No Final Nada Acontece - Histori Kathryn Nicolai
No Final Nada Acontece - Histori Kathryn Nicolai
Caminhada de inverno
Uma nova página
Uma noite em casa
Amor às palavras
Um pouco de romance
Luz e neblina
Viagem de férias
Um dia de inverno visto da janela
Matinê
Chuva de primavera
A placa avisa: FECHADO
O novo canteiro de aspargos
Primeiro isso, depois aquilo
Adiantada
Giz de cera e grãos de areia
Três coisas boas
Na padaria
Primavera na horta comunitária
Cabana de portas abertas
O roubo de lilases
Uma surpresa
Vaga-lumes numa noite de verão
Um lugar que mais ninguém conhece
Um show no parque
Noites de verão
Fora do caminho habitual
A carta e o envelope
Na feira de verão
Estrelas na floresta
Um dia de solo com a cachorra
Na cozinha durante uma tempestade
No museu em dia de sol
Colheita de verão
Volta às aulas
A um quarteirão de casa
Na biblioteca
Manhã de outono na feira de produtores rurais
Alecrim para a lembrança
Planos cancelados
No moinho, com abóboras e maçãs
Admirador secreto
Halloween numa casa antiga
Ferramentas na bancada
Uma caminhada gelada e um banho quente
Sopa para um dia chuvoso
Passeio com o cachorro no meio da noite
Depois do Dia de Ação de Graças
O burburinho da cidade
Na hora de comprar a árvore
Presos em casa
Uma noite no teatro
Véspera de Natal
Agradecimentos
Índice de aconchego
Como usar este livro
D
ormir deveria ser fácil.
A nal, é uma das coisas mais naturais que fazemos – precisamos
de descanso e temos vontade de dormir. Mas às vezes não
conseguimos de jeito nenhum. O que acontece, então? Na maioria das vezes,
é o cérebro que atrapalha. A mente pensante é como um caminhão com um
tijolo sobre o acelerador. Ela segue em frente mesmo quando não há
ninguém para guiá-la e continua avançando a noite inteira se não for detida.
Junte a essa mente acelerada um mundo veloz e caótico, cafeína em excesso e
uma quantidade assustadora de horas diante de uma tela, e ca evidente por
que tantos de nós não conseguimos dormir com tanta facilidade assim.
Mas não se preocupe. É possível recuperar o sono e todos os benefícios e
virtudes que ele traz. Será necessário um pouco de prática e disciplina para
desenvolver uma rotina, é verdade, mas prometo que em pouco tempo você
estará caindo no sono com mais rapidez e dormindo uma quantidade de
horas que não dormia desde a infância. Você vai acordar se sentindo
descansado e tranquilo, e talvez descubra até que as histórias aqui contadas
introduzem um tantinho de atenção plena (também conhecido como
mindfulness) na sua vigília. (Bônus!)
DORMIR É UM SUPERPODER MODERNO.
HISTÓRIAS SÃO UMA MÁGICA ANTIGA.
Como dormir
Um dos motivos de termos di culdade em deixar o modo acordado para
entrar no modo sono é que agora levamos o trabalho para a cama.
Respondemos a e-mails, conferimos obsessivamente as redes sociais e
recebemos e enviamos mensagens de texto momentos antes de tentarmos
descansar. Não surpreende que a mente resista ao sono ou acorde às três da
manhã para tentar resolver um problema em que estávamos pensando logo
antes de dormir. O cérebro entende que ainda estamos trabalhando.
Precisamos nalizar os ciclos iniciados durante o dia para comunicar à
mente que, por ora, o trabalho terminou.
Para adquirir melhores hábitos de sono, você vai precisar estabelecer
alguns limites. Se puder deixar todos os aparelhos eletrônicos fora do quarto,
será fantástico – acredite, faz uma grande diferença. Mas se isso não for
viável, você terá que estipular outro tipo de limite. Digamos que meia hora
antes do horário em que deseja dormir você desligue todos os aparelhos,
ative o modo “não perturbe” do celular e coloque em uma gaveta tudo que
tenha uma tela. Depois que todo tipo de trabalho estiver fora de alcance,
cumpra um pequeno “ritual pré-sono”. Rituais podem ser de grande ajuda na
transição de um estado mental para outro. O seu pode incluir atividades
como escovar os dentes, lavar o rosto, separar roupas para o dia seguinte, dar
boa-noite aos familiares e animais de estimação ou preparar uma xícara de
chá. Como a ideia é criar um hábito que indique à mente e ao corpo que a
hora de dormir se aproxima, o ideal é que você use esse momento para
atividades que despertem a impressão de que já é tempo de relaxar.
Em seguida, deite-se e encontre uma posição confortável. Ajeite-se até
que nada esteja incomodando e relaxe o corpo.
Agora que você se afastou de suas outras atividades e iniciou a contagem
regressiva para a hora do sono, é preciso oferecer à mente um lugar para
descansar. É aí que as histórias entram em cena. Elas são como um ninho
aconchegante em que a mente pode se acomodar, um lugarzinho confortável
onde repousar depois de um dia cheio. Sabe aquele caminhão com o tijolo no
acelerador? As histórias são uma garagem limpa e arrumada onde é possível
estacioná-lo. São simples e quase nada acontece nelas – e essa é exatamente a
ideia.
Enquanto estiver lendo, permita que os pormenores da narrativa ajudem
você a construir mentalmente um cenário em que você possa se acomodar.
Dê atenção especial às partes que transmitam um conforto maior. Veja as
ilustrações e aprecie os pequenos detalhes. Quando os olhos começarem a
pesar, ponha o livro de lado, desligue a luz e deixe o corpo se soltar e relaxar.
Inspire profundamente pelo nariz e solte devagar o ar pela boca. Faça isso
mais uma vez. Inspire e solte. Você pode até dizer em pensamento: “Estou
prestes a adormecer e vou dormir bem a noite inteira.” Permaneça na história
enquanto se aproxima cada vez mais do sono, repassando os detalhes que
conseguir lembrar – em especial aqueles que lhe trouxeram conforto.
Durma.
Como relaxar
Talvez você descubra que precisa de ajuda não apenas para dormir, mas
também para manter a calma e a concentração durante o dia. Antes de mais
nada, saiba que você não está sozinho no mundo. Uma quantidade imensa de
pessoas sofre de ansiedade. É bastante comum, e se pensarmos na
combinação da vida moderna com a fácil ativação da reação de luta ou fuga
do cérebro, concluiremos que você seria um caso raro apenas se nunca
sentisse um pouquinho de ansiedade que fosse. É importante lembrar que,
durante uma crise desse tipo, perde-se a capacidade de usar o raciocínio para
manter o controle. Não é possível usar palavras para mudar o que você sente,
porque nesse momento não adianta argumentar com o cérebro. Como a
lógica não é capaz de resolver o problema, você precisa falar a língua do
corpo e fornecer à mente algo em que ela possa se concentrar.
Quando sentir ansiedade, tente encontrar um lugar para se sentar
distante do barulho e do movimento de outras pessoas. Respire de modo que
o ar comece a passar somente pelo nariz. É importante usar a respiração para
comunicar ao sistema nervoso que está tudo bem. Para isso, comece a contar
a duração de cada inspiração e expiração. Inspire contando até quatro e
expire no mesmo ritmo. Não se preocupe se a respiração estiver curta e
acelerada. Há mesmo certa demora para que os sinais sejam recebidos. Não
faz mal. Continue contando enquanto respira, deixando o ar chegar cada vez
mais fundo nos pulmões. Você deve sentir que a barriga cresce quando você
inspira e encolhe quando expira. Você está indo muito bem. Agora, veja se
consegue puxar o ar contando até quatro e soltá-lo indo até seis ou até oito.
Dê uma pausa e conte até dois antes de começar outra vez. Preste atenção no
movimento da barriga. Inspire até quatro. Solte até seis. Pare até dois. Repita
isso pelo tempo que for necessário.
Enquanto a respiração desacelera e o peito relaxa, relembre detalhes de
uma das histórias de que você mais gosta. Lembre-se do aspecto, do cheiro
ou do gosto de algum elemento dela. Concentre-se nessa pequena
experiência sensorial. Dessa forma, você retira a atenção do que originou a
ansiedade e a coloca naquele estoque de lugares seguros que está na sua
imaginação.
Quanto mais repetir essa técnica, mais preparo você terá para enfrentar a
próxima crise de ansiedade. Você terá cada vez mais evidências de que é
capaz de se acalmar com rapidez. Assim, começará a se ver de maneira
diferente – não como uma pessoa ansiosa, mas como alguém que sabe como
se tranquilizar em um momento de perturbação. Ótimo trabalho. (E nunca
esqueça que às vezes são necessárias outras formas de tratamento para
combater a ansiedade. Médicos, terapeutas e remédios são bastante úteis e
indispensáveis em alguns casos. Se for o seu, não deixe de procurar ajuda.)
Agora você está pronto para começar a ler as histórias que vou contar aqui.
Elas estão organizadas cronologicamente, seguindo as estações do ano. Pode
ser uma boa ideia começar por uma que se passe na estação em que você
está, ou naquela em que gostaria de estar. Mas se preferir ler tudo do começo,
não há problema algum. A decisão é sua!
Todas as histórias se passam em um mesmo universo, um lugar que
batizei de Vilarejo do Nada Acontece. A dona da livraria pode comprar uma
torta na padaria e segurar a porta para o casal que visitou o moinho de cidra,
e assim por diante. À medida que for conhecendo as pessoas e os lugares do
livro, você pode explorar o mapa que apresento a seguir para observar
aspectos dessa cidadezinha tão aconchegante. Retorne ao mapa enquanto lê e
imagine-se caminhando pelas ruas. Isso ajudará você a construir com mais
nitidez o mundo do Nada Acontece na sua imaginação.
Durante a leitura, você vai perceber que não são usados marcadores de
gênero nos contos em que há parceiros românticos – escrevo dessa forma
para que qualquer pessoa possa se imaginar e ver a própria vida se
desenrolando nas histórias.
Ao longo do caminho você encontrará também alguns conteúdos extras
– receitas, meditações e até mesmo artesanatos – para ajudar a fazer desse o
seu mundo. Há também um índice remissivo no nal do livro, para que você
possa procurar uma história a partir do critério de aconchego que preferir.
Agora, acomode-se em um lugar acolhedor e se ajeite na posição mais
confortável que conseguir. Você está prestes a entrar no mundo do Nada
Acontece. Trata-se de um lugar agradável e receptivo, com muito para ser
desfrutado. Vamos todos inspirar profundamente pelo nariz e soltar o ar pela
boca. Mais uma vez. Inspirar, soltar. Ótimo.
Bons sonhos.
Caminhada de inverno
H avia caído muita neve durante a noite, e o dia amanheceu claro e frio.
Passei mais tempo que o usual tomando café da manhã na mesa da
cozinha, bebendo uma xícara extra de café enquanto observava o sol subir e
a luz da manhã mudar de cor. O nascer do sol no auge do inverno, com seu cor-de-
rosa riscado de amarelo, é como uma mensagem de a rmação da mãe natureza.
Sim, os dias são curtos e a paisagem é coberta de tons de branco e cinza, mas o céu
é vibrante. A vida pulsa mesmo nos dias mais gelados do inverno.
Quando o céu já estava claro, abri as cortinas para que a luz penetrasse em
todos os cômodos da casa. O sol não vinha aparecendo muito nos últimos tempos,
e, enquanto dava início às tarefas da manhã, eu parava a todo momento para olhar
pela janela e respirar fundo.
Alguém me disse, anos atrás, que dormimos melhor numa cama que foi
arrumada – algo na sensação de ordem nos ajuda a relaxar –, e z disso um hábito
que se tornou uma espécie de meditação matinal. A arrumação é sempre igual, e eu
presto atenção em cada etapa. Empilhei os travesseiros na poltrona que, junto ao
apoio de pés, ca em frente à janela do quarto, e é onde às vezes me sento para ler.
Tirei o edredom e o lençol. Em seguida, alisei o lençol de baixo e estendi de novo as
cobertas, dando uma volta em torno da cama enquanto dobrava e ajeitava as
extremidades, para só então dar uma sacudida nos travesseiros e devolvê-los ao seu
lugar. Por último, peguei uma manta macia e quadriculada que minha gata adorava
e a coloquei num canto da cama, como se fosse uma espécie de ninho, para ela se
deitar. Com as cortinas abertas e a luz do dia invadindo o quarto, tive uma sensação
de limpeza e acolhimento ali. Eu ainda tinha a manhã e a tarde inteiras para
desfrutar, mas já estava pensando na hora de ir para a cama quando a noite
chegasse.
Com as tarefas nalizadas e o dia chegando à sua hora mais quente e iluminada,
decidi me agasalhar e sair para uma longa caminhada pela neve recém-caída.
Depois de pôr um suéter e um casaco, calçar meias grossas e botas, vestir luvas,
cachecol e gorro, saí pela porta dos fundos. Enquanto dava os primeiros passos,
contemplei os montinhos de neve intactos, os cumes verdinhos dos velhos
pinheiros e os galhos pelados dos bordos cobertos com mais de um palmo de neve.
As caminhadas de inverno são lentas – avançamos com todo o cuidado e com um
pouco de di culdade, mas é o momento ideal para re etir e observar. Atravessei o
quintal e segui por uma trilha bem demarcada em meio ao bosque cada vez mais
denso. Ele começava no meu terreno e se prolongava pelas terras vizinhas, que
eram públicas, então eu podia andar por um bom tempo em meio a árvores e vida
selvagem. Eu me lembrei das caminhadas de inverno que minha família costumava
fazer quando eu era criança. Havia um terreno desocupado no nal da nossa rua, e
atrás dele um descampado com alguns trechos de mato. Ainda que não ocupasse
mais que o espaço de um quarteirão, aquilo me parecia uma terra mágica, um lugar
que sempre poderia ser explorado. As crianças têm o poder de olhar para algo
simples e corriqueiro e imaginar o extraordinário.
Eu sentia o corpo cada vez mais aquecido pelo exercício e respirei bem fundo o
ar fresco, enchendo os pulmões. Os caminhos conhecidos pareciam novos sob a
neve espessa; z algumas curvas e me desviei intencionalmente do percurso
habitual, levando em conta que poderia seguir as pegadas das minhas botas se me
perdesse. Caminhei ao longo de um riacho congelado que tinha só um ozinho de
água correndo e, após atravessar um trecho repleto de bétulas – as cascas brancas e
rugosas harmonizando com o inverno branquinho –, cheguei a uma clareira.
Tive a sensação súbita de que ali havia algo que eu precisava ver, então me
detive. Ele saiu bem devagar de trás das árvores na margem oposta da clareira: um
veado, alto e elegante. Tive a impressão de que o animal havia me visto muito antes
de eu reparar nele, mas con ou em mim e permitiu que eu o avistasse. Fiquei ali,
apreciando boquiaberta sua beleza, e por um momento me esqueci de respirar.
Então falei baixinho, com calma: “Lindo dia para um passeio.” Ele balançou o rabo
branco e abaixou a cabeça para farejar um fruto na neve. Imaginei que, assim como
eu, ele estivesse feliz por ver o sol, e lembrei que todos nós temos o planeta em
comum.
Eu o deixei fazendo sua refeição em paz e segui meus rastros pelo bosque até
chegar de volta ao quintal de casa. A longa caminhada havia me deixado com fome,
e eu já estava imaginando minha ida até a geladeira e colocando a mesa. Pisei rme
para tirar a neve das botas e parei na entrada dos fundos, fazendo o processo
inverso àquele que tinha iniciado a aventura da manhã. Fui até o quarto para trocar
as roupas geladas por outras novas e quentinhas, e lá encontrei minha gata, deitada
como uma rosquinha em seu canto da cama. Ela virou o pescoço num ângulo
incrível, contorceu-se preguiçosamente de barriga para o alto e soltou um miado
bem baixo. Deitei de lado em volta dela e lhe contei a história do veado que eu
tinha visto na clareira do bosque. Comentei que ele já devia ter voltado para seu
abrigo, protegido e quentinho junto dos amigos, e a gata ronronou. Foi ótimo
caminhar no bosque e relembrar a sensação do ar fresco, assim como fazer o trajeto
de volta e me abrigar no calor e no conforto de casa. O inverno ainda não tinha
terminado, mas fazia sol e havia muito o que aproveitar enquanto esperávamos pela
primavera.
Bons sonhos.
N
ão sou fã de resoluções de Ano-Novo.
A nal, por que esperar por um dia especí co no calendário para
começar algo novo? Ainda assim, gosto de re etir. Gosto de ter tempo
para examinar um pensamento ou uma sensação, para escrever, desenhar e
criar, para perambular e explorar. E o começo de um novo ano é sempre um
momento apropriado para isso. Portanto, quando começo uma nova página
na minha vida, faço isso num sentido mais literal do que gurado: abro a
página de um livro novo, sigo um caminho diferente numa trilha, ouço
outra faixa de um disco.
Daquela vez, meu novo começo estava diretamente ligado a uma nova
agenda. Ainda gosto de ter uma agenda de papel, um lugar bonito onde
possa escrever todos os meus planos. Gosto de ver uma semana ou um mês
inteiros de uma vez, e de nir os dias para cada coisa que pretendo fazer. A
do ano anterior tinha sido preenchida por completo e, depois de 12 meses
sendo carregada na minha bolsa, de onde saía e para onde voltava o tempo
todo, cou com as bordas da capa dura desgastadas e perdeu a tinha de
marcar os dias.
Sendo assim, alguns dias após a agitação do Natal, eu me vi diante de
uma das minhas lojas preferidas, olhando as agendas na vitrine. Essa lojinha
tem algumas das melhores coisas do mundo: diários e cadernos novinhos
tomando prateleiras inteiras, esperando pelo momento em que você vai
escrever seu grande romance neles, papéis com centenas de padrões e
envelopes combinando com cada um deles, sinetes numa variedade incrível
de cores e com todas as letras. Vende também calendários – alguns bobos,
com imagens de gatos fazendo ioga, outros com lindas ilustrações de
pequenos mundos adoráveis em que você pode se perder. Isso sem falar
nas agendas.
Ao entrar, além da diferença de temperatura, senti o cheiro da loja, um
misto de aroma de biblioteca com o de um ateliê de artes. Pensando melhor,
o cheiro era idêntico ao da biblioteca da escola onde z o jardim de infância.
Alguma vez um cheiro já incitou uma lembrança tão vívida que você
precisou sacudir a cabeça para afastá-la? Lembrei-me do carpete azul
carcomido da minha escola, das pilhas imensas de livros e do entusiasmo ao
tentar imaginar o que cada um deles continha. Lembrei-me da vez em que
tirei um livro velho de uma estante um tanto escondida para conferir, no
pequeno cartão no interior da capa, quem havia sido a última pessoa a pegá-
lo emprestado. A escola, bem pequena, era a mesma em que meu pai havia
estudado na infância, e poucas linhas abaixo da primeira linha do cartão,
numa letra infantil, estava o nome dele. Considerando o tamanho da escola,
não acho que tenha sido uma coincidência tão grande assim pegarmos o
mesmo livro, mas lembro que naquele momento quei de queixo caído,
olhando à minha volta com os olhos arregalados e me perguntando se o
universo estava tentando me dizer alguma coisa. A lembrança me fez sorrir,
e decidi que, além da agenda, iria comprar um cartão para enviar ao meu
pai.
Comecei a olhar as prateleiras, e, quando me dei conta, a minha cesta
estava abarrotada de itens legais: o cartão do meu pai, um calendário para
colocar na parede da cozinha, uma caixinha de lápis (mal podia esperar para
apontá-los) e folhas de papel para origami, além da minha agenda nova, que
era exatamente o que eu estava procurando e, de quebra, ainda tinha um
compartimento na parte de trás para guardar papéis avulsos e páginas de
adesivos. (“Será que já passei da idade de gostar de adesivos?”, pensei. Óbvio
que não!) O último item da cesta seria um diário. Eu já tinha tantos que
havia decidido não comprar mais nenhum até que terminasse de preencher
os antigos – por isso, escolhi só um.
Uma pessoa simpática me atendeu no caixa e pôs todas as minhas
compras numa sacola. Depois de retornar ao frio invernal da rua, pensei nos
projetos que podia pôr em prática no novo ano e andei alguns quarteirões
absorta, com essas ideias pulsando na mente. Passei por uma lanchonete
com mesas que davam para a rua e vi que uma delas, distante da porta,
estava livre – perfeita para mim. Entrei e apontei para ela, e uma garçonete
fez sinal para que eu me sentasse. Pedi uma xícara de café e coloquei a
agenda nova sobre a mesa de fórmica. Em seguida, peguei a antiga na bolsa,
além de um lápis e um apontador. Um ano antes, eu tivera um momento
igual àquele – a troca da guarda. Escrevi meu nome e o número do celular
na capa da nova agenda e, depois de sentir as páginas lisas, folheei algumas
delas, anotando aniversários, compromissos e ideias.
A garçonete, que veio à mesa para encher a minha xícara, sorriu ao ver
os cadernos e folhas espalhados. “Nada melhor que uma agenda nova no
Ano-Novo!”, disse ela. Eu concordo. Ela voltou para as suas tarefas, e eu
quei preenchendo o cartão do meu pai enquanto bebia sem pressa o café.
Também dei uma olhada no calendário de parede, encantada com as
ilustrações. Avancei até o Dia de Ação de Graças e o Natal do ano seguinte,
conferindo o dia da semana em que cairiam, como se eu estivesse me
programando para aquelas datas tão distantes. Acho que, na verdade, o que
eu estava fazendo era inventar motivos para sonhar com o próximo ano.
Quando começou a escurecer, recolhi as minhas coisas. A garçonete
trouxe a conta, e, enquanto pegava alguns dólares na carteira, voltei a pensar
no momento em que encontrei o nome do meu pai naquele livro na
biblioteca, anos e anos atrás. Na ocasião, senti como se tivesse recebido um
presente. Peguei o diário – aquele que eu quase não comprei –, pus uma
cartela de adesivos entre as páginas e o deixei junto do dinheiro antes de
sair. Na conta, escrevi: “Feliz Ano-Novo!”
Bons sonhos.
Uma noite em casa
P
equenos ocos de neve pareciam dançar ao sabor da brisa – lindos,
como se fossem de renda, caíam tão devagar que eu quase conseguia
ver cada um deles separadamente.
Eu estava numa esquina esperando o sinal fechar quando um oco
grande e delicado pousou na minha mão. Observei sua teia simétrica, seus
ramos cristalizados. Uma vez li que os ocos de neve crescem em torno de
uma partícula de poeira. Isso quer dizer que são como pérolas, que nascem
de um grão de areia? Gosto dessa ideia – ocos de neve sendo pérolas do
inverno, que caem do céu. Enquanto eu observava, aquela coisinha branca
que pouco antes exibira um desenho perfeito na minha luva derreteu e
sumiu. Essas pérolas duram apenas alguns instantes, e é preciso ser rápido
para vê-las antes que desapareçam.
Quando o sinal fechou, atravessei de uma esquina para outra,
recolhendo mais ocos no caminho, com as mãos e os cílios. Parei na
entrada da loja que eu havia planejado visitar e, depois de bater a neve dos
ombros e das bochechas, abri a porta pesada da entrada. Eu tinha
descoberto esse lugarzinho alguns anos antes e na mesma hora me
apaixonei pelos produtos. Desde então, me tornei cliente el. A loja vendia
somente especiarias. As paredes eram tomadas de prateleiras com grandes
potes de vidro, um ao lado do outro, cada um com um ingrediente potente e
precioso, colorido e aromático. O cheiro lá dentro tinha diversas camadas, e
para apreciá-lo melhor distribuí bem o peso do meu corpo entre os pés,
fechei os olhos e respirei fundo. Senti o perfume suave e oral da lavanda e
das ervas da Provença. A camada seguinte era mais quente, com canela em
pau e cardamomo. Mais abaixo, estavam complexas misturas de curry, o
aroma metálico da cúrcuma. No fundo daquela longa tragada, senti o cheiro
de pimentas, forte, picante e estimulante.
Eu tinha uma lista dos ingredientes de que precisava – eram para uma
receita –, mas eu sempre reservava um tempo para dar uma olhada em
novos condimentos e escolhia um deles para levar para casa. Passeava pelos
corredores, correndo o dedo pelos rótulos dos potes – gostava de alguns dos
temperos somente pelo nome, como o grão-do-paraíso, que vem da África
Ocidental e, embora seja parente do gengibre, tem gosto de cardamomo. Ou
então o pólen de funcho, que, de acordo com o rótulo, pode transformar
qualquer receita simples num prato extraordinário. Abri um vidro de
amchur, um pó feito a partir de mangas verdes desidratadas e moídas que é
usado por sua acidez. O cheiro é forte e frutado, e também ressoa a poeira;
pus a tampa de volta e continuei dando uma olhada nos frascos. Havia bagas
de zimbro que amadureciam por três anos antes de serem colhidas, pápricas
defumadas de um vermelho extravagante, pistilos graciosos de açafrão.
Havia também um tempero chamado erva-de-bispo, e sementes de cominho
preto e um vidro bem grande de folhas de limão kaffir. Eu tinha lido sobre
elas, usadas para dar sabor a sopas e refogados, e decidi que seriam o novo
tesouro da minha cozinha.
Depois de escolher a novidade da vez, retirei a lista de compras do bolso
e fui atrás das especiarias de que precisava para preparar o meu chai
preferido. Eu já tinha testado várias receitas desse tipo de chá, até que por
m cheguei à minha favorita – era ao mesmo tempo doce e picante, e de um
jeito que aquecia o meu corpo por inteiro em dias de neve como aquele. Em
casa eu já tinha o gengibre fresco, a canela em pau e o cravo-da-índia –
estavam garantidos! –, mas precisava de cardamomo, pimenta-do-reino,
anis-estrelado e algumas sementes de noz-moscada. Enquanto punha os
ingredientes em saquinhos de papel, selando com cuidado cada um, pensei
na coleção de potinhos de geleia e mostarda que estavam lavados e secando
no escorredor da minha casa, esperando para receber as novas especiarias.
Com as compras embaladas e pagas, e depois de inalar uma última vez
aquele ar exótico e temperado, voltei para a neve.
Q
uando criança, ganhei um caderno.
Era pequeno, quase quadrado, e por pouco eu não conseguia
guardá-lo no bolso da minha calça. A capa era dura e revestida de
veludo, e as páginas pautadas eram sedosas ao toque. Um pequeno lápis
dourado pendia de uma tinha. No início, tive receio de escrever nele – era
tão delicado que eu cava com medo de estragar as páginas se zesse algo
errado. Passei um bom tempo apenas levando-o para onde quer que eu
fosse, passando-o do bolso do casaco para a mochila, da mochila para a
mesa de cabeceira, até que percebi que aquilo era uma tolice: assim como os
brinquedos querem ser usados e as árvores escaladas, o caderno queria que
eu escrevesse nele.
Comecei narrando acontecimentos do dia a dia. Escrevia sobre as
brincadeiras no parque, sobre os sapatos novos que eu só deveria usar em
ocasiões especiais, mas que de vez em quando calçava às escondidas para
uma apresentação de dança em volta da cama. Escrevia sobre os mergulhos
na colônia de férias, sobre as festinhas de aniversário e sobre a fantasia do
próximo Halloween. Não demorou para o caderno car todo preenchido, e
logo o troquei por um novo. Nele, estavam registradas as noites na casa de
amigos, as aulas de ciências e a primeira vez que tive o coração partido. No
caderno seguinte, contei do meu primeiro trabalho, dos amigos novos que
havia feito e dos festivais de verão a céu aberto, a que assistíamos em cima
de cobertores.
Sempre que eu completava um caderno, guardava-o na prateleira e
começava a escrever no próximo. Mantive esse hábito durante muitos anos,
e agora o meu quarto tinha uma estante especial para os cadernos, onde eles
cavam arrumados em leiras bem alinhadas, aquele primeiro diário de
veludo em destaque.
