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ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica: Editora Ática, S. Paulo, 1992.
Assistimos, em algumas universidades brasileiras, ao redespertar de interes
se dos estudos históricos, mesmo naquelas em que os estudos sincrônicos marcaram
uma das características mais distintivas de sua investigação acadêmica. Este é um
sinal promissor de que a pesquisa lingüística vai aos poucos se livrando do seu ex
clusivismo descritivista para despontar rumo a uma visão mais ampla do seu pano
rama de interesse.
É neste clima que a Editora Ática lança a Lingüística românica do conhecido
e competente colega Rodolfo Ilari, do Departamento de Lingüística da Universidade
Estadual de Campinas. Divide-se o livro em quatro partes e um Apêndice intitulado
O Português do Brasil, (pp. 237 a 269) elaborado por outro não menos competente
colega, o professor Ataliba T. de Castilho, de cujo ensaio não me ocuparei nesta
breve resenha, para ficar estritamente nos temas de que tratam os programas de
Lingüística/Filologia Românica. A primeira parte é dedicada à História e métodos
da Lingüística Românica (pp. 17 a 38; a segunda ocupa-se com A romanização (pp.
41 a 52), a terceira com O latim vulgar (págs. 57 a 132), a quarta comAformação
das línguas românicas (pp. 135 a 234). Completam a obra 26 mapas e duas referên
cias bibliográficas, uma relativa ao texto do Prof. Ilari (pp. 70 a 272) e outra ao do
Prof. Ataliba (pp. 277 a 285). Bastante útil e didático para o consulente orientar-se
se deseja informação mais aprofundada é o conjunto de quadros que constituem a
Complementação bibliográfica (pp. 272 a 276).
Numa obra que abarca temas tão largos é natural que fiquem alguns pontos
menos esclarecidos, enquanto outros necessitem de alguns reparos, ao lado de al
guns que estão no plano de meras opções de doutrina. Entre estas últimas, está, por
exemplo, a debatida questão do chamado "latim vulgar". O Prof. Ilari, nas pegadas
do grande romanista que foi o Prof. Theodoro Maurer Jr., e, fonte de ambos, o velho
e genial Frederico Diez, tem o latim vulgar como "a língua efetivamente falada no
mesmo período [isto é, no final da República e no início do Império] (p. 58), que se
opõe ao latim literário". Por isso, vê o latim vulgar como "um proto-romance, isto
é, como o ponto de partida da formação das línguas românicas" (lbid.), e daí "as
línguas românicas tomadas em seu conjunto numa visão comparativa são a melhor
fonte para o conhecimento de sua própria origem, um fato que ressalta quando se
leva em conta a precariedade das fontes escritas do latim não literário" (p. 22).
Ora, conhecemos, a respeito·desta última opinião, o que ocorreu com Meyer
Lübke que, depois de esposar essa tese na l.ª ed. do Grundriss, de Grõber, não mais
fez referência a ela na 2.ª ed., em virtude das críticas recebidas.
Esse conceito de latim vulgar aqui adotado, que o opõe ao latim clássico, isto
é, essa tese sociológica de que o latim vulgar "foi de fato uma língua eminentemente
popular" (pág. 59), é muito difícil de ser aplicado à sociedade romana, em que em
todas as atividades, públicas ou privadas, conviviam aristocratas, plebeus e antigos
escravos tornados libertos, como o próprio Prof. Ilari testemunha, ao citar, nas fon-
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tes para o conhecimento do latim vulgar, o caso da Trimalcião, antigo liberto e novo
rico. Isto para não falar do testemunho da história, porque, como diz Herculano de
Carvalho, "para aceitarmos a mesma tese, teríamos ainda de admitir que as classes
superiores, ou melhor, os indivíduos que as compunham e eram os detentores da
forma "nobre" do latim, se teriam extinguido subitamente (por qualquer cataclis
mo! ...) sem haverem podido transmitir aos seus descendentes o seu saber lingüístico
- o que é não só anti-histórico, mas "a priori" absurdo" (Lições de Lingüística Ro
mânica, 3.ª ed., p. 62).
