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O documento apresenta a trilogia de Alain Ehrenberg, que narra a história social da depressão, enfatizando que o indivíduo é um reflexo de seu contexto histórico e social, em vez de ser diagnosticado apenas por limitações sintomáticas ou genéticas. A depressão é descrita como uma patologia da motivação, surgindo em um contexto de mudanças normativas e culturais que afetam a identidade e as relações sociais. O texto discute como a evolução da compreensão da depressão reflete transformações sociais e a crescente demanda por autoconhecimento e autoestima na sociedade moderna.
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O documento apresenta a trilogia de Alain Ehrenberg, que narra a história social da depressão, enfatizando que o indivíduo é um reflexo de seu contexto histórico e social, em vez de ser diagnosticado apenas por limitações sintomáticas ou genéticas. A depressão é descrita como uma patologia da motivação, surgindo em um contexto de mudanças normativas e culturais que afetam a identidade e as relações sociais. O texto discute como a evolução da compreensão da depressão reflete transformações sociais e a crescente demanda por autoconhecimento e autoestima na sociedade moderna.
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G.V. Monteiro, B.C. Barbosa, V.N. de Freitas; B.A.C. Rodrigues; L.B. Barbosa; R.C. Cordeiro; R.F.

Pinto

A história da depressão segundo Alain Ehrenberg


Gisela Vasconcellos Monteiro; Bárbara Cristina Barbosa; Valéria Nancy de Freitas;
Breno Ayres Chaves Rodrigues; Laís Barreto Barbosa; Roseane Carlos Cordeiro;
Rosa Maria Ferreiro Pinto

UNISANTA – Universidade Santa Cecília


e-mail para correspondência: [email protected]

Resumo:
A trilogia de Alain Ehrenberg é apresentada. Através da qual a história social da
depressão de forma articulada e consistente é narrada em que o individuo não é
diagnosticado por suas limitações sitomáticas ou genéticas, mas é considerado
um retrato de seu contexto histórico e social com as enormes demandas por ele
geradas. As noções de projeto, de motivação ou de comunicação dominam a
cultura normativa. São as palavras chaves da época. A depressão é uma
patologia dos tempos é uma patologia da motivação. O deprimido não tem
energia, seu movimento está embotado e sua palavra é lenta.

Palavras chave: Depressão. Alain Ehrenberg. Patologia da motivação

The history of depression according to Alain Ehrenberg


Abstract:
Alain Ehrenberg's trilogy is presented. Through which the social history of
depression is narrated in an articulated and consistent way in which the individual
is not diagnosed due to their symptomatic or genetic limitations, but is considered
a portrait of their historical and social context with the enormous demands
generated by it. The notions of project, motivation or communication dominate
normative culture. These are the key words of the time. Depression is a pathology
of the times and a pathology of motivation. The depressed person has no energy,
his movement is dulled, and his speech is slow..

Keywords: Depression. Alain Ehrenberg. Pathology of motivation

1. INTRODUÇÃO

Alain Ehrenberg, nos anos 1990, iniciou uma trilogia através da qual
apresenta a história social da depressão de forma articulada e consistente. Nela,
o individuo não é diagnosticado por suas limitações sitomáticas ou genéticas,
mas é considerado um retrato de seu contexto histórico e social com as enormes
demandas por ele geradas.
Infelizmente não há publicação destes textos em português. Os três
livros que compõem a trilogia são: O culto da performance; O indivíduo
insuficiente e A fadiga de ser você mesmo. Este último foi traduzido para o

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espanhol e será apresentado neste artigo de forma condensada e com tradução


livre, de modo que as ideias do autor possam ser conhecidas e apreciadas como
um importante referencial teórico.

2. A FADIGA DE SER VOCÊ MESMO – Depressão e Sociedade

No final dos anos 60, podia-se classificar razoavelmente a depressão


em três grandes conjuntos: a depressão endógena, a depressão neurótica
(endógena ou exógena) e a depressão reacional, necessariamente exógena. A
primeira se origina no somático mais profundo, seus mecanismos são biológicos,
afetam as sensações, as emoções, os sentimentos, em suma, a experiência
psíquica e subjetiva. A segunda é a que mais considera a noção de
personalidade: está mais perto da desordem psicopatológica. A terceira ressalta
no acontecimento exterior que é o seu motivo: pode afetar os mais preparados
e mais equilibrados no plano psicológico.
A depressão é uma entidade crucial, os profissionais concordam com
essa afirmação, quaisquer que sejam suas orientações.
É difícil ter critérios que diferenciem claramente, de um lado,
depressões endógenas e depressões exógenas, e de outro, os diferentes tipos
de depressão exógena?
Nas discussões sobre a etiologia, o diagnóstico e a eficácia
terapêutica de cada abordagem ou de cada produto, o grupo mais fraco e o mais
diagnosticado é a depressão neurótica. Neurose é um vocábulo importante: o
conflito intrapsíquico se manifesta por meio de sintomas depressivos, e é este
conflito que é objeto da ação terapêutica. Nesta classe patológica, as noções de
sujeito e de conflito se imbricam a tal ponto que são equivalentes: um sujeito é
sujeito de seus conflitos.
A psiquiatria encontra duas grandes soluções classificatórias para dar
um pouco mais de coerência ao diagnostico. Cada uma contribui de maneira
totalmente diferente a declinação da neurose como expressão de um conflito
psíquico.
A primeira solução é a proposta por psiquiatras de orientação
psicanalítica. Esta valoriza a noção de personalidade depressiva: a síndrome

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depressiva não é nem psicótica nem neurótica, é um estado limite. O neurótico


é um homem conflitivo, pois é aquele deixa aparecer o conflito inconsciente. A
personalidade depressiva é incapaz de fazer com que seus conflitos apareçam,
de representá-los, sente-se vazia, frágil, e tem dificuldades para suportar
frustrações. Daí sua tendência a adotar comportamentos dependentes e sua
busca por sensações. Na linguagem psicanalítica se diria que a pessoa em
questão se situa menos num registro conflitivo que num registro clivado
caracterizado por uma forma de rigidez interna na qual os elementos não se
encontram em conflito nem em relação: a pessoa está dominada por um
sentimento de insuficiência. Há uma grande mudança na configuração de si
mesmo: a falha íntima se transforma em carência interior.
A segunda solução abandona a noção de personalidade. Como os
psiquiatras não chegam a um acordo sobre as causas e, em consequência,
sobre as enfermidades subjacentes às síndromes, é suficiente separar a
semiologia do problema etiológico e responder a questão: a que patologia
subjacente remete uma série de sintomas? O meio técnico consiste em elaborar
critérios padronizados que descrevam claramente as síndromes e possam
constituir boas referências para o diagnóstico.
Esta solução foi elaborada nos Estados Unidos com o lançamento da
terceira versão do “Manual Diagnostico e Estatístico dos Transtornos
Psiquiátricos”, que no jargão profissional é conhecido pela sigla DSM-III. O
biológico, o psíquico e o social formam, deste momento em diante, um triângulo
crucial na nova tendência psiquiátrica que se desenhava na década de 70.
Entrava-se na era do que a psiquiatria chama de biopsicossocial.
Estas duas soluções marcam o divórcio entre o modelo deficitário e o
modelo conflitual. Na versão médica, o homem deficitário é antes de tudo objeto
de sua enfermidade. É objeto no sentido em que se define pelo modo de sofrer
(pouco importa se sofre pela falta de amor da mãe que remonta a primeira
infância ou de um índice de serotonina insuficiente): o deprimido não tem
nenhuma necessidade de enfrentar seus conflitos, pois tem uma patologia da
qual pode livrar-se. Na versão psicanalítica não chega a ser o sujeito de seus
conflitos.

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Esta transformação da noção de depressão acontece num contexto


de mudança normativa nos anos 60. As regras tradicionais de enquadramento
dos comportamentos individuais não são aceitas, o direito a escolher a vida que
se quer levar começa, se não a ser a norma da relação indivíduo-sociedade, ao
menos a entrar nos costumes. As relações entre o público e o privado se
modificam notavelmente: o primeiro aparece como o prolongamento do segundo.
Em lugar da disciplina e da obediência, a independência diante das constrições
sociais e a ostentação de si mesmo; no lugar da finitude e do destino frente ao
qual é preciso conformar-se, a ideia de que tudo é possível; em lugar da velha
culpabilidade burguesa e da luta para liberar-se da lei dos pais (Édipo), o medo
de não estar a altura, o vazio e a impotência que disso resulta (Narciso). Deste
modo, a figura do sujeito fica amplamente modificada: deste momento em diante,
trata-se de ser semelhante somente a si mesmo. A partir do momento em que
tudo é possível, as enfermidades da insuficiência tomam o lugar, no interior do
indivíduo, dos dilaceramentos que o recordam que nem tudo é permitido.

A face psicológica: a culpa sem concessão

O período que se segue caracteriza-se por uma dinâmica na qual as


duas fases são a liberação psíquica e a insegurança identitária. De uma lado a
emancipação das massas inicia uma nova atenção à vida íntima, ao mesmo
tempo que, as chamadas terapias da liberação pretendem oferecer meios
práticos para que cada um construa sua identidade, independente de toda a
constrição. Do outro lado outras controvérsias na França aparecem na
psicopatologia: sugerem a existência de uma nova insegurança identitária pelo
seu alcance em massa. O vazio depressivo e sua substituição aditiva constituem
o principal quadro clínico.
O progresso das condições materiais de vida faz do bem-estar, não
uma aspiração distante, mas uma realidade acessível às classes populares. A
ideia de que cada um pode fazer seu caminho se democratiza, o homem das
massas se põe pessoalmente em movimento. Isto suscita novas inquietações.
A epidemiologia ensina que a depressão se difundiu nas sociedades
como uma patologia de mudança e não da miséria econômica e social:

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acompanha as mutações que afetam o conjunto das instituições depois da


Segunda Guerra Mundial. Foi engendrada pela abundância e não pela crise
econômica. A depressão inicia sua decolagem nos gloriosos anos 30, em um
período de progresso econômico, de bem-estar crescente e de otimismo
generalizado. Sua frequência, extensão e incidência sobre a situação sanitária
da população fazem dela um problema de saúde pública.
Segundo a Associação Americana de Medicina, que publica em 1989
uma síntese de estudos epidemiológicos a partir de amostras representativas da
população geral1, o risco crescente de se ter uma depressão para as pessoas
nascidas depois da Segunda Guerra Mundial será um fato indiscutível. São as
que não somente gozam da melhor saúde psíquica em toda a história moderna,
mas que também cresceram em um período de prosperidade inédita. A
urbanização, a mobilidade geográfica e as rupturas afetivas que esta implica, o
crescimento da anomia social, as mudanças da estrutura familiar, a fragilidade
dos papéis sexuais tradicionais, etc., aumentaram o terreno da depressão nas
sociedades.
No rastro de uma melhora considerável das condições materiais se
produz simultaneamente uma liberação social dos pobres e uma nova
consciência de si, sobre a qual as publicações e as obras de psicologia popular
formulam a linguagem. As regras de obediência aos cânones morais ou
religiosos retrocedem progressivamente em proveito de modelos que oferecem
ferramentas interpretativas para resolver ou superar os problemas íntimos. A
interioridade se produz em uma construção coletiva que fornece um marco social
para existir.
Se a tristeza e a dor moral dominam o quadro depressivo na literatura
psiquiátrica ou da medicina geral, e os outros sintomas são suas consequências,
é exatamente pela angústia, pela insônia e pela estafa que o tema da depressão
aparece nas revistas voltadas para o grande público. A fadiga na sua dupla
relação com a vida moderna e com as dificuldades psicológicas do indivíduo, é
o fio condutor da formação de opinião, e é por seu intermédio que se difunde na
linguagem da depressão na sociedade francesa.

