um discurso-modelo contra
das mulheres com a finalidade única de explorar essas desfavo- o argelino sádico e vampiro em sua atitude em face das mulhe-
recidas". É preciso, portanto, "impedir que os franceses tratem res é posta em prática e realizada com êxito. O ocupante reúne
as francesas como pretos". 33 Opor o obscurantismo às luzes é em torno da vida familiar do argelino todo um conjunto de jul-
retomar a velha oposição entre civilizações, mas, acima de tudo, gamentos, apreciações e considerações, multiplica as anedotas e
é simplesmente aceitar a racialização do feminismo. O universal os exemplos morais, tentando assim aprisionar o argelino em um
dificilmente se sustenta. ciclo de culpabilidade. 34
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linas pelo Exército francês, a representação das combatentes dos empregos subqualificados nas zonas de abertura econô-
argelinas como vítimas (seja do Exército, seja de seus irmãos mica e na economia informal. Durante essa década, os progres-
combatentes, mas nunca como seres que escolhem livremente), sos observados na feminização dos empregos são acompanha-
a indiferença em relação ao modo como a colonialidade repu- dos pelo aumento muito evidente das desigualdades no mundo.
blicana oprime as mulheres dos territórios ultramarinos e as O conflito entre uma abordagem revolucionária da libertação
mulheres racializadas na França, a recusa em denunciar o ca- das mulheres e uma abordagem antidiscriminatória, que visa
pitalismo e a fé na modernidade europeia constituem o terreno às reformas na lei e à integração das mulheres no capitalismo,
sobre o qual o feminismo civilizatório se desenvolveu e obteve ganha, pois, intensidade. A abordagem revolucionária não re-
a atenção dos poderosos. jeita a luta por reformas, mas denuncia o argumento que faz
O medo gerado pela participação das mulheres nos movi- da entrada das mulheres no mundo do trabalho assalariado
mentos de libertação nacional ocasiona uma mobilização de uma oportunidade de ganho de autonomia individual e de-
instituições internacionais, fundações e ideólogos que forjam fende a organização coletiva no local de trabalho. Para a abor-
discursos, desenvolvem práticas e chegam a recorrer à repres- dagem antidiscriminatória, a independência é medida pela
são. É assim que são difundidas as noções de desenvolvimento, capacidade de acesso ao consumo e à autonomia individual
de empoderamento das mulheres, bem como o discurso sobre (a imagem da mulher corporate, a moda dos terninhos que a
"os direitos das mulheres". Esse discurso, que emerge como téc- acompanha...). Por fim, a década de 1970 é também a da im-
nica feminista de disciplina no fim dos anos 198o e é contem- plementação mundial das políticas antinatalistas voltadas às
porâneo ao discurso do "fim da história" e do "fim das ideolo- mulheres do Terceiro Mundo. Os Estados Unidos assumem a
gias", será impulsionado por diversos acontecimentos no final frente nessa questão, apoiando financeiramente políticas de
do século xx e no início do xxl. controle da natalidade em suas comunidades racializadas e
na América do Sul. Em um documento que por muito tempo
permaneceu confidencial, a Agência de Segurança Nacional
O feminismo desenvolvimentista expõe claramente os motivos dessa política — muitos jovens
vão querer imigrar, ameaçando, assim, a segurança do mundo
Desde os anos 1970, instituições internacionais e fundações livre —, que ela aconselha ser confiada à Agência Federal. 36 Na
norte-americanas voltam-se para a canalização e a orientação França, esterilização e abortos são incentivados pelo governo
dos movimentos feministas. Essa foi uma década que viu en- nos departamentos ultramarinos. 37
trar centenas de milhões de mulheres no trabalho assalariado.
As transformações do capitalismo oferecem uma oportunidade 36 National Security Memorandum: Implications of Worldwide Popula-
decisiva para a explosão de baixos salários e para a precariza- tion Growth for u.s. Security and Overseas Interests, to dez. 1974.
ção, sobretudo por meio da feminização, em escala mundial, 37 Françoise Vergès, Le Ventre des femmes, op. cit.
