25159-Texto Do Artigo-98683-1-10-20160708
25159-Texto Do Artigo-98683-1-10-20160708
RESUMO: A partir da exploração de um texto usado em atividade retirada de material didático, o presente
trabalho busca alimentar o debate sobre o tratamento dos aspectos gramaticais no ensino de língua portuguesa.
Fundamentada numa abordagem que articula contribuições de diferentes campos de estudo lingüísticos, os quais
compartilham uma visão sociointeracionista da linguagem, a análise do texto realizada neste trabalho demonstra
a possibilidade de se articularem as dimensões lingüística, textual, sociopragmática e discursiva em práticas de
ensino e aprendizagem que tomam o texto como objeto de estudo.
Introdução
1
Essa descrição das dimensões a partir das quais emerge o texto encontra-se detalhada em documentos
produzidos pelo Ministério da Educação, dentre os quais destacamos as orientações curriculares para o ensino
médio (BRASIL. Ministério da Educação. Orientações curriculares para o ensino médio. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. v. 1, 239 p.)
2
Sobre isso, citem-se, por exemplo, os trabalhos de Bräkling (2003) e Mendonça (2006).
3
Defendemos que a expressão “lingüístico-gramatical”, que aparece neste trabalho, mostra-se pertinente ao
ponto de vista por nós assumido, uma vez que assinala a existência de outros aspectos da ordem do lingüístico,
que não os tradicionalmente chamados de gramaticais.
1. Orientações, caminhos e descaminhos na abordagem de aspectos linguístico-
gramaticais
Notícias de Joana4
CORREIO DO POVO – 27/09/73
Maria Joana Knijnick, solteira, procura pessoa do sexo oposto para fim de casamento. O
interessado deve ser pessoa sensível, que goste de ouvir música, seja alegre, que goste de
passear domingo de manhã, que goste de pescar, que goste de passear na relva úmida da
manhã, que seja carinhoso, que sussurre aos meus ouvidos que me ama, que tenha bom
humor, mas que também saiba chorar. Que saiba escutar o canto dos pássaros, que não se
importe de dormir ao relento numa noite de lua, que saiba caminhar nas estrelas, que goste de
tomar banho de chuva, que sonhe acordado e que goste muito do azul do céu. Prefere-se
pessoa que saiba escutar os segredos de um riacho e que não ligue aos marulhos do mar; que
goste de bife com arroz e feijão, mas que prefira peru com maçã, dá-se preferência a pessoas
de pés quentes, que gostem de andar de barco, que gostem de amar e que não puxem as
cobertas de noite. Não se exige que seja rico, de boa aparência, que entenda Kafka ou saiba
consertar eletrodomésticos mas exige-se principalmente que goste de oferecer flores de vez
em quando.
End.: Rua da Esperança, 43
CORREIO DO POVO – 02/10/73
Maria Joana Knijnick, solteira, procura pessoa do sexo oposto para fim de casamento. O
interessado deverá ser pessoa sensível e que tenha o hábito de oferecer flores.
End.: Rua da Esperança, 43
CORREIO DO POVO – 10/10/73
4
LOPES, Artur Oscar. In: REIS, Luzia de Maria R. O que é conto. São Paulo: Brasiliense. 1987.
Maria Joana Knijnick procura pessoa que a ame e goste de oferecer flores de vez em quando.
End.: Rua da Esperança, 43
CORREIO DO POVO – 20/10/73
Maria Joana Knijnick pede que qualquer pessoa goste dela e suplica que lhe mande flores.
CORREIO DO POVO – 14/11/73
A família da sempre lembrada Maria Joana Knijnick comunica o trágico desaparecimento
daquele ente querido e convida os amigos para o ato de sepultamento. Pede-se não enviar
flores.
Compreensão do texto
Questão 1
O texto lido tem características de um certo tipo de anúncio encontrado em alguns jornais e
revistas.
a). Qual é o nome do jornal em que o anúncio foi publicado?
b). Qual é o primeiro nome da mulher que o enviou ao jornal?
