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Leonardo Octavio Belinelli de Brito (Doutorando em Ciência Política – USP)
A questão da dependência na obra de Octavio Ianni (1968-1974)
Trabalho preparado para
apresentação no IX Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência Política
da USP
(6 a 10 de maio de 2019)
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A questão da dependênca na obra de Octavio Ianni (1968-1974)
Resumo:
Este trabalho procede uma investigação a respeito da noção de “dependência” na obra de
Octavio Ianni. Por meio do estudo de quatro de suas obras – a saber, O colapso do
populismo no Brasil (1968), Estado e planejamento econômico no Brasil (1971),
Sociologia da sociologia latino-americana (1971), Imperialismo na América Latina
(1974) -, buscar-se-á delinear a especificidade deste conceito na obra do sociólogo
uspiano, o que é sugerido pela sua elaboração a respeito do que denominava “dependência
estrutural”. Três aspectos relacionados entre si serão tomados como eixos analíticos: a) o
vínculo entre os conceitos de “dependência estrutural” e “imperialismo”; b) a ideia de que
a dependência estrutural se manifesta em diversos planos da sociabilidade dos países
periféricos; c) o argumento de que apenas pelo reconhecimento desse fato estrutural da
situação periférica é que se poderia elaborar uma autêntica sociologia crítica latino-
americana.
Introdução
Octavio Ianni costuma ser lembrado como um dos componentes da Escola
Sociológica Paulista (ARRUDA, 1995; BASTOS, 2002), designação pela qual ficaram
conhecidos aqueles sociólogos que fizeram suas carreiras em torno da figura de Florestan
Fernandes, líder da então Cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências da Universidade de São Paulo (FFLC-USP). Uma análise detida dessa afirmação
a corrobora. Com efeito, ao lado de Fernando Henrique Cardoso e Maria Sylvia de
Carvalho Franco, Ianni se notabilizou pelas pesquisas sobre a formação social e
econômica brasileira em estreito vínculo com as orientações vigentes entre os membros
do grupo de Fernandes. Sinais inequívocos disso são os resultados das pesquisas que, em
parceria com Fernando Henrique Cardoso e Renato Jardim Moreira, promoveram entre
1955 e 1960 no sul do Brasil sobre a questão racial, cujos resultados são Cor e mobilidade
social em Florianópolis (1960), escrito em coautoria com Cardoso, e Metamorfoses do
escravo, sua tese de doutorado defendida em 1961 e publicada em formato de livro no
ano seguinte.
No caso desta última obra, salta aos olhos a influência do marxismo em sua
composição – elemento ausente em Cor e mobilidade em Florianópolis -, o que se explica
pela participação de Ianni no Seminário Marx, grupo de estudos que reuniu, entre 1958 e
1964, jovens professores e alunos da FFLC-USP com o objetivo de ler O capital de Karl
Marx, e outras que pudessem iluminá-la segundo um prisma então heterodoxo, segundo
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os padrões acadêmicos que se configuravam a partir do processo de institucionalização
da Sociologia como disciplina acadêmica (RODRIGUES, 2011). Liderado pelas
orientações metodológicas de José Arthur Giannotti, o grupo, além de Ianni, contava com
as participações de Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Fernando Novais,
Roberto Schwarz, Bento Prado Júnior, Michael Löwy, Paul Singer, entre outros menos
assíduos. Embora muitos de seus participantes destaquem a dimensão acadêmica desse
empreendimento, não parece haver muitas dúvidas de que, ainda que em sentido amplo,
a conjuntura política do período colaborava para essa radicalização epistemológica que
se desdobraria, como veremos logo adiante, no plano político.
No plano nacional, o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954) foi marcado
pelo renhido embate entre forças políticas nacionalistas, entre as quais se destacavam o
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), e as forças
liberais, representadas pela atuação política e midiática da União Democrática Nacional
(UDN). As disputas travadas entre os grupos – entre as quais se destacam a campanha “O
petróleo é nosso!”, que culminaria na fundação da Petrobrás em 1953, e a disputa em
torno da Lei de Lucros Extraordinárias, proposta no mesmo ano – resultou no suicídio de
Vargas, em 1954. Um novo capítulo do conflito ocorreu por ocasião da posse de Juscelino
Kubitschek (PSD), em 1955, momento em que se tentou um golpe de Estado, organizado
pela UDN, pelo então presidente em exercício, Café Filho, e por parte das Forças
Armadas. O golpe não foi adiante devido à organização das forças militares lideradas pelo
ministro da Guerra, o general Henrique Teixeira Lott, que garantiu a posse de Kubitschek
em janeiro de 1956. O mesmo problema aconteceria por ocasião da renúncia do sucessor
de Kubitschek, Jânio Quadros (UDN), em 25 de agosto de 1961, depois de ter ocupado a
presidência do país por breves sete meses. Seu vice-presidente era João Goulart (PTB),
que havia sido ministro do Trabalho do segundo governo Vargas e era alinhado aos
sindicalistas. Como se sabe, o conflito entre os legalistas, favoráveis à posse de Goulart,
e os contrários à posse foi resolvido pela instalação do parlamentarismo no país a partir
de 30 de agosto de 1961, o que permitiu que Jango assumisse a presidência uma semana
depois.
No plano internacional, a situação também era agitada. Além do conflito político e
ideológico da Guerra Fria, responsável pela reorganização geopolítica mundial do
período, é preciso observar a importância da vitória da Revolução Cubana (1959) sobre
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o pensamento de esquerda na América Latina (PORTANTIERO, 1991). A partir dela, os
militantes e pensadores de esquerda ganhavam argumentos para questionar a estratégia
nacionalista dos partidos comunistas da região, que acreditavam na necessidade de uma
revolução burguesa, conduzida pela aliança do operariado industrial e das burguesias
nacionais latino-americanas contra as elites agrárias e as forças imperialistas, como
condição prévia para uma revolução socialista. Outro fator decisivo para o
questionamento da preponderância ideológica soviética sobre a esquerda latino-
americana, sem dúvida, foi o discurso “Sobre o culto à personalidade e suas
consequências” (1956), também conhecido como Relatório Khrushchov, de Nikita
Khrushchov durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).
