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(20250100-PT) Super Interessante 2

O documento aborda a importância do esquecimento na neurociência, destacando que ele é um aliado essencial para o bem-estar cognitivo e emocional, permitindo ao cérebro filtrar informações e lidar com memórias dolorosas. Além disso, apresenta uma variedade de tópicos científicos, como a experiência da morte pelos animais, a evolução das estrelas e a arte dos frescos de Pompeia. A edição também reflete sobre a definição de liberdade e suas implicações éticas na sociedade contemporânea.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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NÚMERO 321

MENSAL ○ JANEIRO de 2025

BIOLOGIA
COMO É QUE OS ANIMAIS
EXPERIENCIAM A MORTE?
METEOROLOGIA
EL NIÑO, LA NIÑA E AS
ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS

ASTROFÍSICA
A EVOLUÇÃO
DAS ESTRELAS
INVESTIGAÇÃO
OS VAMPIROS E OS
ZOMBIES VISTOS
PELA CIÊNCIA
ARTE
DISSECAÇÃO DOS
FRESCOS DE POMPEIA

NEUROCIÊNCIA do
ESQUECIMENTO
O COMPLEXO PROCESSO POR DETRÁS DAS NOSSAS MEMÓRIAS PERDIDAS
POR
APENAS
ESTE NATAL DÊ DE PRESENTE O 29 €
,99

LEGADO
HISTÓRICO D. MANUEL I E SEUS TEMPOS AFORTUNADOS EDIÇÃO BIBLIOTECA

EDIÇÃO BIBLIOTECA
PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO

HISTÓRIA DE PORTUGAL EM 30 BATALHAS

EDIÇÃO
BIBLIOTECA

25
25 DE ABRIL REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

DE
D. MANUEL I
HISTÓRIA ABRIL EDE
SEUS TEMPOS AFORTUNADOS
REVOLUÇÃO DOS CRAVOS
Origens
de uma
nação
PORTUGAL
EM 30 BATALHAS
Manuel I

30 batalhas
25 de abril

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NotíciasFlix

EDITORIAL

Esquecer para continuar a aprender


O
esquecimento é muitas vezes visto como uma traição da nossa mente. No entanto,
a neurociência moderna revela-nos a sobre isso, uma perspetiva fascinante: o
esquecimento não é um inimigo, mas um aliado crucial para o nosso bem-estar
cognitivo e emocional. Este processo intrincado e complexo permite ao nosso cérebro
filtrar a informação, dando prioridade ao que é relevante e descartando o que é supérfluo, e
reiniciá-lo para libertar espaço para novas aprendizagens e experiências.
Além disso, desempenha também um papel fundamental na regulação
emocional, uma vez que, ao atenuar memórias dolorosas ou traumáticas,
protege-nos da angústia e facilita a nossa adaptação a situações difíceis.
Não é, pois, de estranhar que dediquemos a nossa capa à importância
desta «poda sináptica» que elimina as ligações neuronais mais fracas
e otimiza os circuitos cerebrais; um artigo que lhe será tão revelador
como os demais: como lidam os animais com a morte, o papel
crucial dos whistleblowers na era digital, os maravilhosos frescos de Carmen Sabalete,
diretora
Pompeia, as etapas da vida das estrelas... Disfrute da leitura. [email protected]

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A REVOLUÇÃO NA FÍSICA

Chefe do Executivo: Marta Ariño


Responsável financeiro: Carlos Franco
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Direção: Carmen Sabalete Manuel Martín-Loeches, José M. González, Ramón
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SUPER 3
Sumário
2009 HARAPZO HOPE

66

REPORTAGENS 66 A Ciência dos Vampiros e 39 Palavras cruzadas


14 Neurociência do Zombies Lucía Sesma diz que cometer erros faz
O que está por detrás do mistério que parte da nossa identidade e mantém a
esquecimento envolve os mortos-vivos e os hematófa- língua viva.
Um processo necessário para reiniciar a gos? A ciência pode explicar.
mente e para a estabilidade emocional. 49 Mental coach
78 Frescos de Pompeia Tata Gavilán explica como enfrentar o
20 Whistleblowers As obras de arte nas paredes das casas medo, aprender a tomar decisões e as-
Arriscam o trabalho, a vida e a liberdade de Pompeia revelam a vida nesta civili- sumir compromissos.
para denunciar grandes empresas zação requintada.
tecnológicas ou governos. 57 Infografia
O ciclo das estrelas.
26 Noz: rica e saudável 84 Das aves aos dinossauros
Descobrimos alguns dos seus Como é que as aves evoluíram a partir 58 Neurociência
benefícios para a saúde. dos dinossauros terópodes para os Manuel Martín-Loeches pergunta o que
dinossauros. há de tão especial no cérebro humano
que faz de nós uma espécie única.
28 Animais que enfrentam a
morte 90 O seu cérebro quântico 60 Matrizes e matrazes
Até que ponto as outras espécies Como o nosso cérebro funciona perfei-
tamente de acordo com os princípios A paixão científica de Mary Sommerville
podem ter um conceito de morte? ajudou-nos a desvendar os mistérios do
da física do minúsculo.
Universo.
34 El Niño, La Niña e o ENTREVISTA 62 Motor
aquecimento global 40 Francisco Kovacs Notícias do setor automóvel.
Eventos que obrigam a um recálculo Este eminente médico fala-nos de saúde
contínuo das projeções climáticas,
moldando o futuro do nosso planeta.
e educação para a saúde, e do seu 72 Tecnocultura
último livro Aprendiendo a ser padres. Javier Moreno explica como o
homem tem de recorrer a técnicas
44 A mulher que inventou a de desnorteamento face ao rastreio
psicanálise RUBRICAS digital.
Uma jovem vienense, Bertha Pappe- 6 Grande Angular
nheim, inspiraria um método improvisa- Jorge de los Santos reflete sobre o con- 74 Criminologia
do que revolucionaria a história do estu- ceito de liberdade. Victoria Pascual fala-nos
do da mente e do comportamento. do cibercrime.
8 Notícias
50 Estrelas em explosão A atualidade contada por Cristina Enríquez. 76 Mitos sobre o Clima
A vida de uma estrela passa por várias José Miguel Viñas fala-nos dos efeitos
fases, mesmo depois da sua morte. São 12 Falar de ciência do clima nas vinhas.
as supernovas, as hipernovas, as impos- Um universo «ajustado» à vida? por Mi-
toras e as fantasmas. guel Ángel Sabadell. 98 Perguntas e respostas

4 SUPER
SHUTTERSTOCK SHUTTERSTOCK SHUTTERSTOCK CREDITO

84
28
50

34
DEA/D.AGLI ORTI SHUTTERSTOCK
14

78

SHUTTERSTOCK

20
SUPER 5
DISCOVERY GRANDE ANGULAR

POR
JORGE DE LOS SANTOS,
artista e pensador

LIVRES?
UMA IDEIA OU DEFINIÇÃO ERRADA DE LIBERDADE CONFUNDE-NOS E ESSE MAL-
ENTENDIDO PODE TER CONSEQUÊNCIAS TRÁGICAS PARA AS NOSSAS VIDAS. SEM
LIMITES E SEM RESPONSABILIDADE ÉTICA NÃO SE É VERDADEIRAMENTE LIVRE.

e há uma coisa que é clara na definição de mente. Hitler não foi eleito por sufrágio universal apesar

S liberdade, é que errar na sua definição con-


dena-nos a não a ter. Uma falsa ideia de li-
berdade é um obstáculo e, em última aná-
de ser louco, mas precisamente porque era louco. A sua
maior força foi a liberdade mal definida.
Atualmente, sob a lógica definidora do mercado, enten-
lise, um impedimento mortal ao exercício da liberdade. demos a liberdade como a possibilidade de consumir. Ter
A 24 de janeiro de 2016, um candidato à Casa Branca quantitativamente mais possibilidades de adquirir mais
declarou: «Podia estar no meio da Quinta Avenida a dis- possibilidades. Ilimitadamente num mercado ilimitado.
parar sobre pessoas e não perderia eleitores». E tinha Livre, pensamos, é aquele sujeito que não tem constran-
razão: o seu gesto não seria visto pela paróquia como gimentos, nem económicos, nem funcionais, nem éticos.
bárbaro, mas como um gesto de liberdade. Tornou-se Aquele que não tem qualquer responsabilidade pelas
presidente dos Estados Unidos a 8 de novembro de suas escolhas ilimitadas porque não aceita qualquer
2016. Hoje, é novamente presidente dos Estados Uni- compromisso para além dos seus próprios desejos. Do
dos da América. Em nome de um erro. De ter errado na qual é escravo. Este tipo de sujeito, esta estrutura psíqui-
definição de liberdade. ca, tem um nome na psicopatologia. Em linguagem colo-
quial, é ser louco. E não é um bom presságio. No entanto,
THOMAS MANN ENFRENTA UM PERÍODO DE PERGUNTAS são eleitos como representantes políticos, como líderes
APÓS UMA CONFERÊNCIA em Los Angeles, que deve ter de opinião, como aqueles que nos indicam o caminho pa-
ocorrido um dia entre 1938 e 1940. Depois de uma opi- ra a liberdade absoluta.
nião de alguém da plateia, Mann demora-se e responde:
«Deixem-me dizer-vos a verdade: se o fascismo alguma O FENÓMENO BERLUSCONI, A SUA ASCENSÃO POLÍTICA, FOI
vez chegar à América, virá em nome da liberdade». Há BEM EXPLICADO POR UM ANALISTA ITALIANO: as pessoas
algo que parece não encaixar. Há algo que parece amea- votaram nele não porque tivessem confiança nas suas ca-
çador hoje em dia. No entanto, a observação demonstra pacidades de gestão ou na sua responsabilidade ética ou
um sentido crítico bem afinado: Mann adivinhou que o porque ele ia tornar o mundo melhor: votaram nele por-
eleitor alemão via em Hitler um paradigma de liberdade. que queriam ser como ele. Um tipo que fazia o que lhe da-
Um homem absolutamente livre que podia, porque não va na gana e que, por isso, definia em si próprio o que era
tinha limites, violar as coerções do Tratado de Versalhes, ser livre : ser milionário, ter uma equipa de futebol e estar
que podia apontar livremente e depois exterminar a cau- rodeado de «velinas». Votaram contra os seus interesses
sa abstrata e falsa de todos os males nessa generaliza- mas a favor das suas fantasias. Os apetites suplantaram
ção delirante do judeu. Algo com que Herr Müller, o povo o sentido crítico. Em nome da liberdade. Da incompreen-
alemão e até a alegada raça ariana fantasiavam fervorosa- são do que é a liberdade.


Mann adivinhou que o eleitor alemão via em Hitler
um paradigma de liberdade. Um homem absolutamente
livre que podia, porque não tinha limites, violar as
coerções do Tratado de Versalhes”

6 SUPER
“ Ter todas as
possibilidades
é não ter
nenhuma. Aqui,
o sujeito não é
um sujeito livre,
é um sujeito
colapsado. Isso
implica que
a restrição,
o limite, é
necessário para
a liberdade”
SHUTTERSTOCK

A possibilidade eletiva é, evidentemente, uma condição quências da nossa escolha.


da liberdade. Poder escolher entre possibilidades supõe Ter todas as possibilidades é não ter nenhuma. Aqui, o
«ser» livre, mas não é em si mesmo «ser» livre. Um homem sujeito não é um sujeito livre, é um sujeito colapsado. Is-
não é infalivelmente livre só porque está diante do sortido to implica que o constrangimento, o limite, é necessário
de uma charcutaria na Baviera. Ele sê-lo-á em função da para a liberdade. Sem coação não há liberdade, porque a
forma como realiza a sua capacidade eletiva. Se a escolha liberdade é precisamente a capacidade de gerar possibili-
entre possibilidades for responsável, de acordo com a cor- dades naquilo que é restringido. Há um provérbio japonês
reção, com o juízo crítico e com o sentido dos limites. As- que diz mais ou menos o seguinte: «O cotovelo não pode
sim, liberdade não é ter à disposição um campo inesgotá- ser dobrado para trás»: posso coçar a cabeça com o braço
vel de possibilidades em produtos consumíveis, modos de esticado e a palma da mão para cima, mas da mesma posi-
ser, modos de afetar. A infinidade de possibilidades elimina ção não posso coçar o joelho. Se o fizesse, o meu cotovelo
qualquer possibilidade: não podemos cumprir a condição estaria partido. Trata-se de uma restrição. Mas foi a partir
necessária de nos responsabilizarmos pelo que escolhe- dessa restrição que pintámos Las Meninas, escrevemos
mos. Sem limite e sem responsabilidade ética não há su- Dom Quixote ou sequenciámos o genoma humano. Não
jeito livre. No nosso andarilho de bebé podemos ir para a apesar da coação, mas por causa dela.
frente, para trás, para a direita ou para a esquerda.
UM «CARALHO» É ORIGINALMENTE UM TERMO MARÍTIMO
A NOSSA ESCOLHA ENTRE ESTAS POSSIBILIDADES DE MO- que se refere ao cesto da Gávea no topo do mastro princi-
BILIDADE é condicionada pela responsabilidade de não pal onde, ao ocupá-lo, o marinheiro sofre os mais atrozes
nos prejudicarmos nem a nós nem aos outros. Se as pos- ataques de pânico e as mais insuportáveis tonturas. Um
sibilidades fossem infinitas, por exemplo num universo de lugar extremamente inóspito onde ninguém sobrevive em
dimensões infinitas, não tomaríamos qualquer decisão: condições. Hoje, um apelo desinibido à conquista da liber-
deixaríamos o carrinho ao sabor da inércia. Não seríamos dade, «vai para o caralho», deve despertar a suspeita de
capazes de assumir a responsabilidade de escolher livre- que a liberdade vai diretamente para esse pequeno cesto
mente, porque seríamos incapazes de prever as conse- onde nada é possível e onde só chegam os malditos. e

SUPER 7
DISCOVERY NOTÍCIAS
POR CRISTINA ENRÍQUEZ

Os bichos-da-conta
podem formar uma
esfera graças a uma
capacidade chamada
«conglobação» que
lhes permite
defenderem-se dos
predadores.

SHUTTERSTOCK
BICHO-DA-CONTA: MUITO MAIS DO QUE UM CRUSTÁCEO TERRESTRE
ambém conhecidos co- A diversidade destes crustáceos o crescimento das plantas, contribuin-

T mo piolhos da madeira
húmidos, os bichos-da-
-conta são crustáceos
terrestres é notável: existem cerca de
3500 espécies no mundo. Cada uma
delas tem adaptações específicas ao
do assim para a saúde e fertilidade do
solo. Além disso, estes animais podem
funcionar como bio-indicadores da
terrestres pertencentes à subordem seu ambiente, embora todas partilhem saúde do solo, uma vez que a sua pre-
Oniscidea. Atraem muita atenção, a capacidade de conglobamento e a sença está frequentemente associada a
especialmente das crianças, devido à dependência da humidade para sobre- solos húmidos e saudáveis.
sua capacidade de se enrolarem numa viver. Os bichos-da-conta são detritívo- Este curioso crustáceo é um peque-
bola quando tocados. Embora sejam ros, o que significa que se alimentam no mas essencial habitante do solo
muitas vezes confundidos com inse- principalmente de matéria orgânica que, apesar de muitas vezes ignorado,
tos devido ao seu tamanho e aspeto, em decomposição. A sua dieta consiste desempenha um papel fundamental na
pertencem na realidade à classe dos em folhas mortas, madeira em decom- manutenção dos ecossistemas terres-
crustáceos dentro do enorme grupo posição e restos de plantas, desempe- tres. A sua capacidade de adaptação a
dos artrópodes, como os carangue- nhando assim um papel fundamental diversos ambientes, a sua capacidade
jos e os camarões, e são dos poucos no ciclo de nutrientes do solo. Através de decompor a matéria orgânica e a
crustáceos que se adaptaram comple- da degradação destes materiais, con- sua contribuição para a qualidade do
tamente à vida na superfície da terra. tribuem para a fertilização do solo e solo fazem dele um valioso aliado do
A capacidade dos bichos-da-conta ajudam na libertação de nutrientes ambiente.
de formar uma esfera é uma resposta essenciais para as plantas. Para além Apesar da sua aparência despreten-
evolutiva de defesa para se prote- da sua dieta principal, podem também siosa, o bicho-da-conta lembra-nos a
gerem dos predadores. Esta capaci- consumir pequenos restos de animais importância dos organismos que fazem
dade, denominada «conglobação», mortos e outros detritos orgânicos que parte da biodiversidade do solo, cuja
permite a este artrópode esconder encontram no seu ambiente. presença é essencial para a saúde e o
e proteger o seu corpo mole sob São muito mais do que crustáceos equilíbrio da vida na Terra. Ao aprender
um exoesqueleto resistente. Embo- terrestres, pois funcionam como ver- mais sobre estes curiosos crustáceos,
ra sejam animais muito pequenos e dadeiros agentes de reciclagem dos podemos apreciar o papel vital que de-
humildes, desempenham um papel solos. Ao consumirem matéria orgânica sempenham nos ciclos naturais e a im-
muito importante nos ecossistemas em decomposição, ajudam a decompor portância de proteger os seus habitats
que habitam. e a libertar nutrientes essenciais para para garantir a sua sobrevivência.

8 SUPER
UMA NOVA CIDADE MAIA
Um estudante de doutora- LiDAR and the crowded
mento identificou os vestí- ancient landscape of
gios de uma antiga cidade Campeche, Mexico», pu-
maia no estado mexicano blicado na revista Antiquity,
de Campeche que passa- apresenta uma análise por-
ram despercebidos duran- menorizada da paisagem

ASC / MIDJOURNEY
te séculos. A descoberta arqueológica maia. A área
deve-se à aplicação da tec- designada por «Valeriana»
nologia LiDAR, um método foi localizada a partir dos
de cartografia aérea que dados LiDAR num local em
permite obter imagens pre- Campeche e estava com- to de água. Todos estes uma rede de centros urba-
cisas do terreno, mesmo pletamente coberta pela elementos sugerem que nos interligados. A falta de
sob uma vegetação densa selva. Os resultados mos- Valeriana era uma cidade exploração anterior nesta
que esconde segredos que tram uma cidade dividida de grande importância na região tinha deixado estes
parecem inacessíveis. Uma em dois núcleos, ligados região. vestígios esquecidos, até
grande descoberta que por uma densa rede de A equipa de investi- que a tecnologia LiDAR
nos faz repensar as noções povoações que revelam gação observou que a tornou visível o que estava
tradicionais de desenvol- um elevado nível de orga- densidade de povoamento escondido pela vegetação.
vimento urbano nas terras nização e planeamento. As nesta área era semelhante Esta descoberta revela a
baixas da Mesoamérica. estruturas arquitetónicas à encontrada noutros sítios possibilidade de existirem
O artigo original, intitula- encontradas incluem pra- maias reconhecidos, como ainda mais cidades maias
do «Running out of empty ças, templos piramidais e Chactún, indicando que por descobrir nas selvas da
space: environmental sistemas de armazenamen- esta cidade fazia parte de Mesoamérica.

MISTÉRIO DA «ESTRELA ZOMBIE» FINALMENTE RESOLVIDO


No ano de 1181, aconteceu algo nos céus que impressionou outubro de 2024, fornece novos dados sobre a remanes-
os astrónomos chineses e japoneses: registaram o apareci- cente Pa 30, uma estrela que corresponde à localização e
mento de um fenómeno celeste que brilhou no céu noturno idade da supernova 1181. Os resultados da análise sugerem
durante seis meses. Esta luz enigmática, semelhante a uma que Pa 30 pode ser um remanescente único, o produto de
estrela, que desapareceu sem deixar rasto, foi um mistério uma explosão falhada de uma anã branca, que agora emite
para a astronomia durante séculos. Muitos especialistas es- ventos ultra-rápidos dominados por oxigénio.
pecularam sobre a sua origem, mas a ausência de um vestí- No coração da peculiar nebulosa Pa 30, também conhecida
gio claro dificultou a confirmação da sua natureza. Mas o re- como a «nebulosa dente-de-leão» devido à sua forma, en-
cente estudo intitulado «Expansion properties of the young contra-se a Estrela de Parker, uma anã branca que desafia os
supernova type Iax remnant Pa 30 revealed», publicado em limites do que se pensava ser possível em explosões estelares.
Esta estrela, cujo nome é uma homenagem ao astrónomo
Quentin Parker da Universidade de Hong Kong, é o núcleo
sobrevivente da supernova SN 1181. Depois de consumir o seu
combustível nuclear, uma anã branca deveria ter explodido
completamente, dispersando-se no espaço, mas neste caso
particular, a estrela sobreviveu parcialmente à explosão, o que
é extremamente raro e tem intrigado os astrónomos.
Uma estrela zombie é o remanescente de uma supernova
que não explodiu completamente, deixando um núcleo es-
telar sobrevivente. Estes núcleos são típicos de supernovas
ASC / CHATGPT / EUGENIO FDZ.

falhadas, em que a explosão não consegue destruir toda a


estrela. No caso de Pa 30, este tipo de supernova é conhe-
cido como Iax e carateriza-se por ser menos destrutivo do
que as supernovas comuns, o que permite que a anã branca
sobreviva à explosão.

