A atualidade de Marx
(2018)
Por Slavoj Žižek.
* ARTIGO ENVIADO PELO AUTOR DIRETAMENTE PARA SUA COLUNA NO BLOG DA
BOITEMPO.
A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.
Quando penso no bicentenário de Karl Marx comemorado este ano, logo me ocorre
uma deliciosa piada soviética sobre a rádio Yerevan. Um ouvinte pergunta: “É verdade que
Rabinovitch ganhou um carro novo na loteria?”. E a rádio responde: “A princípio, é verdade,
sim. Só que não foi um carro novo, foi uma bicicleta velha, e ele não ganhou ela, ela lhe foi
roubada.” Não seria possível dizer que algo semelhante não vale também para o destino do
ensinamento de Marx hoje, 200 anos após seu nascimento?
Perguntemos à rádio Yerevan: “É verdade que Marx ainda é atual hoje?”. E já dá para
adivinhar que tipo de resposta teríamos: “A princípio, sim, ele descreve maravilhosamente a
dança louca das dinâmicas do capitalismo, que só atingiu seu auge hoje, mais de um século
e meio depois de seus escritos, mas… Gerald A. Cohen enumerou os quatro atributos
fundamentais da noção marxista clássica de classe trabalhadora: (1) ela constitui a maioria
da sociedade; (2) ela produz a riqueza da sociedade; (3) ela consiste dos membros
explorados da sociedade; (4) seus membros são os necessitados da sociedade. Quando
combinam-se esses quatro atributos, geram-se mais dois: (5) a classe trabalhadora não tem
nada a perder com uma revolução; (6) ela pode e irá iniciar uma transformação
revolucionária da sociedade.1 Não se pode dizer que os quatro primeiros atributos se
aplicam à classe trabalhadora atual. É por isso que não se pode produzir os enunciados (5) e
(6). (Ainda que algumas das características possam ser válidas para certas partes da
sociedade atual, elas não estão mais unificadas em um único agente: os necessitados na
sociedade não são mais os trabalhadores, etc.)
O impasse histórico do marxismo não repousa apenas no fato de que ele contava com
a perspectiva da crise derradeira do capitalismo e portanto não podia dar conta de explicar
como o capitalismo saía de cada crise fortalecido. Há um equívoco ainda mais trágico em
operação no corpo clássico do marxismo, descrito de maneira muito precisa por Wolfgang
Streeck: o marxismo estava certo a respeito da “crise final” do capitalismo; é evidente que
estamos adentrando ela hoje, mas essa crise é simplesmente isso, um processo prolongado
de corrosão e desintegração, sem que haja uma Aufhebung hegeliana fácil à vista, sem que
haja nenhum agente para conferir a essa corrosão uma virada positiva e transformá-la em
passagem para algum nível mais elevado de organização social:
“É um preconceito marxista – ou melhor, modernista – que o capitalismo enquanto
época história somente irá se encerrar no momento em que uma sociedade nova
e melhor estiver à vista, e em que houver um sujeito revolucionário disposto para
implementá-la para fazer avançar a humanidade. Isso pressupõe um grau de
controle político sobre nosso destino comum com o qual não podemos nem
sonhar depois da destruição da autonomia coletiva (e inclusive da esperança por
ela) realizada na revolução neoliberal-globalista.”2
A visão de Marx era a de uma sociedade gradualmente se aproximando de sua crise
final, uma situação marcada pela simplificação da complexidade da vida social a um grande
antagonismo entre os capitalistas e a maioria proletária. No entanto, até mesmo um rápido
panorama das revoluções comunistas do século XX já deixa claro que essa simplificação
nunca efetivamente chegou a ocorrer: os movimentos comunistas radicais sempre estiveram
circunscritos a uma minoria vanguardista que, para obter hegemonia, precisava aguardar
pacientemente uma crise (geralmente uma guerra) que fornecia uma estreita janela de
oportunidade. Em tais situações, uma autêntica vanguarda tem a chance de pode aproveitar
o momento, mobilizar o povo (ainda que não a maioria de fato) e tomar o poder. Aqui, os
comunistas sempre se mostraram totalmente “não-dogmáticos”, prontos para se colarem a
outras pautas: terra e paz na Rússia, libertação nacional e unidade contra a corrupção na
China, por exemplo… Eles sempre tiveram plena consciência de que a mobilização acabaria
logo e tratavam de preparar cuidadosamente o aparato de poder para garantir sua
manutenção no poder naquele momento. (Em contraposição à Revolução de Outubro, que
explicitamente tratou os camponeses como aliados secundários, a Revolução Chinesa
sequer fingiu ser proletária: ela abordou diretamente os agricultores como sua base.)