Nesse cenário político crítico, e diante dessa inflexão de alguns dos principais
assistentes da Cadeira de Sociologia I em direção ao marxismo e a preocupações
contemporâneas, Florestan Fernandes liderou uma reorientação temática para os
pesquisadores. O marco institucional dessa reorientação foi a criação do Centro de
Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT), em novembro de 1961. O objetivo da
instituição era investigar qual o estágio do desenvolvimento brasileiro e quais os
principais obstáculos enfrentados nesse processo.1 Como destaca Wagner Romão, “a
constituição do CESIT representa o momento em que aquele grupo de sociólogos
paulistas, recém-saídos de uma derrota política contundente – a da Campanha de Defesa
da Escola Pública – armavam-se para o debate público dos principais dilemas nacionais.”
(ROMÃO, 2006, p.94). Com efeito, as atuações engajadas de Florestan Fernandes,
Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni na Campanha de Defesa Escola Públicas
teve como efeito a produção de visibilidade pública aos componentes da Cadeira de
Sociologia I, como indicam suas participações em eventos assistidos por plateias
variadas, compostas por sindicalistas, empresários afiliados a Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo e mesmo militares do Exército. Além disso, suas intervenções foram
frequentemente reproduzidas em revistas e periódicos como Anhembi, Boletim do Centro
Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, Revista Brasiliense, Revista
Brasileira de Ciências Sociais, Sociologia, Revista Brasileira de Estudos Políticos e
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O CESIT foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e pela
Confederação Nacional da Indústria (CNI). As relações pessoais de Fernando Henrique Cardoso, primeiro
diretor do CESIT, foram essenciais para a obtenção do financiamento da CNI (Cf. SALLUM JUNIOR,
2002; RODRIGUES, 2011, p.160 e ss; CARDOSO, 2006, p.74).
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outras.2 É nesse contexto que nasce o que Brasílio Sallum Junior chamou de “Sociologia
Política” na Universidade de São Paulo (SALLUM JUNIOR, 2002, p.75). Como recorda
Fernando Henrique Cardoso: “Com o populismo de Jânio [Quadros] e Jango, com o ISEB
nacional-desenvolvimentista e com a presença das massas urbanas o Brasil mudara. E nós
também.” (CARDOSO, 1988, p.30).
Os primeiros projetos do CESIT – Economia e sociedade no Brasil e A empresa
industrial em São Paulo – partilhavam do diagnóstico do desenvolvimento brasileiro
então defendido por Florestan Fernandes, segundo o qual as características culturais da
sociedade brasileira se mostravam incompatíveis com as exigências do processo de
modernização do país. No projeto A empresa industrial em São Paulo – escrito por
Fernandes e Cardoso, com a colaboração de Ianni – encontramos a amplitude da pesquisa
proposta pelo CESIT3. É a partir do material recolhido nessa pesquisa que Ianni escreve
a tese Estado e capitalismo: estrutura social e desenvolvimento econômico no Brasil
(1965), com a qual disputou a cátedra de Sociologia II com Ruy Coelho, para quem
perdeu a disputa 4. É nesse contexto que os sociólogos uspianos produzem os
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No âmbito da Campanha de Defesa da Escola Pública, vale destacar o texto “As exigências educacionais
do processo de industrialização”, escrito por Cardoso e Ianni em 1959 (CARDOSO e IANNI, 1959). Nele,
os autores tematizam o sistema educacional brasileiro, que não estaria adequado para o processo de
desenvolvimento econômico do Brasil. Isto é, não colaboraria para suprir as carências do setor industrial
brasileiro. Para explicar esse descompasso, os autores invocavam a tese da “demora cultural”, então
defendida por Florestan Fernandes. Nesse sentido, os educadores deveriam levar tais desajustes em conta
e dirigir o processo da maneira mais racional possível, o que implica em dizer que dever-se-ia tomar
medidas que colaborassem para o processo de desenvolvimento econômico do país. Antecipa-se, assim, um
dos temas do projeto Economia e sociedade no Brasil: a questão da qualificação da força de trabalho no
Brasil. (cf. ROMÃO, 2006, p.159 – nota 22).
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O vasto grupo de pesquisadores deixaria claro as ambições do grupo. Além dos principais dirigentes da
cadeira de Sociologia I, participaram do projeto, como pesquisadores contratados, Celso Beiseguel,
Leôncio Martins Rodrigues, Gabriel Bolaffi, José Carlos Pereira e Lourdes Sola; como colaboradores,
estavam inscritos José Francisco Fernandes Quirino dos Santos, Maria do Carmo Campello de Souza,
Eduardo Kugelmas, Maria Márcia Smith, Cacilda Maria Asciutti, Lúcia Campello de Souza, Maria Irene
Franco Queiroz Ferreira, José Rodrigues Barbosa e Daisy Maria del Nero.
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Os livros produzidos no âmbito ou com material do Cesit foram os seguintes: Empresário industrial e
desenvolvimento econômico no Brasil (Fernando Henrique Cardoso, 1964); Estado e capitalismo: estrutura
social e industrialização no Brasil (Octávio Ianni, 1965); quanto à chamada “segunda geração dos
assistentes e mesmo a terceira”, tivemos: Trabalho e desenvolvimento no Brasil (Luiz Pereira, 1965);
Conflito industrial e sindicalismo no Brasil (Leôncio Martins Rodrigues, 1966); Industrialização e atitudes
operárias (Leôncio Martins Rodrigues, 1970); Estrutura e expansão da indústria em São Paulo (José Carlos
Pereira, 1967); Petróleo e Nacionalismo (Gabriel Cohn, 1968); A Formação da empresa e relação de
trabalho no Brasil rural (José Cesar Gnaccarini, 1966); Empresário e empresa na biografia do conde
Matarazzo (José de Souza Martins, 1967). Outros que se beneficiaram dos trabalhos do Cesit foram Paul
Singer (Desenvolvimento e crise, 1968) e Juarez Brandão Lopes, Sociedade industrial no Brasil, 1964.