SUPER 9
DISCOVERY NOTÍCIAS

ENCONTRADO
O OVO DE
DINOSSAURO
MAIS PEQUENO
descoberta foi feita na

A província de Jiangxi, no
sudeste da China, onde
uma equipa de inves-
tigadores encontrou o que se acre-
dita ser a série dos mais pequenos
ovos de dinossauro fósseis alguma
vez descobertos. Publicado na re-

ASC/ DALL-E/CHRISTIAN PÉREZ


vista Historical Biology, este estudo
liderado por Rui Wu e a sua equipa
revelou pistas importantes sobre a
biodiversidade dos dinossauros no
Cretáceo Superior e a sua evolução
na região. O conjunto de seis pequenos ovos foi encontrado na Formação Tangbian, um local
Denominados Minioolithus gan- conhecido pelos paleontólogos como uma área rica em fósseis de ovos de dinossauro.
zhouensis, estes pequenos ovos –
um conjunto parcial contendo seis
exemplares – foram encontrados em
2021 num estaleiro de construção
perto da cidade de Ganzhou, um
local, pertencente à Formação Tan-
gbian, já conhecido pelos paleontó-
logos como uma das áreas mais ricas
em fósseis de ovos de dinossauros,
especialmente de ovirraptoros-
sauros. Mas este novo achado traz
uma novidade: o seu tamanho. Com
apenas 29,93 milímetros de compri-
mento, estes ovos são consideravel-
mente mais pequenos do que o re-
corde anterior, que era detido pelo
Parvoblongoolithus jinguoensis (45,5
CHINA UNIVERSITY OF GEOSCIENCES
mm). Apesar do seu tamanho dimi-
nuto, a sua importância é funda-
mental, pois fornecem informações
cruciais sobre as espécies de dinos-
sauros presentes no Cretáceo Supe-
rior e a sua reprodução. Esta des-
coberta não só estabelece um novo O tamanho minúsculo do ovo, de um terópode não aviário, não só dá pistas sobre a forma
padrão para o tamanho dos ovos de como se reproduzia, mas também indica que esta espécie nidificava ali com regularidade.
dinossauros não aviários, mas tam-
bém desafia as noções anteriores aviário, um grupo que inclui mui- sobre a estrutura dos ninhos e as
sobre a diversidade e as estratégias tos dos mais famosos carnívoros estratégias de reprodução. A des-
reprodutivas destes répteis antigos. mesozóicos. coberta de ovos bem preservados,
Estudando a microestrutura das O estudo de Rui Wu e da sua equi- com restos de possíveis fragmentos
cascas por microscopia eletrónica pa sublinha a importância de locais de ossos no seu interior, sugere que
e difração de eletrões retrodifun- como Ganzhou para a paleontolo- estes dinossauros não só deposi-
didos (EBSD), os investigadores gia, não só devido à abundância de taram os seus ovos na área, como
conseguiram confirmar que os material fóssil, mas também porque também podem ter nidificado aí re-
ovos pertencem a um terópode não estes locais fornecem informações gularmente.

10 SUPER
UM FÍSICO ESPANHOL
REVELA «A EQUAÇÃO DO GATO».
Apesar da sua popularidade, os mecanismos físicos por de-
trás das atitudes dos gatos não foram suficientemente estu-
dados e todas as tentativas de os explicar despertam grande
interesse na comunidade científica. Recentemente, o físico
galego Anxo Biasi conseguiu algo extraordinário ao propor

ASC/ MIDJOURNEY / EUGENIO FDZ.


um modelo matemático para descrever o movimento dos ga-
tos na presença de humanos. A ideia surgiu com a chegada
à sua vida da sua gata Eme e com o facto de esta apresentar
um comportamento bastante curioso e algo incompreensível.
Trata-se de uma perspetiva original baseada nas leis da
física clássica. Num artigo publicado no American Journal of A atração do gato pelo humano depende da energia aplicada
Physics, Biasi apresenta uma equação de movimento que ao chamamento, respondendo apenas a um estímulo forte.
descreve comportamentos típicos dos gatos, como a sua
tendência para manter uma certa distância das pessoas, ligação» do gato ao ser humano, de modo que quanto maior
o fenómeno dos zoomies (aqueles momentos de corrida for a ligação, maior será a tendência do gato para ficar perto
frenética pela casa) e o purring (ronronar). Este modelo não da pessoa. A equação do movimento explica também porque
só reproduz estes padrões de interação entre gatos e huma- é que os gatos se comportam por vezes de forma «capricho-
nos, como também constitui uma ferramenta para ensinar sa» quando são chamados, mas nem sempre respondem. De
conceitos básicos de mecânica. Biasi desenvolveu a sua in- acordo com o modelo, a atração pelo humano depende da
vestigação modelando o gato como uma «partícula pontual» energia aplicada ao chamamento; ou seja, se o chamamento
em movimento sob a influência de uma pessoa estática. A não gerar um impulso suficiente, o gato não ultrapassa a bar-
equação proposta por Biasi assume a forma de uma equação reira potencial que o mantém na sua zona de conforto. Neste
diferencial clássica que parece familiar a qualquer físico, na sentido, a equação reflete uma perceção «física» do gato, que
qual o gato é influenciado tanto pelo atrito como pelo poten- só responde ao estímulo se este for suficientemente forte
cial da pessoa. Este potencial varia de acordo com o «grau de para o motivar.

ESPANHA ATINGE UM MARCO HISTÓRICO: O PRIMEIRO PAINEL SOLAR INVISÍVEL


Os painéis solares permitem-nos captar a energia do sol para Energias Renováveis (CENER). Este vidro inclui estruturas
a converter em eletricidade e utilizá-la para uma multiplicida- nanométricas que imitam a superfície das folhas de lótus. São
de de fins. São geralmente feitos de alumínio e consistem num estas nanoestruturas que permitem que o vidro utilizado nos
conjunto de várias células solares, que contêm principalmen- painéis fotovoltaicos não reflita a luz, mantenha a sua limpeza
te silício. Devido ao efeito fotovoltaico, as células dos painéis de forma autónoma e arrefeça as células solares nos dias mais
solares têm a capacidade de captar a radiação solar e de a quentes. Trata-se de uma conceção que otimiza a produção
converter em energia elétrica. Mas agora, este tipo de energia de eletricidade, garantindo que a maior quantidade possível
pode ser completamente reinventado com o primeiro painel de luz solar chegue às células fotovoltaicas. Além disso, au-
solar invisível. Os painéis solares transparentes poderão ser menta a durabilidade do vidro contra a abrasão. Outro aspeto
a alternativa aos atuais painéis solares para poupar dinheiro fundamental é a sua capacidade de se manter limpo: as na-
sem perder luz, uma vez que funcionam como um concentra- noestruturas criadas por Pinto aumentam a distância entre a
dor solar, além de absorverem compri- superfície do vidro e as partículas de
mentos de onda de luz infravermelha e pó, diminuindo assim a sua aderên-
ultravioleta que não são visíveis. cia. Além disso, a sua capacidade
A física Cristina L. Pinto Fuste, de Na- de auto-limpeza significa que as
varra, concebeu um vidro para painéis gotículas de água que caem sobre
solares inspirado nas folhas de lótus. o vidro recolhem e lavam a sujidade,
Trata-se de um dispositivo capaz de mantendo os painéis operacionais.
aumentar a eficiência da produção de Além disso,os microcilindros
UNIVERSIDAD ESTATAL DE MICHIGAN

eletricidade e de reduzir os custos de desenhados na superfície ajudam a


manutenção. dissipar o calor gerado pelas células
A sua criação foi apresentada na solares, evitando o sobreaquecimen-
sua tese de doutoramento na Univer- to, com uma redução de até 2,5ºC na
sidade Pública de Navarra (UPNA) e temperatura dos módulos em contex-
desenvolvida no Centro Nacional de tos de luz solar abundante.

SUPER 11
DISCOVERY FALANDO DE CIÊNCIA...

POR
MIGUEL ÁNGEL
SABADELL

UM UNIVERSO
Astrofísico

«AJUSTADO»
PARA A VIDA?
O APARECIMENTO DO HOMEM NA TERRA PODE SER CONSIDERADO COMO UM PURO
ACASO. NO ENTANTO, PARECE QUE OS VALORES DAS CONSTANTES FUNDAMENTAIS SE
AUTO-ORGANIZAM PARA ASSEGURAR O APARECIMENTO DA VIDA E DA INTELIGÊNCIA.

teoria da evolução de esse valor (e aparentemente não Terra, é muito sensível aos valores

A Darwin, ao explicar o
aparecimento, a mudan-
ça e o desaparecimento
pode ser outro) que permite o apa-
recimento da vida no Universo. Em
suma, se a carga do eletrão ou a ve-
das constantes naturais, aparen-
temente arbitrárias e desconexas,
como a intensidade da força da gra-
das espécies, colocou no gatilho da locidade da luz não tivessem o valor vidade, a velocidade de expansão
ciência um termo filosófico: a con- que têm, nós não estaríamos aqui. do cosmos após o Big Bang ou o
tingência. Deste ponto de vista, o Nem ninguém mais. número de dimensões espaciais do
ser humano, como qualquer outra E este facto deixou muitos físicos mundo em que vivemos. Este facto
espécie, poderia não ter aparecido; teóricos de cabeça «virada». conduziu à formulação do chamado
estamos aqui por acaso. O paleon- Martin Rees, astrónomo real britâ- Princípio Antrópico Forte: o univer-
tólogo Stephen Jay Gould deixou is- nico, escreveu extensivamente so- so é obrigado a ter as propriedades
so bem claro no seu livro Full house: bre a forma como parece que tudo necessárias para permitir o apare-
«A origem do Homo sapiens deve no Universo, desde o nascimento cimento de vida e inteligência em
ser vista como irrepetível e concre- das galáxias até à origem da vida na algumas das suas etapas.
ta, não como uma consequência Outros vão mais longe. Os físicos
esperada». Para nossa sorte — ou John Barrow e Frank Tipler criaram a
infelicidade — somos contingentes. teoria do Ponto Ómega, segundo a
No entanto, há cientistas que de- qual a evolução da vida inteligente,
fendem que o acaso não é a razão caraterizada pelo armazenamento
última da nossa presença na Terra, de quantidades cada vez maiores
que a vida e a consciência são um de informação, assumirá no futuro
imperativo cósmico. Entenda-se o controlo de todo o universo: é o
bem: não estão a dizer que ambas Princípio Antrópico Final. Escusado
obedecem a um plano divino, mas será dizer que há quem menospre-
que são uma consequência inevitá- ze esta ideia, qualificando-a como
vel das leis da natureza. PACR, «Completely Ridiculous An-
thropic Principle» (Princípio Antró-
UM DOS MELHORES ASTROFÍSICOS pico Completamente Ridículo). Mas
DO SÉCULO PASSADO, o inglês Fred Barrow e Tipler não estão sozinhos:
Hoyle, foi um dos que mais se de- Para Christian De Duve a vida e a o físico e especialista em computa-
mente emergem como uma mani-
bruçou sobre este tema, chamando festação natural da matéria. ção quântica David Deutsch incor-
GETTY

a atenção para as coincidências pe- pora-o na sua descrição da realida-


culiares nos valores das constantes de que nos rodeia.
fundamentais: todas elas pareciam Outros estão intrigados com o
ter sido ajustadas com a maior pre- O ACASO NÃO É aparente impulso da natureza pa-
cisão possível para permitir o apa- ra aumentar a sua complexidade e
recimento da vida. Isto levanta uma A ÚNICA RAZÃO auto-organizar-se. Um dos funda-
questão inquietante: porque é que dores da ciência da complexidade,
as constantes físicas fundamentais DA NOSSA Stuart Kaufmann, concluiu que esta
têm o valor que têm? Como já referi, propensão para a auto-organização
o que é intrigante não é o facto de PRESENÇA é um atributo básico da própria ma-
terem um determinado valor, mas téria: «deve haver algo como uma
sim o facto de ser precisamente NA TERRA quarta lei [da Termodinâmica], uma

12 SUPER
tendência para a auto-cons- universos anteriores, ca-
trução de biosferas cada da um dos quais tem sido
vez maiores e mais com- cada vez mais «amigável»
plexas», diz Kaufmann. A para a vida. Esta é uma ver-
sua ideia é que a Segunda são evolutiva do princípio
Lei, que afirma que a desor- antrópico forte. Se assim
dem de um sistema fechado fosse, deveria existir uma
cresce sempre, é importan- espécie de código gené-
te mas não decisiva. tico cósmico que evoluiria
Para o bioquímico e pré- de acordo com a seleção
mio Nobel Christian De natural...
Duve, que foi um dos pen-
sadores mais criativos na PARA STEPHEN WOLFRAM,
unificação da biologia e UM GÉNIO DA MATEMÁTICA
da cosmologia, «a vida e que escreveu o seu primei-
a mente não surgem co- ro artigo científico aos 15
mo resultado de acidentes anos e que, em 1985, criou
aleatórios, mas como uma o programa Mathemati-
manifestação natural da ca — um programa muito
matéria». Para De Duve, a difundido para cálculos
consciência é uma expres- numéricos e simbólicos —
são tão fundamental do os processos naturais são
ISTOCK

Cosmos como a própria vi- mais bem compreendidos


da. Por seu lado, outro dos como uma série de algo-
grandes cientistas do século passa-
do, o físico e matemático Freeman
OS PROCESSOS ritmos iterativos, repetidos vezes
sem conta, dando resultados cada
Dyson, eleva a tendência da cons-
ciência para exercer um controlo
NATURAIS vez mais precisos: «subjacente a to-
dos os fenómenos complexos que
crescente sobre a matéria inanima-
da a uma lei da natureza e, na esteira
SÃO MELHOR vemos na física está um programa
simples que, com tempo suficiente,
de Barrow e Tipler, acredita que ela
desempenhará um papel funda-
ENTENDIDOS reproduziria o nosso universo em
todos os seus pormenores». Os fí-
mental no destino final do cosmos.
COMO UMA SÉRIE sicos da teoria das cordas adotaram
esta ideia de «darwinismo cósmico»
MAS HÁ OUTROS QUE SEGUEM UM
CAMINHO DIFERENTE. Para Lee
DE ALGORITMOS quando surgiu a energia escura, a
força misteriosa que acelera a ex-
Smolin, especialista em gravitação
quântica, tudo o que nos rodeia é o
ITERATIVOS E pansão do nosso universo. Introdu-
zindo-a nos seus cálculos, desco-
produto de um processo evolutivo
à escala universal. Segundo Smo-
REPETITIVOS briram, para sua surpresa e alarme,
que a teoria gera na ordem de 10
lin, novos universos bebés nascem elevado a 150 (um um seguido de
no interior dos buracos negros que tantes universais que implicam a 150 zeros) universos possíveis. Por-
existem no nosso devido aos big- existência de muitos buracos ne- que é que este surgiu de entre tan-
-bangs que aí ocorrem naturalmen- gros coincide precisamente com tos milhões de milhões de milhões
te. No entanto, as constantes e as o valor que devem ter para que o de milhões de possibilidades? Fí-
leis da física variam subtilmente de nosso universo transborde de vida. sicos da estatura de Andrei Linde e
um universo-bebé para outro e se- Nós somos «danos colaterais». Leonard Susskind apontam que o
guem um processo de seleção na- Mas a pessoa que mais refletiu aparecimento da vida é uma variável
tural que favorece a «reprodução» sobre este assunto foi um curioso que condiciona a escolha.
de universos que geram mais uni- personagem que foi funcionário ju- É aqui que a ideia da existência
versos-bebés. Por outras palavras, dicial e senador pelo Oregon, James de múltiplos universos vem a calhar
favorece o aparecimento de uni- N. Gardner. A sua ideia central é a para resolver o problema do ajuste
versos com estrelas que terminam Hipótese do Biocosmo Egoísta, uma fino. Uma vez que existe um núme-
a sua vida como buracos negros. versão à escala cósmica da ideia do ro quase infinito de universos, cada
Para Smolin, a vida não é mais do gene egoísta de Richard Dawkins. um deles tem as suas próprias cons-
que um subproduto do verdadeiro Para Gardner, o nosso universo, tão tantes físicas definidas. Entre todos
objetivo das leis naturais: produ- bem concebido para suportar a vi- eles, haverá alguns em que essas
zir universos com buracos negros. da, não é mais do que o resultado constantes têm o valor adequado
Acidentalmente, o valor das cons- da evolução de uma longa série de para permitir a existência. e

SUPER 13
FALANDO DO CÉREBRO

NEUROCIÊNCIA
DO ESQUECIMENTO

COMO E
PORQUÊ NOS
ESQUECEMOS?
Embora muitas vezes possa parecer muito

SHUTTERSTOCK
frustrante, o esquecimento é um processo
necessário para reiniciar a mente e
garantir a nossa estabilidade emocional.
Um mecanismo complexo no qual estão
envolvidas diferentes áreas do cérebro.

Texto de EDUARDO MESA LEIVA, jornalista

É
preciso ter começado a per- a encefalite, o acidente vascular cerebral, a esclerose
der a memória, mesmo que múltipla, a doença de Parkinson, a hidrocefalia, a epi-
seja só em retalhos, para per- lepsia, a meningite, os tumores cerebrais ou mesmo a
ceber que essa memória é o depressão podem também afetar significativamente a
que constitui toda a nossa vi- nossa capacidade de recordar.
da». Com esta frase, o reali- As memórias são essenciais para dar sentido ao nosso
zador de cinema Luis Buñuel presente, para dar contexto à nossa vivência quotidia-
assinalou um problema que na. Sem elas, seria muito difícil lidar com a vida diá-
demasiadas pessoas têm de ria. No entanto, quando examinamos esse «passado»,
enfrentar. No seu livro «O apercebemo-nos de que, na realidade, ele é constituído
mundo secreto do cérebro», por imagens, cheiros, sons, pensamentos ou emoções
a neuropsicóloga Catherine Loveday apresenta dados que se encontram de forma um tanto desconexa. «Cada
reveladores: cerca de 36% das pessoas que sobrevivem vez que nos lembramos de um momento da nossa vida,
a um traumatismo craniano grave sofrem de amnésia, construímo-lo de novo. Fazemo-lo através dos blocos
mais de 10% das pessoas com mais de 65 anos sofrem de construção da memória episódica — a sensação de
de demência e mais de 70% das pessoas que sofrem de ter estado em algum lugar — e da memória semântica
SIDA sofrerão de problemas de memória. Com efeito, — conhecimento concreto sobre o nosso mundo (por