Sou dos que acreditam que a melhor lição está com aqueles para quem, con
forme Coseriu, o chamado latim vulgar "não é nenhuma língua histórica real, mas
apenas uma abstração que explica o elemento latino 'herdado' pelas línguas români
cas", definindo-o como "um conjunto de formas 'vivas' (faladas) durante a época
imperial", formas todavia nem contemporâneas nem universais, - umas pertencen
tes sem dúvida a todo o latim falado cerca do séc. IV d.C., outras porém limitadas a
determinadas regiões ou determinadas áreas; umas exclusivas do latim falado, ou
tras porém comuns ao latim literário; umas mais antigas, outras mais modernas;
formas que além disso não esgotarão seguramente todas as possibilidades expressi
vas do latim falado tardio, porque com certeza muitas outras, usadas em todo ou em
parte do Império, se perderam sem chegar às fases românicas ou sem terem chegado
a ser documentadas nestas" (E. Coseriu, El lhamado "latín vulgar", pp. 39 e ss., e 54
ss., e José J. Herculano de Carvalho, ibid., pp. 71-72). Melhor do que falar em "la
tim vulgar", deveríamos dizer simplesmente que as línguas românicas continu-aram
o latim.
É igualmente inexata e hoje posta de lado a tese de um latim falado uno em
toda a extensão do Império ("...ao mesmo tempo que a semelhança entre as línguas
românicas deixa entrever que na antiga România, nos primeiros séculos, deve ter
sido falada uma língua latina relativamente uniforme", p. 58). Já Schuchardt, em
1885, acentuava que o latim vulgar não era uma língua única, mas um somatório de
realidades língüísticas. Em vista do exposto, as conhecidas gra�áticas do latim
vulgar não espelham, como deveria acontecer, um corpus homogêneo e unitário, e,
por isso mesmo, se nos apresentam, no dizer de Herculano de Carvalho, como "uma
coleção heteróclita de formas desemparelhadas" no tempo, no espaço (dialetos) nas
camadas sociais (níveis de língua) e estilos de língua.
Desta divergência do conceito de latim vulgar surgem outras que a brevi
dade do tempo não me permite tratar com maior detença. Lembro aqui a lição de se
considerar o 1.v. como proto-romance, conceito que, além de·contrariar muitos fatos
lingüísticos antigos existentes nesse chamado latim vulgar (a começar pela tendên
cia de simplificação da sua estrutura gramatical: "A estrutura do proto-romance é
mais simples que a do latim culto", p. 60), a expressão proto�romance tem ine
quívoco valor cronológico, embora se ensina, a páginas 61, que "a grande diferença
entre as duas variedades do latim não é cronológica (o latim vulgar não sucede ao
latim clássico)...".
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Causa estranheza que o A. pouco trate da importância do grego na formação
das línguas românicas, ainda que declare - sem se explicar - que, quanto à influên
cia grega na língua literária, "ela foi certamente menor do que a influência exercida
pelo grego sobre o latim vulgar" (p. 61).
Para não cansar o leitor, passo às questões menores. Ao falar de Diez e dos
primeiros comparatistas, (p. 17), seria melhor não ficar somente na data de 1836
para a Gramática do fundador da nossa disciplina, pois dela estão fora os dois volu
mes seguintes. Também merece corrigida a data do Dicionário etimológico do mes
mo romanista: 1854, e não 1853. Na mesma página, declara que o "nome Filologia
Românica", com que a disciplina surgiu, é significativo do contexto intelectual em
que se deu seu aparecimento". Ora, o nome de "Filologia Românica" parece ter sido
usado pela primeira vez por K.A. Mahn, em 1863, conforme assinala Tagliani, nas
suas Origini, na nota 2 da pág. l , da 6.ª edição (1972); como está, pode o leitor supor
que o nome seja devido a Diez. Aproveito a ocasião, para dizer que o Prof. Ilari se
serve da 3.ª ed. (1959) da obra de Tagliavini, o que o levou a não aproveitar alguns
dados para seu livro, já que no prólogo da 5.ª edição (1969) o mestre italiano de
clarava. "che una futura edizione (esta 5 .ª) avrebbe dovuto essere ricomposta non
potendo piú essere eseguita coi vecchi flani del 1959" (p. XI).