Ao longo dos anos, passei por muitas fases, ora escrevendo sobre
acontecimentos do dia a dia – quem fez tal coisa e onde e quando –, ora
dando mais atenção aos livros que eu estava lendo e às ideias que passavam
pela minha cabeça. Também já mantive um livro de receitas, em que
registrava todas as que testava, além de anotar o nome de quem as tinha
provado comigo e o que conversamos durante a refeição. Em outro caderno,
escrevi todas as memórias de infância da minha avó, colando junto fotos
que ela havia me dado, com datas e nomes anotados nas bordas. Outro foi
preenchido com desenhos esforçados porém malfeitos que eu nunca havia
mostrado a ninguém e provavelmente jamais vou mostrar. Essa era a melhor
parte de ter todos aqueles cadernos na estante – eles não precisavam ter uma
utilidade. Eram uma exclusividade minha, eram escritos por prazer, sem
qualquer outra função.
Um dia, encontrei uma palavra que de ne bem essa ideia e acabou
servindo de inspiração para o meu volume seguinte. A palavra é “autotélico”,
um adjetivo que descreve as atividades criativas que não têm nenhum
propósito para além de si mesmas. Depois de registrá-la na primeira página
do meu novo diário, resolvi que ia dedicá-lo às minhas novas palavras
preferidas e aos seus signi cados. O plano me motivou a explorar novos
lugares e situações, para que depois pudesse encontrar palavras para
descrevê-los.
No celeiro de uma vinícola que visitei, vi barris de vinho sendo alçados
até o sótão para serem armazenados. Mais tarde, escrevi: “Sarilho é o
cilindro em que se enrola uma corda para subir ou descer um objeto pesado,
e o verbo sarilhar indica a ação de prender a corda. Portanto, você pode
sarilhar um sarilho.”
Depois de assistir a um documentário sobre anatomia e descobrir que o
pequeno corredor entre o nariz e o lábio superior se chama philtrum,
escrevi: “Toda vez que eu sentir a respiração passando pelo philtrum, vou
pensar em ‘ ltro dos lábios’, que me faz imaginar que ali as coisas boas são
separadas das ruins.”
Enquanto cuidava do vaso de suculentas na janela da frente de casa,
pensei que até mesmo as plantas precisam de uma temporada de repouso e
sonolência, e anotei: “Quiescente signi ca quieto e inativo, e é bom para
tudo e para todos de vez em quando.”
Quando uma nevasca cobriu as ruas e eu, de pé em meio a pequenos
montes de neve, percebi que o barulho habitual da vizinhança havia
desaparecido, incluí a palavra circum-ambiente, que quer dizer “aquilo que
envolve e cerca por todos os lados”.
Certa vez, li um livro de poemas que usava uma linguagem bonita e
rebuscada para descrever coisas corriqueiras. “Adoxogra a”, escrevi, “é a arte
de contar o simples com palavras belas”.
Encontrei várias palavras adoráveis em outras línguas que não têm
equivalentes em inglês e quei contente em acrescentá-las à lista.
Passei um dia num abrigo de animais, levei os cachorros para passear e
entretive os gatos com uns ratinhos de brinquedo presos a barbantes. Uma
das gatas tinha acabado de ter uma ninhada de lhotes cinza com manchas
pretas. Peguei aqueles corpinhos felpudos no colo e os aconcheguei em meu
pescoço. Mais tarde, escrevi sobre a palavra “gigil”, que em lipino signi ca
“desejo incontrolável de apertar algo fofo”.
Em outra ocasião, fui com a minha irmã assistir a uma apresentação da
lha dela, que tocava viola na orquestra da escola. No momento em que
minha sobrinha começou seu solo, o som do arco deslizando sobre as cordas
ressoou lindamente pelo auditório, e minha irmã apertou a minha mão e
sorriu, vertendo lágrimas de orgulho. Mais tarde, descobri uma palavra para
essa situação e a incluí no caderno. “Naches é um termo iídiche que signi ca
‘alegria alheia’, que é o que as pessoas sentem quando veem o sucesso de
alguém que se ama.”
Essas palavras são tão úteis que eu achava um pouco frustrante não
termos uma versão delas em nossa língua, e z uma pequena campanha
entre amigos e familiares para que adotássemos algumas. Entre elas estavam
a expressão italiana l’altro ieri, que signi ca “o outro ontem”, mas que é usada
para indicar o dia antes de ontem, e o termo georgiano zeg, que signi ca o
dia depois de amanhã. Quando eu estava fazendo balas de caramelo salgado
para as festas de m de ano e cheguei ao equilíbrio perfeito de sabores, bati
uma mão na outra e disse lagom, uma palavra sueca que quer dizer algo
como “nem de mais, nem de menos”.
O caderno estava quase todo preenchido, e eu logo o colocaria na
estante junto dos outros. Ainda restava uma última página, com espaço para
mais uma palavra. Eu tinha passado o dia inteiro de cama, e só me levantei
quando ouvi alguém bater de leve na porta. Uma pessoa da vizinhança, ao
car sabendo que eu estava doente, havia preparado uma panela grande de
sopa e a trouxe para esquentar no meu fogão. Além da sopa, trouxe um saco
de pequenas laranjas e uma caixa de chás para a minha dor de garganta. Ela
não cou muito tempo: depois de me servir uma tigela de sopa, foi embora e
me deixou jantar e descansar com tranquilidade.
Abri o caderno pensando numa palavra da língua zulu, difícil de de nir
em inglês, mas que compreende as ideias de compaixão e humanidade
compartilhada, a ideia de que eu sou porque nós somos. Tomei uma
colherada de sopa enquanto pensava que ajudar uns aos outros é a coisa
mais humana que podemos fazer. Ubuntu, escrevi. “Não é possível ser
humano sozinho.”
Bons sonhos.
Um pouco de romance
E
ra um dia de neblina, e as luzes dos postes, ainda acesas da noite
anterior, formavam bolsões de névoa amarela sobre as ruas.
Eu estava a caminho de uma das minhas cafeterias preferidas,
minhas galochas fazendo espirrar as poças de neve derretida. O tempo
úmido e cinzento vinha me deixando melancólica, mas eu havia feito um
plano para levantar o ânimo, e beber um café gostoso era apenas sua
primeira etapa (ainda que uma etapa muito importante). Esse lugar, com
paredes de tijolos e madeira de demolição, cava num espaço pequeno e de
formato curioso, encaixado na parte da frente de um prédio movimentado.
Para beber, eram servidos somente alguns chás e cafés, e em uma vitrine no
balcão viam-se muffins, cookies e fatias de bolo, todos protegidos em
redomas.
Um sininho soou quando abri a porta, e entrei na la atrás de uma
garotinha de gorro vermelho que estava de mãos dadas com a mãe. Ela se
virou e olhou curiosa para mim, estava com os olhos e a boca bem abertos.
Ela tinha faltado à escola e estava observando o conturbado mundo dos
adultos, o que raramente tinha a oportunidade de fazer. Sorri, e ela, tímida,
se virou bruscamente para a frente. Imaginei que tivesse perdido as aulas
por ter ido ao médico ou ao dentista e que agora ia ganhar um lanche como
recompensa. A mãe pediu para ela um chocolate quente – não muito quente
– e um dos cookies das redomas. A menina carregou o biscoito com
convicção até uma mesinha no canto do salão, onde se sentou para esperar
pela bebida, e apontou para um cachorro que passeava com o dono na rua,
gritando para a mãe que ele tinha pintinhas e uma coleira vermelha igual à
da sua gata. Eu já estava me sentindo melhor.
Quando chegou a minha vez, pedi um expresso simples e fui aguardar
no local onde as bebidas eram preparadas. Adoro uma boa e demorada
xícara grande de chá ou de café, mas o sabor encorpado de um expresso
italiano bem-feito tem o poder de derrotar qualquer desânimo e me fazer
imaginar um dia ensolarado na primavera da Campânia. E o expresso desse
pequeno café era muito bem-feito. Era servido numa pequena xícara branca,
um recipiente tão pequeno que dava para pouco mais que três goles. Vinha
com uma colher ridiculamente pequena para misturar o açúcar, além de um
minicopo de água com pouco gás. A xícara tinha acabado de ser aquecida, e,
quando a levantei para sentir melhor o aroma do café, a cerâmica morna
esquentou meus lábios. Primeiro, apreciei o cheiro de olhos fechados. Em
seguida, dei um gole bem lento, deixando o café passar bem devagar pela
boca antes de engolir. Era escuro e intenso, mas sem ser amargo demais ou
queimado, e senti que, enquanto saboreava aquela bebida quente, eu
ganhava novo vigor. Depois de beber o copinho de água, deixei um dólar na
caixa de gorjetas e voltei para a neblina.
Avaliei o andamento do meu plano: até ali estava indo muito bem. Eu
havia tomado um café delicioso e testemunhado a reação de uma garotinha
ao avistar um cachorro. Pensei em seus olhos se arregalando, em suas pernas
balançando de entusiasmo embaixo da mesa, em como sua voz parecia
sorrir enquanto ela gritava para a mãe. Minha disposição já era outra.
A próxima etapa do plano me levou até o parque, que estava encharcado
naquele dia. Passei pelos patos que se movimentavam de um lado para outro
e contornei o pequeno an teatro, onde no verão anterior eu havia assistido a
shows de música, para chegar a um lugar muito especial – encontrar um
desses no meio da cidade parecia um milagre. Era um orquidário, com um
teto arredondado de vidro que me fez lembrar as redomas da cafeteria.
Antes de entrar, parei e olhei ao redor, admirando o modo como a neblina
espessa aderia aos troncos das árvores. Por um momento, pensei nela como
um imenso xale que eu estivesse arrastando pelo parque – será que na
verdade eu estava? Ignorei o pensamento e puxei a porta pesada de vidro,
sentindo na mesma hora um ar quente e úmido beijar meu rosto e meu
pescoço.
Eu sabia, pois tinha contado na minha última visita, que aquele lugar
abrigava mais de cem variedades de orquídeas. Fechei os olhos e senti o
cheiro de terra úmida e o forte aroma de baunilha das ores. Pendurei o
casaco num gancho ao lado da porta e comecei a caminhar pelos corredores
cheios de ores. O ar úmido e quentinho era agradável aos pulmões, e as
diferentes formas e cores das orquídeas, cada uma com seu tipo de caule e
de pétala exuberante, afastavam qualquer pensamento que eu pudesse ter
naquela hora. Eu apenas olhava, apreciava e me esforçava para não encostar
em nada. Ia lendo os nomes enquanto avançava, pronunciando-os devagar
para tentar memorizá-los. Masdevallia. Brassavola nodosa. Maxillaria.
Vanda coerulea. Psychopsis e Rhynchostylis.
Alguns anos antes disso, eu tinha uma amiga que amava orquídeas. Ela
já era bem idosa e estava nos últimos anos de vida. Sempre que eu a visitava,
ela me levava para ver sua coleção de orquídeas e, enquanto me contava
sobre elas, admitia que nunca tinha dominado a arte de mantê-las vivas após
a queda das primeiras ores.
“O que posso fazer?”, dizia, gesticulando. “Eu amo essas ores. Vou
continuar comprando mudas novas enquanto eu viver.”
E continuou mesmo. Pensei que ela teria adorado aquele lugar e tentei
enxergar as ores por ela, como se ela pudesse, por meio dos meus olhos,
sentir o mesmo prazer que eu estava sentindo.
Do lado de fora do orquidário, enquanto fechava o casaco até o pescoço
para me proteger do ar gelado, notei que a neblina estava indo embora. O
dia estava mais claro, o céu tinha um toque de amarelo. Pus as mãos nos
bolsos do casaco e encontrei em um deles um hidratante labial de menta e
no outro uma caixinha de balas de canela. Re eti sobre algo que havia
aprendido com a minha amiga: a importância de presentear a si mesmo com
pequenos prazeres capazes de tornar o dia um tantinho mais agradável.
Uma xícara de expresso, um par de galochas fazendo espirrar as poças da
rua, um sabor de menta nos lábios hidratados – e um dia como aquele,
planejado para levantar o ânimo.
Eram muitos os pequenos prazeres a serem desfrutados, ainda que
esperássemos os primeiros botões da primavera.
Bons sonhos.
Viagem de férias
T
ínhamos tudo agendado desde o m do verão, pois sabíamos que no
auge do inverno precisaríamos de férias.
Seria uma fuga do frio cortante e do céu cinzento para um lugar
quente e ensolarado – onde poderíamos sentir a brisa do mar, ouvir o canto
dos pássaros, repousar em redes presas a troncos de palmeiras. Na semana
anterior à da viagem, eu estava como uma criança nos últimos momentos da
última aula antes das férias de verão: fazendo de tudo para os dias passarem
depressa, riscando-os do calendário antes de dormir, cumprindo pequenas
tarefas, como arrumar as malas e esvaziar a geladeira, com todo o
entusiasmo do mundo.
Demos m às sobras de comida fazendo refeições um pouco atípicas:
uma xícara para cada do pouco de sopa que restava; rabanadas para
aproveitar as fatias de pão; uma salada feita com pouco mais do que alguns
tomatinhos que eu podia jurar que já tínhamos comido e, para a sobremesa,
todas as bananas que conseguimos engolir. Não nos importamos com esse
menu excêntrico. Rimos até, e brindamos com o restinho de vinho da
geladeira, que só enchia metade das taças.
Quando o dia chegou, acordamos cedo, bocejantes e com olhos pesados.
Nós nos vestimos em silêncio e levamos as malas para o carro. Um longo dia
de viagem se seguiu, pontuado por piscadelas que trocávamos, um sinal
secreto que queria dizer: “Ei, estamos de férias!” Sorríamos.
Quando nos demos conta, já estávamos desembarcando e dando aquele
delicioso primeiro passo no calor úmido de um lugar novo. É uma das
maravilhas do mundo moderno: acordar em um lugar, em uma estação, em
uma parte da Terra, e poucas horas depois chegar a outro que não guarda
sequer um pingo de semelhança com aquele de onde se saiu.
Logo nos acomodamos num quarto com vista para o mar. Tinha uma
cama espaçosa, com travesseiros altos e lençóis branquíssimos, e uma
varanda, que deixamos aberta para que o som das ondas invadisse o
ambiente. Com os braços entrelaçados, nos inclinamos para ver o mar e,
ainda com os suéteres e as calças jeans do mundo gelado em que havíamos
acordado, admiramos a extensa faixa de areia da praia. Que sensação boa a
do início de uma temporada de férias! Os dias se estendiam à nossa frente, e
tudo que precisávamos fazer era preenchê-los com descanso e diversão –
livros, mergulhos e caminhadas na praia. Eu estava, de fato, vibrando de
empolgação. “Quem chegar à água por último é a mulher do padre!”, eu
gritava, dando a largada, e só o que importava era achar no meio de nossas
coisas o protetor solar, as roupas de banho e os chinelos. Adeus, agasalhos!
Rapidamente estabelecemos uma rotina. Dormíamos sem hora para
levantar, pedíamos uma garrafa de café, um prato de frutas e algumas
torradas, e tomávamos o café da manhã na varanda, com os pés apoiados na
grade. Depois, era hora de trocar de roupa e sair para uma longa caminhada
na areia. Andávamos de mãos dadas, ora conversando, ora não, mas sempre
com os pés descalços na beira da água. De vez em quando, fazíamos uma
parada para olhar as ondas e observar as famílias nadando, os peixes
saltando e os pássaros dando mergulhos no mar. Logo íamos atrás de uma
sombra e algo para beber antes de devorarmos mais um livro. Quando o
calor tomava conta de nós, era hora de entrar no mar de novo, para boiar,
nadar ou simplesmente brincar de jogar água para o alto, até que a fome ou
a sede apertassem ou tivéssemos vontade de nos esticar sob o sol. No m da
tarde, de volta ao quarto, tomávamos uma chuveirada gelada, para lavar a
pele corada e cheia de sal. Então nos estirávamos nos lençóis limpinhos e,
por mais inacreditável que fosse, dormíamos pela terceira ou quarta vez no
dia.
Vez ou outra, fazíamos certo esforço e vestíamos roupas mais arrumadas
para jantarmos num salão ao ar livre, onde nos divertíamos provando pratos
da culinária local, bebendo vinho e dançando lentamente, de rosto colado,
sob pequenas lâmpadas que iluminavam a noite mormacenta. Às vezes,
pedíamos algo para comer no quarto mesmo e, com a cabeça e os pés
apoiados em travesseiros, assistíamos à TV ou escutávamos o som das
ondas quebrando na praia.
A semana estava se aproximando do m, e eu me sentia com um novo
vigor. A ideia de mais algumas semanas de neve já não me soava tão mal
agora que eu havia reabastecido a memória com as sensações de
aquecimento e de cansaço gostoso provocados pelo sol. Em casa, logo
veríamos os pássaros voltando a fazer ninhos, os rios crescendo com o
degelo da primavera e, dali a aproximadamente um mês, os primeiros brotos
de narcisos e açafrões rompendo da terra escura. Pouco depois, os ruibarbos
começariam a aparecer nas barracas da feira, e iríamos folhear os catálogos
de sementes e planejar o jardim. Pensei que seria ótimo voltar a dormir na
nossa cama, assim como lavar e guardar as roupas da viagem.
É muito bom ter um lugar para onde escapar nas férias, para que por
uns tempos possamos abandonar o dia a dia e transgredir todas as regras.
Também é ótimo ter um lugar agradável – ainda que de maneira bem
diferente – para onde voltar.
Bons sonhos.
Um dia de inverno visto da janela
D
a janela da sala, eu tinha visto aquela que provavelmente seria a
última nevasca do inverno.
A neve havia caído em densas camadas. Eu achava que àquela
altura estávamos todos prontos para a primavera, mas não demorei a me
acostumar com a ideia de passar por mais um dia típico de inverno –
veríamos os ocos caindo com seu charme silencioso, passaríamos mais
uma tarde fazendo bolas de neve para construir bonecos e pela última vez
desceríamos a colina do parque de trenó.
Eu não sabia se teria disposição para andar de trenó, mas eu já achava
diversão su ciente ver do conforto da minha sala de estar, com meias
grossas nos pés e uma chaleira começando a apitar no fogão, um grupo de
crianças agasalhadas até o nariz puxando por cordinhas pequenos trenós de
brinquedo pelas ruas da vizinhança. Mesmo com botas e calças de neve,
algumas delas conseguiam correr, disparando na frente e gritando para
apressar os amigos e as irmãs mais novas. A colina estava esperando.
Quando eu era criança, havia uma colina ótima perto da minha casa.
Lembro bem a emoção de deslizar encosta abaixo, eu e mais uma ou duas
crianças num trenó, segurando rme as rédeas desgastadas – e uns aos
outros – enquanto começávamos a ganhar velocidade. Chegando lá
embaixo, o trenó virava ou se chocava contra um montinho de neve; nos
levantávamos rapidamente, batíamos as roupas e voltávamos correndo para
o topo. Depois de horas, o frio ou os pais nos convenciam a voltar para casa
para nos aquecer. Tirávamos então os casacos e as toucas cheios de neve e os
colocávamos para secar sobre o radiador, mas voltávamos a vesti-los e
partíamos mais uma vez para a colina antes que estivessem prontos para o
uso.
Fui até a cozinha e, depois de despejar água quente numa xícara,
mergulhei nela um saquinho de chá, movendo-o enquanto o marrom-
avermelhado do rooibos ia se espalhando feito tinta na água. Na bancada,
peguei um pacote de biscoitos que eu havia comprado no dia anterior.
Eu estava fazendo compras no supermercado e pensando nos
compromissos do dia quando avistei a embalagem laranja daqueles biscoitos
que não comia desde a infância. Tinham o formato de um moinho de vento,
e sua massa bem douradinha era cheia de pequenos pedaços de amêndoas.
Ao vê-los, minha mente se libertou do emaranhado de pensamentos em que
estava presa. Peguei um pacote na prateleira. As letras eram iguais às de
quando eu era criança, grossas e um pouco borradas, como se tivessem sido
impressas numa prensa antiga. A logomarca exibia um moinho de vento
esfumado e o nome da família, e no verso da embalagem conferi que os
biscoitos ainda eram produzidos na mesma cidadezinha no Norte. Que sorte
a minha eles terem percorrido toda aquela distância para chegar às
prateleiras do supermercado do meu bairro. Alisei a embalagem de papel-
celofane e dei uma espiada nos biscoitos através dela. Eles não eram muito
regulares – alguns eram um pouco mais dourados ou mais grossos do que
outros. Coloquei o pacote no carrinho sem hesitar, imaginando o momento
de abri-lo para saborear os biscoitinhos com uma xícara de chá.
Eu costumava comê-los na casa dos meus avós. Ao relembrar aquela
época, percebi que não tinha nenhuma lembrança de prová-los em qualquer
outro lugar. Peguei um prato, amontoei alguns moinhos nele e voltei para a
cadeira ao lado da janela. Depois de ajeitar os pés debaixo do assento e
cobrir as pernas com uma manta, peguei um biscoito. Senti seu cheirinho
agradável, com um toque de especiarias – consegui reconhecer noz-
moscada, cravo e canela, além do perfume adocicado das amêndoas. Dei
uma mordida. Apesar de estar levemente seco e de ter esfarelado um pouco,
o biscoito me transportou na hora para a cozinha dos meus avós.
A casa deles era pequena, com uma varanda minúscula que cava
escondida no meio de gigantescas árvores e estava sempre coberta de
sombras. Os quartos escuros eram repletos de fotos e brinquedos velhos que
um dia tinham pertencido ao meu pai. A cozinha, porém, tinha uma ampla
janela com vista para o quintal dos fundos. Era iluminada e cheia de sol.
Minha avó guardava os biscoitos de moinho no fundo de um armário,
escondidos atrás de um pote de farinha – um lugar que meu avô não
acessaria com facilidade. Levávamos o pacote para a mesa e, mergulhando-
os em nossas bebidas – a dela um café, a minha, um chocolate quente –,
comíamos os biscoitos sem pressa enquanto observávamos os esquilos
passando pelos os elétricos. Talvez seja por causa da minha avó que gosto
tanto de me sentar à janela e apreciar a paisagem.
Olhando a neve lá fora, ergui minha xícara em homenagem a ela e
àquelas tardes na cozinha. Depois de dar uma mordida num biscoito, bebi
imediatamente um gole de chá para umedecê-la. Mais crianças estavam
correndo na direção da colina, as luvas de lã dançando de um lado para
outro, quase vazias. Contemplei a luz rosada do sol poente e a neve que se
acumulava nos galhos nus do plátano no quintal da vizinha. Sim, eu daria
boas-vindas à primavera quando ela chegasse, mas estava feliz em car mais
um tempinho vendo, do conforto de casa, a neve cair.
Bons sonhos.
Matinê
Q
uando tivemos que nos mudar, conhecemos na nova vizinhança um
grupo adorável de pais e crianças que sempre convidavam nossos
lhos pequenos para brincar.
Reuníamos todos eles no quintal ou no quarto de brinquedos de uma
das casas, onde passavam horas e horas correndo e brincando de mímica,
usando fantasias e inventando um número in nito de jogos, além de
construírem fortes com almofadas e cobertores. De vez em quando, eles
paravam para comer um sanduíche e tomar suco em um gole só, e, depois
de entregar o copo ao adulto mais próximo, voltavam correndo para o que
era de fato importante ali: brincar e ser criança.
Como sempre, os pequenos cresceram, e logo estavam andando de
bicicleta para cima e para baixo na vizinhança. Jogavam basquete na entrada
de casa, transformando o som da bola quicando na trilha sonora de quase
todas as tardes de verão. Depois de terminar as tarefas e os deveres de casa,
corriam para a rua para encontrar os amigos, procurando quem tivesse três
ou quatro bicicletas jogadas no gramado da frente. Os jogos continuaram,
mas mudaram. À medida que as crianças cresceram e começaram a se
tornar independentes, fui percebendo a lição que havia aprendido e que
jamais esqueceria: nunca devemos deixar de brincar, não importa a nossa
idade.
Comecei até a marcar meus dias de brincadeira, que, embora tivessem
muitos elementos em comum com os dos meus lhos – havia sempre
petiscos, às vezes fantasias, e quei sabendo até de uma ou outra construção
de fortes usando almofadas –, costumavam ser bem mais calmos. De vez em
quando, eu resolvia ter um dia desses mesmo sem alguém para me
acompanhar.
Então, certa noite z planos para o dia seguinte depois de me dar conta
de que tinha direito a uma folga no trabalho. Por que não aproveitá-la logo?
Havia um lme em cartaz que eu mal podia esperar para ver. E também não
parava de pensar – havia semanas – na comida magní ca do café que cava
em frente ao cinema. Uma sessão solitária seguida de uma refeição deliciosa
era tudo de que eu precisava. E que maravilha! Eu tinha ido dormir com um
sorriso e acordado da mesma maneira.
Olhando os horários do lme, vi que haveria uma sessão por volta de
meio-dia. Perfeito. Decidi que ia relaxar de roupão e pantufas por mais um
tempinho e em seguida comer um brunch caprichado antes da sessão.
Como o romance na minha mesinha de cabeceira estava precisando de um
pouco de atenção, eu o levei, junto com uma xícara de chá, até a poltrona ao
pé da janela. Coloquei as pernas para o alto e comecei a ler. Depois de um
tempo, ouvi a musiquinha delicada do sino da coleira do meu gato e, ao me
virar, vi a ponta do seu rabo circundando os móveis do quarto. Daquele jeito
desapressado dos gatos, ele se aproximou de mim e miou. “Tudo bem, pode
subir”, falei. Mais um miado. Passei a mão no tecido macio do roupão para
mostrar a ele o lugarzinho confortável que o esperava. “Miau.” Bati
energicamente nas minhas coxas. A ideia de subir na poltrona para car
comigo era dele, mas eu é que estava quase implorando para que ele saltasse
logo.
Ele levou uma das patas à boca e, em seguida, usou-a para coçar as
orelhas, mostrando que estava ocupado com os próprios afazeres. Voltei a
ler, e depois de alguns instantes ele pulou no meu colo e se acomodou entre
as minhas pernas; apoiei uma das mãos em seu pelo macio. Enquanto eu lia,
ele ronronava, e o ritmo de seu ronco parecia ecoar dentro de mim. Pus o
livro de lado, recostei a cabeça na almofada e fechei os olhos.
Senti calma e alegria. Eu tinha lido em algum lugar que pelo de gato tem
poder curativo e que isso tem a ver com a frequência da vibração dele, que
estimula a liberação de endor na tanto no gato como em nós – hertz que
curam. Isso devia ter alguma in uência, mas acho que o principal motivo da
minha sensação de bem-estar era ver que ele estava feliz. Era a mesma
emoção que eu tinha quando preparava uma refeição gostosa e as pessoas
cavam se deliciando, ou quando meus lhos me visitavam nas férias da
faculdade e eu abria a porta do quarto deles só para espiá-los dormindo de
manhã cedo. Ver aqueles que eu amava satisfeitos era o melhor remédio que
eu conhecia.
Pensar sobre refeições gostosas me fez perceber que eu estava com fome.
Bebi o último gole do chá e peguei meu gato no colo, colocando-o de volta
na poltrona antes de me vestir. Poucos minutos depois, saí naquela manhã
fria de nal de inverno. Nos últimos dias, o tempo vinha alternando uma
estação com outra, e a neve já havia derretido e voltado a congelar algumas
vezes. Os telhados e os galhos ainda estavam cobertos, mas os montinhos
brancos que tinham dominado a paisagem nos últimos meses estavam aos
poucos encolhendo, e já não se via uma na camada de gelo sobre as
calçadas. Liguei o carro, saí de ré da garagem e peguei o caminho mais longo
para poder olhar a vizinhança antes de chegar à rua principal.