14 SUPER
exemplo, que a neve tende a aparecer durante os meses
de inverno) e sobre a nossa história pessoal (como a es-
cola que frequentámos)», diz Loveday. Amnésia infantil
Por conseguinte, a memória é fundamental para sus-
tentar a nossa auto-consciência. A maioria das pessoas
tem fortes recordações de factos ocorridos entre os 15
Q ual é a sua primeira memória, aos 5, 4, talvez 3 anos de
idade? A nossa biografia é reconstruída através de fo-
tografias, vídeos ou histórias dos nossos pais. Estávamos lá,
e os 30 anos. Uma fase crucial na formação da persona- mas não nos lembramos de nada. A maioria das pessoas não
lidade e da identidade, uma altura em que são tomadas consegue encontrar qualquer recordação da sua vida antes
muitas decisões que mudam a vida. A ciência chama dos 5 ou 4 anos de idade. O fenómeno a que praticamente
a este fenómeno o «blip de reminiscência». Os espe- ninguém consegue escapar tem um nome: amnésia infantil,
cialistas acreditam que a função-chave da memória é como explica Catherine Loveday, doutorada em neuropsico-
dar-nos um sentido de coerência, ligando os aconte- logia pela Universidade de Westminster.
cimentos do mundo exterior às nossas representações No final do século XIX, o psicólogo alemão Hermann Eb-
internas, dando-nos assim um sentido de continuida- binghaus cunhou o termo «curva do esquecimento». De
de. Embora seja importante ser exato em termos de acordo com a sua investigação, a maioria das coisas que
conhecimento semântico (por exemplo, saber onde esquecemos acontece pouco depois de as aprendermos.
vivemos), a exatidão na recordação das nossas expe- A partir desse momento, o ritmo de esquecimento abranda
riências não é tão importante. Ao recordar, como já foi e a curva torna-se mais plana. O psicólogo concluiu tam-
dito, reconstruímos episódios e momentos da nossa bém que a curva de esquecimento muda com a idade e
vida. Mas também esquecemos para nos lembrarmos que as crianças esquecem muito mais depressa.
do que é realmente importante. Esquecer e lembrar Várias teorias tentam explicar este fenómeno. Algumas
são, portanto, duas faces da mesma moeda da nossa sublinham o facto de que, para sermos capazes de gerar
identidade. «Uma caraterística fundamental do nos- memórias autobiográficas, temos de ter uma certa cons-
so pensamento, da nossa memória, é o esquecimento. ciência de nós próprios. Outra explicação possível para a
É a grande quantidade de informação que deixamos amnésia infantil centra-se na aquisição da linguagem. En-
completamente de lado. Eu postularia que a nossa ca- quanto não dominar a linguagem, a criança não é capaz de
pacidade de esquecer é uma das pedras angulares do construir um relato da sua própria existência que possa ser
pensamento humano, porque envolve a capacidade recordado mais tarde. Outra hipótese aponta para um hipo-
de abstração. Se estivermos a pensar nos pormenores campo ainda imaturo na primeira infância, incapaz de gerar
de tudo, de todos os conceitos, não nos conseguimos memórias duradouras.
concentrar no essencial. Essa capacidade de extrair a
informação essencial e deixar de fora os pormenores
continua a ser exclusiva do pensamento humano e é
algo que as outras espécies não têm e não consegui- para recordar em pormenor o que aconteceu, fica-se
ram implementar em nenhum computador», afirma o com muito pouca informação e procura-se compreen-
neurocientista Rodrigo Quián Quiroga. der o que aconteceu», diz o especialista.
De certa forma, o esquecimento é a antítese da re-
O QUE É O ESQUECIMENTO? cordação, pois se um representa uma perda de infor-
A memória e o esquecimento são vasos comunicantes mação, o outro demonstra sucesso na recolha de dados
no nosso processo de armazenamento de informação. relevantes para a nossa vida. No entanto, é preciso res-
Os especialistas definem o esquecimento como a inca- saltar que os dois processos não são necessariamente
pacidade de recuperar informação que foi previamente excludentes. «Para lembrar, é preciso esquecer. A re-
armazenada na memória. Um aspeto natural e comum lação entre o esquecer e o recordar é, de facto, com-
da memória devido a várias razões: interferência de ou- plexa e interligada. Embora possam parecer opostos,
tras memórias, deterioração causada pelo tempo ou co- muitas vezes trabalham em conjunto nos processos de
dificação inadequada da informação inicial. «Embora o memória. Em alguns casos, o esquecimento pode facili-
esquecimento possa parecer frustrante, é na realidade tar a recordação. Isto é conhecido como esquecimento
um processo necessário que ajuda o cérebro a dar priori- induzido pela recuperação», observa Jon Simons. Du-
dade às informações importantes e a manter a eficiência rante o processo de recordação, filtramos a informação,
no armazenamento da memória», afirma Jon Simons, eliminando dados relacionados mas irrelevantes. «Este
neurocientista cognitivo e diretor de um programa de processo ajuda a acelerar a recuperação das memórias,
investigação que procura compreender as regiões cere- reduzindo a interferência de reminiscências concor-
brais envolvidas na memória humana. rentes», continua o neurocientista cognitivo.
De facto, como diz o neurocientista Quián Quiroga,
podemos ficar surpreendidos ao descobrir a quantida- PARA QUE SERVE O ESQUECIMENTO?
de incrivelmente pequena de informação que o cérebro O esquecimento, dizem os especialistas, tem funções
processa e armazena. «O cérebro humano não procura essenciais para o nosso equilíbrio emocional e desenvol-
realmente recordar, procura compreender. Portanto, vimento pessoal. Não só nos ajuda a otimizar o arma-
não se utiliza a capacidade do cérebro, dos neurónios, zenamento da memória, eliminando informações obso-

SUPER 15
letas, irrelevantes ou menos importantes, permitindo
SHUTTERSTOCK

Nas pessoas entre os 80 e os ao cérebro dar prioridade e reter as informações mais


90 anos, o cérebro regista úteis, como também apoia a aprendizagem e a adapta-
memórias com um elevado bilidade, libertando espaço para guardar novos dados.
impacto emocional, como as Quando as memórias obsoletas e irrelevantes são esque-
primeiras experiências
amorosas.
cidas, libertam recursos cognitivos para codificar e reter
novas experiências, conhecimentos e competências.
A capacidade de esquecer também contribui para a re-
gulação emocional, permitindo aos indivíduos suprimir
ou atenuar memórias angustiantes ou traumáticas. Este
processo pode ajudar a proteger o bem-estar mental e
facilitar a superação de experiências difíceis. Desempe-
nha também um papel fundamental na construção da
identidade, uma vez que determina as memórias que os
indivíduos escolhem reter e a forma como se percepcio-
nam a si próprios ao longo do tempo. O esquecimento
seletivo de certas experiências ou aspetos do eu pode
influenciar a formação e a manutenção da identidade.
«De um modo geral, embora o esquecimento possa por
vezes ser entendido como uma limitação da memória,
desempenha funções cruciais na cognição, na adapta-
ção e no bem-estar emocional. É uma parte integrante
da forma como as nossas mentes organizam, hierar-
quizam e se adaptam ao fluxo constante de informa-
ções e experiências», conclui Jon Simons.
Então, porque é que o UM PROCESSO COMPLEXO
primeiro amor nunca é O esquecimento envolve interações complexas entre
diferentes áreas e mecanismos do cérebro. Embora a in-
esquecido? vestigação sobre a base neural deste processo sofisticado
ainda esteja a progredir, sabemos agora que certas re-

O s cientistas falam de uma verdadeira «sopa quími-


ca» quando nos apaixonamos, especialmente na
primeira vez. Durante a adolescência, o corpo humano
giões do cérebro desempenham um papel fundamental.
O hipocampo é uma região cerebral crucial, diretamen-
te relacionada com a memória, a recordação e a locali-
experimenta um aumento das hormonas sexuais estrogé- zação temporal. Uma das suas principais funções tem a
nio e testosterona, que, sem dúvida, disparam quando se ver com a geração e a recuperação de memórias, com
inicia uma relação. A serotonina, a oxitocina e a dopami- um impacto particular na nossa aprendizagem, uma vez
na permitem-nos experimentar sentimentos intensos de que estabelece as bases para a consolidação dos conhe-
recompensa, felicidade e ligação. cimentos que adquirimos. «As lesões do hipocampo
O primeiro amor deixa uma memória indelével nas nos- (causadas por acidente vascular cerebral, traumatismo
sas vidas. E, por mais que o tempo passe, permanece crânio-encefálico, encefalite viral, anóxia ou hipoxia)
inalterável perante o esquecimento. Como é que a ciên- podem provocar graves défices de memória, incluindo a
cia explica este fenómeno? A investigação de Catherine incapacidade de formar novas memórias, conhecida co-
Loveday, professora de Neuropsicologia na Universidade mo amnésia anterógrada», explica Simons. Um esque-
de Westminster, mostra que a adolescência é um dos pe- cimento que afeta todo o tipo de informação que impli-
ríodos da nossa vida mais permeáveis a memórias vivas e que uma associação: rostos-nomes, percursos-lugares,
intensas. A especialista efetuou um estudo exaustivo das palavras-objetos, acontecimentos, etc. Alguns estudos
memórias de pessoas com idades compreendidas entre sugerem que o hipocampo também está envolvido no
os 80 e os 90 anos. Muitas das suas recordações mais esquecimento seletivo de informações irrelevantes atra-
significativas referiam-se às suas primeiras relações amo- vés de processos como a separação de padrões.
rosas durante a adolescência. O córtex pré-frontal, em particular o córtex pré-
Trata-se de fases muito produtivas em que o cérebro re- -frontal dorsolateral, é outra região indispensável para
gista memórias com um elevado impacto emocional. Não lubrificar a maquinaria da memória e do esquecimen-
só com um elevado nível de recompensa, como os nossos to. Está envolvido em funções executivas como a aten-
primeiros amores ou aquelas amizades inquebráveis for- ção, a memória de trabalho e o controlo cognitivo. De-
jadas na adolescência, mas também com aquelas outras sempenha também um papel importante na supressão
memórias dolorosas que deixam uma marca indelével na de informações irrelevantes ou distrativas, que podem
nossa biografia. contribuir para o processo de esquecimento através de
mecanismos como a inibição da recuperação.

16 SUPER
SHUTTERSTOCK
O esquecimento tem uma
função protetora em
determinadas situações,
reforçando o nosso bem-
estar emocional e a nossa
resiliência, mas há que
encontrar um equilíbrio entre
o lembrar e o esquecer.

A amígdala está envolvida no processamento de esquecimento em determinadas condições. Em última


memórias emocionais e modula a consolidação e a re- análise, o esquecimento é um processo complexo e
cuperação da memória. Pode contribuir para o esque- multifacetado que envolve diferentes regiões e meca-
cimento motivado, suprimindo ou atenuando a recor- nismos cerebrais. «A investigação mais recente sugere
dação de memórias emocionalmente angustiantes. que envolve uma combinação de alterações sinápticas,
A formação e a manutenção da memória dependem dinâmica dos circuitos neuronais e modulação por sis-
da plasticidade sináptica, a capacidade das sinapses temas neuromoduladores», conclui o neurocientista
(ligações neuronais) de se fortalecerem ou enfraque- cognitivo Jon Simons.
cerem em resposta à atividade. A potenciação a longo
prazo (LTP) e a depressão a longo prazo (LTD) são duas QUANDO É QUE O ESQUECIMENTO É UM PERIGO?
formas de plasticidade sináptica que se pensa estarem Como já foi referido, o esquecimento pode desempe-
subjacentes à codificação e ao armazenamento das me- nhar um papel protetor em determinadas situações,
mórias. O esquecimento, por sua vez, resulta de meca- reforçando o nosso bem-estar emocional e a nossa re-
nismos como a poda sináptica, em que as ligações mais siliência em situações adversas. Nem sempre é a solu-
fracas ou não utilizadas são eliminadas para otimizar ção perfeita, especialmente quando envolve a negação
os circuitos neuronais. ou o apagamento de aspetos importantes da identidade
Os neurotransmissores, como a dopamina, a no- pessoal ou das experiências vividas. Por vezes, ques-
repinefrina e a acetilcolina, desempenham um papel tões não resolvidas ou emoções enterradas ressurgem
modulador nos processos de memória. As alterações mais tarde e podem levar a graves desequilíbrios psico-
na atividade destes sistemas neuromoduladores in- lógicos. Para lidar eficazmente com os desafios da vida,
fluenciam a codificação, a consolidação e a recupera- é necessário encontrar um equilíbrio entre o lembrar e
ção das memórias e contribuem potencialmente para o o esquecer.
Por vezes, o esquecimento pode tornar-se um fenó-
meno patológico que afeta gravemente a vida de uma
pessoa. Quando prejudica significativamente a capaci-
A poda sináptica elimina as dade de um indivíduo funcionar na vida quotidiana ou
indica uma condição neurológica, o alarme deve soar.

ligações mais fracas ou Se o esquecimento significativo ocorrer frequentemen-


te ou se houver um declínio cognitivo preocupante, é

não utilizadas para otimizar altura de consultar um especialista para avaliar a situa-
ção. «A deteção e intervenção precoces podem ajudar a
melhorar os resultados e a qualidade de vida das pessoas
os circuitos neuronais com esquecimento patológico», conclui Jon Simons. e

SUPER 17
Como funciona a memória
A
memória é a capacidade de armazenar e recuperar infor-
mações sobre experiências passadas, próprias e alheias.
Nem todas as experiências são retidas; cada pessoa «fil-
tra-as» de acordo com a sua importância. As memórias que
não são recordadas podem deteriorar-se com o tempo.

As rotas da memória
A informação adquirida é transmitida das
zonas sensoriais corticais para o hipocampo e
a amígdala, e depois para o tálamo e o corpo
mamilar. Existem circuitos paralelos que também
MEMÓRIA DE
transmitem informações na direção oposta. TRABALHO
Córtex frontal

Computador MEMÓRIA DE
pessoal LONGO PRAZO
100 000 Hipocampo e
áreas adjacentes
milhões
de bytes Córtex
frontal

A capacidade de memória
do cérebro varia entre

7000 GB a 2,5
milhões de gigabytes

COMO SE ESTABELECE
UMA MEMÓRIA
A memória de trabalho, que
dura segundos, analisa conti-
nuamente a realidade. Filtra RECEÇÃO
a informação para a memória VISUAL
de longo prazo. Este processo
depende do estado hormonal e
neuro-humoral de cada pessoa.

RECEPÇÃO
MEMÓRIA DE CURTO PRAZO - De milissegundos a segundos MEMÓRIA DE LONGO PRAZO

Partes Estes sinais O córtex frontal A utilização das As experiências


especializadas sensoriais recebidos do cérebro recebe informações importantes
do córtex são conservados a informação e recebidas é começam a ser
recebem sinais apenas durante torna-a disponível coordenada com codificadas com a
dos sentidos, frações de segundo. para utilização outras partes do ajuda do hipocampo
como a visão. imediata. córtex cerebral. e de outras áreas.

18 SUPER
O HIPOCAMPO NEURÓNIOS
Esta estrutura no lobo Uma memória é
temporal liga memórias de uma configuração de
lugares, pessoas e objetos, ligações armazenadas,
mas não as armazena. constituídas por
células nervosas ou
neurónios, que libertam
neurotransmissores.
Cada ponto de ligação
entre os neurónios é
designado por sinapse.

FORMAÇÃO DA MEMÓRIA
Informação Informações
recebida recebidas
Um estímulo Sinapse
externo provoca existente
a ativação
simultânea de
dois neurónios. Núcleo
Se um disparar,
o outro disparará Neurónio
Córtex de
no futuro.
associação visual
(movimento, Informações
localização) recebidas
Gânglio
Formação de
basal um circuito
Um terceiro
neurónio é
ativado. Um
dos neurónios É criada
que formam o uma
primeiro par nova
Córtex é estimulado, ligação
visual liga-se ao se- Aumento da
gundo e os três Nova
atividade
conectam-se. sinapse
Informações
Aumenta a recebidas
atividade
Os três
neurónios estão
Córtex de ligados entre
si. Se um deles
associação for ativado, É criada
visual os outros dois uma
Lobo temporal nova
medial (cor, também serão ligação
forma) ativados.
As sinapses
são facilitadas
Cerebelo
REDE EXPANSIVA
Existe uma rede de
MEMÓRIA HÁBITOS E armazenamento distribuído das
memórias. Isto significa que
EMOCIONAL COMPETÊNCIAS se uma parte se perder, muitas
Amígdala Cerebelo outras permanecerão ativas.

Neurónio
Informações vizinho
CÓDIGO ARMAZENAMENTO E RECUPERAÇÃO recebidas

De segundos a horas Um novo


neurónio é
assimilado
As memórias de curto Após a Quando necessário,
prazo transformam- codificação, uma a memória é
se em memórias de memória reside recuperada para
longo prazo. Ficam na região onde ser utilizada
relacionadas com o a informação foi como memória O circuito está ligado
contexto emocional. percepcionada. de trabalho. à rede de neurónios

SUPER 19
N O V A S T E C N O L O G I A S

O PAPEL CRUCIAL DO

WHISTLEB De Edward Snowden e Julian Assange a


Frances Haugen, Britanny Kaiser, Timnit
Gebru ou os jovens que denunciaram a
Meta em Barcelona. É preciso coragem
para arriscar o emprego, a liberdade ou
a vida para denunciar os abusos dos
governos e dos gigantes da tecnologia.
Sem whistleblowers, o resto do mundo
continuaria a viver na ignorância.

Texto de LAURA G. DE RIVERA, jornalista científica

Q
uando ele sai para dar en-
trevistas, certificamo-nos
de que ninguém o segue,
para que não saibam onde
vive», conta Francesc Fe-
liú, advogado especializado
em responsabilidade civil e
professor na Universidade
de Barcelona. Refere-se a
um jovem de 26 anos que te-
ve a coragem de denunciar
as condições desumanas em que vivia como modera-
dor de conteúdos para a Meta num dos seus subcon-
tratantes em Barcelona. Qual é o risco que este jovem
corre? «Estamos a falar de multas milionárias, há
muito dinheiro em jogo. Temos receio de que tentem
fazer alguma coisa para o coagir», responde Feliú.
SHUTTERSTOCK

Será o primeiro julgamento do género na Europa,


uma batalha de David contra Golias em que a situação

20 SUPER
LOWERS
denunciada clama aos céus, mas a máquina jurídica
do gigante digital é demasiado grande e tem demasia-
da experiência em sair ilesa dos conflitos. Mesmo que
descrevam cenários de arrepiar os cabelos, como o
NA
ERA DIGITAL
trabalho dos moderadores de conteúdos do Facebook
e do Instagram. Nos escritórios de um dos seus sub-
contratantes em Barcelona, a sua tarefa é examinar
imagens de crianças violadas e assassinadas, pessoas
que anunciam e cometem suicídio em direto, outras
que sofrem torturas e amputações, todo o tipo de sexo
não consensual.... Têm de ver os vídeos até ao fim, pa-
ra os etiquetar — é essa a sua missão —, classificando-
-os em várias secções de acordo com o grau de horror
e de violência do conteúdo. E têm de o fazer durante
horas, para quê? Não é para alertar a polícia quando
as cenas estão a ser transmitidas em direto. Nem se-
quer é para proteger diretamente os utilizadores do
Facebook. Não. O objetivo da Meta é treinar uma in-
teligência artificial com estas avaliações humanas dos
seus trabalhadores para que, no futuro, a moderação
possa ser feita por uma máquina.
As consequências para a saúde mental dos mode-
radores deste tipo de conteúdos, que são frequen-
temente jovens, são óbvias. Depressão, ansiedade,
perturbação de stress pós-traumático, perturbações
do sono, até ideação suicida, segundo os afetados. É
SHUTTERSTOCK

esta a batalha travada pelo jovem informador, de-


pois de um tribunal de Barcelona ter reconhecido a
sua doença psiquiátrica como um acidente de traba-
lho. Seguindo os seus passos, alguns dos seus colegas Muitos manifestantes pró-Assange exibiam cartazes com o
foram encorajados a intentar uma ação coletiva, nos slogan «Jornalismo não é crime», defendendo os direitos do
jornalista australiano.
mesmos termos. A ação, por danos e prejuízos, acusa
a Meta de crimes contra os direitos dos trabalhadores,
de danos por negligência grave e de integridade mo-
ral. Os queixosos, José M., David P., Ahmed M., Pedro do medo de enfrentar uma das empresas mais ricas e
M., Tiago Q. e Eriton S., pedem uma indemnização poderosas do mundo, estes whistleblowers decidiram
por responsabilidade civil de 150.000 euros à Meta, não ficar calados. Esta é a primeira ação penal contra
na qualidade de «responsável direto», e à CCC, Telus a Meta na Europa. Mas os seus casos não são únicos.
e Facebook Espanha, na qualidade de «responsáveis A empresa subcontratada pela Meta, a CCC Barcelo-
solidários e/ou subsidiários». na Digital Services, propriedade do grupo canadiano
Apesar das duras condições do contrato de confiden- Telus International, tem cerca de 2000 empregados, 20
cialidade que os moderadores de conteúdos tinham a 25% dos quais estão de baixa por doença, com uma
de assinar antes de começarem a trabalhar, e apesar elevada incidência de perturbações psiquiátricas.

SUPER 21
Em cima, manifestação em
Frankfurt a favor da libertação
de Julian Assange. Em baixo,
Brittany Kaiser, antiga diretora
de desenvolvimento de
negócios da Cambridge
Analytica. À direita, o logótipo

SHUTTERSTOCK
da Meta, uma das maiores
empresas de tecnologia do
mundo.

SHUTTERSTOCK
ASC / SAM BARNES / WEB SUMMIT VIA SPROTLIFE

Só eles podem denunciá-las, não só para defender


os seus próprios direitos, mas também para alertar o
mundo para o que está a acontecer e, aliás, para que
todos possamos proteger-nos e defender os nossos
direitos enquanto membros de sociedades democrá-
ticas. Para isso, ao enfrentarem grandes empresas
com uma pesada máquina jurídica, põem em jogo o
DENÚNCIAS DE ABUSOS, A PARTIR DO INTERIOR seu trabalho, a sua estabilidade económica, a sua cre-
Um ano antes, em 2023, a revista Time tinha revelado dibilidade... e até a sua liberdade.
as condições dramáticas dos moderadores de conteú-
dos utilizados por algumas grandes empresas tecno- DESPEDIDOS, PRESOS, PERSEGUIDOS...
lógicas nos países em desenvolvimento para limpar os Nos últimos anos, os casos de whistleblowers têm si-
dados com que treinam os seus algoritmos de apren- do numerosos e notórios, devido às repercussões que
dizagem automática. Esta informação nunca teria si- as suas revelações podem ter na vida de todos. Graças
do tornada pública sem as revelações dos empregados a eles, sabemos coisas como o facto de a Cambridge
que, no Quénia, Uganda e Índia, foram explorados Analytica ter utilizado os dados pessoais (incluindo
pela Sama, uma empresa californiana que etiquetava gostos, personalidade, inclinações políticas ou cor
conteúdos para a OpenAI, Google, Meta e Microsoft. da pele) de 87 milhões de pessoas que tinham contas
Graças ao facto de alguns deles terem decidido contar no Facebook para as atingir com propaganda política
como tiveram de ver e etiquetar verdadeiros vídeos de precisão durante a campanha presidencial de 2018
sangrentos e violentos de todos os tipos, durante mais nos Estados Unidos e durante o referendo do Brexit
de dez horas por dia, por cerca de dois dólares à hora, no Reino Unido. Uma violação flagrante dos direi-
sem qualquer serviço de cuidados mentais paliativos, tos humanos que poderíamos ainda desconhecer se
hoje o resto do mundo pode conhecer o lado negro não fossem as confissões de dois whistleblowers que
destas empresas. trabalhavam para a CA na altura: Britanny Kaiser, a
As ilegalidades e injustiças cometidas pelas plata- sua diretora de negócios, e Chris Wylie, o seu diretor
formas e tubarões da Internet são escorregadias. Difí- de análise de dados. «O Facebook não é apenas uma
ceis de provar. É por isso que o papel dos whistleblo- empresa. É uma porta para as mentes dos americanos
wers é essencial: trabalhadores que, a partir do seu e Mark Zuckerberg deixou essa porta aberta para a
interior, as viveram em primeira mão ou as testemu- Cambridge Analytica, para os russos e sabe-se lá para
nharam e têm provas fiáveis dessas irregularidades. quem mais», disse Wylie ao The Guardian.

