As Cláusulas Gerais Como Fatores de Mobilidade Do Sistema Jurídico
As Cláusulas Gerais Como Fatores de Mobilidade Do Sistema Jurídico
1.Introdução1 - 2.O perfil da clausula geral - 3.A idéia do código como “eixo central” do sistema
jurídico - 4.Conclusão - 5.Bibliografia
1. Introdução1
A proposição ora apresentada diz respeito ao exame das cláusulas gerais como fatores de
mobilidade do sistema jurídico do tipo codificado, tais como se apresentam os sistemas integrantes
do que René David chamou de “família romano-germânica de direito”.2
Por isto mesmo, ao abordar a problemática das cláusulas gerais é preciso, desde logo, ter presente a
noção de sistema jurídico, e, bem assim, a trajetória desta noção, pelo menos em seus traços mais
largos.
Uma questão preliminar se impõe: como é sabido, a noção de sistema não é, nem mesmo no interior
da ciência jurídica, uma noção unívoca,3 derivando sua polissemia não só da ótica particular do
estudioso4 mas, principalmente, das particularidades de cada um dos períodos históricos da
formação do ordenamento que se tem em vista examinar. Por isso, a idéia que aqui se toma de
“sistema” é, antes de mais nada, aquela deduzida do método comparativista, de “grupos de
ordenamentos jurídicos”, vale dizer, sistema enquanto estrutura particularizada pelo emprego de
determinado vocabulário correspondente a certos conceitos, pelo agrupamento de regras em certas
categorias, pela utilização de determinadas técnicas de interpretação, e por específicas concepções
da ordem social que determinam o modo de aplicação e a própria função do ordenamento jurídico.5
Assim, frente ao sistema ou “família” jurídica que mais de perto nos diz respeito – o sistema
romano-germânico – caracterizado, entre outros aspectos, por sua metodologia fundada na lei
escrita, na separação entre o Direito Público e o Direito Privado, entre o direito material e o direito
processual, e, no plano político, pela observância à tripartição dos Poderes do Estado, têm evidente
cabimento as inúmeras discussões travadas há longo tempo pela doutrina acerca do seu caráter
estrutural, se fechado ou se aberto, isto é, se constitui uma totalidade expressa em um conjunto de
conceitos e proposições entre si logicamente concatenadas, “unidade imanente, perfeita e acabada”6
que se auto-referencia de modo absoluto e cujo modo de expressão privilegiado é o Código, ou se,
ao contrário, nesse sistema, o Direito pode ser pensado, aplicado e interpretado como ordem de
referência apenas relativa, sensível à interpenetração de fatos e valores externos, consubstanciando
“permanente discussão de problemas concretos”,7 para cuja resolução se mostra adequado não o
pensamento lógico, mas o problemático, onde a base do raciocínio está centrada na compreensão
axiológica ou teleológica dos princípios gerais do Direito.8
Nesse sentido é possível afirmar que no início de sua formação, por volta dos séculos XII e XIII, com
a redescoberta, nas universidades então nascentes, do corpus juris justinianeu, o sistema jurídico
romano-germânico se apresenta como um “sistema aberto”, porquanto sensível à interpenetração de
inúmeros outros estatutos (ou, como diríamos hoje, microssistemas) e de valores (que em linguagem
atual chamaríamos de metajurídicos) justamente porque se assenta, como bem observou Franz
Wieacker, em um tríplice fundamento: o imperium, a Igreja Romana e a tradição escolar da
Antigüidade tardia, “restos que os novos povos e tribos assentes no antigo corpo do império e no
centro da Europa receberam e acabaram por se apropriar”.9
O sistema assim inicialmente formado, onde teve relevantíssimo papel a interpretação das regras do
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MOBILIDADE DO SISTEMA JURÍDICO
Corpus Juris a cargo dos doctores – e operada em especial através da dialética entre os binômios
mens-verba, verba-voluntas e mens-aequita10 vai, todavia, progressivamente se fechando,
porquanto, em razão da necessidade de maior certeza e segurança, se mostra conveniente
privilegiar determinadas fontes de produção jurídica.
Não se pensava ainda, na idéia de codificação, que só surgirá quatro séculos mais tarde como o
apogeu da necessidade de certeza jurídica. Na base dos códigos está, como sabemos, o
pensamento jusracionalista pelo qual o Direito é visto e formulado como um sistema fechado de
verdades da razão,14 derivando do conhecimento de verdades filosóficas, um sistema de regras que
são o resultado de uma rigorosa construção lógico-matemática, a qual parte de regras gerais,
deduzidas pelo raciocínio.15
Tal pensamento se consubstancia, já no séc. XVIII e em especial no séc. XIX nas grandes
codificações européias. E embora no seu substrato mais profundo o fenômeno da codificação guarde
alguma similitude com o ocorrido no séc. XIV – pois o que se visa obter, seja através da
sedimentação da comunis opinio, seja através da consagração da lei em um corpus específico é, na
verdade, um parâmetro de certeza e segurança jurídica – uma das grandes diferenças está que, no
primeiro caso, o Direito é ainda construído pelos juízes e juristas, envolvendo-se, em conseqüência,
intimamente com a prática, para no segundo ser elaborado pelos professores de modo que, só
através da legislação, vale dizer, dos códigos, vai poder influenciar na prática.16
Como sabemos, tais concepções vão ser postas em causa já no final do séc. XIX, lembrando
Winifried Hassemer, Karl Larenz e Joseph Esser, entre outros que, desde o início do séc. XX a teoria
do direito, em especial na Alemanha, vem sendo compreendida como “o debate da polaridade da
norma legal, de um lado, e da sentença judicial, de outro”.19
Este debate introduz o que se convencionou chamar de “a crise da teoria das fontes”, a qual resulta,
basicamente, “da admissão de princípios tradicionalmente considerados metajurídicos no campo da
ciência do Direito” 20 porquanto se passa a compreender que “um código, por mais amplo que seja,
não esgota o Corpus Juris vigente”.21
Com efeito, na tarefa incessantemente exercida pela Ciência Jurídica desde pelo menos o séc. XII,
de adaptar o Direito ao dinamismo das relações sociais, se leva em conta, agora, que o sistema
jurídico deve considerar também, ao lado da norma de direito escrito, princípios, máximas, regras da
experiência, usos, diretivas reveladoras da cultura.