Os adultos estavam no trabalho, as crianças na escola, e eu estava indo
curtir um brunch. Sorri – todos precisamos matar aula de vez em quando.
Depois de estacionar o carro, caminhei um pouco pelas ruas próximas ao
café. Parei numa esquina e admirei a leira de árvores baixas plantadas ao
longo da calçada. Todas tinham, pendendo de um dos galhos, um pequeno
enfeite de gelo em formato de coração. Dentro do gelo havia grãozinhos de
alpiste, e vi um passarinho bicar um dos enfeites para tentar retirar alguns
deles. Fiquei com a impressão de que aqueles alimentadores de pássaros não
tinham sido postos ali pela prefeitura – alguém os tinha feito em casa e
pendurado nas árvores com barbante. Essa pessoa havia enfrentado o frio
para garantir que os passarinhos fossem alimentados, e assim tinha
transformado a rua num lugar um pouquinho mais gentil.
O café estava cheio, mas não lotado, e consegui uma mesinha redonda
perto de uma janela. Pedi o que parecia mais gostoso: panquecas cobertas
com uma pasta caseira de chocolate com avelã e um suco de toranja, rosado
e cheio de gominhos.
Quando o garçom colocou o prato na minha frente, parei para apreciar
por alguns instantes a beleza daquelas panquecas: lindas e douradas,
empilhadas e cobertas com uma camada generosa do creme de chocolate;
fatias de banana arrumadas em forma de leque nalizavam o prato. O vapor
cheiroso da massa me fez lembrar donuts recém-saídos do forno. Com água
na boca, estendi o guardanapo sobre o colo e comecei a comer. Saboreando
cada mordida, comi até me saciar, e só então bebi o suco azedinho.
Olhei o relógio – estava quase na hora. Paguei a conta e atravessei a rua
correndo para comprar o ingresso. Poucas pessoas estavam ali para assistir à
matinê, e a sala cou com muitos lugares vazios. Eu tinha escolhido o lme
pensando naquele dia. Era uma re lmagem nostálgica de um clássico que eu
adorava e prometia vários personagens familiares e músicas bonitas. Muitos
anos antes, eu havia levado meus lhos para ver o original no cinema. Era
bem possível que eu chorasse. Ainda que não houvesse motivo algum para
me envergonhar disso, eu gostava de ter um pouco de privacidade nos
momentos em que precisava secar os olhos e assoar o nariz. Ri ao imaginar
o que meus lhos pensariam de mim, planejando chorar justamente num
dia de brincar, mas pensei que um dia talvez eles sentissem a mesma
necessidade. Conferi o estoque de lencinhos no bolso do casaco e olhei para
a tela no mesmo instante em que as luzes se apagaram e os créditos do lme
começaram a passar.
Bons sonhos.
Chuva de primavera
F
altavam poucos minutos para as seis, não havia ninguém na loja.
Eu estava arrumando as prateleiras, ajeitando os livros em leiras
retinhas e devolvendo ao lugar aqueles que tinham ido parar na seção
errada. Organizei o balcão, dispus uma pequena pilha de marcadores de
livro ao lado da caixa registradora, tranquei-a. O movimento na pequena
livraria tinha sido intenso, mas en m ela estava vazia, e era hora de girar a
plaquinha na porta para avisar: FECHADO.
A loja era pequena e cava numa rua agitada do centro, numa casa
antiga com piso de tábuas corridas, pé-direito alto com sancas e lustres de
ferro trabalhado. O amplo balcão estendido ao longo de uma parede estava
lá desde que o espaço dava lugar a uma loja de utensílios domésticos,
algumas décadas antes. A parede oposta tinha amplas janelas com vista para
a rua. Havia espaços aconchegantes para leitura, com almofadas
amontoadas e ilustrações na parede. Se o cliente prometesse ser cuidadoso,
podia até levar junto uma xícara de café, e muitos passavam a hora do
almoço bebericando tranquilamente, folheando algum livro e, de vez em
quando, dando uma mordida sorrateira num sanduíche ou numa maçã
tirados do bolso. Não nos incomodávamos. Como eles amavam livros, isso
era o bastante para nós, responsáveis pela livraria.
Um dos espaços, junto à janela principal da loja, era uma espécie de
cabine de madeira, que permitia ao cliente car um pouco escondido ao
mesmo tempo que assistia às pessoas passarem na rua. Nas paredes da
cabine havia mapas da África, da Europa e de cidades no Japão, um mapa da
Terra Média e outro do Bosque dos 100 Acres, e até mesmo um de Fillory,
este desenhado à mão. (Quando um livro tem um mapa nas primeiras
páginas, é quase certo de que ele é bom.) Havia um consenso entre
funcionários e frequentadores de que aquele era o melhor cantinho da loja,
mas, embora ele raramente estivesse vazio, ninguém fazia pressão para
liberarem o lugar.
Terminei a inspeção da loja e retornei às minhas tarefas. Tranquei a
porta de trás, uma porta pesada de madeira tão antiga quanto o edifício,
com painéis e vidros martelados. Passei a chave na fechadura e abaixei a
persiana. Em seguida, apaguei as luzes do corredor dos fundos e dos
banheiros, fechei a porta do escritório e passei à porta da frente. Era
também grossa e pesada, mas acoplada a ela uma porta de tela, que
usávamos sempre que fazia calor para deixarmos o ar fresco se misturar ao
cheiro dos livros. Enquanto batia as duas e fechava o trinco, olhei para o
sininho acima de mim e sorri. Eu amava ouvir aquele som quando os
primeiros clientes chegavam pela manhã e gostava de fechar a loja à noite,
sabendo que o sininho caria um tempo sem tocar.
Permaneci diante da porta por alguns minutos, com o rosto contra o
vidro. Aquele era um bom horário para observar pessoas, e o sol de
primavera as fazia sorrir enquanto voltavam para casa do trabalho ou da
escola. A loja estava em silêncio. Não colocávamos música para tocar, pois
pensávamos que ali era mais uma biblioteca do que um espaço de encontros
onde havia livros à venda. Assim, tudo o que eu escutava eram os ponteiros
dos relógios se movendo e os sons abafados da rua. Eu estava fazendo aquele
momento render de propósito, e com isso prolongando a expectativa do que
viria a seguir. Eu adorava vender livros – conversar sobre eles e estar num
ambiente repleto deles –, mas também amava ler sem ninguém por perto, e
era o que eu fazia no nal de cada dia.
Caminhei até o pequeno e entulhado escritório, desfrutando os últimos
minutos em silêncio absoluto. Lá dentro havia uma chaleira elétrica, canecas
e um pacote de biscoitos que um cliente havia me dado de presente na
semana anterior, depois de passarmos uma hora escolhendo um livro de
receitas. Liguei a chaleira e revirei as caixinhas de chá, escolhendo por m
um chai de canela. Havia um frigobar no canto do escritório, onde eu
mantinha um estoque generoso de leite de amêndoas, o preferido de quase
todo mundo para misturar no chá. Acrescentei um pouco de açúcar ao chá
com leite, peguei o pacote de biscoitos e o livro e me sentei no banco que
havia ao pé da janela. Estava prestes a começar o segundo volume de uma
série. Eu tinha amado o primeiro livro e estava esperando fazia mais de um
ano pelo segundo, que por m estava nas minhas mãos. A oportunidade de
ler um grande livro pela primeira vez não se repete, e por isso eu estava
aproveitando cada segundo da minha empolgação.
Acomodei-me sem pressa no banco, cuidando para encontrar os pontos
ideais onde pousar o chá e os biscoitos, assim como a melhor forma de
arrumar as almofadas nas minhas costas. Quando tudo parecia perfeito, tirei
os sapatos e estiquei as pernas, tomando alguns goles do chá, mordiscando
um biscoito e olhando pela janela por mais alguns instantes.
Depois, inspirei longamente, soltei o ar e abri o livro.
Bons sonhos.
O novo canteiro de aspargos
Quando você tiver um dia livre para se dedicar às tarefas que foram se
acumulando, reserve algumas horas a fim de executá-las com calma e atenção.
Nada de pressa para se livrar logo delas. A seguir, algumas dicas para que o
trabalho seja, pelo menos, divertido.
Faça uma lista para que não precise de malabarismos para se lembrar de todas as
tarefas a cumprir. Inclua “Faça uma lista” como o primeiro item, para que no final
você possa riscá-lo. Você já está com as mãos na massa.
Pegue alguns livros de receitas na estante, se cozinhar for uma das atividades que
estão nos planos, e passe um tempo pensando no que estaria com vontade de
preparar. Eu recomendo que, nos dias em que tiver tempo, você se dedique às
preparações que podem ser feitas em grandes quantidades, como homus, grãos
cozidos, granola, molho de salada ou sopa. Lave e corte legumes e verduras para
que fique fácil montar as saladas. E lembre-se de que se sentir feliz ao comer é
importante, então leve os desejos em consideração. Se você está com vontade de
comer biscoitos, vamos assá-los.
Coloque uma música para tocar, ou ouça um podcast ou um audiolivro de que
goste. Esse é o momento ideal para, por exemplo, escutar um livro de mistério, que
na hora de dormir talvez tire o sono, mas que agora vai ajudar você a se manter em
alerta.
Comece por aquelas tarefas que têm grandes intervalos de tempo ocioso. Para
lavar roupa na máquina, por exemplo, são necessários curtos espaços de tempo de
trabalho, com longas pausas enquanto a roupa está na máquina ou no varal. Ao
preparar uma grande quantidade de arroz, é provável que você só precise checar
de vez em quando para saber se está no ponto certo. Dê início a essas tarefas e
execute as que são mais rápidas nos intervalos. Programe um alarme para que
você se lembre de conferir a máquina de lavar e a panela assim que concluir os
outros afazeres.
Limpe e organize um cômodo por vez, para que você não precise ficar andando de
um lado a outro pela casa. Quando estiver pronto, tente deixá-lo bem acolhedor,
acendendo uma vela, diminuindo as luzes ou acomodando um vaso de flores em
uma mesa. Assim, você pode conferir o seu progresso e ter uma ideia de como a
casa ficará aconchegante quando você terminar.
Adiantada
Fiquei contente por não precisar dar mais detalhes do meu dia. A sala de ioga
estava bem escura, com a luz vindo somente de algumas velas e das lâmpadas bem
fracas. O ar era quentinho e bom de respirar, e rapidamente retirou o frio do meu
corpo. O re exo das luzes no piso de madeira tinha um brilho alaranjado que
revestia toda a sala e me lembrou quando estive ao redor de uma fogueira. Embora
eu tenha chegado cedo, vários alunos já estavam ali, deitados ou sentados nos
tapetes, em silêncio. Isso me fez pensar que eu não era a única vinda de um dia
difícil. Como naquela sala ninguém conversava nem usava o celular, o ambiente era
muito tranquilo. Pela primeira vez no dia, me senti em segurança e longe do
julgamento dos outros. Embora não estivesse só, eu sentia que ali tinha privacidade.
Era uma sensação boa.
Estendi o tapete nos fundos da sala e segui a instrução da professora, deitando-
me de barriga para cima junto à parede e elevando as pernas. Soltei um suspiro na
mesma hora – essa posição sempre me acalma. Sei que tem a ver com as pernas
estarem acima do coração e com o uido linfático e blá-blá-blá, mas, resumindo, a
sensação é ótima. Minutos se passaram. Meus olhos estavam fechados. Notas
serenas de piano soavam ao fundo.
Ouvi passos e, em seguida, a voz tranquila da professora junto ao meu ouvido.
– Pode se esticar no chão agora. Tenho algo que vai ajudar você.
Fiz o que ela disse e, no instante seguinte, senti um cobertor pesado cair sobre
mim. Pequenos pesos costurados ao tecido exerciam uma pressão sutil que se
distribuía pelo meu corpo e parecia dispersar a tensão e a ansiedade. Era como se o
alarme de um carro estivesse soando dentro de mim o dia todo e eu, acostumada
com o barulho, só reparasse nele agora que parava de repente de tocar.
– O que é isso?
– Alívio – respondeu a professora.
Ela passou a mão na minha cabeça e pousou-a no meu ombro.
– Acho que vou dormir – murmurei.
– Ótimo. Mais tarde acordo você.
Ouvi seus passos recuando. Depois, não senti nada além do peso do cobertor e
do calor silencioso da sala.
Bons sonhos.
POSTURAS RESTAURATIVAS DE IOGA PARA
MELHORAR O DIA
Escolha um espaço próximo a uma parede, para que você possa esticar as
pernas. Você não vai precisar do celular, então deixe-o de lado.
Sente-se no chão com o lado direito do corpo rente à parede. Deite-se de
costas e, ao fazer isso, gire o corpo de modo que as pernas subam retas na
parede e as costas fiquem relaxadas no chão. As costas devem estar
perpendiculares à parede, e os quadris próximos a ela. Eles não precisam estar
tocando a parede; no entanto, às vezes é mais confortável se estiverem. Apoie
as mãos na barriga ou deixe-as descansando na lateral do corpo – como você
achar melhor. Feche os olhos e preste atenção na sua respiração natural.
Permaneça nessa posição por pelo menos cinco minutos.
Ainda na parede, dobre os joelhos e encoste a sola dos pés uma na outra,
com as pernas se abrindo na direção da parede. Você pode ficar nessa posição
por mais cinco minutos ou, se preferir, avançar para a próxima etapa depois de
um ou dois minutos. Confie em seus instintos.
Junte mais uma vez os joelhos e se vire para o lado que preferir, abaixando
as pernas até que toquem o chão. Você estará na posição fetal. Permaneça
assim por alguns instantes. Dê uma ordem mental ao corpo: ele não deve ter
pressa.
Afaste-se da parede e, com as costas no chão, alongue todos os músculos.
Estique bem os dedos dos pés. Faça uma pequena força para baixo com a
cabeça, levantando levemente o peito para que você possa se apoiar sobre as
escápulas. Relaxe e deixe o corpo e a mente descansarem por cinco minutos.
Descanse de verdade – não é hora de tratar de nenhum assunto. Você precisa
de repouso.
Comece a fazer movimentos sutis com as mãos e os pés. Em seguida,
alongue-se mais uma vez, bocejando, se conseguir. Leve os joelhos até o peito e
abrace-os com força. Não se esqueça de que você, como todas as outras
pessoas, merece compaixão e coisas boas.
Vire-se de lado e, com calma, volte a se sentar. Retorne ao seu dia assim que
desejar.
Giz de cera e grãos de areia
P
arei junto à vitrine por um momento e olhei para um lado e para o
outro da rua.
A luz do sol estava surgindo por entre os prédios, e as vitrines de
algumas das lojas estavam acesas. O letreiro de neon na lanchonete da
esquina piscou algumas vezes antes de acender.
Eu sabia que os clientes iam começar a chegar em poucos minutos para
comprar bagels, doces e pães fresquinhos. Limpei os dedos enfarinhados no
avental e virei a plaquinha na entrada para ABERTO. Só então destranquei a
pesada porta de carvalho e quei a postos atrás do balcão. As prateleiras
estavam cheias de muffins, brioches e pães, todos saídos havia pouco do
forno. O café estava pronto, e eu tinha uma xícara fumegante escondida
atrás da caixa registradora. Estávamos a postos para começar.
A manhã de sábado era o meu momento preferido na padaria. Nos dias
de semana, os fregueses chegavam sempre com pressa, nervosos para pegar
seu pedido e partir para o trabalho. Nos ns de semana, todos nós, padeiros
e clientes, estávamos mais relaxados. As pessoas tomavam devagar as xícaras
de café, folheavam com calma o jornal e saboreavam os donuts de geleia e as
fatias de bolo que preparávamos todos os dias.
O sininho da porta tocou, e vi entrar a garçonete da lanchonete, que
tinha posto o casaco por cima do avental e estava vindo buscar o tabuleiro
de delícias que havíamos deixado pronto e embalado para ela.
– Com pressa? – perguntei.
– Não, hoje é sábado! – retrucou ela, fazendo um gesto despreocupado
com a mão. – As únicas mesas são de clientes antigos, e eles sempre servem
o próprio café.
Sorrimos.
– Se é assim, prove isso aqui. – Entreguei a ela um cantucci ainda
quentinho, embrulhado em papel-manteiga. – Estou testando receitas novas
e preciso de uma opinião con ável.
Ela agradeceu, e servi uma xícara de café para acompanhar o biscoito.
– É de laranja com pistache. Pode ser uma boa mergulhar no café –
sugeri, empurrando a xícara em sua direção.
– Eu nem con o em quem não faz isso – comentou ela.
– E é por isso que eu quero a sua opinião – respondi, com uma
piscadela.
Depois de aproximar o biscoito do nariz para sentir o cheiro, ela o
observou de todos os ângulos, e vi que estava analisando a proporção entre
pistaches e tirinhas de casca de laranja. Às vezes, quando peço a avaliação de
alguém sobre algo que preparei, a pessoa devora a prova em dois segundos e
diz: “Está ótimo!” É sempre prazeroso ouvir, é óbvio, mas não ajuda muito
para que eu avance nas minhas criações. Essa garçonete era diferente, sabia
o que estava fazendo. Primeiro deu uma mordida no biscoito seco,
mastigando devagar; em seguida, mergulhou-o no café e deu mais uma
mordida. Então se virou para mim, passando a língua sobre os dentes,
pensativa.
– Acho que a laranja podia estar um pouco mais forte, mas a massa está
perfeita, crocante, uma delícia de mergulhar no café, mas sem quebrar os
dentes se você preferir comer puro, como acontece com alguns cantucci.
Diria que tem que entrar no cardápio.
Feliz dos sapatos de borracha à cabeça – como todos os padeiros se
sentem quando são elogiados por algo que prepararam –, devolvi a garrafa
térmica de café à base e fui pegar o pedido que ela tinha ido buscar. Ela
agradeceu o brinde, e nos despedimos dizendo “Até amanhã!” enquanto ela
ia embora para cuidar dos fregueses da lanchonete.
Nas horas seguintes, o uxo de clientes foi constante. Alguns eram
frequentadores antigos cujos pedidos já sabíamos de cor, outros eram rostos
novos que examinavam bastante as prateleiras, mordendo os lábios e
pedindo recomendações. Preparamos jarras e jarras de café, embalamos
dezenas de donuts em caixas de papel amarradas com barbante, servimos
pratinhos e mais pratinhos de muffins e bagels e scones. Servimos pretzels
salgados em saquinhos de papel, brioches e focaccias em caixas para viagem
que entregamos a mãos ansiosas. Cortamos alguns pães em fatias que
guardamos para os sanduíches da tarde. As tortas eram escolhidas depois de
muita re exão; os bolos de aniversário tinham nomes escritos na cobertura.
Íamos limpando as migalhas nas mesas e no balcão e, a partir de certo
momento, fomos obrigados a dar a triste notícia de que não tínhamos mais
disso ou daquilo.
Com o dia se aproximando do m e o sininho tocando cada vez menos,
peguei alguns dos livros de receitas na estante do escritório e me servi de
uma xícara de café novinho. Num canto do balcão em que o sol estava
batendo, explorei as páginas do livro mais velho do que eu, cheias de
manchas, bordas amassadas e anotações. Tinha sido um presente do padeiro
que inaugurou aquela padaria – comprei a loja dele quando se aposentou.
Era um homem gentil, com uma voz suave e farinha nas sobrancelhas.
Lembro-me de quando, numa das visitas diárias à sua padaria para comprar
pão, comentei que sempre conseguia identi car os pães e os doces que ele
fazia, pois tinham certo sabor que era uma espécie de assinatura. Ele sorriu,
apoiou os braços no balcão e, depois de olhar para os lados para se assegurar
de que ninguém mais ouviria o segredo que contaria a seguir, sussurrou:
“Farinha de Graham.” Ficamos amigos a partir daí, e pouco tempo depois
fui trabalhar para ele.
Como o estômago começou a reclamar enquanto eu lia as receitas,
peguei uma baguete na vitrine do balcão e tirei um bom pedaço, que abri na
metade. Tínhamos uma garrafa de um azeite jovem e frutado, daquele tipo
que você sente no fundo da garganta; derramei um o sobre o pão. Na
geladeira, encontrei um vidro de alcachofras e outro de alcaparras, e na
despensa um pote com tomates secos. Arrumei os ingredientes um por um
sobre o pão com azeite, moí pimenta-do-reino por cima e levei o prato para
o lugarzinho ensolarado no balcão.
O lanche estava delicioso, e apreciei com orgulho cada mordida
enquanto conferia mais receitas de cantucci. Tirei uma caneta do bolso e
escrevi: “Mais gosto de laranja... Talvez acrescentando geleia?” O próximo
sabor era chocolate com avelã, e depois algum outro para a primavera.
Morango com ruibarbo? Levando a xícara de café, andei até onde tinha
parado por alguns instantes naquela manhã, diante da vitrine, e desvirei a
plaquinha. Olhei para um lado e para o outro da rua. Sábado era o meu dia
preferido.
Bons sonhos.
Primavera na horta comunitária
Alguns dias depois, quando estava tomando café com uma amiga na cozinha de
casa, contei a ela sobre o pan eto, e bolamos um plano. Nosso conhecimento de
jardinagem era mínimo, mas tínhamos algumas ferramentas antigas, além da
ambição de nos tornarmos especialistas no assunto – concluímos que o entusiasmo
seria su ciente para compensar a falta de experiência. Dividimos as tarefas: ela iria
à biblioteca para pegar livros que pudessem nos ajudar a escolher o que plantar no
primeiro ano; eu teria uma boa conversa com meu avô, especialista no ramo, e
pediria emprestado seu almanaque e seus catálogos de sementes. Tanto eu como ela
iríamos atrás de luvas, pás, ancinhos e tesouras de poda.
Logo tínhamos uma pilha de livros e recortes de revistas entre as páginas,
tabelas com o que pretendíamos plantar, quando e onde, uma cesta com todas as
ferramentas de que precisaríamos, galochas e pacotinhos de sementes.
Combinamos de nos encontrar sábado de manhã na horta comunitária para
começar a encher nosso canteiro.
O dia estava quente e ensolarado. Ao sair do carro, senti o cheiro agradável de
terra que acabou de ser cultivada. Depois de encontrar nosso lote e usar estacas e
barbante para demarcá-lo, cumprimentamos vizinhos, prendemos o cabelo com
bandanas e nos lançamos ao trabalho.
O solo estava fofo, mas ainda precisava ser aplainado, e usamos as mãos e as
enxadas para desfazer alguns torrões de terra. Em seguida, consultando as tabelas,
repartimos o pequeno terreno. Aqui vamos plantar as ervas: manjericão, orégano,
lavanda, alecrim, sálvia e tomilho. Ali, a vagem, o feijão-da-espanha e o alface, e ali
os tomates. Lá no fundo vão car as leiras de milho doce, abobrinha e pepino,
alguns repolhos e cabeças de brócolis e, depois deles, um pequeno canteiro de
batatas. Estávamos com medo das batatas – parecia bem difícil plantá-las. Porém,
tínhamos lido bastante sobre elas, e suas sementes, guardadas num potinho,
estavam prontas para serem colocadas na terra. Cultivar um vegetal é sempre uma
aposta, pensei, um ato de fé em que se con a que a chuva vai cair, o sol vai aparecer
e os processos naturais das células das mudas e das sementes vão ser ativados e
pulular. Mas a aposta parecia digna da nossa fé, e começamos a cavar sulcos,
espalhando as sementes e as mudas e pressionando com os dedos a terra em volta
de cada uma delas.
A manhã quase chegava ao m, e já não estávamos mais de casaco. Os rostos
estavam sujos de terra. Ao me levantar para alongar as costas, vi minha amiga
analisando o trabalho com as mãos na cintura.
– Pronta para um intervalo? – perguntei.
– Sim, por favor! – respondeu ela, pisando com cuidado na terra para chegar à
torneira.
Eu tinha levado uma cesta de comidas para o almoço, e fomos até a mesa de
piquenique para abri-la. Tiramos dela uma garrafa térmica de chá Earl Grey,
levemente adoçado e ainda quente. Os sanduíches que eu tinha feito estavam uma
bagunça – entre fatias grossas de pão sourdough, de fermentação natural,
umedecidas com mostarda picante, eu tinha colocado uma boa quantidade de uma
pastinha feita com grão-de-bico e abacate amassados e misturados a cubinhos de
pepino, tahine, endro, um pouquinho de suco de limão e bastante sal e pimenta.
Ainda coroei tudo isso com alguns brotos de folhas e fatias de tomate antes de
fechar os sanduíches e embrulhá-los em panos de prato. Por último, eu tinha posto
na cesta algumas maçãs e uma travessa de barrinhas de tâmara com cardamomo
que havia preparado.
Era mais comida do que seríamos capazes de comer, mas pensei em usar as
sobras para fazer novas amizades. Por sinal, poucos minutos depois de começarmos
a almoçar, um casal de um lote vizinho que também carregava uma cesta se sentou
à nossa mesa. Conversamos sobre as sementes enquanto comíamos e os dois lhos
deles brincavam de correr no sol. De vez em quando, as crianças vinham até a mesa
e davam uma mordida num sanduíche ou numa fruta, voltando correndo para a
brincadeira em seguida. Seus pais cultivavam uma horta ali fazia muitos anos e
prometeram que nos dariam dicas à medida que a estação fosse avançando.
O casal nos ofereceu um pouco de limonada e aceitou sorridente algumas
barrinhas de tâmara. Depois, voltamos todos ao trabalho. No m da tarde, quando
começamos a guardar as ferramentas, nosso pequeno lote já havia se transformado
numa linda horta, com leiras impecáveis de montinhos de terra – recheados de
sementes que logo começariam a brotar – e de plantas espaçadas que ao nal do
verão precisariam da ajuda de grades, estacas e barbantes para se manterem em pé.
Admiramos com orgulho a obra.
– Vamos ter legumes para dar e vender daqui a alguns meses – disse minha
amiga.
– Acho que é melhor aprendermos a fazer conservas – falei, rindo. – Pode ser a
próxima aventura.
Bons sonhos.
SANDUÍCHE DE GRÃO-DE-BICO E ABACATE
PARA 4 SANDUÍCHES
RECHEIO DE GRÃO-DE-BICO
1 lata (400g) de grão-de-bico escorrido e enxaguado
½ xícara de picles de pepino cortado em cubinhos
½ xícara de pepino fresco cortado em cubinhos
1 colher (sopa) de endro fresco bem picado, ou 1 colher (chá) de endro seco
½ abacate cortado em fatias
2 colheres (sopa) de suco de limão siciliano
1 colher (sopa) de tahine
sal e pimenta-do-reino a gosto
PARA SERVIR
8 fatias de pão sourdough ou outro pão de sua preferência
4 colheres (sopa) de mostarda picante
4 punhados de brotos, como de alfafa ou de brócolis
fatias de tomate a gosto
É uma distinção com a qual muitos talvez não concordem, mas pelo que já vi
chalés são na oresta e cabanas, à beira d’água.
Um chalé pode car numa clareira sombria, cercado de pinheiros enormes ou
carvalhos idosos com galhos retorcidos. Pode ter paredes de madeira escura e uma
lareira para aquecer os pés com meias grossas. É o melhor lugar para estar numa
manhã enevoada de outono ou durante a primeira queda de neve do ano, com uma
xícara na mão e olhos xos na paisagem cada vez mais encoberta.
Uma cabana, por sua vez, ca às margens de um rio ou à beira de um grande
lago. Suas paredes são pintadas de branco ou de um tom desbotado de amarelo;
seus vizinhos são salgueiros-chorões, as primeiras árvores a se tornarem verdes no
início da primavera. É o melhor lugar para estar numa tarde no ápice dos meses
quentes, com um copo de chá gelado e olhos a admirar a água corrente.
H
á somente alguns dias na primavera em que é possível sair de casa e,
depois de uma brisa suave, sentir o cheiro de lilases.
