Capítulo - 3 SABERES E VIVÊNCIAS - NECES
Capítulo - 3 SABERES E VIVÊNCIAS - NECES
Introdução
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Em uma perspectiva pseudocientífica, coisifica-se a pessoa negra, a
ponto de anular sua humanidade. Para resgatar sua realização pessoal
e o fortalecimento do senso de comunidade, as qualidades do espírito
humano, portanto, da espiritualidade, devem ser valorizadas (HOOKS,
2020)), fundamentando a inclusão da história e da cultura afro--brasileira
no currículo do Ensino Fundamental, Médio e Superior, firmada pela Lei
n.10.639. de 2003 e atualizada em 2008 pela a Lei n. 11.645 (LANA;
MOREIRA, 2016). Para além da legislação, a motivação do projeto de
extensão Axé Saúde sempre teve como característica pensar as relações
étnico-raciais, realizando imersões em diversos contextos em busca do
compartilhamento de saberes.
Durante o desenvolvimento do ensaio reflexivo encontramos
dificuldades no que diz respeito a contextualizar o recurso da música,
forma de expressão e de também denúncia, para o encontro de significado.
O raciocínio poderia parecer simples, mas, a complexidade veio à tona.
A contextualização histórica colonial, de subjugação da população negra
e as repercussões atuais desse processo, aprofundavam-se em meio a
declarações e desabafos. Quando em algum momento tratava-se do rap
para associar o recurso da música como forma de promover a esperança,
o conteúdo era remetido ao passado, de forma cíclica.
A produção do texto declarava sentimentos associados à dor, quando
nosso objetivo era promover sentimentos de esperança no cuidado à
pessoa negra com sofrimento espiritual. Em um dos momentos de debate,
um dos membros do grupo trouxe que o sofrimento tanto espiritual quanto
racial é o que melhor abarca o que pretendemos discutir.
Ao contextualizar a humanização, as normativas do Ministério da
Educação e do Ministério da Saúde têm origem em posicionamentos
históricos e subsequentes do movimento social negro. Destacamos que
a Constituição da República (BRASIL, 1988) ao mencionar a igualdade,
precisou ser complementada pelo Estatuto da Igualdade Racial (BRASIL,
2010); dentre os frutos de debates realizados na Conferência de Durban
(ALVES, 2002), temos a Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra (BRASIL, 2018a).
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Observando-se a saúde integral, o capítulo discute sobre o rap e as
questões existenciais experienciadas pela população negra. Dessa forma
justificamos o título com o verso “Permita que eu fale e não as minhas
cicatrizes” que faz parte da música AmarElo interpretada por Felipe
Vassão, Emicida e Dj Duh e destaca o sofrimento psíquico de populações
vulneráveis, como a população negra (ALVES, 2002; AMARELO,
2019; CARDOSO, 2021; TRINDADE JÚNIOR; FRANÇA, 2022). No
texto foram referenciados também outros artistas de diversos gêneros
associados à temática espiritualidade e saúde.
Chimamanda Ngozi Adchie menciona em entrevista “A coisa que mais
amo, que dá sentido à minha vida, é escrever”, e relata que fica feliz
quando, ao ler seus livros as pessoas dão o feedback de suas emoções – se
riram ou se choraram –, pois isso lhe dá esperança para arrebatar pessoas
(SILVA, 2019). Valorizamos a produção de textos sobre o combate ao
racismo, a saúde da população negra e a valorização da vida. Quanto mais
escrevermos sobre o tema, mais oportunidades teremos para que outras
pessoas assimilem a relação entre a história e a estrutura da sociedade
do país em que vivem, assim como os reflexos ancestrais na pessoa que
precisa ser cuidada e se enquadra-se em situação de vulnerabilidade.
Desse lugar de inseguranças, surgem as debilidades na disponibilidade
do cuidado do outro, visto que a universidade tem alta potencialidade
também de negligenciar a saúde dos estudantes, sobretudo quando são
negros, e isso nos torna corpos e mentes fragilizados na atenção ao nosso
próprio adoecimento. Concomitantemente, as letras reivindicatórias do
rap podem demonstrar-se como uma abordagem terapêutica no que
tange, também, ao paciente, visto que o contexto sociorracial o qual
gera fatores estressantes, colabora significativamente como definidor em
diversas patologias. Para além do campo psíquico, trazemos a discussão
para um âmbito mais amplo: a espiritualidade definida como componente
essencial da unidade primordial de todas as coisas (BÂ, 2010, p.169), a
qual está intrinsecamente ligada à tradição oral à ciência, à religião, à
arte e ao divertimento. Diferentemente da mentalidade cartesiana, que
separa tudo em categorias, o historiador Hampaté Bâ recupera o sentido
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ancestral da espiritualidade, profundamente imbricada à matriz da
oralidade africana, capaz de conduzir o ser humano à sua totalidade. Para
o conhecimento africano, o corpo é a representação não apenas física,
mas também a perpetuação moldada em matéria dos gêneros não verbais
(ANTONACCI, 2014, p. 159), ancorados por gerações em nossos corpos
negros, como fontes vivas de história, que mesmo o crime da escravidão
não conseguiu apagar.
Por meio das leituras realizadas, entendemos que a angústia da
população negra pode ser definida como sofrimento espírito-racial,
fazendo com que apenas o método clínico centrado na pessoa (BALINT,
1988), conforme defendido pela escola europeia, não seja o suficiente
na atenção integral em saúde da população negra. A musicalidade negra
tem como histórico a manifestação das subjetividades do indivíduo,
fornecendo, pois, possibilidades para que estudantes negros produzam
mecanismos de resiliência diante do ambiente universitário hostil.
