SOMBRA...
UMA PARÁBOLA
Edgar Allan Pöe
E, ainda que eu caminhe através dos vales da Sombra...
Salmo de Davi
Vós, que me ledes, estais vivo; mas eu, que escrevo, há muito declinei em meu caminho para as regiões das sombras.
Porque estranhas coisas ocorrerão e coisas secretas serão reveladas; e muitos séculos terão decorrido até que os
homens leiam estas memórias. E, quando as virem, alguns não lhe darão crédito e outros irão duvidar; contudo, uns
poucos encontrarão razões para meditar sobre os caracteres aqui gravados com férreo es lete.
O ano nha sido de terror e de sensações muito mais intensas que o terror, para as quais não existe nome sobre a
terra. Pois se sucederam muitos prodígios e muitos sinais e, em toda parte, sobre o mar e sobre a terra, estendiam-se
as asas da Peste. Para aqueloutros, doutos na leitura das estrelas, não era estranho que os céus revelassem uma
fisionomia de desgraças; mas, para mim, o grego Óinos, e para os meus companheiros, era evidente que havia
chegado a alternação daquele ciclo de setecentos e noventa e quatro anos em que, à entrada de Áries, o planeta
Júpiter cai em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito caracterís co dos céus, se muito não
me engano, era visível não apenas no orbe sico da Terra, mas, igualmente, nas almas, na imaginação e excogitações
da humanidade.
Sentados em volta de algumas garrafas de vinho nto de Quios, na sombria cidade de Ptolomais, formávamos nós, à
noite, um grupo de sete pessoas. Não havia, em nossa sala, outra entrada senão a enorme porta de bronze, que
havia sido fundida pelo ar sta Corino; era de rara compleição e estava trancada por dentro. No sombrio aposento,
negras cor nas alijavam-nos da visão da Lua, das fúnebres estrelas e das ruas desertas. Mas o presságio e a
lembrança do mal não podiam ser excluídos. Em torno de nós e dentro de nós coisas havia que não podem ser
descritas ― coisas materiais e espirituais: uma atmosfera pesada, uma sensação de sufocamento, de ansiedade e,
sobretudo, esse terrível estado de existência em que os nervos experimentam quando os sen dos estão vivos e
despertos, ao passo em que as faculdades da mente estão ina vas ―. Um peso mortal nos afligia. Caía sobre os
nossos corpos, sobre os móveis e sobre os copos. E tudo era depressivo e tenebroso, salvo as chamas de sete
lâmpadas de ferro que alumiavam a nossa orgia: alçando-se em altos e delgados espectros de luz, permaneciam elas
ardendo, pálidas e imóveis. E no espelho que o seu reluzir formava sobre a mesa redonda de ébano, em torno da
qual nos reuníamos, cada um contemplava a palidez de seu próprio semblante e reparava no inquieto brilho dos
olhares de seus companheiros. Entretanto, ríamos. E estávamos alegres ao nosso próprio modo histérico. E
cantávamos as canções de Anacreonte, que eram ensandecidas, e bebíamos muito, ainda que o vinho púrpura
lembrasse-nos a cor do sangue. Porque havia outro companheiro ali na sala: o jovem Zoilo jazia morto, estendido e
amortalhado, como se fosse o gênio e o demônio da cena. Mas... Ah! Ele não par cipava de nossa alegria, salvo o seu
rosto, convulsionado pela peste; e seus olhos, nos quais a Morte apenas havia apagado a metade do fogo da
pes lência, pareciam ter um certo interesse no nosso júbilo, o mesmo júbilo que os mortos sentem por aqueles que
irão morrer. Mas ainda que eu, Óinos, sen sse que os olhos do defunto estavam fixos em mim, constrangia-me a não
perceber a amargura de sua expressão, e, enquanto contemplava fixamente as profundezas do espelho de ébano, em