Uma boa tática é rmar os pés no chão e respirar bem fundo seu
perfume, doce e intenso, para tentar guardar na memória esse prazer até o
ano seguinte.
Lembro-me de, quando criança, encostar o rosto em suas ores macias
e, com as bochechas úmidas de orvalho, me perguntar como era possível
que algo fosse tão cheiroso e tão vistoso, e crescesse de forma tão abundante,
e ainda fosse... permitido. Parecia bom demais, perfeitamente alinhado com
tudo que é agradável, para crescer de maneira natural. Mas os lilases têm um
senão. Florescem uma vez no ano e têm vida curta. O melhor a fazer é
apreciá-los no pé: quando são cortados e levados para casa, murcham
rápido, secam e, óbvio, perdem o delicioso perfume.
Ainda que eu soubesse de tudo isso, queria tê-los à minha volta durante
toda primavera, pelo tempo que fosse possível, e isso quer dizer que eu
precisaria tomar uma providência, mesmo que ela envolvesse uma pequena
transgressão. Eu roubo lilases, sabe? Os roubos não são impulsivos, muito
menos espalhafatosos – às vezes nem são notados. Sou como um ladrão
ardiloso: planejo com todo o cuidado os detalhes do crime e fujo antes que
alguém possa me agrar. Caminhando pelo bairro, eu poderia estender
casualmente a mão na direção de uma or que despontasse entre as ripas de
uma cerca e depois en á-la numa caixa de correio para que alguém a
encontrasse mais tarde. Mas não sou ingênua a ponto de praticar um furto
como esse tão perto de casa.
Para isso, equipei o carro com ferramentas (uma cesta de vime, luvas de
jardinagem e um pequeno conjunto de tesouras de poda), vesti uma roupa
discreta e rumei para o campo. Numa estradinha de terra, havia uma antiga
fazenda abandonada fazia muitos anos e que eu conhecia bem. Eu havia
estudado o lugar anos antes e ido embora com a convicção de que a casa
estava vazia e o jardim, repleto de arbustos de lilás. Parei o carro na entrada
da estradinha, para não levantar suspeitas. Se alguém me perguntasse, eu
poderia dizer que o carro tinha enguiçado e que, enquanto o motor esfriava
um pouco, eu tinha descido para aspirar o perfume das rosas. Como fazem
os mestres do crime, dei uma risadinha ao pegar as ferramentas no banco de
trás, para então percorrer o longo e poeirento caminho que levava até a
antiga casa.
Com o sol no rosto, parei e tentei imaginar por um momento as pessoas
que tinham vivido ali. Vi crianças correndo nas plantações de hortaliças e os
cachorros indo atrás delas, velas de estrelinha no Dia da Independência,
uma cozinha com dezenas de potes de picles fresquinhos descansando em
panos de algodão, uma árvore plantada cem anos atrás para celebrar um dia
especial e que se transformara na enorme árvore que eu estava vendo agora.
A casa era rodeada por uma varanda ampla, e apesar dos degraus com falhas
na escada e da tinta desbotada e descascada nas paredes, percebia-se que um
dia fora um lugar querido por seus donos.
Depois de usar o olfato para chegar até os volumosos pés de lilás, calcei
as luvas e abri a caixa de tesouras. As ores estavam exuberantes, tão
pesadas que os galhos pendiam. Largando a cesta no chão, comecei a aliviá-
los daquele fardo. Fiz isso sem pressa, sentindo bem o perfume no ar,
apreciando as ores pequenas e esperando pelas abelhas, que trocavam de
or a todo instante. Mesmo depois de eu encher a cesta até quase
transbordar, os arbustos ainda pareciam tão recheados de ores quanto no
início. Percorri depressa o caminho de volta e, com um olhar furtivo para
um lado e para o outro da estrada, en ei o contrabando no carro e fugi.
Aquela história de roubar havia me deixado com sede, e eu mal podia
esperar para tomar o café gelado de um pequeno estabelecimento que cava
perto de casa. Resolvi levar as ores comigo. Consegui uma pequena mesa
do lado de fora e, depois de acomodar a cesta na cadeira ao lado, pedi um
café com um toque de leite de coco. Amarrando-os com pedaços de
barbante, z pequenos buquês com os lilases – alguns seriam para mim,
outros eu deixaria na porta de amigos.
– Você roubou esses lilases? – ouvi uma voz atrás de mim.
Ao me virar, vi um senhor idoso de cabelo grisalho e olhos brilhantes
me olhando por cima do copo de café.
– Que lilases? – perguntei, ngindo inocência.
Ele deu uma piscadela para mim e encostou o dedo na lateral do nariz.
– Os iguais se reconhecem.
Soltei uma gargalhada e lhe estendi um dos buquês. Ele en ou o rosto
nele e aspirou o perfume, soltando um suspiro contente.
Conversamos por alguns minutos sobre nossos locais preferidos. Ele me
falou de um lugar perto da autoestrada, e eu lhe contei de um arbusto atrás
da biblioteca. Ele ergueu o ramo de ores em agradecimento, e eu fui
embora com a cesta para dividir o restante da mercadoria roubada entre
amigos e desconhecidos no caminho de casa.
Bons sonhos.
Uma surpresa
A
s crianças nascem acreditando em mágica.
Eu, mesmo depois de crescer, continuei acreditando. Os adultos
tentavam me dizer que mágica não existe, só acontece nas histórias,
mas eu enxergava tantas evidências do contrário que tinha a impressão de
que eles estavam tentando convencer a si mesmos. A nal, como explicar as
vezes em que você colocava o dedo na saída de moedas de um telefone
público e encontrava 50 centavos? E quando abre um livro na página certa,
seus olhos pousando bem naquela palavra ou ilustração em que você havia
parado? E aquela pedra que você encontra no chão e que se encaixa
perfeitamente na palma da mão? Se mágica não existe, o que dizer dos vaga-
lumes?
Eu esperava por eles nas noites de verão, espreitando a escuridão da
varanda dos fundos ou da janela do meu quarto. Quando chegavam, eu
achava que tinham vindo por minha causa. Será que tínhamos como
conversar – eles com sua linguagem de piscadas cintilantes, eu com a minha
de admiração silenciosa? Eu pisava na grama úmida, observava e esperava.
Nunca tentava aprisioná-los em potes, sabendo já naquela época que
ninguém gosta de ser enclausurado. Em vez disso, estendia a mão para ver
se um deles queria pousar nela por alguns instantes. E quando um fazia isso,
piscando para mim durante um minuto ou às vezes até mais, eu me
perguntava: “Se isso não é mágica, então o quê é?”
Mesmo depois de adulta, mantive a crença em mágica. Ainda a vejo em
toda parte. O que dizer de quando seus olhos encontram os de um estranho
que passa num ônibus e os olhares permanecem enlaçados até vocês se
perderem de vista? E de quando, num dia frio e chuvoso, você chega ao seu
restaurante predileto e ca sabendo que só há mais uma porção da comida
com a qual estava sonhando? E quando você descobre que o ferro no seu
sangue surgiu no interior de uma estrela antes mesmo de a Terra existir?
Alguma vez você já pulou num lago num dia quente de verão e, cercado de
água, se esqueceu de todos os outros momentos da vida? Vá em frente,
continue a dizer que mágica só acontece nos livros.
Como aquela era justamente a noite em que as árvores cavam repletas
de vaga-lumes, resolvi ir em busca deles. Calcei sandálias e saí, tentando não
fazer barulho. Onde procurar? No jardim? Nas árvores atrás do galpão?
Não... no parque. “Hoje eles vão estar no parque”, pensei. Na rua, o ar ainda
estava quente do sol de poucas horas antes. Algumas das casas estavam com
as luzes acesas, e eu podia avistar uma cabeça ou o pedaço de um livro
iluminado por um abajur; outras estavam escuras e silenciosas, todos já
deitados. Dias ensolarados são ideais para uma boa noite de sono. Em
algumas varandas, cachorros dormiam em tábuas ainda mornas, os donos
apreciando a noite em cadeiras de balanço. Cumprimentei a todos,
acenando e retribuindo o boa-noite baixinho.
No parque, caminhei sem pressa, sorrindo para a senhora sentada num
banco com o cachorro cinza e desviando um pouco a rota para dar
privacidade ao casal abraçado ao lado do chafariz. En m, cheguei ao
pequeno lago. Sentei-me num banco que cava no nal do píer, próximo à
água. Na brisa fresquinha da noite, era possível ouvir o barulho dos sapos e
o zumbido dos insetos.
Logo os avistei, luzindo ao redor de hastes de hostas e dos troncos de
bordos altos. Levantei-me e fui até a borda do píer, apoiando os braços sobre
a cerca de madeira. Eles brilhavam, tremeluziam. Você já percebeu quantos
verbos encantadores existem para descrever os efeitos da luz? Cintilar,
chamejar, coruscar. Fulgurar, luzir, resplandecer e – talvez o meu preferido –
dardejar. Fazia algumas horas que o sol não dardejava. O lago estava imerso
na escuridão. Com o queixo apoiado nas mãos, observei os vaga-lumes.
Uma vez ouvi falar que em certos trechos do Nilo eles recobrem a paisagem
por mais de um quilômetro e piscam em uníssono. Imagine como deve car
iluminada, e em seguida escura, e como deve parecer que os vaga-lumes
estão se comunicando. Chamam isso de emergência – quando a ordem
emerge do caos. Talvez seja outra maneira de dizer mágica.
Passados alguns minutos, dei início ao percurso de volta, deixando para
trás o píer de madeira, o chafariz, os bancos e os caminhos circulares do
parque. Logo estava caminhando mais uma vez pelas ruas do meu bairro.
No quintal de uma casa vizinha, vi um grupo de amigos rindo e contando
histórias ao redor de uma fogueira. Em outra noite eu poderia me juntar a
eles, mas naquele momento estava feliz em car só, em sorrir enquanto
escutava suas vozes animadas no caminho para a minha casa tranquila.
Cruzei o portão da frente e me sentei na varanda. A noite estava limpa e
repleta de estrelas, e dava até mesmo para ver Marte. Eu sabia que dali a
pouco, uma hora da manhã, isso deixaria de ser possível, mas que logo
depois Júpiter e Saturno apareceriam. Então, quando o dia estivesse prestes a
raiar, brilhariam Vênus e, um pouquinho atrás, Mercúrio. Os planetas iam e
vinham sem precisar da minha ajuda. Pensei nos lençóis macios, no
travesseiro refrescado e perfumado pela noite em movimento, e resolvi me
levantar e entrar em casa. Ao trancar a porta, respirei fundo e devagar. Meu
próximo passo seria dormir e sonhar. Mais mágica.
Bons sonhos.
Um lugar que mais ninguém conhece
Q
uando eu era adolescente, tinha fascínio pelo romantismo das noites
de verão.
Enquanto descia com pressa os degraus da frente de casa,
pensava: “Essa noite tudo pode acontecer.” Em geral, não acontecia nada de
mais. Eu e meus amigos passávamos outra noite bebendo café numa
lanchonete, vendo um lme no cinema ou ouvindo música no carro de
alguém no estacionamento do parque. Mesmo assim, eu nunca deixava de
sentir que as noites de verão guardavam uma dose extra de possibilidades
mágicas. Tem a ver com o ar quente, que nos deixa mais corajosos. O
inverno nos mantém em casa, protegidos, descansados. O verão nos tira de
lá. “Vá conhecer alguém, fazer um amigo, descobrir uma coisa nova”, chama
ele.
A sensação continuou depois que cresci. Naquela noite, por pouco não
decidi car em casa. Estava lavando meu prato depois do jantar (massa com
azeite, os primeiros tomates-cereja da estação e um punhado de ervas da
jardineira da janela) e olhando a noite lá fora. Pensei em continuar
desenhando no caderno e ouvindo música – eram distrações perfeitas para
mim. No entanto, o vento mudou de repente de direção, e senti uma brisa
no rosto. A cozinha se encheu do cheiro da noite de verão, e pressenti o
mesmo chamado de quando eu tinha 15 anos. “Venha para a rua... Venha
ver... Você pode ter uma surpresa.”
Alguns minutos depois, eu estava passeando de bicicleta pela
vizinhança. Tinha sido um dia quente, e o vento que soprava me refrescou
de uma forma deliciosa. Eu não sabia aonde estava indo, apenas continuei a
pedalar. Fiquei em pé sobre os pedais para subir uma ladeira, e em seguida a
desci quase planando. Passeei pelo bairro de antigas casas vitorianas, dando
uma espiada entre os portões de ferro trabalhado. Alguns escondiam jardins
ingleses impecavelmente cuidados, com leiras simétricas de delfínios
oridos. Vi mato crescendo solto e tomando conta de propriedades
abandonadas. Gostava mais dos lugares abandonados. Pareciam cheios de
segredos e histórias.
Pedalei até o centro da cidade, onde havia cafés movimentados em quase
todas as esquinas. As pessoas comiam, bebiam, contavam histórias. Ao
parar num sinal vermelho, observei um casal que estava dividindo um prato.
Imaginei que deveria ser o primeiro encontro. Eles pareciam um pouco
hesitantes, lançando a todo momento olhares rápidos um para o outro antes
de dar sorrisos sinceros. “Talvez seja o segundo encontro”, pensei. Pedalei
até o parque e prendi a bicicleta junto ao quiosque de livros, fechado àquela
hora. Comprei uma raspadinha de limão de um ambulante e me sentei num
banco por alguns minutos.
Havia uma memória agradável guardada, algo relacionado ao parque.
Talvez tenha sido a raspadinha de limão que a despertou. Será que tínhamos
comprado uma naquela noite? Semicerrei os olhos: era o auge do verão, as
cigarras cantavam. Estacionamos as bicicletas ao lado do chafariz.
Tendo decidido explorar melhor aquela memória, eu me levantei do
banco e joguei o copinho vazio na lixeira de recicláveis. Segui até um
caminho nos fundos do parque, sentindo que ele me chamava. Estreito, a
princípio era coberto de cascalho, mas logo dava lugar a lascas de madeira e,
a seguir, areia úmida.
Tínhamos estado ali depois de descobri-lo por acaso. Ele conduzia a
uma clareira ampla, coberta de grama, e era delimitado num dos lados por
uma aleia alta de buxeiros. Os galhos formavam um paredão verde que
parecia indicar o m do parque, mas... não. Havia um buraco, quase
invisível na penumbra e pouco mais largo que meus ombros, por onde era
possível passar e... sim. Ali estava.
Naquela noite, tínhamos descoberto um jardim secreto. De olhos
arregalados, começamos a rir com euforia. Achávamos ter encontrado um
lugar que nunca havia sido visto por ninguém. Não é assim quando somos
jovens? Estamos sempre descobrindo ou inventando coisas. Como se
ninguém jamais tivesse se apaixonado ou tido o coração partido como nós,
ou passado por um milhão de outras circunstâncias que fazem parte do
processo de amadurecer e nos tornar quem somos.
Examinei o laguinho de pedra levemente esverdeado que se estendia ao
longo da leira de árvores, um banco coberto de musgo num dos cantos e a
velha estátua de uma mulher, quase totalmente coberta por trás da hera.
Meu coração batia um pouco mais rápido com essas lembranças. A
princípio parecíamos o casal na mesa do café, hesitantes e com um pouco de
vergonha. Mas não éramos páreo para o poder de uma noite de verão – foi
ela que acabou derrotando nossa timidez. Fui eu que z o primeiro
movimento? Que me inclinei? Ou foi...? Hum...
Pedalei pelo caminho de volta com a sensação de prazer por ter
recuperado aquela memória. Estava contente de ter saído de casa. Numa
noite de verão, tudo pode acontecer. Eu podia reencontrar o caminho para
um lugar esquecido, um lugar que mais ninguém conhecia.
Bons sonhos.
Um show no parque
E
ra um dia de sol no meio da semana, em pleno verão.
Eu havia passado alguns minutos no quintal depois de chegar do
trabalho, colhendo lírios-tigres que havia colocado num vaso sobre a
mesinha em frente à entrada de casa – menos um, que pus num vaso de
vidro e deixei na mesa de cabeceira. Uma pessoa amada costumava fazer
isso para mim sempre – um vaso de ores na mesinha, uma or ao lado da
cama –, e eu achava aquilo tão romântico e amável que mantive o costume
desde então. Romance e amor são sempre importantes, mesmo quando
estamos sozinhos.
Peguei na geladeira um copo de chá gelado e, pela janela da cozinha,
olhei os carros passando na rua. Os pensamentos se perderam em devaneios
enquanto eu observava o tráfego. Um carro seguindo em frente, outro
virando, e quei me perguntando aonde eles estariam indo naquela tarde
gostosa de verão. Tive uma daquelas percepções repentinas que às vezes se
revelam quando nos colocamos no lugar dos outros: todas as pessoas são
protagonistas de suas histórias, nas quais entramos e saímos de cena como
coadjuvantes ou gurantes, mas, no m, só conhecemos de verdade a nossa
própria.
Apoiei o copo na bancada, e meus olhos recaíram sobre o calendário
preso com um ímã à lateral da geladeira. Eu havia escrito semanas antes no
espaço daquele dia: “Show no parque! 18 horas.” Olhei o relógio, e faltavam
somente 15 minutos – era o tempo que eu levaria para caminhar até a
cidade e achar um bom lugar para me sentar.
Peguei a bolsa, amarrei os sapatos e saí num passo apressado em direção
ao parque. Era uma sensação boa a de caminhar depressa com a brisa
quente do verão soprando na minha pele. Fui olhando os quintais no
caminho, reparando nos diferentes tipos de grama, ores e plantas folhosas.
Numa esquina próxima ao parque, uma casa antiga tinha vasos de pedra
imensos em cada lado da entrada; parei para observar as orelhas-de-elefante
com seus caules magros de quase dois metros de altura. As folhas macias e
cheias de veias coloridas tinham o formato de echas e eram absurdamente
grandes. Eu queria ver o tamanho delas quando setembro chegasse.
Passei pelo lago e avancei um pouco mais até encontrar um espaço em
forma de concha abaixo do nível do chão, com arquibancadas e um palco
protegido por uma cobertura de ripas de madeira adornadas com
trepadeiras.
A banda já estava tocando – um quarteto de jazz com bateria,
contrabaixo, piano e saxofone. O lugar estava cheio de gente, uma
combinação de pessoas sozinhas, famílias e casais que, como eu, tinham
vindo porque já sabiam do show com outras que tinham ouvido a música
por acaso ao sair do trabalho e foram aproveitar o espetáculo. Apoiei as
costas contra a pedra gelada do encosto e fechei os olhos para escutar. A
música seguia caminhos conhecidos de que eu me lembrava dos discos de
jazz antigos ouvidos desde a infância, mas em seguida mudava de rumo,
introduzindo temas e ritmos estranhos, para depois voltar à forma anterior e
mudar de rumo mais uma vez. Olhei para o palco e quei observando o
pianista e o saxofonista. Eles se olhavam, volta e meia balançando a cabeça,
como se dissessem: “Isso, ótima ideia, vamos seguir nesse ritmo.” Às vezes,
um deles dava risada, e eu percebia que o outro havia acabado de contar
uma piada musical. Eles conversavam numa linguagem desconhecida para
mim; eu não era capaz de traduzi-la, mas o que escutava era bem bonito.
Observei um garotinho algumas leiras à minha frente. Ele estava
assistindo à contrabaixista deslizar a mão pelo braço do instrumento, para
cima e para baixo, pressionando as cordas com dedos fortes e con antes.
Quando o saxofone soou mais alto e a melodia espiralou no ar, ela girou o
contrabaixo sobre o espigão e o segurou de novo a tempo de dar
continuidade ao ritmo. O menino batia palmas e balançava as pernas
seguindo o compasso da música.
Lembrei que alguns anos antes, em outro tipo de espetáculo, eu tinha
sentido algo bastante parecido. O lugar era um teatro antigo e espaçoso, com
assentos de madeira que rangiam e um teto coberto de murais simétricos,
emoldurados, de mais de um século de idade. Sabendo que eu estava
sonhando em ir àquele concerto, uma amiga havia conseguido uma entrada.
O lugar era bem no centro da primeira leira, e eu quase podia encostar no
violoncelista enquanto ele entrava no palco e se sentava com o instrumento.
Eu já esperava que fosse car encantada com a música, que a acústica da sala
fosse me deixar de queixo caído. O que não havia previsto foram as lágrimas
que deixei cair, a sensação de perder o fôlego, a maneira como eu mal
conseguia acompanhar as notas à medida que elas atravessavam meu peito.
Pus a mão no peito, respirei fundo e mantive o olhar xo no músico, para
não quebrar o encanto. Eu nunca tivera uma experiência igual àquela.
Aquele homem não estava só falando uma linguagem que eu não conhecia –
ele mesmo parecia ter vindo de outro planeta para nos mostrar como é a
linguagem do outro lado do universo.
Nem todo mundo é capaz de tocar daquela forma – cada geração tem
uns poucos músicos que são –, mas isso não diminuía em nada o prazer
daquele show despretensioso no parque ou o poder que uma sequência de
acordes tem de pôr m aos pensamentos e nos fazer presentes. Na
vizinhança, havia uma pessoa que tocava clarinete. De vez em quando,
enquanto caminhava, eu ouvia a música saindo de uma janela aberta no
segundo andar da casa. Alguns trechos soavam um pouco hesitantes, e às
vezes ouvia-se um ruído estridente, mas parecia que o instrumentista era
paciente e obstinado, e ouvi-lo tocar sempre me deixava feliz. Eu lembrava a
época em que tocava na banda do colégio; costumava brincar que o meu
instrumento era a oitava auta, ainda que houvesse só cinco na banda. A
verdade é que desisti por não ter conseguido aprender rapidamente. Com a
minha imaturidade da época, eu achava que se não fosse estar entre os
melhores não queria nem mesmo tentar. Tolices da juventude. Fiquei feliz
em perceber que os anos haviam passado e me trazido sabedoria, e que
agora eu era capaz de entender que não precisava estar entre os melhores e
que não faltavam diversão, aprendizado e propósito na simples ação de tocar
um instrumento.
Torci para que o garotinho que batia palmas e remexia as pernas fosse
mais sábio do que eu quando chegasse a sua vez de tocar na banda do
colégio. Pensei também que todos têm uma jornada de aprendizado única.
Todos têm uma história para contar.
Bons sonhos.
Noites de verão
N
adamos o dia inteiro.
Corremos pelo deque, os pés molhados fazendo ranger as tábuas
desbotadas de sol, e mergulhamos no lago uma e outra vez. Demos voltas
em caiaques e em stand up paddles. Boiamos com preguiça em pneus, só os dedos
mergulhados na água. Trocamos ideias. Cantamos junto com o rádio e contamos
piadas, rindo à beça. Então nos deitamos em espreguiçadeiras, colocamos chapéus
de palha sobre o rosto, nos espreguiçamos e pegamos no sono debaixo do sol
quente do verão. Depois de acordar, pegamos bebidas geladas no cooler, comemos
tortilhas com salsa mexicana e pulamos de novo no lago, espirrando água sobre
livros e revistas.
Quando o sol começou a baixar, vestimos nossos shorts e camisetas sem manga
sobre as roupas de banho e voltamos para casa para preparar o banquete de verão
que tínhamos planejado para o jantar. Naquela semana, a horta andava exuberante
e as barracas da feira, irresistíveis; por isso, a casa estava cheia de frutas e legumes
fresquinhos. Con amos duas dúzias de espigas de milho a alguns integrantes da
turma, que as levaram para a varanda dos fundos para descascá-las. Acendemos a
churrasqueira e, sobre a grelha, acomodamos batatinhas e fatias de berinjela e de
abóbora, já temperadas. Depois de dourarem um pouco, pusemos também
cogumelos portobello, que zeram o fogo estalar.
Minha avó italiana me ensinou que na estação em que os legumes estão bem
viçosos – como os nossos estavam –, devemos temperá-los somente com um bom
azeite, alho, um pouco de sal e uma ou outra erva. Como tínhamos colhido uma
tigela imensa de vagem naquela manhã, transformei-a numa insalata di fagiolini, ou
salada de vagem, seguindo a receita da minha avó – com bastante hortelã fresca e
um toque de vinagre. Quando os legumes caram prontos, cortei fatias grossas de
pelo menos dois pães e as coloquei na grelha para tostar. Abacates maduros
esperavam para acompanhá-las, e parti todos ao meio com cuidado. Sabe aquela
sensação deliciosa de cortar e separar as metades de um abacate tendo certeza,
antes mesmo de olhar, de que o interior está perfeitamente maduro – verdinho,
macio e sem qualquer machucado? Desfrutei desse prazer inúmeras vezes e então
coloquei generosas colheradas da polpa amassada nas torradas, que agora estavam
dispostas numa travessa. Pinguei um pouco de pimenta sobre algumas delas,
temperando as outras apenas com boas pitadas de sal e pimenta-do-reino.
Enquanto todos se sentavam, coloquei as travessas de torradas e os pratos da
salada azedinha de vagem no centro da mesa. Havia também legumes grelhados,
saladas de folhas, milho doce cozido e potes de homus, vinagrete e pesto.
Falávamos ao mesmo tempo, passávamos travessas de um lado para outro da mesa,
provávamos os pratos um dos outros. Copos de água gelada eram servidos, latinhas
de cerveja retiradas do cooler, garrafas de prosecco e vinho rosé abertas. Isso tudo
sem pararmos de comer. Quando o sol ia se pondo atrás das árvores, afastamos
satisfeitos os pratos, mas continuamos conversando à mesa, com velas de citronela
acesas para espantar os insetos. Alguém veio da cozinha com tigelas de frutas
silvestres e uma torta recém-saída do forno. “Não!”, exclamamos. “Não aguentamos
mais.” Mas demos um jeitinho e, óbvio, experimentamos a sobremesa.
Levamos a louça para dentro, e uma pessoa gentil começou a lavá-la. Outra
começou a secar. Ligamos o rádio e, enquanto cantávamos, limpamos e ajeitamos
as bancadas da cozinha. Dei uma escapulida para o quarto e vesti uma calça de
moletom antiga e um casaco quentinho com capuz. A pele do meu corpo estava um
pouco queimada do sol, mas ao mesmo tempo geladinha, e a sensação de vestir
roupas novas foi fantástica. Lavei o rosto, passei hidratante nos lábios, calcei
chinelos e voltei para o lado de fora.
Uma fogueira havia sido acesa, e as cadeiras estavam todas arrumadas ao redor.
Esticamos as pernas e observamos as estrelas que começavam a aparecer. Vaga-
lumes piscavam no mato, e uma brisa trouxe o cheiro de água para a mesa. Existe
uma sensação que é típica das noites de verão e que sentimos quando olhamos para
o céu e percebemos como o universo é antigo, como é grande, e como somos
pequenos e simples. Foi reconfortante lembrar que eu não era tão grande, e era
possível deixar de lado os rancores e as preocupações e aproveitar as pequenas
alegrias que pudesse ter. Observei meus amigos – todos rindo, conversando e
criando memórias juntos, o brilho do fogo re etindo-se em seus olhos. Eu me senti
contente de estar onde estava e feliz por ter a companhia deles.
Recostando a cabeça na cadeira de madeira, respirei bem fundo o ar noturno
do verão. Seria uma noite de sono profundo e tranquilo.
Bons sonhos.
QUATRO VERSÕES DE TORRADA
COM ABACATE
RENDE 2 FATIAS
Uma grande qualidade do abacate é que fica delicioso se preparado tanto de maneira
simples quanto mais incrementada. Ele pode ser um café da manhã rápido e gostoso
ou a estrela de um almoço ou jantar. Comece por uma boa fatia de pão, substanciosa
o bastante para acomodar aquele creme delicioso. Gosto muito de usar sourdough,
de fermentação natural, ou um pão de centeio cheio de sementes.