22 SUPER
Outra whistleblower que forneceu informações meçou quando Zang estava a fazer o seu trabalho,
cruciais foi a cientista de dados Frances Haugen. «Es- especializando-se na deteção de bots na rede social.
tou aqui porque acredito que os produtos do Face- Rapidamente, percebeu que esses bots ou contas
book [Nova Meta] prejudicam as crianças, criam di- falsas estavam a incitar ao ódio e a conflitos civis em
visões e enfraquecem a nossa democracia. Estes são países como o Brasil, as Honduras, o Azerbaijão, o
problemas que podem ser resolvidos. É possível ter Afeganistão, a Coreia do Sul e a Bolívia. Ao inves-
redes sociais mais seguras e que respeitem a liberda- tigar, apercebeu-se do que se passava: o algoritmo
de de expressão», disse ao Senado dos EUA. «Há uma de recomendação e hierarquização de conteúdos
coisa que espero que as pessoas retirem das minhas nos feeds ajuda os conteúdos que suscitam emoções
revelações: O Facebook pode mudar, mas não o vai de raiva, ódio ou medo a espalharem-se como fogo
fazer por sua própria iniciativa». Antes de se demitir num palheiro.
do seu cargo, levou consigo uma pilha de documen- O problema é que, quando comunicou o facto aos
tos internos que mostravam que a Meta tinha conhe- seus superiores, não obteve a resposta esperada. Nin-
cimento de dezenas de falhas de funcionamento com guém se preocupou em resolver o problema. Pelo
consequências graves para pessoas de todo o mundo contrário. Em 2020, os seus chefes convidaram-na a
e não tinha feito nada para as corrigir. E entregou-os deixar a empresa com uma indemnização de 64 000
ao The Wall Street Journal, à Securities and Exchange dólares em troca do seu silêncio. O sentido ético de
Commission e ao Senado americano. Zang obrigou-a a recusar. Uma vez que não tinha
De acordo com os documentos revelados por Hau- conseguido resolver nada a partir do interior da em-
gen, os adolescentes foram um dos grupos que sofre- presa, decidiu tornar o assunto público na imprensa.
ram tais efeitos na sua saúde mental. Vários estudos
internos realizados em 2020 reconheceram que as re- DESPEDIDA POR TER FALADO
des sociais da Meta agravam ou incitam à depressão, Outro informático, Guillaume Chaslot, que foi despe-
à ansiedade, ao isolamento e aos distúrbios alimenta- dido do YouTube (filial da Google) por ter revelado o
res, estando mesmo ligadas a um aumento das taxas que tinha descoberto, já tinha denunciado que os al-
de suicídio entre os jovens e os menores. goritmos que ordenam os conteúdos são prejudiciais.
Noutra investigação interna da empresa, tornada Chaslot descobriu que vídeos conspiratórios, violen-
pública pelo whistleblowers, verificou-se que o Fa- tos e de ódio são automaticamente colocados no to-
cebook não só acolheu dezenas de grupos extremis- po da lista assim que se seguem as recomendações da
tas nas suas páginas, como também promoveu e deu plataforma. A razão é simples e banal: o algoritmo de
prioridade aos seus conteúdos a outros utilizadores. inteligência artificial descobriu que este é o tipo de
Cerca de 64% de todos os seguidores de perfis de gru- vídeos que mais atrai a atenção dos utilizadores e sus-
pos extremistas aderem através dos algoritmos de re- cita mais reações. Por outras palavras, são «bons para
comendação da plataforma. A situação agrava-se nas o negócio».
regiões do mundo onde não se fala inglês. «No caso Dois outros whistleblowers que perderam o em-
da Etiópia, há 100 milhões de pessoas e seis línguas. prego por terem exposto a roupa suja da sua empresa
Os sistemas de deteção automática de páginas falsas são os engenheiros informáticos Timnit Gebru e Mar-
do Facebook só funcionam para duas dessas línguas», garet Mitchell, antigos chefes da equipa de ética da IA
observou Haugen no seu testemunho ao Senado dos da Google. O gatilho foi um artigo de investigação que
EUA em 2021. Também afirmou com desenvoltura — e escreveram com outros colegas em 2020, no qual exa-
com provas — que «o Facebook coloca os seus lucros minaram meticulosamente as falhas e os perigos de
astronómicos acima das pessoas. Não é uma questão grandes modelos linguísticos, como o BERT da Google
de alguns utilizadores da rede estarem zangados ou na altura ou o mais recente ChatGPT. O elevado con-
instáveis. Tornou-se uma empresa multimilionária à sumo de energia e a pegada de carbono, a utilização
custa da nossa segurança, incluindo a dos nossos fi- abusiva de mão de obra em países pobres, a amplifica-
lhos, e isso é inaceitável». ção de preconceitos e parcialidades e a manipulação
Um pouco antes, a sua colega Sophie Zang, tam- de utilizadores vulneráveis são alguns dos problemas
bém cientista de dados, tinha exposto o caos que es- que abordam no seu relatório. Teria sido bem-vindo
tava a ser causado em países politicamente instáveis e útil se os seus chefes tivessem tido alguma intenção
por contas do Facebook com perfis falsos criados de os resolver e corrigir. Mas o seu despedimento dei-
para manipular em massa a população. Tudo co- xou claro que não era esse o caso.

O algoritmo deteta que os vídeos de conspiração e de


violência suscitam mais reações e coloca-os no topo
porque são bons para o negócio
SUPER 23
«Em suma, os modelos linguísticos treinados com
É necessária sensibilização (e regu- grandes bases de dados não supervisionadas reti-
lamentação) para que os utilizadores radas da Internet transmitem visões hegemónicas
possam proteger-se e escolher os
serviços adequados.
implícitas que são prejudiciais para as populações
marginalizadas. Por isso, sublinhamos a necessidade
de investir recursos significativos no controlo e na
documentação destas bases de dados», lê-se no ar-
tigo. Nas conclusões, os autores referem que «neste
artigo, convidámos os leitores a dar um passo atrás e
a perguntar: são inevitáveis ou necessários modelos
linguísticos cada vez maiores? Que custos estão asso-
ciados a esta linha de investigação e o que devemos
considerar antes de a seguir? Será que o domínio do
processamento da linguagem natural ou os públicos
que serve precisam de modelos linguísticos maiores?
Em caso afirmativo, como é que os podemos desen-
volver, mitigando simultaneamente os seus riscos? Se
não, de que é que precisamos em vez disso?
ASC

Uma solução para os abusos das grandes empresas


Guillaume Chaslot foi despedido do YouTube por ter revelado tecnológicas, como defende Gebru, é uma maior pro-
que o algoritmo dá prioridade a conteúdos violentos. teção dos whistleblowers que têm a coragem de de-

Represálias contra
whistleblowers que acusam os governos
P or causa do meu trabalho, o regime tomou grandes medi-
das para me silenciar, incluindo a recente tentativa de me
retirar do Gana, onde tenho asilo político. Sou forçado a ter um
ter o direito de defender. Agora, um rapaz de 13 ou 15 anos
que vê o que se passa no mundo, como somos presos por
causa de um tweet, como somos mortos ou temos de nos es-
estilo de vida nómada, raramente dormindo muito tempo no conder, não tomaria a decisão de se tornar jornalista. Porque o
mesmo lugar. A liberdade de expressão é um direito humano faria?»pergunta este jornalista de investigação, autor do livro
fundamental e, como jornalista, devo poder fazer o meu tra- autobiográfico Breaking Point: A Journalist’s Quest for Salvation
balho sem viver com medo ou em fuga», afirmou o nigeriano in Nigeria’s Chaos (Abibiman, NY & Londres, 2024) e detentor
David Hundeyin, perante o Conselho dos Direitos Humanos da de vários prémios internacionais, como o PwC Media Excellen-
ONU em setembro de 2023. ce Awards e o Gani Fawehinmi Impact and Integrity Awards.
«É um problema crescente, especialmente no Sul Global. Mas Na sua experiência, «a única ajuda prática que recebi foi de
não é só aí. Costumávamos conseguir exercer pressão sobre os uma organização da África Oriental chamada WAJSIC (Whis-
nossos governos, dizendo-lhes que no Norte Global estas coisas tleblowers and Journalists Safety International Centre), dirigida
não acontecem, que não acontecem assim. Mas já não pode- por um jornalista ganês, Anas Aremeyaw Anas. Foi esta organi-
mos. Veja-se o que aconteceu com Edward Snowden — um zação que me arranjou uma casa segura quando a minha vida
americano em exílio forçado na Rússia —, com Julian Assange estava ameaçada em 2022 e que fez o mesmo com o meu co-
na Europa e nos Estados Unidos, ou em França com Pavel Du- lega Ibanga Isine. Outras organizações internacionais, como
rov», diz este jornalista, que teve de fugir do seu país em 2020 o Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), os Repórteres
e recebeu asilo político no Gana, depois de ter publicado uma Sem Fronteiras, o Freedom of Expression Exchange (IFEX) ou
reportagem em que responsabilizava o governo nigeriano pelo o Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ), só têm ajudado
massacre de Lekki, em que os militares abriram fogo contra a po- marginalmente (nada mais, emitindo declarações que conde-
pulação civil que protestava contra a brutalidade policial . nam a perseguição de whistleblowers)», diz Hundeyin à Super
O caso de Assange, preso durante dez anos e forçado a de- Interesante. Hundeyin também é membro da rede Safe Box da
clarar-se culpado de espionagem para obter a liberdade, é, na plataforma Forbidden Stories, que se oferece para proteger as
opinião de Hundeyin, um sinal de alerta para todos os que têm informações de jornalistas ameaçados. Se forem presos, de-
a ideia de denunciar abusos ou ilegalidades de qualquer go- saparecidos ou mortos, a sua rede internacional de parceiros
verno. «E está a funcionar. Daqui a dez ou quinze anos, nesta mediáticos continuará a sua investigação e publicá-la-á em
parte do mundo — o Sul Global — duvido que haja pessoas todo o mundo. «É uma espécie de seguro de vida para os jorna-
dispostas a falar. Eu e os jornalistas como eu existimos porque listas, cujo valor reside na racionalidade do agressor (uma vez
nascemos em democracia, numa altura em que havia liberda- que nem todos os agressores se preocupam com as conse-
des civis que tomávamos como garantidas e que pensávamos quências)», afirma.

24 SUPER
Não é legal que a empresa acorde com o trabalhador uma
cláusula de confidencialidade que o impeça de denunciar
uma infração
nunciar os seus perigos ou irregularidades. Na mesma vulneráveis, como aconteceu em 2013 com Edward
linha, Haugen solicitou ao Parlamento Europeu que Snowden, um engenheiro informático que trabalha-
obrigue as redes sociais a emitir avaliações de risco va como administrador de sistemas para a Agência
dos seus conteúdos, bem como a uma maior supervi- de Segurança Nacional dos EUA e que, a certa altu-
são externa e a melhores canais de comunicação com ra, deixou de o poder fazer. A voz da sua consciên-
os utilizadores, quando se trata de resolver problemas cia estava a gritar demasiado alto. Assim, depois de
detetados por estes nas suas páginas. tomar precauções para não ser apanhado e fugir do
país, revelou à imprensa todas as provas que tinha
PROTEÇÃO JURÍDICA EUROPEIA PARA sobre a forma como a CIA e a NSA estavam a violar
OS AUTORES DE DENÚNCIAS o direito fundamental à privacidade dos cidadãos em
Em Espanha, a Lei 2/2023, que transpõe a Diretiva todo o mundo. Expôs os métodos de vigilância glo-
da UE relativa à denúncia de irregularidades de 2019, bal do programa PRISM, que dá à NSA acesso direto
tem como objetivo incentivar a empresa a trazer à luz a toda a informação (dados pessoais, conteúdo de
quaisquer infrações cometidas pela empresa para que mensagens, atividades em linha, conversas telefóni-
possam ser resolvidas. Para o efeito, oferece três ca- cas, registos... tudo) que empresas tecnológicas como
nais: a própria empresa através de um canal interno a Yahoo, AT&T, Microsoft, Google, Facebook e Apple
de receção de denúncias, gabinetes antifraude cria- guardam sobre os seus utilizadores. Fá-lo através de
dos pelo governo e, em casos urgentes, a divulgação Cartas de Segurança Nacional, mandados de busca
pública através da imprensa. Prevê ainda medidas de que não requerem autorização judicial. Além disso, o
proteção, a começar pelo princípio da confidenciali- prestador de serviços está proibido de avisar o utili-
dade: o whistleblower tem direito a que a sua identi- zador em questão de que cedeu os seus dados ao go-
dade seja mantida em segredo. São proibidas as repre- verno. «Cresci com a noção de que vivia num mun-
sálias, como o despedimento, a redução de funções, do onde as pessoas eram livres de comunicar entre si
etc. «Embora algumas destas punições sejam difíceis com privacidade, sem serem vigiadas ou julgadas por
de provar, como a não concessão de uma promoção», estes sistemas obscuros de cada vez que menciona-
afirma Juan Carlos Ortiz Pradillo, professor de Direito mos algo que viaja através de redes de comunicação
Processual na Universidade Complutense de Madrid. públicas. A NSA mentiu sobre a existência desta fer-
É também importante saber que não é legal a empresa ramenta ao Congresso em resposta a várias perguntas
acordar com o trabalhador uma cláusula de confiden- sobre as atividades de vigilância», explicou o jovem
cialidade que o impeça de denunciar uma infração. informático numa entrevista a Greenwald para o The
«O contrato de confidencialidade tem o mesmo valor Guardian. Atualmente, Snowden continua refugiado
que o papel higiénico. É inútil porque, quando se in- na Rússia: é a única forma que encontrou para evitar
tenta uma ação judicial para defender os seus direitos, ser processado por violar a dura Lei de Espionagem
pode-se utilizar como prova qualquer material a que dos EUA.
se tenha tido acesso legítimo no exercício da sua ati- Menos afortunados foram os seus contemporâ-
vidade», sublinha Feliú. neos, Chelsea Manning e Julian Assange. A primei-
De facto, todos somos obrigados por lei a denun- ra, enquanto trabalhava como analista de dados no
ciar os crimes de que temos conhecimento. Por outro exército americano, divulgou 750 mil documentos
lado, de acordo com o novo regulamento, o whistle- confidenciais sobre questões militares e diplomáti-
blower não pode ser objeto de responsabilidade pe- cas relacionadas com a guerra no Afeganistão, pelo
nal, laboral, civil ou administrativa pelo facto de ter que foi condenada de 2010 a 2017 por violação da lei
denunciado. de espionagem americana. Assange, fundador da
plataforma WikiLeaks, passou dez anos da sua vida
SEM PROTEÇÃO POR «SEGURANÇA NACIONAL» na prisão por ter tornado públicos segredos oficiais
Mas e se o que está a ser revelado são irregularidades que dizem respeito a todos os cidadãos do mundo,
ou crimes cometidos pelos próprios governos? Esta- relativos a crimes de guerra cometidos por soldados
mos a falar, por exemplo, de informações que podem americanos no Afeganistão, entre outras coisas. E só
ser classificadas como relacionadas com a segurança conseguiu obter a sua libertação submetendo-se à
nacional ou segredos militares? Nesses casos, não só chantagem de se declarar culpado de conspiração e
a Diretiva relativa à denúncia de irregularidades não divulgação de informações sensíveis de defesa nacio-
se aplica, como os whistleblowers ficam expostos e nal em junho de 2024. e

SUPER 25
S A Ú D E

Aos ricos (e saudáveis)


frutos secos
Engordam, são gordos... Estudos recentes revelam que
a má reputação dos frutos secos é injustificada. Eis
alguns dos seus benefícios para a saúde. ADEUS AO STRESS.
A inclusão de pistácios nu-
ma dieta saudável reduzirá a
Texto de ELENA SANZ pressão arterial e a frequência
cardíaca em situações de an-
siedade. Desta forma, a reação
ao stress diário é muito menos
acentuada e evita-se o desen-
volvimento de hipertensão e de
NÃO SE OXIDE. Seja numa salada, com iogurte ou como lanche a meio da tarde, comer uma outras síndromes cardiovascu-
mão cheia de frutos secos todos os dias fornece-nos mais antioxidantes do que a mesma lares. Quando complementado
quantidade de fruta e legumes. Esta é a conclusão a que chegou uma equipa de cientistas com exercício físico regular, a
da Universidade de Scranton, nos EUA, depois de analisar a quantidade destes compostos resposta biológica do organis-
presentes em nove variedades. O primeiro lugar do ranking é ocupado pelas nozes, que têm mo nestes cenários (taquicar-
quase o dobro de polifenóis – moléculas que protegem contra os radicais livres – do que as dia, constrição das artérias...)
amêndoas, os pistácios ou as avelãs, segundo a revista Food and Function. é ainda mais atenuada, como
concluíram Sheila G. West e os
seus colegas da Universidade
Estadual da Pensilvânia (EUA)
SEMENTES DE GIRASSOL PARA O CORAÇÃO. MAIS BOA DISPOSIÇÃO E na revista Hypertension.
Trinta gramas de sementes de girassol MENOS BARRIGA.
descascadas contêm cerca de 100 miligramas de Comer pinhões, nozes ou amên-
magnésio. E estudos científicos mostram que o doas aumenta os níveis de seroto-
consumo diário deste mineral reduz a inflamação nina – uma molécula que ajuda a
relacionada com todos os tipos de doenças transmitir sinais nervosos -, reduz (amendoim)
crónicas. Além disso, um artigo publicado no a sensação de apetite, combate
American Journal of Clinical Nutrition sugere que as insónias, reduz a gordura abdo-
a ingestão de magnésio está associada a uma minal e faz-nos sentir mais felizes,
redução do risco de morte súbita cardíaca. segundo um estudo das univer-
sidades de Barcelona e Rovira i
Virgili publicado no Journal of Pro-
teome Research. O efeito é muito
positivo para as pessoas obesas
CASTANHA DE CAJU CONTRA A DIABETES. Cerca de que sofrem de síndroma metabóli-
220 milhões de pessoas em todo o mundo têm de-
ca, frequentemente acompanhada
masiado açúcar no sangue, quer porque o seu corpo
de hipertensão e diabetes.
não responde corretamente à insulina, quer porque
não produz a hormona em quantidade suficiente, uma
condição conhecida como diabetes. A boa notícia
para essas pessoas é que o extrato das sementes da
castanha de caju, uma noz originária do Brasil, pode
ajudar os músculos a remover o excesso de açúcar da
corrente sanguínea, como demonstrou recentemente
um estudo da Universidade de Montreal, no Canadá.

26 SUPER
PARA PERDER PESO. REFORÇO DAS DEFESAS. DELÍCIA ANTI-COLESTEROL.
A longo prazo, comer frutos As amêndoas aumentam a Considerada uma noz gourmet pelo seu sabor deli-
secos de casca dura, como concentração de bactérias cado e pela sua textura suave, a noz de macadâmia
as amêndoas, ajuda-nos a intestinais benéficas que vivem no pode também orgulhar-se de possuir uma grande
perder os quilos a mais. Foi o cólon e fazem parte da defesa do quantidade de gorduras monossaturadas, numa
que demonstrou um grande organismo contra os micróbios. De concentração muito semelhante à do azeite. Além
estudo realizado pela Escola acordo com um estudo do Institute disso, os nutricionistas da Universidade Estadual da
de Saúde Pública de Harvard e of Food Research (IFR) do Reino Pensilvânia demonstraram que o consumo de nozes
publicado no The New England Unido, as propriedades prebióticas de macadâmia ajuda a controlar os níveis de coleste-
Journal of Medicine. destes frutos secos devem-se rol. De facto, a adição de um punhado destas nozes à
No extremo oposto estão as principalmente aos lípidos que dieta diária durante cinco semanas é suficiente para
batatas fritas, que os investi- contêm, que servem de alimento aos reduzir o mau colesterol (LDL) em 9%, como referem
gadores identificaram como o microrganismos. os investigadores no Journal of Nutrition.
alimento associado ao maior
aumento de peso.

