2019 Almeida, R. Oliveira, J. Entrevista Morin
2019 Almeida, R. Oliveira, J. Entrevista Morin
Resumo
Palavras-chave
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1678-4634201945002002
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The presence of the machine as a model of knowledge has gained increasing importance
in contemporary societies, especially because of the amplified use of cognitive machines
that have reconfigured the organization of productive, educational, social, and cultural
activities. Edgar Morin dissects in his work, La méthode, the consequences of using
machines for human thought and action, as well as the consequences of this artifice
being our reference for optimal human and societal functioning. An interview with this
author was performed at CNRS-Sorbonne Paris as part of my PhD research, initially
carried out at the University of Grenoble Alpes and concluded at the School of Education
at the University of São Paulo. The goal of this interview was to better comprehend, in
complexity theory, the meaning of the machine and, more precisely, of the machine-being,
as well as to confront the hypothesis of my PhD thesis, named Machine Life: the imagery
of machines in Edgar Morin’s La méthode. After clarifying the pillars of the concept
machine-being and its peculiarities in regard to the works of Descartes and La Mettrie,
the author discoursed about the importance of imagery in the production of knowledge and
mentioned the unusual images that he attributes to machines, such as Pétrouchka. Finally,
Morin emphasizes the notion that human beings are non-trivial machines and must not
be reduced to the determinisms that portray artificial machines (artifices), since most of
human production occurs through creative and self-organized processes.
Keywords
Apresentação
Edgar Morin
O conto A biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges, inicia-se com uma epígrafe
retirada da obra A anatomia da melancolia, de Robert Burton, escrita no século XVII,
que prepara o leitor para a matéria do texto: “Com tal arte podeis contemplar a variação
das 23 letras…”. Na sequência, logo nas primeiras linhas do conto, em profícuo diálogo
com Burton, o narrador propõe a equivalência que servirá de ponto de partida para sua
reflexão sobre o conhecimento humano: o universo é uma biblioteca. Constituído por
agrupamentos e arranjos de signos, esse universo pode assumir diferentes configurações,
como sugere a referência de Borges:
Com tal arte podeis contemplar a variação das 23 letras, que podem variar infinitamente, a ponto
que as palavras complicadas e deduzidas daí não sejam contidas pelo compasso do firmamento;
dez palavras podem variar em 40.230 modos diversos; com tal arte, podeis examinar […] quantos
homens, supondo que o mundo inteiro seja tão habitado quanto a França, tão fecundos, com
tão longas vidas, hão de nascer dentro de 60.000 anos, também podeis demonstrar, como
Arquimedes, quantos grãos de areia a massa do mundo inteiro poderia conter, se fosse só de
areia, se já soubésseis quanto um pequeno cubo, do tamanho de um grão de mostarda, é capaz
de conter, e infinitos outros problemas. (BURTON, 2012, p. 127).
Mediterrâneo, com heranças ibérica, italiana, salônica e balcânica, cujas raízes cresceram
em solo francês. Embora se denomine um autodidata, cuja curiosidade se alimentou de
novelas populares, cinema e música, formou-se em história, geografia e direito, estudando
adicionalmente física, química, biologia e antropologia – para citar algumas de suas áreas
de interesse (MORIN, 1994). Portanto, quando defende a inter ou a transdisciplinaridade
o faz levando em conta sua própria trajetória, já que seu perfil ampara o projeto de
entrelaçamento de saberes e caracteriza sua vasta produção, que abrange diferentes áreas
do conhecimento.
Seu primeiro livro foi publicado em 1946, L’An zéro de l’Allemagne (O ano zero
da Alemanha), depois de ter atuado no ano anterior como adido ao Estado Maior do
Primeiro Exército Francês na Alemanha, e retrata a situação do povo alemão após a
Segunda Guerra Mundial. Seus interesses múltiplos o conduziram a outros temas, como a
reflexão sobre a morte numa perspectiva antropológica, publicada em L’Homme et la mort
(O homem e a morte), de 1951. Em 1956, publicou Le Cinéma ou l’homme imaginaire (O
cinema ou o homem imaginário), obra que associa o cinema à sede por duplos que permeia
o interesse do homem por imagens, desde a pré-história. Um estudo de suma importância
em sua produção anterior a La Méthode, apareceu em Le Paradigme perdu: la nature
humaine (Enigma do homem – Para uma nova antropologia, em versão brasileira, ou
Paradigma perdido: a natureza humana, em tradução de Portugal) de 1973, obra em que
busca uma concepção bio-psico-social da espécie humana, associando o surgimento da
cultura aos rituais de sepultamento, comuns entre os sapiens e os neandertais, e sugerindo
o conceito de homo sapiens-demens para abarcar, ao lado da racionalidade, o imaginário
e a passionalidade que nos caracterizam.