1
G.L. Klerman e M.M. Weissman “Increasing rates of depression”, JAMA, 21/4/1989.

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A nova retórica convida a outros questionamentos, não se pode


responder a essa pergunta sem perguntar ao mesmo tempo: Quem sou? A
resposta evidentemente mudou de tom: é estando de acordo com seus próprios
desejos que alguém alcança a felicidade. A autoestima é a marca manifesta
deste conselho.
Assiste-se a generalização de um tipo de sujeito para o qual o direito
à vida privada que escolheu se converte em uma experiência: a relação que
mantem consigo mesmo (não recuse afrontar seus conflitos, o remédio está em
você mesmo) ou com os outros é o nó de tudo. O equilíbrio interior começa a
converter-se em um imenso trânsito heterogêneo: a autoestima dá origem a uma
verdadeira indústria de serviços relacionais com sua linguagem (a ajuda para
viver), suas tecnologias (medicamentosas, psicológicas), suas profissões
(sexólogos, terapeutas de grupo, etc.) e sua literatura.
Os anos 70 constituem um período de transformação no curso do qual
a ideia de que cada um é proprietário de sua própria vida começa a impor-se
sociologicamente. A noção de proibido inicia sua decadência. O homem de
massa inicia seu trânsito para converter-se em seu próprio soberano. As
transformações normativas esboçadas na década de 60 começam a impor-se
nos costumes: assiste-se a um retrocesso de uma representação que opõe o
indivíduo a sociedade, indivíduo que deve ser enquadrado pelas normas
disciplinares a fim de socializar-se e proteger a sociedade de seus excessos.
Maio de 68 tem na França o lugar de um sinal simbólico. Acelerou as dinâmicas
morais que trabalhavam a sociedade francesa e as fez entrar no debate político.
Pluralismo moral e inconformismo com uma única norma, liberdade
para construir as próprias regras em lugar de serem impostas: o
desenvolvimento de si converte-se coletivamente em um assunto pessoal que a
sociedade deve favorecer.
A missão social da terapêutica é ancorar nas práticas a ideia de que
a sociedade é o meio de perseguir fins individuais. As novas terapias
proporcionam, através da relação com um grupo, as substituições normativas.
Viver por si mesmo de um lado e a procura permanente de aprovação dos
demais, de outro.

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As técnicas terapêuticas têm, no entanto, uma concepção de


patologia que retoma o modelo deficitário de disfunção. Só que, em lugar de
reparar uma falha do espírito, procura duplicar a potência do Eu. Se a psicanálise
tem como objetivo tornar possível o proibido, e se apresenta como uma arte de
separar, essas técnicas se propõem a suavizar todo conflito, situando-se na
tradição das artes da reparação. O conflito psíquico se apresenta a elas como
algo sem sentido, um fruto podre da civilização. O terapeuta deve compensar
seus pacientes das frustrações que a vida os faz sofrer, liberá-los dos enquadres
artificiais que os impedem de serem eles mesmos. Percebe-se como a técnica
de centrar-se no afeto e a referência ao déficit não oculta uma oposição entre
psicoterapia e quimioterapia. Os modelos conflituais e deficitários podem ser
empregados em todas as terapias, e persistem também em todas elas as ilusões
e os fantasmas de cada gênero.
O êxito deste estilo de terapêutica tem por resultado a mudança do
contexto normativo: a exigência de conformidade ou de submissão a uma norma
pré-existente e única se flexibiliza. Inicia-se uma tolerância nova para o direito a
diferença. Esta pluralização, que permite que cada um escolhe sua própria vida
sem correr riscos de estigmatização. Este indivíduo é um produto inseguro, já
que nada externo a ele pode ditar sua conduta, pois é ele o encarregado de
elaborar suas próprias regras. O que resulta não é mais que uma bricolagem
pessoal, pois é sua natureza social o que muda.
As patologias mentais nas quais o conflito intrapsíquico é inexistente
e nas quais, de modo inverso, o que predomina é um sentimento de perda do
próprio valor, constituem o objeto de uma preocupação que não existia na França
nos anos 60. Baixa da autoestima e sentimento de inferioridade têm algo que
recorda muito o déficit. Se o conflito está ligado a culpabilidade, o déficit estará
preso ao narcisismo. É esta a grande lição que a depressão vai infligir ao homem
que acredita instituir-se em seu próprio legislador.
Atrás da aparência de um tratamento terapêutico além do patológico,
inicia-se uma assimilação entre o bem-estar e a cura que resulta da separação
entre o modelo conflitual e o deficitário. Se há algo a respeito do qual há um
consenso entre os psicanalistas é que uma começa depois que o indivíduo
abandona uma imagem de si mesmo em estado de bem-estar. O modelo

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deficitário, afastado de seu velho rival e aliado, ocupa-se exclusivamente do


bem-estar. Esta nova cultura psicológica, dizem os psicanalistas, sustenta o
narcisismo do indivíduo, a maneira de uma droga: substitui um Eu insaciável,
sem limites. As técnicas de aprimoramento de si desinibem o indivíduo, mas não
permitem que se reestruture. Uma nova maneira de encarar a depressão se
difunde nos meios analíticos. Define um estilo de desespero que as gerações
precedentes não conheceram.
A partir da década de 70, uma nova espécie de pacientes se deita nos
divãs dos psicanalistas. Diferente dos neuróticos, chegam a reconhecer seus
conflitos, a representá-los. Falta-lhes o material de base sem o qual não se pode
chegar bem à cura: a culpa. Apesar de angustiados, estes pacientes sentem-se
cronicamente vazios diante de tudo, têm grandes dificuldade de fazer algo com
seus afetos dolorosos, pois não os mentalizam. Suas representações são
pobres, são incapazes de simbolizar suas dores: estão prisioneiros de seu
humor. Esta nova espécie tem um nome: os fronteiriços ou estados limites. A
depressão domina o quadro clínico.
Os psicanalistas distinguem duas grandes categorias de afeto que
Freud chama de “desprazer”: a ansiedade ou angústia (com frequência
empregados como equivalentes em psiquiatria e em psicanálise) e a depressão,
a que denomina “dor”. Estes dois afetos não assinalam a mesma coisa. A
angústia ou ansiedade são suscitadas sempre por um perigo ou pela
transgressão de uma proibição, o afeto depressivo é engendrado por uma perda.
A perda do objeto amado desencadeia uma sensação particular de dor da qual
se sabe muito pouco, segundo Freud. É uma dor interna que pode parecer com
a dor corporal. O melancólico perdeu o respeito por si mesmo. Uma parte do seu
Eu desvaloriza sistematicamente a outra.
Fora da melancolia podem apresentar-se duas situações. Na primeira,
a tristeza e a dor moral são sintomas neuróticos do mesmo tipo que uma
obsessão ou paralisia histérica. Mas existe um segundo tipo de afeto depressivo
mais difícil de classificar para a psicanálise: não se trata de um sintoma, mas de
um sistema patológico caracterizado pela perda do objeto que possui ralações
muito mais soltas com a noção de proibido. Neste caso, os conflitos são pré-
edípicos. Isto significa que os pacientes permanecem em um estado precedente

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à identificação com as imagens parentais, imagens que são as primeiras que se


apresentam a criança. A doença continua num estado de fusão com a mãe. Se
a neurose é uma patologia da identificação, o estado limite, já que o sujeito não
pôde desenvolver as relações objetais, é uma patologia da identidade.
Precisamente, tem grandes dificuldades para identificar-se.
A depressão não é um sintoma neurótico, pois a estrutura de
personalidade é outra. Os psicanalistas a chamam de “personalidade
depressiva”. Entre os neuróticos a depressão é o sinal de uma perda, enquanto
as estruturas depressivas vivem cronicamente sob o signo de um problema não
resolvido da perda constante, do sentimento fundamental de serem os
perdedores, os frustrados. Este estado limite é uma estrutura do mesmo tipo que
a neurose, a psicose ou a perversão. A grande diferença entre uma neurose de
manifestação depressiva e este sistema patológico é que, no primeiro caso, a
pessoa chega a estruturar mecanismos de defesa estáveis, enquanto no
segundo, vive num estado de permanente insegurança que se manifesta por
uma depressão de tendência crônica.
Esta patologia está no grupo chamado de “narcísicas”. O narcisismo
não é o amor por si mesmo que é um dos mecanismos da alegria de viver, mas
o fato de estar prisioneiro de uma imagem a tal ponto idealizada que torna
impotente a pessoa, paralisia que tem a necessidade de ser assistida pelos
outros e que pode converter-se em dependência. Os psicanalistas têm uma
ferramenta para definir essa patologia, o Ideal de Ego. A definição de Ideal de
Ego está ligada ao narcisismo da mesma maneira que o Superego está ligado a
interdição: o sentimento de inferioridade é para o primeiro, o que o sentimento
de culpa é para o segundo. Se o Superego convida a não fazer, o Ideal de Ego,
ao contrário, convida a fazer.
Nas patologias narcísicas produz-se uma enorme sobrecarga sobre o
Ego, que torna toda frustração muito difícil de ser suportada. O paciente jamais
obtém a satisfação de suas pulsões, sente-se vazio e atua por agressividade e
por impulsos. Se a neurose se caracteriza pelo conflito psíquico, o estado limite
não chega a estabelecer conflito: está vazio. Este tipo de paciente estabelece
problemas particulares em sua cura, pois tem também dificuldades em operar
uma transferência sobre a pessoa do analista, sem a qual nenhuma cura pode