voz alta e sonora cantava as canções dos filhos de Téos. Mas, pouco a pouco, minhas canções foram cessando e seus
ecos, perdendo-se nas sombrias cor nas da sala, minguaram até se tornarem inaudíveis, e desvaneceram-se
completamente. Mas eis que dentre aquelas cor nas, onde os ecos do canto morriam, penetrou uma sombra
obscura e indefinida. Uma sombra como a da Lua quando se inclina no céu e assume a fisionomia de um homem;
mas aquela não era a sombra de um homem, nem de Deus, nem de um deus da Grécia ou da Cadeia, ou mesmo do
Egito. E a sombra postava-se sobre a entrada de bronze, por baixo do arco da porta, sem um movimento, sem dizer
palavras, e ali, imóvel, deixou-se ficar. Se bem me recordo, os pés do amortalhado Zoilo voltavam-se para a porta na
qual a sombra descansava. Mas nós, os sete ali reunidos, tendo visto a sombra, no momento em que ela avançava
sobre os cor nados, não nos atrevemos a contemplá-la fixamente, senão baixamos os olhos e miramos as
profundezas do espelho de ébano. Finalmente eu, Óinos, balbuciando em voz baixa, perguntei à sobra qual a sua
morada e seu nome. E a sombra respondeu:
― Eu sou a SOMBRA e a minha morada jaz nas proximidades das Catacumbas de Ptolomais, junto às lúgubres
planícies de Helusão, que margeiam o imundo canal de Caronte.
Então, levantamo-nos os sete de nossas cadeiras, tomados de horror, trêmulos, pálidos, porque o tom de voz da
sombra não era o de um único ser, mas o de uma mul dão de seres; e, variando em suas modulações, de uma sílaba
para outra, penetrava obscuramente em nossos ouvidos, com inflexões familiares, e bem lembradas, dos muitos
milhares de amigos que já morreram.
O Homem que Adorava Flores
Stephen King
No início de uma noite de maio de 1963, um jovem com a mão no bolso subia energicamente a Terceira Avenida em
Nova York. O ar era suave e lindo, o céu escurecia grada vamente de azul para o belo e tranquilo violeta do
crepúsculo.
Existem pessoas que amam a metrópole e aquela era das noites que mo vavam esse amor. Todos os que estavam
parados às portas das confeitarias, lavanderias e restaurantes pareciam sorrir. Uma velha empurrando dois sacos de
verduras num velho carrinho de bebê sorriu para o jovem e o cumprimentou:
— Oi, lindo!
O jovem retribuiu com um leve sorriso e ergueu a mão num aceno. Ela seguiu caminho, pensando: Ele está
apaixonado.
O jovem nha aquela aparência. Usava um temo cinza-claro, a gravata estreita ligeiramente frouxa no colarinho, cujo
botão estava desabotoado. Tinha cabelo escuro, cortado curto. Pele clara, olhos azuis-claros. Não era um rosto
marcante, mas naquela suave noite de primavera, naquela avenida, em maio de 1963, ele era lindo e a velha refle u
com instantânea e doce nostalgia que na primavera qualquer pessoa pode ser linda... se es ver indo às pressas
encontrar-se com a pessoa de seus sonhos para jantar e, talvez, depois dançar. A primavera é a única estação em que
a nostalgia parece nunca tornar-se amarga e a velha seguiu seu caminho sa sfeita por haver cumprimentado o rapaz
e alegre por ele haver retribuído o cumprimento erguendo a mão num aceno.
O jovem atravessou a Rua 66 andando a passos ágeis e com o mesmo leve sorriso nos lábios. Na metade do
quarteirão estava um velho junto a um surrado carrinho de mão cheio de flores — cuja cor predominante era o
amarelo; uma festa amarela de junquilhos e crocos. O velho também nha cravos e algumas rosas de estufa, na
maioria amarelas e brancas. Comia um doce e escutava um volumoso rádio transistorizado equilibrado de través no
canto do carrinho.