[...]
Questão 2
Responda às questões que se seguem.
a). Com que finalidade a pessoa escreveu esse anúncio?
b). Quanto ao estado civil, a pessoa pode ser casada, solteira, viúva ou desquitada. Qual é o
estado civil da mulher que enviou o anúncio para ser publicado?
c). A principal exigência que a pessoa fez em relação à pessoa que ela procura aparece no
final do texto. Que exigência é essa?[...]
Gramática
Questão 6
Leia os trechos abaixo e escreva a função sintática dos termos solicitados:
a) O interessado escutava o canto dos pássaros.
- o interessado:
- interessado:
- escutava o canto dos pássaros:
- escutava:
- o canto:
Questão 7
Classifique o sujeito das orações abaixo:
a) Eles queriam se encontrar.
b) Colocaram um anúncio no jornal.
c) Escutamos o canto dos pássaros todos os dias.
5
http://www.cursoicone.com.br/documentos/provas/ensino_fundamental/ef6/port_ef6_3b.pdf.
Acesso em: 15 ago. 2006.
d) Havia um anúncio no jornal.
e) Encontraram-se no parque Maria Joana e seu pretendente.
f) Leste a notícia no jornal?
Questão 9
Leia o período abaixo e responda aos itens propostos.
Eles eram felizes: cantavam, dançavam, gostavam de animais, tinham vários pássaros e
estavam sempre alegres.
a) Quantas orações há na frase?
b) Escreva os verbos e classifique-os quanto à transitividade.
c) Escreva o sujeito e classifique-o.
d) Retire do trecho duas orações que contenham predicado nominal. [...]
Um comentário inicial e mais geral sobre as questões trazidas é que, tanto no que se
refere à compreensão do texto quanto no que se relaciona aos aspectos gramaticais, o texto
Notícias de Joana, além de ter sido usado como co-texto, também o foi como pretexto para a
elaboração das questões, resultando num ‘estudo’ superficial e pouco produtivo face aos
objetivos previstos para o ensino da língua materna na educação básica.
Vejamos algumas observações específicas sobre as questões de compreensão do texto. Na
questão 1, por exemplo, as perguntas que focalizam o nome do jornal e da pessoa que enviou
o anúncio se mantiveram exclusivamente no nível de identificação de elementos inscritos no
texto, praticamente apenas exigindo atividade mecânica de transcrição de determinada
seqüência textual. Nessa questão e nas que a seguem6, não houve qualquer preocupação em
relacionar esses elementos aos papéis que assumem no conto, os quais atuam, inclusive, como
importantes pistas de contextualização do texto.
Na questão 2, as perguntas também se constroem com lógica semelhante àquela que se flagra
na questão anterior, incorrendo, ainda, em sérios equívocos: por exemplo, criam uma
equivalência entre o texto lido – o conto – e os anúncios, os quais, aliás, são tomados como
um único anúncio; além disso, operam com o pressuposto de que tenha sido a mulher que
enviou, ela mesma, esse anúncio ao jornal (o que, nessa lógica, incluiria, absurdamente, até o
anúncio fúnebre!).
Observações podem ser feitas igualmente a respeito das questões gramaticais propostas. Nelas
também o texto é usado como pretexto. Prova disso é que, em todas as questões, foram
inseridas estruturas que não pertenciam ao texto, mas que apresentavam configurações
semelhantes a alguma estrutura do mesmo, ou cujo conteúdo se aproximasse daquele nele
veiculado. Fique claro, portanto, que, sob o ponto de vista a que nos filiamos, as atividades
de análise lingüística a serem desenvolvidas não deveriam perder de vista o texto,
consideradas as condições de produção, recepção e circulação em que este se constitui.
Feito esse esclarecimento, passamos a comentar as demais questões, apenas com o objetivo de
pôr à mostra fragilidades teórico-conceituais e/ou metodológicas nelas contidas, inclusive no
manejo da abordagem gramatical tradicional. Na questão 6, prevalece a preocupação com a
função sintática de certos elementos; em quatro das opções, o teste focaliza o termo sintático
em sua totalidade ou quanto a seu núcleo. Curiosamente, a última opção refere-se a um trecho
que não constitui um sintagma, ele próprio, na sentença em questão, portanto não tem função
sintática (o canto).