Na p. 18 lê-se: "O projeto de Bopp, que foi logo retomado por outro erudito
da época, Jacob Grimm, deu ao estudo das línguas antigas um caráter genético e fez
aparecer a preocupação de reconstituir, pela comparação, o indo-europeu, conside
rado como a origem comum das línguas das principais culturas clássicas".
Como está, entende-se que Bopp precedeu a Grimm, mas este escreveu sua
Deutsche Grammatik em 1819 e já em 1822 saía a 2.ª ed., onze anos antes da Gra
mática comparada de Bopp. A influência do dinamarquês Rask sobre Grimm é que
importava salientar. A redação dá a entender que o processo da "reconstrução" do
indo-europeu é devido a esses autores, quando o é a A. Schleicher. Neste pequeno
trecho do A. estabelece-se uma relação estreita que, metodologicamente, está longe
de existir entre as obras e os conceitos com que operavam Grimm e Bopp, por um
lado, e Schleicher, por outro. O processo da reconstrução do primitivo comum indo
europeu deste lingüista, com seus dois grandes períodos de "desenvolvimento" e
"decadência", encontra-se minimizado e algo distorcido na subseção "Documento:
Da comparação à reconstrução" (pp. 22-24).
Ainda na mesma página 18, valeria acrescentar que a tese de fazer do pro
vençal antigo a fonte direta das outras línguas românicas não foi exclusividade de
Raynouard, mas, ao contrário, tem raízes bem distantes com o catalão Antônio Bas
tero; Ernst Robert Curtius (Europãische Literatur, 1954, p. 38) põe nesta lista Pas
quier, Voltaire e Marmontel.
Em algumas passagens do livro há repetições de lições que, entre si, não se
ajustam totalmente; assim, na p. 22, se lê "(... ) Appendix Probi, um glossário que
pode remontar aos século III ou IV d.C.", mas na p. 66 já aparece outra variante,
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falando da mesma obra: "Fruto da atividade de um gramático chamado Probo, que
deve ter vivido no século III... ". Por outro, há de se fazer um comentário a latere.
Depois do importante artigo de C.A. Robson não mais se data o Appendix Probi
em época tão recuada, e sim, entre os sécs. V ou VI d.C.; também não se classifica,
em geral, a obra como "glossário", já que o termo se aplica melhor aos conhecidos
vocabulários; por outro lado, há muito se deixou de atribuir o Appendix a Probo.
Certamente estranhará o leitor que a páginas 35 se declare que "(...) os últi
mos desenvolvimentos da gramática chomskiana têm dado uma atenção especial às
línguas românicas, apresentando-as como surpreendentemente distantes entre si
quando julgadas por alguns dos principais parâmetros chomskianos", e na p. 59."
(... ) a semelhança entre as línguas românicas deixa entrever que na antiga România,
nos primeiros séculos, deve ter sido falada uma língua latina relativamente uni
forme".
Na p. 62 lê-se: "Um exemplo da influência exercida pelo latim vulgar sobre
o literário é o número cada vez maior de vulgarismos na língua da literatura", mas,
na p. 70: "Nas obras literárias, o latim vulgar constitui a parte menos volumosa, ao
passo o que o texto, em seu conjunto, segue geralmente os padrões literários tradi
cionais".
Ainda na p. 62: "Como iniciativa de aproximação entre a língua vulgar e o
latim culto, pode-se citar a decisão da Igreja, no tempo de São Jerônimo, de redigir
em um latim tanto quanto possível popular os textos do Novo Testamento", contras
tando com o que se lê na p. 70: " (...) a Vulgata, a despeito do título, tem uma estru
tura morfológica irrepreensível do ponto de vista do latim literário". Creio serem
suficientes estes exemplos.