O sistema jurídico, assim considerado, volta a ser tido como um “sistema aberto”, porquanto a
sujeição ao ordenamento já não mais se revela como mera servidão à lei, formalmente
caracterizada: “o direito positivado é apenas uma parte do conjunto, a sua parcela mais visível, mas
nele convivem os princípios gerais do Direito, os postulados do Direito Natural, o sentimento de
justiça, a exigência de eqüidade, vivenciados e sentidos pela sociedade na qual o juiz habita”,22
afastando-se, por conseqüência, a idéia de que o Direito possa ser aplicado, interpretado e
desenvolvido a partir de si mesmo – seja através das representações do legislador, seja por
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Por outro lado, é preciso atentar para o fato de que a extrema abertura do sistema não conduza à
sua própria desaparição, porquanto tal caminho levaria a um estado de incerteza jurídica
inconciliável com os próprios postulados da democracia: é preciso manter um determinado patamar
de segurança nas relações jurídicas, seja na relação dos privados entre si, seja na relação entre
estes e o Estado sob pena de ser instaurada a lei do mais forte, assentado que o princípio da certeza
jurídica é essencial às funções de tutela e garantia às quais o Direito se opõe.
Quais serão, então, os mecanismos do que a ordem jurídica dispõe para que o sistema, devidamente
flexibilizado, possa continuamente ajustar-se às novas realidades, às novas idéias, em busca da
efetivação de um direito justo? Como atuar para que, frente à lei, não se permita o fetiche da lei?
Quais serão os pontos de referência a permitir tal necessária plasticidade?
A resposta a tais indagações pode talvez ser obtida através do estudo das cláusulas gerais, que, em
diferentes ordenamentos, tem se mostrado os meios hábeis à flexibilização dos sistemas que as
adotaram. Para tanto, na primeira parte, se examinará, com o auxílio do método comparativista, sua
utilização e seu alcance no domínio do direito civil. Será preciso, todavia, também examinar quais as
soluções que têm sido encontradas em sistemas jurídicos que carecem de tais mecanismos, para a
obtenção de uma função análoga.
2. O perfil da clausula geral
No exame das normas, técnicas e institutos integrantes de determinado sistema jurídico, uma atitude
metodologicamente adequada é a que se volta ao exame de sua estrutura, para assim alcançar o
perfil particularizado do tema que se tem como objeto da pesquisa.
Integrando o corpo dos Códigos, as cláusulas gerais apresentam, como primeira particularidade, o
fato de não possuírem qualquer estrutura própria que as diferenciem dos conceitos jurídicos
indeterminados. Assim, parece imperioso verificar quais são as suas especificidades, apurando-se
no que diferem das normas que traçam princípios gerais e daquelas que contêm os chamados
conceitos indefinidos.
A) Cláusulas Gerais e Princípios Gerais de Direito
Princípios jurídicos são os pensamentos diretores de uma regulação jurídica existente ou possível,
não constituindo, por si mesmos, regras suscetíveis de aplicação, embora possam transformar-se
posteriormente em regras jurídicas, por via de interpretação.24
É que se tem por assente, pelo menos desde a obra de Joseph Esser (“Princípio e Norma na
Elaboração Jurisprudencial do Direito”) que a aplicação desses princípios, eficazes, como se viu,
independentemente do texto legal, encontra sua justificação na “natureza das coisas ou da instituição
respectiva” uma vez constituírem “uma peça funcionalmente necessária de toda a solução concreta”
26
que entre no círculo comum de problemas passíveis de serem enfrentados mediante o recurso
àquele pensamento.
É o que ocorre no direito civil brasileiro com o princípio da boa-fé. Não temos, em nosso Código Civil,
uma disposição que o adote expressamente, como ocorre no direito alemão com o § 242 do BGB, no
direito francês com o art. 1.135, no direito espanhol com o art. 7.º, I, no direito italiano com Página
os arts.
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MOBILIDADE DO SISTEMA JURÍDICO
1.337 e 1.366 ou ainda, no direito civil português, nos arts. 239 e 762, 2.º.