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diagnósticos críticos a respeito da realidade brasileira dos anos 1960. Entre eles, Octavio
Ianni.
A primeira formulação sobre a dependência estrutural
Em 1968, Octavio Ianni lançou O colapso do populismo, livro que “rapidamente
tornou-se uma referência obrigatória entre todos os que se dedicavam a elaborar uma
visão crítica sobre o período que a ditadura militar viera encerrar e sobre as alternativas
que se abriam.” (REIS, 2001, p.349). Além disso, ainda segundo Daniel Aarão Reis, o
livro de Ianni teve “papel chave na consolidação da hegemonia do conceito de populismo
[...]” (idem, ibidem – grifo do original). Sem negar essa afirmação de Aarão Reis, cumpre
observar que só é possível compreender as formulações contidas em O colapso do
populismo se tivermos em mente a inserção acadêmica de seu autor.
Com efeito, a primeira formulação da categoria populismo nos trabalhos dos
cientistas sociais uspianos apareceu na coletânea Política e Revolução Social no Brasil
(1965), livro organizado pelo próprio Ianni do qual participaram Gabriel Cohn, Paul
Singer e Francisco Weffort, que nele publicou o artigo “ Política de Massas”,
originalmente escrito em 1963 (IANNI, 1965, p.10; WEFFORT, 1978, p.12). É
interessante observar que se tratavam de pesquisadores ligados ao projeto de pesquisa do
CESIT que, embora se orientassem por uma perspectiva marxista, produziam suas
elaborações teóricas em tensão produtiva com a sociologia da modernização. Esse é o
caso, precisamente, da categoria “populismo”. (ARAÚJO, 2012, p.45)
A elaboração de Weffort logo teve ressonâncias. Ainda como manuscrito, tornou-
se uma referência para a elaboração da livre-docência de Fernando Henrique Cardoso,
Empresário industrial e desenvolvimento econômico, originalmente defendida em 1963,
como foi recepcionada em Dependência e desenvolvimento na América Latina (1968) e,
claro, em O colapso do populismo. No mesmo ano de lançamento desse livro, Weffort
defendeu sua tese de doutorado sobre o tema (WEFFORT, 1968).
Dito isso, menos aparente é a vinculação dessa categoria com a categoria de
dependência. Em parte, isso se explica pelo fato de que não a encontramos na primeira
formulação de Weffort, nem na sua primeira recepção, a tese de livre-docência de
Cardoso. Porém, esse vínculo torna-se íntimo a partir da tese de doutorado de Weffort,
onde lemos que “nas condições vividas por uma sociedade de formação agrária e
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dependente na etapa de crise das estruturas agrárias e de desenvolvimento urbano e
industrial, os setores das classes urbanas, formado por ascensão social mais do que por
decadência, tendem a reconhecer como legítimas as regras do jogo vigente no quadro
social e político do qual começam a participar.” (WEFFORT, 1968, p.132 – grifo nosso)5.
Uma relação análoga já havia aparecido em Dependência e desenvolvimento na América
Latina, texto em que se formula a ideia de um “populismo desenvolvimentista” (Cf.
CARDOSO; FALETTO, 1972, p.94). É nessa reorientação teórica do conceito de
populismo que devemos localizar os argumentos de Ianni em O colapso do populismo,
pois, como ele mesmo alerta, “no conjunto, analiso a natureza da dependência estrutural
com a qual se debate o povo brasileiro.” (IANNI, 1975 [1968], p.2 – grifo do original). A
nosso ver, essa afirmação deve ser levada a sério, pois é indicativa da perspectiva de
Ianni; isto é, revela a maneira pela qual o sociólogo uspiano concebia o problema que
enfrentava (MANNHEIM, 1954, p.247).
A subordinação da problemática do populismo ao problema do desenvolvimento
aparece na própria estruturação do livro, em que a parte dedicada à discussão Da forma
política vigente no período entre 1945-1964 – a parte II, intitulada “Populismo e
Nacionalismo” – é antecedida pela discussão a respeito dos sentidos do desenvolvimento
brasileiro – a parte I, denominada “Política e Desenvolvimento”.
Nesse livro, o surgimento do período populista é entendido a partir do conflito entre
dois modelos de desenvolvimento sucessores do “modelo exportador” vigente na
Primeira República. De um lado, havia o “modelo de substituição de importações”,
também chamado pelo autor de “modelo getuliano” de desenvolvimento. Sua
característica elementar era promover uma “combinação positiva e dinâmica” dos
interesses agrários com os próprios dos setores industriais a partir do privilegiamento do
mercado interno. Consequentemente, promovia uma reconfiguração das relações
externas, como revelava a política externa independente, promovia alterações na
“sociedade tradicional”, uma vez que era baseado na “política de massas” e no “dirigismo
estatal”, características que lhe possibilitava promover rupturas gradativas, porém
indispensáveis, aos seus desdobramentos. Em suma, esse modelo “implica numa doutrina
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Posteriormente, Weffort se afastará da teoria da dependência a partir de 1970, ano em que redige o artigo
“Notas sobre a teoria da dependência: teoria de classe ou ideologia nacional?” para o II Seminário latino-
americano para el Desarrollo da FLACSO-UNESO, ocorrido em Santiago do Chile. Sobre o assunto, ver
KAYSEL e MUSSI, 2017.
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do Brasil como potência autônoma” e tinha seus elementos “consubstanciados na
democracia populista desenvolvida depois de 1945”. (Cf. IANNI, 1975 [1968], p.54).