Certamente, tendo em vista o trabalho de interpretação do texto, mais interessante que
saber que o constituinte é sujeito da oração é saber, por exemplo, qual o seu referente, ou seja,
sobre quem recai a informação veiculada por essa forma. A questão 7, ao solicitar a
classificação do sujeito de algumas orações (não presentes no texto), parece ter um objetivo
6
Essa condição também se aplica às questões do exercício não trazidas a este texto (3, 4, 5 e 8).
simplesmente formal, não levando em conta o contexto pragmático-discursivo. Assim, por
exemplo, como o aluno vai saber, na opção b, se se trata de um ‘sujeito elíptico’ ou de uma
estrutura com indeterminação do sujeito, uma vez que a forma verbal na 3ª pessoa do plural
permite tal análise? Inserida num contexto, a estrutura dada em b poderia até mesmo ser
tomada como tendo também um sujeito elíptico! A opção e testa conhecimentos sobre a
colocação de sujeito e a pessoa verbal. Entretanto, não se apresentou nenhuma ocorrência com
passiva sintética para ser comparada com a opção e, de sujeito posposto, uma vez que são
estruturas de análise dupla em diversos tratamentos modernos.
Finalmente, a questão 9 apresenta perguntas de cunho gramatical variado, misturando
identificação de orações com classificação de verbos e de predicados. A opção a, por
exemplo, pode confundir um aluno que tenha uma competência discursiva diferenciada de
outros e que perceba que a seqüência de orações aditivas constitui um desdobramento do
predicado da oração ‘matriz’ (eles eram felizes), uma vez que estão contidas na noção de
felicidade veiculada através do item lexical felizes. Não foi explorada, nessa estrutura, a idéia
de continuidade num passado, o que daria vez a uma exploração do uso dos tempos verbais.
Na opção b, melhor teria sido solicitar uma explicação sobre a transitividade dos verbos, em
vez de simplesmente prover uma classificação. Nesse caso, poder-se-ia, por exemplo,
trabalhar com a estrutura argumental preferida, com as noções relacionadas a dado/novo para
a diferenciação dos argumentos do verbo, ou qualquer coisa semelhante. Igualmente
problemática é a opção c, que carrega uma ambigüidade com relação a qual oração a pergunta
se refere.7
Evidentemente, vários outros problemas poderiam ser levantados com relação às
questões exemplificadas. Nosso objetivo, como assinalado, foi somente o de exemplificar o
ainda presente tratamento tradicional dado à ‘análise do texto’, descomprometido tanto com
as práticas sociais de uso da linguagem quanto com os atuais objetivos para o ensino da língua
na educação básica.
7
Há tratamentos que vêem, na estrutura dada, uma oração complexa, com várias orações apositivas encaixadas;
outras análises vão simplesmente apresentar a estrutura como uma série de orações independentes.
abordagem do texto que levem o aluno a refletir sobre a relação entre a dimensão lingüística e
os demais fatores e dimensões implicados no processo de produção de sentido.
Para o propósito assumido, defendemos como significativas as contribuições do
Funcionalismo e da Lingüística Textual, campos de estudo para os quais sintaxe, semântica e
pragmática são dimensões interdependentes. Isso significa tomar, também de modo inter-
relacionado, os usos lingüísticos e as condições de produção, circulação e recepção dos textos
em que tais usos se manifestam (cf. MARCUSCHI & SALOMÃO, 2004).
Logo de início, um dos aspectos que chama a atenção na composição do texto Notícias de
Joana – um conto – diz respeito justamente ao modo como sua estrutura se constrói com base
na organização do anúncio, gênero textual que se encontra diretamente implicado na temática
e na própria trama do texto.
Temos aí, portanto, um caso de gênero conto, do domínio ficcional, o qual recorre a
estratégias e recursos de composição comuns ao gênero anúncio (em suas variadas formas).