Principal referência de sua proposta de religação dos saberes, sua obra máxima,
La Méthode (O método), teve seu primeiro volume publicado em 1977, a ele se somando
outros cinco, em 1980, 1986, 1991, 2001 e 2004. Trata-se de um conjunto de livros que
se esteia no uso de operadores cognitivos (ferramentas de complexificação do saber), de
uma genealogia de organização, de circuitos de conceitos e da reintrodução do sujeito
como parte do conhecimento. Na obra, encontram-se inovações linguísticas, compostas
por neologismos e o uso alternativo de sinais gráficos (barras, parênteses e flechas), que
unem palavras, sintagmas e conceitos. Nesse dialeto da complexidade, investigado por
Sara Bonomo (2011), Morin procura reunir, desde as unidades lexicais das palavras, os
diversos sistemas que as especializações disciplinares separaram. O uso da máquina no
pensamento complexo, como noção e unidade física, parece advir desse anseio de ligação,
tendo em vista que, enquanto objeto, a máquina é, ela mesma, uma combinação de partes
e serve para articular elementos, função que também ocupará na obra de Morin.
Para a preparação de sua obra principal, Edgar Morin escolheu como interlocutor
outro filósofo francês, nascido quatro séculos antes. A conversa foi longa: durou mais
de trinta anos de trabalho e rendeu os seis tomos de O método. No diálogo com René
Descartes, Morin anuncia sua intenção de elaborar “um método, no sentido cartesiano,
que permita bem conhecer a sua razão e buscar a verdade nas ciências” (MORIN, 2005,
p. 28-29) e estabelece as orientações que o distinguem de seu antecessor, em entrevista a
Pessis-Pasternak (1993, p. 88):
articulação dos saberes complexos. Definida como todo sistema3 dotado de organização
ativa (MORIN, 2005, p. 198), isto é, capaz de produzir organização, a máquina serve de
elo comum entre os diferentes componentes da genealogia, na qual figuram sóis (arkhe-
máquinas), seres vivos (máquinas biológicas), sociedades (megamáquinas), linguagem,
além dos artefatos (máquinas artificiais).
Na perspectiva moriniana, sóis são usinas de organização de matéria, pois produzem
elementos mais pesados, como o carbono e os metais, a partir de elementos mais leves. Na
sequência, os seres vivos são considerados máquinas biológicas que dependem de energia
para se sustentarem, mantendo o bom andamento de suas funções com auxílio de sistemas
de regulação, os quais evitam a ocorrência de variações desintegradoras que podem colocar
em risco a integridade de suas operações. Diferentemente dos autômatos mecânicos, os
seres vivos são máquinas não triviais, porque produzem internamente grande parte do
que necessitam para viver: componentes, planos de funcionamento, organização, sistemas
regulatórios, consertos, ainda que extraiam do ambiente seus alimentos e informações e
nele eliminem seus resíduos. Logo, a produção das máquinas biológicas está voltada para
o interior e equivale a uma produção-de-si, uma produção do ser (MORIN, 2005, p. 199).
Por isso, no pensamento moriniano, é impossível falar de máquina sem falar de existência
e, nesse sentido, o termo mais adequado é o de ser-máquina, no lugar simplesmente de
máquina. Dessa maneira, quando o autor se refere ao termo produção nos seres-máquinas,
não alude somente ao significado mais usual na atualidade, relativo à produção industrial,
mas também inclui as transformações sofridas pelo sistema para se manter e autorregular,
tanto em seus aspectos maquinais da produção (repetições e reproduções) como em seus
aspectos maquinantes (invenção e criação).