Presente, todavia, sua indiscutível importância, conatural à própria idéia de “Direito”, a boa-fé é entre
nós positivamente considerada, funcionando como critério orientador para a solução judicial de casos
concretos,27 dele derivando muitos outros “deveres anexos” ou “secundários”, como o dever de
informar com correção na publicidade comercial, p. ex., ou o dever de atuar com lealdade no período
anterior à efetiva contratação. Recentemente, assim se posicionou a 5.ª CCiv. do TJRS,
interpretando um contrato de compra e venda no qual a vendedor a, após a entrega da loja e das
mercadorias – objeto da avença – cancelou pedidos de mercadorias anteriormente feitos, ferindo a
justa expectativa do comprador. Decidiu o Tribunal, por unanimidade, que “o princípio da boa-fé
supõe deveres anexos, de acordo com a natureza do negócio e a finalidade pretendida pelas partes”,
de modo que “entre eles, se encontra a obrigação da vendedora de pequena loja de vestuários não
cancelar pedidos já feitos, com o que inviabilizaria o negócio e frustraria a justa expectativa do
comprador”,28 baseando-se pois a decisão no venire contra factum proprium, aplicável em razão do
dever de lealdade que decorre da boa-fé.
Tais cláusulas, pelas peculiaridades de sua formulação legislativa, não apenas consubstanciam
princípios, antes permitindo a sua efetiva inserção nos casos concretos. Cláusula geral, portanto, não
é principio – é norma. Mas é norma especial à medida que, por seu intermédio, um sistema jurídico
fundado na tripartição dos poderes do Estado e no direito escrito permite ao juiz “a conformação à
norma, à luz de princípios de valor não codificados, e com vinculação, controlada apenas pelos
próprios tribunais, a critérios extralegais – mas em todo o caso convencionais – de base e de
densidade empírica variável. Não são direito material posto pelo legislador, mas, simplesmente,
starding points ou pontos de apoio para a formação judicial da norma no caso concreto”.31
A grande diferença entre princípio e cláusula geral, do ponto de vista da atividade judicial, está, pois,
em que estas permitem a formação da norma não através da interpretação do princípio, mas pela
criação, através da síntese judicial32 onde encontram como elemento de atuação fatos ou valores
éticos, sociológicos, históricos, psicológicos, ou até mesmo soluções advindas da análise
comparativista, atuando tais critérios tradicionalmente tidos como extralegais através das verdadeiras
“janelas” consubstanciadas em tais cláusulas.
B) Cláusulas Gerais e Conceitos Jurídicos Indeterminados
Bem mais complexo é o discrime entre as cláusulas gerais e os chamados conceitos jurídicos
indeterminados porquanto ambos, como bem assinalou Karl Engish, pertencem ao plano dos
conceitos de direito eqüitativo e não ao plano do direito estrito, contrapondo-se, pois, formal e
metodologicamente, à casuística.33
Os conceitos indeterminados podem se reportar tanto a realidades valor ativas quanto a realidades
fáticas. Por sua vaguidade e ambigüidade são muitas vezes polissêmicos, daí permitindo razoável
dose de liberdade por parte do aplicador da lei no momento de sua aplicação.
Ocorre que tais conceitos integram, sempre, a descrição do “fato” que a norma pretende abranger.
Embora permitam, por sua fluidez, uma abertura às mudanças de valoração, a verdade é que, por
integrarem a descrição do fato, a liberdade do aplicador se exaure na fixação da premissa. Assim,
“uma vez estabelecida, in concreto, a coincidência ou a não coincidência entre o acontecimento real
e o mo delo normativo, a solução estará, por assim dizer, predeterminada”.34
Poderíamos portanto afirmar que há uma diferença de grau no que tange à abstração e à
generalidade, distinção que ficará mais clara se tomarmos, a título de comparação, as disposições
do art. 395, n. III do CC brasileiro e a do § 826 do CC Alemão. Ambas referem a expressão “bons
costumes”, da seguinte forma: “Art. 395 – Perderá o pátrio poder o pai ou a mãe: …
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III – que praticar atos contrários à moral e aos bons costumes.” “§ 826. Aquele que objetivou
prejudicar alguém por meio de atitudes contrárias aos bons costumes é obrigado a reparar o dano.”
Ora, no primeiro caso, está referenciada a hipótese de perda do pátrio poder do pai ou da mãe, por
ato judicial. No caso concreto o juiz deverá valorar o que a sociedade onde vive tem para si como
“imoralidade” ou “maus costumes”. Esta valoração será sua premissa. Uma vez configurada, o caso
é simplesmente de aplicar a norma, havendo como conseqüência jurídica a perda do pátrio poder. A
solução ao caso, pois, não é “criada” pelo juiz, já estando preconfigurada na lei. O que ocorrerá será
apenas um preenchimento do conceito pelo julgador, que, concretamente, o determinará.
No segundo exemplo, o CC Alemão, ao referir que, aos que objetivam causar prejuízo a outrem, “por
comportamentos contrários aos bons costumes”, cabe o dever de reparar o dano, consigna, para
além de um conceito indeterminado, verdadeira cláusula geral de reparação de danos. A regra posta
no referido dispositivo menciona apenas as condições necessárias ao nascimento do dever
reparatório, sem definir com exatidão a noção de prejuízo. Evidentemente, se tem aí todo um
domínio de casos compreendidos pela cláusula, e não apenas uma única hipótese, como ocorre no
citado art. 395, III, do CC brasileiro. Por outro lado, ao par de valores, o juiz deverá, tendo em vista
as soluções anteriormente conferidas pela jurisprudência e ou aquelas apontadas doutrinariamente,
criar a norma aplicável no caso concreto.