O rádio difundia no cias ruins que ninguém escutava: um assassino que aba a as ví mas a martelo ainda estava à
solta; John Fitzgerald Kennedy declarava que a situação num pequeno país asiá co chamado Vietnã (que o locutor
pronunciava "Vaitenum"), merecia ser observada com atenção; o cadáver de uma mulher não iden ficada fora
re rado do East River; um júri de cidadãos deixara de pronunciar um manda-chuva do crime, na campanha movida
pelas autoridades municipais contra o tráfico de tóxicos; os sovié cos nham explodido uma bomba nuclear. Nada
daquilo parecia real, nada daquilo parecia importante. O ar era suave e gostoso. Dois homens com barrigas de
bebedores de cerveja estavam à porta de uma padaria, jogando níqueis e gozando-se mutuamente. A primavera
estremecia na orla do verão e, na metrópole, o verão é a estação dos sonhos.
O jovem passou pelo carrinho de flores e o som das no cias ruins ficou para trás. Ele hesitou, olhou por cima do
ombro, parou para pensar um momento. Enfiou a mão no bolso do paletó e apalpou mais uma vez algo que estava lá
dentro. Por um instante, seu rosto pareceu intrigado, solitário, quase acossado. Então, ao re rar a mão do bolso,
reassumiu a expressão anterior de entusiás ca expecta va.
Retornou ao carrinho de flores, sorrindo. Levaria algumas flores para ela, que gostaria.
Ele adorava ver os olhos dela faiscarem de surpresa e prazer quando lhe levava algum presente — coisinhas simples,
porque estava longe de ser rico. Uma caixa de bombons. Uma pulseira. Certa vez, só uma dúzia de laranjas de
Valência, pois sabia que eram as preferidas por Norma.
— Meu jovem amigo — saudou o vendedor de flores ao ver o homem de terno cinzento voltar, correndo os olhos
pelo estoque exposto no carrinho.
O vendedor devia ter sessenta e oito anos; usava um surrado suéter cinzento de tricô e um boné macio a despeito da
noite morna. Seu rosto era um mapa de rugas, os olhos empapuçados. Um cigarro lhe tremia entre os dedos.
Contudo, ele também se lembrava de como era ser jovem na primavera — jovem e tão apaixonado que corria para
todos os lados. Normalmente, a expressão no rosto do vendedor de flores era azeda, mas agora ele sorriu um pouco,
assim como sorrira a velha que empurrava as compras no carrinho de bebê, porque aquele rapaz era deveras um
caso óbvio. Limpando farelos de doce do peito da suéter larga, pensou: Se esse rapaz es vesse doente, certamente o
manteriam no CTI.
— Quanto custam as flores? — indagou o jovem.
— Preparo-lhe um belo buquê por um dólar. Aquelas rosas são de estufa, por isso um pouco mais caras. Setenta
centavos cada uma. Vendo-lhe meia dúzia por três dólares e melo.
— Caras — comentou o rapaz. — Nada sai barato, meu jovem amigo. Sua mãe nunca lhe ensinou isso?
O jovem sorriu.
— Talvez tenha mencionado algo a respeito.
— Claro. Claro que ela ensinou. Dou-lhe meia dúzia de rosas: duas vermelhas, duas amarelas e duas brancas. Não
possa fazer melhor que isso, posso? Colocarei uns raminhos de cipreste e umas folhas de avenca — elas adoram.
Ó mo. Ou prefere o buquê por um dólar?
— Elas? — perguntou o rapaz, ainda sorrindo.
— Meu jovem amigo — disse o vendedor de flores, jogando o cigarro na sarjeta e retribuindo o sorriso —, em maio,
ninguém compra flores para si mesmo. É uma lei nacional, entende o que quero dizer?
O rapaz pensou em Norma, em seus olhos felizes e surpresos, em seu doce sorriso, e meneou ligeiramente a cabeça.