TORRADA SIMPLES
sal e pimenta-do-reino a gosto
Toste o pão.
Coloque metade do abacate em cada fatia de pão e amasse levemente com um
garfo.
Para preparar a torrada simples: salpique sal e pimenta em todo o abacate.
Para preparar a torrada com folhas: coloque a rúcula em uma tigela média.
Tempere-a com o azeite e o limão e misture até que esteja bem coberta. Divida as
folhas entre as fatias de pão, usando quantas quiser em cima do abacate.
Fora do caminho habitual
S
empre gostei de deixar as estradas principais e procurar por lugares
em que nunca tenha estado antes.
Talvez o que eu espere seja encontrar algo surpreendente,
descobrir uma ruína escondida entre árvores ou dar de cara com uma
cachoeira num lugar onde eu não tinha ideia de que existisse uma. Na
maioria das vezes, encontro mais árvores, mais campos e mais casas antigas
caindo aos pedaços em terrenos abandonados, mas até mesmo eles são
encantadores. Às vezes, vejo uma velha casinha de madeira ainda
preservada no alto de uma árvore. Gosto de pensar na criança que um dia
subiu pelas tábuas presas àquele tronco, que brincou de ngir que era adulta
naquele cantinho acolhedor, e gosto de me perguntar onde ela deve estar
agora. Será que de vez em quando ainda recorda o que sentia ao segurar a
madeira para trepar ali?
O dia estava perfeito para explorar lugares novos, com um céu azul e
uma brisa de verão agradável que fazia os cabelos voarem enquanto eu
dirigia. Parei num pequeno cruzamento e olhei para os dois lados de uma
estrada de terra. Virei à esquerda e ouvi o barulho de pedaços de cascalho
sendo lançados longe pelas rodas do carro. Como a estrada era bastante
acidentada, e como a todo momento esquilos a atravessavam correndo,
avancei devagar, parando aqui e ali para olhar com mais calma um campo
ou um trecho de mata. Ao fazer uma curva, freei abruptamente para que um
bando de perus pudesse atravessar, bicando pedrinhas no caminho.
Segui em frente sem ter ideia de onde estava indo, o que era parte da
graça. Não tinha obrigação de estar em nenhum lugar naquele momento –
logo, podia ir a qualquer um que quisesse. Quando as colinas se
transformaram em planícies, avistei ao longe alguns silos e, depois deles,
umas fazendas movimentadas em que tratores e debulhadoras se
deslocavam pelos campos.
Passando as plantações de milho e trigo, havia um trecho de terra
recoberto de roxo. Abri bem a janela para sentir o perfume delicioso de
lavanda fresquinha. Vi mais adiante uma entrada para a plantação, além de
uma placa que dizia que estava aberta a visitantes.
Nunca tinha visto tanta lavanda num só lugar: os pequenos arbustos,
distribuídos em leiras perfeitas, recobriam os dois lados da passagem e se
estendiam a perder de vista pelos campos à minha volta. Uma casa e um
estacionamento pequenos estavam cercados por eles. Deixei o carro com as
janelas abertas no estacionamento, torcendo para que um pouco daquele
perfume entranhasse no interior dele, e comecei a percorrer os estreitos
corredores entre as leiras de ores. De tempos em tempos, parava para
tocá-las e sentir as folhas miúdas, que se pareciam com as de alecrim. As
pétalas roxinhas deixaram um perfume fresco na minha pele, com traços de
hortelã, que me fazia lembrar o sabonete do meu banheiro, embora mil
vezes mais potente e encantador. Se eu fosse um médico de séculos atrás e
estivesse vendo aquela planta pela primeira vez, saberia imediatamente que
poderia usá-la como remédio.
Segui por um caminho de pedrinhas que cortava a plantação e descobri
algumas construções que podia explorar. Havia uma loja modesta montada
num antigo galpão, as prateleiras cheias de sabonetes artesanais e saquinhos
de ores secas. Nelas havia também pequenas garrafas de um óleo essencial
potente – que eles mesmos extraíam, me contou o vendedor, cheio de
orgulho – e frascos de água de lavanda para borrifar em roupas e lençóis,
além de velas recheadas de pedacinhos das ores. Enchi uma cesta pequena
com alguns produtos – entre eles uma garra nha do óleo – e paguei,
deixando o dinheiro dentro de uma velha lata que cava no balcão.
Apontando para o caminho, o vendedor sugeriu que eu seguisse em
frente por mais um tempo. Agradeci e aceitei o conselho. Logo adiante, um
outro galpão tinha as paredes tomadas por ramos de lavanda pendurados
para secar. Eles estavam sobrepostos, com os caules voltados para cima e as
ores para baixo, e deviam ser mais de centenas. O ar ali dentro era abafado
e dominado pelo cheiro forte; quei imóvel por alguns minutos enquanto
me deixava impregnar pelo perfume, sentindo o corpo relaxar enquanto o
inspirava, e me dei conta de que nunca tinha ido a um spa que cheirasse tão
bem. A modernidade é incapaz de recriar certas coisas que são produzidas
com a maior facilidade pela natureza.
Do lado de fora do galpão de secagem havia um alambique de cobre.
Agachada ao seu lado, uma mulher de cabelo grisalho estava prendendo um
tubo à caldeira do aparelho. Ela sorriu ao me ver e perguntou se eu sabia
como a colheita era transformada no óleo vendido na loja. Respondi que
não, mas que adoraria aprender. Depois de se livrar das luvas pesadas que
estava usando, ela apanhou algumas ores numa cesta; disse que as tinha
colhido aquela manhã, cortando o caule próximo à cabeça da or, e que esse
processo era essencial para conseguir um produto de boa qualidade.
Enquanto ela me contava um pouco da história da destilação e explicava que
o óleo era extraído das ores pela passagem lenta do vapor de água,
andamos ao redor do alambique e nos agachamos para ver o local em que
vapor e óleo eram separados e o óleo era recolhido num recipiente de vidro.
Imaginei que ela já devia ter dado aquelas explicações centenas ou milhares
de vezes, mas ainda assim parecia animada e orgulhosa por compartilhar os
segredos do processo. Quando terminou, fez um sinal com a cabeça,
indicando que havia mais descobertas na sequência do caminho.
Eu havia saído de casa pensando que veria os mesmos campos e orestas
de sempre, mas torcendo para deparar com algo inesperado. Na volta, re eti
sobre como é agradável ter uma surpresa, como é bom sair do roteiro
habitual.
Bons sonhos.
A carta e o envelope
T
ínhamos lido um livro, não lembro bem se no segundo ou terceiro
ano, que contava a história de uma amizade por correspondência
entre duas crianças, uma garota de Portugal e um menino do Japão.
Eles trocavam cartas em que contavam um ao outro sobre família, escola
e bichinhos de estimação. Uma ilustração mostrava os dois esperando pela
chegada da correspondência, cheios de ansiedade para receber notícias do
amigo que morava do outro lado do mundo. Aquela leitura criou na turma
uma pequena xação por cartas, e um dia a professora levou para a aula
uma lista com nomes e endereços de crianças na Polônia que gostariam de
ser nossas amigas por correspondência. Anotei o contato de uma menina
chamada Anna e pouco tempo depois enviei uma carta. Não lembro sobre o
que escrevemos, mas nunca vou me esquecer da euforia que senti ao
encontrar a resposta dela na caixa de correio, nem do envelope verde que ela
havia usado ou da letra engraçada dela. Eu me lembro do formato do
número quatro e de como os jotas e efes eram garranchudos.
Anna e eu acabamos perdendo contato em meio às responsabilidades
crescentes do ensino fundamental, mas continuei a escrever cartas para
amigos, colocando ores entre as folhas e desenhando árvores e pássaros
malfeitos no envelope. Às vezes era apenas um cartão-postal com uma
piadinha escrita em pouco mais de um segundo; outras, cartas que se
alongavam por páginas e páginas e precisavam de selos e pedaços adicionais
de ta adesiva. Eu guardava, amarrados com sobras de ta ou pedaços de
barbante, maços de cartas que havia recebido numa caixa espaçosa que
mantinha debaixo da cama. De vez em quando, em dias chuvosos,
desenterrava uma delas para relembrar o que havia conversado dez anos
antes.
Naquela manhã, estava pensando nas cartas embaixo da cama quando
ouvi o barulhinho da caixa de correio se fechando. Eu estava preparando o
café da manhã, passando manteiga de amendoim numa grossa fatia de pão.
Levei a correspondência para a mesa da cozinha e, ao ver um coração
desenhado no cantinho de um envelope azul-claro, senti a mesma alegria
que o menino de Portugal e a garota do Japão devem ter sentido. Era um
envelope quadrado selado com adesivos de ores e com meu nome escrito
numa letra miúda e perfeita. Apoiei o envelope no meu copo de suco de
toranja e me sentei para terminar de comer a torrada. Gosto de aguardar um
pouco antes de abrir uma carta, para deixar a expectativa crescer ainda mais
– e também porque não queria sujar de manteiga de amendoim aquele belo
papel azul. Sem pressa, comi o pão e uma banana que estava bem madura.
Depois de terminar o suco, lavei a louça e as mãos, e só então levei a carta
para um cantinho ensolarado na varanda dos fundos, de onde podia
contemplar a horta viçosa enquanto lia.
A carta era de uma amiga de infância – tínhamos crescido na mesma
rua, mas agora morávamos em cidades distantes uma da outra. Pessoas que
não se veem com frequência trocam longas cartas, nas quais contam uma à
outra sobre o trabalho, a família, os relacionamentos. São informações
importantes, mas as cartas que eu e minha amiga trocávamos não eram
assim. Elas continham pequenas curiosidades, situações que tivessem
despertado nosso interesse nas semanas anteriores à postagem.
Dessa vez, estavam no envelope uma lista de livros que ela havia lido
naquele mês, com estrelinhas para indicar o quanto tinha gostado de cada
um; um cartão com a receita de um curry que a vizinha preparava; um
ingresso de uma peça que ela tinha visto, com uma fala que a marcou
especialmente escrita no verso; e uma cartinha do lho contando sobre a
colônia de férias, além de um chiclete – semelhante ao que eu costumava
mascar no ensino médio. Abri o pequeno embrulho de papel-alumínio e
masquei o chiclete ali mesmo, enquanto explorava o restante dos mimos. Já
havia lido alguns dos livros da lista e re eti sobre quantas estrelinhas daria a
cada um deles. Lendo a receita, me dei conta de que tinha em casa todos os
ingredientes necessários para o curry – o jantar estava resolvido. Relembrei
algumas histórias dos nossos dias de colônia de férias e decidi incluí-las na
minha resposta.
Q
uando éramos crianças, íamos sempre durante o dia.
Passávamos horas andando nos brinquedos, jogando,
comendo pretzels com mostarda e raspadinhas azuis que tingiam
a boca. Sem ligar para o calor, corríamos de barraca em barraca, discutindo
em voz alta qual seria a próxima. A certa altura, um pai ou uma mãe nos
agrupava e nos levava para casa; sujos e exaustos, íamos relembrando todas
as coisas que havíamos feito e visto.
Agora que éramos grandes, preferíamos ir no final da tarde, quando o
sol começava a se esconder atrás das árvores – a parte mais quente do dia já
estava superada e a brisa da noite dava um pouco de frescor ao ar abafado
do verão.
Naquele dia, saímos de casa de mãos dadas e seguimos o burburinho da
feira, que podíamos escutar de longe. Na minha lembrança, esses eventos
eram enormes, com corredores em que era possível se perder e inúmeras
atrações para explorar. Agora, porém, eu percebia que durante todo aquele
tempo a feira tinha ocupado somente o parque e o estacionamento de
cascalho ao lado dele, com uma fileira de barracas de artesanato ao longo
da margem do rio.
Grandes caixas de madeira repletas de frutas frescas, fornecidas por um
pomar da região, marcavam os limites do evento. Montes de pêssegos,
ameixas, nectarinas e pequeninos damascos exalavam um cheiro doce
delicioso. As frutas eram tão abundantes naquela fase do verão, e o pomar
tão generoso, que as pessoas podiam pegar quantas quisessem. As ameixas
são as minhas preferidas, embora possam ficar bastante ácidas e difíceis de
comer se não estiverem bem maduras.
Paramos para olhar as frutas. Encontrei algumas ameixas que, apesar de
pequenas, estavam macias e muito cheirosas. A casca roxa escura brilhava
contra a luz. Guardei algumas no bolso para comer mais tarde, talvez depois
de uma breve refrescada na geladeira. Essa ideia me fez lembrar aquele
adorável poema curtinho de William Carlos Williams sobre ameixas na
geladeira.
Demos as mãos de novo e entramos bem no meio da feira. Crianças
brincavam de pega-pega e grupos de amigos passeavam pelos corredores,
levando debaixo do braço os ursinhos de pelúcia conquistados em alguma
barraca. Era um ótimo lugar para observar pessoas. Um casal de idosos
estava sentado num banco, as bengalas apoiadas ao lado de cada um e um
pote gigantesco de pipoca descansando entre os dois, as mãos se chocando
toda vez que eles tentavam pegar mais um punhado. Ali estava uma
multidão de adolescentes, empolgados e barulhentos após alguns meses sem
aula, confabulando ao lado da roda-gigante. Lá estavam quatro mulheres,
tão parecidas que deveriam ser irmãs – todas com um batom chamativo e
cabelos longos e escuros –, fazendo uma boa fofoca, interrompida de
quando em quando por uma criança pedindo um dólar ou lhes entregando
um suéter para segurar. Crianças sortudas, pensei, que podem pedir a uma
tia para que amarre os sapatos da mesma forma que pediriam à mãe. Só vão
ter ideia de como isso é bom quando se tornarem adultas.
Já havíamos andado muitas vezes na roda-gigante quando éramos
adolescentes. Não estávamos precisando de ursinhos de pelúcia, e ainda não
tinha chegado a hora de nos sentarmos num banco para comer pipoca, então
saímos dali e fomos ver as barracas de artesanato na beira do rio. Andamos
sem pressa, olhando os anéis de prata coroados por uma pedra polida, as
aquarelas de paisagens locais, os sabonetes e bálsamos (comprei um
recomendado para picadas de mosquito) e os caderninhos costurados à mão
– perfeitos para escrever histórias –, sem falar nas incontáveis peças de
cerâmica.
Tenho paixão por xícaras e canecas – sempre quero mais uma, não
importa quantas eu já tenha. Enquanto olhava algumas, senti minha mão ser
apertada de leve, e eu sabia o que isso significava: “Vá em frente, escolha a
mais bonita.” Encontrei uma bela xícara, baixa e com esmalte verde-água,
além de um espacinho para encaixar o polegar na parte de cima da asa.
Depois de pagar e observar o embrulho em jornal velho, guardei-a na bolsa
para o café da manhã do dia seguinte. “Vou estreá-la com as ameixas”,
pensei.
Como o sol estava indo embora, as luzes dos postes estavam sendo
acesas. Podíamos voltar para casa – e logo iríamos –, mas ainda podíamos
caminhar mais um pouco pela margem do rio. Afinal, noites de verão como
aquela não se repetem muitas vezes ao longo do ano, e é preciso aproveitá-
las. “Vamos caminhar mais um pouco.”
Bons sonhos.
Estrelas na floresta
E
xiste um silêncio na oresta que é diferente daquele de uma cidade
ou de um bairro.
Isso porque a oresta não é silenciosa de verdade. Diversas
camadas de som são criadas a todo momento por esquilos correndo, veados
dando passos con antes e insetos zumbindo. Não, o silêncio que escutamos
na oresta não está na oresta, e sim dentro de nós quando estamos lá. E era
em busca dele que tínhamos ido – do silêncio que se instala dentro de nós
quando passamos alguns dias longe de tudo, até mesmo daquilo que
amamos. Às vezes precisamos nos afastar um pouco disso também.
Levantamos acampamento numa clareira cercada de enormes pinheiros,
com ramos caídos formando uma espécie de tapete para a barraca. Aqui e ali
viam-se clareiras entre as árvores, pelas quais caminhávamos e observávamos
os animais passando enquanto cumpriam sua rotina. Mais adiante, bem ao
longe, conseguimos enxergar o cume de algo que era mais que uma colina,
mas que não chegava a ser uma montanha. Cavamos um buraco para a
fogueira, estendemos os sacos de dormir, deixamos a comida arrumadinha e
armamos as cadeiras dobráveis no melhor lugar para ver o pôr do sol.
Perambulando pelas redondezas, encontramos um riacho, e mergulhei os
dedos na corrente rápida. Em seguida, pegamos uma trilha que nos levou ao
lago, recolhendo no caminho algumas pedras achatadas que depois tentamos
– com resultados variados – fazer quicar na superfície da água.
À noite, camos olhando os vaga-lumes. Eram como constelações em
movimento, e brinquei de procurar desenhos nelas. Enquanto isso, o silêncio
foi se entranhando em meu corpo, e eu aos poucos fui reencontrando o
equilíbrio. Em meio à confusão do trabalho, de casa e da lista de coisas a
fazer, minha mente às vezes tem di culdade de se manter no caminho que
traço para ela. Acabo perdendo a concentração, esquecendo coisas ou
deixando atividades inacabadas. Ali na oresta, no entanto, percebi que
podia parar e escutar o canto dos pássaros de manhã cedo ou observar os
peixinhos nadando ao redor dos meus pés no lago, tudo isso sem que me
perdesse em distrações. A mudança não se deu de uma hora para outra, mas
era visível.
No dia seguinte voltaríamos para casa. Minha mente já estaria pronta
para o retorno, mas até lá eu e a pessoa que estava comigo queríamos passar
um tempinho só, explorando um pouco mais aquele silêncio. Por melhor que
seja a companhia de alguém, a solidão tem seus encantos. Calcei as botas de
trilha e fui atrás de um lugar para ver as estrelas.
A noite estava clara, e eu podia enxergar com facilidade enquanto ia
abrindo caminho entre as árvores. Tinha um lugarzinho em mente, ao qual
fora algumas vezes durante a semana: depois de subir um pouco uma
encosta, eu chegava a uma rocha bem lisa, tão lisa que eu podia me deitar.
Nos outros dias, fui ali para olhar o lago e as árvores na margem oposta, mas
naquela noite eu pretendia olhar somente para o alto. Levei alguns minutos
para chegar lá, com a impressão de que eu havia cado mais sensível para
encontrar o modo correto de pisar, os pontos em que podia rmar as botas
com facilidade. Eu às vezes me esquecia da capacidade de melhorar aquilo
que faço com frequência, seja caminhar na oresta ou aprender uma língua,
seja manter a calma quando as coisas não dão certo. Minha mãe costumava
dizer: “Seja gentil hoje e amanhã você será ainda mais.”
Eu havia levado uma velha manta quadriculada, que estendi sobre a
pedra antes de me deitar de costas, com a cabeça apoiada nas mãos e as
pernas cruzadas – a postura ideal para olhar estrelas. Elas estavam tão
brilhantes que perdi o fôlego. Não queria nem piscar os olhos – tinha me
acostumado a um céu que dividia o espaço com tantos re etores, letreiros e
edifícios que as estrelas não passavam de pontinhos apagados ao fundo. Ali,
porém, elas ocupavam o céu inteiro. Seu brilho era estonteante, e mesmo
estando tão longe eu sentia que podia quase tocá-las.
Pensei sobre o local exato onde eu estava – naquela pedra, naquele
pedacinho da oresta – e permiti que minha perspectiva se expandisse. Fiz
algo mentalmente, como se estivesse dando um zoom em uma máquina
fotográ ca, para incluir áreas cada vez maiores. Pensei nas cidades que
estavam ao meu redor, depois nas fronteiras entre os países e nos imensos
oceanos. Imaginei que eu era uma minúscula faísca, iluminando junto dos
bilhões de outras faíscas nosso pequeno pontinho azul. Continuei
aumentando a distância, pensando nos planetas que havia estudado na escola
quando criança, todos eles suspensos no espaço à minha volta. Os anéis de
Saturno, a mancha escura de Netuno, as 53 luas de Júpiter. Levei meus
pensamentos ainda mais longe, até o espaço que não podemos enxergar com
telescópios ou compreender com equações. Não era provável que no nal de
tudo aquilo houvesse uma grande muralha, mas sim que o espaço se
prolongasse até o in nito. Lentamente, comecei a fazer o caminho de volta.
Os pensamentos cruzaram o espaço mais uma vez, passando pelos
planetas e pelo sol até chegarem ao nosso pequeno lugar no universo.
Aproximei-os ainda mais, para ver o formato do continente, os lagos e as
cadeias de montanhas ao meu redor. Então, eu os trouxe de volta à pedra
onde eu estava, e em seguida ao meu corpo. Senti o ar passando pelas narinas
e as batidas lentas, relaxadas, do coração. Senti o peso dos braços e das
pernas, a sensação das roupas tocando a pele.
Em alguma parte do trajeto, minha perspectiva havia realinhado. Eu
estava em busca do silêncio e o havia encontrado, mas sentia que, para além
disso, tinha posto o corpo e o coração em seus devidos lugares. Lembrei-me
de quem eu era e daquilo que era importante para mim. Já podia voltar.
Bons sonhos.
O silêncio que escutamos na floresta
não está na floresta, e sim dentro de
nós quando estamos lá.
Um dia de solo com a cachorra
A cordei, como de costume, com o nariz sendo lambido pela minha cachorra.
Fiquei um tempo ainda na cama, piscando os olhos, deixando para trás o
último sonho da manhã e ouvindo os passarinhos cantarem nas árvores.
Então, ela começou a abanar o rabo, fazendo a cama tremer enquanto se remexia
energicamente, e eu ri. Minha cachorra acorda feliz todos os dias.
Daquela vez ela tinha um bom motivo para estar animada. Eu teria o dia livre e
havia planejado fazer várias coisas que adoramos. Ela pulou para fora da cama e eu
fui atrás, meio dormindo, esfregando os olhos e respirando bem fundo o ar da
manhã.
Fomos até o quintal, onde ela se pôs a farejar a grama e a fazer as necessidades
matinais enquanto eu contemplava os galhos dos carvalhos. Esquilos passeavam
por eles, carregando o café da manhã nas bochechas in adas; tordos e um gaio-azul
voavam de folha em folha – o movimento típico de um dia de sol. Fui até a horta e,
enquanto meu pensamento vagava, arranquei algumas ervas daninhas que estavam
crescendo ao redor dos tomates. O orvalho que cobria a grama fazia as folhas
brilharem e refrescava os meus pés. Levantei uma folha grande e espinhenta para
revelar um lindo pepino, que logo puxei para arrancar dali.
Respirei bem fundo o ar quente daquela manhã de verão, que cheirava a
verduras viçosas e a terra úmida. Alguma vez um cheiro já transportou você para o
passado? De repente, eu me lembrei de um acampamento que z quando criança,
talvez com cinco ou seis anos. Ficamos numa pequena cabana e cozinhamos as
refeições ao ar livre, enquanto observávamos o sol brilhar ou se pôr. Meu pai nos
entretinha com uma história que havia iniciado no primeiro dia da viagem, e à qual
ia acrescentando novas reviravoltas a cada noite, sempre envolvendo princesas,
bandidos e tesouros enterrados.
Também me lembrei dos cachorros adoráveis que tivemos na minha infância;
eles me ensinaram a brincar e a ser uma pessoa gentil, e me mostraram a
importância de cuidar dos outros.
Bati na perna para chamar minha cachorra. Ela se aproximou e, com o nariz
molhado de fuçar as plantas úmidas, farejou os legumes que eu havia colhido.
“Hora do café da manhã?”, perguntei. Ela disparou rumo à porta. É uma etapa da
rotina diária: quando voltamos do quintal, ela corre o mais rápido que pode e se
senta na cozinha, aguardando o biscoitinho enquanto golpeia os armários com o
rabo.
Na época em que ela chegou à minha casa e ainda estávamos nos conhecendo,
eu costumava pôr o biscoito direto em sua boca – ela o mordia com delicadeza e se
metia embaixo da mesa da cozinha para comer. No entanto, depois de algumas
semanas, quando já estava habituada e começava a me revelar mais de sua
personalidade, ela começou a pegar o biscoito da minha mão e tentar atirá-lo para
o alto. Acho que estava tentando me ensinar que até o café da manhã pode ser
divertido e que sempre podemos brincar. E conseguiu.
Naquela manhã, ao chegar à cozinha e perguntar se ela queria mesmo comer
(ela respondeu balançando o rabo ainda mais e arregalando os olhos), peguei um
biscoitinho no pote em cima da bancada e movi a mão para um lado e para outro
no ar, fazendo com que ela corresse em círculos, alucinada. Por m, eu o joguei
para o alto, e ela deu um bote perfeito para mordê-lo antes que ele caísse no chão.
– Muito bem –, falei, acariciando sua cabeça e pegando a cafeteira. – Boa
maneira de começar o dia.
Preparei o café, enchi o pote dela de ração, pus na torradeira algumas fatias de
pão de grãos. Fatiei o pepino e, quando as torradas saltaram, cobri-as com uma
generosa camada de homus. Coloquei o pepino por cima, temperei com sal e
pimenta e nalizei com alguns brotos colhidos num potinho na janela. Minha
garota estava devorando a comida, e me sentei na cadeira mais próxima para fazer
companhia. Enquanto comia o meu, falei casualmente:
– Pensei que talvez pudéssemos ir ao... parquinho de cachorros.
Ela interrompeu a mastigação e me olhou de boca cheia, sem saber se tinha
ouvido direito. Falei de novo:
– Parquinho de cachorros.
Ela pulou, dançou, estirou-se no chão para ganhar cafuné e uns tapinhas nas
costas. Quando os cachorros estão felizes, seu instinto é compartilhar alegria. Para
mim, isso é prova de que o universo tende à bondade.
Agora que as palavras haviam sido ditas, ela estava louca para partir. Outra
lição que eu tinha aprendido com ela: se você quer alguma coisa e sabe disso, corra
atrás. Vestimos nossas roupas, eu um vestido leve e sandálias, ela a coleira e um
lencinho de pescoço que não deixava nenhuma dúvida de que, sim, ela gostava de
receber carinho – se aquele sorriso bobalhão não bastasse para provar isso. Agitei
as chaves, corremos para o carro. Abri um pouco a janela para que ela pudesse
sentir o vento nas orelhas e farejar os cheiros interessantes da vizinhança. Logo os
pneus estavam passando sobre as pedrinhas do estacionamento ao lado do parque,
e a vi virar a cabeça de um lado para outro na tentativa de enxergar, através da
grade, quem estava lá. Velhos conhecidos? Amigos novos?
Dentro do parque e livre da coleira, ela correu na minha frente para cheirar os
outros cachorros, latindo e os chamando para brincar. Alguns eram frequentadores
antigos, deitados com uma expressão simpática na cara esbranquiçada enquanto
assistiam aos mais jovens correrem. Outros eram pequenininhos mandões que
lideravam a turma e corriam depressa, aprumados. Havia também os cães felpudos
e lerdos que alternavam a todo momento a brincadeira com o conforto de um
cantinho aos pés do dono. Sentei-me num banco sombreado e quei observando.
Meu coração se alegrou ao ver a minha garota feliz e con ante, desfrutando o
momento.
Ela já tinha alguns anos quando veio morar comigo, e me lembro bem de seu
jeito assustado no carro quando estávamos voltando do abrigo. Eu lhe disse que o
último dia ruim dela tinha sido o anterior, que agora ela estava protegida e sua vida
ia se resumir a brincadeiras, sonecas, caminhadas e o que mais ela quisesse. Mas
não adianta falar esse tipo de coisa a um cachorro – é preciso demonstrar afeto. A
essa altura eu já tinha feito isso, e ela sabia que podia acreditar em mim.