O Prof. Ilari adota o feliz expediente de apor aos textos latinos que cita, a
respectiva tradução, com o fim de afastar do leitor os possíveis embaraços com o
latim; todavia, merece maior cuidado a transcrição de tais passagens, a que faltam,
para a competente colação, as referências bibliográficas. Assim, o texto de Orosio,
citado à página 50, não é totalmente fiel, e a tradução ficou um tanto truncada, senão
distante do original latino.
Em duas passagens da L. R. (pp. 63 e 66) traz-se à baila a conhecida de
claração de S. Agostinho, segundo a qual "melius est reprehendant nos grammatici
quam non intelligant populi". O Prof. Ilari comentou, na companhia de vários au
tores: "Evidentemente, essa tradição reflete uma orientação da Igreja no sentido de
aproximar sua linguagem da do povo; é a mesma orientação que se resume nesta
frase de um outro grande escritor cristão, muito atento a questões de língua, Santo
Agostinho" (p. 63). Pelas próprias declarações do A., percebe-se que é uma frase de
efeito, exatamente dentro das típicas figuras de retórica, tanto ao sabor do estilo
daquele tempo, estilo muito bem estudado por E. Norden, em Die antike
Kunstsprosa vom VI. Jahrhundert v. Chr. bis in die Zeit der Renaissance, 2 vols.
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Não é, pois, uma declaração para se levar às últimas conseqüências. S. Agostinho
está longe de ser um escritor popularizante.
Na p. 67, em razão de um trecho extraído da Peregrinatío Aetheriae, declara
que nele se podem "reconhecer dois traços que antecipam aspectos das línguas
românicas: o uso do demonstrativo com valor de artigo e o uso de habeo para for
mar uma locução verbal com valor equivalente ao futuro do pretérito". Que não se
tem no texto um artigo se prova pela própria tradução; em nenhum passo, o A em
pregou o artigo definido onde o original apresentava o demonstrativo. Na Peregri
natío, ille e ipse são empregados anaforicamente para indicar a segunda referência,
isto é, aquilo que já se sabe ou se conhece, porque já foi antes referido no texto. E a
isto ainda não se pode chamar artigo definido, que é uma inovação tardia no latim.
A mesma observação quanto a um p.retenso futuro do pretérito; temos, sim, uma
locução verbal formada de v. principal+ habere (traversare habebamus) para ex
primir a modalidade, a obrigação, como, aliás, corretamente apareceu na tradução
(tínhamos que atravessar).
Tendo em vista o significado específico de Vulgata, não há por que dizer:
"Assim [o seguir o padrão do latim culto], a Vulgata, a despeito do título, tem uma
estrutura morfológica irrepreensível do ponto de vista do latim literário" (p. 70).
A subseção 6 da terceira parte, das características do latim vulgar, é rica de
informações, e por isso oferece comentários para muitos aspectos. Lembrarei aqui
alguns deles. No caso da palatalização das velares (p. 79), mereceria uma distinção
entre o fenômeno puramente fonético e o fonológico, já que no latim com muita
probabilidade, existia já a palatalização sob o aspecto fonético, como alofones.
Também caberia distinguir, em certas áreas da România - como o veglioto - o des
tino diferente se a vogal seguinte era i ou e, e se este e era aberto ou fechado. A tese
de um retrocesso da palatalização na Sardenha, histórica e lingüisticamente estra
nha, está a pedir maiores esclarecimentos.
No tocante a mudanças de conjugação - fenômeno que o latim clássico tam
bém conhecia, dada a complexidade formal dos paradigmas verbais-, tenere não
"passa a tenire apenas na Gália", (p. 99), pois o fato ocorre também com freqüência
nos dialetos italianos.