— Creio que entendo, por sinal.
— Claro que entende. O que me diz, então?
— Bem, o que você acha?
— Vou-lhe dizer o que acho. Ora! Conselhos ainda são gratuitos, não são?
O rapaz tornou a sorrir e disse:
— Creio que é a única coisa gratuita que resta no mundo.
— Pode ter absoluta certeza disso — declarou o vendedor de flores. Muito bem, meu jovem amigo. Se as flores
forem para sua mãe, leve para ela o buquê. Alguns junquilhos, alguns crocos, alguns lírios-do-vale. Ela não estragará
tudo, dizendo: "Oh, meu filho, adorei as flores, mas quanto custaram? Oh, é muito caro. Será que ainda não sabe que
não deve desperdiçar seu dinheiro? "
O jovem jogou a cabeça para trás e riu. O vendedor de flores con nuou:
— Mas se forem para sua pequena, é muito diferente, meu filho, e você sabe muito bem. Leve-lhe rosas e ela não se
transformará num guarda-livros, entende? Ora! Ela vai abraçar você pelo pescoço e...
— Levarei as rosas — disse o rapaz. Então, foi a vez de o vendedor de flores rir. Os dois homens que jogavam níqueis
olharam para ele e sorriram.
— Ei, garoto! — chamou um deles. — Quer comprar barato uma aliança de casamento? Venderei a minha... não a
quero mais.
O jovem sorriu, corando até as raízes dos cabelos escuros. O vendedor de flores escolheu seis rosas de estufa, aparou
os talos, borrifou-as com água e embrulhou-as num comprido pacote cônico.
— Hoje à noite o tempo será exatamente como você quer — anunciou o rádio. — Tempo bom e agradável,
temperatura por volta dos vinte e um graus, perfeito para subir ao terraço e olhar as estrelas, se você for do po
român co. Aproveite, Grande Nova York, aproveite!
O vendedor de flores prendeu as bordas do papel com fita gomada e aconselhou o rapaz a dizer à namorada que um
pouco de açúcar adicionado à água na jarra das rosas serviria para conservá-las frescas por mais tempo.
— Direi a ela — prometeu o jovem entregando ao vendedor de flores uma nota de cinco dólares.
— Obrigado.
— É o meu serviço, meu jovem amigo — respondeu o vendedor de flores, entregando ao rapaz o troco de um dólar e
meio. Seu sorriso se tornou um pouco tristonho:
— Beije-a por mim.
No rádio, os Four Seasons começaram a cantar "Sherry". O rapaz con nuou a subir a avenida, os olhos abertos e
entusiasmados, bem alertas, olhando não tanto ao seu redor para a vida que fluía pela Terceira Avenida, mas para o
interior e o futuro, na expecta va.
Entretanto, determinadas coisas lhe causavam impressão: uma jovem mãe empurrando um bebê num carrinho, o
rosto da criança comicamente lambuzado de sorvete; uma garo nha pulando corda e cantarolando: "Be y e Henry
em cima da árvore, SE BEIJANDO! Primeiro vem o amor, depois o casamento e lá vem Henry com o bebê no carrinho,
empurrando!" Duas mulheres conversavam em frente a uma lavanderia, trocando informações sobre a gravidez
enquanto fumavam. Um grupo de homens olhava pela vitrina de uma loja de ferragens para uma imensa TV a cores
com uma e queta de preço de quatro algarismos — o aparelho mostrava um jogo de beisebol e os jogadores
pareciam verdes. Um deles nha cor de morango e os New York Mets estavam vencendo os Phillies pela contagem
de seis a um no úl mo tempo.