STOP AO ALZHEIMER. Um estu-


INIMIGOS DO CANCRO. do publicado na revista Neuro-
Dietistas da Universidade do chemical Research sugere que
Texas, nos EUA, identificaram o extrato de noz – o fruto seco,
os pistácios como uma fonte depois de removida a sua fibra
de gama-tocoferol, uma subs- – tem efeitos protetores contra
tância que ajuda a reduzir o o stress oxidativo e a morte
celular no cérebro de doentes
risco de cancro do pulmão e da (força)
próstata. Para obter este efeito, de Alzheimer devido à ação da
bastam 55 gramas por dia, uma proteína beta-amiloide, que for-
quantidade que não afeta ne- ma as placas senis. Tudo graças
gativamente o índice de massa ao seu teor em ácido alfa-lino-
corporal. lénico, um ácido gordo ómega
3 com propriedades anti-infla-
(velocidade matórias que evita os danos nos
angular) neurónios e no seu ADN.

(noz)

(pistácio)

(amêndoa)
INFOGRAFIA: AQUILE

(avelã)

SUPER 27
B I O L O G I A

Os animais
perante a morte
A tanatologia comparada é uma das disciplinas científicas mais modernas.Analisa até que
ponto outras espécies podem ter um conceito da morte.

Texto de JAVIER RADA, jornalista cientista

A
primeira história passa-se Tantas perguntas... Será que Tahle-
no mar. A mãe orca carrega quah sabia que a sua cria estava morta?
o cadáver e fá-lo-á durante Será que foi a dor ou o luto que motivou
dezassete longos dias. Se- este comportamento invulgar? Ou apenas um meca-
gura a sua cria morta com nismo cego para assegurar os cuidados maternos em
o focinho (porque não tem espécies com poucos descendentes? Poderá ser uma
mãos para a abraçar). Mal terapia, uma forma de aliviar a dor? Saberá esta orca
partilharam meia hora de o que é a morte?
vida, e agora luta contra as A segunda história passa-se na floresta. Um gambá
correntes do mal chamado acaba de ser surpreendido por um predador, digamos
Oceano Pacífico. que é um leão da montanha. Não há tempo para se es-
Está subnutrida (há falta conder, tudo está perdido, e então a cortina abre-se,
de salmão) e custa-lhe muito segurá-la, uma dança começa uma representação que Shakespeare teria
que exige a um cetáceo, uma motivação hercúlea (per- adorado: a representação do ser e do não ser.
correrá 1600 quilómetros). Algo poderoso está a levar Na lente do olho do puma, o gambá parece morto.
esta mãe a carregar o morto nesta dança macabra que Imóvel, rígido, ele põe a língua para fora, que de re-
os cientistas — os mesmos que apelidaram esta orca de pente adquire uma cor azul horripilante. Através de
Tahlequah — ainda não conseguem decifrar. glândulas, exala o fedor de carniça em decomposição.

28 SUPER
Mesmo que

SHUTTERSTOCK
os animais
compreendam a
não-funcionalidade
irreversível da
morte, podem não
compreender que
ela é inevitável e
que todos morrerão
mais cedo ou mais
tarde.

Merece um Óscar! Ele reuniu os elementos certos na dos com a cena (e se tem um cão ou um gato e é um
sua atuação: minimizar os sinais vitais, cheirar mal, pouco sensível... é melhor saltar o parágrafo se-
mudar de cor... E aposta tudo ou nada, e o felino aca- guinte). Verificam com gótico pavor que o cadáver
ba por se ir embora: que nojo. O gambá «ressuscita» não tem rosto. Foi comido pelo cão, e fê-lo apesar
e põe-se a andar. Acaba de utilizar uma das estraté- de ter restos de comida no saco roto de ração. E mais
gias de defesa mais surpreendentes e originais, que as uma vez, como no caso da orca, os cientistas deba-
serpentes também utilizam: é a tanatose, a mimese tem às cegas....
perfeita da própria morte. Porque é que o cão mordeu a cara se tinha comi-
da? Saberia que o seu dono partira e que não voltaria?
FOME OU INSTINTO Porque é que numa percentagem tão elevada destes
A terceira história será macabra (devemos avisar), casos (cerca de 70%) devoram a cara, precisamente
mas também pode ser tristemente bela. Passa-se a parte em que o animal procura uma resposta emo-
numa cidade, num apartamento demasiado sosse- cional do seu humano? Porque é que não atacou as
gado, e acontece mais vezes do que gostaríamos de entranhas ou outra zona, como faria se estivesse a es-
acreditar. O dono de um cão sofreu um ataque car- gravatar na natureza?
díaco fatal. Cai sem aviso prévio e passam-se alguns Peço desculpa por estas cenas e por tantas per-
dias, cadáver e animal sozinhos, fechados. Quando guntas sem resposta. «Este comportamento nasce
os serviços de emergência entram, são confronta- inicialmente de um amor que o cão sente pelo hu-

SUPER 29
mano», tranquiliza-nos (um pouco) Susana Monsó, venção do homem», e se se é que tu, rouxinol, «não
filósofa especializada na mente dos animais. «E em- nasceste para a morte, ó pássaro imortal»).
bora seja uma especulação, não excluo que comer o Para o romântico Keats, animais como o rouxinol
seu humano seja também uma forma de acalmar a sua eram imortais porque não conheciam a sua própria
própria angústia», defende. morte. Mas o que saberia disso a baleia que carrega
Perdoem estas cenas em que , no fundo se descreve o cadáver, o gambá que imita a morte para salvar a
a mesma morte (se é que a morte pode ser igual pa- vida, o cão que lambe o rosto frio entre gemidos de
ra todos; se é que a morte, como escreveu John Keats frustração?
num dos seus versos mais recordados, não é «uma in- É precisamente a isto que uma das mais jovens disci-
plinas científicas está a tentar responder: a tanatologia
comparada. «É muito recente, sim, apenas algumas
pessoas no campo da cognição comparada conhecem

Enterros e falsos o termo, de facto», explica Antonio José Osuna Mas-


caró, biólogo e especialista em cognição comparada e

funerais psicologia animal. Como se se tratasse de um verda-


deiro crime escrito por Arthur Connan Doyle, vamos

N ão encontrei nenhuma prova de rituais de enterro entre


os animais», explica a filósofa Susana Monsó. A nível an-
tropológico, a narrativa do enterro tem funcionado bem para
tentar aqui lançar alguma luz sobre a escuridão...

SOBREDIMENSÃO HUMANA
nós, humanos. Nos registos paleontológicos, assim que os Até que ponto é que as outras espécies podem ter um
encontramos, atestamos que já éramos humanos, uma es- conceito da morte? No tempo de Keats, muitos teriam
pécie avançada e consciente. «Mas isso não significa que os respondido que não. Onde estão os seus cemitérios, as
humanos não compreendessem a morte antes destes ritos», suas orações, os seus círculos de luto, os seus poemas e
explica Antonio José Osuna Mascaró. É possível que antes de epitáfios? Para continuar, então, deveríamos começar
começarmos a enterrá-los tenhamos praticado algum tipo de com o que Monsó, autor do ensaio Schrödinger’s Pos-
canibalismo, um ritual praticado na Europa há 15 000 anos, de sum: How Animals Live and Understand Death ( Plaza
acordo com vários estudos. Comer os nossos entes queridos y Valdés), chama de «conceito mínimo de morte».
para manter uma parte deles connosco. Durante milénios, a morte foi o nosso grande exa-
«Existem estudos sobre enterramentos noutras espécies, mas gero. Temos tendência para a intelectualizar. Keats e
isso não significa de forma alguma que o façam com a mes- o poeta Joan Margarit disseram-no: nós inventámo-
ma motivação que os humanos», explica Osuna. Os elefantes -la. Levámo-la ao paroxismo de construir pirâmides.
asiáticos, por exemplo, em certas ocasiões, ao que parece, Vemos um inocente cipreste e assustamo-nos. «A
enterram as suas crias mortas. «Pode ter a ver com a forma co- morte é muito importante para os seres humanos e
mo lidam com as suas emoções. Pode ter a ver com o facto de tendemos a sobrevalorizar o nosso conceito dela, e
acharem desagradável o apodrecimento de um ente querido. depois também tendemos a subvalorizar o que as ou-
Não sabemos realmente e penso que é demasiado cedo para tras espécies podem fazer», diz Osuna. Sob este jugo
dar uma resposta definitiva», conclui. Não parece, no entanto, cultural, é compreensível que tenhamos negado aos
que se trate de tradições culturais. «Mas gera um fascínio gi- animais o acesso à tanatologia (a disciplina científica
gantesco para nós, porque é algo que nós próprios fazemos», que a estuda).
diz Monsó. Nos elefantes, o luto pela perda de um ente que- Tinha de ser uma fotografia — uma construção sim-
rido foi descrito em vários estudos. Os elefantes andam de bólica, claro — a começar a rasgar o véu.... Em 2009,
cabeça baixa, com as orelhas caídas e deambulam como se
estivessem perdidos.
No caso dos corvos, as dúvidas são menores. Quando um
corvo morre, o grupo costuma ficar à sua volta em círculo,
A morte é muito
dando a imagem de um funeral. Mas o que praticam não é
realmente uma despedida, estão a aproximar-se para apren-
importante para os seres
der. «Prestam atenção aos cadáveres dos seus companheiros
animais e às circunstâncias em que aconteceram, para apren-
humanos e tendemos a
derem a evitar o que é perigoso», explica Monsó.
No caso dos animais de estimação que devoram os donos, sobrevalorizar o nosso
trata-se de um fenómeno comum que não é estudado, no
entanto, na tanatologia comparada porque, segundo Mon- conceito dela, e também
tendemos a subvalorizar o
só, esquecemos nas sociedades ocidentais que houve um
tempo em que os humanos também comiam os seus entes

que as outras espécies


queridos. «Se hoje comêssemos os mortos, acharíamos tão
fascinante como quando vemos os elefantes a enterrar os
seus mortos», conclui.
podem fazer
30 SUPER
espanhol cunhou. «Em vez de começar a casa pelo
telhado — se os animais têm o conceito meio humano
da morte — começamos pelo mínimo que um animal
deve compreender», diz Monsó.
A sua tese é que provavelmente não são necessárias
capacidades cognitivas tão amplas ou especiais para
a compreender num sentido básico. Se a morte é tão
comum, a sua compreensão também deveria ser co-
mum. Tradicionalmente, «o conceito de morte tem
sido considerado de uma forma monolítica, como al-
go que ou se tem na sua totalidade ou não se tem», diz
Monsó. Mas este não é o caso, mesmo entre as diferen-
tes culturas humanas, e muito menos se pensarmos,
por exemplo, nas crianças, que, apesar de não terem
ASC

um conceito profundo, quando os seus avós morrem,


Perante um chimpanzé morto, os companheiros que tinham uma conseguem compreender alguns aspetos. «Não vejo
forte ligação com o chimpanzé sofrem a sua perda e ficam de luto. uma distinção binária de tudo ou nada, mas uma gra-
dação em que compreendem cada vez mais o que é is-
so que estamos chamando de morte», explica Osuna.
foi publicada uma fotografia na National Geographic Para o demonstrar, trabalham com a premissa da
que deu a volta ao mundo. É outra cena de morte. «não-funcionalidade irreversível». O objetivo é de-
Mostra uma chimpanzé com cerca de 50 anos. Morta terminar se os animais conseguem compreender que
num carrinho de mão, está rodeada por um grupo de já não há funcionalidade num cadáver (ou seja, a au-
chimpanzés que, atrás de uma vedação, amontoados, sência dos elementos da vida, como o movimento, a
parecem atentos, compassivos (aos olhos humanos), respiração, a resposta às ações de outros, etc.), e se
olhando para o cadáver, como que hipnotizados, co- sabem que é irreversível (que, sem necessidade de
mo se fosse o funeral do seu líder. compreender o tempo de forma abstrata, o passado
A macaca morta chamava-se Dorothy e é famo- ou o futuro, também modificam as suas expetativas).
sa entre os estudiosos da tanatologia comparada. «É saber que os mortos não fazem as coisas dos vivos
Apesar de ser muito difícil determinar quais eram e que isso não se pode reverter», diz Monsó.
as verdadeiras motivações daqueles ani-
mais, apesar de haver um antropocentris-
mo latente na fotografia, nunca mais nada
voltou a ser o mesmo. «Esta fotografia foi
como um catalisador para este debate»,
explica Monsó. Os cientistas quebraram o
tabu: talvez os animais também compreen-
dam a morte. É nisso que Monsó e Osuna
acreditam. E é por isso que defendem este
«conceito mínimo de morte» que o filósofo
SHUTTERSTOCK

O gambá, quando em perigo perante um puma, fica


SHUTTERSTOCK

imóvel, rígido, com uma língua azul e um fedor de


morte que é um grande dissuasor para o seu atacante.

SUPER 31
Porque é que carregam os cadáveres
das suas crias?
O luto está bem documentado em muitas espécies», diz An-
tonio José Osuna Mascaró. Verificou-se, por exemplo, que
nos chimpanzés, quando um indivíduo com o qual tinham uma
dias e depois a larguem, mas por vezes podem demorar quatro
meses. «Estamos a estudar se os primatas são particularmente
propensos a carregar crias mortas porque têm mãos», expli-
forte ligação morre, os sobreviventes sofrem a sua perda, al- ca Osuna. Mas os cetáceos também o fazem, e isso deve-se,
guns até se deixam morrer à fome. Mas o luto não implica saber segundo este especialista, ao facto de apresentarem um com-
o que é a morte, porque pode haver luto sem ela. portamento epimelético, ou seja, quando um indivíduo ajuda
Diferentes teorias tentam explicar porque é que algumas mães outro em caso de dificuldades, como acontece quando uma
carregam as suas crias mortas. «Não sabemos porque é que orca ajuda outra a subir para respirar.
isso acontece», diz Susana Monsó. Não temos uma hipótese Alguns estudos sugerem que, nos primatas, talvez o toque
única que possa explicar todos os casos observados. Há de- do pelo dos animais os estimule a continuar a carregar a
masiadas variações de comportamento. Os cientistas estão a cria morta. Mas, pela forma como se comportam em rela-
tentar determinar se estes animais sabem que a cria morreu e se ção ao cadáver, parecem aperceber-se de que não estão
o seu comportamento extremo se deve à sua compreensão do vivos (muitas vezes apodreceram ou mumificaram, exalam
acontecimento. Para Monsó, é mais provável que esteja relacio- odores e perderam partes). Por vezes, como no caso dos
nado com estratégias de reprodução. Isto só se verificaria nas cães, passam de os lamber a comer pedaços, e os cientistas
espécies que têm poucas crias e um período de criação mais especulam se não estarão a acalmar a sua angústia desta
longo, com grande cuidado para as levar até à maturidade (tra- forma. «O facto de um chimpanzé ou macaco carregar uma
dicionalmente designadas em biologia por «estratégias K»). cria durante muito tempo não significa que reconheça ne-
Em maio deste ano, foi noticiado que uma chimpanzé chamada cessariamente que esta morreu, mas estes comportamentos
Natalia passou mais de três meses a velar a sua cria num jardim representam certamente uma oportunidade de aprender
zoológico em Valência. O mais frequente é que passem alguns com a morte», conclui Osuna.

funcionalidade do cadáver e a sua irreversibilidade,


tanto mais que é um caçador eficiente, cujo negócio é
precisamente a morte.
O caso do gambá demonstra não como este marsu-
pial, que apenas procura sobreviver, entende a mor-
te, mas como o seu predador a entende, pois com a
tanatose ele atua como se fosse um espelho, repre-
sentando as caraterísticas dessa ‘não-funcionalidade’
tal como aparecem na mente do animal que o quer
comer. «É um mecanismo de defesa que nos está a
mostrar algo sobre a cognição do predador», explica
Susana Monsó. «Se chamamos a isso compreensão ou
não, depende da nossa linguagem e de onde quere-
mos traçar as linhas de fronteira», acrescenta Osuna.
No caso do cão, se os humanos ainda praticassem
ASC

Na imagem, um chimpanzé carrega uma cria morta, um o canibalismo ritual, será que o veríamos de forma
comportamento comum entre os primatas. diferente? Pensaríamos o mesmo se ele enterrasse
o seu dono em vez de o comer? Obviamente, como
disse Margarit, um cão nunca inventará uma perso-
Se voltarmos ao caso da orca, é muito provável que nagem fictícia como a do filme de Bergman O Sétimo
este mamífero marinho, um predador social com uma Selo (cuja co-estrela é a própria morte), mas isso não
cognição sofisticada e flexível, compreenda a não exclui que tenha conhecimento. Os humanos, além

Mecanismos como a tanatose mostram-nos algo sobre


a cognição da morte por parte dos predadores, uma vez
que funcionam como se fossem um espelho

32 SUPER
Na imagem, uma orca empurra o cadáver da
sua cria. Esta atitude tem sido observada em
vários indivíduos, que chegam a arrastar a cria
durante quilómetros.

preendemos realmente um tal oxi-


moro — o fim infinito — para além
do papel? Nas suas experiências,
Osuna demonstrou (até agora em
estudos preliminares) que as cata-
tuas podem compreender quando
a funcionalidade se perde irrever-
sivelmente, e não precisam do in-
finito ou dos discursos ontológicos
de Heidegger para o fazer.
«Nem medo nem esperança

ASC
acompanham o animal que está a
morrer», escreveu Keats. «Pen-
disso, têm uma linguagem que funciona como um ca- so que há muitas perspetivas com as quais podemos
talisador: não conhecemos a morte como algo que ex- aprender sobre a morte. O desafio é colocarmo-nos
perimentámos diretamente, mas através do que nos no lugar de outras espécies e tentar perceber não só se
foi dito sobre ela. elas a entendem como nós, mas de que forma a enten-
dem», conclui Osuna. E isto leva-nos à mais recente
RITUAIS DE MORTE tragédia...
Consideremos agora os elefantes asiáticos. Embora Num artigo publicado na revista Aeon, a neurocien-
não se saiba muito bem o que ocorre aí, verificou-se tista Ana Todorovic contou a história de Nadia, a sua
que, por vezes, cobrem os cadáveres das suas crias própria filha que, infelizmente, nasceu morta. Apesar
com areia ou folhas (e não podemos deixar de o com- de todo o racionalismo científico que tinha regido a
parar com os nossos enterros, embora seja provável sua vida, Todorovic decidiu fazer algo também insó-
que as suas motivações sejam muito diferentes das lito: esteve numa clínica onde — como se imitasse a
nossas). Pensemos também nas formigas e na necro- orca Tahlequah — a deixaram passar alguns dias com
forese. Estes insetos sabem quem está morto por uma o cadáver do seu bebé.
razão química: quando morrem, emitem compostos Aí deu-lhe banho, mudou-lhe as fraldas, vestiu-a....
voláteis que são lidos pela colónia. Precisava de fingir, escreveu no artigo, que a sua filha
A necroforese é tão mecânica que, se deixarmos ainda estava viva. «Aparentemente, isto é algo que é
cair uma gota de ácido oleico numa formiga viva, o recomendado na terapia», explica Monsó. Para poder
resto do grupo tomá-la-á por morta e levá-la-á para descarregar a necessidade de cuidar, que tem a mãe.
fora do ninho, mesmo que ela dê pontapés. As for-
migas reagem assim de uma forma indireta e rígida VÍNCULO EMOCIONAL
(instintiva). Não precisam de compreender a morte Longe dali, ao largo da costa do Canadá, os cientistas
para o fazer. «Em vez disso, outras espécies apre- observaram novamente Tahlequah a nadar com a sua
sentam comportamentos carregados de curiosidade, manada sem o peso da cria morta. Ela parecia vigo-
emoções e dependentes da aprendizagem», diz Osu- rosa e saudável, disseram. Talvez a orca do oceano e a
na. É nessa altura que pode começar a haver alguma neurocientista de Oxford não estejam, afinal, tão dis-
compreensão. tantes (ou talvez estejam).
«Mesmo que estes animais compreendam a não- Um vínculo emocional, um poderoso mecanismo
-funcionalidade irreversível, pode haver coisas que maternal; esse estranho, «breve e precioso tempo com
não compreendem, como o facto de a morte ser o seu corpo», como Todorovic o descreveu; ambos
inevitável ou de se ir morrer», diz Monsó. Haveria partilharam (certamente) um processo de luto e um
graus, abordagens diferentes, cognitivas, emocionais conceito (primário) de morte. E há algo de igualmente
e vivenciais. E os investigadores discutem hoje essas triste e belo na água daquele mar e daquela banheira.
abordagens. Alguns são mais generosos com as capa- «Aqui jaz aquele cujo nome foi escrito na água»,
cidades dos animais do que outros. Em todo o caso, lê-se precisamente no epitáfio da campa de Keats, na
ainda há muito para saber. Todos os túmulos estão abstração última dessa «não-funcionalidade irrever-
ainda por abrir. sível» a que a natureza nos condena. «No fundo des-
Será necessário, como alguns afirmam, uma capa- te túmulo vê-se o mar», responde a lápide do poeta
cidade para compreender o infinito, para saber que chileno Vicente Huidobro. «Abram o túmulo», pede-
algo desaparece para sempre? Mas será que com- -nos ele. e

SUPER 33
M E T E O R O L O G I A

El Niño, La Niña e o
aquecimen
Os investigadores estudam a capacidade moduladora deste tipo de eventos na
temperatura do planeta, obrigando continuamente a recalcular as projeções climáticas
em diferentes cenários e a antecipar os seus efeitos. A sua evolução irá moldar
drasticamente o futuro do clima da Terra.