As brincadeiras estavam sossegando, os cachorros cando cansados, e era
possível ouvir o barulhinho dos puxadores sendo presos às coleiras. Minha garota
me achou, e despejei um pouco de água da minha garra nha num pote que havia
levado. Depois de ela beber alguns goles, voltamos para o carro. Eu queria que o dia
todo fosse especial para ela, então pensei em fazer uma parada no pet shop
preferido para escolher um brinquedinho novo. Mais tarde daríamos um bom
passeio, e ela tiraria uma soneca na varanda dos fundos, repleta de sombra àquela
altura do dia. Depois do jantar, eu ia lançar a bolinha para ela correr atrás até que
se cansasse. Ia permitir que o banho casse para o dia seguinte. No m do dia, nós
nos deitaríamos novamente. Ela ia se virar três vezes na cama antes de tombar a
cabeça e soltar um leve suspiro canino. Em seguida, dormiríamos.
Bons sonhos.
Pense assim: você tem um estoque de compaixão e bondade (todo mundo tem),
mas ele às vezes fica guardado numa caixa escondida em seu porão, que você
talvez não consiga encontrar rapidamente quando está precisando dele. A
meditação da compaixão (também chamada meditação Metta) ajuda a
desenterrar esse sentimento, permitindo que você passe a carregá-lo no bolso
da calça. Quando esbarrar em alguém que esteja precisando desse tipo de
sentimento, você poderá oferecê-lo sem dificuldades e sem prejudicar a sua
farta provisão. Esta meditação é também um antídoto para dias ruins – é capaz
de restaurar ânimos abalados e fazer com que nos sintamos mais presentes no
mundo.
Para começar, encontre uma posição confortável. Esse passo é bastante
importante para este tipo de meditação – é preciso que você esteja se sentindo
bem-disposto para que consiga concentrar esforços em aquecer o coração.
Sente-se numa cadeira aconchegante ou deite-se num lugar tranquilo. Se
quiser, ponha uma almofada embaixo dos joelhos para tornar a postura ainda
mais agradável.
Inspire lentamente pelo nariz e solte o ar pela boca. Retorne à respiração
normal em seguida e, por cerca de um minuto, concentre a atenção nela,
sentindo o ar entrar e sair do corpo.
Agora você precisa recordar a forma como a compaixão se manifesta – há
uma sensação física que acompanha o ato de amar. É provável que você sinta
uma conexão direta e descomplicada com alguma pessoa em sua vida, um
desejo puro de que esse alguém esteja bem e feliz. (E não há problema nenhum
se for o cachorro.) Passe alguns minutos desejando o bem para ela. Com todo o
amor que há no seu coração, mande desejos de saúde e felicidade.
Repita em pensamento: “Que essa pessoa seja feliz. Que encontre a paz e a
harmonia verdadeiras. Que se sinta segura. Que os sofrimentos a abandonem.”
Durante alguns instantes, preste atenção na sensação que acompanha o ato
de amar. Você está abrindo o poço da compaixão e, quando ele estiver aberto,
poderá buscar mais um balde sempre que necessário. Poderá inclusive deixá-lo
transbordar. Se você não abre o poço há muito tempo e a tampa está
enferrujada... tenha paciência. É só uma questão de tempo e prática.
Sem deixar que a sensação vá embora, dirija o pensamento para outra
pessoa. Desta vez, escolha alguém que ocupe uma posição periférica em sua
vida, uma pessoa a cuja felicidade você não costume dar muita atenção. Com o
mesmo sentimento sincero e compassivo, deseje seu bem-estar.
Em pensamento, diga: “Que essa pessoa seja feliz. Que encontre a paz e a
harmonia verdadeiras. Que se sinta segura. Que os sofrimentos a abandonem.”
Concentre-se por alguns instantes nas sensações de bem-estar, felicidade e
segurança dessa pessoa. Se conseguir, imagine a expressão que ela
demonstrará ao se sentir de fato em paz: as linhas do rosto relaxadas, os olhos
brilhantes e desanuviados.
Sem deixar que a sensação vá embora, dirija o pensamento para mais uma
pessoa. Desta vez, pense em alguém a quem pareça difícil desejar o bem.
Talvez alguém a quem você tenha desejado o oposto no passado. Mas saiba
que, quando guardamos ressentimentos, a dose maior do veneno vai direto
para o nosso coração, para a nossa cabeça. Quando somos compassivos e
estamos dispostos a perdoar, recebemos antes de qualquer um a dose maior do
antídoto. Portanto, vá em busca da compaixão sincera – a mesma que você
sente ao pensar em seu cachorro, sua filha ou no amor de sua vida – e a ofereça
a essa pessoa.
Ainda que isto não mude em nada a vida dela, que ela não vá ficar sabendo
nem mesmo se importar, repita: “Que essa pessoa seja feliz. Que encontre a paz
e a harmonia verdadeiras. Que se sinta segura. Que os sofrimentos a
abandonem.”
Não deixe que a sensação vá embora. Espere alguns instantes enquanto o
antídoto age em seu sistema – continue a acessar o poço, permitindo que ele
transborde e inunde todo o corpo. Quando estiver se sentindo bem e preparado
para seguir em frente, inspire profundamente pelo nariz e solte o ar pela boca
com um longo suspiro.
Na cozinha durante uma tempestade
Como tinha aberto uma garrafa de vinho na noite anterior, peguei no armário,
para fazer as vezes de taça, um copo vazio de geleia. De vez em quando gosto de ser
elegante e usar as minhas melhores taças, mas, quando estou sozinha e zanzando
pela cozinha, beber de um velho copo de geleia me parece mais apropriado. Tirei
uma tábua de madeira da gaveta, coloquei meu facão sobre ela e apoiei no fogão
uma frigideira grande e rasa. Ia fazer um espaguete al pomodoro, do jeito que tinha
aprendido na Itália, anos atrás. É um prato simples, que demanda poucos
ingredientes e ca pronto rápido, mas cujo sabor marcante, levemente ácido, me
transportava para as tardes em volta da mesa da minha família na costa rochosa do
sul da Itália. Eu tinha viajado para lá num intercâmbio estudantil, e apesar de não
ter uma gota sequer de sangue italiano, sentia que havia absorvido um pouco do
jeitinho do país após um ano aprendendo a língua, andando por suas ruas e me
apaixonando pelas pessoas do lugar. Fiquei hospedada na casa de uma família que
me recebeu muito bem – eram carinhosos, riam do meu sotaque engraçado e,
embora estranhassem de vez em quando minha tendência americana à
independência exagerada, me tratavam como parte da família. Mesmo depois de
anos, ainda éramos próximos.
O almoço na Itália era servido por volta das duas, e eu costumava voltar da
escola pensando em que massa minha mãe italiana – a mamma – estaria
preparando naquele dia. Depois de subir os quatro andares de escada até nosso
apartamento e abrir um pouquinho a porta, eu aproximava o nariz da fresta e
inspirava bem fundo.
Agora que eu era adulta e estava cozinhando na minha casa, sorri com as
lembranças enquanto terminava de separar os ingredientes. Pus alguns os de
azeite na panela e busquei uma cebola na despensa. A mamma tinha me mostrado
muitas vezes, com sua maneira de cozinhar, que menos pode ser mais. Não é
porque você tem uma cebola à disposição que o prato precisa estar cheio desse
ingrediente. Como eu era uma lha disciplinada, usei só um terço, cortando tiras
bem nas da cebola. Joguei as tirinhas na panela e baixei o fogo – queria apenas
que elas esquentassem e dourassem um pouco. Voltei à despensa para pegar uma
lata de tomates pelados, que eram plantados e embalados a somente alguns
quilômetros de distância de onde eu havia morado. A mamma os passava por um
espremedor antigo, de manivela, girando-a lentamente enquanto as cascas iam
cando retidas no pequeno ltro de metal. O resultado era um molho liso e
cremoso que deslizava pelos os de massa, envolvendo-os. Eu costumava pôr os
meus numa tigela e usar os dedos para amassar. Nunca contei isso à mamma – todo
mundo tem seus segredos. Derramei os tomates na panela e, depois de medir na
palma da mão, temperei com uma pitada de sal. Deixei o fogo entre o médio e o
baixo e mexi. Em seguida, apanhei no vaso da janela algumas folhas de manjericão,
que acrescentei inteiras ao molho. A chuva já estava caindo, e toquei o peitoril da
janela para ver se os pingos de água estavam entrando – felizmente, não estavam. O
cheiro das árvores e da grama se refrescando na chuva era delicioso.
Coloquei uma panela de água no fogo para a massa e bebi um gole de vinho. O
disco havia parado de tocar, fui até a sala para virá-lo. Quando estava soltando a
agulha, vi um relâmpago tomar conta do céu escuro. De joelhos ao lado do toca-
discos, escutei o poderoso estrondo do trovão. Que noite perfeita para um vinho e
uma massa.
Torci o maço de espaguete antes de largá-lo na água fervente, para que os os se
espalhassem e começassem a afundar. Algumas pessoas cam vigiando a panela e
provando o macarrão de minuto em minuto, mas cozinhar uma pasta al dente
perfeita pode ser bastante simples. Basta comprar uma boa massa italiana e seguir o
tempo de cozimento que a embalagem sugerir. Eles sabem o que fazem.
Escolhi um lugar à mesa de onde podia ouvir a música e ver a tempestade, e
enchi de novo o copo de geleia com vinho. Juntei a massa já escorrida ao molho,
misturando para cobri-la bem, e com a boca salivando me servi de um prato. Na
mesa, brindei ao Chet Baker e à mamma, aos relâmpagos, aos pés descalços na
pedra do quintal e ao manjericão fresco. Aproximei o nariz do prato e deixei o
vapor doce e cheio de sabor cobrir o rosto.
Buon appetito e bons sonhos.
ESPAGUETE AL POMODORO
Desde que pisei pela primeira vez na casa dos Carpentieri, fui tratada como um
membro da família. Talvez seja por isso que sempre escolho esta deliciosa
receita quando quero brindar a mim mesma ou à outra pessoa com uma boa
dose de nutrientes e de amor. Quando estiver escolhendo os ingredientes,
lembre-se de que a qualidade faz toda a diferença. Compre a melhor massa e os
melhores tomates que puder, de preferência italianos.
1 lata (800 gramas) de tomates pelados (os da minha mãe eram da marca San
Marzano)
5 colheres (sopa) de azeite de boa qualidade, e um pouco mais para levar à mesa
1/3 de cebola cortada em tiras finas
sal a gosto
3 folhas de manjericão fresco
250 a 500 gramas de espaguete de boa qualidade
Ponha uma música para tocar e organize o espaço que você vai usar, para que
você sinta calma e relaxamento. Se estiver com vontade, sirva-se de algo para
beber – vai fazer uma diferença no gosto da comida e, de qualquer forma, você
merece.
Abra a lata de tomates e despeje tudo, incluindo o suco que vier com eles,
numa tigela média. Amasse os tomates com as mãos para que eles mantenham
um pouco da consistência.
Aqueça o azeite numa panela (que tenha tampa) em fogo baixo. Adicione a
cebola e refogue, sem tampar, por cerca de cinco minutos, mexendo de vez em
quando com uma colher de pau. A cebola deve ficar translúcida, com algumas
partes começando a dourar.
Incorpore os tomates e o manjericão, tempere com sal e misture. Tampe a
panela e deixe cozinhar em fogo baixo por 25 minutos. Se você quiser um
molho bem grosso, deixe a panela destampada para que mais água evapore,
mas tome cuidado com os respingos.
Enquanto o molho cozinha, encha uma panela grande com água e adicione
sal até que ela fique com gosto de água do mar. Leve ao fogo alto e, quando
ferver, cozinhe o espaguete seguindo as instruções da embalagem. Você pode
usar 250 ou 500 gramas – ou qualquer quantidade intermediária –, dependendo
de quantas pessoas vão comer e da sua preferência por uma massa mais ou
menos cheia de molho. Meio pacote de 500 gramas costuma funcionar bem
para duas pessoas, e o pacote inteiro para quatro.
Coloque talheres e pratos fundos na mesa. Encha de novo a taça e assobie
uma música.
Quando a massa estiver cozida, escorra com cuidado e distribua igualmente
entre os pratos. Prove o molho de tomate e, se necessário, ajuste a quantidade
de sal. Quando o gosto estiver perfeito, sirva quantas conchas de molho você
desejar sobre cada prato de espaguete, finalizando com um fio de azeite. Sente-
se e aproveite. Buon appetito.
No museu em dia de sol
A
lgumas pessoas deixam para ir ao museu em dias de chuva.
Esperam até que o tempo esteja feio e frio e fazem da visita um
raio de sol numa tarde que seria completamente cinza. Eu, ao
contrário, gosto de ir quando está fazendo sol, quando tudo o que quero é
uma trégua do calor e da agitação barulhenta do verão.
Naquela ocasião, a semana anterior tinha sido de sol constante e dias
quentes e longos com os quais eu teria sonhado nas fases mais duras do
inverno, mas então já não aguentava mais. O calor e o suor estavam me
aborrecendo, e só de imaginar o museu fresquinho e silencioso, os
corredores largos e as salas espaçosas, eu sentia um refresco no mesmo
instante. Eu ia marcar um encontro comigo mesma e, se me desse vontade,
passaria aquela tarde inteirinha na tranquilidade do museu.
Nos degraus da frente do instituto, parei para olhar ao meu redor. O
prédio tomava um quarteirão inteiro e tinha colunas altas de arenito branco,
canteiros de grama ornamental e chafarizes que espirravam no mármore
jatos de água em formato de arco-íris, além de esculturas espalhadas por
todo lado. Os degraus eram amplos e convidativos – era possível sentar
neles e, apoiando-se sobre os cotovelos, escutar o som dos chafarizes e
observar as pessoas passando em frente àquela pequena bolha de calma no
meio da cidade agitada. Grandes cartazes coloridos que pendiam da cornija
estavam me convidando para ver as novas exposições. Revirei a bolsa até
encontrar o cartão de membro e subi os degraus.
A entrada do museu era gratuita, mas no ano anterior eu tinha decidido
me associar a ele. Algumas vantagens eram oferecidas – convite antecipado
para os eventos, desconto nos ingressos do festival de cinema –, mas acima
de tudo aquele era um jeito de apoiar um lugar tão especial, para que ele
continuasse vivo e fazendo o que fazia enquanto ninguém estava olhando.
Mesmo se estivesse há meses sem visitar o museu, quando via o cartão na
carteira eu sentia que fazia parte da comunidade de apreciadores da arte,
como se tivesse um dedo imerso no vasto oceano da criatividade.
Lá dentro, admirei os padrões construídos em mármore verde e branco
no piso lustroso do saguão. Olhando para cima, contemplei o teto que cava
bem lá no alto, contornado com belas molduras e rostos esculpidos.
Observei as pessoas começando a visita – algumas, como eu, com as mãos
para trás (talvez estivéssemos nos lembrando das idas ao museu na infância
e de nos avisarem a todo momento para não tocar em nada), outras em
pequenos grupos que avançavam de sala em sala.
Uma amiga havia me ensinado a melhor forma de apreciar obras de arte.
Segundo ela, embora possa ser divertido ir a uma exposição na companhia
de alguém, não se deve conversar lá dentro. Caminhar junto também pode
ser descartado, disse ela – em vez disso, você e sua companhia podem
combinar um horário para tomar um café e então conversarem o quanto
quiserem. Devemos admirar as obras no nosso ritmo, sem ter que pensar a
todo momento num comentário inteligente para fazer.
Eu gostava dessa regra e ia além. Quase sempre visitava aquele tipo de
lugar sem ninguém. Era libertador poder andar na velocidade que eu bem
entendesse, poder sentar e car um bom tempo olhando uma obra – ou o
nada –, poder ir embora quando tivesse vontade. Passei a bolsa para o
ombro descansado e me pus a percorrer bem devagar as salas da minha
galeria preferida.
Caminhei pelo salão de arte antiga, onde cavam armazenadas algumas
das peças mais importantes – do ponto de vista histórico – do museu. Vi
esculturas de madeira e pedra, algumas delas com detalhes corroídos pelos
anos de exposição ao vento e à chuva. Passei pelas salas de grandes mestres,
que exibiam naturezas-mortas e vastas paisagens terrestres e marítimas,
além de momentos determinantes da história capturados numa imagem.
Andei pelo pátio, cujas paredes eram cobertas por murais de um mestre
moderno, do século passado, cuidadosa e felizmente preservados, com as
cores ainda vibrantes. Por m, cheguei à seção de retratos. Era mais escura
que as outras, com as luzes dispostas de tal maneira que, diante dos quadros,
eu me sentia como se estivesse tendo uma conversa íntima com a pessoa
retratada.
Alguns dos retratos eram de séculos atrás: uma rainha com um cachorro
no colo, um imperador com um chapéu de plumas na cabeça e medalhas
penduradas no pescoço. Havia também uma menina costurando, um
bordado nas mãos e uma expressão cansada no rosto. Outros retratos eram
modernos, fotorrealistas ou pixelizados: uma menina de pele negra
reluzente e olhar con ante, um homem amassado e borrado pelo artista,
com uma aura cinza esverdeada em torno da cabeça. Eu gostava de olhar
para as mãos das pessoas no quadro e imaginar o que estavam pensando no
momento em que o retrato tinha sido feito. Olhando à minha volta, vendo
as pinturas e os observadores que as rodeavam, lembrei que cada pessoa tem
uma história, suas memórias e coisas favoritas.
Voltei para o saguão e, ao som sutil dos meus passos no mármore, segui
para outras exposições. Meu plano era conferir todas elas, passar um
tempinho no banco do segundo andar com vista para o pátio e, em seguida,
olhar os livros na loja do museu. Por último, ia me sentar no café para tomar
uma xícara de chá e comer um sanduíche. Pus de novo as mãos para trás e
avancei para a sala seguinte.
Bons sonhos.
Colheita de verão
Toda vez que preparo este prato, os convidados não acreditam que ele leva
apenas quatro ingredientes. Quando digo a receita, balançam a cabeça e
perguntam “Como pode ser tão gostoso?”, mas, quando há ingredientes de
qualidade, não precisamos acrescentar nada sofisticado para que fique
delicioso – os sabores muitas vezes se destacam ainda mais quando
permitimos que brilhem por conta própria.
Numa panela grande, cozinhe as batatas por cinco ou seis minutos. Como
queremos que se mantenham inteiras, e não que se desmanchem como se
estivéssemos preparando um purê, o ponto certo é quando elas oferecerem um
pouco de resistência ao serem fincadas por uma faca. Escorra a água.
Transfira as batatas para uma tigela grande e tempere com azeite e sal a
gosto.
Separe as folhinhas de alecrim dos ramos e descarte-os. Pique
grosseiramente – só queremos que liberem o óleo, então não precisam ficar
muito miúdas ou uniformes – e incorpore às batatas.
Este prato fica mais gostoso em temperatura ambiente. Sirva-o junto de
saladas ou como acompanhamento para hambúrgueres vegetarianos. Pode ser
conservado em um pote fechado na geladeira por até quatro dias.
Volta às aulas
S
em saber quando iria chegar, conferi a caixa de correio todos os dias
durante algumas semanas.
Quando nalmente vi que estava lá – junto de alguns envelopes,
um pan eto da venda de garagem do bairro e um cartão-postal de um
amigo que morava longe –, eu o apanhei entre as outras correspondências e
corri os dedos sobre a capa. O catálogo não era extenso, tinha apenas
algumas dezenas de páginas, mas trazia a esperança de uma novidade. Levei
tudo para dentro de casa e me sentei à mesa da cozinha para beber uma
xícara de café enquanto folheava com calma o cardápio de possibilidades.
Fazia um bom tempo que eu havia terminado a faculdade, mas sempre
pensava que, se pudesse voltar àqueles tempos e ter a curiosidade e a
determinação que tinha adquirido desde então, eu poderia aproveitar muito
mais. Escolheria as disciplinas com mais cuidado – pensando no que elas
poderiam render de conhecimento e não em seu tempo de duração, e
estudaria todos os assuntos que agora tanto despertavam meu interesse.
Alguns anos antes, eu havia levado meus sobrinhos para comprar
material escolar. Eles já tinham ganhado roupas e tênis novos dos pais, que
permitiram que eu cuidasse da parte divertida. Passamos uma tarde inteira
olhando mochilas, cadernos, estojos e canetinhas coloridas. Fiquei me
lembrando de como aquelas escolhas eram importantes para mim quando
eu tinha a idade deles – a mochila ou a pasta de cada ano eram sempre
tentativas de dizer algo sobre quem eu achava que podia ser. Juntava-se a
isso o entusiasmo que me traziam os lápis bem apontados e os cadernos
novinhos em folha, e eu mal podia esperar para que o novo ano letivo
começasse, ainda que casse um pouco triste com o m do verão. Um dos
meus sobrinhos era como eu – fazia escolhas estudadas, pedia a minha
opinião... Esse aqui? Ou aquele ali? Já seu irmão mais novo, faceiro e
despreocupado, ia jogando um monte de coisas no carrinho enquanto eu
devolvia metade delas à estante e o seguia até a seção de Halloween, onde ele
estaria me esperando com uma máscara sinistra e um saco de doces na mão.
Quando os deixei em casa, nos sentamos à mesa de jantar para comer os
doces, apontar os lápis e deixar tudo preparado para o primeiro dia de aula.
Eles já tinham ganhado os livros didáticos, que me zeram recordar as vezes
em que, quando tínhamos a idade deles, meu pai se sentava com a gente
para encapar os livros. Ele usava sacos de supermercado de papel pardo:
cortava o fundo e os abria para cobrir as capas gastas dos livros usados. À
medida que avançava, ele ia empilhando os livros diante de mim; depois de
buscar meu novo estojo de canetinhas e lápis coloridos, eu escrevia em cada
um o meu nome e o título, além de fazer alguns desenhos de foguete e arco-
íris. O dia passado com os garotos tinha me feito lembrar o quanto eu
gostava da volta às aulas.
Depois disso, resolvi dar início a um novo hábito. Todos os anos,
quando as folhas das árvores começassem a se tingir de marrom, eu iria
aprender algo novo. E lá estava eu agora com meu pequeno catálogo de
instituições de ensino comunitário, uma xícara de café e um lápis para fazer
anotações nas margens das páginas. No ano anterior, eu havia feito um
semestre de aulas de fotogra a, nas quais aprendi o básico de composição e
de linhas principais, e até mesmo revelei meu lme no laboratório do
estúdio. Alguns anos antes havia estudado genealogia, construindo ao longo
dos poucos meses de aulas uma imensa árvore da minha família. Achei
fascinante pesquisar os documentos – certidões de nascimento, óbito e
casamento – e descobri, vendo a assinatura da minha bisavó, que o erre que
ela fazia era igualzinho ao meu. Outro outono agradável tinha sido dedicado
à identi cação de plantas comestíveis, à procura no mato por urtiga,
azedinha e até mesmo amaranto selvagem.
Agora, eu folheava o catálogo e tentava decidir o que viria a seguir.
Dobrei o cantinho da página do curso de história local – era sedutor,
incluindo visitas à biblioteca e a alguns lugares e construções importantes da
região. Fiz uma estrela ao lado de um curso de introdução à ciência do
espaço. Podia aprender sobre estrelas anãs brancas, supernovas, estrelas de
nêutrons e buracos negros. Estava considerando com certo entusiasmo a
história do inglês quando deparei com outra opção: “Restauração de arte,
passo a passo.”
Levando junto o café, fui até o corredor para olhar um quadro que tinha
passado por muitas gerações da minha família até chegar às minhas mãos.
Mostrava uma mulher sentada a uma mesa com um livro aberto nas mãos, e
atrás dela uma janela por onde se via uma paisagem verde. Era uma pintura
cheia de detalhes: veias e nós na madeira das paredes, dobras delicadas no
tecido da saia da mulher, vasos e jarros numa prateleira acima dela.
Tínhamos nos perguntado muitas vezes quem seria aquela pessoa, quem a
teria retratado e se era possível descobrir naqueles detalhes algum indício da
origem do quadro. Mas tudo isso estava meio que encoberto pelas camadas
de poeira que tinham se assentado sobre a tela ao longo dos últimos 150
anos.
Imaginei como seria passar os meses seguintes no grande estúdio de arte
do centro comunitário, a pintura da mulher apoiada no cavalete. Eu com
pincéis e outros utensílios variados, potes de solvente e água, e um professor
para me ajudar. Depois de limpar a tela, concentraria os esforços no borrão
negro que se via num dos cantos e que talvez fosse uma assinatura. Além
disso, tentaria abrir com muito cuidado a parte de trás da moldura e, quem
sabe, encontrar ali uma etiqueta ou um pedacinho de papel amarelado que
pudesse me levar a um arquivo ou a um registro de biblioteca. Retornei à
mesa e z um círculo ao redor do curso de restauração de arte. “Talvez eu
consiga resolver um mistério”, pensei.
Bons sonhos.
A um quarteirão de casa
A chuva
poças.
não tinha dado trégua desde a noite anterior, e as ruas estavam cheias de
O céu havia sido tomado por nuvens baixas e cinzentas. Era uma tarde fria de
setembro, com um vento que ressoava a agosto. Parei debaixo da barraca de um
verdureiro a um quarteirão da minha casa para ajeitar a capa de chuva, fechando-a
até o pescoço. O cheiro das peras me fez tirar os olhos da cafeteria da esquina, na
qual eu estava observando as pessoas beberem café enquanto liam jornal ou
conversavam com amigos. As peras, apesar de pequenas e esverdeadas, pareciam
macias e tinham um ou outro machucado que indicava estarem boas para comer.
Pedi duas e mais um punhado de amêndoas, que o vendedor embrulhou num
pedaço de papel pardo. Depois de pôr as compras no bolso da capa de chuva,
coloquei de novo o capuz e atravessei a rua. Estava quase chegando em casa.
As antigas casas marrons eram coladas umas nas outras. Eram todas a mesma
casa, repetidas incontáveis vezes com pequenas diferenças na fachada. Algumas
tinham um pequeno pátio, outras um portão e um jardim. Na frente de algumas,
havia árvores antigas cujas raízes estavam abrindo rachaduras na calçada. Todas
tinham degraus largos e uma pequena varanda, ainda que num dia como aquele não
houvesse ninguém sentado do lado de fora.
A minha casa era protegida por um portão e grades de ferro que escondiam dos
pedestres o jardim um tanto descuidado. Parei no portão e olhei para um lado,
depois para o outro: algumas pessoas caminhavam na chuva, encolhidas sob o
casaco ou abrigadas debaixo do guarda-chuva. Pus a mão no bolso para pegar o
chaveiro, escolhendo sem olhar a chave grande de ferro, pesada e antiga. Quando
estava caminhando, as mãos sempre a encontravam na escuridão do bolso. O peso
dela era reconfortante, e os dentes compridos e os desenhos de videira faziam com
que parecesse uma chave que poderia abrir uma porta num conto de fadas. Mas
não podia, pois tinha sido feita para o meu portão.
Fechei-o, passei pelo jardim e subi os degraus com pressa – tinha me cansado
da chuva. Depois de mais uma chave, eu estava em casa. Suspirei. Sempre gostei
da sensação de bater a porta no fim do dia, sabendo que não preciso sair de novo
até a manhã seguinte. A quantidade de trancas que ela exibia sobre a madeira
envernizada me fez sorrir – a porta era segura, eu não precisava delas, mas gostava
de trancá-las uma por uma mesmo assim. Passei a corrente, girei o trinco, corri o
ferrolho. “Segura essa, mundo!”, falei alto.
Antes de fechar as cortinas grossas de veludo dei uma espiada no temporal – a
chuva, que havia se transformado numa tempestade, estava açoitando as janelas.
Senti o corpo mais pesado a cada passo que eu dava – estava a poucos minutos de
cair num sono doce e profundo. Tirei as botas e deixei a capa de chuva no
cabideiro enquanto andava até a biblioteca. Passando pela cozinha com a vaga
intenção de tomar um chá, desisti no último instante de ligar a chaleira elétrica,
pois me dei conta de que iria dormir antes que a água fervesse.