O rapaz prosseguiu, carregando as flores, sem perceber que as duas mulheres grávidas em frente à lavanderia nham
parado momentaneamente de conversar e o fitavam com olhos sonhadores quando ele passou com o embrulho; o
tempo de receberem flores já terminara há muito para elas. Também não percebeu o jovem guarda de trânsito que
parou os carros na esquina da Terceira Avenida com a Rua 69 para deixá-lo atravessar; o guarda era noivo e
reconheceu a expressão sonhadora na fisionomia do rapaz por causa da imagem que via no espelho ao fazer a barba,
onde vinha observando aquela mesma expressão ul mamente. Não percebeu as duas adolescentes que cruzaram
com ele em sen do contrário e depois soltaram risadinhas.
Parou na esquina da Rua 73 e virou à direita. A rua era um pouco mais escura que as outras, ladeada por casas
transformadas em prédios de apartamentos, com restaurantes italianos nos porões. Três quarteirões adiante, um
jogo de beisebol de rua con nuava animado à luz do anoitecer. O jovem não chegou até lá; depois de andar meio
quarteirão, entrou numa travessa estreita.
Agora as estrelas nham surgido no céu, cin lando levemente; a travessa era escura e cheia de sombras, com vagas
silhuetas de latas de lixo. O jovem estava sozinho, agora... não, não totalmente. Um berro ondulante soou na
penumbra avermelhada e ele franziu a testa. Era a canção de amor de um gato e isso nada nha de lindo.
Andou mais devagar e consultou o relógio. Faltavam quinze para as oito e a qualquer momento Norma... Então,
avistou-a, vindo pelo quintal em direção a ele, usando calça comprida azul-marinho e uma blusa de marinheiro que
fizeram o coração do rapaz doer. Era sempre uma surpresa avistá-la pela primeira vez, sempre um choque delicioso
— ela parecia tão jovem.
Agora, o sorriso dele brilhou — radiante. Caminhou mais depressa.
— Norma! — chamou ele.
Ela ergueu os olhos e sorriu, mas... quando se aproximou o sorriso murchou. O sorriso do rapaz também tremeu um
pouco e ele ficou momentaneamente inquieto. O rosto acima da blusa de marinheiro lhe pareceu subitamente
difuso. Estava ficando escuro... estaria ele enganado? Certamente que não. Era Norma.
— Eu trouxe flores para você — disse ele, feliz e aliviado, entregando-lhe o embrulho. Ela o encarou por um
momento, sorriu — e devolveu as flores.
— Muito obrigada, mas está enganado — declarou. — Meu nome é...
— Norma — sussurrou ele. E rou o martelo de cabo curto do bolso do paletó, onde o guardara durante todo o
tempo.
— Elas são para você, Norma... sempre foi para você... tudo para você.
Ela recuou, o rosto um círculo branco difuso, a boca uma abertura negra, um O de pavor — e não era Norma, pois
Norma morrera há dez anos. E não fazia diferença. Porque ela ia gritar e ele golpeou com o martelo para conter o
grito, para matar o grito. E quando desferiu a martelada, o embrulho de flores caiu-lhe da outra mão, abrindo-se e
espalhando rosas vermelhas, amarelas e brancas perto das amassadas latas de lixo onde os gatos faziam um amor
alienado no escuro, gritando de amor, gritando, gritando.
Ele golpeou com o martelo e ela não gritou, mas poderia ter gritado porque não era Norma, nenhuma delas era
Norma, e ele golpeou, golpeou, golpeou com o martelo. Ela não era Norma e por isso ele golpeava com o martelo,
como fizera cinco vezes anteriormente.
Sem saber quanto tempo depois, ele guardou o martelo de volta no bolso do paletó e recuou para longe da sombra
escura estendida nas pedras do calçamento, para longe das rosas espalhadas perto das latas de lixo. Deu meia-volta e
saiu da travessa estreita. Era noite fechada, agora. Os jogadores de beisebol nham voltado para casa. Se exis ssem
manchas de sangue em seu terno, elas não apareceriam por causa do escuro. Não no escuro daquela noite de final
de primavera. O nome dela não era Norma mas ele sabia como era seu próprio nome. Era... era... Amor.