Em relação às máquinas artificiais (artefatos), estas dependem do exterior para realizar
suas atividades, efetuar seus ajustes, regular suas operações, fornecer seus componentes,
em síntese, o funcionamento e a produção das máquinas artificiais são comandados pelo
meio externo. Na genealogia de sistemas, a máquina artificial assume posição secundária
e, completa Morin (2005, p. 215), “foi por uma inquietante aberração que esta máquina
fundamentalmente dependente, escravizada e escravizadora, desprovida de qualquer
generatividade e de qualquer poiesis própria, foi promovida […] como o arquétipo de
toda máquina”. Eis uma das grandes diferenças entre a teoria de animais-máquinas de
Descartes, que tem nas máquinas artificiais (autômatos mecânicos) seus modelos, e a
proposta de Morin, cujas bases estão na organização das máquinas biológicas (seres
vivos). Além de sóis, seres vivos, sociedades e linguagem, Morin também admite como
componentes da família as máquinas de maior abrangência, formadas pela associação de
máquinas entre si.
Ao lado dessa significativa mudança de referencial efetuada por Morin, há também
uma considerável transformação no imaginário das máquinas em O método. Como o
autor adverte, é preciso deixar em suspensão o imaginário industrial para que possam ser
admitidas outras imagens consteladas pela máquina:
3- Em Morin (2005, p. 132), o sistema corresponde à “unidade global organizada de inter-relações entre elementos, ações ou indivíduos”, à
unidade da complexidade.
Referências
ALMEIDA, Rogério de. O mundo, os homens e suas obras: filosofia trágica e pedagogia da escolha.
2015. 204 f. Tese (Livre-Docência em Educação) – Departamento de Administração Escolar e Economia da
Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
4- Financiado pela Capes, pelo Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior (PDSE), processo n. 88881.132357/2016‐01, e realizado no
Centre de Recherche Imaginaire et Socio-Anthropologie (ISA), do LITT&ARTS (Arts et pratiques du texte, de l’image, de l’écran et de la scène), sob
orientação da diretora do laboratório Isabelle Krzywkowski e apoio do professor Florent Gaudez, do laboratório de Sociologia Émotion, Médiation,
Culture, Connaissance (EMC2-LSG), ambos da Universidade Grenoble Alpes.
5- Agradecemos a François Malbranque, que gentilmente revisou a transcrição da entrevista.
BONOMO, Sara. Sur la langue d’Edgar Morin. Hermès, La Revue, Paris, n. 60, p. 225-231, 2011/2.
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DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MORIN, Edgar. O método 1: a natureza da natureza. Tradução de Ilana Heineberg. Porto Alegre: Sulina,
2005.
OLIVEIRA, Juliana Michelli S. A vida das máquinas: o imaginário dos autômatos em O método de Edgar
Morin. 2019. 304 f. Tese (Doutorado em Educação) – Departamento de Administração Escolar e Economia
da Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
PESSIS-PASTERNAK, Guitta. Edgar Morin, contrabandista dos saberes. In: Do caos à inteligência artificial:
entrevistas de Guitta Pessis-Pasternak. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edunesp, 1993. p. 83-94.
PETRAGLIA, Izabel. Edgar Morin: a educação e a complexidade do ser e do saber. 7. ed. Petrópolis: Vozes,
2002.
WUNENBURGER, Jean-Jacques. Imaginário e ciências. In: ARAÚJO, Alberto Filipe; BAPTISTA, Fernando
Paulo (Coord.). Variações sobre o imaginário: domínios, teorizações, práticas hermenêuticas. Lisboa:
Instituto Piaget, 2003. p. 265-285.
A entrevista
Edgar Morin
De início, eu devo retomar um sentido mais antigo e muito mais amplo de máquina,
posto que o sentido atual reduz a máquina à máquina artificial, à máquina que é fabricada
pelo homem. Dizia-se, por exemplo, no século XVII, que a terra era uma máquina redonda.
Depois, o filósofo La Mettrie, no século XVIII, falava de homem-máquina, enquanto no
século anterior Descartes dizia que os animais eram máquinas.