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acontecer. Não subsistem a “influência” analítica já que os processos


identificatórios não se formaram na primeira infância. Em geral, o prognóstico
dessas depressões é ruim.
No entanto, os psicanalistas não estão de acordo sobre essa distinção
entre estrutura depressiva e estrutura neurótica.
O ponto interessante dos debates nosológicos é que a neurose é a
consequência de um conflito no qual se é culpado (inclusive quando predominam
os sintomas depressivos), enquanto a depressão é percebida como uma falta ou
carência da qual se sente vergonha. O narcisismo interfere no roteiro do proibido:
a personalidade neurótica está num enfermo da lei, a personalidade depressiva
está num enfermo da insuficiência. O deprimido encontra-se submerso em uma
lógica em que domina a inferioridade, enquanto as neuroses se produzem em
uma dinâmica de transgressão. A personalidade depressiva fica estancada em
um permanente estado adolescente, não se torna adulta aceitando as
frustrações que constituem o destino de toda a vida. Disto resulta sua fragilidade,
um sentimento permanente de precariedade ou instabilidade. Falta a culpa que
inscreve no sujeito o que Lacan chama de “simbólico”, uma relação com a lei
que suscita angústia, mas sem a qual não há estruturação sólida da identidade,
um sentimento estável e permanente de si mesmo. Como consequência, uma
dificuldade especial em suportar o sofrimento e uma busca permanente pelo
bem-estar. O deprimido sente vergonha amiúde porque, em sua megalomania
fundamental, não pode admitir suas insuficiências, não aceita sentir-se limitado
pela realidade e em particular pelas restrições impostas pela sua história pessoal
e filiação. A culpa está relacionada com a lei e a vergonha com o “olhar social”.
O êxito das terapias de grupo está no processo de “desavergonhar”.
Quando a referência não tem regra fixa, os outros são o único meio para validar
uma escolha. Esta busca do outro pode, em casos mais extremos, converter-se
em uma dependência, uma necessidade insaciável.
O acesso a uma posição neurótica que permite que os conflitos surjam
é o sinal de progresso nas curas desses pacientes. A cura deve ajudar o sujeito
a sair de uma submissão aos afetos, tornando-o apto a representar seus conflitos
mascarados. O conflito o prove de uma referência, lhe devolve uma margem de
manobra e o coloca em movimento.

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O apetite pelas drogas aparece aos olhos dos psicanalistas como uma
escolha equivalente às terapias de grupo: uma defesa contra a depressão. O
depressivo não suporta frustrações. O alcoolismo e a toxicomania, por
entorpecentes ou por medicamentos, são os meios para satisfazê-las e podem
ser considerados como formas de automedicação da depressão. O vicio
substitutivo aparece como o outro lado do vazio depressivo.
A dependência supõe a ideia de relação com o produto, independente
de suas características farmacológicas. A dependência psicológica tem também
outra consequência: ao tornar relativa a influência farmacológica do produto
indica uma relação patológica, que se refere a um produto, uma atividade ou a
uma pessoa. A dependência é um comportamento patológico de consumo
qualquer que seja seu objeto. A compulsão é o princípio destes comportamentos:
a perda de controle de si mesmo é o elemento chave que permite reagrupar as
relações desregradas com a comida, a heroína ou o cigarro. A adição torna-se
um conceito amplo, uma classe de comportamentos. A partir da década de 70,
com essa redefinição, os psiquiatras observam cada vez mais adições:
patologias alimentares, sexuais, etc.
O sujeito do final do século XIX está preso em uma dupla exterioridade
que o constitui e que o submete: o proibido, que é ao mesmo tempo anterior e
exterior a ele; a disciplina do corpo, que regula sua conduta exterior. Com a
melhora das condições de vida, a perda de legitimidade dos modelos
hierárquicos e a esperança generalizada de mobilidade social, a individualidade
deixa para trás essa dupla regulação. A depressão é instrutiva sobre a
experiência atual do sujeito, pois encarna a tensão entre a aspiração de não ser
nada mais que si mesmo e a dificuldade de sê-lo.
A depressão é uma palavra comum – e cômoda – para qualificar os
problemas provocados por essa nova normalidade. A soberania individual não é
somente um afastamento do respeito às constrições externas, produz tristezas
internas. A depressão freia a onipotência, que é o horizonte virtual da
emancipação. A forma de sofrimento começa a mudar paralelamente a de
esperança. A angústia de ser você mesmo oscila para a fadiga de ser você
mesmo. É esta a forma que adquire a constrição interior a medida que os anos
avançam.

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Estes novos dilemas são pouco visíveis ao longo da década de 70.


São advertidos pela psicanálise em um momento em que ela se ve desafiada
por outras terapias psicológicas e começa a perder seu prestígio. Do lado
psicológico torna-se preocupante o impedimento simbólico que assinala o
sentimento crônico da própria insuficiência. Do lado médico, há uma
preocupação cada vez maior por uma doença a curar.

A face médica – os novos caminhos do humor depressivo

Na segunda metade da década de 70, a psiquiatria considera que a


depressão entrou em novos caminhos. Os desacordos sobre os aspectos
biológicos e bioquímicos da depressão são tão importantes como na psicanálise.
A noção de transtorno de humor é o ponto de reorganização do
diagnóstico psiquiátrico. Estes transtornos se compõem principalmente de
ansiedade e de depressão, os dois afetos principais. A ansiedade é
relativamente simples de reconhecer, por outro lado, a depressão se manifesta
por sintomas diversos como a tristeza, a fadiga, problemas somáticos variados,
inibição e ansiedade.
A depressão ocupa plenamente seu lugar de doença da vida
moderna. Os médicos começam a interessar-se pela vida íntima. As demandas
dirigidas à medicina encontraram sua linguagem, de modo que os generalistas
começam a desempenhar, cada vez mais, um papel principal.
Três elementos caracterizam a situação da depressão entre os
clínicos gerais, o segundo plano que perdura da heterogeneidade da patologia.
Em primeiro lugar, a convicção de que os transtornos mentais não psicóticos
são, no essencial, tratáveis pela medicina geral: pois bem, a depressão de que
se encarregam os generalistas não é a mesma que tratam os psiquiatras. Em
seguida assiste-se as inovações do campo farmacológico: novos
antidepressivos melhor adaptados a prática generalista aparecem em 1975.
Como resultado, a ação combinada destes fatores diminui a tristeza e a dor
moral, em proveito da fadiga.
O deprimido aparece como um astênico a estimular, um ansioso a
acalmar e um insone a dormir. A tríade astenia, insônia e ansiedade é uma

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resposta comportamental e afetiva a mudança incessante que impregna a vida


cotidiana das sociedades democráticas.
Uma pesquisa realizada entre 1974-19752 na França apontou que os
generalistas atendem a 74% dos transtornos mentais e psicossociais (problemas
de adaptação familiar, social e profissional) e os psiquiatras a 12%. Os
generalistas diagnosticam 73% das depressões e os psiquiatras liberais 16%. As
depressões (neuróticas, psicóticas e outras) representam quase um quarto dos
transtornos mentais e psicossociais em medicina, e quase um terço em
psiquiatria.
Os psiquiatras reprovam os generalistas por tratarem os sintomas
mais manifestos em lugar de diagnosticarem as depressões. Reconhecem que
não são os mesmos deprimidos que fazem suas consultas na medicina geral e
na psiquiatria liberal, enquanto os que são tratados pelo sistema hospitalar
diferem ainda mais. Cada vez mais, a lógica da medicina geral não é a mesma
da psiquiatria: os clínicos gerais têm tendência a realizar diagnósticos amplos,
articulados mais sobre os sintomas que sobre a nosologia, e privilegiam a
terapêutica ao diagnóstico.
Estas práticas são pouco surpreendentes no momento em que
evidenciou-se as dificuldades para se diferenciar os tipos de depressão. A
responsabilidade dos “maus” diagnósticos e das prescrições equivocadas
provém da falta de clareza que os psiquiatras mostram sobre a noção de
depressão, que constitui ainda uma área muito nebulosa.
Mascarada por equivalentes comportamentais (adições) ou
somáticos, que se expressam através de três afecções, percebe-se a depressão
como uma diminuição, é apreendida como uma insuficiência. Esta
caracterização dos pacientes acontece ao mesmo tempo em que são lançados
no mercado novos antidepressivos, a maior parte dos quais atua diretamente
sobre esta insuficiência. Paralelamente, a tristeza e a dor moral diminuem e há
uma atenção crescente dirigida à ansiedade e à inibição.
O consumo de antidepressivos aumenta mais que o consumo de
outros medicamentos, sendo que um terço das receitas é feita por generalistas.

2
A. Colvez, E. Michel e N. Quemada, “Las maladies mentales e psychosociales dans la pratique liberal.
Approche épidemiologique”, Psichiatrie française, 10, 1979.

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Os psiquiatras criticam a insuficiência da formação psicofarmacológica e a forma


de divulgação dos remédios pelas empresas farmacêuticas, que privilegiam mais
o marketing que as informações objetivas.
Os generalistas rejeitam prescrever os tricíclicos pelo risco de
suicídio, pela importância de sua toxidade e de seus efeitos colaterais ou pelas
dificuldades de observar o tratamento. Por esta razão prescrevem posologias
fracas, amiúde insuficientes.
Químicos e farmacêuticos pesquisam antidepressivos que possam
superar a porcentagem de eficácia dos IMAO3 e dos tricíclicos (60 a 70%), e
atuar mais rapidamente.
Entre 1974 e 1985 as práticas dos médicos generalistas começam a
modificar-se: as quantidades de antidepressivos prescritos aumentam em 300%,
enquanto os ansiolíticos baixam relativamente4. Isto se deu no momento em que
foram lançados no mercado uma segunda geração de antidepressivos nem
IMAO e nem tricíclicos, de manejo mais fácil para os generalistas.
As relações entre ansiedade e depressão apresentam um problema
diagnóstico particularmente delicado, já que a ansiedade também se manifesta
na depressão. Neste caso, a prescrição de ansiolíticos não faz mais que
mascarar o estado depressivo subjacente e, em consequência, volta-se a um
quadro depressivo menos nítido.
A ansiedade entra no continente depressivo, mas um segundo
sintoma começa a mudar de lugar graças aos efeitos estimulantes de certos
novos antidepressivos: a inibição. A inibição é, junto com a astenia, alvo
privilegiado dos antidepressivos estimulantes. Estes substituem as anfetaminas
com um risco menor para os pacientes.
A literatura psiquiátrica do começo dos anos 80 está de acordo no
seguinte ponto: a eficácia terapêutica dos antidepressivos não é superior a da
iproniazida5 ou da imipramina6, 30 ou 40% das depressões resistem ao
tratamento, o efeito antidepressivo não aparece antes de duas ou três semanas.