Em ambos – conceitos indeterminados e cláusulas gerais – haverá, por parte do juiz uma atitude
valorativa; em ambos, é certo, o legislador afastou a enumeração casuística dos “atos contrários aos
bons costumes”. No primeiro, todavia, o grau de generalidade e abrangência é bem menor do que no
segundo; neste, a atitude de subsunção à hipótese legal que ainda subsiste naquele, é substituída
pela atividade de criação judicial, por meio da síntese, por forma a constituir processo de verdadeira
concreção.
3. A idéia do código como “eixo central” do sistema jurídico
A “idade da descodificação” 35 se apresenta há algum tempo como uma fascinante tentação aos
juristas. No entanto, é possível pensar na possibilidade da convivência harmônica – e, por suposto,
dialética – entre a permanência dos códigos e um sistema jurídico “aberto”. Tal linha de raciocínio
leva em conta o alerta da doutrina e mesmo os reclamos da experiência prática, para o “efeito
perverso” que consistiria, caso afastados os códigos, na própria perda da noção de sistema
enquanto manifestação de uma linha de continuidade histórica definida, no Direito, também em seu
nível interno.
A) A flexibilização do Código através do emprego das cláusulas gerais
Como se sabe, num sistema jurídico do tipo fechado a atividade judicial não é complexa. Na gênese
do espírito codificador está o mos geometricus, a pretensão da plenitude, a estrutura piramidal,
coerente e completa das leis, segundo ordem de escalonamento hierárquico onde os princípios
pré-positivados de nada contam, relegados que estão ao universo escuro do “não-Direito”.
Por muito tempo se acreditou na ilusão codificadora, mas neste século, tal ilusão caiu por terra. Sob
o influxo das experiências vividas em outros sistemas jurídicos, em especial o da common law, a
questão da rígida fidelidade à lei e aos vínculos conceituais típicos ao modelo de interpretação
axiomática, é afastada, permitindo-se hoje a admissão, também nos sistemas jurídicos integrantes
da “família” romano-germânica, da possibilidade da aplicação judicial do Direito por via da concreção.
36
É assente que, nos ordenamentos do sistema romano-germânico, não é função primária do juiz
converter-se em fonte do direito. Todavia, bem alertou Helmut Coing para a circunstância de que,
inobstante “não entre primariamente na missão do juiz converter-se em fonte do direito, esta é uma
coisa que em todos os tempos acaba acontecendo”.37
Tal modelo de aplicação judicial do Direito, nos mostra a experiência de outros países, não é, por si
só, antagônico à idéia de codificação. Mais do que isto, permite a visualização de uma nova noção
de sistema jurídico. Se conseguirmos afastar de nosso raciocínio as armadilhas da ilusão
codificadora e admitirmos a possibilidade da convivência entre o código, as variadas leis especiais e
um modelo de interpretação judicial que não dispense a utilização do raciocínio problemático de que
tratou Viehweg em sua Tópica, poderão os códigos sobreviver como “eixos centrais” de cada sistema
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e subsistema individualmente considerado, entendidos estes, por óbvio, não mais à base da
concepção típica às ciências exatas, mas de um modo aberto.
Neste sentido, o código, tido como “centro” do sistema, se apresentará como um modelo amplo e
abrangente de valores metajurídicos, flexível e sensível à dinâmica social, em razão, basicamente,
de sua linguagem compreensiva das “cláusulas gerais”. Estas têm, na verdade, papel decisivo a
desempenhar, sendo notável, neste sentido, a experiência alemã, de contínua leitura do texto
expresso no § 242 do CC, notadamente no que diz respeito à construção de um “direito justo” em
matéria contratual.38
A questão que se propõe é agora a de saber como a viabilização da ética contratual, ou do “direito
justo” dos contratos se tornou possível nos sistemas de tipo codificado, construídos sobre o dogma
supremo da autonomia da vontade.
Como se sabe, o estudo das cláusulas gerais nos ordenamentos integrantes da família
romano-germânica se deve, basicamente, à existência dos §§ 138, 242 e 826 do CC Alemão
acentuando neste sentido John Dawson que, em conseqüência dos citados textos, é a Alemanha o
país que, entre todos aqueles em que a lei reside em um código compacto, o que teve a mais
completa experiência com o sistema de normas produzidas pelos juízes.