Texto de JOSÉ MIGUEL VIÑAS,


meteorologista da Meteored em www.tiempo.com

34 SUPER
Com o atual

SHUTTERSTOCK
aquecimento
global, com um
evento normal,
como o El Niño, a
anomalia térmica
atinge magnitudes
superiores às
atingidas por um
SuperNiño há
anos atrás.

to global
SUPER 35
N

COURTRSY GREGORY W. SHIRAH NASA/GSFC/SCIENTIFIC VISUALIZATION STUDIO/NG MAPS


o complicado puzzle da evo-
lução climática e do aqueci-
mento global, os fenómenos
El Niño e La Niña são duas
peças fundamentais. A sua
entrada em cena provoca
um forçamento global que
se manifesta tanto na tem-
peratura a nível planetário,
como no comportamento
climático em muitas regiões
do mundo. Sem periodici-
dade fixa, as águas do Pacífico tropical aquecem ou
arrefecem, provocando anomalias de diferentes si- O El Niño e a La Niña são os dois lados da oscilação natural
nais. A magnitude e os efeitos destas anomalias dife- conhecida como ENSO, uma oscilação bimodal cuja fase
rem de episódio para episódio. negativa ou quente é o El Niño e a fase positiva ou fria, a La
Quando um megaevento de El Niño (conhecido Niña.
como SuperNiño) ocorre, de tempos a tempos, a
temperatura global aumenta várias décimas de grau
e os impactos são maiores do que se ocorrer um El um evento El Niño ou La Niña é ditado por anomalias
Niño normal. Atualmente, com o aquecimento glo- significativas na pressão à superfície entre o Taiti, na
bal a um nível sem precedentes, basta um destes úl- Polinésia Francesa, e Darwin, no norte da Austrália,
timos eventos para que a anomalia térmica positiva bem como nas temperaturas à superfície do mar no
atinja uma magnitude superior à de um SuperNiño Pacífico equatorial central e oriental.
há alguns anos atrás. Este facto está a acelerar o rit- Embora os impactos tanto do El Niño como do La
mo de aumento da temperatura, devido à sucessão Niña sejam de grande alcance e magnitude, a capa-
de saltos cada vez maiores desta variável meteoroló- cidade de modulação dos eventos El Niño sobre a
gica. Trata-se de um processo contínuo que se prevê temperatura global é agora encarada com particular
que se agrave nos próximos anos, com impactos de preocupação, com uma influência quase permanente
magnitude crescente. que mantém o aquecimento global num nível sempre
El Niño e La Niña são duas faces da mesma moe- elevado (potenciado em determinadas alturas por ou-
da: uma oscilação natural conhecida como ENSO (El tros fatores que também entram em jogo), obrigando
Niño-Southern Oscillation ), que é a manifestação ao recálculo das projeções climáticas nos diferentes
mais clara do acoplamento existente entre a atmos- cenários previstos pelo IPPC.
fera e o oceano. Trata-se de uma oscilação bimodal A famosa subida de um grau e meio (1,5 ºC) pre-
de grande escala, sendo a fase negativa ou quente o vista no Acordo de Paris para o final do século é já
El Niño e a fase positiva ou fria a La Niña. O início de inatingível. O último fenómeno El Niño fez subir a
temperatura acima desse nível, algo que não acon-
teceu durante os anteriores fenómenos El Niño (in-
cluindo os SuperNiños) que foram documentados.
TEMPERATURA GLOBAL DO PLANETA É importante dispor de um bom sistema que nos
permita saber em tempo real em que fase se encon-
tra o ENSO e se pode evoluir para um evento El Niño
ou La Niña, bem como ser capaz de antecipar a sua
persistência e magnitude. Para o efeito, utiliza-se o
SOI (Southern Oscillation Index), que é dado pela
diferença normalizada das pressões atmosféricas
medidas nos locais acima referidos. Em condições
normais — com um ENSO neutro — a pressão é mais
baixa em Darwin do que no Taiti, o que mantém um
fluxo de ar este-oeste (regime de ventos alísios) que
transporta grandes quantidades de vapor de água
para a parte oriental da bacia do Pacífico, dando
origem ao tempo chuvoso caraterístico do norte da
Austrália e das vizinhas Papua Nova Guiné e Indo-
nésia. Quando ocorrem as condições de El Niño, o
diferencial de pressão através da bacia enfraquece,
os ventos alísios enfraquecem, a ressurgência de ar
HADCRUT

húmido é reduzida e as correntes oceânicas são al-

36 SUPER
teradas, aquecendo a água à superfície do mar na Niño recente (2023-2024) e o próximo, as anomalias
faixa acima referida. No caso do fenómeno La Niña, de calor continuarão a ser muito fortes, com quase
verifica-se o contrário. nenhum período de relaxamento, de modo que a que-
Quando se analisam os registos históricos, veri- da das anomalias de temperatura para menos de um
fica-se que os fenómenos El Niño ocorrem em pe- grau e meio será pequena e de curta duração. O pró-
ríodos não fixos que variam entre 3 e 8 anos, mas ximo El Niño fará com que a temperatura volte a subir
no atual quadro climático isto começa a mudar. A para um novo pico, que será muito provavelmente
frequência dos SuperNiños parece estar a aumen- superior ao registado entre 2023 e 2024, mesmo que
tar, embora, como já comentamos, um El Niño não tenha sido um Super Niño.
de magnitude normal seja suficiente para provo- Graças à NOAA, dispomos de uma previsão atuali-
car um grande aumento da temperatura. Também zada da evolução do ENSO nos próximos meses. No
foi surpreendente o facto de terem ocorrido três verão passado, o evento El Niño 2023-2024 começou
eventos El Niño entre 1990 e 1995, enquanto três a mostrar sinais de fraqueza, dando início a uma fa-
eventos La Niña ocorreram entre 2020 e 2023. se neutra que tem vindo a evoluir para um evento La
Estes comportamentos sugerem que o comporta- Niña. O cenário mais provável mantém esta fase du-
mento do ENSO está a ser alterado pelo aqueci- rante o último trimestre de 2024 e janeiro de 2025. A
mento global, embora não haja consenso entre os partir de fevereiro, prevê-se que a fase neutra pre-
especialistas sobre este ponto. valeça sobre a La Niña, para se reforçar na primavera
A evolução futura dos fenómenos El Niño ditará, de 2025. Nessa altura, poderá começar a surgir um
em grande medida, a evolução da temperatura média fenómeno El Niño, embora seja demasiado cedo para
global. Se não passar muito tempo entre o último El saber se este se irá reforçar e consolidar como tal ou

Teleconexões El Niño e La Niña


O El Niño e o La Niña alteram os padrões climáticos e
oceânicos em ambos os lados da bacia do Pacífico,
com anomalias significativas nas correntes oceânicas e at-
Na Europa, o sinal de ambas as fases do ENSO não é tão
claro como noutras regiões do mundo, devido à elevada
variabilidade do clima na Europa. No hemisfério sul (maio-
mosféricas. O seu sinal é também detetado noutras áreas ritariamente oceânico) existem boas ligações entre o início
terrestres mais distantes, com várias teleconexões bem es- do El Niño ou do La Niña e os padrões de precipitação. Na
tabelecidas. Austrália, por exemplo, temos secas persistentes com o
primeiro e períodos de precipitação intensa com
o segundo.
Se passarmos para a América do Sul , algo seme-
lhante ocorre no nordeste do Brasil, mas com o
sinal contrário em partes do Chile e da Argentina.É
bastante comum que durante os eventos El Niño
ocorram episódios de precipitação no deserto chi-
leno do Atacama, que é um dos locais mais secos
do mundo, onde por vezes passam vários anos sem
que caia uma única gota de água do céu.
Noutras regiões da Terra, como o Sahel, a Índia,
o Sudeste Asiático ou o Sul dos EUA e o Norte do
México, existem também boas correlações, com
um sinal claro entre os padrões de circulação at-
mosférica predominantes e a fase positiva ou
IRI INTERNATIONAL RESEARCHINSTITUTE FOR CLIMATE AND SOCIETY

negativa do ENSO. Por exemplo, quando o El Niño


entra em ação, a seca é mais grave no Sahel, en-
quanto o La Niña traz chuvas abundantes.
Sabe-se também que, em média, nos anos de El
Niño, formam-se menos furacões no Atlântico,
enquanto os furacões La Niña aumentam de fre-
quência. Este facto deve-se à intensidade (maior
ou menor) dos ventos que sopram a diferentes ní-
veis à medida que sobem pela baixa atmosfera na
região oceânica (conhecido em meteorologia co-
mo cisalhamento vertical do vento).

SUPER 37
não. A incógnita é dupla, uma vez que, para além de
Lições do passado se confirmar se um novo El Niño se desenvolverá ou
não, caso se forme, resta saber qual a magnitude que
Num estudo recentemente publicado (setembro de 2024) acabará por atingir.
na revista Science, os investigadores concluíram que a Antes do início do aquecimento global, o apareci-
extinção em massa ocorrida no final do Permiano — há mento de um El Niño ou La Niña estava associado a
cerca de 250 milhões de anos —, na qual desapareceram uma subida ou descida de algumas décimas de grau
pouco mais de 80% dos organismos marinhos e 70% dos na temperatura média global. Atualmente, as coisas
vertebrados terrestres, foi desencadeada por uma série mudaram. O evento La Niña que se iniciou não vai
de SuperNiños. Nessa altura da história da Terra, a con- quebrar a tendência de subida das temperaturas,
centração de CO2 na atmosfera duplicou para 860 ppm, pelo que 2025 será mais um ano quente; provavel-
precipitando os acontecimentos. O sistema climático co- mente um dos mais quentes de toda a série históri-
meçou a desequilibrar-se e a magnitude dos impactos ca, mas não um ano recorde. Foi exatamente o que
levou ao colapso da maioria dos seres vivos da Terra, con- aconteceu entre 2020 e 2023 com os três eventos La
duzindo à grande extinção. A capacidade de absorção de Niña. Embora nenhum desses anos tenha supera-
CO2 da atmosfera foi drasticamente reduzida. O aumento da do 2016 (um ano recorde devido à entrada de calor
temperatura não foi linear, mas no processo houve grandes extra do SuperNiño de 2015-2016), nos três anos a
saltos para cima, que foram acompanhados por mega-e- anomalia foi significativamente mais quente do que
ventos El Niño. É possível que o aquecimento global e os as que vieram de mãos dadas com os SuperNiños de
fenómenos El Niño se retroalimentem mutuamente e que 1982-1983 e 1997-1998. As condições de contorno
ambos aumentem de magnitude em paralelo. Atualmen- mudaram. As nossas emissões de gases com efeito
te, já vivemos num mundo onde as anomalias de calor são de estufa para a atmosfera desencadearam o aque-
permanentes e, se a concentração atmosférica de CO2 con- cimento global, mas não somos os seus únicos mo-
tinuar a aumentar e os eventos El Niño se tornarem mais duladores. O comportamento do ENSO ditará, em
frequentes e intensos, aproximamo-nos perigosamente de grande medida, a evolução da temperatura média
um cenário semelhante ao que aconteceu no final do Per- planetária, provocando saltos ascendentes maiores
miano, no ponto da história geológica que marca a fronteira ou menores nas anomalias de calor, dependendo da
desse período com o Triássico. magnitude e do momento em que ocorrerem os fe-
nómenos El Niño. e

PROBABILIDADES OFICIAIS PARA O ÍNDICE DE TEMPERATURA DA SUPERFÍCIE DO MAR


DE EL NIÑO 3.4. ATUALIZADO A 10 DE OUTUBRO DE 2024
com base nos limiares de -0,5º / +0,5º C do índice ERSSTv4 Niño-3.4.
Percentagem de probabilidade

NOOA (NATIONAL OCEANIC AND ATMOSPHERIC ADMINISTRATION)

SON OND NDE DEF EFM FMA MAM AMJ MJJ


Estação

38 SUPER
SUPER PALAVRAS CRUZADAS

LUCÍA
SESMA PRIETO,
filóloga

QUEM
TEM BOCA
COMETER ERROS FAZ PARTE DA NOSSA IDENTIDADE, INCLUINDO ERROS
ORTOGRÁFICOS. COMETÊ-LOS MOSTRA QUE A LÍNGUA ESTÁ VIVA E EM EVOLUÇÃO.

A
língua sustém a sua es-
pada de Dâmocles em
todas as comunicações:
os erros ortográficos e
gramaticais. Para alguns, a língua é al-
go tão sagrado que os linguistas têm a
missão de a proteger como se fosse o
Santo Graal. As cruzadas de filólogos
estão prontas a lutar contra a vírgula
assassina que se cola entre um sujeito

SHUTTERSTOCK
e um verbo, o til pronto a confundir-se
entre uma afirmação e uma condição
e o crime do infinitivo mandão, pronto
a ganhar terreno sobre o imperativo. Mesopotâmia, mostra como um pro- O mesmo se aplica aos linguistas
Sempre à espreita da distração que fessor ensina a escrita suméria a um forenses, que têm nas faltas um dos
levou alguém a escrever demasiado aluno, que repete a lição vezes sem seus melhores aliados, porque mui-
depressa e a marcar um «b» em vez de conta em colunas consecutivas sobre tos criminosos não sabem que pela
um «v», devido à mente perversa que a argila, para adquirir a habilidade da boca morre o peixe.
colocou um ao lado do outro. A santa escrita cuneiforme naqueles suportes
vigilância a artigos e verbos que se primitivos chamados tuppus. AS AMOSTRAS ESCRITAS E ORAIS
possam confundir... O português es- Os falantes vão tecendo a língua e DE QUALQUER COMUNICAÇÃO DEI-
tá bem servido de profissionais que assim, quando parecem tê-la apren- XAM UMA MARCA sobre a qual estes
refletem e prescrevem a receita orto- dido, ouvem algo diferente da es- profissionais põem a lupa e, assim,
gráfica adequada em cada momento, crita à sua volta e vacilam. Foi o que entre vários possíveis criminosos,
mas nem todos os filólogos suportam aconteceu por exemplo, com uma pela sua fala dialetal, por exemplo,
o fardo de duelar perante ataques su- das maiores celebridades da histó- podem desmascarar o certo: a he-
postamente imperdoáveis à nossa lín- ria do espanhol: o presbítero Nuño. sitação na forma impessoal «havia
gua. Alguns trabalham sem defender As Glosas Emilianenses são aquilo a muitos polícias» por *«havia muitos»,
esta frente, onde, em vez de combater, que Dámaso Alonso chamou «o pri- um leísmo traiçoeiro com um *«o tele-
fotografam o panorama fascinante meiro vagido da nossa língua», apos- móvel, arranjei-o». O asterisco indica
que a riqueza da língua nos oferece. tilhas à margem de um códice latino a não gramaticalidade e protege-me
que Nuño escreveu como tradução da inquisição linguística. A língua é
O ERRO É UM SINTOMA DE VITALI- ou para aprender a língua, porque o regulada, como um bem comum de
DADE LINGUÍSTICA. Os únicos que que ouvia no século X nas margens convivência, mas a sua evolução é
não cometem erros ortográficos são do Ebro não era latim. No manuscri- imparável e o erro é um poderoso mo-
os mortos e, se o fizessem, teríamos to, assina: Munnioni presbiter librum, tor de mudança que, consolidado ou
diante de nós uma boa cena da burla «este livro pertence ao presbítero não, faz parte da nossa identidade.
espiritualista de que tanto gostavam Nuño», com um erro: a frase correta O certo e o errado não existem na
figuras literárias de prestígio como em latim deveria ter um dativo geni- linguagem, apenas a adequação ao
Arthur Conan Doyle. tivo: «presbitero». Começámos bem. contexto. A civilidade, a educação e
A aprendizagem de uma língua é mui- Graças a este erro e a outros exem- a cortesia são também bens precio-
to complexa, e há provas disso desde plos, os filólogos indicaram que ele sos em qualquer situação da vida em
os primeiros escritos da nossa civi- se exprimia tanto em castelhano sociedade: seja educado e, mesmo
lização. Uma tabuleta de argila de há antigo como em basco e que, além que só de vez em quando, diga obri-
cinco mil anos, encontrada na antiga disso, não era muito culto em latim. gado; por favor. e

SUPER 39
ENTREVISTA

Dr. Kovacs
Conhecido pela sua especialização em problemas de coluna, este médico investiga-
dor apresenta agora um manual pedagógico revolucionário para formar os adultos do
futuro. Nesta entrevista, Francisco Kovacs fala-nos de temas tão candentes como a
saúde, os seus falsos mitos, o rumo dos cuidados de saúde e a educação.

Texto de CARMEN CASTELLANOS, jornalista

F
rancisco M. Kova- Por três razões: a sua frequência (são o motivo mais
cs é doutorado em frequente de consulta médica), a carga social que ge-
Medicina Summa ram (as lombalgias e as cervicalgias são, respetiva-
Cum Laude pela mente, a primeira e a quarta causa de incapacidade a
Universidade de nível mundial) e o sofrimento individual que provo-
Barcelona. Espe- cam, sobretudo no caso dos doentes crónicos para os
cializado em doen- quais, quando escolhi este campo de atividade há 40
ças da coluna, é o anos, não existiam tratamentos cientificamente com-
investigador com provados. Felizmente, esta última situação melhorou
maior produção consideravelmente.
científica neste
domínio e dirige a A Fundação Kovacs foi uma instituição científica cria-
Rede Espanhola de Doenças da Coluna (REIDE). Kovacs da para apoiar o Sistema Nacional de Saúde. A Fun-
acaba de publicar o livro «Aprendiendo a ser padres», dação criou a Rede Espanhola de Investigadores em
um método revolucionário para melhorar a educação Distúrbios da Coluna e gerou mais de 90% da inves-
das crianças, estimulando o seu desenvolvimento cere- tigação científica espanhola neste domínio. Porque a
bral e oferecendo soluções para os problemas que sur- extinguiu?
gem na sua educação. Quando, em 2015, o partido socialista levou a Sra. Ar-
mengol à presidência do governo das Baleares, elimi-
Doutorou-se cum laude muito jovem. A medicina nou o acesso, através do sistema público de saúde, a
mudou muito desde o seu começo? tratamentos, provenientes da investigação científica
Sim, muitas mudanças resultaram da investigação espanhola, que tinham sido cientificamente comprova-
científica e foram muito benéficas para os doentes, dos como eficazes e seguros para pacientes específicos
permitindo-lhes ser tratados de forma mais eficaz, que não dispunham de qualquer outro tratamento al-
segura e individualizada, e utilizar os recursos dispo- ternativo. Os tratamentos proibidos tinham sido man-
níveis de forma mais eficiente. tidos no sistema público de saúde durante mais de 10
No entanto, penso que outras mudanças foram pre- anos por governos anteriores, constituídos por todos os
judiciais. Por exemplo, a influência crescente da in- partidos políticos (incluindo o seu), porque a sua eficá-
dústria da saúde, cujos interesses nem sempre coin- cia tinha sido cientificamente comprovada, avalizada
cidem com os dos doentes ou do erário público; a de- pelos principais organismos científicos internacionais e
terioração da empatia e do calor humano no contexto os dados do próprio Ministério da Saúde confirmavam
clínico; ou a tendência para subvalorizar o valor do a sua eficácia, para além de gerarem poupanças para o
interrogatório clínico e do exame físico em detrimen- erário público quatro vezes superiores ao seu custo.
to dos exames complementares, o que favorece o tra- Como se tornou claro que, na nova era, os trata-
tamento de imagens em vez de doentes e compromete mentos aplicados no Sistema Nacional de Saúde iriam
a adequação, a segurança e a eficácia dos tratamentos. depender de arbitrariedades ideológicas ou de lu-
cubrações idiomáticas, e não da sua base científica,
Porque é que se concentrou principalmente nas quei- dos seus resultados ou da sua conveniência para os
xas do pescoço e das costas? doentes ou para o erário público, decidi que não era

40 SUPER
eficiente para mim continuar a investir o esforço e os

AITOR USARBARRENA
recursos necessários para continuar a investigar em Francisco Kovacs
é o investigador
Espanha sobre como melhorar a eficácia, a segurança
com maior
ou a eficiência do Sistema. produção
Foi por isso que, em fevereiro de 2016, saí de Es- científica no
panha e encerrei a Fundação Kovacs. Desde então, a domínio das dores
Fundação ASISA assumiu o seu trabalho de investiga- de costas.
ção e financia a Rede Espanhola de Investigadores em
Dor Lombar, que continua a desenvolver um excelen-
te trabalho científico.