3
Inibidores da Monoamina Oxidase - promovem o aumento da disponibilidade da serotonina através da
inibição dessa enzima responsável pela degradação desse neurotransmissor intracelular.
4
A. Godard e M. H. regnauld, “Consommation des psychotropes”, Revue française de santé publique, nº
33, 1986.
5
Antidepressivo IMAO.
6
Antidepressivo tricíclico.

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Os antidepressivos provêm os generalistas de uma ferramenta mais manejável


e menos perigosa para o paciente. O médico vacila menos na prescrição do
medicamento.
O principal problema segue sendo a falta de consenso no diagnóstico.
Dois caminhos seguiram simultaneamente, atuando reciprocamente uma sobre
a outra, para identificar com precisão os subtipos de depressão, sobre bases não
etiológicas.
O primeiro apoia-se na biologia. A bioquímica avançou muito desde
os anos 60. A busca de correlações entre um tipo clínico de depressão e uma
carência biológica deveria permitir prever a eficácia de um ou outro
antidepressivo. A clínica seria menos dependente da prova terapêutica.
O segundo é classificatório e baseia-se na epidemiologia psiquiátrica:
o objetivo é explorar os dados mais confiáveis constituindo grupos de populações
homogêneas a partir de análises estatísticas variadas, de ferramentas
epidemiológicas e de escalas de depressão que permitam padronizar o
diagnóstico sem utilizar o olho clínico do médico: isto leva a psiquiatria ao que
ele mesma chama de sua “segunda revolução”. A primeira era a dos
medicamentos do espírito, a segunda é classificatória. È a terceira versão do
“Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais”, publicado nos
Estados Unidos em 1980.
Se as depressões são heterogêneas, os antidepressivos também são.
Entre quadros clínicos menos claros que antes, porque os pacientes que se
consultam já tinham tomado psicotrópicos, a multiplicação de produtos
colocados no mercado, assiste-se a um crescimento geral da heterogeneidade.
Os antidepressivos, ao contrário dos ansiolíticos, têm um amplo espectro de
efeitos: atuam sobre a tristeza, a ansiedade, as preocupações recorrentes, as
dores de cabeça e cervicais.
A bioquímica ressalta duas vias neuronais pelas quais podem se
compreender os mecanismos da depressão: a noradrenalina e a serotonina.
Junto com a dopamina encontram-se os três grandes sistemas de neurônios
denominados monoaminérgicos. Assume-se rapidamente que os tricíclicos
aumentam a taxa de concentração da serotonina e da noradrenalina. Os
investigadores então, lançam a hipótese de subtipos de deprimidos carentes de

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um ou outro destes neuromediadores. Esta hipótese torna-se objeto de inúmeras


discussões e muitas pesquisas com resultados contraditórios aparecem.
A aposta da psiquiatria no aspecto classificatório para resolver o caos
do diagnóstico da depressão carece de uma substancial melhora na fidelidade
do diagnóstico. Isto implica encontrar critérios que permitam aos clínicos realizar
independentemente o mesmo diagnóstico de um dado paciente.
A solução do problema da heterogeneidade das depressões pelo
caminho classificatório tem por consequência desconectar estas síndromes de
seus vínculos com as categorias da neurose ou da psicose.
Em 1980, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) publica uma
classificação que demandou uma década de trabalhos: o “Manual Estatístico e
diagnóstico dos Transtornos Mentais”, terceira edição, conhecido sob a sigla
DSM-III. Foi parcialmente revisado em 1987 (DSM-IIIR), e uma quarta versão foi
publicada em 1994 (DSM-IV). O DSM impôs um novo rumo a psiquiatria mundial.
A psiquiatria americana, por tradição, não é classificatória na medida
em que a concepção dominante de doença é psicossocial. Caracteriza-se por
três grandes linhas. A primeira é a noção de reação: toda pessoa submetida a
tratamentos de impacto emocional suficientemente fortes é suscetível de
desenvolver uma doença mental. A segunda é uma visão unitária da doença
mental: as diferenças entre psicose e neurose são quantitativas e não
qualitativas, o grau de severidade da patologia é o critério de discriminação. O
terceiro é o diagnóstico etiológico: o que há atrás do sintoma ou da síndrome?
Houve uma mudança radical na classificação das doenças mentais na
sociedade americana causada por numerosos elementos internos à própria
sociedade, entre eles a força do movimento antipsiquiátrico americano. Se a
distinção entre normal e patológico é fluida como supõe o modelo psicossocial,
então os diagnósticos psiquiátricos são absolutamente arbitrários. Esta reforma
estava também ligada a posições internacionais, como a da Organização
Mundial da Saúde que na segunda metade da década de 60 estabelece
categorias psiquiátricas que permitem comparações internacionais.
O crescimento de uma nova preocupação classificatória resulta então
de uma internacionalização da psiquiatria e das dificuldades encontradas pela
psiquiatria americana na década de 60.

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A introdução do DSM-III é muito clara a respeito da concepção de


doença mental e permite compreender claramente sua fundamentação. A falta
de consenso que resulta da diversidade de doutrinas psiquiátricas deixa o
diagnóstico inteiramente dependente da pessoa do psiquiatra. A solução
proposta foi delimitar essa avaliação com o funcionamento de uma linguagem
comum a toda a profissão, quaisquer que fossem as orientações dos médicos.
Os principais meios para se obter isso são os conceitos de base do DSM-III: a
noção de transtorno mental; a abordagem descritiva e seus critérios
diagnósticos, e a avaliação multiaxial.
1. O transtorno mental é uma síndrome ou um conjunto clinicamente
significativo, comportamental ou psicológico, que ocorre em um indivíduo e é
tipicamente associado a um sintoma de dor (angústia) ou a uma diminuição, em
ao menos um dos principais domínio do funcionamento (incapacidade). Este
transtorno tem por base uma angústia que se expressa por um sintoma
invalidante.
2. O DSM se diz ateórico, porque não se posiciona por nenhuma das
diferentes teorias etiológicas, e descritivo, porque seu objetivo é descrever os
sintomas de modo mais preciso possível.
3. Permite uma avaliação biopsicossocial através da sobreposição de
cinco eixos: o primeiro compreende o conjunto dos transtornos mentais
classificados em síndromes, o segundo retoma as síndromes do ponto de vista
da personalidade, o terceiro se reserva aos transtornos psíquicos, o quarto a
severidade dos fatores de stress psicossocial e o quinto a adaptação e
funcionamento geral do indivíduo.
O afeto domina a nova paisagem classificatória e encontra-se no
centro da descrição clínica. A maior parte dos comentaristas do DSM-III, que
fazem elogios ou críticas concordam que os transtornos afetivos ou tímicos são
preponderantes e que o campo da depressão tornou-se mais amplo. A
depressão neurótica é o elo mais fraco do conjunto depressivo porque, por um
lado, é o mais diagnosticado e, por outro, o que concentra maiores divergências
entre os psiquiatras: a depressão neurótica do DSM-II (1968) se converte em
transtorno distímico no III, enquanto a histeria se desmembra em transtornos
somatomorfos e transtornos dissociativos.

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Na medida em que se sabe do que se fala, o papel do clínico consiste


somente em escolher o tratamento adequado, seja este quimioterápico,
cognitivo, comportamental ou psicanalítico, em função de suas cotações – o
DSM-III-R incorporou uma ramificação de decisões para ajudar os clínicos.
A busca de estruturas subjacentes foi abandonada e a palavra
“doença” foi substituída por “transtorno”. Não só é mais lógico, mas também
possui, por outro lado, a grande vantagem da imprecisão. O DSM-III oferece
combinações estáveis de sintomas, cujo processo de formação, do tipo neurótico
ou psicótico, pouco importa. Uma investigação psiquiátrica que se apoia sobre
dados estatísticos, substitui a investigação clínica, que a partir de então, carece
de utilidade. O modelo de enfermidade é deficitário e centrado no afeto.
O DSM-III suscitou intensas controvérsias, pois representou uma
mudança na concepção das doenças mentais. A noção de inconsciente deixou
de ter importância, a dimensão temporal foi marginalizada (os sintomas não
adquirem sentido na história do indivíduo), a personalidade desempenha um
papel completamente secundário.
O DSM é uma ferramenta construída por investigadores, mas quando
utilizada por clínicos como técnica de diagnóstico, arrisca-se restringir a medicina
ao estrito reconhecimento das síndromes e de não passar disso.
A aliança entre déficit e conflito permitia que os psicotrópicos fossem
apenas medicamentos. Sua separação leva a pergunta: droga ou medicamento?
A substância atua diretamente sobre os afetos, mas dizem os psicanalistas, não
permitem ao paciente elaborar seu próprio sistema de defesa – ao menos
quando esta ação não é acompanhada de um trabalho com o paciente, que é,
ao mesmo tempo, um trabalho do paciente.
O encontro entre a dinâmica de emancipação, que libera o indivíduo
da disciplina e do conflito, e as transformações internas da psiquiatria, que
proporciona respostas práticas aos problemas criados por esta liberação, indica
uma mudança no estilo do sofrimento. A diminuição da neurose em benefício da
depressão representa o fim de uma psiquiatria, mas indica também a diminuição
de uma experiência coletiva da pessoa que se expressa ao mesmo tempo pela
submissão disciplinar e pelo conflito. Há aqui então, uma mudança na
subjetividade moderna.