Esse espaço acadêmico, por vezes, é repleto de violências simbólicas
e microagressões cotidianas, que desvalorizam nossas narrativas e
existências.
Desse modo, as letras de rap nos remetem ao costume griô na contação
de histórias, pois as rimas configuram um sentido poético contra-
hegemônico às trajetórias negras as quais buscamos enaltecer. A proposta
presente neste capítulo é estabelecer diálogos no âmbito de estudo
teórico-racial articulado à formação em ciências da saúde, com o objetivo
de honrar os saberes produzidos no ambiente urbano, que extrapolam o
meio academicista tão restrito, valorizando, assim, a legitimidade do rap
como expressão cultural de um povo, sendo importante meio de partilha
de dores na universidade para que o compromisso com o bem-estar dos
pacientes e também com os discentes seja satisfatório.
Espiritualidade
Cheikh Anta Diop (1954), resgata o enfoque em afrocentricidade
(ASANTE, 2003), visto que na África pré-colonial, já existia organização
de ciências médicas e tecnologias de medicamentos, bem como
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religiosidades, um meio de expressar o espírito como indissociável
da matéria, já estabelecidas nas sociedades africanas. Dessa forma, é
errôneo pensarmos que as práticas espirituais tiveram início apenas após
o colonialismo e a escravidão. O ser humano possui inúmeras formas de
se expressar e encontrar sua identidade, e a espiritualidade é uma delas,
é uma dimensão própria do ser humano, por meio da qual se busca a
conexão com o sagrado e o significado da vida (PUCHALSKI et al.,
2014). Elucida-se que a espiritualidade também influencia na forma como
o indivíduo se conecta consigo mesmo e isso reflete em suas atividades
cotidianas, e em sua forma de ver a vida (WEATHERS; MCCARTHY;
COFFEY, 2016).
A temática da espiritualidade é, por vezes, relacionada unicamente
a manifestações religiosas e, portanto, erroneamente pode ser atrelada
erroneamente a debates preconceituosos e discursos pautados em
intolerância religiosa. Entende-se que a religiosidade está ligada a dogmas
inerentes a uma crença por meio dos quais o ser humano expressa sua
fé (CAMPOS; OLIVEIRA, 2022). Logo, a expressão da fé por meio de
atividades religiosas caracteriza-se como uma das formas de vivenciar
a espiritualidade (WEATHERS; MCCARTHY; COFFEY, 2016), não
sendo a única forma de conexão com o transcendente.
A conexão com o sagrado não necessariamente está relacionada a
afiliações religiosas e a prática de rituais que expressam crenças. Como
prova disso, o ser humano pode conferir ligação com o sagrado por meio
de ações como a contemplação da natureza à sua volta, em aspectos do
cotidiano e nas relações interpessoais (ESPORCATTE et al., 2020). A
conexão com o transcendente também pode ser vivenciada em situações
de sofrimento intenso, afinal a espiritualidade é uma forma de superar e/
ou enfrentar esse momento da vida (DIDOMÊNICO et al., 2019). Pode-se
destacar que, por meio da espiritualidade, os indivíduos podem encontrar
ressignificação nas mais diversas áreas de sua vida.
Em situações de sofrimento intenso, o ser humano busca por
algo que transcende o aspecto físico; logo, busca-se o aflorar da
espiritualidade como forma de superar e/ou enfrentar esse momento da
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vida (DIDOMÊNICO et al., 2019). A espiritualidade também exerce
influência sobre os desfechos de saúde e cabe aos profissionais de
saúde saberem oferecer assistência em relação à dimensão espiritual
de seus pacientes. O cuidado espiritual leva em consideração a dimensão
transcendente e isso interfere de forma direta no restabelecimento da
saúde do indivíduo (RAMEZANI et al., 2014).
O paciente que tem sua espiritualidade assistida pelos profissionais da
saúde nas dependências de uma unidade de saúde prova a percepção de um
cuidado em sua totalidade, vendo-o para além de sua doença. É entendido
que o adoecimento é melhor aceito quando a espiritualidade e suas formas
de expressão são colocadas em prática (GUIMARÃES; MAGNI, 2020).
Em publicação anterior refletimos que para cuidar é preciso sentido;
dessa forma atentamos para o desenvolvimento de habilidades para o
cuidado espiritual durante a formação do profissional de saúde e no meio
em que está inserido, sendo a arte um recurso para encontrar significado e
melhorar a qualidade da assistência prestada (GUILHERME et al., 2022).
A construção histórico-social da democracia brasileira foi definida
sob os pilares de um racismo sistêmico, estrutural, e pautado a partir de
ideias machistas, misóginas, que convergem com o patriarcado e o padrão
eurocêntrico de ver o mundo. Assim, decorrente desses fatores, um dos
frutos da colonização e da dominação de povos africanos e indígenas foi
a sequente desumanização de seus integrantes e práticas, ao ponto de
demonizar todos os aspectos culturais e espirituais que tinham esses povos.
A conversão em massa da população escravizada aos modos de padrão
eurocêntrico, para fins de dominação, fez com que esse povo fosse contra
as suas formas de expressão e visões de mundo, negando suas raízes para
se sujeitar a essa violenta forma de submissão. Esse processo ocorreu por
cerca dos 400 anos de escravidão, período em que pelo menos 15 milhões
de pessoas de diferentes regiões da África foram transportadas ao país,
trazendo com elas, suas vivências, culturas, e manifestações espirituais,
formando a então chamada diáspora africana (OLIVEIRA, 2014).