Nesta mesma página, refere-se o A. ao importante trabalho do nosso erudito
romanista Prof. Theodoro Maurer, em que propõe, contra a opinião antiga e ainda
hoje aceita, que o aparecimento de -esc-, -isc-, esvaziado de seu valor incoàtivo, não
se explica como artificio nivelador para unificar a posição do acento tônico, mas de
uma combinação ou fusão (ingl. blending) dos verbos incoativos em -escere com os
verbos oriundos de substantivos e adjetivos em -ire. Os que não aceitam esta expli
cação, contrapõem que em outras classes de verbo também ocorre esse nivelamento,
inclusive nos verbos em -are, onde não se pode pensar na combinação aludida para
os verbos em -ire. Rohlfs (Grammatica storica della língua italiana, §526) lembra,
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por exemplo, que o presente de vindicare era vindicéjo (no latim tardio), em vez do
clássico vindico.
Outros argumentos contrários de peso incidem no fato de haver em reto-ro
mânico o infixo -esch- nos verbos em -ir e em -ar, em todas as formas, bem como
verbos que não se explicam por qualquer combinação, apresentam esse infixo, como
ocorre, por exemplo, com finire.
A rigor, não se pode afirmar, sem referência a certas proscrições discursivas,
que a "língua vulgar espressa o pronome objeto, ao passo que o latim literário dei
xava que fosse inferido pelo contexto" (p. 106). Está claro que o latim culto, como
o vulgar, em certas condições, usavam dessas omissões na circunstância aludida;
mas a omissão é particularmente freqüente nas línguas românicas, quando o verbo
já se acompanha de pronome objeto indireto, de modo que, embora estritamente
sintático, o caso se dá por questões de eufonia, conforme lembra Meyer - Lübke no
§379 da sua Syntaxe (trad. fr.).
Na p. 107, ao tratar da possibilidade de o infinitivo ter sujeito próprio no
latim e no domínio românico, creio que o A. deve explicitar melhor a sua redação,
pois como está, com o exemplo em português "depois de eles chegarem", pode dar
a entender que o "infinito pessoal" é tomado igual a "infinito flexionado", o que faz
perigar a limpidez da lição: "Esse emprego, que é hoje uma das peculiaridades do
português, aparece atestado antigamente na maioria dos donúnios românicos", o
que, quanto ao "infinito flexionado", sabemos que não conhece nem conheceu essa
extensão na România.
Ainda nesta página, relativamente ao emprego do infinitivo substantivado,
mereceria alusão ao duplo desenvolvimento deste fato; de um lado, temos um uso
popular e antigo, já documentado em Plauto. Por outro lado, sob o influxo grego elll
parte, experimenta esse infinitivo difundido emprego no estilo científico, gramati
cal, filosófico e jurídico, no latim tardio e medieval, consoante a lição de J. Wacker
nagel (Vorlesungen über Syntax, !2, 273 e ss.).
Na p. 109 volta a tratar de matéria exposta na p. 95, a extensão do emprego
de suus no latim vulgar; na verdade, a regra clássica do uso do emprego do posses
sivo em referência ao sujeito da mesma oração e, em certas condições, ao sujeito da
oração anterior, reservando-se para os outros casos, o emprego dos demonstrativos
(eius, illius, eorum, illorum), tem suas exceções já no próprio latim clássico, e no
tardio a confusão se toma cada vez mais acentuada. Já no século VI, no latim da
Gália, os textos espelham um novo sistema, conforme mostrou P. Geyer nas
"Beitrãge zur Kenntnis des gallischen Lateins" (Archiv jür lat. Lexikographie und
Grammatik, II, 1885) e por Dag Norberg (Au seuil du Moyen Age, p. 14), que cita o
trabalho anterior. O que eu desejava assinalar é que o germe da mudança já estava
no latim clássico, no uso complexo descontínuo do possessivo.
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Na p. 115 é transcrito o Testamentum porcelli que melhor talvez estivesse
posto ao lado dos textos que integram "as fontes escritas do proto-romance" (p. 65
e ss.); entre os comentários há o relativo a parentes "para indicar qualquer tipo de
parentesco e não apenas os pais"; uma consulta ao Dictionnaire étymologique de
Ernout-Meillet desfaz a afirmação de que tal uso é devido a "interferências do latim
vulgar".