Rivalizando com esse modelo de desenvolvimento, surgiu o “modelo internacionalista”
ou de “associação ampla”, assim chamado pela sua defesa da internacionalização do setor
industrial, nos moldes do setor agrícola brasileiro. Para Ianni, esse modelo seria uma
espécie atualização do modelo exportador vigente na Primeira República. A implantação
desse modelo exige a “liquidação da democracia populista, como estrutura política
nacional, tanto quanto a destruição da ideologia e prática da doutrina de independência
econômica e política. É uma combinação nova entre os setores agrário e industrial, no
âmbito da reprodução ampliada do capital.” (idem, p.55). Esse será o modelo vigente na
Ditadura Militar inaugurada com o golpe de março de 1964.
É no trecho em que se propõe a desvendar os sentidos políticos e econômicos do
regime de 1964 que Ianni mobiliza o conceito de dependência estrutural pela primeira
vez. Apesar do título do capítulo X ser “A Dependência Estrutural”, o conceito não é
claramente definido, nem empregado, nele – embora seja utilizado, na “Conclusão” do
livro. Salvo melhor interpretação, esse fato revela uma primeira aproximação do autor
com a discussão que se tornava tão comum aos sociólogos latino-americanos do período.
Outro sinal disso é que, embora o conceito de imperialismo seja usado no capítulo que
conclui o livro, a sue conexão com o conceito de “dependência” não é claramente
formulado. A forma pela qual Ianni decidiu se aproximar desse conceito manifesta-se na
caracterização empírica da situação política e econômica inaugurada com a derrubada de
João Goulart. Ao fazê-la, Ianni destaca as determinações econômicas do processo político
que levou os militares ao poder. Desse modo, a dependência, que já havia aparecido em
Uma economia dependente (1956) e Formação econômica do Brasil (1958), de Celso
Furtado, e em Esboço dos Fundamentos da Teoria Econômica (1957), de Caio Prado
Júnior (LOVE, 1998, p.427-8), continuava indefinida, embora caracterizada.
Segundo a análise encontrada em O colapso do populismo, a industrialização
brasileira ingressou, já durante o governo Juscelino Kubitschek, em um momento no qual
seriam requeridas novas medidas políticas e econômicas para seu aprofundamento. Do
ponto de vista conservador, tais medidas convergiriam para a “reformulação e eliminação
das defesas que permitiram ou favoreceram a criação e a expansão do setor industrial,
na época da política de substituição de importações.” (idem, p.154 – grifo nosso). Uma
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vez que se tratava de buscar a sofisticação técnica exigida por essa nova fase da
industrialização, esse ponto de vista afirmava a necessidade de associação com as
organizações e empresas multinacionais, detentoras desse know how. O resultado disso
seria a reconfiguração do modo pelo qual a economia brasileira se inseria no mundo. Esse
ponto de vista se fortaleceu com a falta de “condições” do “povo brasileiro” em promover
as rupturas exigidas para o aprofundamento do “modelo getuliano” de desenvolvimento
ou para a instalação do “modelo socialista” – que, segundo Ianni, foi possível “em várias
ocasiões críticas, no período entre 1914 e 1964” (idem, p.155). Ao contrário do que
querem fazer crer algumas leituras (Cf. AARÃO REIS, 2001, WERNECK VIANNA,
1999), segundo as quais a “teoria do populismo” dos sociólogos paulistas representaria
uma condenção in totum do nacionalismo de então, Ianni chega a reconhecer que, “os
movimentos de massas, a democracia populista, o nacionalismo e o dirigismo estatal
foram elementos concretos e, às vezes, efetivos nessa direção [do socialismo]. O modelo
getuliano de desenvolvimento envolvia o aprofundamento das rupturas estruturais.”
(IANNI, 1975, p.155).
Diante desse cenário, prevaleceu o modelo de desenvolvimento associado, inscrito
na era dos “oligopólios multinacionais’, na qual se entrelaçam com mais vigor os planos
político, econômico e militar. Não é difícil ver nessa argumentação de Ianni algo também
presente na livre-docência de Fernando Henrique Cardoso: a tese de que a era do
capitalismo monopolista – tal como formulada pelo debate marxista sobre o imperialismo,
do qual participaram Rudolf Hilferding, Vladimir Lênin, Nikolai Bukharin, Rosa
Luxemburgo entre outros, e depois atualizado pelo neomarxismo norte-americano de Paul
Baran e Paul Sweezy – é marcada pela crise de acumulação, razão pela qual ela precisaria
da repressão estatal para ser alavancada. Nessa altura, Ianni já lança mão de um debate,
que desenvolverá mais adiante, sobre a crise do conceito de nação (cf. idem, p.173).
O governo de Humberto de Alencar Castello Branco, ao promover o que Ianni
chamou de “doutrina da reversão de expectativas” – isto é, recusar os objetivos o
“desenvolvimento econômico autônomo” e a política externa independente -, teria
colocado em ação uma “doutrina da interdependência” (cf. idem, p.173 – grifo do
original). As características básicas dessa doutrina seriam o fortalecimento do papel das
multinacionais nas decisões sobre os rumos da política econômica do país e a busca por
transformar o Brasil em uma economia complementar às dos países centrais. “A partir de
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1 de abril de 1964, o Governo brasileiro optou de modo decidido pela doutrina da
interdependência – em todas as suas implicações – no quadro da “Civilização Ocidental”.
Dessa forma, o econômico e o político, o militar e o cultural encadeiam-se mais uma vez
e num estilo diferente.” (idem, p.175).
Dependência estrutural e imperialismo
Nos anos seguintes, Ianni desdobrará a perspectiva avançada em O colapso do
populismo em diferentes sentidos, possivelmente saturados pela decretação do Ato
Institucional nº 5 (AI-5), do qual foi vítima, em 13 de novembro de 1968, poucos meses
depois da publicação de sua análise crítica sobre o populismo. Esses desdobramentos são
encontrados em Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1971), um produto, ao
mesmo tempo, das “primeiras pesquisas sobre o planejamento estatal no país no então
recém-fundado Cebrap” e do aprofundamento da perspectiva desenvolvida desde o
período do CESIT (Cf. SEGATTO e SEGATTO, 2009, p.7).