Nesse contexto, a prática da espiritualidade, principalmente no que tange
à religiosidade, surgiu como continuidade nas práticas que já ocorriam na
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África pré-colonial, como resistência à crueldade do sistema dominador
escravista. As populações escravizadas e hostilizadas tiveram de elaborar
uma série de mecanismos de sobrevivência. Assim, a visão religiosa
provinda da África, dotada de copiosas práticas de manifestações de
cuidado e espiritualidade, foi amplamente necessárias para a manutenção
das tradições de origem africana. Desse modo, do encontro cultural de
três matrizes formadoras da sociedade brasileira – indígena, africana
e europeia –, surgiram as religiões conhecidas como afro-brasileiras,
repletas de singularidades e convergências. A terra mãe foi recriada
em cada terreiro, no que pertence ao modo de vida, aos costumes, ás
memórias e à cultura de todo seu povo (EUGÊNIO, 2012).
Concomitantemente, desse cenário de construção das religiões
oriundas de matrizes africanas e de toda uma identidade espiritual que
destas provém, as formas de dominação decorrentes do processo colonial
não cessaram, buscando mais que tudo a soberania dos corpos e das almas
dos africanos. Dessa narrativa, perpetua-se o processo de desumanização
do negro, até a propagação do mito do selvagem e a demonização de
suas formas de expressão. A colonização, do ponto de vista de Colombo,
tratou indígenas como “animais irracionais”, inferiorizados ao ponto
de não terem vontade própria, sendo considerados, basicamente, como
objetos vivos (TODOROV, 1993). Por conseguinte, a violência de
gênero também era presente e utilizada para abalar a dignidade humana,
colocando as mulheres à submissão para que servissem das formas que
convinham aos senhores (HOOKS, 2015). Para a sociedade colonial,
as práticas religiosas do povo negro eram reduzidas a expressões de
caráter preconceituoso, como “magia”, “feitiçaria” e “curandeirismo”,
algo que as relacionava às uma prática maléfica e necessária de combate
(CARNEIRO, 2019).
Sofrendo, portanto, conflito existencial, a população negra feita “coisa”
não possui direito à manifestação cultural e espiritual. Além disso,
a adaptação forçada aos costumes, às normas e às crenças religiosas
do colonizador, serviu como uma espécie de “falsa esperança”, um
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mecanismo que poderia oferecer a humanidade aos negros, por meio
de sua conversão e aceitação. Dessa forma, humanizar, segundo um
padrão histórico eurocêntrico, significa perceber costumes, normas e
crenças religiosas para além da perspectiva “coisificada” da população
colonizada. (RUFINO; MIRANDA, 2019). Nesse cenário, a sociedade
foi sedimentada e, que a população negra dominada.
Como forma de resistência, essa população adaptou-se para que fossem
mantidas até a atualidade suas formas de busca de sentido e significado
existencial (seja ou não por meio da religião). Dessa forma, no contexto de
saúde da população negra seria uma negligência não abordar o contexto
do racismo religioso, pois a religião está associada com o acolhimento, o
pertencimento e os valores.
Às custas de muita resistência, hoje é possível o cultivo da fé e de
expressões culturais oriundas de povos africanos, porém, marcadas
de perseguição e violência que servem de empecilho para partilhas
ancestrais, formas de experienciar o apoio espiritual. Assim, o racismo
destrói todo um modo de vida negro (NASCIMENTO, 2017).
A noção de racismo religioso dá conta de marcar grande parte das
violências sofridas por determinadas culturas, e comunidades são
encarrilhadas por uma engenharia de dominação/subordinação que tem a
raça/racismo/ colonialismo como matrizes/motrizes de desenvolvimento
do mundo moderno. Nessa perspectiva, racismo religioso é uma expressão
que abre caminho e conquista espaços relevantes na luta antirracista
(RUFINO; MIRANDA, 2019).
Conclui-se então que foram inúmeras as influências da colonização,
principalmente referente às relações espirituais e afetivas da população
negra. Concomitantemente, essas consequências pesam até hoje em
razão do racismo presente na estrutura social, que continua favorecendo
o apagamento e a desvalorização cultural e espiritual desse povo, assim
como os desumaniza, e os deixa carregados de conflito existencial. Desse
modo, o racismo torna-se um desafio constante e impacta corpos e mentes
dos negros brasileiros, bem como afeta seu espírito de forma recorrente.
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Sendo assim, o cuidado espiritual da população negra, no contexto da
saúde, requer conhecimento sobre o impacto do racismo e suas formas de
expressão em decorrência da perseguição e do menosprezo relacionados
aos seus aspectos culturais que são demonizados. Logo, o princípio de
saúde integral almejado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) torna-se
ainda mais necessário à medida que a saúde dos pretos e pretas no Brasil
e no mundo está intimamente ligada à sua espiritualidade.
O racismo por sua vez tem seu conceito pautado em uma série de práticas
discriminatórias de caráter sistemático com base na noção de “raça”, que
surgiu em meados do século XVI, a fim de distinguir seres humanos
e estabelecer uma espécie de hierarquia entre elas. Hoje, o racismo
encontra-se em um complexo estrutural vigente em toda uma sociedade,
como um fenômeno determinado para oprimir, segregar, estratificar,
diluir memórias e esperanças de povos classificados hierarquicamente
inferiores (ALMEIDA, 2018). Dito isso, são notórias as influências de
toda essa hostilidade racial no que diz respeito aos direitos da população
negra, uma vez que é impossível pensarmos em qualquer noção de
igualdade com essa estrutura social, mobilizando toda uma cadeia lógica
de causa e efeito, que, por exemplo, justifica as relações existentes entre
as injustiças socioeconômicas e os altos índices de morbimortalidade
como mencionado pela Política Nacional de Saúde da População Negra
(BRASIL, 2018a).