Na p. 129, repete-se a lição de pecus relacionado com pecunia, pois "por
algum tempo, a riqueza foi representada como a posse de um número razoável de
cabeças de gado"; ora, depois do magistral estudo de Benveniste (Le vocabulaire
des institutions indo-européennes, I, 50 e ss.), senão posta de lado, fica esta lição
pelo menos muito abalada. Também nesta página se dá como exemplo de etimolo
gia popular a passagem do inglês country-dance ao português contradança, em
que se interpretou country não como 'aldeia', mas como 'contra', e o empréstimo
passou a significar "o nome de uma dança que segue a outra ou responde a outra".
O que é preciso dizer é que não foi o português responsável pelo fato, mas sim o
francês, vindo daí importado para a nossa língua.
Na página 130, o A. repete, para exemplificar um caso de alteração meto
nímica "que envolve um nexo temporal", lição de Ullmann, com a diferença de que
o Prof. Ilari, não envolveu a ilustração com o toque de cautela, "in all probability",
que lhe pôs o semanticista inglês. Trata-se desta passagem: "empregada [a palavra
missa] de início na fórmula de despedida ite [contio] missa est (literalmente: "Ide,
está dissolvida [a assembléia]"), com que o padre declarava dissolvida a reunião
religiosa, ela acabou por indicar a própria reunião religiosa". Ullmann repete aqui a
lição de Diez; porém, valeria a pena que o Prof. Ilari substituísse essa explicação
pela que dá o lingüista italiano Antonino Pagliaro num exaustivo quanto fecundo
estudo sobre a fórmula "ite, missa est", recolhido nos Altri saggi di critica seman
tica (pp. 127- 182 da ristampa de 1971), onde a examina do ponto de vista lingüís
tico e extralingüístico nas comunidades cristãs primitivas. No tocante à lição de
Diez, comenta: "Coloro che si sono preoccupati di dare un'etimologia della parola
[missa], senza lasciarsi influenzari dagli sviluppi semantici successivi, hanno preso
le mosse della formula missa est. Cosi Fr. Diez, Etym. Wõrterb. d. roman. Sprache,
4.ª ed., 1878, p. 212, spiega messa: "bekanntlich missa est se. concio, mit welchen
worten der diaconus die versammlung entliess". Tale spiegazione, dal punto di vista
formale correta e, anzi, da questo punto de vista l'unica possibile, ha i1 torto di
essere troppo semplicista nei confronti della molteplicità dei significati; d'altra
parte, ammette un'ellissi per la quale non si offre alcuna ginstificazione, e, dando al
verbo missa est i1 significato di 'e stata sciolta (se. l'adunanza)', forza alquanto il
significato fondamentale di mittere" (pp. 167-168).
Ao tratar das preferências e diferenças regionais, lê-se, na p. 131, que "a Sar
denha e o sul da Ibéria desenvolveram o artigo definido a partir do demonstrativo
ipse; alhures, o artigo definido se origina de ille". Nada obsta em relação ao sardo,
mas quanto ao catalão (a lição é repetida na p. 174), será necessário dizer que as
formas correntes dos artigos são el, la, l', els e les, e que só em algumas regiões da
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costa norte e nas Baleares se usam as formas antigases (m.) e sa (f.), com os respec
tivos plurais ets e ses, oriundos de ipse.
Aproveito o ensejo para lembrar que entre as regiões mais conservadoras da
România põe o A. a Ibéria e o sarda (p. 132); em se tratando de um discípulo dos
mestres Maurer e Salum, causa estranheza neste e noutros pontos a ausência de refe
rência ao romeno.