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A ação patológica – segunda mudança na configuração do


sujeito

Na década de 80, a afirmação de si mesmo entrou nos costumes a tal


ponto que a dona de casa de menos de 50 anos não vacila um momento, na
televisão, em colocar em consideração os menores detalhes de sua vida privada.
Apresenta também outra inovação. Não se trata somente de tornar-
se você mesmo, de partir inocentemente em busca de sua “autenticidade”. O
segundo vetor da individualidade do fim do século é o da ação individual. A
questão da identidade e da ação se juntam da seguinte maneira: aspecto
normativo, a iniciativa individual se junta a liberação psíquica; aspecto
patológico, a dificuldade de iniciar a ação se associa a insegurança identitária. O
retrocesso da regulação pela disciplina conduz a converter o agente individual
no responsável pela sua ação. Paralelamente, o pensamento psiquiátrico
considera cada vez mais que o transtorno fundamental da depressão é
psicomotor: a ação obstruída determina o humor transtornado. Cometer uma
falta diante da norma consiste menos em ser desobediente que ser incapaz de
atuar. Existe outra concepção de individualidade.

A tradição psiquiátrica havia dividido globalmente os estados


depressivos em dois grandes grupos: a dor moral ou, dito de outro modo, um
sofrimento especificamente psíquico, e um bloqueio geral da pessoa que se
manifesta por inibição, astenia, uma dificuldade geral dos movimentos do corpo
e do pensamento. O segundo bloco diz respeito aos aspectos mais corporais da
depressão, a motricidade. A depressão é a ausência de movimentos em seu
aspecto mental.
O bloqueio psicomotor e as perturbações do sono formam o grosso
do quadro clínico. A falta de iniciativa é o transtorno fundamental do deprimido.
A dor moral se vê corroída pelo tema do embotamento afetivo: este tipo de
indiferença é para o humor o que a apatia é para a ação.
Um novo ponto de vista psiquiátrico começa a se impor principalmente
na França e nos países europeus, chamado de “transnosográfico”. O conceito

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chave da análise não é mais a síndrome, mas a dimensão. Surgem duas


dimensões principais: a inibição e a impulsividade. A primeira é o contrário da
segunda e vice-versa. Constituem as duas fases da patologia da ação: na
inibição, a ação está ausente; na impulsividade, está fora de controle.
A angústia efetua um comportamento mental de luta com as tensões
interiores e os perigos exteriores, a réplica depressiva constitui, inversamente,
uma atitude protetora de retração que permite que o indivíduo sobreviva quando
este já não dispõe da capacidade de lutar. A angústia é o motor da luta, e a
depressão seu abandono. Há na depressão, esta psicologia da inferioridade,
uma vulnerabilidade muito menos conhecida no caso da angústia.
“Desinibidores” passou a ser a palavra chave para os antidepressivos.
Os antidepressivos tratam as disfunções do movimento em seus aspectos
mentais. Restauram os poderes da ação e melhoram o humor quando este está
desorganizado. De sua parte, os clínicos constatam cada vez mais que os
antidepressivos atuam sobre estados mórbidos diferentes da depressão, nos
quais não se encontra nem ansiedade nem dor moral.
Já se havia notado há muito tempo que os antidepressivos poderiam
ser usados vantajosamente fora da depressão. Independentemente de toda
patologia depressiva associada, são indicados atualmente para os transtornos
de pânico, as fobias, o stress pós-traumático, os distúrbios de impulsividade, a
ansiedade generalizada, os transtornos alimentares, as dependências do álcool,
do tabaco ou de heroína, o autismo, a síndrome Gilles de la Tourette, etc.
Atuariam também sobre as cefaléias, as enxaquecas, as dores neurológicas ou
cancerosas.
A epidemiologia ensinou que os médicos generalistas estão mais
atentos às baixas (inibição, fadiga, dor moral, etc.) que às altas (hipomanias,
etc.). Cada vez mais a ansiedade, a insônia e a fadiga são enfermidades
experimentadas mais frequentemente e cada uma, ainda que de maneira
diferente, se associa à inibição. É coerente, então, fazer dela uma dimensão
comum.
Os antidepressivos são reguladores da ação. Modificam os estados
mentais dividindo melhor os fluxos energéticos em alta e em baixa. Fica, no
entanto, difícil estabelecer a distinção entre anti-neurótico e desinibidor, porque

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a inibição é também um das características da neurose. O sujeito se protege da


angústia, resultante do conflito intrapsíquico, por meio da inibição. Isto leva os
neuróticos a práticas de desinibição realizadas por meio das drogas e,
sobretudo, do álcool. A dependência é o risco desta automedicação.
Uma nova geração de antidepressivos entrou no mercado nos anos
80, os inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS).
A tendência a rebiologização da doença mental é muito clara na
psiquiatria universitária francesa. Já não se escrevem mais tratados de
psiquiatria, mas obras especializadas sobre as esquizofrenias, as ansiedades,
as depressões ou as adições. A psiquiatria se fragmentou em clínicas
especializadas. A depressão se insere naturalmente nessa tendência com a
tríplice decadência da noção de neurose, de conflito e de culpa. A vitória do
modelo deficitário se manifesta na afirmação de que a pessoa é objeto de sua
doença, na qual não participa: é a vítima de um processo. A depressão se
converte, desse modo, em uma doença igual as demais.
O mecanismo de ação da medicação é uma inibição da capacidade
do neurônio de transmitir informação química. Este descobrimento foi a pedra
angular da psicofarmacologia. Os investigadores formulam a hipótese de que os
antidepressivos atuam sobre a transmissão da serotonina (descoberta na
década de 20) e da noradrenalina (descoberta na década de 30). A depressão
está correlacionada com uma insuficiência da concentração de uma ou outra
destas vias neuronais. Esta correlação mobiliza a investigação em
psicofarmacologia desde os anos 50.
Os mais importantes bioquímicos, neurobiólogos e psicofarmacólogos
estão de acordo sobre essas incertezas: não sabem se as variações da
serotonina são responsáveis pela ação antidepressiva ou se se trata de um
simples efeito concomitante, ou se é apenas um indicador de mecanismos mais
complexos. O aporte da biologia à psiquiatria, ao diagnóstico das patologias
mentais e a eficiência dos antidepressivos é escasso. As neurociências
progridem, a psiquiatria da volta em círculos.
Perto dos anos 80 os ISRS são lançados no mercado, como a
imipramina e a indalpina. Uma coisa causa surpresa nos médicos que a
experimentam: a recuperação do humor e a diminuição da inibição acontecem

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ao mesmo tempo. Os pacientes se curam com prazer. No entanto, algumas são


retiradas do mercado por uma grande toxicidade que não havia aparecido nos
ensaios clínicos.
Em 1987 o Prozac recebe autorização da Food and Drug
Administration (FDA). A medicação tinha não apenas eficácia anti-depressiva
como também para perda de peso, bulimia, alcoolismo e tabagismo. Havia
também uma maior facilidade no seu uso, com uma única dose obtinha-se
resultado.
Dez anos mais tarde, quando ainda nenhum progresso havia
acontecido, investigadores de laboratórios farmacêuticos predizem a descoberta
de uma molécula para cada tipo de depressão. Anunciam-se moléculas para
cada tipo de receptor serotonínico e noradrenérgico. Para deprimidos distintos,
antidepressivos diferentes.
O mercado dos antidepressivos prossegue em forte crescimento que
começou em 1975, mas muda de estrutura de consumo: as vendas do Prozac
aumentam cerca de 35% ao ano. Em 1995, esta molécula ocupa o segundo lugar
entre os medicamentos mais vendidos na França7.
Dada a importância dos custos diretos e indiretos da depressão, tanto
sobre o equilíbrio das contas sociais como sobre os de produtividade das
empresas, os economistas de saúde demonstram que é mais econômico
empregar os ISRS que os tricíclicos, ainda que cada cápsula tenha um custo oito
ou dez vezes superior, pois a continuidade do tratamento é muito melhor e sua
eficácia multiplicada. Os ISRS estariam próximos do antidepressivo ideal.
Antes de avaliar as promessas milagrosas da ciência, é importante
ressaltar que respondem a aspirações sociais e encontram-se orientadas para
os novos problemas que as pessoas têm que enfrentar. A renovada atenção ao
sofrimento no plano social apresenta patologias da crise econômica através das
quais os traumatismos e desamparos se traduzem para a psiquiatria por meio da
depressão.
Cada vez mais suicídios, abusos do álcool ou da droga, surtos de
doenças não psiquiátricas apresentam-se acompanhadas de uma depressão.
Os depressivos declaram muito mais doenças que os não depressivos da

7
S. Coignard, Les prodiges de l´effet placebo”, Lê point, 29 de junho de 1996.

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mesma idade; os deprimidos entre 20 e 29 anos têm tantos problemas de saúde


quanto os não deprimidos de 45 a 59; as mulheres deprimidas entre 45 e 59
anos têm um nível de saúde equivalente ao de uma pessoa de mais de 80 anos 8.
A depressão revela (ou está associada a) uma multiplicidade de
problemas sociais e médicos que são custosos para as sociedades.
A psiquiatria pública é cada vez mais mobilizada por pessoas que
sofrem, mas que não estão doentes no plano psíquico. Os traumas ocasionados
pela situação cada vez mais precária do trabalho constituem o elemento
essencial dos problemas tratados pela psiquiatria pública: depressões,
ansiedades crônicas, toxicomanias, alcoolismo e automedicação a longo prazo.
Dois eixos simbólicos na França do começo dos anos 80: a esquerda
chega ao poder e seu projeto coletivo se frustra; o chefe da empresa se institui
como modelo para todos. Estes dois eixos estão ligados porque declinam as
duas grandes utopias reformistas e revolucionárias: a sociedade protetora e a
alternativa ao capitalismo. A ação empresarial também constitui uma resposta a
crise da ação estatal que, na França, cuida tradicionalmente do futuro da
sociedade. A ação privada se encarrega das missões coletivas do Estado,
enquanto a ação pública utiliza modelos privados.
Qualquer que seja o espaço considerado (empresa, escola, família) o
mundo mudou de regras. Já não se trata de obediência, disciplina, conformidade
a moral geral, senão de flexibilidade, mudança, rapidez de reação, etc. O
domínio sobre si mesmo, a agilidade psíquica e afetiva, a capacidade de ação,
fazem com que cada um deva tolerar o peso de adaptar-se permanentemente a
um mundo que perde sua permanência, um mundo instável, provisório, feito de
fluxos e de trajetórias que sobem e descem. Entender o jogo social e político
torna-se confuso. Estas transformações institucionais dão a impressão que cada
um, incluído o mais humilde e mais frágil, deve assumir a tarefa de escolher e
decidir tudo.
A civilização da mudança estimula uma enorme atenção ao
sofrimento psíquico. Surge por todos os lados e assume a forma dos múltiplos
mercados do equilíbrio interior. Grande parte das tensões sociais se manifesta