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No entanto, não são os Estados Unidos, nem seu governo, grandes encontros dessa década — México (1975), Copenhague
nem seu movimento feminista mainstream que elevam a ques- (198o), Nairóbi (1985) e Beijing (1995).40 Os governos incenti-
tão dos direitos das mulheres ao plano internacional, mas a vam a coleta de informações sobre as mulheres no Terceiro
União Soviética e os países do Terceiro Mundo, que no início Mundo; é o começo de um movimento formidável de acúmulo
dos anos 1970 propõem que as Nações Unidas organizem uma de números e relatórios e de formação de especialistas em di-
"década da mulher". Essa década, lançada em 1975, tem por ob- reitos das mulheres. Em Copenhague, diante de feministas oci-
jetivo "assegurar às mulheres o acesso à propriedade privada e dentais que insistem em denunciar a clitorectomia, a infibula-
o controle de seus bens, assim como melhorar os direitos delas ção de órgãos genitais e outras violações dos direitos humanos,
no que concerne à herança, à guarda dos filhos e à nacionali- feministas de países árabes e da África Subsaariana denunciam
dade", afirmar que "o direito das mulheres é parte integrante os qualificativos "costumes selvagens" ou "culturas atrasadas",
dos direitos humanos" e "promover a igualdade entre os sexos que denotam a vontade de ocidentalizar as lutas das mulheres.
e acabar com a violência contra as mulheres". 38 Mas esses ob- Em Nairóbi, a questão da Palestina revela abertamente uma
jetivos modestos serão afastados para promover a entrada das oposição entre um feminismo decolonial e um feminismo
mulheres na ordem neoliberal. No entanto, os governos dos que não quer entrar em confronto com a colonialidade, mas a
Estados Unidos logo desconfiam dessa iniciativa — ainda é o questão das discriminações acaba ocupando o centro da cena.
controle da natalidade no Terceiro Mundo que os mobilizam. Em Beijing, é o retorno à ordem que prevalece. O fórum alter-
É apenas em 1979, com o presidente Carter, que o governo nor- nativo onde se abarrotam milhares de mulheres fica distante
te-americano anuncia que "o objetivo principal da política es- do centro da cidade, seus equipamentos são completamente
trangeira dos Estados Unidos é promover o avanço no mundo inadequados, mas, para o encontro oficial, tudo é arranjado de
do estatuto e da condição das mulheres". 39 Na França, a criação modo que pareça uma assembleia de dignatários. As negocia-
de uma Secretaria de Estado encarregada dos direitos das mu- ções do governo são feitas a portas fechadas. 41 A máquina do
lheres em 1974 assinala que a institucionalização do feminismo
se tornou um objetivo. Os direitos das mulheres deveriam ser 40 Os trabalhos de Jules Falquet sobre a década da mulher, sobre as
pouco a pouco esvaziados de seu alcance político. Porém, as políticas internacionais de gênero e as consequências das políticas de
desenvolvimento para as mulheres do Sul são muito esclarecedores.
coisas não se passam exatamente como o previsto nos quatro
Ver: "Penser la mondialisation dans une perspective féministe", Travail,
Genre, Société, n. 1, 2011, pp. 81–98; De gré ou de force: Les femmes dans Ia
38 Disponível em: www.un.org/fr/sections/issues-depth/women/. mondialisation. Paris: La Dispute, 2008; "L'ONU: Alliée des femmes? Une
39 Telegrama do Departamento de Estado a todos os postos diplomáti- analyse féministe du systême des organisations internationales". Multi-
cos e consulares. Sobre as políticas internacionais feministas dos anos tudes, n. 11, v.1, 2003, pp. 179 —91.
197o, ver Karen Garner, "Global Gender Policies in the Nineties", Jour- 41 Ver: Jules Falquet, "L'oNu: Alliée des femmes?", op. cit.; Greta Hofman
nal of Women's History, n. 4, v. 24, 2012; Susan Watkins, "Which Femi- Nemiroff, "Maintenant que les clameurs se sont tues, le jeu en valait-il la
nisms? " , New Left Review, n. 109, jan.-fev. 2018, pp. 5 —72. chandelle?" in Recherches Féministes, n. 2, v. 8,1995, pp. 159 –70.