Frise-se, no entanto, que o texto não cumpre a função sociocomunicativa própria do gênero
anúncio, isto é, não funciona como um anúncio; seu funcionamento, ao contrário, é regulado
por restrições que emergem nas práticas em que os gêneros do domínio ficcional/literário se
constituem e se consolidam. A esse respeito, lembramos Marcuschi (2002, p. 29), quando
assinala que dominar um gênero não é dominar uma forma lingüística, “e sim uma forma de
realizar linguisticamente objetos específicos em situações sociais particulares”.
O conto sob análise se divide, seguindo uma orientação cronológica, conforme
indicam as datas, em cinco partes, correspondendo cada uma delas a um ‘anúncio’. As quatro
primeiras partes – compostas de ‘anúncios’ de cunho sentimental, amoroso – recorrem à
estrutura composicional de anúncios normalmente publicados em cadernos de classificados
(ou pequenos anúncios) de jornal. Na última delas, por sua vez, materializa-se a configuração
de anúncio fúnebre.
Assim, por meio dos ‘anúncios’ de que se compõe o texto Notícias de Joana, dá-se a
conhecer ao leitor a história de Joana, ocorrida num período de aproximadamente dois meses
(de 27/09/73 a 14/11/73), bem como traços de sua personalidade.
Pode-se dizer que tais ‘anúncios’, datados de momentos diferentes, oferecem pistas sobre o
desenrolar dos fatos que antecedem e se seguem à publicação de cada um deles, criando,
assim, no texto, um efeito narrativo. Noutros termos, por meio dos ‘anúncios’ é narrada a
história de Joana, ainda que essa narração não se organize canonicamente, segundo a tipologia
narrativa.
O reconhecimento dessa organização leva também o leitor a ativar conhecimentos
sobre a estrutura mais recorrente dos enunciados em anúncios. Sobre isso, considere-se que,
como, nos anúncios, o foco recai, de modo geral, sobre o que se anuncia (e não sobre quem
anuncia), temos, como forma produtiva nesses gêneros, o uso da passiva sintética, como
ilustram os seguintes trechos de anúncios retirados de jornal: aluga-se sala; vende-se carro
novo.
Cabe notar que, mesmo sendo adotada a forma ativa em anúncios (vendo carro em
bom estado, única dona; jovem senhora procura moça ou senhora para dividir apartamento),
a informação trazida pelo sujeito gramatical (expresso ou não) recai, de algum modo, sobre
aquilo que se anuncia. Em outras palavras, nesses casos, o “agente” do verbo em que se indica
a natureza da ação do anúncio (vender, alugar, procurar, comprar, etc.) contém dados que, de
algum modo, informam sobre a qualidade, a credibilidade ou a natureza do que se anuncia.
À luz dessas considerações, tomemos a primeira parte do texto, exatamente aquela que
corresponde ao primeiro ‘anúncio’. Nele, como nos outros três que o seguem, a personagem
central do conto – Joana –, pessoa implicada no ‘anúncio’, não se coloca diretamente na 1ª
pessoa, indicando o seu envolvimento. Ao contrário, constrói-se no texto como um
enunciador na 3ª pessoa, o qual tematiza/informa sobre as pretensões da personagem.
Entretanto, diferentemente do que ocorre nos demais ‘anúncios’ citados, bem como no último
‘anúncio’ do conto, em que se mantém o enunciador em 3ª pessoa, manifestam-se, nesse
primeiro ‘anúncio’, diferentes marcas que denunciam os ‘andaimes’ da sua construção. Por
meio desses ‘andaimes’ dá-se aí a conhecer que Joana – personagem central do conto – é, na
verdade, aquela que escreve, embora se projete, na maior parte das vezes, como um terceiro
que sobre ela fala.