8
A. Lê Pape e T. Lecomte, Aspects socioéconomics de la depression. Évolution 1980-1981/1991-1992,
CREDES, 1996.

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nas situações de implosão, de impedimento depressivo ou, o que termina sendo


o mesmo, de explosão – de violência, de raiva ou de busca de sensações. Como
ensina a psiquiatria contemporânea, a impotência pessoal pode fixar-se na
inibição, explodir na impulsão ou conhecer as intermináveis repetições de
comportamento das compulsões. A depressão encontra-se na encruzilhada das
normas que definem a ação, de um uso extenso da noção de sofrimento ou de
mal-estar no início dos problemas sociais, e das respostas novas propostas
pelas investigações da indústria farmacêutica.
Neste contexto que se lança o Prozac com uma campanha de
marketing dirigida aos médicos generalistas. Uma série de artigos na imprensa
psiquiátrica profissional sobre o tema dos “alegradores do humor”, um dossiê da
revista americana Newsweek, de 1990 intitulada “A promessa do Prozac” inicia
a polêmica pública sobre a depressão: diz que as pessoas passaram a ir ao
médico para pedir que prescrevesse o remédio, porque este permitia que
assumissem as dificuldades da existência sem pagar o custo psíquico.
Algumas questões práticas da vida moderna surgiram: a psiquiatria e
a medicina recebem uma clientela que demanda suplementos farmacológicos e
psicológicos para controlar melhor suas múltiplas dificuldades.
Uma pesquisa sociológica através de entrevista com pessoas sob
tratamento antidepressivo demonstra que a eficiência do Prozac é muito variável
e que a decepção é grande9. Os ISRS são exatamente como todos os
antidepressivos: sua eficácia é variável.
A notícia é ruim: a toda poderosa capacidade anunciada para os
antidepressivos é o cobertor de uma enfermidade incurável, como se descobriu
nos anos 90. Tudo se converte em depressão porque os antidepressivos atuam
sobre tudo. Tudo é tratável, porque sabe-se bem que nem tudo é curável. Ao
mesmo tempo que o conflito se perde de vista, a vida se transforma em uma
doença identitária crônica.

O sujeito inseguro da depressão e a individualidade de fim de


século

9
D. Karp, “Taking anti-depressant medications: resistance, trial, commitment, conversion
disenchantement, Qualitative Sociology, vol.16, n4, 1993.

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A capacidade de atuar sobre si mesmo é o nó da socialização, a ação


paralisada é o transtorno fundamental da depressão.
A nível psiquiátrico, a controvérsia central do fim do século em matéria
de depressões é o lugar que se dá aos antidepressivos nestes estados
indefiníveis, classificados sobre múltiplas bases, mas muito recorrentes,
reincidentes e crônicos.
Os ISRS engendram o temor de uma dispersão química dos dilemas
que modelam a subjetividade. Na medida em que se dispõe de medicamentos
aplicáveis tanto a graves patologias quanto a pequenas afecções, a inutilidade
do diagnóstico faria com que fosse realizável o pesadelo de uma sociedade
composta de indivíduos “farmacohumanos”. Essa expressão indica uma
categoria de pessoas que não estaria submetida as condições habituais da
finitude.
Esta crença nas possibilidades infinitas das neurociências e da
farmacologia é perfeitamente irrealista. E não parece que as novas vias de
exploração ou as novas hipóteses sejam muito promissoras. A crença revela
também a confusão entre o progresso da investigação e da psiquiatria. A
psiquiatria é uma medicina, sua função é curar. Não se situa no mesmo plano
que a investigação biológica.
Está claro que na farmacologia os antidepressivos estão distantes de
terem se convertido em medicamentos ideais. Existem três obstáculos a serem
superados: obter uma eficácia superior a dos tricíclicos, um início de ação mais
rápido e uma eficácia regular no tratamento das depressões resistentes. Os
antidepressivos são medicamentos confortáveis, o que é outra coisa.
A partir da década de 80 constata-se na epidemiologia psiquiátrica
sobre o problema da eficácia dos diagnósticos: depressões resistentes,
recaídas, reincidências e cronicidade constituem a regra geral. A cura entra em
crise.
A crise da cura e a diminuição da referência ao conflito sugerem que
a individualidade contemporânea não é apenas um dado a mais no horizonte da
cura: foi acompanhada e transformada em vários aspectos de duração extensa.
Simultaneamente, a sociedade francesa abandonou politicamente a idéia da

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solução boa. O conflito já não estrutura a unidade pessoal e social, suas


mensagens não proporcionam absolutamente instruções adequadas para
conduzir a ação. Os dois níveis da crise da cura na psiquiatria e de eliminar o
conflito tanto do psíquico como do social delineiam a nova psicologia coletiva.
Nela, o sujeito não se encontra moribundo, mas modificado.
Como consequência, a psicoterapia converte-se assim em um
potencializador da quimioterapia. As mais recomendadas são as
comportamentais ou cognitivas que revelam um modelo claramente deficitário.
A banalização excessiva da prescrição é um risco reconhecido: os
antidepressivos tem efeitos secundários e potencialidades a longo prazo que
ainda se desconhecem. Os tratamentos prolongados podem ter efeitos negativos
sobre a memória e funções cognitivas, as taxas de suicídio parecem mais
elevadas em pacientes tratados com antidepressivos, entre outras possíveis
consequências.
Diante do déficit, a tendência a cronicidade conduz os psiquiatras a
substituir a noção de cura pela de qualidade de vida dos pacientes. Na medicina,
a qualidade de vida é um tema clássico para os doentes crônicos. A diabetes
insulinodependente é um exemplo típico. Na psiquiatria, o tema aparece nos
Estados Unidos na década de 60, relacionado com a psicose: serviu para criticar
as consequências da saída em massa dos hospitais psiquiátricos pela
insuficiência das estruturas substitutas. A qualidade de vida logo se estendeu a
dois tipos de transtornos considerados como crônicos a partir dos anos 80: a
ansiedade e a depressão.
A qualidade de vida é um meio de dar autonomia ao paciente na
cronicidade como é o caso de todas as enfermidades crônicas. O paciente ideal
é um interlocutor ativo que sabe reconhecer por si mesmo os primeiros sinais de
recaída, encarrega-se de reconhecer sua necessidade de apelar para seu
psiquiatra habitual, que apenas ajusta a dose do antidepressivo.
De um lado, uma melhor qualidade de vida para os pacientes, de
outro, o medo da dependência: estes dois fenômenos estão intimamente ligados.
Por acaso a cura não supõe o fim de um tratamento em um momento ou outro?
Se a psiquiatria tem tendência a empregar o modelo de diabetes
insulinodependente para neutralizar as dificuldades da noção de cura, os

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deprimidos encontram-se, de agora em diante, na mesma situação que os


psicóticos: as fases agudas da patologia são muito bem tratadas, mas a
cronicidade é a regra.
O antidepressivo abandona a categoria de medicamento ao mesmo
tempo que a depressão abandona a de doença. A pílula diminui razoavelmente
a insegurança identitária de uma pessoa. O tratamento de longa duração
substitui a cura porque os antidepressivos são também medicamentos
antineuróticos: deixam os conflitos.
Esta situação paradoxal, em que o medicamento tem poderes
mágicos enquanto a patologia se torna crônica, obriga uma interrogação sobre
os limites da doença. Compreende-se que a distinção entre normal e patológico
converteu-se em um problema moral.
A psiquiatria contemporânea apresenta uma debilidade teórica.
Satélite das neurociências por um lado, na medida em que carece de sua própria
autonomia diante delas, obrigada a responder às demandas sociais por outro, a
psiquiatria precisa voltar a pensar em suas referências: como conceituar e definir
a noção de patologia mental atualmente?

A abordagem conflitual da patologia mental é representada pela


psicanálise. É um problema do reaproveitamento da relação consigo mesmo e
da busca do bem-estar. A perspectiva de cura está orientada a relativizar a parte
do bem-estar (animal) em proveito da liberdade (humana). O doente é antes de
tudo um sofredor que não pode reconhecer-se curado ainda que tenha integrado
sua doença a sua experiência e sua própria história.
A ideia de cura caracteriza-se, não pelo retorno da doença ao estado
anterior, mas pelo fato de que o médico, o psicoterapeuta ou a molécula se
tornam inúteis. Evidentemente este momento é delicado de discernir e supõe um
tipo de sabedoria prática, uma espécie de compromisso a respeito do qual o
sujeito participa com a ajuda do seu terapeuta.
Uma coisa parece certa no modelo conflitual: o bem-estar não é a
cura, porque curar-se é ser capaz de sofrer, de tolerar o sofrimento. Estar curado,
deste ponto de vista, não é sentir-se feliz, é ser livre, é dizer, reencontrar um
poder que permita decidir-se por uma coisa ou por outra. Se se aceita a ideia de

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que a saúde é a capacidade de ultrapassar as próprias normas, é necessário


distinguir a felicidade da liberdade e o bem-estar da cura.
Os críticos da psicanálise questionam a necessidade de que tudo
venha a consciência para que a cura seja possível. A cura parece reduzida a
uma iniciação nos mistérios do inconsciente. O paciente torna-se dependente da
perspectiva de seu terapeuta, da mesma maneira que ingere um comprimido por
um grande período. A cronicidade não é, então, monopólio da psiquiatria
biológica. Se a análise não tem limite de tempo nem de espaço, pode durar toda
a vida. A figura do capaz impotente é patrimônio de todos os mercados do
equilíbrio interior.
O homem doente contemporâneo é mais um traumatizado que um
neurótico (ou um psicótico), está confuso, vazio e agitado. E nas situações de
precariedade, dificilmente satisfaz suas condições materiais, sociais e
psicológicas para aceder a um registro do conflito. As novas ameaças interiores
e seus tratamentos apontam um indivíduo cuja identidade interna se acha
continuamente fragilizada, mas que é perfeitamente tratável a longo prazo. O
indivíduo atual não está nem curado nem enfermo. Está inscrito em um dos
vários programas de tratamento e supervisão.
A história da depressão lança luz sobre o tipo de pessoa em que o
homem se converteu e a infinidade de exigências de liberação psíquica e de
iniciativa individual. A depressão está para a insuficiência, como a loucura está
para a razão e a neurose para o conflito. A depressão é o mediador histórico que
faz retroceder ao homem conflitual. Com o evangelho do desenvolvimento
pessoal de um lado e o culto ao êxito de outro, o conflito não desaparece, mas
perde sua evidência e já não é um guia seguro.
A depressão agrupa hoje uma série de dificuldades pessoais que
afetam todos os aspectos dolorosos da vida. Percorre a linha da existência
dando um nome genérico a maior parte dos transtornos de humor e das
disfunções da ação. A dificuldade para definir uma doença confusa autorizou
uma extrema plasticidade em seus usos. Os tratamentos de manutenção,
mesmo quando objeto de discussões gozam de ampla aprovação. Os
antidepressivos têm efeito sobre uma ampla gama de sintomas e não precisam
de um de um diagnóstico baseado na etiologia. Com o abandono da etiologia, a