É o investigador espanhol com maior produção cientí-


fica internacional no domínio das doenças do pescoço
e das costas e um dos mais importantes investigadores
mundiais neste domínio. Todos os investigadores, não
só em medicina, pedem mais apoio e financiamento
para a investigação. Porque é que é tão importante
que os governos invistam nela?
O método científico permite alargar o conhecimen-
to e resolver problemas concretos. Implica também
avaliar a robustez de cada nova conclusão e, ao mes-
mo tempo, ratificar ou aperfeiçoar conhecimentos
anteriores, conduzindo a um processo contínuo de
melhoria. Exige mais tempo, esforço e disciplina in-
telectual do que improvisar uma decisão com base na
intuição, nas preferências pessoais ou na convicção
ideológica, mas creio que até agora não foi encontra-
do nenhum outro procedimento que, a longo prazo,
produza melhores resultados na resolução eficaz dos
problemas coletivos.
É por isso que as sociedades que investem mais e,
sobretudo, melhor, na investigação científica são ca-
pazes de resolver desafios e problemas de forma mais
eficiente, e desenvolvem produtos graças aos quais indicadores de saúde. Além disso, aqueles que sabem o
controlam novos mercados em que os outros países que fazer para se manterem saudáveis têm mais inde-
são reduzidos a meros figurantes ou clientes cativos, pendência e controlo sobre as suas próprias vidas.
sem verdadeiro poder de decisão. Abdicar da lide- No entanto, não é a primeira vez que uma campa-
rança na investigação científica significa aceitar um nha de educação para a saúde tem o efeito contrário
futuro de dependência, de submissão aos interesses aos seus objetivos. É por isso que, antes de lançar uma
alheios e, em suma, de irrelevância. campanha, é necessário verificar cientificamente a
Na área da saúde, mais importante ainda do que au- veracidade dos conhecimentos que transmite e a efi-
mentar o investimento é garantir o rigor na seleção dos cácia dos métodos que utiliza.
projetos a financiar, para assegurar que os seus resulta-
dos são suficientemente fiáveis para serem aplicados na Que mitos sobre as dores de costas precisam de ser
prática clínica. A análise mostra que, no caso dos orga- desfeitos? O que é que nós e os médicos estamos a
nismos públicos que financiam a investigação médica fazer mal?
em Espanha, os processos de seleção podem ser clara- Quando os médicos não baseiam as suas recomen-
mente melhorados e levam a que a maioria dos escassos dações em estudos científicos rigorosos, mas sim nas
fundos disponíveis seja desperdiçada. suas convicções pessoais ou no que sempre foi feito,
estão tão errados como qualquer outra pessoa. Mas as
O senhor desenvolve muitas atividades de promoção recomendações emitidas com a melhor das intenções
da saúde pública. É importante para um médico ter por profissionais de reconhecida autoridade e expe-
uma vocação para o bem comum, para além de uma riência credenciada acabam por ser assumidas como
vocação puramente profissional? verdades inquestionáveis pelos leigos, mesmo que es-
No meu domínio, estas atividades centram-se essen- tejam efetivamente erradas ou que as suas consequên-
cialmente na educação para a saúde. De um modo ge- cias possam ser nefastas. Assim, por exemplo, a inves-
ral, os estudos científicos mostram que quanto mais tigação científica tem demonstrado que, no caso das
profundos e exatos forem os conhecimentos de uma dores de costas, o repouso na cama não é aconselhável
população em matéria de saúde, melhores serão os seus (na verdade, é prejudicial, sobretudo se se prolongar

SUPER 41
por mais de 48 horas); a melhor cama não é a mais du- dos no seu caso particular. Desta forma, melhoram-se
ra (é preferível uma cama de firmeza intermédia); nem os resultados clínicos e, ao mesmo tempo, evitam-se
sempre é necessário fazer um raio-X ou uma resso- efeitos secundários, riscos e custos desnecessários. Isto
nância magnética para diagnosticar a causa da dor (na pode parecer óbvio, mas nem sempre é o caso atual-
verdade, só é necessário em casos muito específicos e, mente; só os efeitos secundários de tratamentos des-
no resto, fazer uma ressonância magnética aumenta necessários, aplicados devido a erros na interpretação
até 800% o risco de ser operado desnecessariamente); de exames complementares que não deveriam ter sido
nem todos os doentes cujas ressonâncias magnéticas prescritos, são responsáveis por 40 a 80000 mortes por
mostram uma hérnia discal têm de ser operados (de ano nos Estados Unidos da América.
facto, a cirurgia só está indicada em cerca de 4% dos Por outro lado, a medicina individualizada permite
doentes com hérnias discais que causam sintomas — e personalizar qual, de todos os procedimentos indi-
em nenhum dos que não causam). cados num determinado caso, é o melhor para cada
doente. Isto pode incluir a análise da sua predispo-
Insiste muito na importância de adquirir hábitos de sição genética individual, como no caso da farma-
vida saudáveis para prevenir doenças, incluindo pro- cogenómica, ou a análise sistemática dos dados dos
blemas de coluna. Será que estamos suficientemente cuidados de saúde prestados a milhares de pacientes
conscientes, mesmo desde a infância, da importância (obviamente, preservando todos os aspetos da con-
de cuidar do nosso corpo? fidencialidade e do sigilo médico), para desenvolver
Até agora, a medida que se revelou mais eficaz na modelos preditivos que antecipem qual dos trata-
prevenção dos problemas de coluna é a manutenção mentos indicados tem maior probabilidade de ser
de um nível adequado de atividade física. Exceto em eficaz no seu caso específico, tendo em conta as suas
casos muito específicos (como os desportistas de al- caraterísticas específicas (clínicas, radiológicas, so-
ta competição ou os que têm profissões que implicam ciodemográficas, etc.).
um esforço físico em posturas extremas de forma E tão importante como estes aspetos é garantir que
contínua ou repetida), para a maioria da população o contacto humano com o doente se mantém, e até
isto significa fazer exercício físico ou desporto regu- aumenta, e que a organização dos cuidados é conce-
larmente fora do horário de trabalho. Para além de bida para tornar a sua experiência o mais agradável e
melhorar a saúde geral e cardiovascular, esta prática eficiente possível.
melhora a circulação sanguínea, o tónus muscular e
a coordenação. Reduz também o risco de ocorrência Qual é a sua opinião sobre o sistema de saúde espanhol
de um episódio doloroso e, caso este ocorra, encurta e o que acha que deve mudar para que os cuidados de
a sua duração. saúde prestados aos cidadãos sejam mais eficientes?
É mais fácil adquirir o hábito do exercício ou do des- A Espanha gasta cerca de 10% do seu produto interno
porto na infância, mas este deve ser mantido ao lon- bruto na saúde (6,9% através dos cuidados de saúde
go da vida e, na verdade, torna-se mais importante a públicos e 3,1% através dos cuidados de saúde priva-
cada ano que passa. Foi demonstrado que, contraria- dos) e os seus indicadores de saúde são melhores do
mente à crença popular, é possível construir músculo que os dos países que gastam mais. Este facto contri-
em todas as idades, embora quando somos mais ve- bui para a sua merecida reputação internacional. Além
lhos demore mais tempo e, se a atividade física for in- disso, a cultura tradicional espanhola é mais empática
terrompida, o músculo atrofia mais rapidamente. Isto do que a de outros ambientes, como o anglo-saxónico
significa que, aos 20 anos, podemos dar-nos ao luxo ou o escandinavo, o que significa que as experiências
de passar um mês sem atividade física sem prejudicar dos doentes estrangeiros em Espanha (não só com os
gravemente a nossa saúde, mas não aos 80 anos. médicos, mas com todo o pessoal de saúde e não mé-
dico) contribuem para melhorar a qualidade percebi-
Na sua opinião, para onde deve caminhar a medicina e da e aumentar esta reputação.
os cuidados de saúde do futuro? No entanto, a tendência não é boa. A Espanha regre-
Penso que há duas grandes tendências que podem me- diu em vários indicadores de saúde; algumas caraterís-
lhorar significativamente os resultados clínicos. Por ticas dos cuidados de saúde pioraram (listas de espera,
um lado, a «medicina baseada em provas». Trata-se de tempo médio de atendimento, etc.), a tomada de de-
testar a eficácia, a segurança e a efetividade dos proce- cisões tornou-se atomizada e é influenciada por crité-
dimentos de cuidados de saúde antes de os implemen- rios políticos e outras irracionalidades que levam a uma
tar na prática clínica de rotina e de considerar para ca- utilização ineficiente (ou por vezes contraproducente)
da doente apenas os procedimentos que estão indica- dos recursos de saúde. Além disso, o aumento expo-

«A medida mais eficaz para prevenir problemas de coluna é


manter um nível adequado de atividade física»
42 SUPER
Livres e preparados
F ormado pelo seu pai em técnicas de educação infantil e doutorado summa cum laude aos 19
anos, o Dr. Kovacs baseou-se na sua própria experiência pessoal e na sua abordagem profissio-
nal como investigador médico para desenvolver o método educativo revolucionário que partilha no
seu último livro Aprendendo a ser Pais. Trata-se de um manual de referência que descreve diferentes
atividades que estimulam o desenvolvimento do cérebro das crianças e fornece soluções para os
problemas que surgem na sua educação. O livro dá-lhes as chaves para enfrentarem os desafios da
vida e superarem as incoerências e ameaças, tornando-se adultos felizes e livres.

nencial do número de médicos e outros profissionais vidas todos os dias, vestidos com sacos do lixo, para
de saúde «esgotados» e do número de emigrantes, e assistir os doentes. Esta reedição do «que bom vassa-
os salários médios dos médicos espanhóis (que são, em lo se tivesse um bom senhor» torna difícil continuar
média, 30% inferiores aos dos países vizinhos), jun- a exigir que os médicos, e o público em geral, con-
tamente com a rigidez dos sistemas de trabalho e de fiem cegamente no rigor e na eficácia das decisões das
formação, contribuem provavelmente para que exista autoridades sanitárias, bem como na capacidade e na
atualmente uma enorme escassez de profissionais, es- honestidade de quem as toma.
pecialmente em algumas especialidades.
Portanto, em suma, ainda estamos bem em compa- O seu último livro, Aprender a ser pais, não é sobre
ração com muitos países, mas estamos mal e a ten- costas ou saúde, mas sobre educação. Porque é que o
dência não é animadora. Na minha opinião, a inversão dedicou a este tema?
desta tendência exigiria medidas em muitos domí- Pessoalmente, acredito que a educação é o princi-
nios, mas as mais decisivas são dificilmente exequí- pal fator determinante do futuro de uma sociedade.
veis com a atual politização das estruturas de saúde, Com uma mentalidade de investigador, sempre me
a ideologização dos responsáveis, as caraterísticas da surpreendeu a ligeireza com que, de repente, surgem
regulamentação laboral e da função pública espanho- métodos educativos baseados em ideias não testadas
la e a organização político-territorial que nos foi dada. ou nas modas do momento, cuja generalização é im-
posta pelo poder político sem que haja provas sólidas
A pandemia ensinou a toda a população mundial que de que trazem alguma melhoria. E considero inaceitá-
qualquer doença pode propagar-se rapidamente pelo vel que estes métodos se mantenham quando já se de-
mundo. O que é que os médicos aprenderam com ela? monstrou que deterioram os níveis de ensino, como
Do ponto de vista científico, epidemiológico, clínico os exames comparativos internacionais demonstram
ou dos cuidados de saúde, não me parece que tenha ser o caso em Espanha desde a introdução da LOGSE
proporcionado qualquer conhecimento novo e per- na década de 1980.
turbador. Em 1991, escrevi o precursor de Aprendiendo a ser
No entanto, creio que, ao manter o foco mediático padres para transmitir um método educativo baseado
sobre as autoridades de saúde, impediu que se conti- em conhecimentos científicos sobre o desenvolvimen-
nuassem a ocultar realidades até então desconhecidas to biológico do cérebro. O livro foi um sucesso na sua
do grande público, e mesmo da maioria dos médicos época e, no ano passado, o editor pediu-me que o ree-
de saúde. Por exemplo, a inutilidade prática de algu- ditasse na íntegra, atualizando o seu conteúdo e acres-
mas estruturas administrativas, a tremenda incom- centando novos aspetos que não eram apropriados na
petência de alguns funcionários públicos, a ligeireza altura, como os que se referem à educação escolar atra-
e a irracionalidade com que foram tomadas decisões vés dos meios digitais ou da inteligência artificial.
políticas que provocaram milhares de mortes evitá- O livro analisa as medidas que podem ser aplicadas
veis e graves deteriorações económicas, a irracionali- no ambiente familiar para permitir que uma criança
dade com que a administração impôs regras absurdas desenvolva ao máximo as capacidades que o seu có-
e o grau de fiabilidade das suas justificações (como digo genético lhe permite. E também para a ajudar a
o «comité secreto de peritos» que nunca existiu), a tornar-se um adulto livre, feliz e digno, que tenha os
influência excessiva da indústria da saúde e o peso critérios necessários para definir os seus próprios ob-
da corrupção em algumas destas decisões, a suspei- jetivos e princípios, viver de acordo com eles e pros-
ta fundada de que a proibição da ajuda de filantropos perar e contribuir para a prosperidade coletiva num
privados por parte do governo se baseou mais na ga- ambiente que será provavelmente mais instável do
nância pessoal de alguns dos seus membros do que no que aquele em que os seus pais tiveram de viver. Nada
interesse público... Tudo isto, enquanto os profissio- me agradaria mais do que este livro ser útil a todos os
nais de saúde espanhóis continuavam a expor as suas pais para melhorar o futuro dos seus filhos. e

SUPER 43
HISTÓRIAS DESCONHECIDAS

ALBUM

Berta Pappenheim
nunca revelou que
era paciente de
Breuer. Tornou-se
uma conhecida e
controversa
escritora e ativista
feminista.

A MULHER
QUE INVENTOU
A PSICANÁLISE
44 SUPER
M
iss Anna O., com 21 anos te. Tinha aparecido uma tosse preocupante, profunda
quando contraiu a doença e rouca. Felizmente, um exame médico excluiu a pos-
(1880),.... possui uma inte- sibilidade de contágio. Mas Breuer não ficou calmo a
ligência extraordinária, um partir daí. Tussis hysterica, anotou ele nas suas notas
poder de combinação espan- da altura. E acrescentou: "Classifiquei imediatamente
tosamente agudo e uma intui- a doente como doente mental devido ao seu compor-
ção penetrante; o seu podero- tamento estranho. As pessoas que a rodeavam não se
so intelecto poderia ter rece- aperceberam disso. Ela devia descansar e afastar-se
bido um sólido alimento es- do quarto do pai, diz o médico.
piritual e requeria-o, mas este Bertha teve uma educação burguesa. Falava inglês,
cessou depois de ter deixado a francês, alemão, italiano e iídiche. Tocava piano e era
escola. Rica em dons poéticos e fantasia, controlados apaixonada por Shakespeare e Goethe. Mas depois do
por um entendimento agudo e crítico. Cultivava siste- liceu, no ambiente puritano em que vivia, esperava-se
maticamente o devaneio, a que chamava o seu "teatro que ficasse em casa até ao casamento arranjado pelos
privado". Enquanto toda a gente acreditava que ela es- pais. Foi durante este período que o seu pai adoeceu.
tava presente, ela revivia histórias na sua mente: se a E também ela entrou numa crise profunda. Quan-
chamavam, estava sempre alerta, para que ninguém do, algumas semanas depois da sua primeira visita,
suspeitasse". o Dr. Breuer regressou a casa da família Pappenhein,
Serve esta longa citação para apresentar Anna O., a situação de Bertha tinha-se agravado consideravel-
ou melhor, Berha Pappenheim (o seu verdadeiro no- mente. Não conseguia levantar-se da cama, sofria de
me). É o seu médico, o Dr. Josef Breuer, quem escreve, paralisia nas pernas, fraqueza extrema, visão distor-
embora na primeira vez que a viu, o quadro não fosse cida... Durante as semanas seguintes, Breuer visitou
tão idílico como o da jovem descrita nestas linhas. Em frequentemente a jovem.
novembro de 1880, Breuer deslocou-se a casa dos Pa-
ppenheins – uma família ortodoxa conservadora que DIAGNÓSTICO: HISTERIA
há muito se tinha mudado de Frankfurt para Viena – Num episódio significativo, a jovem adormeceu numa
para visitar o pai da família, Siegmund, que sofria de cadeira ao lado do seu pai convalescente. Nessa noite,
tuberculose – uma doença que grassava há já algum tomada pela ansiedade, tem uma alucinação terrível –
tempo, mas cujos mecanismos de contágio apenas com caveiras e serpentes – enquanto o seu braço, que
começavam a ser decifrados nessa altura. Acamado, está pendurado ao lado da cadeira, adormece. Sofre
tossindo e com dores, Siegmund Pappenheim disse uma contratura. Tenta rezar, mas não consegue dizer
ao médico que a sua höhere töchter (a sua fiel filha) as palavras. Apenas consegue recitar uma oração de
tomava conta dele durante a noite há meses. E que criança em inglês. Mais tarde, perderá a capacidade de
também ela tinha começado a tossir. Preocupado, o comunicar na sua língua materna, o alemão, durante
médico foi ao quarto da jovem para ver se ela tinha si- 18 meses. O diagnóstico é tão rápido como comum na
do infetada. Duas filhas da família já tinham morrido altura: histeria. Quando o pai morre, na primavera de
de tuberculose há algum tempo. 1882, os sintomas tornam-se extremos: a jovem deixa
Quando o médico entrou no quarto, acompanhado de falar durante três meses; a rejeição da mãe e do ir-
pela mãe da rapariga, Bertha estava sentada, muito mão, que tentam esconder-lhe a morte do pai e não a
fraca, pois ultimamente quase não comia nem bebia. deixam assistir ao funeral, é total. Alucinações, mais
Os seus olhos estavam semicerrados há algum tempo paralisia, não comia, não bebia, não se levantava da
e um espasmo agitava-lhe a face de forma intermiten- cama...

No final do século XIX, uma jovem vienense sofre uma série de perturbações que o seu médico
rapidamente diagnosticou como histeria. O seu nome era Bertha Pappenheim. Durante meses,
ela e o seu médico fizeram longas sessões em que ela contava as suas recordações... e fazia
desaparecer os sintomas. Ela, em grande medida deu forma a este método improvisado, batizou-o
de "cura pela fala". Freud sempre reconheceu que foi o caso que inspirou o método psicanalítico.

Texto de DANIEL MÉNDEZ, jornalista cultural

SUPER 45
Uma gravidez imaginada,
mas por quem?
H á um episódio que transcendeu, mas cuja autenticidade
é objeto de dúvidas. Na década de 1920, Freud afirma
ter-se lembrado de algo que Breuer – então já morto – lhe
contara quatro décadas antes: no final da terapia com Pa-
ppenheim, ela sofreu uma "gravidez histérica". Deitada no
chão, com as pernas abertas, pronta para dar à luz, gritou:
"O filho do doutor B está a nascer! Breuer, assustado (e, se-
gundo Freud, secretamente apaixonado pela sua paciente),
saiu do quarto e, segundo a versão de Freud, interrompeu o
tratamento: foi um erro, argumenta ele, porque por cobardia
deixou a sua paciente prematuramente. Isto não coincide
com a versão do próprio Breuer, que escreveu que a sua
relação com a paciente foi interrompida quando ela recons-
tituiu numa das suas sessões a primeira crise que tinha
vivido com o seu pai doente, ou seja, o momento em que tu-
do começou.
Muitos biógrafos de Freud e Pappenheim deram por ga-
rantida a história da gravidez imaginária; outros não. Bertha
imaginou-a, ou Freud inventou-a anos mais tarde? No livro
GETTY

biográfico Imagining Bertha Pappenheim , recentemente pu-


blicado em inglês, o escritor Gabriel Brownstein – autor de O Josef Breuer diganosticou Beta Pappenheim como afetada pela
Curioso Caso de Benjamin Button – duvida da sua veracidade. histeria, tratando-a através da cura pela fala.
Ele, como outros, acredita que há uma tentativa de desacredi-
tar o seu colega. Embora os motivos não sejam claros: Freud
nunca teve dúvidas em reconhecer a importância inicial do Breuer, este era um médico e cientista de renome em
trabalho de Breuer com Anna O. Embora os dois também ti- Viena; o seu amigo Freud, mais de 20 anos mais novo,
vessem opiniões divergentes, que já são evidentes nesse estava a dar os primeiros passos como médico e a de-
primeiro Estudo sobre a histeria. dicar os seus esforços à compreensão da anatomia do
sistema nervoso. Breuer contou-lhe o caso de Anna O.
no final de 1882. O caso causou uma grande impressão
em Freud, mas foi arquivado durante anos.
O texto com que se inicia este artigo é retirado de um
livro fundamental – embora não isento de críticas – na A INSPIRAÇÃO DE FREUD
história da psicanálise – e, portanto, do pensamento O caso de Anna O. é o primeiro caso relatado no Es-
ocidental do século XX. Chama-se Estudos sobre a tudo sobre a histeria e o que serviu de grande inspi-
histeria e é assinado pelo já referido Josef Breuer e por ração para as teorias de Freud. É o único conduzido
um nome que hoje nos é muito mais familiar: Sigmund por Breuer: nos outros quatro casos relatados, Freud
Freud. Trata-se de um texto fundamental. Os auto- aplica o que ele mesmo chama de "método de Breuer".
res descrevem cinco casos tratados com um método Este é, portanto, o caso zero de uma das teorias mais
inovador: através da hipnose, os pacientes recordam influentes do século XX: "Esta descoberta de Breuer é
acontecimentos traumáticos do passado. E falam sobre a base da psicanálise", escreveu Freud em 1917. Mas
eles com o terapeuta, num processo que alivia a sua quem foi Anna O.? quem foi Bertha Pappenheim? Os
dor. Talking cure ou "cura pela fala", como a própria autores usam pseudónimos para ocultar a identidade
Bertha Pappenheim lhe chamou: disse-o em inglês, dos pacientes que aparecem nestes Estudos sobre a
porque na altura não conseguia falar a sua língua ma- histeria e em obras posteriores. Isto é compreensível:
terna, o alemão. Foi ela que, em grande medida, defi- elas revelam pormenores íntimos sobre os seus sinto-
niu e deu forma ao tratamento. Catarse, chamava-lhe mas, a sua vida privada e, claro, a sua sexualidade (a
o Dr. Breuer. E, juntos, eles estabeleceram o esqueleto que Freud dava tanta importância).
sobre o qual, nos anos seguintes, tomou forma uma das Em sessões que tinham lugar por vezes de manhã e
mais influentes teorias da mente do século XX: a psica- muito mais frequentemente ao fim da tarde (à noite ela
nálise. Os Estudos sobre a histeria foram publicados entrava num estado de devaneio muito mais loquaz,
em 1895; escrito por Freud e Breuer, foi o livro que lan- ajudada pela hipnose e, sem dúvida, pelas drogas po-
çou Freud como um teórico da mente humana. Mas em derosas que lhe eram administradas, como o hidrato
1880, quando a família Pappenheim foi ter com o Dr. de cloral, agora retirado, que começou a ser usado