A biblioteca tinha um sofá bem grande, espaçoso o bastante para uma pessoa
esticar o corpo e coberto por algumas mantas e almofadas. Abajures ficavam
espalhados pelo cômodo, mas nem foi preciso acendê-los. Os cordões de luzinhas
que decoravam o topo das estantes eram suficientes. Larguei as peras e as
amêndoas na mesa ao lado do sofá e me deitei. Olhei os livros à minha volta,
dividindo as prateleiras com globos de neve e lembrancinhas de viagens. O velho
relógio tiquetaqueava na estante, e a chuva, com seus trovões, soava distante e
abafada. Meus olhos estavam cada vez mais pesados. Ouvi os passos delicados da
minha gata, seguidos de um momento de silêncio enquanto ela preparava o salto.
Logo estava sentada sobre os meus joelhos, e, quando me virei de lado, ela se
acomodou no espacinho atrás das minhas pernas. Então, cobri nós duas com uma
manta, encostei a cabeça numa almofada macia e fechei os olhos. Dormimos.
Bons sonhos.
RELAXAMENTO CONTRA
CANSAÇO E ANSIEDADE
Sou apaixonada por este método de relaxamento – tudo o que você precisa fazer é
respirar e contar –, pois ele me acalma quase imediatamente, e posso utilizá-lo a
qualquer momento sem que ninguém perceba. Experimente praticá-lo quando
estiver no trânsito ou num momento estressante no trabalho, ou ainda depois de
vestir seu moletom preferido ao chegar em casa após um dia difícil.
Para começar, respire com naturalidade e perceba a sensação do ar entrando e
depois saindo. Você não precisa mudar a respiração, apenas prestar atenção no ritmo
dela. Siga o ar enquanto ele entra pelo nariz, passa pela garganta e chega aos
pulmões. A seguir, continue acompanhando-o enquanto ele deixa os pulmões, passa
de novo pela garganta e sai pelo nariz. Quando você tiver soltado todo o ar, conte
mentalmente até dois. Então inspire mais uma vez, soltando o ar em seguida. De
novo: Um, dois. Faça isso por um ou dois minutos. Inspire. Solte. Um, dois.
Quando tiver se acalmado, inspire profundamente pelo nariz e solte o ar pela
boca. Ótimo.
Na biblioteca
Esta meditação é uma ótima ferramenta para acalmar a mente quando você
está num lugar agitado.
Encontre um espaço fora do caminho, onde possa ficar sem que ninguém
esbarre em você. Sente-se numa posição confortável e mantenha os pés
apoiados no chão e a coluna ereta.
Fixe os olhos em algo que não esteja se movendo – que não seja uma pessoa
– e preste atenção no seu corpo. Perceba o ritmo da respiração e a sensação das
roupas tocando a pele. Depois de alguns instantes, permita que os olhos
comecem a passear pelas pessoas ao redor. Não forme qualquer opinião sobre
elas – observe o que estão fazendo, a maneira como se movem, a cor do cabelo
ou o formato dos olhos. Estude com curiosidade os detalhes como se você fosse
um artista se preparando para pintar a cena que acontece na sua frente.
Volte periodicamente a atenção para as sensações do corpo, em seguida
retorne para o mundo à sua volta. Lembre-se de que meditar é prestar atenção
de maneira calma e que você pode fazer isso enquanto caminha ou come, numa
almofada ou no meio de uma multidão.
Inspire. Solte o ar. Ótimo.
Alecrim para a lembrança
Use uma cabaça de casca dura, do tipo grande e marrom-claro. Lave-a com
água e sabão e deixe secar naturalmente.
Espalhe álcool de cozinha pela casca para ajudar no processo de secagem.
Acomode a cabaça num lugar ventilado e sem incidência direta de sol.
Deixe descansar por seis meses, virando-a uma vez por semana para garantir
que todos os lados sequem por igual. Se ela começar a dar mofo ou apodrecer,
descarte e comece o processo com uma nova. Quando seca totalmente, a
cabaça fica leve e faz barulho de chocalho ao ser agitada.
Cabaças secas são belos itens decorativos para ambientes tanto internos
como externos. São fortes e duradouras, mas bastante leves. Você pode cortá-
las para fazer um alimentador de pássaros, pintá-las com tinta a óleo ou
acrílica, ou usá-las em estado natural para decorar a mesa de jantar ou a
varanda.
Planos cancelados
Hum...
Ri enquanto digitava a resposta:
Você também?
Era ótimo saber que tanto eu como ela estávamos confortáveis em casa, ela
tranquila e contente do outro lado da cidade, eu me aquecendo no meu cantinho.
Essa é a melhor forma de amizade – quando a felicidade de outra pessoa deixa você
feliz mesmo que não esteja ao lado para testemunhá-la.
De volta à cozinha, e depois de examinar mais uma vez a geladeira, tirei dela
um saquinho de cogumelos-de-paris e alguns ramos de salsinha. Da despensa,
trouxe caldo em conserva, arroz arbóreo e uma garrafa de vinho. Risoto é o prato
ideal para noites como aquela. É quentinho, reconfortante, substancioso e, é óbvio,
uma delícia. Coloquei uma panela grande no fogo e piquei uma cebola em
cubinhos, que refoguei lentamente no azeite. Em outra panela, pus o caldo para
esquentar. Abri o vinho e me servi de uma taça, mas mantive a garrafa à mão para
dali a pouco acrescentar ao arroz.
Quando a cebola adquiriu um tom rosado e começou a exalar um cheiro
mágico, joguei o arroz na panela e mexi por mais ou menos um minuto. A parte
externa dos grãos cou então translúcida, revelando pequenas pérolas brancas no
interior. Com uma concha, comecei a despejar aos poucos o caldo quente sobre o
arroz, mexendo sem parar, e esperando que fosse absorvido antes de acrescentar
mais. Fazer movimentos circulares com a colher de pau, observando o molho
cremoso se formar à medida que o arroz liberava o amido e amolecia, foi como
uma forma de meditação. Mais uma concha de caldo, mais um tempinho mexendo.
O vapor saboroso que subia das panelas aquecia o rosto e o pescoço.
Piquei a salsinha, reservando-a para salpicar por cima do risoto quando
estivesse pronto, e cortei os cogumelos em quatro. Em seguida, salteei-os numa
frigideira à parte com um pouco de vinho. Com o fogo desligado, juntei os
cogumelos ao arroz e misturei enquanto temperava tudo com generosas pitadas de
sal e pimenta-do-reino.
Por m, passei o risoto para uma tigela. Minha barriga roncou de ansiedade
enquanto eu levava a refeição para a mesinha de centro da sala. Sim, eu ia jantar
enquanto assistia a um lme debaixo da coberta – ninguém podia me impedir.
“Bom apetite”, falei para ninguém.
Depois de me acomodar – pernas para o alto, tigela no colo, taça na mão –,
liguei a TV. Havia um lme que eu estava guardando para uma noite como aquela.
Não tinha conseguido vê-lo no cinema quando esteve em cartaz, e a lembrança
disso me fez rir. É provável que eu e minha amiga tivéssemos combinado de ir, mas
cancelado na última hora. Era uma história de detetive passada há mais de um
século, com lindas paisagens e vários atores preferidos. Eu tinha lido o livro que
deu origem ao lme, mas como fazia muito tempo e já não lembrava quem era o
assassino, ia poder brincar à vontade de detetive enquanto assistia. A chuva
açoitava a janela atrás de mim. Tomei um gole demorado de vinho e apertei o play.
Bons sonhos.
PARA SENTIR BEM-ESTAR DEPOIS DE UM DIA
RUIM
Alguns dias não são tão bons, outros são turbulentos mesmo. Quando chegar
em casa no final de um dia em que nada deu muito certo, vá até a cozinha e
prepare uma caneca bem grande de chocolate quente. Você pode acrescentar
um punhado de gotas de chocolate – fica ainda mais gostoso. Ou preparar um
chá com um pouquinho de açúcar e uma dose generosa de uísque. Enquanto
despeja a bebida na xícara, você tem a permissão de pensar: “Praticamente um
remédio.” Saiba que esse tipo de desculpa não é necessário, afinal você teve um
dia intempestivo.
Ande pela casa conferindo as trancas das portas e, quando tiver checado
todas elas, diga ao mundo: “Não entre aqui.” Então vá para o seu quarto, deixe o
chocolate quente na mesinha de cabeceira e ligue o abajur. Vista o pijama mais
confortável que tiver, aquele que já foi lavado centenas de vezes e ficou tão
fininho e macio que colocá-lo no corpo faz você soltar um suspiro de alívio.
Vista também um casaco ou um moletom bem confortável. Feche o zíper até o
pescoço e ponha o capuz. Meias também são úteis neste momento.
Agora, vá se deitar. Se a pessoa amada estiver na cama, você pode se
recostar em seu colo e deixar que a pessoa faça cafuné em sua cabeça enquanto
adormece. Se houver um cachorro ou um gato, ele vai se deitar ao seu lado e
aquecer você, que vai sentir o coração dele batendo. Se não estiver com
ninguém, relaxe e perceba que tem toda a liberdade de demonstrar seus
sentimentos, sem precisar explicá-los a ninguém. Se o telefone tocar, não
atenda. Se houver mensagens ou tarefas inacabadas, pode deixá-las para o dia
seguinte. Você já fez o bastante por hoje.
Beba alguns goles do chocolate quente. Desligue a luz. Cubra-se. Pense em
algo simples e suave. Inspire... e expire. Inspire... e expire.
No moinho, com abóboras e maçãs
E
u havia esperado o verão inteiro, suportando com paciência o calor.
Agora o outono estava ali geladinho, trazendo a sensação de
energia e frescor que espanta a apatia sonolenta do verão. A luz da
tarde era alaranjada de um jeito que só é possível nessa época do ano, o ar
tinha um cheiro doce e picante, as folhas estavam perdendo o verde e
criando a cada dia uma nova paisagem. Certa vez, comentei com uma amiga
que minha avidez por ver a cor das folhas era tão grande que eu não
conseguia enxergá-las tão bem quanto queria. Ela sorriu e disse: “Olhe com
menos força.” Foi um bom conselho. Com paciência e atenção, eu desfrutava
melhor dos momentos pelos quais tinha criado expectativa.
Naquela manhã, enquanto apreciava as cores novas da paisagem e sentia
o ar frio, olhei com um pouco menos de força. Até fechei os olhos e quei
escutando o barulhinho do vento agitando as folhas secas – era um som
diferente daquele que a brisa produzia no verão, quando as folhas estavam
verdes e novinhas, mas que poderia ter passado despercebido se eu não
tivesse escutado tão tranquilamente.
Passamos o restante da manhã varrendo folhas, dispondo vasos de
plantas pela casa e enrolando mangueiras para devolvê-las ao cantinho da
garagem. A varanda estava enfeitada com crisântemos roxos e vermelhos,
mas concordamos que havia algo faltando.
– Acho que precisamos de abóboras – falei.
– É, acho que sim. – Um sorriso, olhos brilhantes.
– E talvez algumas garrafas de suco de maçã?
– Sem a menor dúvida.
Vestimos nossos suéteres e entramos no carro. Passamos pelas estradas
grandes, depois pelas menores e por último pelas de terra, os dedos
entrelaçados no encosto de braço do carro. No rádio, uma canção antiga da
qual eu só lembrava metade da letra. Fileiras e mais leiras de macieiras
baixas e apinhadas passavam pelas janelas, os galhos pendendo com o peso
das frutas. Por m, paramos o carro no gramado repleto de marcas de pneu
do moinho de cidra. Espalhados ao redor do celeiro e da loja estavam barris
cheios até o topo de maçãs, uma quantidade gigantesca delas, frutas pelas
quais esperamos o ano inteiro, pois são muito mais cheirosas e saborosas do
que as que encontramos no mercado. Viam-se também campos de
abóboras, leiras e pequenos montes delas, além de pessoas analisando-as
cuidadosamente e depois dizendo: “Essa aqui é minha.”
Dentro da loja, havia prateleiras repletas de geleias e compotas,
refrigeradores com suco de maçã e travessas de donuts ainda quentinhos.
Alguns eram simples, sem cobertura, outros eram envoltos em açúcar ou
coroados de glacê. Numa das paredes da loja havia uma passagem estreita
que levava à sala de prensagem, onde era possível ver o suco sendo
preparado. Paramos ali e observamos um garotinho que estava vendo a
prensa esmagar as maçãs. Por que é tão fascinante descobrir como as coisas
são feitas?
Eu me lembrei dos vídeos a que assistíamos em dias chuvosos no jardim
de infância e, mais especi camente, de um curta sobre a fabricação de giz de
cera que me encantou na época – centenas de gizes azuis sendo levados por
uma esteira para serem revestidos de papel e, em seguida, arrumados em
suas caixinhas. Elas eram, então, dispostas em caixas de plástico e depois
levadas em caminhões. A lembrança me fez sorrir enquanto via o garotinho
escutar concentrado, com o dedo no queixo e uma expressão de fascínio, o
que dizia o pai, agachado atrás dele enquanto apontava para a máquina que
produzia o suco que o menino estava bebendo.
Saímos da loja e fomos visitar os campos de abóbora, chutando as folhas
secas e admirando o terreno irregular para além do pomar de maçãs –
depois da colheita, alguns trechos tinham sido despidos de qualquer
vegetação, mas em outros se viam pequenas aglomerações de árvores e até
mesmo um riacho. Encontramos algumas abóboras grandes que, com a base
achatada e os cabinhos verdes e espiralados, pareciam saídas de um conto de
fadas. Pegamos algumas dessas e outras pequenas e redondinhas, de um
laranja intenso, que estavam pedindo para ter boca, nariz e olhos entalhados
– seria um dia perfeito de Halloween. Levamos as abóboras para serem
pesadas numa balança velha e enferrujada que cava ao lado do caixa (20
centavos de dólar o quilo). Somando-as a uma sacola de maçãs e a uma
garrafa grande de suco, tínhamos tudo que havíamos planejado comprar.
Até mais.
Em casa, pusemos as abóboras na varanda e nos sentamos para apreciar
os últimos instantes da tarde e saborear os últimos goles de suco. Logo
íamos guardar os ancinhos, recolher os cestos de folhas secas e ajeitar os
vasos de ores. Depois, ao entrar em casa, íamos acender velas e preparar o
jantar. Mas antes, só por alguns minutos, permitimos que o ar frio da
varanda gelasse nossos nariz e pescoço. Escutamos os sons dos pássaros e
dos esquilos indo se deitar, e observamos o céu mudar de cor. Olhamos com
bem pouca força e nos esquecemos de qualquer obrigação.
Bons sonhos.
Admirador secreto
A
o chegar em casa e tirar as chaves do bolso, vi que havia um
pedacinho de papel preso a elas.
Um vento bateu e ameaçou levá-lo, mas estendi rapidamente a
mão para pegá-lo no ar. Pensei que fosse um papel de chiclete ou um
ingresso antigo de cinema, mas, ao desdobrá-lo, percebi que ele tinha um
bilhete escrito à mão:
Você é adorável.
RENDE 1 XÍCARA
Quando minha mãe chegava em casa no fim do dia, ela parava diante de uma
pequena cômoda ao lado da porta e tirava com calma o relógio de pulso e cada
um de seus anéis, colocando-os num prato de cerâmica que havia sido posto ali
para cumprir exatamente essa função. Ela usava as mãos no trabalho o dia todo,
e elas deviam estar doloridas. Então, massageava uma por uma as articulações
e pressionava com o polegar a palma das mãos, fazendo movimentos para
amenizar qualquer dor que ainda restasse. Por último, colocava a aliança de
volta no dedo, deixando o restante dos acessórios no prato até o dia seguinte.
Fazia todos esses movimentos em silêncio e só depois de terminar soltava um
leve suspiro e ia se juntar a nós na sala para ouvir e contar as histórias do dia.
Alguém me disse, anos atrás, que um ritual cumprido involuntariamente
não é de grande ajuda, mas que se houver um significado por trás da prática, e
se pensarmos nesse significado enquanto a executarmos, ele pode se
transformar em uma ótima ferramenta e nos ajudar a superar certas situações,
a celebrar outras, a valorizar o que temos e a fazer um sem-número de boas
ações. Quando soube disso, pensei na mesma hora em minha mãe e no prato de
cerâmica na cômoda ao lado da porta. Ela mesma tinha inventado aquele ritual,
um modo de cuidar de si depois de um longo dia de trabalho, assim como de
deixar para trás um mundo de engarrafamentos e correria e entrar naquele
outro mundinho que era só seu, em sua casa, com a sua família.
Aqui está a sugestão de um ritual simples. Tomar um banho quente de
banheira é uma ótima forma de autocuidado. Você vai precisar de:
Como cada etapa de um bom banho leva tempo, este é um ritual para
desacelerar. Às vezes a correria é contagiosa – corremos sem perceber, porque
o ritmo do mundo à nossa volta é frenético. Em primeiro lugar, tente se
distanciar do dia atarefado e de sua pressa. Desligue e deixe fora do banheiro o
celular, o tablet, o smartwatch ou qualquer outro aparelho eletrônico –
desligue-os de verdade. Eles não podem entrar no banho com você, nem
mesmo seus toques ou vibrações são bem-vindos nesse momento.
Entre no banheiro e feche a porta. Tranque-a, se puder. Ao fazer isso, pare e
perceba que você está trancando o mundo do lado de fora. Ninguém mais está
com você. É possível que você se dê conta de que estava tensionando os
ombros ou a mandíbula. Pode relaxar agora.
Ligue a água da banheira e ajuste a temperatura até que esteja do jeitinho
que gosta. Se for usar espuma de banho ou sal de Epsom, essa é a hora de
adicioná-los. Preste atenção nas bolhas se formando ou no sal se dissolvendo
na água. Talvez a mente, tão acostumada a pensar em várias coisas ao mesmo
tempo, queira se desviar para outras atividades. Pode ser um pouco
desconfortável a princípio, mas não se distraia. Mantenha a atenção no aqui e
agora. O hábito de fazer uma tarefa por vez pode se tornar bastante relaxante
com a prática.
Quando a banheira estiver cheia, feche as torneiras.
Acenda a vela. Você pode pensar em um desejo ou simplesmente prestar
atenção no processo de riscar o fósforo e acender o pavio.
Tire as roupas.
Deixe a toalha de banho em um lugar ao alcance da mão, e a de rosto ao
lado da banheira.
Ao entrar na água, note qual é a sensação que ela provoca na pele. Recline-
se para trás e permaneça assim por dez minutos.
Quando você era bebê, alguém cuidava de você. Agora, cuide-se com os
mesmos carinho e atenção, primeiro ensaboando o corpo e depois enxaguando
sem pressa – você não deixou de merecer aquele mesmo cuidado da infância.
Ao terminar o banho, abra a tampa do ralo e permaneça no banheiro
enquanto a água escoa. Embrulhe-se na toalha ou em um roupão e enxágue a
banheira, deixando-a prontinha para o próximo ritual. Apague a vela e respire
fundo antes de abrir a porta.
Pronto: você praticou o autocuidado. Agora, pode se dedicar a cuidar dos
outros.
Sopa para um dia chuvoso
J
á é hábito: depois do Dia de Ação de Graças, pessoas correm para as
lojas às quatro da madrugada para fazer compras até quase
desmaiarem de cansaço. Eu nunca senti a menor vontade de me
juntar a elas.
Para mim, esse dia é ideal para ficar na cama até tarde, bebendo
lentamente uma xícara de café enquanto penso em que tipo de torta comer
no café da manhã. Era isso o que eu sempre fazia. Em meio aos travesseiros
e ao edredom fofinho, já estava na minha segunda xícara; a casa ainda
dormia profundamente. Eu estava lendo um livro e, ao mesmo tempo,
relembrando a noite anterior, que volta e meia me fazia sorrir.
O jantar de Ação de Graças reúne familiares e amigos que são tão
queridos e antigos que é como se pertencessem à família. Começa bem cedo
– o dia ainda está claro quando os carros começam a estacionar perto de
casa e a campainha, a tocar. Travessas acomodadas em bolsas térmicas são
então passadas de mão em mão, copos e taças são servidos, e pequenos
grupos se formam ao redor de pratinhos de nozes, azeitonas e picles. Todo
mundo ajuda, seja mexendo ou provando as comidas, seja colocando a
mesa, e em seguida nos sentamos e brindamos o ano que passou, cada um
de nós e tudo que temos. A partir daí é hora de comer, de passar os pratos
uns para os outros, de encher de novo os copos e de dizer que não
aguentamos nem mais uma garfada – e, é claro, de comer mais um
pouquinho. Há sempre um momento de calmaria assim que a refeição
acaba: as crianças vão jogar futebol no quintal para gastar toda a energia,
adultos se espreguiçam ou tiram um cochilo, outros papeiam enquanto
guardam as sobras, tiram a mesa e preparam um café para acompanhar as
tortas.
O pensamento me trouxe de volta à questão mais importante daquela
manhã: qual torta comer junto com o café. Desci para a cozinha, que ainda
bem que tinha sido arrumada pelo mutirão na noite anterior, e estudei as
opções: abóbora, maçã e noz-pecã. Que escolha difícil! Eu costumava pegar
um pedacinho de cada uma nessas situações, mas sabia que, naquele dia, a
resposta seria abóbora.
Cortei uma fatia generosa da torta e me servi de mais uma xícara de
café. Tinha resolvido testar algo novo naquele ano, batendo uma lata de
leite de coco gelado até engrossar e virar uma cobertura cremosa. Pus um
pouco dela sobre a torta, outro pouco no café. Enquanto comia e
bebericava, andei de meia pela cozinha, parando à janela para olhar o dia lá
fora. Nada de neve, mas as folhas estavam cobertas por uma grossa camada
de gelo, e o ar parecia bastante frio apesar do sol. Vi um passarinho – um
cardeal-do-norte com rosto preto e bico vermelho – pousado no alimentador
de pássaros; ao lado dele, num galho, estava um chapim cinza-claro, com
manchas alaranjadas debaixo das asas e na barriga. Os dois se fartaram em
nosso alimentador e bicaram algumas sobras de frutinhas silvestres em
torno das árvores e dos arbustos.
Eles me fizeram lembrar da tigela de cranberries lavadas e prontinhas
para comer que estava na geladeira e que eu havia esquecido de usar no dia
anterior. Estalei a língua – ninguém nunca come essas frutas mesmo. Pensei
então em usá-las, junto de pipocas, para fazer um cordão para pendurar na
árvore de Natal. Ficaria perfeito!
Ao meu traje de pijama e meias, acrescentei um velho cardigã verde,
abotoando-o enquanto ia até o closet para procurar linhas e agulhas. Elas
não eram minhas – eu havia herdado uma caixa de costura de uma tia que
adorava costurar. Quando seus olhos começaram a falhar, ela resolveu me
dar todos os apetrechos que tinha de seu passatempo, na esperança de que
eu o levasse adiante. Embora não tivesse feito isso, eu adorava aquela
caixa; coloquei-a na mesa e explorei alguns dos itens ali. Havia uma bela
tesoura de prata (lembro-me de me dizerem, quando eu era criança, que ela
só podia ser usada para costurar); uma almofada de alfinetes em forma de
tomate, mas com um moranguinho pendurado, ainda cheia de agulhas e
alfinetes da minha tia; e um vidro de geleia repleto de botões. Virei alguns
na mão para examiná-los, tentando imaginar de que vestido, paletó ou
sapato chique de salto alto teriam saído. Escolhi uma linha grossa, peguei a
almofadinha com as agulhas e guardei o restante.
Tirei as cranberries da geladeira e a panela de pipoca de um armário da
cozinha. Nela, derramei um pouco de óleo e joguei três grãos de milho
antes de ligar o fogo.
(Preste atenção, vou contar um segredo para preparar pipoca: espere
esses três grãos estourarem e, aí sim, acrescente os outros. Desse jeito,
todos os grãos que você jogar na panela vão estourar, mas nenhum deles vai
ficar queimado – não sei por que isso dá certo, mas dá.)
Pensei que o cheiro da pipoca misturado ao do café quentinho ia me
trazer companhia, o que seria muito bem-vindo naquela manhã. Passei a
pipoca pronta para uma tigela imensa e temperei com uma pitada de sal. Em
seguida me acomodei no sofá, levando um bom pedaço de linha preta, uma
agulha, a tigela de pipoca e as cranberries, além de um prato fundo para ir
apoiando as partes já enfiadas do enfeite. Eu comia uma conta, enfiava
outra, e assim continuei trabalhando por algum tempo, até que ouvi o som
de pantufas pisando os degraus da escada e, logo depois, o de café sendo
servido na cozinha.
Olhos sonolentos me olharam por cima da xícara:
– Cadê a música de Natal? Precisamos acender a lareira!
Sorri, feliz em pensar que ainda teríamos o dia inteiro pela frente.
– Sim, por favor – respondi.
Bons sonhos.
O burburinho da cidade
Há anos faço enfeites simples de papel para a decoração de Natal. Às vezes uso
cartolina colorida para criar enfeites bem grandes, outras vezes uso papel de
origami, de cores variadas. Rápidos e fáceis, são perfeitos para fazer junto com
as crianças, e podem ser usados tanto para decorar a árvore de Natal e as
janelas de casa como as plantas em cima de uma lareira.
Dobre ao meio uma folha de origami. Com o lápis, desenhe uma figura como a
da ilustração. Depois de repetir algumas vezes esse formato, você pode alterá-
lo, fazendo a parte de baixo um pouco mais arredondada, mais fina ou mais
retangular. Sinta-se livre – não tem como errar.
Recorte a figura. Para que as linhas feitas a lápis não fiquem visíveis no
enfeite, posicione a tesoura no lado de dentro do contorno ou, se preferir, use
uma borracha para apagá-lo depois. Em seguida, corte as três linhas no centro
da figura. Note que elas não chegam às extremidades do papel – se for longe
demais com a tesoura, você pode acabar despedaçando um enfeite. Faça cortes
de cerca de 2 ou 3 centímetros. Recorte também, caso pretenda pendurar o
enfeite, o pequeno detalhe em forma de diamante na parte de cima da figura.
Abra o papel. Os cortes do meio são importantes para dar volume ao
enfeite. Empurre a tira de papel que está abaixo do primeiro corte para trás e
reforce a dobra para que permaneça assim. Repita o processo com a segunda
tira, mas no sentido oposto – ela deve ficar voltada para a frente do enfeite. Por
fim, dobre a última tira – a mais grossa, na base do enfeite – para trás, assim
como a primeira.
Você pode cortar um pedaço de linha ou fio dental, passá-lo pelo
buraquinho de cima e pendurar o enfeite, ou acomodá-lo em qualquer
superfície que queira enfeitar. Se preferir, pode fazê-lo brilhar colando um
pouco de purpurina nas bordas do papel.
Na hora de comprar a árvore
H
avia um pequeno bistrô numa esquina a alguns quarteirões de casa.
Era um lugar comprido e estreito, com luz baixa e mesas
espaçosas perto de uma das paredes, além de um bar que se alongava
por outra. Luzinhas enfeitavam as amplas janelas que davam para a rua, e
cada mesa tinha uma ou duas velas acesas em potinhos de vidro. Tínhamos
saído de casa para comprar a árvore de Natal, mas antes precisávamos
comer e beber algo. Demos sorte e conseguimos nos sentar na última mesa
vaga do salão, num cantinho aconchegante de onde podíamos ver as pessoas
caminhando na calçada e os carros – alguns deles com uma árvore
amarrada ao teto – passando na rua.