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doença encontra-se localizada nos confins da pessoa que patológica e de uma


pessoa que tem uma patologia.
As abordagens sindrômicas ou dimensionais têm proporcionado as
ferramentas de uma fidelidade descritiva para as investigações epidemiológica
e farmacológica, mas não melhorou as possibilidades de cura. O mesmo
acontece com o progresso na neurobiologia e da farmacologia.
Não parece que a declinação do sujeito, isto é, do sujeito de seus
conflitos, seja equivalente a uma ”desubjetivação”. Mostra melhor que o ser
humano de hoje já não é o mesmo do final do século XIX, nem de meados do
século XX, pois as condições e as formas de finitude mudaram. É necessário
integrar na reflexão sobre o sujeito alguns argumentos que, no entanto, não
foram colocados em relevo na França.
O argumento psiquiátrico atual legitima que se coloque sob
tratamento antidepressivo todo indivíduo que sofra qualquer forma de invalidez:
distímicos, ansiodepressivos, inibidos, afetados pelo pânico ou subsindrômicos
de todo tipo, que povoam os consultórios dos generalistas (mas também dos
cardiologistas, dos reumatologistas, etc) devam ser tratados, como primeiro
recurso, com um antidepressivo. A prescrição de moléculas de amplo espectro
de ação responde ao incremento das exigências normativas dos dias atuais: a
dificuldade de enfrentar pode custar caro a uma individualidade presa a uma
trajetória na qual os fracassos profissionais, familiares e afetivos podem
acumular-se rapidamente. Estes fracassos conduzem a uma exclusão da
sociabilidade muito mais rápida que antes. PG 250 Kramer
O conflito estruturava as relações em dois níveis. O primeiro é político,
encontra-se no interior do coletivo. A invenção do social (a previdência para os
trabalhadores e a assistência para os incapazes de trabalhar), sua aposta no
funcionamento da representação política (parlamentos e partidos) e das
organizações de massa (sindicatos, movimento de jovens) permitiram superar
um risco que tolerava a luta de classes: seu deslizamento para uma guerra civil.
Este estilo de funcionamento colocava em cena um conflito – político – que
outorgava sentido desenhando as linhas de enfrentamento e de acordo entre os
atores. Distribuir a riqueza produzida de um modo mais justo e lutar contra a
desigualdade de oportunidades entre as classes sociais são dois grandes

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compromissos políticos que se impõem durante a segunda metade do século


XX. A divisão do social condiciona a unidade da sociedade, o conflito permite
manter um grupo humano que tenha necessidade de justificar seu sentido em
referência a outro, sem um soberano que decida por todos. É este o núcleo da
política democrática.
No nível da pessoa, o conflito satisfazia uma função simbólica:
estruturar uma relação consigo mesmo na qual os elementos se encontrem ao
mesmo tempo relacionados e em conflito, tão relacionados que ficam em conflito.
A divisão de si mesmo é constitutiva da unidade da pessoa. Esta divisão nasce
nas margens do sujeito e da loucura e se converte no centro do sujeito da
neurose. Constitui não sua divisão privada (que não escolhe), nem subjetiva (que
não se negocia), mas instituinte.
A depressão é um dos indicadores da dificuldade do conflito de
produzir a relação. O conflito já não é o grande recurso da unidade social e da
pessoa. Quais são agora os ingredientes que fazem, desfazem e refazem a
relação íntima e a relação social? Se faz necessário unir em um mesmo conjunto
o íntimo e o social.
A impregnação recente de nossas sociedades pela repressão oculta
exatamente o processo de declinação da noção de sujeito que se impõe a partir
dos finais do século XX. Freud outorgou ao sujeito moderno sua forma ideal. É
ideal por duas razões. A primeira razão tem um caráter universal para a
modernidade: Freud integrou a animalidade humana (o Id) a civilização (o
Superego): o homem é objeto de pulsões e de instintos, como todos os
mamíferos, mas sua particularidade é que a moral divide e engendra o homem,
para falar exatamente como Freud, esta variante tópica da culpa que é a
angústia. A experiência conflitual estrutura a identidade do sujeito na qual
mantém a unidade, mas a intensidade do conflito pode ser tal que a pessoa se
fragmente na psicose, e seu Ego se disperse na dissolução identitária, na qual
Bleuler fez o núcleo das esquizofrenias.
A segunda razão alude ao que Freud considerou humano a partir de
sua indeterminação. No uso francês da psicanálise, a culpa é central, é um meio
para dar forma a essa indeterminação. As noções de falta e de conflito mórbido

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tornaram possível a introdução de Freud na França, mas desempenham papel


secundário na história da psicanálise na América.
A psicanálise francesa é uma ciência do homem culpado, a
psicanálise americana uma ciência de desenvolvimento pessoal – utiliza as
inclinações naturais do homem para seu próprio bem e da sociedade.
Na França, a relação com o proibido domina todo o pensamento da
psicanálise. Para converter-se em sujeito é necessário passar pela angústia de
ser você mesmo. O conflito psíquico é essencial. Na psicanálise americana o
conflito é visto como o meio pelo qual o indivíduo pode aperfeiçoar-se. A forma
de conceber a individualidade é completamente diferente. A angústia de
castração é na França o que a mobilidade do Ego é nos Estados Unidos. Ocupa
um lugar essencial no dispositivo psicanalítico francês.
Esta metafísica do Sujeito define um estilo psicanalítico nacional,
pode-se dizer quase republicano. O sistema normativo republicano consiste em
arrancar o indivíduo de suas dependências privadas para fazer dele um cidadão,
enquanto a norma política americana consiste em permitir ao indivíduo a
expressão de seus interesses privados no espaço púbico. A identificação entre
o sujeito do desejo e o sujeito da lei, que parece ser uma invenção francesa, é
análoga a relação do cidadão com a lei.
Freud fez da neurose uma referência para enunciar os dilemas do
homem normal, papel que a loucura, pelo seu caráter radical, não pode
desempenhar. A declinação da neurose é a de uma experiência de mundo que
põe o conflito no centro da condição humana e a outorga seu sentido. O homem
conflitual achava-se preso por uma carga superior a de suas forças, submetido
a uma lei e a uma hierarquia fortes, seu corpo tornou-se dócil graças a disciplina.
A noção de lei remete a condição de liberdade e de controle social. É necessário
que predomine a ordem no sujeito e na sociedade.
A inibição se considera normativa em uma cultura do proibido e da
obediência: permite também moderar as ambições pessoais das massas. A
neurose sofre então, de uma sobrecarga grande de proibições, seu Superego é
muito severo, e o que é uma condição da civilização se inclina para uma
hesitação do indivíduo. Em uma cultura de êxito e da ação individual, onde as
perdas de energia podem custar muito caro, porque é necessário sempre render

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o máximo, a inibição é uma disfunção pura, uma insuficiência. É por isso que a
insuficiência é para a pessoa de hoje o mesmo que o conflito era para a da
primeira metade do século XX.
Vive-se na crença e na verdade de que cada um deveria ter a
possibilidade de criar, por si mesmo, sua própria história. O homem se pôs em
movimento pela abertura dos possíveis e o jogo da iniciativa individual, e tudo
isto levado aos limites mais profundos de sua própria intimidade. Esta dinâmica
aumenta a indeterminação, acelera a dissolução da permanência, multiplica a
oferta de sinais e os desvanece simultaneamente.
O homem está frágil, carece de associação, está cansado com sua
soberania e sofre por causa dela. A depressão é uma melancolia mais igualitária,
a doença por excelência do homem democrático. É a contrapartida inexorável
de um homem que é seu próprio soberano. Não só do que atuou mal, mas
também do que não pôde atuar. Não se pensa a depressão em termos de direito,
mas em termos de capacidade.
A droga é uma ferramenta cognitiva para descrever uma conduta que
consiste em manipular por si mesmo os próprios estados de consciência,
qualquer que seja a periculosidade do produto utilizado. Mudar a personalidade
de verdadeiros doentes é devolver-lhes a saúde; mudar a personalidade de
pessoas que se tem dúvida sobre a doença é droga-las, mesmo quando a droga
não representa perigo. O paciente que goza de uma boa qualidade de vida não
é suspeito de estar confortavelmente drogado? É a respeito dessa situação que
se alcançou “um” ideal de pessoa.
A dependência, esta relação patológica com um produto, uma
atividade ou uma pessoa é, junto com a depressão, a outra grande obsessão da
psiquiatria. Para o psiquiatra biológico ou comportamental, trata-se de uma
conduta de risco. Para as sociedades converteu-se em algo bastante essencial
porque o que está em jogo é menos médico que simbólico. O drogadito é alguém
que ultrapassou a fronteira entre tudo que é possível e tudo que está permitido.
Constitui a figura radical do indivíduo soberano. A dependência é o preço da
liberdade sem limites que se dará ao sujeito: a dependência é uma forma de
escravidão. É, junto com a loucura, a segunda maneira de dizer o que se passa
quando uma parte do sujeito vacila no interior de uma pessoa. Mas a loucura e