Para Silvio Almeida (2018), o racismo não se concentra apenas
em modelos discriminatórios e dominantes sobre uma população,
mas também em práticas segregacionistas que restringem e limitam
o acesso pleno à educação, à saúde e às condições de vida dignas
ao bem viver do povo negro brasileiro em determinadas localidades.
Logo, a segregação pode ser vista como um dos mecanismos de
opressão do racismo, no intuito de deixar a população negra reclusa
e com difícil acesso, observando-se a universalidade, desde bairros,
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a serviços de educação e saúde. Assim, não é estranho que o negro
no Brasil tenha menor participação no que diz respeito ao controle
social e á escassez de recurso; diante do racismo institucional, estão
extremamente dependentes do SUS. Concomitantemente, a estagnação
social é uma das diversas consequências dessa estrutura, decorrente
do mecanismo de estratificação social que não permite ou, no mínimo,
dificulta o avanço da perspectiva dos demais cenários que acometem
indivíduos “racializados”. Assim, as consequências desse fenômeno
intergeracional é a estabilidade das condições existentes que não
favorecem a qualidade de vida dessa camada, dando continuidade às
iniquidades geradas pelo racismo e afetando todo o percurso da vida
de um determinado grupo.
Portanto, são perceptíveis os mecanismos adotados pelo o racismo,
que influenciam nas condições de vida da população negra. Entretanto,
esses mecanismos não são simples obras do acaso, são frutos de uma
complexa rede sistemática que determina as relações de poder com base
em uma ideologia pautada nesse ideal de raças. Esse sistema, por sua vez,
tem diferentes dimensões de atuação, organização e desenvolvimento,
que vão desde estruturas, políticas, condutas, práticas e normas que
variam e distinguem valores e oportunidades para determinados grupos
(JONES, 2002). Dentre estas dimensões, o racismo institucional é
capaz de produzir: “A falha coletiva de uma organização em prover um
serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura
ou origem étnica” (HAMILTON; TURE, 2011). Conjunturalmente,
também pode ser visto em atitudes ou processos que contribuem para
a discriminação por meio de um preconceito naturalizado, omissão e
estereótipos racistas que consequentemente vão prejudicar minorias
étnicas.
A Política Nacional de Atenção Básica à Saúde (BRASIL, 2018b)
tem como diretriz o cuidado centrado na pessoa, com enfoque nas
singularidades do sujeito, bem como o contexto sociocultural no qual
está inserido; por isso, é estabelecido que deve haver formação de
profissionais com competência cultural, a fim de que possam lidar
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com os usuários de forma que não discriminem por gênero, raça, etnia
ou orientação sexual, fazendo valer a universalidade e respeitar a
dignidade humana.
No entanto, embora um dos princípios do SUS seja a equidade no acesso,
ainda existem violências e racismo institucional (WERNECK, 2016)
contra a população negra imbricada nesse sistema. Desse modo, a prática
da clínica ampliada proposta pelo Humaniza SUS fornece caminhos para
a valorização das subjetividades dos usuários e profissionais de saúde,
fazendo com que a experiência de adoecimento e sofrimento tenha uma
abordagem clínica que leve em consideração as vicissitudes do âmbito
sóciorracial do usuário, conforme sugeriu a Política Nacional de Saúde da
População Negra (2017). Paralelamente, a Política Nacional de Promoção
à Saúde (BRASIL, 2018b), pode ser importante aliada para que o rap
seja utilizado em discussões sobre o sofrimento psíquico da população
negra, tanto em dinâmicas com usuários da atenção básica quanto como
fundamentação teórica em aulas nos curso da área da saúde.
Dessa forma, a Política Nacional de Saúde da População Negra
fornece ferramentas teóricas a fim de estabelecer parâmetros que devem
ser levados em consideração no processo de saúde e doença para que
o cuidado abranja os aspectos biopsicossociais e, também, espirituais,
uma vez que a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs esse
modelo que tem como prerrogativa a análise ampla da pessoa em todas
as suas dimensões, para além do modelo biomédico, sobretudo com
enfoque antirracista. Isso, pode interferir negativamente nas estratégias
preventivas e resolutivas, e até mesmo causar iatrogenia nos pacientes.
A medicina tradicional pode ser definida como práticas de saúde,
abordagens, conhecimento e crenças incluindo remédios com base
em plantas, animais e minerais, terapias espirituais, técnicas manuais
e exercícios individualizados ou em combinação com diagnóstico,
tratamento e prevenção de doenças ou manutenção do bem-estar
(PHARAMACOGENETICS..., 2003).
Atualmente, o sistema de saúde no modelo seguridade social pode criar
uma sobrecarga por causa da alta demanda, impulsionando ainda mais
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usuários a recorrerem às medicinas tradicionais e às práticas de reza
e curandeirismo tão marcante na realidade afro-latina (MUSGRAVE;
ALLEN; ALLEN, 2002) que remonta aos costumes de povos
pindorâmicos (BISPO, 2015) e também africanos (KIRINGE; OKELLO,
2005). O conhecimento ancestral de plantas na comunidade negra visa
ao tratamento de doenças e condições com intuito preventivo e curativo,
tendo conexão também com a espiritualidade e o entendimento de que
o processo patológico físico pode estar atrelado ao mundo metafísico,
podendo assim, ter projeções plurais e interpretações transcendentais do
mundo. As raízes da popularização do uso de fitoterápicos remontam,
aos tempos em que não havia o SUS, quando o sistema previdenciário
concedia apenas aos trabalhadores urbanos de carteira assinada o direito
de acesso à saúde, relegando, assim, a maioria das pessoas o atendimento
médico profissional. Isso pode ter ajudado a reforçar ainda mais nos
antepassados a busca na espiritualidade, o conforto das enfermidades da
alma e do corpo por meio do costume do uso de ervas.