A história dos trabalhos preparatórios do BGB demonstra não ter estado na mens legis de seus
redatores conferir ao Poder Judiciário tais mandatos abertos de tantas e tão profundas
potencialidades operativas. O fato é que, existentes, tais cláusulas se colocaram, no direito privado
alemão, como “faróis errantes alimentados por luzes que podem penetrar em qualquer lei privada”.39
Seria possível duvidar que o BGB, assentado em seus postulados filosóficos, no caráter dominante
dos interesses da saciedade burguesa, no liberalismo à outrance, na renúncia à ética material no que
concerne aos contratos, pudesse atuar como base à regulação dos interesses de uma sociedade tão
profundamente alterada, em seus dados infra-estruturais, como foi, e é a sociedade alemã do
pós-guerra até nossos dias? Isto foi possível, no entanto, graças à concomitante presença de suas
cláusulas gerais e à percepção da jurisprudência civilista. Esta, particularmente, revelou-se, no dizer
de Wieacker, “suficientemente adulta para satisfazer as exigências que as cláusulas gerais aderem à
‘obediência inteligente’ do juiz”, de modo a preenchê-las, em face às modificações estruturais, “com
uma nova ética jurídica e social”, adaptando-se a ordem jurídica aos novos tempos, em especial no
que concerne às hipóteses da culpa in contrahendo, à aplicação do princípio venire contra factum
proprium, à teoria da base objetiva do negócio jurídico e à teoria do “adimplemento substancial” ou
“substancial performance”.40
Inseridas em outros códigos, a exemplo do que se verifica no art. 7.º da Lei Civil Espanhola, após a
reforma de 1973, cujo preâmbulo alude ao “expresso reconhecimento de alguns princípios gerais”,
como a boa-fé, a proibição do abuso de direito e a sanção da fraude à lei,41 no CC Italiano que
consigna, no art. 1.337, a boa-fé como regra de comportamento contratual42 e mais recentemente, no
art. 1.198 do CC da República da Argentina,43 entre outros Códigos, as cláusulas gerais, além de
permitir a manutenção da linha de continuidade histórica de cada um dos sistemas Jurídicos acabam
por expressá-la, à medida em que a história do processo de formação dos códigos – desde o Código
Napoleônico – têm demonstrado hoje, com a iluminação proporcionada por um distanciamento crítico
de quase duzentos anos, menos gestos de ruptura radical do que a sedimentação, renovada,
rejuvenescida, atualizada, dos inúmeros valores culturais de cada sociedade.44
É certo, aliás, que, se se ausentasse da ciência jurídica este “senso de história”, os diversos
ordenamentos não teriam como assegurar a sua própria lógica interna. Ausente a coerência – ainda
que entendida esta palavra sem a rigidez que lhe procurou emprestar o positivismo – estaria aberta a
perigosa via da casuística, das leis de ocasião, da interpretação subjetivista, do arrivismo intelectual.
O desafio, portanto – já enfrentado pelos citados ordenamentos, mas premente e atual no direito
contratual brasileiro, onde inexistem “cláusulas gerais” – está, portanto, em “dotar a sociedade de
uma técnica legislativa e jurídica que possua uma unidade valorativa e conceitual, ao mesmo tempo
em que infunda nas leis especiais essas virtudes, permitindo à doutrina poder integrá-las num
sistema, entendida, entretanto, essa noção, de um modo aberto”,45 técnica esta que expressa
preferencialmente através das cláusulas gerais, constitui verdadeiro “convite para uma atividade
judicial mais criadora”46 e, todavia, sujeita a controle adequados.
4. Conclusão Página 6
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MOBILIDADE DO SISTEMA JURÍDICO
O Direito Brasileiro, em especial o direito civil, tributário de uma longa tradição cujo início, em termos
de sistema específico, é demarcado pelas Ordenações Afonsinas de 1446, ou 1447, peculiarizou-se,
na comparação com outros ordenamentos jurídicos da Europa continental e da América Latina, por
um notável centralismo jurídico, uma vez que as “Ordenações do Reino” de Portugal – onde está a
sua base histórica – consagraram, muito antes de colocar-se a idéia da codificação, a noção de uma
legislação “unitária e centralizada”47 que acolheu ao longo de quatro séculos – sem sistematização, é
verdade – os principais modelos que se mantiveram até nossos dias.48
Infenso, em certa medida, aos fatores políticos que conduziram ao acolhimento em Portugal, em
1867, da influência do Código Napoleônico, o direito civil brasileiro aplicou até 1916 – data da
entrada em vigor do ainda vigente CC – o direito posto nas Ordenações. Este código, ainda que
influenciado em inúmeros aspectos pelo direito comum alemão – o que é uma peculiaridade no que
se relaciona aos demais países da América Latina, mais próximos, em sua legislação civil, do modelo
francês – manteve, em certa medida, a linha de continuidade histórica, sem uma ruptura radical,
traço que, agora, mais uma vez se manifesta com o atual Projeto de Reforma, em tramitação na
Câmara dos Deputados.49
Foi pensamento expresso dos juristas que o elaboraram transformá-lo em código central,
revigorando, assim, processo tradicional do ordenamento de linhagem portuguesa, qual seja, o de
adotar determinado corpus como ponto de referência indispensável à preservação da unidade do
direito, “exigência constante, no desenvolvimento do nosso direito, desde o período do
descobrimento até nossos dias”.50
Ao mesmo tempo, a introdução das cláusulas gerais no citado Projeto conduz à constatação do
movimento pendular onde oscilam, em diferentes medidas, os diversos sistemas com raiz
romano-germânica, entre polaridades sempre presentes – de um lado, a necessidade de certeza
jurídica, de outro, a busca de soluções afinadas à mutabilidade do tempo e das circunstâncias.
Já no século XII a atividade jurídica buscou, na interpretatio, a função hoje atribuída às cláusulas
gerais. Como bem observou Mário Reis Marques, os juristas daquela época, baseados “na
compreensão da aequitas enquanto elemento atuante do jus ”, longe de ficarem restritos à
“compreensão de uma vontade através da sua expressão” – como ainda ocorre atualmente –
entendiam que a sua própria atividade era um “conhecer para agir”, e, por isto, “ao invés de ficarem
hipnotizados pela vontade do legislador, desenvolveram-na e a adaptaram, introduzindo no sistema
jurídico novas idéias e novos conceitos”.51
O que se quer, nos nossos dias, são soluções de plasticidade similar: o Código central deve permitir
a integração do que está em suas margens, disperso em leis extravagantes ou “microssistemas”, o
que é possível através das cláusulas gerais. Na perspectiva de um sistema aberto, a própria noção
de Código muda – uma vez que não mais se quer abarcar, em seu corpus, a totalidade do direito –
atuando aí as cláusulas gerais como elemento ao mesmo tempo unificador e vivificador dos
ordenamentos.