Em Estado e Planejamento Econômico no Brasil, o conceito de populismo
“praticamente desaparece, ou, quando surge na exposição, é de forma lateral”
(SEGATTO e SEGATTO, 2009, p.11) em detrimento da análise do papel do Estado
brasileiro na economia do país entre 1930 e 1970. Essa diminuição do papel do conceito
de populismo é menos surpreendente do que parece quando recordamos que a sua
utilização estava subordinada à problemática do desenvolvimento, que se mantém nesse
livro de 1971. Talvez se possa afirmar que as mudanças essenciais do livro de 1968 para
o de 1971 são duas: a) no último, prevalece o ângulo do Estado, enquanto no primeiro
esse ponto de vista não é predominante; b) em boa medida, porque Estado e planejamento
do Brasil enfatiza a crescente importância do Estado na economia brasileira, mesmo em
momentos que se supunham mais liberais, o que não acontece em O colapso do
populismo. Além desses fatores, o livro de 1971 aprofunda detalhes de análise que não
encontramos no livro anterior.
Apesar disso, talvez o livro mais representativo da agenda teórica que Ianni
perseguiria nos anos seguintes seja a coletânea Sociologia da sociologia latino-
americana, também publicada em 1971. Nela, Ianni sinaliza claramente uma inflexão
crítica em relação ao que chamava de “sociologia acadêmica” (OLIVEIRA, 2011),
identificada com a sociologia da modernização então prevalecente. Nessa altura, Ianni
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passou a se identificar mais claramente com o que denominava de “sociologia crítica”. É
a partir dessa reorientação teórica geral que o conceito de dependência estrutural é
formulado com clareza e ganha crescente importância. Simbólico disso é o texto “A
sociologia da dependência”, único escrito inédito da coletânea, no qual discutirá o
potencial cognitivo do conceito de dependência.
Não é à toa, portanto, que o artigo comece fazendo um balanço das discussões
latino-americanas a respeito do imperialismo, campo teórico no qual Ianni situará a sua
discussão a respeito da dependência. Em primeiro lugar, observa que até então a discussão
a respeito da dependência na América Latina não tinha sido suficientemente profunda,
limitando-se a referências a obras clássicas sobre o imperialismo (Cf. IANNI, 1971,
p.163). Em alguma medida, essa falta de desenvolvimento teórico a respeito do tema teria
a ver com as condições políticas e intelectuais prevalecentes na região: por um lado, os
partidos políticos de esquerda não disporiam de “de quadros teóricos suficientes para
desenvolver o debate”; por outro, “o imperialismo sempre foi assunto proibido em
universidades, editoras, revistas e jornais latino-americanos não ligados diretamente com
os movimentos e partidos políticos de esquerda.” (idem, p.164). Ora, essas condições que
explicariam a pobreza do debate latino-americano sobre o imperialismo explicariam
também a razão pela qual a dependência teria se tornado uma categoria tão difundida. No
caso dos marxistas, ela se tornou um “‘recurso semântico’ para tornar possível a discussão
e o estudo da “problemática do imperialismo” em universidades, editoras, revistas e
jornais.” (idem, p.164); para os não-marxistas, tratava-se de uma “alternativa semântica
nova [...] não proibida” para discutir os obstáculos e distorções do capitalismo no
subcontinente. As razões para os conteúdos diferentes desse conceito seriam políticas.
Enquanto a dependência latino-americana, para os marxistas, seria uma “perspectiva do
proletariado urbano e rural” que demandaria a “possibilidade do socialismo” – ou seja,
uma “ uma ruptura estrutural (revolucionária) com o capitalismo mundial”, para os não-
marxistas ela seria fundada na “perspectiva do Estado-Nação” e apostaria na
“possibilidade do capitalismo nacional” (cf. idem, p.165 – grifo do original), o que
demandaria uma “redefinição das relações de complementaridade e interdependência
entre os subsistemas econômicos nacionais e o capitalismo mundial, com centro
hegemônico nos Estados Unidos.” (idem, p.165). Ou seja, ao mesmo tempo em que se
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tratava de um “eufemismo” bastante utilizado, a disputa em relação ao conceito de
dependência revelava seus motivos políticos.
Cabe destacar que essas disputas políticas eram historicamente situadas. Ianni
identificará nos efeitos do esgotamento do processo de industrialização por “substituição
de importações” as razões para a emergência da problemática da dependência. Segundo
o sociólogo uspiano, os desdobramentos do processo industrializante na América Latina
teriam revelado que a ele não promovia a emancipação econômica imaginada, mas “ao
contrário, em graus variáveis, conforme o país, a industrialização havia renovou ou
aprofundou a dependência econômica nacional, em face dos capitalismos norte-
americano e mundial.” (idem, p.167 – grifos nossos). A crescente participação dos
Estados latino-americanos nas economias de seus países, em verdade, teriam gerado
melhores condições para a reprodução do capital. Ao se debruçarem sobre essa questão,
sociólogos latino-americanos marxistas e não-marxistas teriam se deparado com a
dimensão internacionalizante do capital e, em especial, do “desenvolvimento desigual e
combinado” do qual ele se vale no seu processo reprodutivo (cf. idem, p.169).
Na disputa teórica e política sobre o conceito de dependência, Ianni não hesita em
tomar lado. De acordo com o autor, os teóricos que adotam a “perspectiva do Estado-
Nação” acabariam por “toma[r] por homogêneo o que é essencialmente diversificado,
heterogêneo. Mais que isso, toma por homogêneo o que é pleno de antagonismos. A
cultura nacional é, por definição, um composto de várias subculturas do capitalismo.”