Embora houvesse um sentido mais amplo de máquina, ele ainda assim possuía
limitações, porque, quando Descartes falava sobre os animais-máquinas, ele queria dizer
que não havia espírito e que não havia alma etc., quase como as máquinas artificiais. E,
mesmo em La Mettrie, o homem-máquina era uma afirmação do materialismo, servia para
dizer que o homem era determinado e nada mais. Então, para mim, a máquina é uma
forma de organização muito refinada, que eu posso utilizar inclusive para uma estrela,
pois a partir do momento em que eu concebo a estrela como uma organização que nasce
da conjunção de duas forças contrárias, implosiva e explosiva, e que se autorregula, então
eu vejo nesses elementos de regulação e organização os modos-máquina.
O sentido em que eu considerei essa noção de máquina é um sentido que surpreende
muito, mas, se a gente o admite, pode-se constatá-lo também na realidade humana, isto
é, o fato de que nós somos também máquinas, máquinas que funcionam com energia, às
vezes com a mesma combustão, 37 graus Celsius... Todos nós temos essas características
de uma máquina extremamente complexa e com inumeráveis sistemas de regulação.
Então, essa minha proposta tem por objetivo introduzir um pouco de reflexão no
modo de conhecimento redutor, para o qual a organização não tem um sentido central e
que não integrou a teoria dos sistemas e, então, pelo mesmo motivo, não se interessa pela
noção de máquina. É para introduzir essa noção, que para mim está no coração das coisas.
Por que e de que maneira o senhor pensa que a noção de máquina pode continuar a
ser utilizada como o primeiro grau de articulação entre os diferentes saberes? Pergunto
isso porque o senhor propõe, em O método, que a máquina é uma noção que pode
articular diferentes disciplinas do conhecimento, posto que ela atravessaria a física,
a biologia, a sociologia. Então, de que maneira o senhor pensa que essa articulação
poderia continuar a ser realizada?
É o traço organizacional que não pode ser concebido como alguma coisa de
redutora, porque é evidente que as máquinas vivas são máquinas não triviais. Essa é uma
distinção que eu tomei de von Foerster e que utilizo muito. A máquina trivial é a máquina
totalmente determinada, você coloca o programa e você tem o resultado, você faz o input,
você tem output. No entanto, a máquina vivente, não apenas a humana, mas a viva, é
inesperada, reações inesperadas podem acontecer, e, digamos, tudo o que é notadamente
criativo é não trivial, também na evolução, na humanidade, nas artes etc. Então eu utilizo
a máquina como um tema de ligação, mas não uma palavra redutora. É uma palavra que
estabelece conexões, mas não é uma palavra que vai tudo explicar.
imaginário, mas que são pessoas que desenvolvem a qualidade do imaginário, como
os romancistas. Também fui conduzido naturalmente, por exemplo, ao cinema, onde
encontrei uma importância capital do imaginário.
Quando eu fiz meu primeiro trabalho importante, que se chama O homem e a morte,
foi ali que eu descobri o imaginário. Porque eu parti de uma concepção mais ou menos
marxista, em que o mundo do mito, do imaginário é uma superestrutura, um elemento
secundário. Fazendo este trabalho eu me dei conta de que ele era também importante:
Homo faber em um polo e Homo imaginaire em outro polo também importante, que é
igualmente fundamental no ser humano, além do lado produtor, técnico.
Esse tema é tratado em meu livro Le cinéma ou l’homme imaginaire, no que concerne
a mito, crença, imaginário, sobretudo quando toma a forma de um mito ou de uma fé
religiosa. Eu vi que isso tem uma importância fundamental. Nós temos a necessidade à
noite de sonhar, de fabricar o imaginário, é alguma coisa de fundamental. Mesmo durante
o dia nós temos fantasmas, devaneios etc... Foi muito mais uma evolução pessoal que me
conduziu a colocar o imaginário, e, da mesma maneira, a compreender a diferença entre o
humano e o animal, porque existem similaridades e diferenças... Então, foi no imaginário
também que isso se realizou. Ainda que eu saiba que os animais sonham, existem estudos
sobre isso, eles possuem também sua parte de imaginário, mas nós temos imaginário em
pleno dia, no estado de vigília, e é isso que é interessante. Nós temos a necessidade de
nutrir nosso imaginário com lendas, romance, filmes etc. Então, isso teve mais importância
na evolução de meu trabalho que os autores que me influenciaram.