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2 In “Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo”, trad. Port. de Hermínio A. Carvalho, Lisboa,
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3 Por sistema, em geral, tem-se “la distribución de las diferentes partes de una arte o de una ciéncia,
en lo que se sustentan todas mutuamente y en lo cual las últimas se explican por las primeras”, cf.
Condillac, “Traité des Systèmes”, cit. por A. Lalande, Vocabulário Técnico y Critico de la Filosofia,
Buenos Aires, 1966, pp. 957 e 33, ou “orden de conocimientos sobre un punto de vista unitário”, cf.
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AS CLÁUSULAS GERAIS COMO FATORES DE
MOBILIDADE DO SISTEMA JURÍDICO
Coing H., “Zur Geschichte des Prlvatrechtsystems”, apud Vera M., Fradera, O Direito Privado como
uma Geschos senheit; o Direito Privado como um Sistema Aberto, Porto Alegre, 1988, p. 8. V. t. N.
Bobbio, Teoria General del Derecho, que examina a questão específica do sistema normativo em
sua relação com o direito, seu sentido, condições e limites, analisando as várias acepções do
término, em especial o que se tem por “sistema dedutivo ou lógico”, “classificação” – de onde surge a
idéia de “relação jurídica” – e enquanto “validade do principio que exclui a incompatibilidade das
normas”, examinando pois a questão das antinomias, da coerência e da totalidade do ordenamento
(pp. 175-207).
4 Evidentemente não se quer, com esta expressão, recair em uma espécie de voluntarismo
ultrapassado. “A ótica particular do estudioso” significa tão-só a concepção de “sistema” que ele
mesmo adotou para seu estudo: pode ser, pois, ou a noção de sistema do direito comparado, ou a
comparação geral do Direito, ou, ainda, a diferenciação estrutural e funcional de um único sistema,
daí derivando as noções de sistema aberto e de sistema fechado.
5 V. René David, op. cit., §§ 15 a 26. Nesta perspectiva também se mostra impossível a separação
entre as idéias de “sistema jurídico” e “sistema cultural”, intercambiáveis nos aspectos de sua
organicidade, possibilidade e atualidade, que vão se refletir no conjunto de valores sociais em jogo:
“la relazioni necessaria con una societá data fa della cultura positiva un insieme strutatto
organicamente; la relazione egualmente necessaria con il tipo di vista sociale fa dell’insieme organico
della cultura positiva un sistema di valori”, afirmou Angelo Falzea, assinalando que, o que “forma una
comunitá giuridica e il commune tipo divita”, pues “è precisamente un sistema unitário di interessi
ciòche fa di una pluralitá di uomini una comunitá giuridica. Assim, a idéia de direito como sistema de
interesses – interesses comuns, reais e realizáveis, que agregam o conjunto de indivíduos como um
grupo orgânico, caracterizado por seu tipo específico de existência – configura-se dado “que ha una
funzione metodologica imprescindible per la scienza del diritto, e quindi un ufficio no più
scientifico-formale e scientifico-ideale, ma scientifico-sostaziale e scientifico-reale”, na medida em
que a ciência Jurídica é uma ciência principalmente hermenêutica que, em sua atuação, opera
necessariamente com “l’idea di sistema juridico e in concreto presupone sempre un’esperienza, sia
pure intuitiva e sintetica, della totalità del sistema”. Mas é preciso não esquecer que esse sistema
“come ogni sistema culturale, ha una struttura complessa”, afastando-se, em conseqüência, por sua
inserção no universo do sistema cultural, a idéia de “plenitude lógica”, antinômica e a de
complexidade (v. Falzea, op. cit., pp. 14-26).
6 Vera Fradera, O Direito Privado como uma Geschossenheit; o Direito Privado como Sistema Aberto
, Porto Alegre, 1988, p. 9.
8 Neste sentido, Clóvis do Couto e Silva, “O Direito Civil Brasileiro em Perspectiva Histórica e Visão
do Futuro”, cit. bibliog.
10 V., em especial, Mário Reis Marques, op. cit., pp. 6-12. Assinala o autor que a: “fricção criada pela
coexistência do direito romano, do direito canônico, dos costumes, da legislação geral dos diversos
Estados e dos iura própria – verdadeiros microssistemas Jurídicos sustentados por uma nova vida
econômico-social de feição urbana – superada, em termos harmoniosos, pela atividade dos doctores
”, pela qual busca-se “face a uma realidade em permanente movimento”, a “manutenção de uma
relação constante (identidade de soluções) entre o direito e essa realidade”. Assim, “a dinamnização
do conteúdo tendencialmente estático dos preceitos é conseguida através de uma específica
dialética em que ressalta a importância do binômio mens-verba”, de maneira que a correspondência
dos verba legis à voluntas e da mens à aequitas, retornando a norma menos rígida, ampliou seu
âmbito de aplicação, “contribuindo para uma maior flexibilidade do ordenamento jurídico” (pp. 6 e 7,
em especial nota 2).