Algumas vezes o Prof. Ilari trabalha com termos latinos não lhes atribuindo
a significação fundamental. Assim é que, por exemplo, ensina que o verbo saneio
significa "proibir" (p. 126) e nesta acepção o correlaciona com santo. Ora, aquele
termo pertence à língua religiosa e política e, como ensinam Ernout-Meillet, quer
dizer", rendre sacré ou inviolable", daí sanctus também querer dizer "rendu sacré ou
inviolable, sanctionné" e, posteriormente, o de "consacré par un rite" e, enfim, "ve
neré", "vertueux" e, na língua da Igreja, "saint". O significado punir é secundário.
Nesta mesma p. 126 não é rigoroso dizer-se que o latim impedire, a que se
prendem o port. impedir e o it. impedire, têm como "correlatos empêcher, empe
cer"; como está, parece que estes dois últimos se prendem diretamente à fonte im
pedire, o que contraria os princípios de fonologia histórica do francês e do
português, pondo de lado pedica e seu provável derivado *impedicare.
Está a exigir uma revisão acurada a transcrição do Stammbaum de Agard,
reproduzido na p. 160. Um dos pontos positivos de Agard é não enfeixar o galego
como domínio dialetal do espanhol, como faz o Prof. Ilari, talvez nas pegadas - aqui
pouco felizes - de Vidas.
Lê-se o texto do Prof. Ilari com muito prazer e proveito. A parte tipográfica
está cuidada, tendo, porém, escapado algumas gralhas que convém emendar. Lembrarei
as seguintes; Bergman por Bergson (32), Leherwõrter por Lehnwõrter (150) e, o>j,
we por e, o> je, we(162), leitpor llet(l 74), lat. capra>cabras por lat. capra > cabra
(179), seu Saggi por seus Saggi (189), macedo-romeno por mácedo-romeno (195)
Mountaner por Muntaner (219) MAGNO por MOURA (271).
Nos mapas 14, 16, 17, 18 e 19, melhor seria escrever Valença que Valência,
em português; no 24, talvez devesse assinalar que em Alguero se fala catalão, fato
que poderia aparecer nas referências do domínio do catalão (p. 174). Também neste
última página, sugeriria a substituição de "no departamento de Roussillon" por "no
departamento dos Pireneus Orientais".
Pelo que se diz acerca do destino do ditongo au, na p. 76, talvez fosse me
lhor, na p. 123, substituir pauper > port. pobre por popere > port. pobre; também
faltou referência à passagem au > ou.
Acredito que, na p. 66, §5.1.1, Tertuliano saiu em vez de Quintiliano, já que
desconheço a atividade do grande pilar da Igreja como autor de obra de retórica.
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Destoam do tom científico do livro, a meu ver, a alusão meramente anedótica
do Palácio La Moneda, de Santiago do Chile e da nossa Casa da Moeda (pp. 125-
126) e à "suntuosa e cafoníssima recepção" da Cena Trimalchionis, em que o an
fit rião "incorre n o u so de barbarismos, isto é, formas vulgares, e
hiperurbanismos, isto é, formas estapafurdiamente cultas ..." (p. 67). É pena que
um exemplo de literatura humorística e satírica, que tem antecedentes literários em
Platão e Horácio, com uma oportunidade de mostrar o modos vivendi e os valores
dos petits gens de uma cidadezinha do campo, seja assim apresentado ao leitor.
Como toquei nesta página, não me furto a oportunidade de lembrar que o latim
moneta, a rigor, nada tem que ver com o verbo moneo (lembrado também na p.
130), e assim as ilações aí expendidas devem ser revistas . Emout-Meillet, na boa
tradição etimológica, ensinam, adotando o parecer de Assmann, que Moneta, tem
plo de Juno e o verbo moneo têm filões diferentes, já que "Moneta au sens de
"monnaie" serait d'origine phénicienne, et emprunté comme la plupart des noms de
monnaies, cf. as; et le rattachement à moneo serait dü à une étymologie populaire"
(op. laud., s. v. Moneta).
Estimo, para terminar, que o Prof. Ilari veja nestas observações esparsas o
interesse despertado pelo seu novo livro, ao qual auguro próxima 2.ª edição.
E.B.
***
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