A Política Nacional de Promoção da Saúde à vulnerabilidade está
associada aos determinantes sociais de saúde (BRASIL, 2018b).
O setembro é amarelo, no entanto a cor do suicídio tem sido preta.
Neste trabalho, partimos do título “permita que eu fale e não as
minhas cicatrizes” como referência à música AmarElo do rapper
paulista Emicida, que trabalha por meio da construção de experiência
sensorial e estética. O cativeiro da escravidão ainda persiste na
memória coletiva, como lembrança de dor e sofrimento entranhada
nas diferentes experimentações de trauma do povo negro, assim como
suas reverberações nas desigualdades socioeconômicas do país. O
álbum “AmarElo” é uma metáfora do grito de pessoas negras que lidam
cotidianamente com depressão, isso remete aos períodos de escravidão
quando africanos vindo das viagens transatlânticas sofriam do chamado
“banzo” (SILVA, 2017). O escravismo, além das torturas físicas e dos
abusos sexuais, trouxe angústia emocional e sofrimento espiritual para
os descendentes de pessoas escravizadas, o quais ainda permanecem em
condições desumanas. Portanto, permitir que o sujeito fale por si, e não
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apenas as cicatrizes, é um movimento de requerer o sentido do ser, bem
como sua singularidade, para que “a alma que tentaram roubar do povo
preto possa ser resgatada” (AMARELO, 2019).
O canto negro periférico do rap ecoa na alma como curativo para
mágoas guardadas transgeracionalmente. O sofrimento psíquico no
rap é retratado de forma contundente, exemplo disso são as rimas de
Emicida quando ele diz “ponho linhas na vida, mas já quis por nos
pulsos” conduzindo a uma reflexão sobre as lesões autoprovocadas.
Além disso, ele faz alusão ao risco da ideação suicida ainda que de
maneira poética em Ismália, que tem intertextualidade com o poema
de mesmo nome do poeta simbolista (GUIMARAENS, 2001). Em
Ismália (2019), o rapper conduz o público ao mundo onírico no qual
ter pele preta é “tipo Ismália, querer tocar o céu mas terminar no chão”,
remetendo ao custo mental de se ocupar posições historicamente de
maioria branca, como o ambiente universitário – produtor de sofrimento
psíquico, principalmente em jovens negros.
O suicídio é a principal causa de morte entre adolescentes e adultos
jovens (BRASIL, 2018a). No Brasil, consta como a quarta causa de
morte entre jovens de 15 a 29 anos, sendo os jovens homens negros
aqueles que mais praticam a morte autoprovocada. Pode ser que esses
dados estejam subestimados e apresentem viés, tendo em vista que em
caso de impossibilidade no preenchimento da autodeclaração, cabe ao
profissional de saúde preenchê-la corretamente (FERREIRA, 2017) A
juventude negra tem como principal causa de morte os homicídios e,
na sequência, acidentes, neoplasias malignas e por fim o suicídio. Entre
2012 e 2016, o suicídio em jovens permanece elevado e constante, com
pouca diferença quantitativa no decorrer dos anos (BRASIL, 2018a). O
não lugar para sentir é forjado por meio de um mecanismo contraditório
de sobrevivência, que visa à dessensibilização com o intuito de anestesiar
nossas mentes da dor, fazendo com que a comunidade negra, sobretudo
os homens, tenham ainda mais receio em expor vulnerabilidades no
cuidado em saúde mental.
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Na obra musical AmarElo, os versos evidenciam a questão do
sofrimento psicoemocional que aflige dezenas de milhares de jovens
negros e negras no país, que absorvem incondicionalmente os resultados
dessas mazelas enraizadas no espaço em que ocupam, de forma quase
que imperceptível, mas que condena, ofusca e destrói o estado mental
e espiritual dessa população. Simultaneamente, os versos também
expõem a constante luta para contornar essa situação, demonstrando
esperança e superação para a continuidade da vida.
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o da musicoterapia, havendo estudos que sugerem que ela auxilia
no tratamento de grupos com problemas de saúde mental e condições
neurológicas, pois melhora sintomas da depressão e demência, aumenta
a sensação de pertencimento e promove rede de cuidado, fazendo com
que haja prevenção de agravos, tais como o suicídio (TEIXEIRA, 2022).
De forma análoga, a narrativa do rap e a medicina complementar
alinham o cuidado à perspectiva de como as dores são reconhecidas e
os meios de recorrer à sabedoria ancestral e, assim, criar formas outras
distintas da cultura dominante da medicina ocidental para o cuidado
(KIRINGE; OKELLO, 2005). No rap, o diálogo sobre sofrimento
psíquico, afetividade e espiritualidade se encontram de forma a construir
um “corpo performático” diaspórico (IROBI, 2007) em poesia, dando
corporiedade e voz a uma minoria vista, por vezes, apenas por estatísticas
e historicamente silenciada pela academia.
Os desdobramentos desse corpo, que também pode ser visto como
poético e performativo (IROBI, 2007) na completude de seus símbolos
e significados, conduz a cosmopercepção holística (OYEWUMI, 2021)
dessa existência em toda sua autonomia para que suas interpretações
atribuídas às aflições do mundo em que se vive, possam ser acolhidas
e consideradas no tratamento de condições física, psicológicas e
espirituais. Por cosmopercepção, a autora Oyewumi de etnia iorubá propõe
que a cosmovisão é uma limitação ocidental na compreensão do ser, uma
vez que a lógica da visualização do corpo é priorizada em detrimento
de outros sentidos e práticas, como as espirituais. Podemos estabelecer,
então, que o desdém que o mundo ocidental confere à espiritualidade é
oriunda de uma perspectiva eurocentrista presente, principalmente, nas
escolas de ensino em saúde.