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feminismo civilizatório vai se construindo enquanto a situação Otan, os direitos das mulheres se assemelham a seus valores e
das mulheres no mundo piora. No discurso de encerramento interesses nacionais. 43
desse encontro em Pequim, Hillary Clinton declara que os di- O feminismo civilizatório dos anos 198o é herdeiro dessas
reitos das mulheres são direitos humanos, mas são pensados molduras ideológicas. Na realidade, ele contribuiu para sua
de acordo com a mais pura narrativa ocidental. Enquanto os implementação e seu conteúdo. Os programas de ajuste estru-
movimentos de independência davam destaque ao fim da ex- tural que prometem desenvolvimento e autonomia adquiriram
ploração dos recursos do Sul, denunciavam uma organização feição feminina. Então, muito rapidamente, esse álibi foi mobi-
da informação dominada pelo Ocidente e defendiam sua con- lizado durante as campanhas imperialistas.
cepção de saúde, educação e direitos das mulheres, essas vozes Se o feminismo como missão civilizatória não é uma no-
eram marginalizadas em favor de um discurso que não ques- vidade — ele serviu ao colonialismo —, doravante ele dispõe de
tiona as estruturas do capitalismo e que transforma as mulhe- meios de difusão excepcionais: assembleias internacionais,
res em um sujeito social homogêneo. Durante todos esses anos, apoio de Estados ocidentais e pós-coloniais, de mídias femini-
os países do Terceiro Mundo, que tentavam dar aos direitos das nas, de revistas de economia, de instituições governamentais e
mulheres um conteúdo decolonial, são submetidos aos pro- internacionais, de fundações e de ONGS. As instituições inter-
gramas de ajuste estrutural. O Fundo Monetário Internacional nacionais de auxílio ao desenvolvimento fazem das mulheres o
(FMI) e o Banco Mundial se apropriam dos direitos das mulhe- alicerce do desenvolvimento no Sul global e logo afirmam que
res e, no fim dos anos 1970, a fórmula de empoderamento das elas são melhores gestoras do dinheiro que lhes foi confiado do
mulheres (capacidade de agir das mulheres) é adotada pelo
mundo político da direita à esquerda e por 0NGS de feministas
Duke University Press, 2005; "Gender Alternatives in African Develop-
do Norte. Para o Banco Mundial, a capacidade de agir das mu-
ment: Theories, Methods and Evidence". Disponível em: www.codesria.
lheres é o correlato das políticas de desenvolvimento e de uma org/spip.php?article362&lang=en . Sobre o conceito empowerment, ver
política de redução das taxas de natalidade. 42 Para os países da Melinda Gates, The Moment of Lift: How Empowering Women Changes
the World. New York: Flatiron Books, 2019.
42 Entre as muitas obras consagradas à reorganização do trabalho fe- 43 Ver: Femme, pax et sécurité. Politique et plan d'action 2018. Disponí-
minino racializado nos anos 1970 e desde então, ver: Ester Boserup, Wo- vel em: nato.int/nato_static f12o14/assets/pdf/pdf_2018 09/20181217_
men's Role in Economic Development. New York: St Martin's Press, 1970; 180920-wes-Action-Plan-2018-fr.pdf. A Otan indica a implementação
Jules Falquet, Pax Neoliberalia. Perspectives féministes sur (1a réorgani- "do lado militar, de um conselheiro para as questões de gênero do Esta-
sation de) Ia violence. Donnemarie-Dontilly: Éditions iXe, 2016; Laurent do-Maior Militar Internacional e um comitê consultivo de especialistas
Fraisse, Isabelle Guérin e Madeleine Hersent, Femmes, économie et dé- (Comitê Otan para as questões de gênero), encarregados de promover a
veloppement. De La Résistance à Ia justice sociale. Paris: IRD/ Ères, 2011; integração das questões de gênero na concepção, na implementação, no
Rhacel Salazar Parrenas, Servants of Globalization: Women, Migration monitoramento e na avaliação das políticas, dos programas e das opera-
and Domestic Work. Stanford: Stanford University Press, 2001; Pun Ngia, ções militares"; "L'Otan doit devenir un protecteur majeur des droits des
Made in China: Women Factory Workers in a Global Workforce. Durham: femmes". Tribune de Genéve, 12 dez. 2017.