Já fazia uma semana desde a noite de Ação de Graças, mas queríamos
evitar outro banquete semelhante àquele. Então, pedimos apenas alguns
aperitivos e duas taças de champanhe. O garçom trouxe uma bandeja de
petiscos variados. Havia nozes tostadas ainda quentinhas, temperadas com
alecrim e raspas de laranja; uma cesta de pães com miolo macio e casca
crocante; um potinho fundo de azeite salpicado de vinagre balsâmico e
ervas frescas; um pratinho de cogumelos e corações de alcachofra grelhados;
algumas azeitonas verdes graúdas. Depois que o champanhe e um pratinho
de framboesas foram servidos, agradecemos e brindamos a nós e ao dia
alegre que tínhamos pela frente. Bebi um gole e senti a efervescência
deliciosa na minha língua enquanto observava a neve fraca que começava a
cair na rua. “Bolhas combinam com ocos de neve”, pensei.
Comemos sem pressa, saboreando tudo enquanto conversávamos sobre
o que queríamos fazer naquela estação: patinar no gelo, convidar amigos
para uma ceia em nossa casa, ver um lme antigo de Natal que estava em
cartaz no cinema. Passamos um tempinho em silêncio também, apreciando
a neve e os sabores. É um privilégio ter alguém com quem se possa estar em
silêncio e desfrutar de um momento simples e prazeroso. Eu nunca deixava
de dar valor àquilo. Agradeci silenciosamente e senti no corpo inteiro a
onda de bem-estar com que a sorte me presenteou.
Depois de pagar a conta e vestir luvas, cachecóis e gorros, saímos na
neve e paramos por um segundo para deixá-la cair no rosto enquanto
sentíamos o cheiro frio e agradável do inverno. Em seguida, entramos no
carro e partimos para a fazenda dos pinheiros.
Quando eu era criança, meus pais nos levavam todos os anos para cortar
a nossa própria árvore. Depois de fazer uma excursão pela fazenda,
percorríamos a pé as plantações cobertas de neve enquanto debatíamos qual
pinheiro seria perfeito para a nossa casa. Agora que sou adulta, admiro a
dedicação atribuída a essa escolha nada fácil, e as lembranças daqueles dias,
ainda revestidas da empolgação infantil da época, me fazem sorrir.
Alguns anos antes, havíamos descoberto um lugar que, além de uma boa
oferta de pinheiros, tinha uma ótima loja montada numa antiga casa de
fazenda, onde eram vendidos enfeites de vidro para pendurar na árvore e
hot cider, uma bebida quente preparada com suco de maçã. A lareira da loja
exibia sempre um fogo enorme e crepitante, que me deixava feliz de termos
aberto mão de cortar a nossa própria árvore.
No estacionamento forrado de neve, paramos o carro ao lado de alguns
pinheiros prontos para serem transportados a um novo lar. Algumas coisas
nunca perdem a graça, e escolher a árvore de Natal é uma delas. “Vamos lá,
amor”, falei, esfregando as luvas. “Vamos encontrar a nossa árvore.”
Caminhando na neve recém-caída, começamos a estudar as opções.
Gostamos de árvores que se parecem com a do Charlie Brown – altas e um
pouco desajeitadas, com espaços vazios em que podemos colocar os enfeites
preferidos –, mas é difícil encontrá-las. Vimos um homem embrulhado em
roupas quentes de trabalho, os olhos brilhando no frio, e o reconhecemos:
era o vendedor que havia nos ajudado no ano anterior. Ele acenou e disse
que tinha a árvore perfeita para nós. Ao ver um pinheiro alto e
desengonçado na plantação, havia se lembrado da gente e decidido cortá-lo,
na esperança de que voltássemos naquele ano. E lá estávamos nós. Eu
agradeci pela gentileza e, enquanto ele se encarregava de alçar a árvore e
prendê-la com cordas resistentes ao teto do carro, entrei na loja para
comprar uma xícara de algo quente para beber.
Mais que a bebida quente, o que eu queria ali na loja enquanto andava
despretensiosamente de um lado para outro era fazer cafuné na gatinha que
vivia ali. O ar estava quentinho e delicioso, e me fez perceber como meu
corpo estava gelado; quei em pé diante do fogo por alguns instantes,
estendendo as mãos para aquecê-las no calor das chamas. A pequena casa
estava decorada com luzinhas natalinas e cheirava a ramos de pinheiro que
tinham sido espalhados pelos espaços vagos das prateleiras. Pedi um
chocolate quente e uma hot cider, e perguntei, apontando na direção do
homem que lutava para conseguir pôr a árvore sobre o carro lá fora, o que
ele gostava de beber.
– Acho que ele iria adorar um café – respondeu a atendente.
– Então gostaria de um café também, por favor.
– Está bem. Sei que ele gosta do café sem leite e com dois cubinhos de
açúcar – completou, com uma piscadela.
Ela guardou o dinheiro e estava se virando para cuidar do meu pedido
quando ouvi um miado baixinho vindo dos meus pés, e, ao olhar para baixo,
vi a gatinha malhada andando ao meu redor. Eu me abaixei, z carinho em
sua cabeça, conversei um pouco com ela. Seu corpo era gordinho, sua
barriga, grande e simpática. Depois de se cansar de mim, ela saiu para
procurar outra pessoa com quem conversar. Levei as bebidas para o lado de
fora e estendi-as agradecendo, desejando boas-festas e dizendo que nos
veríamos dali a um ano. Entramos no carro e partimos para casa.
Bons sonhos.
Presos em casa
N o dia anterior, haviam dito que ia nevar durante a noite e ao longo de todo o
dia seguinte.
A neve iria se acumular nas ruas e nas nossas portas, nos campos e nas
estradas, e era melhor que permanecêssemos em casa. No vilarejo inteiro e em cada
canto do condado, todos estavam de acordo com essa precaução. Naquele dia,
estávamos presos em casa por causa da neve.
No silêncio absoluto daquele início de manhã, ainda na cama, pensei na neve
como uma coberta grossa que revestia o chão, o telhado da minha casa, os galhos
nus das árvores e qualquer outra superfície que encontrasse. Não me movi, apenas
senti os braços e as pernas quentes e relaxados debaixo do edredom enquanto
re etia sobre a maravilha que é saber que haverá um dia de neve pela frente – e
como é bom saber disso na noite anterior. Eu havia dormido profundamente e
acordado sem qualquer lembrança de algum sonho, mas percebia que estava com a
energia renovada para começar o dia. Calcei as pantufas que estavam esperando
por mim ao lado da cama e vesti um suéter grosso e longo antes de me aproximar
da janela. Abri as cortinas devagar, sentindo um friozinho na barriga ao ver a
paisagem coberta de branco.
Já vi neve milhares de vezes – cresci com ela. Desde que eu era pequena,
levantar da cama e colar o rosto à janela gelada, na manhã seguinte a uma nevasca,
se repete todos os anos. Ainda assim, o encantamento que essa paisagem provoca
em mim é sempre o mesmo. A luz suave da manhã projetava sombras compridas
nos pequenos montes de neve e fazia reluzir os delicados ocos que continuavam a
cair; ao redor da minha casa, a superfície branquinha, ao mesmo tempo lisa e
ondulada, estendia-se a perder de vista. Continuei ali por um tempo, encolhendo-
me e esfregando os braços para me proteger do frio que vinha da janela, e também
apreciando a neve que caía e tendo consciência do presente que era passar um dia
todo em casa por decisão da mãe natureza.
Na minha infância, os dias de neve eram de pura diversão, de brincar de trenó
por horas e horas, dar um pulo na cozinha para uma caneca de chocolate quente e,
em seguida, correr de novo para a neve. Agora que sou adulta, são dias de alívio.
Eles nos forçam a relaxar, presenteando-nos com horas tranquilas em que ninguém
pode esperar nada de nós. E, num mundo agitado em que as coisas às vezes andam
rápido demais, esse descanso é um remédio precioso.
Eu tinha abastecido a cozinha no dia anterior, que estava cheia de mantimentos
imprescindíveis para um dia de neve: um quilo de grãos de café fresquinhos; um
pão grande para fazer sanduíches e torradas; uma sacola de padaria repleta de
muffins e scones; e um saco de laranjas e toranjas. Na geladeira havia uma jarra de
suco e diversas verduras, e na despensa, arrumadinhos em leiras organizadas,
potes de picles, pacotes de massa e biscoito, sacos de arroz e conservas caseiras de
tomate e feijão. Olhei pela janela da cozinha e disse à neve: “Pode continuar caindo,
tenho o bastante para algumas semanas.”
Enquanto preparava um pouco de café, tirei um pedacinho de muffin e comi.
Mas, pensei, se é para começar algo é melhor fazer direito, e peguei no armário a
máquina de waffle. A nal, ter tempo de sobra para aproveitar tudo aquilo que
temos vontade de fazer, mas que normalmente deixamos pra lá, é parte da graça de
um dia de neve. Servi uma xícara de café, apanhei alguns ingredientes nas
prateleiras e, enquanto a máquina esquentava, comecei a misturá-los. Arrumei a
mesa da cozinha para uma pessoa, pondo sobre ela um garfo, um guardanapo e o
meu prato lascado predileto.
Lembrei-me de algo que minha tia costumava fazer quando éramos pequenos.
No armário havia um prato especial, que tinha desenhos dourados e não
combinava com nenhum outro. Se um de nós fosse bem numa prova, ou zesse
aniversário, ou mesmo estivesse num dia ruim, precisando de um consolo, ela
colocava o prato na mesa para essa pessoa. Quando nos sentávamos para jantar, ela
nos fazia um carinho nas costas, e cávamos bem na mesma hora. O jantar era
muito mais gostoso daquele jeito.
A lembrança me deu um grande bem-estar enquanto eu despejava um pouco
de massa na máquina de waffle. O barulhinho que ela fez ao encostar no ferro
quente e o cheiro que instantaneamente se espalhou pela cozinha me zeram sorrir.
Com waffles e panquecas, a regra dos três nunca falha – o primeiro gruda, o
segundo queima, o terceiro ca perfeito. Quando consegui um prato cheio deles,
levei-os para a mesa junto do café fresquinho e de um pote de xarope de bordo
levemente aquecido, e assisti à neve cair enquanto comia. Em seguida, descasquei e
comi sem pressa uma laranja, alternando os gomos com goles de café. Guardei os
pedaços da casca para preparar uma infusão aromatizadora mais tarde, junto com
paus de canela, cravos e um pouco de baunilha. Eu podia deixá-la no fogo o dia
inteiro para que enchesse a casa daqueles aromas deliciosos, além de umedecer o ar
seco com seu vapor. Lavei o prato, ajeitei a cozinha e andei pela casa, olhando de
cada uma das janelas o dia lá fora.
Na noite anterior, eu havia trazido lenha para dentro de casa, e a lareira estava
pronta para ser acesa. Risquei um fósforo grande e encostei-o num pedaço de papel
amassado junto a alguns gravetos. Enquanto o fogo se espalhava, fui colocando os
pedaços maiores de madeira e permaneci ali, de cócoras, até estar com as mãos e o
rosto bem aquecidos. Estava ventando agora, e eu podia ver pequenas espirais de
neve que surgiam diante da janela e logo se desmanchavam. Talvez mais tarde eu
me agasalhasse e saísse para uma longa caminhada pelos campos e pelo bosque,
preparando na chegada, como recompensa, uma xícara de bebida bem quente.
Agora, porém, não pretendia deixar meu cantinho aconchegante. Podia espalhar
um quebra-cabeça na mesa e deixar um lme passando enquanto tentava montá-lo,
passar algumas horas lendo, talvez car de molho na banheira quente até os dedos
carem como uvas-passas. Mas antes, bem alimentada e com o corpo aquecido, me
estiquei no sofá. Depois de cobrir as pernas com uma manta, cheguei à conclusão
de que a melhor ideia naquele momento era fechar os olhos, escutar os estalos da
madeira e tirar uma longa soneca invernal.
Bons sonhos.
INFUSÃO AROMATIZADORA PARA
CADA ESTAÇÃO
PRIMAVERA
um punhado de flores secas de lavanda
alguns ramos de alecrim
2 colheres (chá) de extrato de limão-siciliano, ou casca de dois limões, em tiras
alguns anis-estrelados
VERÃO
casca de duas laranjas, em tiras
1 colher (chá) de extrato natural de baunilha
1 colher (sopa) de cardamomo
OUTONO
2 paus de canela
2 pinhas
1 maçã, em fatias
1 colher (chá) de uma mistura de canela, noz-moscada, cravo, pimenta-da-
jamaica e gengibre
INVERNO
1 laranja, em fatias
3 ou 4 ramos pequenos de pinheiro
12 cravos-da-índia
Uma noite no teatro
T
ínhamos visto o anúncio antes do Dia de Ação de Graças.
Tratava-se de uma peça no grande teatro do centro da cidade,
um espetáculo descontraído, talvez um pouco fútil, com dança,
números musicais e orquestra, e que ia ficar em cartaz o mês de dezembro
todo. O anúncio no jornal nos chamou a atenção em momentos diferentes, e
quando, no jantar, sugerimos ao mesmo tempo que fôssemos assistir à peça,
demos uma gargalhada. Não temos o costume de ir a grandes musicais, já
que preferimos montagens mais intimistas em teatros menores, mas
estávamos – acho que por ser fim de ano – com vontade de ver algo que nos
fizesse rir e bater os pés junto com a música. No meu caso, o final do ano
me faz sentir como se fosse criança de novo – na infância, minha família
sempre ia a um grande espetáculo na semana anterior ao Natal.
Caprichávamos nas roupas: bons casacos e sapatos engraxados e uma
bolsinha onde eu punha objetos preciosos. As crianças sabem transformar
pequenas situações cotidianas em tesouros. Se alguém abrisse aquela bolsa,
encontraria alguma bugiganga que eu tivesse ganhado na escola – talvez um
apito ou um vidro do mar –, um bloco de anotações, um pequeno lápis e um
vidro minúsculo de perfume furtado do armário da minha mãe, além de um
chaveiro com chaves velhas que eu gostava de fingir que eram minhas.
Éramos levados para jantar num restaurante, onde nos instruíam a todo
instante para não sujarmos as roupas antes da hora do espetáculo. Ao
chegarmos ao teatro, eu ficava admirando, de queixo caído, os ternos e
vestidos chiques, assim como o próprio teatro, tão imenso que mais parecia
uma catedral. Eram magníficos os detalhes das arcadas e dos murais
pintados no teto, deslumbrantes os corrimãos dourados, o carpete vermelho
e as longas escadarias que levavam aos camarotes.
Meu pai prendia minha mão debaixo do braço e me levava até os nossos
assentos. Então, segurando o programa, eu me sentava com os pés a um
palmo do chão e a barriga tomada por aquela expectativa deliciosa que
sentimos quando estamos nos preparando para assistir a uma apresentação
ao vivo. Quando as luzes se apagavam e a orquestra começava a tocar, eu
abria os olhos o máximo que conseguisse e escutava com toda a atenção,
pois não queria correr o risco de perder uma nota, pirueta ou piada que
fosse. No fim da noite, voltávamos para o carro com a mistura de
entusiasmo e exaustão que sentimos com tanta frequência quando somos
crianças. Na volta para casa, rodávamos pela vizinhança para ver as casas
decoradas com luzinhas de Natal. Eu me lembro de encostar o rosto contra
o vidro gelado do carro e, admirando as luzes, sonhar com o meu espetáculo
de música e dança.
Com essas lembranças na cabeça, comprei dois ingressos.
Na noite da peça, usei meu vestido vermelho preferido. Eu ainda
carregava uma bolsinha cheia de pequenos pertences preciosos, mas agora –
com exceção do bloco de anotações e do lápis – eram um pouco diferentes:
um batom de um tom vibrante de vermelho, um porta-moedas com alguns
trocados e um papelzinho de biscoito da sorte que eu tinha ganhado no
nosso primeiro encontro e que guardava com o maior cuidado. Passei um
pouco de perfume atrás das orelhas e enrolei uma echarpe no pescoço. Que
divertido era reviver, agora do ponto de vista de uma pessoa adulta, algo
que eu adorava quando criança.
Antes do espetáculo, fomos jantar num dos nossos restaurantes
prediletos, que estava lotado por causa do período de festas. Costumo
preferir ambientes mais tranquilos, mas naquela noite estavam todos tão
alegres que não me incomodei nem um pouco. Olhei para as outras mesas e
vi tantas pessoas fazendo brindes, tantos sorrisos verdadeiros e olhos cheios
de alegria que fiquei feliz de estar no meio de toda aquela celebração.
Depois de brindar, comemos, bebemos e contamos histórias, algumas das
quais, mesmo depois de tantos Natais compartilhados, ainda não
conhecíamos. Eu achava lindo que duas pessoas pudessem viver juntas por
décadas e ainda assim ser capazes de surpreender uma à outra.
O teatro tinha uma bilheteria como as de antigamente, onde fiz uma
parada para retirar os ingressos. Sempre adorei o momento em que o
bilheteiro passa os ingressos pela pequena abertura no vidro, deixando-os
naquele pratinho de metal. Sorri para ele ao pegá-los, ele sorriu de volta.
A
cordei com a sensação de expectativa de que algo bom estava prestes a
acontecer.
Permaneci imóvel por alguns instantes, com a cabeça no travesseiro.
Então sorri: era véspera de Natal, um dia que eu amava e pelo qual esperava o ano
todo. Devagarzinho, sentei na beirada da cama; o quarto estava escuro, e eu ouvia
a respiração lenta e suave do meu amor. Como não queria interromper seu
descanso, achei melhor me levantar. A cachorra, que estava dormindo junto a
nossos pés, abriu um dos olhos castanhos para me olhar. Eu me agachei e sussurrei
em seu ouvido: “É véspera de Natal.” Ela pareceu entender, e eu acariciei seu
pescoço enquanto dava um beijo no espaço grande e fofo entre suas sobrancelhas.
Quando me pus a caminho do corredor, ela veio atrás de mim. Fechamos a porta do
quarto e, na ponta dos pés, fomos dar início ao dia.
Enquanto a chaleira esquentava, vi pela janela da cozinha a cachorra
vasculhando o quintal e passeando por entre as árvores decoradas com luzes.
Alguns passarinhos voavam pelos galhos. Na sala, abri a porta da frente para ver as
casas ainda iluminadas da noite anterior, cordões de luzinhas delineando o cume
dos telhados, emoldurando as janelas e dando voltas em troncos e galhos de
árvores. Ouvi o apito da chaleira e, ao voltar à cozinha, vi a cachorra esperando na
porta dos fundos. Depois de ligar as luzes da árvore de Natal, eu me sentei no sofá;
ela subiu e se deitou com a cabeça em meu colo. Estendi uma coberta sobre nós. A
casa estava em silêncio, iluminada apenas pelo brilho da árvore. Acariciei o
pescoço felpudo da cachorra enquanto bebia sem pressa o chá.
Anos antes, eu tivera uma cachorra que não ligava para demonstrações de
afeto. Estar no mesmo quarto que eu era suficiente para ela, que passava a maior
parte do tempo deitada em sua pequena cama. Dia ou outro, ela vinha andando
devagar e encostava a testa quentinha na minha perna. Eu esfregava as suas costas,
até que ela resolvia voltar a cuidar de seus negócios caninos. Olhando para a minha
garotona, agradeci silenciosamente a todos os cachorros do mundo por sua
amizade. Eu tinha a impressão – que só aumentava com o passar dos anos – de que
o que mais importa na vida é fazer amigos, aproveitar os momentos que passamos
com eles e com quem mais esteja com a gente, e prestar atenção em tudo isso.
Era o que eu pretendia fazer naquele dia. Íamos receber alguns amigos para
uma pequena ceia, com direito a lareira acesa e bastante música e comida. Eu tinha
tirado o pó do piano e estava torcendo para que alguém ficasse ali dedilhando por
muito tempo. Senti um calor se espalhar pelo meu peito ao pensar que estaríamos
reunidos mais uma vez com amigos queridos.
No dia anterior, eu tinha passado horas na cozinha, com o avental cheio de
farinha e açúcar de confeiteiro, preparando delícias no forno: pães trançados
dourados e brilhosos; biscoitos em forma de estrela cobertos de glacê e polvilhados
de confeitos prateados; biscoitinhos de massa folhada recheados de nozes e canela,
com cobertura de geleia de damasco. Fiz até mesmo biscoitinhos de cachorro para
o Papai Au-au dar à nossa criança.
Estavam prontas umas tortinhas de tomate-seco, pinhão e cebola, que seriam a
entrada. Como prato principal, haveria couves-de-bruxelas assadas – bem tostadas
por fora, crocantes e salgadinhas –, charutinhos de folha de uva e tábuas de frios.
Não me importo de passar um dia inteiro na cozinha. Para mim, é um trabalho
prazeroso, especialmente nessa época do ano. Eu já tinha visto centenas de vezes
um filme de Natal antigo, em preto e branco, que me fez companhia enquanto eu
me dedicava às preparações. Quando tudo estava pronto e terminei de arrumar a
cozinha, admirei com satisfação o resultado do meu trabalho e soltei um suspiro.
Amigos e familiares seriam bem servidos. Minha casa seria um lugar acolhedor
para as pessoas que eu amava. Elas se sentiriam seguras, relaxadas e queridas, e
isso era o que havia de mais importante para mim.
No sofá, enquanto a cachorra roncava baixinho ao meu lado, comecei a
planejar o dia. Teria tempo de fazer uma bela caminhada e depois me esconder em
algum canto para embrulhar presentes. Poderíamos provar as comidas que eu havia
preparado, dar um beijo debaixo do enfeite de azevinho e, quando começasse a
escurecer, vestir as roupas festivas, acender a lareira e as velas, pôr a comida na
mesa e abrir as garrafas de vinho. Então, seria só esperar os amigos começarem a
bater na porta.
Quando eu era criança, imaginava que, quando crescesse, as minhas vésperas
de Natal seriam repletas de viagens de trem por campos nevados e idas a bares
chiques. Imaginava as pessoas em chalés no meio da neve, pondo-se a dançar e
cantar sem mais nem menos. Agora sou adulta, e meus Natais são bem mais
simples: apenas dias em que posso fazer algumas das coisas de que mais gosto,
estar junto das pessoas que considero minha família e apreciar a beleza da neve
caindo ou de uma árvore brilhando na janela de um vizinho. E me sentar no sofá
com uma xícara de algo quentinho e delicioso na mão, junto da cachorra,
agradecendo por mais um ano que passamos nos fazendo companhia.
Bons sonhos.
Eu tinha a impressão de que o que mais
importa na vida é fazer amigos,
aproveitar os momentos que passamos
com eles e com quem mais esteja com a
gente, e prestar atenção em tudo isso.
MEDITAÇÃO PARA NATAIS AGITADOS
Encontre um espaço reservado, longe de todo mundo, onde você possa se sentar ou
se deitar por alguns minutos.
Acomode-se em uma posição confortável. Feche os olhos, inspire pelo nariz e
solte o ar pela boca com um suspiro. Deixe os lábios se tocarem e respire pelo nariz.
Permita que os pensamentos percam a intensidade aos poucos em vez de forçar a
mente a se concentrar no momento presente.
Por alguns instantes, entregue-se ao que quer que esteja sentindo. Talvez você
tenha muito o que fazer e sua mente esteja bem agitada. Talvez ela esteja repleta de
memórias, e você sinta um pouco de tensão ou nervosismo tomar conta. Talvez os
convidados estejam chegando, ou já estejam em sua casa, e você sinta aquela
estranha mistura de animação e ansiedade que só a família é capaz de produzir na
gente. Talvez a sua mente permaneça calma e sossegada e você busque apenas um
pouco de conexão. Permita-se sentir o que quer que esteja sentindo. Enquanto se
conecta aos pensamentos e às emoções, procure identificar as sensações que eles
provocam em seu corpo. Todas as emoções dão origem a sensações físicas, e ser
capaz de identificá-las fará você perceber o que está sentindo, além de contribuir
para o autoconhecimento.
Quando depositar toda a atenção nas emoções – ao escutá-las sem tentar fazer
qualquer modificação –, você notará que elas vão se acalmar. Gosto de pensar nos
sentimentos como amigos que você está indo encontrar em um restaurante. Quando
veem que você está chegando, eles erguem o braço e acenam com empolgação, mas
quando vocês fazem contato visual se acalmam de imediato. Já se viram, agora
podem relaxar. O mesmo ocorre com as emoções insistentes que tomam conta da
nossa mente – precisam ser vistas e sentidas. Costumam se tranquilizar assim que
isso é feito.
Quando as ondas dentro de você tiverem se transformado em marolas, volte a
atenção para o espaço entre a ponta do nariz e o topo do lábio superior. Perceba a
respiração passando por ele ao entrar e sair do nariz. Quando a mente começar a se
afastar desse pequeno lugar, identifique para onde ela foi. Você não precisa fingir
que os pensamentos não estão ali. Veja-os. Sinta-os. Em seguida, retorne ao
pequeno túnel acima dos lábios e ao ar que passa por eles.
Quando sentir que a mente e o corpo estão prontos para se juntar às
comemorações natalinas, inspire fundo e solte o ar pela boca. Ótimo.
Agradecimentos
A
gradeço à minha adorável esposa, Jacqui, que me encorajou e me
apoiou desde o momento em que tive a primeira ideia para este No
nal nada acontece. Ela nunca duvidou do sucesso que este projeto
poderia alcançar, pois sempre acreditou em mim e no que eu quis fazer.
Estar apaixonada por ela suscita milhares de pensamentos grati cantes e
possibilidades felizes todos os dias, permitindo que, quando as pessoas me
perguntam se acho que em algum momento as doces histórias que conto
irão se esgotar, eu sorria e diga com toda a con ança que não. (Jacqui, te
amo loucamente.)
Agradeço aos meus pais. Eles me ensinaram a amar os livros e as
histórias desde que eu era pequena e me zeram acreditar que era capaz de
alcançar qualquer objetivo que pudesse imaginar. Quando me sentia
insegura, eu voltava o pensamento para a con ança que eles tinham em
mim.
Agradeço ao meu irmão, Greg, um escritor maravilhoso. Quando liguei
para ele com uma ideia de livro (não este, outro), preocupada se o que iria
escrever se encaixaria neste mundo, Greg disse: “Irmã, todos os livros se
passam em um universo alternativo. Escreva o que tiver vontade.” Então
escrevi.
Agradeço aos meus editores, que foram bondosos, criativos, pacientes e
compreensivos. Eles estão me ajudando a levar essa forma particular de
conforto a muitas pessoas, e isso é a realização do meu sonho maior.
Agradeço especialmente a Meg Leder e a Laura Sky, da editora Penguin, que
ajudaram esta autora de primeira viagem a pensar de forma mais ambiciosa
e vívida o mundo que estou criando.
Agradeço à minha agente, Jackie Kaiser. Desde o primeiro telefonema,
ela entendeu completa e intuitivamente o que eu estava tentando criar. Ela
me fez perguntas que mantiveram minha escrita e minha mente vibrando,
cheias de energia. Mal posso esperar para descobrir o que mais seremos
capazes de inventar juntas.
Agradeço a Léa Le Pivert por suas lindas ilustrações. Não tenho uma
visão intuitiva e não pude contribuir com muito mais que minhas palavras
para o visual de No nal nada acontece. Léa fez o livro car lindo e
acolhedor. Serei sempre grata a ela. Agradeço aos meus amigos do
Curiouscast por me ajudarem a, por meio do podcast, compartilhar
histórias com tantas pessoas.
Agradeço a todos que me escutaram com paciência enquanto eu
aprendia a contar histórias (ouvintes do podcast, estudantes de ioga e
amigos).
Agradeço a Mary Oliver por todas as suas palavras, poesias e instruções
para a vida. Quando a ouvi dizer “Preste atenção. Deixe-se surpreender. Fale
sobre isso”, senti que tinha encontrado a minha vocação.
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Cafés e cafeterias
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Chuva
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Cozinha e jantar
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Fechaduras e trancas
Férias e feriados
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Gatos
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Xícaras de chá
Sobre a autora
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