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movimento hip hop como denúncia e desabafo. Nas sociedades africanas
tradicionais, Bard é um cantor-contador que narra a história da nação e
transmite tradições culturais e costumes por meio da performance (KEYS,
2007). Logo, sob a influência da tradição oral do continente africano, o
proeminente movimento cultural é evidenciado por meio das imigrações
para os Estados Unidos e da diáspora africana resultante da divisão gerada
pela escravatura. O movimento produz sua própria lógica interna, isto é,
se antes o silenciamento abarcou a dor das chagas da incipiente liberdade
ao indivíduo preto e afirmou, como e reafirmou sua solidão, agora, em
coletivo, o grito da massa periférica reivindica o direito de ser humano,
no qual ritmo, poesia e dança consagraram o rap como estilo musical.
Especificamente, no Brasil a expressão do hip hop se traduz em
determinada forma de organização política, social, como também cultural
da juventude negra (ANDRADE, 1999). A prática cultural revela a
perspectiva disruptiva do rap para além das melodias ou rimas. O rap é a
resposta daqueles que não possuem voz diante do discurso discriminatório
dominante, com o relato da marginalização e suas mazelas sociais.
Vivemos em uma sociedade que tem uma classe dominante, cujos
interesses prevalecem. Se fôssemos relativizar os critérios culturais
existentes no interior da sociedade acabaríamos por justificar as relações
de dominação e o exercício tradicional do poder: eles também seriam
relativos (SANTOS, 1996) .
A expressão do rap é cura e esperança para o povo preto, visto que
narra as experiências políticas e econômicas do cotidiano, um recurso
cultural, de educação tradicional, que relembra a tradição oral griô, para
compartilhar conhecimento. É um veículo de inserção em um universo
de usos de linguagem e prática letrada, nutre a fome e a sede de justiça,
da a expectativa material adoece diante da estrutura sociorracial nociva
e da deprimente realidade. Sob a perspectiva dominante, o rap enquanto
oralidade não tem o devido reconhecimento.
Para ser leitor, em um processo em que a palavra escrita é europeia e
responde às teorias racistas vigentes, é preciso embranquecer. As leituras
de negros e mestiços, marcadamente influenciadas pela tradição oral
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desvalorizada, com seu corpo de descendência africana, não têm lugar,
valor algum se comparadas aos valores da leitura e da escrita ensinados
na escola ou fora dela (SILVA, 2012).
Em segundo plano, o desvalor como produção cultural periférica,
sofre discriminação. A cruel realidade torna cada escrito sob lágrimas
em apologia às drogas e à criminalidade e silencia o doloroso pedido
de socorro favelado que ecoa nas canções em rap, quando justiça,
reconhecimento e equidade são somente expectativas impossíveis para
quem promove o silenciamento de seus gritos e a ocultação de suas dores.
Isso porque trauma cultural se enfrenta também no âmbito cultural e,
diz respeito ao efeito provocado quando membros de uma comunidade
específica sentem que foram submetidos a um evento terrível, com traços
indeléveis em sua consciência coletiva e marcado de forma permanente
na memória a fim de transformar a sua identidade cultural, fundamental
e irrevogavelmente (ALEXANDER, 2016).
Com a escravização da população negra e a incipiente abolição, o
Brasil estruturou-se na negligência dos valores identitários e culturais
pretos. O adoecimento pode encerrar perspectivas de futuro de forma
que o negro fique algemado, acorrentado ao passado sofrido ou ao
presente angustiante. “Para que o amanhã não seja só um ontem com um
outro nome” (AMARELO, 2019), primeiro é preciso resgatar a ideia de
haver amanhã e espiritualidade, para além do que a estrutura restringe e
as instituições limitam.
A melodia do rap une sonho, eternidade, possibilidades e dores.
Compondo mais de 50,7% do total populacional do país (IBGE,
2011), o silenciamento da população preta e parda corresponde a uma
problemática de saúde pública. Enquanto o racismo opera, o negro
brasileiro é marginalizado e o não pertencimento adoece seu espírito,
aniquilando sua porção de humanidade que vislumbraria a esperança.
O desafio iniciado a partir do fato de que a árvore genealógica do negro
brasileiro desconsidera a semente de sua ancestralidade e a bagagem
histórica, assim como os frutos de sua herança recheada de valores
seculares que por vezes são esquecidos e ocultados; logo, evidencia-se
86
evidencia o reconhecimento somente do enxerto da escravidão como
origem única e ancestralidade.
O nascimento do rap como expressão cultural parte do movimento
hip-hop que emerge inicialmente das comunidades negra e latina no
Bronx em Nova York, durante os anos 1970, marginalizadas por sua
música (MORGAN; BENNETT, 2011). O termo faz parte da sigla
rhythm and poetry (TEPERMAN, 2015), ritmo e poesia em português.