(idem, p.177 – grifo nosso). Ora, aqui podemos perceber aquela disposição de crítica da
ideologia – no caso, a nacionalista – que marca a disposição do marxismo uspiano
formulado nas leituras semanais de Marx das quais Ianni fez parte (BRITO, 2019). Para
Ianni, heterogeneidade da cultura nacional seria derivada, especialmente, das diferentes
posições sociais ocupadas por cada classe no processo de reprodução material da
sociedade, por sua vez inseridos na dinâmica globalizante do capitalismo. Por isso, Ianni
argumenta que o aprofundamento a respeito da problemática da dependência latino-
americana estaria em condições de aprofundar a “problemática do imperialismo”. Por
quê? Porque ela ofereceria um novo ângulo a partir do qual o imperialismo seria
analisado: o periférico.
Pouco a pouco, as relações, processos e estruturas envolvidos no imperialismo
são focalizados a partir da perspectiva do país dependente, ou subordinado.
Neste caso, o que está em causa é a exportação do excedente econômico. Em
alguns casos, no entanto, as relações e estruturas são focalizadas a partir da
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perspectiva do proletariado do país dependente. Neste caso, o que este em
jogo é a produção e repartição da mais-valia. (IANNI, 1971, p.164-5, grifos do
original).
Para Ianni, a relação de dependência seria produzida a partir de dois processos
econômicos típicos do imperialismo, tal como desenvolvido por Vladimir Lenin (2012):
a concentração e a centralização de capital. O conceito de concentração de capital diria
respeito diria respeito ao processo de investimento de capital, próprio ou alheio, em uma
mesma empresa ou grupo econômico com vistas à sua expansão e/ou diferenciação; já o
conceito de centralização do capital se vincularia ao processo de absorção de empresas
por outras empresas, que se tornariam, assim, maiores. Em jogo, está, como se percebe,
o processo de monopolização do capitalismo.
Quando há um processo de intercâmbio econômico em países com potências
econômicas desiguais, o resultado seria a criação de laços de interdependência e
complementaridade entre eles, de modo que o país mais desenvolvido seria responsável
pela produção e comércio de bens com valor agregado mais alto, enquanto o inverso
ocorreria com o país dependente. As complexas mediações envolvidas nessa relação
configuram o que Ianni chama de “processos e estruturas de dominação (imperialistas) e
subordinação (de dependência).” (idem, p.179-180). Por outro lado, essas mediações
envolvem disputas, reciprocidade, acomodação, antagonismo e tensões das classes sociais
(e de outros grupos) envolvidas. Alinhando-se ao campo marxista da discussão da
dependência, Ianni é taxativo: “Em última instância, são as relações de classes que
determinam as condições e os sentidos das relações de dominação-subordinação entre
nações; estas são determinadas por aquelas.” (idem, p.180)
Ao afirmar que os “conceitos imperialismo-dependência [...] são conceitos pares,
gêmeos, reciprocamente necessários e determinados. Um produz o outro; e os dois se
produzem e reproduzem um ao outro” (idem, ibidem), Ianni acaba por sugerir que o
desenvolvimento da teoria da dependência é uma contribuição à teoria do imperialismo
por promover um novo ponto de vista sobre o problema, o ângulo periférico. No plano da
análise concreta, esse ângulo renovado permitiria tentar compreender o processo de
internalização das relações imperialistas nas sociedades dependentes.
Cultura, dependência e militarismo
14
Em sua análise sobre a dependência estrutural, Ianni dispensa grande atenção ao
papel desempenhado pelo que ele denominava “dependência cultural”, categoria que se
refere aos “produtos ideológicos e científicos (nos países dependentes) das relações,
processos e estruturas imperialistas.” (idem, p.173 – grifo nosso). A dependência cultural
resultaria, em verdade, no alinhamento da “visão de mundo dominante no país
subordinado” àquela dominante no país imperialista. Não se trata de mera “dependência
ideológica”, mas sim daquilo que Ianni designará como “cultura da dependência”, esfera
especialmente importante para compreender “o modo pelo qual se dá a metamorfose do
imperialismo em dependência estrutural, e vice-versa.” (idem, p.173 – grifo nosso). De
passagem, note-se que esse é o ângulo que permite que Ianni faça uma recuperação da
tradição do pensamento social latino-americano anterior, a qual havia se debruçado sobre
esse problema. Nessa recuperação, a obra do marxista peruano José Carlos Mariátegui
ganhará destaque como sendo uma das poucas que “contribuíram para uma compreensão
original das condições e consequências da atividade imperialista em países da América
Latina.” (idem, p.164)
No plano da contemporaneidade, esse ponto de vista será desenvolvido em
Imperialismo na América Latina (1974), livro originado das aulas e discussões
conduzidas por Ianni na Facultad de Ciencias Politicas y Sociales da Universidad
Autonoma de México em 1972. No livro, Ianni aprofunda sua discussão sobre a relação
entre dependência estrutural e imperialismo a partir da discussão sobre a diplomacia e as
relações entre Estado das nações dependentes e as empresas multinacionais. Destacando
fortemente o papel desempenhado pelos interesses dos Estados Unidos sobre os países
latino-americanos – traço que se acentuará em sua obra-, Ianni procura articular três níveis
analíticos: o alinhamento político-militar” das nações dependentes junto à “nação
dominante” – revelado, por exemplo, pela adoção de suas “doutrinas geopolíticas de
divisão do mundo em áreas de influência e segurança”; a “alienação cultural”, processo
pelo qual os meios de comunicação de massa dos países subalternos são controlados ou
manipulados pelos países dominantes por meio de tradução e produção de revistas, livros,
filmes, programas de televisão e a própria “criação ou a reformulação de instituição de
nível governamental” (cf. IANNI, 1988 [1974], p.145).