Chamava-se amor e perambulava pelas ruas escuras porque Norma o esperava. E ele a encontraria. Algum dia, em
breve.
Começou a sorrir. A agilidade voltou-lhe ao andar quando ele desceu a Rua 73. Um casal de meia-idade sentado nos
degraus do prédio onde morava observou-o passar de cabeça tombada para um lado, olhar distante, um leve sorriso
nos lábios. Depois que ele passou, a mulher perguntou:
— Por que você nunca mais tem aquela aparência?
— Hem?
— Nada — disse ela.
Mas observou o jovem de terno cinza desaparecer na escuridão da noite e refle u que se exis a algo mais lindo que
a primavera, era o amor dos jovens.
A Janela Fechada
Ambrose Bierce
Em 1830, a apenas umas poucas milhas do que é agora a grande cidade de Cincina , estendia-se uma selva imensa e
quase virgem. Toda a região estava escassamente povoada por gente de fronteira, almas inquietas, que mal
conseguiam levantar no deserto um lar mais ou menos confortável e alcançavam esse grau de prosperidade, que
atualmente chamaríamos de indigência, abandonavam tudo e, levados por um misterioso impulso de sua natureza,
seguiam seu caminho para o oeste, para afrontar novos riscos e privações, com o fim de obter as mesmas
comodidades às quais voluntariamente haviam renunciado.
Muitos haviam deixado essa comarca para encaminhar-se para as povoações mais remotas; porém, entre os que
ficavam, havia um que nha sido o. primeiro a chegar. Vivia só, numa cabana de troncos, rodeado pela grande
espessura da mata, de cuja escuridão e silêncio parecia par cipar, pois ninguém o vira jamais sorrir ou pronunciar
uma palavra supérflua. Atendia a suas necessidades, muito simples, com a venda ou a troca de peles de animais
selvagens; porém, nada cul vava na terra sobre a qual exercia inques onado direito de posse. Ficavam, no entanto,
certos indícios de "melhoras": vários acres de terreno adjacente à sua cabana nham sido antanho desmontados,
porém os troncos apodrecidos já estavam semiocultos pelo mato e os rebentos que já começavam a mi gar os
estragos causados pelo machado em tempo distante. Era evidente que as inclinações agrícolas do homem se haviam
consumido com chama vacilante, expirando em arrependidas cinzas...
A cabana de troncos, com sua chaminé de madeira, suas corroídas telhas de madeira e seu assoalho de barro ba do,
nha uma só porta e, no lado oposto, uma janela. Esta, no entanto, estava fechada com tábuas desde tempo
imemorial. E ninguém sabia por quê. O ar e a luz, certamente, não desagradavam ao seu ocupante, pois, nas raras
ocasiões em que um caçador passava pelo lugar solitário, via o recluso ensolarando-se no umbral, como se a luz do
sol fosse para ele uma necessidade que o céu sa sfazia. Bem poucos, creio, conhecem o segredo dessa janela. Porém
eu sou um deles, como os leitores verão no devido tempo. O homem se chamava Murdock. Aparentava uns setenta
anos, porém nha somente cinquenta. À parte a idade, havia envelhecido por outra causa. Seus cabelos e sua barba,
longa e espessa, eram brancos, os olhos opacos e encovados, o rosto singularmente sulcado de rugas que pareciam
pertencer a dois sistemas intersectantes. De corpo era alto e magro, encurvado de ombros como um carregador. Eu
nunca o vi; esses detalhes sabia meu avô, que me contou a história quando eu era menino. Ele, sim, conheceu o
solitário naquela distante época; viveu longo tempo num lugar próximo da cabana.