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que os homens," que elas sabem economizar e que respeitam para vendê-los, lançando-se na organização de programas que
mais as restrições dos programas. Elas são boas clientes, por- visam reforçar sua autonomia, seu empoderamento, ou ensi-
tanto, são as mulheres que vão mudar o mundo. As mulheres do nando-lhes a gestão... Não se pode negar que as mulheres do
Sul se tornam a cada ano depositárias de centenas de projetos Sul se beneficiam disso, podendo colocar seus filhos na escola,
de desenvolvimento — ateliês e cooperativas onde a produção sair da miséria, mas acontece também que esses projetos não
de produtos locais, a tecelagem, o artesanato e a costura são acarretam retorno algum: eles reforçam o narcisismo das mu-
valorizados. As mulheres do Norte são encorajadas a apoiar lheres brancas, tão felizes em poder "ajudar" desde que isso
suas irmãs do Sul comprando seus produtos ou abrindo lojas não mexa com suas vidas. Para a feminista jules Falquet, "o
empoderamento das mulheres" é introduzido para responder
à feminização da pobreza; em outras palavras, para completar
44 As grandes instituições internacionais adotaram políticas que pri-
vilegiam as mulheres e que insistem na igualdade de gênero. O Banco as políticas de pacificação e de ordem. 4S Para ilustrar essa in-
Mundial e o Fundo Monetário Internacional difundiram amplamente o fluência do vocabulário das ONGS, lembro-me de que, em março
argumento da maior responsabilidade das mulheres nos anos 1980 – 1990 de 2018, no nordeste da Índia, assisti a uma reunião de uma
para colocá-lo a serviço de suas políticas de desenvolvimento e micro-
centena de mulheres das tribos de Nagaland, região ocupada
crédito, desconsiderando as políticas que levaram os homens ao de-
semprego, destituíram laços comunitários, reforçaram a violência sis- pelo Exército indiano. Essas mulheres enfrentam a violência
têmica e o individualismo, atribuindo às mulheres a responsabilidade do Exército e dos traficantes, os estupros, os altos índices de
de cuidar da sociedade. Sobre esse tema, o artigo "Empowering Women alcoolismo e suicídio nos jovens. É com grande dificuldade que
is Smart Economics" ["Empoderar as mulheres é fazer uma economia
mantêm suas comunidades. Porém, para falar de suas ações,
inteligente"], de Ana Revenga e Sudhir Shetty, é bastante esclarecedor.
Demonstra ao FMI todos os benefícios que a entrada das mulheres no elas utilizam sistematicamente o vocabulário das ONGS: empo-
mundo dos negócios e do trabalho proporciona à economia capitalista werment, capacity building, leadership, governance. 4b De certa
(in Finance & Development, mar. 2012. Disponível em: imf.org/external/
pubs/ft/fandd/2012/o3/revenga.htm); o relatório do FM( de 2014 "ten-
der at Work: A Companion to the World Development Report on Jobs" 45 Jules Falquet, "Genre et développement: Une analyse critique des po-
["O gênero no trabalho: Um guia do relatório de desenvolvimento mun- litiques des institutions internationales depuis Ia Conférence de Pékin",
dial do trabalho"] descrevia os obstáculos à entrada das mulheres no in Fenneke Reysoo e Christine Verschuur, On MAppelle à régner: Mon-
mercado de trabalho e as discriminações salariais das quais elas eram dialisation, pouvoirs et rapports de genre. Genebra: 10E, 2003, pp. 59-90.