O grande problema do marxismo ocidental (e até mesmo do marxismo como tal) era a
ausência do sujeito revolucionário: como explicar que a classe trabalhadora não conclui a
passagem do em-si ao para-si de forma a constituir enquanto agente revolucionário? Esse
problema fornecia a principal raison d’être do recurso à psicanálise, evocada no interior
dessa tradição precisamente para dar conta de explicar os mecanismos libidinais
inconscientes que bloqueiam o surgimento da consciência de classe inscrita no próprio ser
(situação social) da classe trabalhadora. Dessa forma, salvou-se a verdade da análise
socioeconômica marxista: não havia motivo para renunciar a teorias “revisionistas” sobre a
ascensão das classes médias etc.
É por essa mesma razão que o marxismo ocidental também sempre se mostrou atento
a outros atores sociais que poderiam desempenhar o papel de agente revolucionário, como o
suplente substituindo a classe trabalhadora indisposta: campesinos do Terceiro Mundo,
estudantes e intelectuais, os marginais excluídos… A versão mais recente dessa ideia
recorre aos refugiados: somente um influxo de um número muito grande de refugiados seria
capaz de revitalizar a esquerda radical europeia. Essa linha de pensamento é profundamente
obscena e cínica. Para além do fato de que tal desdobramento certamente impulsionaria
enormemente a violência contra os imigrantes, o aspecto realmente insano dessa ideia é o
projeto de se preencher a lacuna dos proletários ausentes importando-os do exterior, de
forma que teríamos a revolução por meio de um agente revolucionário substituto terceirizado.
É possível identificar o fracasso da classe trabalhadora enquanto sujeito revolucionário
já no próprio núcleo da revolução bolchevique. A arte de Lênin foi saber detectar o “potencial
de raiva” (Sloterdijk) dos camponeses insatisfeitos. A Revolução de Outubro foi vitoriosa em
larga medida por conta do lema “paz, terra e pão” direcionado para a vasta maioria de
camponeses, agarrando o breve momento de radical insatisfação desse setor. Lênin já
estava pensando nessa linha uma década antes das Teses de Abril, e por isso temia o
possível êxito das reformas agrárias de [Piotr] Stolypin que visavam criar uma nova e forte
classe de camponeses independentes. Ele escreveu que se o projeto de Stolypin fosse bem
sucedido, estaria perdida, por décadas, a oportunidade de uma revolução.
Todas as revoluções socialistas exitosas, da cubana à iugoslava, seguiram esse
modelo: agarrou-se a oportunidade em uma situação crítica extrema, cooptando a libertação
nacional ou outros “capitais de raiva”. Aqui, é claro, um partidário da lógica marxista
hegemônica prontamente assinalaria que essa é justamente a lógica “normal” do processo
revolucionário: é única e precisamente através de uma série de equivalências entre múltiplas
demandas, sempre radicalmente contingentes e dependentes de um conjunto específico
(singular, até) de circunstâncias, que atinge-se efetivamente a “massa crítica” necessária.
Uma revolução nunca ocorre quando todos os antagonismos se reduzirem ao grande
antagonismo, mas quando eles combinam sinergicamente suas forças.
O ponto não é apenas que a revolução perdeu o bonde da História e deixou de seguir
as suas leis imanentes, pois na verdade não há História, pois a história é um processo
contingente, aberto. O problema é outro: é como se houvesse uma Lei da História, uma linha
mestra predominante mais ou menos clara de desenvolvimento histórico, e que nesse
contexto uma revolução só poderia ocorrer nos interstícios desse processo enquanto um
fenômeno “contra a corrente”. Por isso, os revolucionários precisam aguardar pacientemente
surgir o momento (geralmente muito breve) em que o sistema abertamente entra em pane ou
colapsa, se aproveitar da janela de oportunidade, agarrar o poder que naquele momento se
apresenta como que caído no chão, suscetível a ser reivindicado, e depois logo cuidar de
fortificar seu domínio sobre o poder, construindo aparatos repressivos etc. de forma que
quando passar o movimento de confusão e a maioria retomar a sobriedade e se desapontar
com o novo regime, já será tarde demais para se livrar dele, dado seu firme enraizamento.