No Brasil, nos anos 1990, o rap começava a se imbricar nas pautas
dos movimentos negros. Em São Paulo, os projetos Rappers e Femini
Rap do Instituto Geledés, com participação da ativista e escritora
Sueli Carneiro, incentivavam a luta contra o racismo, a violência e a
discriminação de gênero além de promover discussões sobre abandono
parental por meio da capacitação para organização política e criativa de
jovens artistas (HERSCHMANN, 2005). Já no Rio de Janeiro, um dos
primeiros discos gravados com rappers locais foi o Tiro Inicial, lançado
em 1993, que teve o apoio do Centro de Articulação das Populações
Marginalizadas e foi responsável por lançar o então novato MV Bill
(HERSCHMANN, 2005). Existe também a cultura do “repente” na
região nordeste brasileira que é extensão das expressões artísticas
negras e matriz oral (ANTONACCI, 2014) trazidas durante a viagem do
Atlântico com os africanos escravizados, o que é apontado por Esiaba
Irobi (2007) como a memória do corpo que, por sua vez, pode ser sítio
de resistência através da performance.
De forma controversa, a linguagem do rap pode servir, também, como
forma de reforçar estereótipos de masculinidade quando representam
como inerente ao homem negro um comportamento de beligerância e
hiperssexualização do corpo desse homem. (COLLINS, 2004). O rap,
assim como qualquer outro gênero musical, pode ser um lugar no qual
a misoginia é reproduzida. No entanto, bell hooks salienta em We Real
Cool que a poesia e o lirismo contidos nas letras de rap possibilitam
a elaboração também de masculinidades alternativas que podem
ser expressas por meio da criatividade (HOOKS, 2004). O racismo
preconiza a não vulnerabilidade sobre os sentimentos e as aflições da
87
população negra, fazendo com que haja uma desumanização. Todavia, o
rap fornece escape da tentativa da noção de masculinidade na percepção
patriarcal (HOOKS, 2004), assim como dos estereótipos de constante
força incutidos sob o corpo negro pelo racismo.
Ao passo que o funk carioca emergido nos anos 1990 e início dos
2000 – elemento da cultura afro-brasileira, que mesclou a soul music
estadunidense aos elementos da percussão do samba, ainda continua
estigmatizado por ser “som de preto e favelado” é indubitavelmente
a extensão da estética hip-hop (PEREIRA, 2010). O funk melody
e o de denúncia se constituíram como uma experiência subjetiva de
externalização das reivindicações de pessoas negras periféricas por
condições que configuram o conceito de saúde ampliada tais como
acesso à moradia digna, ao lazer e ao saneamento básico.
Rap da felicidade
Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer
Com tanta violência eu sinto medo de viver
Pois moro na favela e sou muito desrespeitado
A tristeza e alegria aqui caminham lado a lado
(RAP..., 1995; CARVALHO, 2020).
88
os moradores não possuem acesso ao cuidado em saúde mental, embora
existam as unidades especializadas nesse cuidado como os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPs), deixando um questionamento emblemático
de como se fazer o cuidado em saúde mental quando não se tem condições
básicas de sobrevivência.
89
e a ancestralidade, por meio da dramatização, permitindo também, refletir
sobre o esfacelamento de humanidade que a escravização causou e seus
deslocamentos em dor nas vivências negras ainda hoje. O curta-metragem
remete à forma africana de enxergar a sabedoria humana como capaz de
fornecer as condições de enunciação sobre aquilo que somos e o lugar que
ocupamos (BIDIMA, 2002). De forma similar, o rap ressalta que histórias
de vidas negras merecem ser contadas em todas as suas instâncias, desde
os traumas até as belezas.
Conforme sugere a música de Cidinho e Doca, as áreas mais pobres do
espaço urbano não são destacadas em cartões postais do Rio de Janeiro,
deixando, assim, apenas as áreas mais ricas com maior visibilidade, o que
implica diretamente a qualidade de serviços em saúde que são ofertados
nessas localidades. Em “Fim de semana no parque” dos Racionais
MC’s, o conteúdo da poesia ritmada promove um debate profícuo sobre
as desigualdades socioespaciais e raciais no espaço da cidade, bem como
a falta de existência de serviços públicos essenciais e de equidade no
acesso de pessoas negras a esses serviços. Além disso, o movimento hip-
-hop traz à tona a discussão de identidade e a memória do povo negro em
contraponto com a marginalização causada pelo preconceito racial. Na
tradição oral, o âmbito espiritual e matéria coincidem entre si de forma a
gerar, em simbiose, uma espécie de caminho para a totalidade da pessoa
e moldar o orgulho de suas raízes (JOSEPH, 2010).
Outra temática preponderante no rap é a espiritualidade usada
como forma de escapismo da realidade sofrida por meio da busca de
valorização da vida e da esperança em um lugar ideal de redenção. Nesse
contexto, as religiões, sobretudo de matrizes africanas e evangélicas,
demonstram-se presentes no cotidiano relatado nas histórias contadas
pelas letras de rap. Nos álbuns “Sobrevivendo no inferno” e “Nada
como um dia após o outro” dos Racionais MC’s, existem citações de
versículos bíblicos e menções ao mundo evangélico como a presença da
figura do pastor como um líder espiritual. As histórias longas e ritmadas
remetem à violência urbana sofrida na favela, ou seja, sequência dos
processos de expressão desde o primeiro álbum chamado “Holocausto
90
urbano” lançado em 1990. As rimas versam sobre violência e cortam
o ar de forma veemente na intenção de expor a crueldade da exclusão
social imposta pelo racismo. O constante perigo das drogas nos becos
e vielas das favelas é trazido à tona também, como é possível observar
em Gênesis, que cita o crack como ameaça à saúde pública no Brasil.
A temática do uso de substâncias ilícitas deve ser uma preocupação de
saúde pública e suas atribuições, porém a guerra às drogas, sobretudo
no Rio de Janeiro, compactua ainda mais com a política de morte nas
favelas, reforçando, assim, a necropolítica (MBEMBE, 2014).