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a depressão o fazem de uma maneira completamente oposta. Se a primeira


revela o rosto obscuro do nascimento do sujeito moderno, a segunda o põe à luz
de sua decadência.
A loucura envolve, em seus casos mais extremos, a forma de uma
dissolução identitária – a distância máxima que pode separar a interioridade de
cada um. A dependência tende, de modo inverso, para uma fusão identitária – a
distância é mínima. A loucura tem séculos de história, a dependência menos de
40 anos. A dependência é uma preocupação das sociedades de abundância:
expande-se nos Estados Unidos e na Europa nos anos 60 em nome do direito
de dispor livremente de si, direito alienado pela sociedade burguesa, pelo
capitalismo e o condicionamento generalizado das massas para o consumo.
Logo, a noção de dependência estende-se e designa uma relação patológica
independente de seu objeto.
Para passar da loucura à dependência em menos de dois séculos foi
necessária, previamente, a invenção da neurose nos fins do século XIX, logo,
sua derivação para a depressão no último terço do século XX. A dependência
está para a liberação psíquica e a iniciativa individual o que a loucura era para a
lei e a razão: uma noção de si mesmo que nunca é suficiente (a insegurança
identitária), uma exigência de ação a qual nunca se responde de modo suficiente
(a indecisão do indivíduo, a ação descontrolada do impulsivo). Se a aspiração a
ser você mesmo conduz a depressão, a depressão conduz a dependência, esta
nostalgia do sujeito perdido.
Uma sociedade de iniciativa individual e de liberação psíquica, na
medida em que leva cada um a decidir permanentemente, estimula as práticas
de modificação de si e, simultaneamente, cria problemas de estruturação de si
que não constituíam objeto de nenhuma atenção em uma sociedade disciplinar.
Esta preocupação pelos “limites” confirma, aparentemente, que o
individualismo contemporâneo não é outra coisa que o triunfo do homem privado
e abarca o mais profundo de sua infelicidade. Parece que a sociedade se
confronta com uma reformulação do conjunto. A ação pública está também
implicada na redefinição do íntimo na grande transformação das maneiras de
representação.

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A preocupação pelo sofrimento participa da diminuição das


dimensões conflitivas do social, do qual é revelador o aumento das
desigualdades entre os grupos. No lugar das lutas entre grupos sociais,
competências individuais que afetam de outra maneira as pessoas – menos
comunitariamente. Assiste-se a um duplo fenômeno de universalização
crescente (a globalização), mas abstrato e de personalização crescente, mas
sentida mais fortemente.
Por outro lado, cada vez se estabelecem mais diferenças entre
sofrimento e injustiça, compaixão e desigualdade, conflitos legítimos, que
aspiram uma divisão mais justa da riqueza produzida, e conflitos ilegítimos, que
provém de corporativismos bem instalados no esquema de relações de força. O
ressentimento se volta contra o próprio indivíduo (a depressão é uma
autoagressão).
Mais que uma crise da política e do sujeito que resultam do aumento
do individualismo, assiste-se a uma mudança solidária das figuras da pessoa e
da política. A ação em comum já não consiste em movimento de massas, sob a
condução de uma organização e frente a um adversário discernível. A
representação política já não se distribui em função do pertencimento de classe,
como mostra a sociologia eleitoral. A cidadania já não consiste em colocar entre
parênteses o interesse privado de cada um. Por certo não há ação política no
horizonte de um mundo comum, sem que este horizonte passe atualmente pela
individualização da ação. A ação política consiste menos amiúde em resolver os
conflitos entre adversários que em facilitar coletivamente a ação individual. Esta
é uma nova constrição política.
Um novo espaço público talvez esteja em vias de estruturar-se de
modo que ressalte mais a subjetividade comum das pessoas que a objetividade
dos interesses contraditórios, tendendo mais a produzir autonomia que a
resolver conflitos.
Um conjunto de facetas que vão desde a automedicação a ação
pública individualizante desenham as novas figuras da individualidade. O modo
de ser dessas figuras já não é o conflito das sociedades de classe ou do indivíduo
constrangido pela disciplina. As aspirações, os problemas, as soluções que dão
forma ao conjunto são outros. Mudou-se o mundo de significações, as maneiras

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de considerar a divisão entre verdade e o erro. É aqui que intervém a questão


da instituição de si. Esta noção permite que o individualismo não possa ser
reduzido a privatização da existência, na medida em que supõe um mundo como
mundo público e comum.
Da obediência a ação, da disciplina a autonomia, da identificação a
identidade, estes deslocamentos borraram a fronteira entre o cidadão, público e
o indivíduo, privado. Pode-se lamentar, mas é inútil e nefasto politicamente. Esta
situação resulta de uma perda da produtividade do conflito. Esta diminuição que
implica que a sociedade está inexoravelmente conduzida a dividir o mundo com
os outros. O indivíduo não é um gênero de pessoa abandonada a si mesmo,
como se estivesse confrontado somente com suas escolhas, nem ao contrario,
uma colagem entre subjetividades que poderiam mudar seu estilo de vida como
em um supermercado.
A convergência do estatal, do profissional, do escolar e do privado
sobre a iniciativa individual, combinada com uma liberdade de costumes inédita
e a uma multiplicação da oferta de referentes, outorga ao psíquico uma inscrição
social e, portanto, pessoal inteiramente inédita. O estilo de resposta aos novos
problemas da pessoa toma forma de práticas de tratamento e apoio aos
indivíduos, eventualmente durante toda a vida. Constituem uma forma de
tratamento que se desenrola por múltiplas vias farmacológicas,
psicoterapêuticas e sóciopolíticas. Esta regra pode servir tanto de instrumento
de dominação como de meio de reinserção ou de tratamento terapêutico. As
formas de enfrentar as situações, as estratégias ou as opiniões dos atores se
constroem neste imaginário. Uma vez incorporado seu uso, e assimilado nos
costumes, dispondo de um vocabulário empregado de modo permanente
(elaborar projetos, cumprir contratos, provocar motivação, etc) esta regra
incorpora-se nas pessoas. Instituiu-se. Estas novas formas comuns de produção
da individualidade são as instituições de si mesmo.

O peso do possível

A depressão ameaça o indivíduo semelhante apenas a ele mesmo


como o pecado observava a alma voltada a Deus, ou a culpa ao homem

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dilacerado pelo conflito. Mais que uma miséria afetiva, é uma forma de viver. O
principal fato da individualidade na segunda metade do século XX é a
confrontação entre a noção de possibilidade ilimitada e a falta domínio. O
aumento da depressão ressaltou as tensões produzidas por este confronto a
medida que o continente do permitido retrocedeu em proveito do possível.
A depressão e a adição apresentaram algumas regiões do continente
do possível que está instalado na declinação dos velhos sistemas morais. Neste
espaço, das transgressões sem proibições encontram-se as escolhas sem
renúncias e as anormalidades sem patologia.
Em 1800, a questão do indivíduo patológico aparecia no pólo loucura-
delírio. Em 1900, se transforma com os dilemas da culpabilidade, dilemas que
dilaceram o homem enfraquecido por suas tentativas de superá-los. No ano
2000, as patologias são as da responsabilidade de um indivíduo que livrou-se da
lei dos pais e dos antigos sistemas de obediência ou de conformidade às regras
exteriores. A depressão e adição são como o anverso e o reverso do indivíduo
soberano, do homem que acredita ser o autor de sua própria vida enquanto
segue sendo o sujeito no duplo sentido do termo: o ator e o paciente.
A depressão lembra muito concretamente que ser proprietário de si
mesmo não significa que tudo é possível – isso que sobe e isso que desce nas
pessoas, isso que se contrai e se descontrai. Por deter o indivíduo, a depressão
tem o interesse de lembrar que nada deixa de ser humano, que está encadeado
a um sistema de significações que o supera e o constitui ao mesmo tempo. A
dimensão simbólica impregna a tal ponto a espécie humana que não somente
se encarrega de sua própria história, na lógica democrática tradicional, mas que
também adquire sua própria corporeidade nervosa, na lógica tecnológica
contemporânea. As constrições e as liberdades se modificam, mas a parte do
irredutível não diminui.
A implosão depressiva a responde a explosão aditiva; a falta de
sensações do deprimido a responde a busca de sensações do drogadito. A
depressão, essa patologia crucial, serviu de plataforma giratória para projetar
esta modificação da subjetividade dos modernos, este deslocamento da dura
tarefa de comportar-se bem. Em um contexto em que a escolha é a norma e a
precariedade interna o preço, estas patologias compõem a face obscura da

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intimidade contemporânea. Esta é a equação do indivíduo soberano: liberação


psíquica e iniciativa individual, insegurança identitária e impotência para atuar.
Nesta oscilação residem algumas apostas da psicologia coletiva que
está muito presa a uma perspectiva rígida do sujeito conflitivo. Em consequência,
inteiramente despojada para pensar novos problemas do indivíduo e esclarecê-
los, para inventar um porvir ao invés de lamentar pelos bons velhos tempos em
que as fronteiras eram claras e o progresso uma certeza. “A crise da
modernidade” resulta em um tema recorrente. A fronteira também é um lugar, e
o labirinto um espaço habitável se se encontra o fio de Ariadne.
Depressão e adição são os nomes que se dão ao incontrolável
quando já não se trata de conquistar a própria liberdade, mas de converter-se
em você mesmo e tomar a iniciativa de atuar. Recordam que o desconhecido é
constitutivo da pessoa, tanto hoje quanto ontem. Podem se modificar, mas é
impossível fazê-las desaparecer – porque jamais deixaram de ser humanas.
Esta é a lição da depressão. A impossibilidade de reduzir totalmente a distância
de si mesmo é inerente a uma experiência antropológica na qual o homem é
proprietário de si mesmo e fonte individual de sua ação.
As noções de projeto, de motivação ou de comunicação dominam a
cultura normativa. São as palavras chaves da época. Mas a depressão é uma
patologia dos tempos (o deprimido não tem futuro) e uma patologia da motivação
(o deprimido não tem energia, seu movimento está embotado e sua palavra é
lenta). O deprimido formula com dificuldade seus projetos, faltam a energia e a
motivação mínimas para realizá-los. Inibido, impulsivo e compulsivo, se
comunica mal consigo mesmo e com o demais. Falta de projeto, falta de
motivação e falta de comunicação, o deprimido é o reverso exato das normas de
socialização. É assombroso como se explora, tanto em psiquiatria como em
linguagem comum, o uso dos termos depressão e adição, pois a
responsabilidade se assume, enquanto as patologias se tratam. O homem
deficitário e o homem compulsivo são as duas caras deste Jano.

Bibliografia:

Ehrenberg, A. La fatiga de ser uno mismo. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000.

Unisanta Health Science vol.5 (2) 2021 p. 39 - 75 Página 75

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