11 Idem, p. 12. Como conseqüência das opiniones quotidie mutandur se originou, a partir do séc.
XIV, o costume de apelar-se para a communis opinio doctorum através da qual a jurisprudência vai
desenvolver como um todo e como tal, fator de certeza e certificação do sistema.
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AS CLÁUSULAS GERAIS COMO FATORES DE
MOBILIDADE DO SISTEMA JURÍDICO
12 Idem, ibidem.
14 V. Paul Koshacker, “Europa y Derecho Romano”, cit., cap. XIV. F. Wleacker, História do Direito
Privado Moderno, cit., cap. IV, M. Villey, “Les Fondateurs de l’École du Droit Naturel Moderne au XVII
Siècle”, A. D. P., 1961. M. Thoman, “Hístoire de l’Idéologie Juridique du XVII Siécle: ou le Droit
Prisionnier des Mots”. APD, 1974, e “Un Modèle de Rationalité Idéologique: le ‘rationalisme’ des
Lumières”, APD, 1978, P. Merea, “Escolástica e Jusnaturalismo – o Problema da Origem do Poder
Civil em Suarez e em Puffendor”. BFDUC, 1943, e “Direito Romano, Direito Comum e Boa Razão”,
BFDUC, ano XVI.
15 O exemplo precursor deste tipo de codificação está na legislação civil bávara do séc. XVIII do
Príncipe Eleitor Max Joseph III. Na mesma região surge, em 1812, o Código Penal, “monumento do
jusnaturalismo crítico pós-Kantiano”, na opinião de Wieacker. Também diretamente conseqüente ao
pensamento iluminista, o Código da Prússia de 1786, já de caráter eminentemente “sistemático”
assim como o ABGB (Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch für die deutschen Erblande) de 1811.
Nenhum deles, todavia, superou a grandiosidade do Código Napoleônico, que, além de substituir os
particularismos feudais por um direito geral dos citoyens franceses, baseado na razão e na crença
jusnaturalista na lei, teve, como seu maior mérito, seu “caráter revolucionário”, característica que
assegurou ao dito Código, nas palavras de Wleacker, “uma missão histórica em todas as nações que
começaram a modelar-se de acordo com a imagem da francesa, especialmente naquelas que viam
aí uma emancipação em relação a formas de opressão interna ou externas” (p. 391). Diferentemente
o Código Civil Alemão (BGB) teve como criação positivista na plenitude e no rigor da estrutura
conceitual, afastando-se, pois, dos postulados jusracionalistas.
17 A idéia de “sociedade formalmente igualitária” pode ser observada sob uma dupla perspectiva. É
impossível a crítica a este tipo de ficção sem o exame das razões que conduziram à sua formulação.
Na origem está, efetivamente, a preocupação dos pensadores dos sécs. XVII e XVIII, com origem em
Hobbes, passando por Montesquieu e Rousseau, em estabelecer na lei condição de igualdade, o
valor “segurança”, antes imprescindível como fator da limitação a vontade arbitrária do soberano.
Portanto, veja-se, entre outros, Bobbio, “Estado, Governo e Sociedade”, São Paulo, 1987 e Scarpelli,
“Dalla Lege al Codice, dal Codice al Principio, cit. A segunda corrente, onde o eixo está na palavra
“formalmente”, é a que se refere mais às conseqüências, a partir do séc. XIX, dessa idéia. V., a
propósito, tb, Raynaud, Philippe, “La Loi et la Jurisprudence, des Lumières à la Revolution
Française”, APD 30/61 e Prieur, Jean, “Jurisprudence et Principe de Séparation des Pouvoirs”, APD
30/117
20 Cf. Engish, op. cit. Ainda, Hassemer, in “O Sistema do Direito e a Codificação: A Vinculação do
Juiz à Lei”, cit., p. 189. Para a compreensão desse processo v., por todos, Larenz, “Metodologia”, e
Esser, “Princípio y Norma”, ambos citados, bibliog.
22 Idem, ibidem.
28 Ap. civ. 589073956, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, 19.12.89. Na fundamentação do voto
o Des. Relator expressou que “o princípio da boa-fé, com alcance geral, vigora no Brasil, apesar de
não constar no nosso Código Civil dispositivo semelhante ao § 242 do BGB” (grifamos).
32 Idem, p. 195.
33 Casuística, segundo Engish, “é a configuração da hipótese legal – tida enquanto somatório dos
pressupostos que condicionam à estatuição – que circunscreve particulares grupos de casos na sua
especialidade própria” (op. cit., p. 188) Assim, no CC brasileiro, os arts. 1.122 (contrato de compra e
venda), 802 (extinção do penhor), 493 (extinção da posse), 1.572 (a “saisine”), 330 (parentesco),
entre outros.
35 A expressão é de Natalino Irti, em “Etá della Decodificazione”, in Diritto e Societá, 1978, pp. 623 e
ss.