Os comunistas também sempre calcularam cuidadosamente o momento certo para
interromper a mobilização popular. Tomemos o caso da Revolução Cultural Chinesa, que
sem dúvida continha elementos de uma utopia efetivamente encenada. Logo no seus últimos
momentos, antes da agitação ser barrada pelo próprio Mao (já que ele já havia atingido seu
objetivo de re-estabelecer seu pleno poder e se livrar da mais alta concorrência
da nomenclatura), ocorreu a “Comuna de Shanghai”: um milhão de trabalhadores que
simplesmente levaram a sério os lemas oficiais, exigindo a abolição do Estado e até mesmo
do próprio partido, e queria uma organização comunal direta da sociedade. Não é à toa que
foi justamente nesse momento que Mao optou por convocar o exército para intervir e
restaurar a ordem. Trata-se do paradoxo do líder que suscita um levante incontrolável ao
mesmo tempo em que busca exercer pleno poder pessoal: a sobreposição entre ditadura
extrema e emancipação extrema das massas.
A questão da continuada relevância da crítica da economia política de Marx na nossa
era atual de capitalismo global precisa portanto ser respondida de maneira propriamente
dialética. Afirmemos não apenas que ainda hoje a crítica da economia política de Marx, seu
raio x das dinâmicas do capital, permanece totalmente atual, mas mais do que isso,
afirmemos que é apenas hoje, com o capitalismo global, que, Marx atingiu sua plena
atualidade. Ou, para falar em hegelianês, apenas hoje a realidade atingiu seu conceito. Dito
isso, no entanto, intervém aqui uma inversão propriamente dialética: pois é neste exato
momento de plena atualidade que precisa aparecer a limitação, o momento do triunfo é
também o da derrota. Depois de superar os obstáculos externos, a nova ameaça vem de
dentro, assinalando a inconsistência imanente. Quando a realidade atinge plenamente seu
conceito, esse conceito mesmo precisa ser transformado. Aí reside o paradoxo propriamente
dialético: não se trata de dizer que Marx estava simplesmente errado, ele muitas vezes se
provou acertadíssimo, mas mais literalmente do que ele imaginava.
Tomemos a questão do “fetichismo da mercadoria”, por exemplo. Há uma clássica
piada sobre um homem que acredita ser um grão de milho e é levado a uma instituição
mental em que os médicos fazem de tudo para finalmente convencê-lo de que ele não é um
grão de milho mas sim um ser humano. Quando ele recebe alta (convencido de não ser um
grão de milho mas sim um homem) e permitem que ele saia do hospital, ele imediatamente
volta tremendo. Há uma galinha na porta e ele teme que ela irá comê-lo. “Meu caro”, diz o
médico, “você sabe muito bem que você não é um grão de semente e sim um homem.” “É
claro que eu sei”, responde o paciente, “mas a galinha sabe disso?” O que isso tem a ver
com o conceito de fetichismo da mercadoria? Leiamos o que dizem as palavras iniciais do
subcapítulo sobre o fetiche da mercadoria n’O capital, de Marx: “Uma mercadoria aparenta
ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Mas sua análise a revela como uma coisa muito
intricada, plena de sutilezas metafísicas e caprichos teológicos.” (p. 146) O fetichismo da
mercadoria (nossa crença de que as mercadorias são objetos mágicos dotados de poder
metafísico inerente) não está situado em nossa mente, na forma distorcida pela qual
percebemos a realidade, mas em nossa própria realidade social. Podemos até saber a
verdade, mas agimos como se não a soubéssemos – na nossa vida real, agimos como o
sujeito da piada.
É assim que a ideologia opera na nossa era de cinismo: não é preciso “crer” nela.