vítimas, insistindo na desigualdade de gênero. Em 2018, Kristalina 46 Em francês, essas palavras perdem seu poder de evocação: em em-
Georgieva, diretora-executiva do Banco Mundial, declarava: "Nenhuma powerment há poder, mas sem um sujeito individual; capacity building
economia pode atingir seu pleno potencial econômico sem a participa- recorre à psicologia, aos métodos do self help, à confiança em si como
ção total e plena de homens e mulheres"; no mesmo ano, o Instituto da mola propulsora de mudança; governance é uma noção utilizada por ins-
Francofonia para o Desenvolvimento Sustentável, órgão subsidiário da tituições internacionais como o FMI para não reconhecer a importância
Organização Internacional da Francofonia (owF), destacava o papel essen- da perda de poder dos governos do Sul e fazer de um "bom governo " ,
cial das mulheres no desenvolvimento. Disponível em: mediaterre.org/ aquele que é livre de corrupção e que aceita as leis da democracia oci-
actu, 20180306233944,13.html. dental, a solução para as desigualdades.
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forma, elas tinham perdido suas vozes e se tornaram depositá- do poder raramente são mostradas de modo explícito. As he-
rias da linguagem das ONGS. Foi a partir da crítica feminista da roínas lidam com indivíduos que ultrapassam seu poder, mas
ideologia do cuidado que vislumbrei como sugerir uma crítica aquilo que perfaz a estrutura, aquilo que repousa sobre os me-
a essa "língua". Eu as fiz observar que as ONGS as condenavam a canismos de dominação e de exploração há muito tempo elabo-
limpar e reparar infinitamente os cacos das vidas estilhaçadas rados, que tem à sua disposição a polícia, o Exército, o tribunal
de suas comunidades, mas sem atribuir a responsabilidade aos e o Estado, pouco é evocado. O que é preciso de coragem, de
verdadeiros responsáveis. Por que não reservar um tempo para esforço cotidiano e de organização coletiva para dobrar as es-
compreender quem as despedaçou e como essas sociedades fo- truturas não é evidenciado.
ram deterioradas? Quem era o responsável pelo desespero dos As décadas de 1970— 1990 veem, então, o desenvolvimento
jovens? Quem eram os responsáveis pelos estupros, pelas pri- de ofensivas cujo objetivo é combater e enfraquecer os femi-
sões arbitrárias? Essas mulheres tinham as respostas de todas nismos de política decolonial. O feminismo deve permanecer
essas perguntas, contudo suas análises eram camufladas pelo sensato, não mais ser comparado às "militudas", "histéricas",
discurso despolitizante de ONGS que, certamente, deviam sofrer "anti-homens", "sapatões" e "malcomidas" dos anos 1970. A an-
a censura do governo, mas a perpetuavam ao aceitá-la. Ao ado- coragem na Europa do "verdadeiro" feminismo e dos direitos
tar uma teoria do gênero que mascara as relações de força e as das mulheres é reafirmada em inúmeras ocasiões, e a hostili-
escolhas políticas, as ONGS se adaptaram à via estreita que o go- dade aos/às muçulmanos/as e aos/às migrantes oferece a esse
verno indiano impõe nessa região. Mais uma vez, não se trata de feminismo uma oportunidade de manifestar sua adesão aos
fazer uma crítica simplista dessas políticas, e sim de continuar valores europeus.
estudando como não apenas elas despolitizam, mas também
contribuem, às vezes, para a criação de novas opressões. É pre-
ciso acrescentar a essa panóplia extremamente diversa técnicas
de pacificação como o girl's power (as mulheres permanecem
girls), séries televisas, filmes... Muitas dessas séries, filmes ou
artigos têm qualidade (eu assisto a eles com prazer) e não dis-
cordo de que possam representar importantes contramodelos
para meninas, moças e mulheres, entretanto a difusão massiva
pelas novas mídias de histórias individuais perpetua a ilusão de
que qualquer uma pode realizar seu sonho, basta não ter medo
de contestar certas normas. São narrativas que frequentemente
se baseiam em uma psicologização das discriminações. A luta
raramente é coletiva, a crueldade e a brutalidade das estruturas
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