Uma das marcas lingüístico-gramaticais que indiciam essa alteração no
posicionamento enunciativo no primeiro ‘anúncio’ é a mudança de pessoa verbal. Assim,
inicia-se na 3ª pessoa determinada – Maria Joana [...] procura pessoa [...]; O interessado
deve ser [...] goste de ouvir música [...] seja alegre [...] seja carinhoso [...] saiba escutar [...]
não se importe [...] sonhe) – e termina com a 3ª pessoa impessoal, adotada a partir da metade
do ‘anúncio’ – Prefere-se [...] Não se exige [...] mas exige-se [...]. Nessa passagem de pessoa
do discurso, manifesta-se, de maneira curiosa, a presença ‘sorrateira’ de Joana, configurada de
forma explícita como enunciadora no trecho que sussurre aos meus ouvidos que me ama,
especificamente através dos pronomes de 1ª pessoa usados – o possessivo meus e o pessoal
oblíquo me.
Tomada apenas sob o ponto de vista da norma gramatical prescritiva vigente, tal
ocorrência poderia ser tomada como ‘erro’, cochilo de revisão, uma vez que rompe com a
pessoa do discurso que vinha sendo utilizada no texto, a 3ª. Entretanto, tal ocorrência não
pode ser tomada como aleatória ou equivocada, uma vez que, por meio dela, evidencia-se,
sobretudo, o grau de envolvimento do enunciador construído com o fato enunciado. Dito de
outro modo, as marcas de 1ª pessoa se mostram exatamente na menção à ação de natureza
íntima, a qual requer, inclusive, considerada a própria descrição semântica do verbo
sussurrar, proximidade física entre pessoas, razão pela qual se pode falar também que essa
ocorrência manifesta iconicidade.
Ainda com respeito ao primeiro ‘anúncio’, também se flagra a iconicidade na extensa
série de orações adjetivas articuladas pelo princípio da adição: que goste de ouvir música, seja
alegre, que goste de passear domingo de manhã, que goste de pescar, que goste de passear
na relva úmida da manhã, que seja carinhoso, que sussurre aos meus ouvidos que me ama,
que tenha bom humor, mas que também saiba chorar. Que saiba escutar o canto dos
pássaros [...].
Essa iconicidade existe na relação direta que se pode perceber entre a quantidade de
orações (e, conseqüentemente, das características que a pessoa procurada deve possuir) e o
grau de exigência e de idealização que define a personagem Joana. Dessa forma, a
organização aludida, sobretudo se cotejada com a configuração dos demais ‘anúncios’ do
conto (que vão se encurtando à medida que o tempo evolui), informa não só sobre o que se
procura, mas, fundamentalmente, sobre quem procura – Joana
Relacionadas aos aspectos até então destacados, estão as noções de envolvimento e
distanciamento – trabalhadas, dentre outros, por Chafe8 (1982) e Tannen (1989) – bem como
a oscilação desses mecanismos/estratégias ao longo dos ‘anúncios’. Tais noções são ‘chaves’
teórico-metodológicas adequadas para se descreverem diferentes níveis e formatos de
8
Chafe (1982), ao descrever estratégias de envolvimento, aponta para o uso de pronomes de 1ª pessoa como uma
manifestação de envolvimento do enunciador consigo mesmo, ao que ele chama de ‘ego-envolvimento’. Aponta,
ainda, o envolvimento do enunciador com o seu interlocutor/enunciatário, através do uso da 2ª pessoa, e o
envolvimento com o assunto, através do uso de advérbios, adjetivos, expressões modalizadoras, dentre outros
elementos, o que, nos termos de Labov & Waletzky (1967), constitui a avaliação. Caixeta (2005, p. 104), ao
estudar a interjeição no português brasileiro, acrescenta outro tipo de envolvimento aos elencados por Chafe
(1982). Trata-se do envolvimento do enunciador com a situação de produção. Aí se pode falar também no caráter
expressivo de certos elementos ou estruturas lingüísticas. Disso decorre que o envolvimento com a situação de
construção do texto proporciona a produção de um texto mais eficaz, em termos comunicativos.
inserção de pontos de vista em um texto. Na perspectiva de Labov & Waletzky (1967), trata-
se de mecanismos de “avaliação” que podem espalhar-se por toda a estrutura de um texto (em
especial o texto com tipologia narrativa), constituindo o que eles chamam de “ondas de
avaliação”, a partir das quais se percebem os movimentos de incursão do enunciador no
conteúdo informacional do texto. Para Tannen (1989), o envolvimento reflete a afetividade na
linguagem.