Sim, claro. Você viu? Pétrouchka é o pequeno Pierre. Ele me golpeou porque há uma
música magnífica, uma história muito bela, porque há aquele que exibe as marionetes, três
marionetes, Pétrouchka, o Mouro e a mulher... a Bailarina. É interessante que, em um dado
momento, eles escapam, as marionetes se tornam seres vivos, até a morte. Mas, no fim,
quando eles estão mortos, eles retornam como seres materiais, quer dizer, coisas materiais.
Eu achei que é uma imagem muito bela e por isso eu gosto muito desse ballet.
É porque essa figura é muito curiosa, pois ela escapa em um dado momento do
determinismo e se torna livre, e eu penso que é um pouco isso, esse símbolo, que é
interessante para mim. É possível... porque eu estava muito tocado por isso. Mas você
sabe, eu penso que nós não somos de nenhuma maneira... eu elimino os marionetistas, o
exibidor de marionetes, mas eu penso que nós somos possuídos por forças inconscientes,
muito profundas e permanentes, quer dizer que, por exemplo, eu falo com você, a máquina
cerebral funciona, os neurônios, as sinapses estão em plena atividade, essa máquina que
funciona aqui... eu comi agora, a saliva começou a absorver os alimentos e eles entraram
no trato digestivo e começaram a se transformar.
Então, há toda uma parte enorme de minha vida que se situa de maneira totalmente
inconsciente. No fim do meu livro A humanidade da humanidade, eu digo o paradoxo, isto
é, nós somos inteiramente possuídos por forças que nos movem e das quais nós não somos
conscientes. Mesmo quando eu falo com você, eu tenho um discurso intelectual, mas
minha mão se move de maneira maquinal, minha língua se move de maneira automática e
eu não tenho consciência. Você sabe, há todo este aspecto que me chama muito a atenção.
É isso. Que nos possui. Voilà. Quer dizer, o paradoxo é que nossos espíritos, nossos
cérebros produzem ideias e deuses que eles mesmos, embora os tenham produzido, se
tornam nossos mestres. Isso que é interessante.
Não me lembro. Mas posso dizer que, efetivamente, nosso olhar sobre as coisas é um
tipo de máquina, quer dizer, a linguagem, sendo produzida por nós, assim como os deuses,
mitos, ela adquire uma autonomia, ela se torna criativa através da gente, as palavras
novas aparecem, não sabemos quem as inventa, mas é alguém. Ou, dito de outra maneira,
é uma máquina, ela própria, que coloca em marcha uma outra máquina. Eu falei em um
outro momento de polimáquinas, que se encadeiam umas nas outras. Me pareceu útil isso.
Quais são as referências que o senhor considera as mais importantes para a caracterização
da máquina de linguagem? Eu comecei a pesquisar essa noção e tenho buscado as
primeiras referências. Localizei a noção de máquina de linguagem em Paul Valéry,
quando ele fala de poesia, mas apenas esse autor.
Mas é preciso antes se referir a Jakobson, à teoria estrutural da linguagem, que é uma
estrutura que funciona a partir de si mesma com este mecanismo, paradigma e sintagma.
Ao considerar as teorias estruturais da linguagem a gente vê bem que é essa maquinaria que
funciona na seleção de palavras pelo paradigma e através do sintagma. É isso.
Bibliografia selecionada
MORIN, Edgar. Le Paradigme perdu: la nature humaine. Paris: Éditions du Seuil, 1973.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá
Jacobina. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
MORIN, Edgar. A morte e a ferramenta. In: O homem e a morte. Tradução de Cleone Augusto Rodrigues.
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MORIN, Edgar. Epistemologia da tecnologia. In: Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
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MORIN, Edgar. L’Aventure de La Méthode – suivi de “Pour une rationalité ouverte”. Paris: Éditions du
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MORIN, Edgar. O método 1: a natureza da natureza. Tradução de Ilana Heineberg. Porto Alegre: Sulina,
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MORIN, Edgar. O método 6: ética. Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005f.
Juliana Michelli da Silva Oliveira é doutora em Educação (2019) pela Universidade de São Paulo (USP),
com estágio de pesquisa (2017-2018) no Centre de Recherche Imaginaire et Socio-Anthropologie da
Université Grenoble Alpes, França. Mestre em Educação, graduada em Letras e em Ciências Biológicas
pela USP.