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Ogunhê!
Jorge sentou praça na cavalaria
E eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia.
Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge
Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem
[...] (JORGE..., 1975; 1997)
Atualmente, é marcante também a presença desse efeito construído
pela presença das igrejas neopentecostais na música negra ou ainda
similaridades melódicas ao canto do gospel nos refrões cantados do rap.
Outro exemplo de referência ao mundo evangélico são as rimas do rapper
carioca Abebe Bikila, conhecido como BK’ que em Julius reflete sobre
a ausência paterna na vida de um traficante de drogas, aliado à nostalgia
trazida pela figura da mãe evangélica que ora pelo filho mesmo quando
ele está com “armas nas mãos”, estabelecendo, assim, uma reflexão sobre
a questão do trauma na infância e do sofrimento mental na intenção de
humanizar a figura do criminoso, evocando, assim, a figura dos jovens
meninos aliciados pelo narcotráfico como uma extensão do mecanismo
racista do Estado que coopera para o genocídio do povo negro.
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análoga, a população negra da diáspora vive uma síndrome pós-traumática
da escravização que mutila a autoestima, causando angústia e sentimento
de esvaziamento existencial (DEGRUY, 2017).
A temática de abuso sexual perpassa fortemente as histórias de pessoas
negras, sobretudo mulheres; exemplo disso, é a introdução do livro A cor
púrpura (WALKER, 2009) que inicia com uma prece de uma menina
abusada pelo pai, sendo recontada por música homônima do rapper
Djonga. Nas rimas da letra, o autor traz a ideia de que “dói igual em todo
mundo” expressando a semelhança na sensação de compartilhamento das
mesmas dores e sofrimentos de ordem psíquico-espirituais na comunidade
negra, além de evocar a busca em um ser superior alívio para a angústia
espiritual profunda causada por uma violação sexual.
Querido Deus
Uma pessoa me tocou sem eu querer
E ainda me convenceu que eu gostava
Molhou com seu suor minha pele infantil
E secou minhas lágrimas sempre que eu chorava
É, numa tarde chuvosa tudo começou
Ó, um sorriso amarelo sempre que acabava (A COR..., 2022)
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A conversa com a morte apresenta-se rotineiramente na vida da
população negra, seja pelo medo de uma abordagem policial violenta,
seja pelo esfacelamento da saúde mental que leva muitos vitimados pelo
racismo estrutural ao suicídio. Isso é tão deletério que um estudo apresenta
resultados desfavoráveis sobre o desencadeamento de uma saúde mental e
autoestima ruins em pessoas negras expostas constantemente aos noticiários
sobre execuções brutais da polícia contra pessoas negras (BOR et al.,
2018). Os indivíduos que compartilham a mesma identidade étnica com
a vítima estão susceptíveis a terem essas notícias das mídias como gatilho
e um importante fator de estresse causador de aflição, sobretudo quando o
acontecimento é produto de injustiças históricas e sistêmicas presentes na
sociedade (CURTIS et al., 2021).
Para Achille Mbembe (2014), o discurso da ressureição de Cristo – quando
Deus encara que foi espoliado sofrendo inúmeras violências desfaz a própria
morte, reafirmando, assim, a possibilidade infinita da vida – contribuiu para
a aproximação dos negros estadunidenses ao protestantismo (MBEMBE,
2014). Para além da instituição eclesial, a espiritualidade proposta pelo
cristianismo é recorrente nas temáticas de músicas de rap. Isso acontece,
também, em razão da presença marcante das igrejas pentecostais nas
comunidades mais pobres. Outro fator preponderante no rap é o sincretismo
religioso que, de forma orgânica, se ergue como discurso contra dominação
e a favor da liberdade religiosa na periferia, tal qual pode-se observar em
“Sobrevivendo no inferno” (1997) e em “AMARElo” (2019). Em Fórmula
mágica da paz (1994), Mano Brown traz à tona a presença da crença em
orixás na periferia, e faz referência ao Deus do cristianismo agradecendo
a sua vida, demonstrando assim a coexistência de ambas as crenças e
sensibilidade religiosa/espiritual na favela. De forma semelhante, o rapper
Emicida em 2019 evoca elementos parecidos no álbum “AmarElo” como,
na faixa Principia, com introdução em canto pelas Pastoras do Rosário com
linhas melódicas, que hora remetem a vocalização no candomblé, ora a
rima traz referência ao partir do pão que constitui importante imagética do
cristianismo na última ceia. O discurso de Êxodo fala sobre a libertação
de um povo escravizado, relembrado no início do álbum “Nada com um
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dia após o outro” dos Racionais MCs como rádio Exodus. Isso remete a
teologia da libertação emergida da América Latina que atribui caráter de
libertação aos povos antes oprimidos pelas desigualdades, sendo agora
aplicado ao sofrimento espírito-racial do povo preto (PINN, c2003).
Considerações finais
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Logo, o rap permite o outro ouvir-se e ser ouvido, favorece vivências e
resgates que permeiam crenças, valores, dores e sentidos. O rap é uma
linguagem para o reconhecimento da dignidade humana à população
negra para além da experiência acadêmica que encontra fim em si mesma;
o ensaio abrange a necessidade de valorizar a produção cultural urbana
e atender aos desafios da realidade fora dos campi universitários. Por
isso, o rap é um letramento essencial antirracista no diálogo em saúde,
uma vez que é um representante autêntico do pensamento étnico-racial
no contexto da cidade, produzido por autores periféricos, que tem como
atributo trazer reconhecimento identitário e exaltação da beleza do povo
negro capaz de promover a sensação de pertencimento ao lugar para a
comunidade negra.
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