Ponto culminante de sua teoria da dependência estrutural, Imperialismo na América
Latina revela claramente o intuito de Ianni em promover uma complementação crítica em
15
relação às teorias clássicas do imperialismo. Segundo ele, “a análise do imperialismo não
se tornará completa enquanto não se conhecerem também as suas manifestações no
interior da sociedade subordinada”, razão pela qual “este ensaio pode ser considerado
também uma contribuição para a interpretação do imperialismo, a partir da perspectiva
dos países subordinados.” (idem, p.146 – grifo nosso). Embora críticas, as teorias
clássicas do imperialismo, a de Lenin à frente, adotavam perspectivas próprias aos países
centrais, o que impossibilitaria a compreensão adequada sobre os vínculos entre as
transformações dos países dependentes e as relações imperialistas, como também não
permitia o entendimento dos processos políticos e culturais internos a eles. Ademais,
também não possibilitaria colocar em questão a forma pela qual o país imperialista se
“aliena” no país dependente.
É na esteira dessa perspectiva que Ianni destacará que as discussões mais recentes
sobre a dependência ultrapassam os níveis econômico e político, aqueles aos quais se
prendiam as abordagens clássicas sobre o imperialismo, para incorporar a dimensão
cultural das relações dependentes (cf. idem, p.156).
Em casos extremos, as condições sociais e culturais de dependência provocam o
comprometimento da própria personalidade de pessoas e grupos de pessoas, no país
subordinado. A situação de dependência estrutural certamente cria ambiguidades e
incongruências, gerando certos tipos de inautenticidades e duplicidades. Os valores
culturais e os padrões de comportamento social duplicam-se e tornam-se
contraditórios. E também ocorre um certo tipo de divórcio entre o pensamento e a
ação. Assim, os antagonismos políticos e econômicos (isto é, os antagonismos entre
as classes sociais) transfiguram-se em contradições culturais (axiológicas). O
pensamento e a ação podem tornar-se cada vez mais desencontrados, incongruentes.
Em consequência, aparecem casos de desorganização da personalidade. Nessa linha
de entendimento, ainda está por ser realizada uma análise dos dados e sugestões
reunidos em estudos de antropologia, sociologia e psicologia. (idem, p.159)
O que está em jogo nessa análise de Ianni é a procura por demonstrar que a situação
de dependência não se restringe ao campo econômico, mas sim “alcança também as
esferas política, militar e cultural. A dependência estrutural permeia todo o sistema social
do país subordinado.” (idem, p.165).
Esse argumento será desdobrado na coletânea Imperialismo e cultura (1976), na
qual se destaca o ensaio “A Indústria Cultural do Imperialismo”, escrito em 1974 e
inédito. Os demais ensaios desenvolvem análises sobre o papel desempenhado pelos
Estados Unidos na geopolítica internacional. Dos três, dois deles foram escritos em 1968
e o último, que trata da crise de hegemonia dos Estados Unidos, em 1974. Destaco essas
informações para salientar que a composição do livro não desautoriza a ideia de que a
16
perspectiva de Ianni a respeito da dependência estrutural passou a enfatizar cada vez mais
a dimensão cultural do problema, a qual estaria vinculada diretamente ao processo de
reprodução da sociabilidade capitalista.
Para compreender como a cultura capitalista se insere nas relações
imperialistas e de dependência, é indispensável que comecemos por
reconhecer que essa cultura é um elemento essencial à reprodução das
relações capitalistas, em escala nacional e internacional. A produção dessas
relações implica na reprodução de ideias, valores, princípios e doutrinas. As
forças produtivas e as relações de produção, ou as relações de apropriação
econômica e dominação política não se encadeiam, reproduzem e expandem
se não se expressam em ideias, valores, princípios e doutrinas (ou formas de
pensar), organizados segundo as determinações básicas do modo capitalista
de produção. (IANNI, 1988 [1976], p.13 – grifo nosso)
Essa perspectiva materialista a respeito da cultura permite que Ianni estabeleça um
vínculo íntimo com a política, instância na qual as decisões-chave para a reprodução do
existente seriam tomadas6. “Eficácia, competitividade, sentido de tempo, espírito prático,
achievement, performance, neutralidade afetiva, ascetismo, racionalidade e muitos outros
são os valores da ideologia burguesa que aparecem nas relações que organizam tanto a
produção material como a espiritual.” (idem, p.30). Ou seja: a cultura produzida a partir
das determinações capitalistas permitiria a generalização dos valores convenientes à
reprodução desse modo de produção. Segundo Ianni, isso não aconteceria apenas na
produção cultural de massa, mas, inclusive, no debate científico – como revelariam, por
exemplo, os vínculos entre antropologia social britânica e o imperialismo na transição
dos séculos XIX e XX (Cf. idem, p.33).
O que é particularmente interessante na argumentação de Ianni é a tentativa de
especificação da relação entre cultura e política naquilo que denomina da “política
cultural imperialista”. Ou seja: embora a cultura seja um plano fundamental na
reprodução da ordem capitalista, Ianni se esforça para identificar o papel que ela
desempenha na reprodução do imperialismo. Também nesse sentido o ensaio a “A
indústria cultural do imperialismo” pode ser tomado como ponto importante da reflexão
de Ianni sobre o assunto, pois nele se conjugam reflexões sobre os papéis políticos da
cultura com o militarismo, tema-chave da reflexão de Ianni sobre o imperialismo.
Com efeito, desde antes de Imperialismo na América Latina, Ianni enfatiza o papel
desempenhado pelos interesses norte-americanos na reformulação política, econômica e
6
Essa tese filia Ianni ao marxismo uspiano forjado no Seminário Marx, que se caracterizou por dar especial
ênfase à política na reprodução da sociedade (BRITO, 2019)
17
cultural pela qual passou a América Latina desde o fim da Segunda Guerra Mundial,
momento em que começa a Guerra Fria. Em especial, Ianni enfatiza o peso que as
relações diplomáticas com o Estados Unidos tiveram nesse processo – daí a utilização de
conceitos como “diplomacia total”, que diz respeito ao fato de que “os governantes dos
Estados Unidos passaram a dedicar substanciais recursos materiais, organizatórios e
intelectuais à sua política cultural internacional.” (idem, p.39). Exemplares disso seriam
o Fullbright Act (1946), o Smith-Mundt Act (1948), o Point Four Program (1949) e o
Fullbright-Hays Act (1961).