A estratégia de distanciamento, segundo a ótica de Chafe (op. cit.), consiste no uso de
certos mecanismos lingüísticos que revelam, de alguma forma, o não envolvimento direto
com a ação, através, por exemplo, do uso da voz passiva e de nominalizações.
Se se considerar que, em sua essência, essas noções se aplicam às formas de emergência e
posicionamento do enunciador no texto, então é possível afirmar que elas possuem relativa
equivalência com outras tais como modalização, subjetivação e avaliação, cunhadas em
diferentes quadros teóricos.
Os elementos lingüísticos que materializam o envolvimento ou o distanciamento são,
pois, “pistas” que vão direcionar o leitor para os objetivos do texto.
As estratégias de envolvimento/distanciamento vão permitir que se perceba a interatividade
do texto. Por exemplo, a produção do conto organizada a partir da estrutura de anúncios leva a
que a própria forma de anúncio se mostre como um recurso de envolvimento, visando à
interatividade. No caso do ‘anúncio’ que abre o conto, a mudança de perspectiva enunciativa
marca de modo mais flagrante o primeiro momento dessa oscilação, que se constrói a partir de
recursos lingüístico-gramaticais que denotam maior ou menor grau de envolvimento
(afetividade) do enunciador com o que está sendo veiculado. Isso vem como efeito, conforme
discutimos anteriormente, de um jogo “de esconde e revela”, por meio do qual é instanciado
um enunciador que fala de um terceiro – Maria Joana –, a qual, em dado momento, lança-
se/mostra-se como enunciadora.
No que toca às marcas de distanciamento no texto, considerem-se, por exemplo, tanto
o uso da passiva sintética – [...] dá-se preferência [...]; Não se exige que seja rico [...]; Pede-
se não enviar flores – quanto a construção em terceira pessoa, em situação de discurso
reportado – Maria Joana Knijnick, solteira, procura [...]; Maria Joana Knijnick pede [...]; A
família da sempre lembrada Maria Joana Knijnick comunica [...].
Nos segundo e terceiro ‘anúncios’ do conto temos uma expressiva redução de material
lingüístico (comparativamente ao primeiro ‘anúncio’). Neles se observa o distanciamento, que
é típico desse gênero, refletido não só pela objetividade com que as informações são trazidas
(não havendo mais aquela listagem de exigências e restrições quanto à pessoa que é
procurada) como também pela manutenção da 3ª pessoa.
O quarto ‘anúncio’, como os demais, guarda semelhança com anúncio da seção de
classificados de jornais. Note-se, porém, que nele se dá uma retomada de envolvimento;
melhor dizendo, nele se colocam de forma mais nítida marcas de envolvimento, traduzidas,
nesse caso, como inserções do ponto de vista da personagem Joana. Dentre tais marcas, cite-
se, por exemplo, o uso da forma verbal pede, cuja natureza semântica evoca um sujeito
(gramatical) para o qual a necessidade em foco no texto se mostra muito mais imprescindível
do que no primeiro ‘anúncio’. Esse envolvimento chega a um grau ainda mais forte com a
inserção do verbo suplicar, o qual, de fato, parece ser um recurso absolutamente estranho à
composição estilística de anúncios.
Finalmente, o quinto ‘anúncio’ – no qual se traz o desfecho da história – constrói-se à
semelhança de um anúncio fúnebre. Nele se mostram marcas de distanciamento, quer pelo
uso de 3ª pessoa e de formas verbais tipificadoras do gênero em foco – comunica, convida –,
quer pela não determinação de um agente para o verbo pedir (Pede-se não enviar flores9). O
distanciamento evidencia-se, também, através do uso do dêitico daquele (daquele ente
querido).