Um dia — muito depois — encontraram o Sr. Murdock morto na cabana. Nem a ocasião nem o sí o se prestavam
para as averiguações judiciais ou a curiosidade jornalís ca. Resolveu-se, suponho, que havia morrido por causas
naturais; em caso contrário, alguém o haveria contado e eu me recordaria. Sei apenas que o cadáver foi enterrado —
dadas as circunstâncias — junto da cabana, onde havia o túmulo de sua esposa, que o precedera de muitos anos:
tantos que a tradição local apenas re vera a memória da sua existência.
Assim conclui o capítulo final desta verdadeira história... Assim concluiria, melhor diria, se anos mais tarde, em
companhia de um amigo igualmente intrépido, não me vesse internado na região, acercando-me até uns trinta
metros da cabana... e logo fugimos, para escapar do fantasma que, como sabiam todos os meninos das imediações,
frequentava aquele lugar.
Como este relato surge, naturalmente, de minha relação pessoal com o que narro, esse detalhe tem certa
importância. Porém, há um capítulo anterior, que me foi contado por meu avô.
Quando Murdock construiu sua cabana e começou a trabalhar vigorosamente com o machado, desnudando o
terreno para uma futura granja, era jovem, forte e ambicioso. O fuzil cons tuía, então, seu único meio de
subsistência. No Leste, de onde procedia, casara-se, segundo o costume, com uma jovem digna, em todos os
sen dos, de sua honrada devoção, que com ele par lhava os perigos e as privações, sempre com espírito disposto e
animoso coração. Não ficou memória do seu nome; de seus dotes pessoais e espirituais, a tradição nada diz, e o
cé co tem todo o direito de alimentar suas dúvidas. Porém Deus não permite que eu também as tenha. Do afeto e
da felicidade que os uniu, há provas convincentes na vida ulterior do homem solitário, pois que outra coisa senão o
magne smo de uma amada recordação teria podido acorrentar um espírito audacioso a uma sorte semelhante?
Um dia, quando Murdock voltou de caçar num lugar distante da selva encontrou sua mulher prostrada e delirante.
Não havia médico em muitas milhas em redor, nem vizinhos. Seu estado era tão grave que não podia deixá-la para ir
em busca de ajuda. Empenhou-se, então, em atendê-la, em curá-la, mas no fim do terceiro dia a mulher entrou em
estado de coma e morreu sem recobrar por um instante sequer o mais leve vislumbre de razão.
Pelo que sabemos das naturezas afins de Murdock, podemos atrever-nos a completar com certos detalhes a estranha
imagem traçada por meu avô.
Ao comprovar que sua companheira estava morta, Murdock conseguiu recordar que os mortos devem receber
sepultura.
No cumprimento deste sagrado dever, errou uma e outra vez, algumas coisas que fazia mal, outras as fazia bem,
porém repe ndo-as interminavelmente. Sua ocasional incapacidade para executar algum ato simples e vulgar o
enchia de assombro; como um ébrio que se maravilha ante a suspensão de suas familiares leis naturais. Surpreendia-
o, também, o não haver chorado. Surpreendia-o e, de certo modo, envergonhava. Não chorar os mortos não
significaria, talvez, dureza de alma?
— Amanhã — disse em voz alta — terei que fazer o caixão e cavar a fossa. E quando não a enxergar mais, então,
sen rei de verdade... Mas agora... está morta, é verdade, mas tudo está bem, deve estar bem. As coisas não devem
ser tão terríveis como parecem.
Inclinou-se sobre o cadáver, na incerta luz, ordenando-lhe os cabelos e dando os úl mos retoques a um arranjo
simples, tudo fazendo mecanicamente, com distraída minúcia. E, todavia, por sob a realidade consciente, abrigava a
certeza de que tudo estava bem... Ela tornaria a vida e tudo estaria explicado.