No ensaio de 1974, Ianni identifica como a cultura mercantilizada produzida nos
Estados Unidos, ou patrocinada por ele, tem o papel de manter os laços atados com os
países latino-americanos. Claro que essas política culturais eram complementadas por
negócios efetivos, como estímulo à industrialização, e políticas de segurança, como o
projeto Camelot (1963), concebido pelo Departamento de Defesa do Exército dos Estados
Unidos em conjunto com a American University que visava descobrir as razões para
levantes em países latino-americanos e medidas que poderiam ser tomadas por
governantes da região.
É também bastante sugestivo que Ianni termine seu ensaio com uma seção
denominada “Contradições do pensamento imperialista”, na qual se dedica a analisar a
forma de pensar do “pensamento imperialista” responsável por articular o discurso
econômico, político e cultural conveniente à dominação norte-americana. Em primeiro
lugar, Ianni reconhece que a “dominação imperialista” norte-americana se divide em
frações distintas, com estilos diferentes de dominação – como revelaria o conflito político
interno. O mesmo ocorreria nos países latino-americanos, em que as elites também se
dividiriam em grupos diferentes. Ademais, o próprio processo de internacionalização da
produção capitalista traria novos formas de tensão e conflitos. Porém, o cerne da análise
de Ianni é a sugestão de que “a própria cultura do imperialismo é incapaz de interpretar,
de forma adequada, as condições reais de sua dominação.” (idem, p.66). Isso porque
ensejaria uma forma de pensar tecnocrática e a fim do que Ianni chama de “fetichismo
tecnológico”, no qual perseveraria uma razão instrumental que estimularia a violência
sobre as “populações e culturas nos países dependentes em que surgem lutas pela
emancipação econômica e política.” (idem, p.71). Exemplos disso seriam os
acontecimentos do Vietnã, Indonésia, Grécia e Chile. Ao acentuar os conflitos, o
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pensamento imperialista daria força aos seus algozes, as forças sociais em busca de
emancipação. Por essa razão, Ianni identificará, ainda em Imperialismo e cultura, a crise
da hegemonia norte-americana.
Considerações finais
Nesse texto, buscamos mapear, de modo sintético, a interpretação desenvolvida por
Octavio Ianni a respeito do que denominava de “dependência estrutural” da América
Latina. Se a sua primeira reflexão sobre o tema aparecia no contexto da explicação do
golpe militar de 1964 no Brasil, tal como encontramos em O colapso do populismo, o seu
desenvolvimento extrapolou esse quadro.
Em suas obras seguintes, Ianni entendia que a análise da dependência estrutural
latino-americana deveria resultar no desenvolvimento da teoria do imperialismo tal como
formuladas por Vladimir Lenin e, posteriormente, por Paul Baran. Em especial, isso se
deve ao fato de que a teoria da dependência estaria em condições de oferecer um novo
ponto de vista para a teoria do imperialismo, em geral articuladas a partir do ponto de
vista dos países imperialistas. O ponto de vista dependente – isto é, periférico – poderia
colaborar para trazer à tona novos elementos e desdobramentos do imperialismo.
Sintoma disso é a importância que Ianni confere ao papel desempenhado pela
cultura nas relações imperialistas – elemento, ao seu ver, alheio às teorias clássicas do
imperialismo, normalmente centradas em fatores econômicos e políticos. O sociólogo
uspiano passa a enfatizar cada vez mais o nexo entre cultura e política, ao seu ver
especialmente revelador do modo pelo qual os Estados Unidos exerceriam sua hegemonia
imperialista sobre a América Latina desde o final da Segunda Guerra Mundial.
Por outro lado, cumpre observar que, de certo ângulo interpretativo, é questionável
a ideia de Ianni segundo a qual a problemática da dependência teria emergido nas ciências
sociais latino-americanas em razão do fracasso das estratégias de desenvolvimento
associadas ao nacionalismo e ao internacionalismo (IANNI, 1988 [1974], p.136). Ora,
embora se possa dizer que a industrialização latino-americana não cumpriu as promessas
de equalização social que seus defensores pretendiam, uma das razões pelas quais a
temática da dependência tornou-se popular entre os teóricos latino-americanos, é fato que,
do ponto de vista produtivo, o capitalismo avançou tremendamente no subcontinente –
como o próprio Ianni reconheceu (IANNI, 1971, p.167). Ou seja: do ponto de vista da
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acumulação, tanto o “modelo getuliano” como o “modelo internacionalista” implantado
pela ditadura militar foram muito bem-sucedidos (OLIVEIRA, 2011 [1972]. Uma certa
linha de análise poderia sugerir que a interpretação de Ianni sobre a dependência estrutural
tinha dificuldade de explicar como era possível a conjugação do desenvolvimento e da
dependência, como indicada, empiricamente, o período do chamado “milagre
econômico”.
Entretanto, há outra maneira de interpretar a explicação de Ianni, pois poderíamos
imaginar que a sua tese a respeito do fracasso dos modelos de desenvolvimento a partir
de 1930 diz respeito ao processo de integração social da classe trabalhadora brasileira.
Nesse caso, o paralelo a ser feito seria com as classes trabalhadoras dos países da Europa
Ocidental e dos Estados Unidos, nos quais “o padrão de vida se elevou tanto, incluindo
também amplas camadas da população, que o interesse na emancipação da sociedade não
pode mais ser imediatamente articulado em expressões econômicas.” (HABERMAS,
2013, p.352). Desse ângulo, a análise de Ianni poderia ser aproximada à desenvolvida por
Francisco de Oliveira (2011 [1972]) e Paul Singer (1976 [1972]), seus colegas de
CEBRAP, críticos da hipótese lançada por Fernando Henrique Cardoso, em 1971, sobre
a dimensão redistributiva do “milagre econômico” (CARDOSO, 1973 [1971]).
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