Cabe observar, ainda, que, do primeiro ao quarto ‘anúncio’, a oração inicial tem Maria
Joana como sujeito. Já no último ‘anúncio’, por força da estrutura composicional do anúncio
fúnebre – decorrente, obviamente, das condições de produção, circulação e recepção desse
gênero –, esse sintagma não atua mais como sujeito. A explicação, aqui, portanto, resulta de
restrições estruturais, por sua vez tributárias de restrições pragmático-discursivas.
Considerando o que evidenciam os cinco ‘anúncios’ de que se compõe o conto Notícias de
Joana, propomos a seguinte escala de envolvimento/distanciamento:
>------------------------------------------------------------------------------------------------------------ >
maior envolvimento ligeira queda de menor envolvimento
envolvimento, seguida de
ascensão no ‘anúncio 4, em
que há uma súplica
Frise-se que a escala proposta não pretende insinuar que índices de envolvimento e de
distanciamento sejam mutuamente excludentes. Ao contrário, temos, no conto, como
procuramos demonstrar, oscilações contínuas entre distanciamento e envolvimento. Assim,
rompendo com o efeito de distanciamento típico do gênero anúncio – em suas várias formas
de manifestação na nossa cultura – flagram-se, no texto, vários indícios da presença do ponto
de vista da personagem central – Joana –, a maior parte deles relacionados aos sentimentos de
desesperança e decepção e à condição de carência da personagem, que se desenham,
paulatinamente, ao longo dos ‘anúncios’. Isso se manifesta, por exemplo, tanto na diminuição
da extensão dos anúncios quanto nas muitas alterações neles presentes, conforme se ilustrou
em nossa discussão.
Tendo em vista os propósitos assumidos para este trabalho, cabe mencionar, por fim, que
muitos outros aspectos do texto poderiam ser tomados para reflexão em sala de aula, alguns
deles em estreita articulação ou em continuidade com os tópicos que elegemos. A título de
exemplo, indicamos: a heterogeneidade tipológica10 na composição do texto; os elementos
anafóricos, seus tipos e suas funções; o uso das pessoas verbais e de seus contextos de
ocorrência; a articulação de orações e o valor semântico dos conectores oracionais.
9
Estamos considerando que a seqüência “pede-se” pode ser vista tanto como forma indeterminada de sujeito
(pelo menos de acordo com uma das análises correntes para esse tipo de estrutura) quanto como construção na
voz passiva sintética.
10
No primeiro ‘anúncio’ manifesta-se, de forma rica, essa heterogeneidade tipológica. De uma descrição (até
“azul do céu”, no meio do texto), em que se observa a ocorrência de grande número de orações relativas para
detalhar ou especificar o tipo de pessoa desejada, passa-se, na segunda metade do texto (a partir de “Percebe-
se”), a um processo de argumentação, através da ocorrência de seqüências avaliativas, veiculando a proposição
relacional (retórica) de tese-antítese (cf. MANN & THOMPSON, 1983) e materializadas por orações
adversativas, como em ‘que goste de bife com arroz e feijão mas que prefira peru com maçã”; “não se exige
que seja rico [...] mas exige-se principalmente [...]”; ou materializadas, ainda, por oração iniciada com o
conetivo e, sem valor aditivo, mas estabelecendo um contraste, como em “que gostem de amar e que não puxem
as cobertas de noite” – ‘mas não puxem as cobertas de noite’.
Considerações finais
ABSTRACT: Based on the exploration of a text used in an activity that was taken from teaching materials, this
work intends to enhance the debate about the treatment of the grammatical aspects in the teaching of Portuguese
Language. Substantiated on an approach that articulates contributions from different fields of linguistic studies,
which share a socio-interactionistic view of language, the analysis of the text that takes place in this work
demonstrates the possibility of articulating the linguistic, textual, socio-pragmatic and discoursive dimensions in
teaching/learning practices that have the text as its object of study.
Keywords: Portuguese Language teaching; Linguistic analysis; Text.
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