Faltava-lhe experiência na dor: sua capacidade de sofrimento não estava aumentada pelo uso. Seu coração não podia
conter tudo, nem sua imaginação conceber adequadamente. Não sabia que estava ferido com tanta crueldade; esse
conhecimento viria mais tarde, para não o deixar nunca. A dor é um ar sta de faculdades tão variadas como os
instrumentos em que toca seus longos dedos fúnebres, arrancando a um as notas mais agudas e desesperadas, a
outros o acorde surdo e grave que palpita e se repete como o lento pulsar de um tambor distante. A alguns espíritos
assombra, a outros adormece. A este fere como uma flecha, picando a sensibilidade e dando-lhe uma vida mais
intensa; sobre aquele desce corno um golpe de maça, esmagando e aturdindo.
Podemos imaginar que a Murdock o tenha assim afetado, porque — e aqui entramos em terreno mais firme que o
das conjecturas — apenas concluída sua piedosa faina, desmoronou num banco junto da mesa em que repousava o
corpo, e vendo a brancura do perfil da morte na crescente penumbra, apoiou os braços no bordo da mesa, e neles o
rosto sem lágrimas, ainda, e indizivelmente cansado. Nesse momento entrou pela janela aberta um prolongado
gemido, como o grito de uma criança perdida nas profundezas do bosque escuro. Porém o homem não se moveu.
Outra vez, mais próximo, palpitou nos embotados ouvidos esse grito extraterreno. Talvez um animal selvagem. Talvez
um sonho. Porque Murdock dormia. Horas mais tarde, segundo lhe pareceu, o guarda infiel despertou e levantando a
cabeça prestou atenção... sem saber porquê. E na negra escuridão, junto da porta, ao mesmo tempo que recordava
tudo com um sobressalto, aguçou o olhar para ver... O quê? Não sabia. Seus sen dos estavam alertados, sua
respiração con da, seu sangue parecera esfriar para acentuar o silêncio. Quem... Quem o havia despertado, e onde
estava? De repente a mesa estremeceu sob seus braços e ao mesmo tempo ouviu ou acreditou ouvir, um passo
muito leve e macio... e outro... como um eco de pés descalços. Aterrado, sem poder gritar nem se mover, forçado a
esperar... esperou na treva, séculos de terror indizível. Inu lmente, quis pronunciar o nome da morta, inu lmente
quis es rar os braços, através da mesa, para saber se ainda estava ali. Sua garganta estava paralisada, suas pernas e
seus braços eram de chumbo. Então sucedeu algo terrível. Um corpo pesado pareceu lançar-se sobre a mesa,
empurrando-a contra seu peito, com ímpeto tal que esteve a ponto de cair de costas; ao mesmo tempo ouviu e
sen u que algo caía no soalho com tanta violência que o impacto sacudiu toda a casa. A isto sucedeu uma luta, uma
batalha de sons de impossível descrição. Murdock estava de pé. O terror excessivo lhe devolvera o domínio das
faculdades. Tateou com as mãos sobre a mesa. Nada!
Há um ponto em que o terror pode converter-se em loucura. E a loucura incita à ação. Sem um propósito definido,
sem outro mo vo que o caprichoso impulso de um louco, Murdock saltou para a parede e encontrou seu fuzil
carregado e apertou o ga lho sem mesmo fazer pontaria E ao vivo resplendor do ro viu uma enorme pantera que
arrastava para a janela o cadáver de sua mulher, com os dentes cravados em sua garganta.
Depois, foi a escuridão mais profunda do que antes. Escuridão e silêncio. Quando recobrou o conhecimento, estava
alto o sol e sonoro o bosque pelo canto dos pássaros.
O corpo jazia, junto da janela, onde a fera o deixara, afugentada pelo ro. Suas roupas estavam rasgadas, seus
cabelos em desordem, as pernas e os braços contorcidos. Da garganta, terrivelmente dilacerada, havia surgido um
charco de sangue, não de todo coagulado ainda. O lenço com que lhe amarrara as mãos, estava desfeito. As mãos
estavam crispadas.
Entre os dentes da morta ficara um fragmento de orelha do animal.