37 In Grundzüge der Rechtsphlosophie, 1949, § 254, apud Esser, op. cit., p. 30.
38 A idéia de “direito justo” é tratada desde Aristóteles que, na Ética de Nicômaco escreveu páginas
todavia atuais em nossos dias. Em Platão, igualmente, o tema dos conteúdos da justiça ou
ordenação “justa” da convivência humana é também uma questão central da Ética. Modernamente,
na ultrapassagem do positivismo legalista, o tema foi retomado com vigor – e matéria recorrente dos
estudos de Michel Villey, na França, assinalando, na Alemanha, Karl Larenz que “concierne a los
juristas, porque, si bien es cierto que los juristas pueden limitarse a cumplir las normas de un
concreto Derecho positivo, o las decisiones judiciales que en ese derecho positivo sean vinculantes,
no pueden evitar que se les coloque incesantemente ante el problema de saber si lo que hacen es o
no ‘justo’, sobre todo cuando las relaciones vitales cambian y los casos no se plantean ya de un
modo igual” (in “Derecho Justo – Fundamentos de Ética Jurídica”, cit., Proêmio, p. 19). Essa noção
não está restrita à civilística. No direito administrativo a boa-fé – princípio fundamental no tema de
“direito justo” – tem relevantíssimas conseqüências, em especial no que concerne aos efeitos da
nulidade de certos atos. O “direito justo”, no direito constitucional, conduzirá as idéias de igualdade,
proporcionalidade, razoabilidade e controle; no direito processual, levará as noções de
imparcialidade do juiz, refletindo, ainda, no amplo espaço reservado à tutela do contraditório; em
matéria penal conduzirá à percepção de que a pena deve ser recebida como justa no caso concreto,
iluminando, pois, o antigo debate acerca da proporcionalidade das penas. V., ainda, Rehbinder, M.,
“Il Senso del Giusto”, cit.
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MOBILIDADE DO SISTEMA JURÍDICO
39 “‘The General Clauses’, viewed from a distance”. No original: “Of all countries whose law resides
in comprehensive codes surely Germany has had the fullest experiences with law manufactured by
Judges under the auspices of general clauses. No outsider, especially one trained in American Law,
could hope to say anything that would be new a German reader concerning the great overlay of pure
case law that has been superimposed on the codes”. V., ainda, Wleacker, F., “História do Direito
Privado Moderno”, cit., p. 549. Acerca da história dos trabalhos preparatórios ao Código, v. o estudo
introdutório de Raoul de la Grasserie à tradução francesa do BGB, onde estão relatadas as criticas
sofridas pelo projeto, no Parlamento Alemão em 1986, em razão mesmo da elasticidade de algumas
de suas disposições.
40 Se, como afirmara Hugo Grolius, a “fides é a forma de pensar na qual são possíveis contratos”, se
alcança o imenso valor da “descoberta” de Ihering que ao formular o conceito da culpa in
contrahendo (Culpa in Contrahendo oder Schadenssentats bei nichtingen Oder Nicht zur Perlektion
Gelangten Vertragen, 1861), hipótese que no direito francês é tratada sob o nome de responsabilité
precontractuelle. V. Joana Schmidt, La Sancion de la Faute Precontractuelle, cit. Através dessa
noção é admitido que “o comportamento de uma das partes na fase das tratativas, induzindo a
confiança da outra parte possa decidir com relação ao negócio jurídico a ser realizado, ou ainda
deixando de mencionar circunstâncias que acabariam forçosamente por produzir a invalidade do
contrato, dá ensejo ao dever de indenizar”. V. Couto e Silva, Almiro, in “Responsabilidade do Estado
e Problemas Jurídicos Resultantes do Planejamento”, RDP 65/29 e ss. Os deveres que se violam
não são os deveres principais, mas os “secundários”, que se concretizam em deveres de proteção,
informação e lealdade, os quais, ultrapassando os valores em jogo na contratação em si mesma
considerada, resultam do “imperativo de agir com boa-fé”. V. Couto e Silva, Clóvis, “A Cia.
Siderúrgica Mannesmann – Parecer”, in RCGE 5-13/207 e ss. O mesmo imperativo está refletido na
máxima venire contra factum proprium pela qual se concretiza a inadmissibilidade de contradição
com a própria conduta prévia, fundada “na mesma exigência de fides, que, fundamentalmente, impõe
aos contratantes a manutenção da palavra dada” (V. Wieacker, El Principio General de la Buena Fé,
cit., p. 60). Outra hipótese em que as cláusulas gerais têm permitido a concretização do “direito justo”
é a que configura a equivalência objetiva das prestações contratuais, permitindo-se, no caso da
desaparição da base do negócio, a revisão judicial do contrato (v. Larenz, Karl, “Base del Negocio
Jurídico”, cit. bibliográfica, e Clóvis do Couto e Silva, “A Base do Negócio Jurídico”, RT 653, cit.
bibliografia).
42 Art. 1.337: “Le parti, nello svolgimento delle trattative e nella formazione del contratto, devono
comportarsi secondo buona fede.”
43 “Los contratos deben celebrarse, interpretarse y ejecutarse de buena fé y de acuerdo con lo que
verosímelmente las partes entendieron o pudieron entender, obrando con cuidado y previsión.” Red.
ant.
44 Assim o demonstra, no direito francês, André-Jean Arnaud, em sua magnífica tese “Les Origines
doctrinales du Code Civil Français”, Paris, 1969. No mesmo sentido a observação de J. L. de los
Mozos, in Derecho Civil – Metodos, Sistemas y Categorias Jurídicas, Madrid, 1988, p. 34.
45 Clóvis do Couto e Silva, “O Direito Civil Brasileiro em Perspectiva Histórica e Visão do Futuro”, pp.
148-149. O mesmo trabalho foi publicado in “Quaderni Florenlini per la Storia del Pensiero Giurídico”,
v. 13.
46 Idem, p. 149.
47 Idem, p. 129.
48 Idem, p. 131.
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