Ninguém leva a democracia ou a justiça a sério, todos nós estamos cientes de como essas
instâncias são corruptas, mas mesmo assim nós participamos delas – em outras palavras,
nós demonstramos nossa crença neles – porque assumimos que elas funcionam mesmo que
nós não acreditemos nelas. O mesmo vale para a religião: nós “realmente cremos” nelas,
apenas seguimos (alguns dos) rituais e costumes religiosos como parte do respeito pelo
“estilo de vida” da comunidade à qual pertencemos (judeus não-crentes obedecendo as
regras da alimentação kosher “em respeito à tradição”, por exemplo). “No fundo, eu não
acredito nisso, é só parte de minha cultura” parece ser o modo predominante da crença
deslocada característica de nossos tempos. É por isso que dispensamos os crentes
fundamentalistas como “bárbaros” ou “primitivos”, como anticulturais, como uma ameaça à
cultura: eles ousam levar a sério suas crenças. A era cínica em que vivemos não
surpreenderia em nada Marx. As teorias de Marx portanto não estão simplesmente vivas:
Marx é um fantasma que continua a nos assombrar, e a única forma de mantê-lo vivo é
concentrarmos nos insights deles que hoje são mais verdadeiros do que em seu próprio
tempo.
Então como ficamos? Devemos descartar os textos de Marx como documentos
interessantes do passado e nada mais? Em um paradoxo dialético, os próprios impasses e
fracassos do comunismo do século XX, impasses que eram claramente ancorados nas
limitações da visão de Marx, ao mesmo tempo comprovam sua atualidade: a solução
marxista clássica fracassou, mas o problema permanece. Hoje, o comunismo não é o nome
de uma solução, é o nome de um problema, o problema dos comuns em todas as suas
dimensões: os comuns da natureza enquanto substância da nossa vida, o problema de
nossos comuns biogenéticos, o problema de nossos comuns culturais (“propriedade
intelectual”), e, last but not least, os comuns enquanto espaço universal da humanidade do
qual ninguém deve ser excluído. Qualquer que seja a solução, ela terá necessariamente de
enfrentar esses problemas.
Nas traduções soviéticas, o famoso comentário de Marx a seu genro Paul Lafargue,
“Ce qu’il y a de certain, c’est que moi je ne suis pas marxiste”, ficou “Se isso é marxismo,
então eu não sou marxista”. Esse erro de tradução transmite perfeitamente a transformação
do marxismo em um discurso universitário: para o marxismo soviético, até mesmo o próprio
Marx seria um marxista que participava do mesmo conhecimento universal que constitui o
marxismo. O fato de que ele tenha criado o ensinamento posteriormente conhecido como
“marxismo” não constitui exceção alguma de forma que a negação expressa por ele só se
refere a uma versão específica equivocada que falsamente se proclamaria “marxista”. Na
verdade, o que Marx queria dizer era algo mais radical: uma lacuna separa o próprio Marx –
o criador que possui uma relação substancial diante de seus ensinamentos – dos “marxistas”
que seguem seus ensinamentos. Há uma conhecida piada dos irmãos Marx em Os
Galhofeiros (1931) que transmite bem essa lacuna. O capitão Spaulding pergunta: “Você se
parece muito com o Emanuel Ravelli. Você é irmão dele?” Ao que o sujeito responde: “Mas
eu sou Emanuel Ravelli.” E Spaulding simplesmente rebate: “Então não é à toa que você se
parece com ele! Mas insisto, há uma semelhança.” O sujeito que é Ravelli não se parece
com ele, ele simplesmente é Ravelli. E, da mesma forma, o próprio Marx não é um marxista
(um dentre os marxistas); ele é o ponto de referência eximido da série. É a referência a ele
que faz dos outros marxistas. E a única forma de se permanecer fiel a Marx hoje é de não
ser mais um “marxista”, mas sim de repetir o gesto fundador de Marx de uma nova maneira.
Notas
1 Gerald Allan Cohen, If You’re an Egalitarian, How Come You’re So Rich?, Cambridge (MA),
Harvard University Press 2001.
2 Wolfgang Streeck, How Will Capitalism End?, Londres, Verso Books, 2016, p. 57.