46 SUPER
Num processo radical e improvisado, o doente e o médico
aperceberam-se de que esta narrativa era libertadora

como sedativo e hipnótico na Alemanha por volta de OS RESULTADOS DA "CURA PELA FALA"
1870), Anna O. relatava ao seu médico algumas me- Um ano e meio após o início das suas visitas, a pacien-
mórias remotas e reprimidas, imagens que floresciam te estava de "perfeita saúde", escreveria Breuer nos
escondidas nas profundezas da sua mente e que a as- Estudos sobre a histeria. Na realidade, não era bem
sustavam. Num processo radical e improvisado, pa- assim. Depressão, dores, dificuldade em falar, depen-
ciente e médico aperceberam-se de que esta narração dência dos medicamentos administrados no âmbito
era libertadora. Ela tinha de chegar à origem de cada do tratamento, alucinações... Tudo isto continuou
um dos seus sintomas: surdez, incapacidade de falar, durante anos após o fim da "cura pela fala". Levaria
paralisia, anorexia, fraqueza, dores faciais... Se conse- mais de uma década para ele recuperar uma vida nor-
guisse verbalizar o episódio original de cada um deles, mal. Tanto Freud como Breuer sabiam disto: a mulher
viajar no tempo para reconstruir esse momento, o sin- de Freud, Martha, era amiga da família Pappenheim
toma desaparecia. Um exemplo: houve um momento, e escrevia à mãe preocupada com o estado de saúde
após meses de visitas, em que Anna O. deixou de beber da sua amiga Bertha. E nas cartas que Freud e Breuer
água. Nessa altura, tinha sido levada contra a sua von- trocaram, falam das doenças que ainda afligiam Pa-
tade para um hospital psiquiátrico (regressava mais do ppenheim. As vozes críticas (que foram muitas ao
que uma vez, por vezes a seu próprio pedido). Só bebia longo do século XX) são de opinião que, ao relatarem
sumos e fruta. Mas durante uma dessas sessões com o o caso de Anna O., 15 anos depois dos encontros entre
seu médico (outros especialistas do centro tentaram Pappenheim e Breuer, omitiram alguns pormenores
aplicar o método, mas ela só abriu a mente a Breuer), que não se enquadravam na história de sucesso que
lembrou-se de ver o cão da sua cuidadora a beber do queriam contar.
copo de alguém e de como a pequena Bertha ficou eno- Pappenheim nunca revelou que tinha sido paciente
jada. Depois de contar este episódio, pegou num copo de Breuer. Não deixou nada escrito sobre isso, nem há
de água e bebeu um gole. Os histéricos sofrem de re- registo de que algum conhecido seu o tenha ouvido da
miniscências", escreveu Breuer; memórias reprimidas boca dela. Nunca recomendou a psicanálise a ninguém.
no fundo da sua consciência. Trazê-las à superfície é o Cresceu e tornou-se uma escritora e ativista feminista
caminho para a cura, descobriram. de renome. Lutou intensamente contra uma das prá-

Durante as sessões, eram


frequentemente
administradas drogas aos
pacientes para os induzir
num estado de devaneio
e torná-los mais loquazes,
também com a ajuda da
hipnose.
ASC

SUPER 47
Escritora e ativista
B ertha deixou Viena em 1888 e mudou-se com a sua
mãe para Frankfurt. Aí começou o seu trabalho social.
E começou também a dar a conhecer a sua obra literária.
Inicialmente, as duas coisas estavam ligadas: nos orfanatos
onde iniciou o seu trabalho social, costumava ler as histó-
rias de Andersen às crianças. E também as suas próprias
histórias, que viria a publicar mais tarde. Como muitas mu-
lheres da época, usou inicialmente um pseudónimo: Paul
Berthold. Mais tarde, usará o seu nome verdadeiro. Publi-
cou vários contos infantis (como o livro No ferro-velho) e
peças de teatro.
Quando, a partir de 1895 – e durante mais de uma dé-
cada – assumiu a direção do orfanato para raparigas judias
promovido pela Associação das Mulheres Israelitas em
Frankfurt, Bertha introduziu algumas mudanças radicais: a
educação não deveria ter como objetivo o futuro casamen-
to das jovens, mas sim proporcionar-lhes uma educação
adequada que garantisse a sua independência.
Quando se debruçou sobre a escravatura e a prosti-
ASC

Sigmund Freud, mais de vinte anos mais novo do que Breuer, tuição forçada a que estavam sujeitas as menores e as
escreveu com ele Estudos sobre a histeria . O caso de Berta, jovens das famílias mais pobres, deparou-se com a rejei-
Anna O., que Breuer lhe contou, causou-lhe uma profunda ção da comunidade judaica mais conservadora. Não só as
impressão. vítimas eram judias, mas também os criminosos e os futu-
ros clientes das raparigas. Uma realidade que nem toda a
gente queria enfrentar.
Pappenheim também lutou pela profissionalização da
ticas vergonhosas desses anos cheios de luz e sombra: ajuda, que até então se centrava na caridade. Ajudou a criar
o chamado Mädchenhandel, ou negócio das raparigas. a Jüdischer Frauenbund (JFB: Liga das Mulheres Judias),
Muitas mulheres da Europa de Leste eram embarca- que reunia numerosas associações e que ela própria dirigiu
das em comboios e navios e forçadas a prostituir-se durante duas décadas. Aí desenvolveu um trabalho femi-
na Ásia, na América Latina ou no Médio Oriente. Pa- nista em prol dos direitos das mulheres e da promoção e
ppenheim pronunciou-se contra esta prática terrível, ativação do trabalho das mulheres.
especialmente no que diz respeito a mulheres judias
como ela. Foi uma figura conhecida e controversa até à
sua morte em 1936....

AS MUITAS LACUNAS DO CASO ANNA O.. tal, acresce o facto de Freud ter destruído as suas
Bertha viajou pelo mundo a denunciar esta terrível cartas e notas de juventude. E que grande parte dos
prostituição forçada que era imposta às mais vulnerá- documentos de Breuer se perdeu durante a Segunda
veis. Por volta de 1910, tanto Bertha Pappenheim como Guerra Mundial. Houve muitas leituras e releituras do
Freud visitaram a América do Norte. Ela era uma figura caso: foi dito que os sintomas de Pappenheim eram
bem conhecida, nalguns círculos muito mais do que todos falsos, inventados por ela ou induzidos pelo
Freud. Dirigiu a Liga das Mulheres Judias (Jüdischer seu círculo; que não eram mais do que os efeitos das
Frauenbund), dedicada à formação de mulheres para poderosas drogas administradas nos seus tratamen-
abandonarem a prostituição forçada. Mas nunca per- tos (hidrato de cloral ou morfina em doses que hoje
mitiu que nenhum psicanalista tratasse estas jovens. parecem loucas); que eram o efeito de uma violação;
Ajudou, ainda que involuntariamente, a dar forma a que são a primeira expressão do seu feminismo e da
uma teoria da mente que viria a conquistar o mundo sua luta contra o patriarcado que a oprimia e a tratava
ocidental no século XX. Mas não parece que a tenha muito pior do que o seu irmão; que é tudo uma detur-
adotado em adulta. Tampouco revelou a ninguém a pação de um Freud ambicioso; que o veredito de que
sua ligação com Sigmund Freud. Ele, sim, voltou mui- ela sofria de histeria – um termo que nenhum médico
tas vezes ao caso: diz-se que foi o que citou mais vezes usaria hoje – escondia uma esquizofrenia não diag-
ao longo da sua carreira, com uma ênfase crescente no nosticada.... Em todo o caso, os sintomas persistiram
fundo sexual dos males que afligiam Anna O. durante anos. No final, porém, Bertha Pappenheim
No entanto, há ainda muitas lacunas no caso. Para conseguiu esquecer esses episódios e tornar-se uma
além do silêncio da ativista sobre a sua doença men- importante ativista dos direitos das mulheres. e

48 SUPER
SUPER MENTAL COACH

TATA GAVILÁN
Coach Sistema
integral Alta
Competición
@tatagavilan
FALEMOS
DE MEDO

O MEDO PARALISA E IMPEDE-NOS DE TOMAR DECISÕES E ASSUMIR


COMPROMISSOS. APRENDER A LIDAR COM ELE FAZ PARTE DA SAÚDE MENTAL.

O
que é o medo? O medo e fazem-nos acreditar que sempre ve-se ao medo de voltar a percorrer
é uma emoção desa- que experimentamos algo de bom, caminhos dolorosos. Mas, nesse
gradável, desencadea- de belo ou de desejado, virá depois caso, estamos a dar um lugar im-
da pela perceção de o mau, o castigo... portante à cobardia nas nossas vi-
um perigo, real ou percebido, pas- E isso acontece com as coisas das e, com ela, a deixar de viver a
sado, presente ou futuro. A expres- mais pequenas, comuns ou nor- vida ao máximo.
são máxima do medo é o terror. mais, não é necessário viver ne-
Para além disso, o medo está inti- nhum grande trauma para que isso SIM, O MEDO TORNA-NOS COBARDES,
mamente relacionado com a ansie- aconteça. Todos nós conhecemos PIORES PESSOAS E MAUS COMPA-
dade. A principal e única causa dos pessoas que não se atrevem a NHEIROS DE VIAGEM. É por isso que
problemas de ansiedade é o medo. iniciar uma relação depois de um agora ninguém quer o eterno... O
Atualmente, existem dois concei- divórcio ou de uma rutura. Isso de- imediato, o efémero é menos as-
tos diferentes de medo, que corres- sustador, sentimo-nos mais fortes
pondem às duas grandes teorias na falta de compromisso. Mas isso
psicológicas que temos: o beha- não é real. E só nos vai arrastar para
viorismo e a psicologia profunda. O MEDO LEVA um ciclo de incerteza e falta de es-
Segundo o pensamento behavio- tabilidade emocional.
rista, o medo é algo aprendido. No À CHAMADA É exatamente isso que o medo
modelo da psicologia profunda, o
medo existente corresponde a um «IMPOTÊNCIA faz, torna as pessoas instáveis,
com baixa autoestima e muito tóxi-
conflito inconsciente básico não
resolvido. Assim, sentir medo não APRENDIDA», A cas socialmente falando. Trabalhar
o medo é uma tarefa profissional,
é, de facto, nada de errado, é natu- como é óbvio. Existem três fases
ral e normal. Desde que se trate de TEMER O PIOR importantes para o ultrapassar:
questões de natureza real. De facto, - -Identificá-lo. É necessário saber
embora possa parecer o contrário, a que se deve e porque aparece;
o medo protege-nos contra amea- - Entendê-lo. Este é o primeiro pas-
ças que põem em perigo o nosso so para o superar;
bem-estar. Também nos leva a pro- -
Enfrentá-lo. Sempre com um
curar soluções rápidas e eficazes método e uma lógica analítica .
para os conflitos em apenas alguns Viver sem medos, para além dos
segundos. normais, é viver com saúde. Não te
detenhas... Vive. e
MAS HÁ OUTROS MEDOS, MAIS LE-
TAIS, QUE NOS LEVAM A VIVER SEM
SAÚDE MENTAL. Para viver fora da
saúde mental, basta não ser capaz
de dar os primeiros passos, de ini-
ciar projetos, em suma, de ousar...
São os medos adquiridos, devido
às experiências, devido às más pes-
soas de que por vezes nos rodea-
mos e que deixamos que nos trans-
formem. Estes medos levam-nos à
chamada «impotência aprendida»,
ASC

SUPER 49
A S T R O F Í S I C A

SUPERNOVAS, HIPERNOVAS,
IMPOSTORES E FANTASMAS

ESTRELAS
EXPLOSIVAS
A vida de uma estrela passa por muitas fases e,
mesmo depois da sua morte, continua a evoluir. Os
seus processos são tão variados e fascinantes como o
próprio Universo.

Texto de CHRISTINA THÖNE e ANTONIO DE UGARTE POSTIGO,


Instituto de Astrofísica de Andalucía

50 SUPER
Uma supernova
GETTY

como a da ima-
gem representa a
morte mais vio-
lenta de uma es-
trela muito mais
maciça do que o
nosso Sol.

SUPER 51
E
m 2019, uma estrela bri- de dois núcleos de ferro não produz mais energia —
lhante numa galáxia dis- pelo contrário, teria de a absorver. Nesse momen-
tante, a galáxia Kinman, to, a pressão da radiação produzida pelas reações
a cerca de 75 milhões de nucleares e que sustentava a esfera de gás que é a
anos-luz de distância, de- estrela termina, e a gravidade faz o seu trabalho:
sapareceu. Sem mais nem o balão de gás colapsa em direção ao seu centro. O
menos. Estava lá, a brilhar núcleo, agora quase todo composto de ferro, sofre
intensamente em 2011, mas o efeito da gravidade, que o pressiona de tal forma
oito anos depois não havia que os eletrões entram no núcleo de cada átomo,
qualquer vestígio dela. É onde se combinam com os protões, transformando-
uma estrela fantasma. -os em neutrões. Os átomos deixam de ser átomos
Era uma das maiores e e tudo o que resta é uma sopa extremamente densa
mais luminosas estrelas conhecidas, uma estrela de neutrões. No centro desta grande estrela nasce
variável azul luminosa, ou LBV. Estas estrelas são uma estrela de neutrões, as camadas exteriores de
dezenas de vezes mais maciças do que o Sol e nor- gás continuam em queda livre, mas o centro já não
malmente morrem numa potente explosão, uma pode ser comprimido. Ao chocarem com o obstácu-
supernova. lo intransponível da estrela de neutrões, rebentam
Quanto maior é uma estrela, mais curta é a sua vi- e voltam a expandir-se para o exterior, provocan-
da e mais rapidamente gasta a sua reserva de hidro- do uma colisão com a matéria que se encontra atrás
génio, o que é um pouco contra-intuitivo. Devido à delas. No processo de transformação de protões em
sua enorme massa, as temperaturas no seu interior neutrões, são gerados neutrinos, partículas quase
são muito mais elevadas, o que provoca outros tipos sem massa, mas em tal quantidade que a energia
de processos de fusão nuclear muito mais rápidos. que depositam neste caos de colisões contribui pa-
Ao contrário do Sol, que viverá durante 10 mil mi- ra a expansão explosiva da matéria, gerando o que
lhões de anos, uma estrela de 50 massas solares vive conhecemos como supernova. Em alguns casos,
apenas alguns milhões de anos. se o núcleo de ferro for suficientemente grande, a
força que mantém os neutrões como neutrões pode
SOPA DE NEUTRÕES ser ultrapassada e o objeto acaba por colapsar num
Primeiro o hidrogénio funde-se em hélio, depois buraco negro, o fim do caminho onde já nada pode
em carbono — o nosso Sol acaba aí —, silício e cada resistir à força da gravidade.
vez mais depressa até chegar ao ferro. Uma estre- Mas a estrela do início deste artigo não produziu
la com mais de 8 massas solares consegue chegar a uma supernova. Mesmo a essa distância, os nossos
este ponto, mas é o fim do caminho, porque a fusão sistemas de busca de supernovas tê-la-iam deteta-
GETTY

Uma supergigante vermelha é a última fase


SHUTTERSTOCK

O Observatório de La Silla, no Chile, desempenhou um papel crucial na de uma estrela muito maciça antes de
ligação entre as explosões de raios gama — as mais energéticas do explodir como uma supernova.
Universo desde o Big Bang — e as explosões de estrelas maciças.

52 SUPER
SHUTTERSTOCK

O Telescópio Espacial Hubble (na foto) foi o primeiro a observar uma explosão de kilonova em agosto de 2017.

do facilmente. Teria sido suficientemente brilhante des da estrela original, embora nem sempre exista
para que até os astrónomos amadores a observas- uma correlação clara. Normalmente, as superno-
sem. Então, o que é que aconteceu? Talvez nunca vas mais brilhantes provêm das maiores estrelas.
venhamos a saber, mas há duas possibilidades in- Algumas interagem com o material circundante,
teressantes: por um lado, a estrela pode ter sofri- o que as pode tornar mais luminosas; outras rece-
do uma enorme erupção, ejetando as suas camadas bem energia adicional da nova estrela de neutrões
exteriores e formando nuvens de gás e poeira que no seu interior e do seu campo magnético. É inte-
estariam agora a obscurecer a estrela; a outra possi- ressante notar que uma supernova não atinge a sua
bilidade é que possa ter colapsado silenciosamente luminosidade máxima no início da explosão, mas
num buraco negro. Os físicos teóricos que desen- demora alguns dias ou mesmo algumas semanas a
volvem modelos de evolução estelar talvez não se atingi-la. A luz observada é produzida, indireta-
surpreendam com esta possibilidade, uma vez que mente, pelo decaimento do níquel radioativo, pro-
é fácil para eles verem que algo corre mal e que não duzido durante a explosão da supernova (o níquel é
há explosão de material (de facto, foram precisas apenas ligeiramente mais pesado que o ferro). Após
décadas para que os seus modelos de supernovas o nível máximo de luminosidade, a supernova des-
explodissem, como mostram as observações). No vanece-se lentamente, a curva de luz decai e o seu
entanto, o que realmente observamos é que a gran- comportamento ao longo do tempo pode ser muito
de maioria das estrelas massivas explodem. variado.
A observação do espetro de uma supernova, que
A EXPLOSÃO DA SUPERNOVA analisa a luz em todas as suas cores — ou compri-
As supernovas podem ter caraterísticas muito di- mentos de onda — também nos dá muita infor-
ferentes que estão relacionadas com as proprieda- mação. Com o tempo, estes espectros mudam, as

Quando explodem, as supernovas lançam material para o


espaço a velocidades superiores a 15 000 km/s
SUPER 53
muito interessante conhecido como explosão de-
raios gama (GRB). Numa GRB, a estrela não colapsa
diretamente num buraco negro mas, graças à ro-
Rajadas Rápidas de tação muito rápida, forma-se um disco de acreção
à volta do novo buraco negro durante o colapso.
Rádio Campos magnéticos muito elevados desviam parte
deste material para dois jatos que ejetam material

D escobertas em 2007 com o radiotelescó-


pio de Parkes, na Austrália, são explosões
de rádio brilhantes que duram apenas alguns
a 99,999% da velocidade da luz, conhecidas como
velocidades ultra-relativísticas. Dentro destes ja-
tos, são emitidos raios gama, a forma mais energé-
milissegundos; como tal, são difíceis de obser- tica de luz. Se um destes jatos estiver direcionado
var e ainda mais difíceis de localizar com pre- para a Terra, podemos observar este GRB como um
cisão, o que complica o seu estudo. Até à data, objeto extremamente luminoso; caso contrário, só
foram detetadas milhares de rajadas rápidas de conseguiremos ver a supernova.
rádio(FRBs). Como algumas se repetem, pude-
ram ser localizadas através de grandes interferó-
UMA DAS ESTRELAS MAIS BRILHANTES
Por vezes não podemos ter a certeza se uma estrela
metros. Devido às suas propriedades temporais explodiu de facto. Há casos em que a emissão po-
e às energias produzidas, a teoria mais aceite é de ser devida a uma explosão ténue de supernova
que são produzidas por explosões em magne- ou, pelo contrário, a uma grande erupção nas ca-
tares, mas talvez apenas nos mais jovens, com madas exteriores da estrela que não a destrói. Estas
campos magnéticos mais extremos. últimas são conhecidas como supernovas imposto-
ras. O fenómeno foi observado numa das maiores
estrelas conhecidas da nossa galáxia, Eta Carinae,
na constelação de Carina, no hemisfério sul. O
linhas produzidas por certos átomos aparecem e acontecimento repetiu-se várias vezes ao longo de
desaparecem, dando-nos pistas para compreender períodos separados por várias centenas de anos e,
a anatomia destas explosões. após a última erupção, passou de uma das estrelas
As supernovas mais brilhantes provêm de estrelas mais brilhantes do céu a ser quase invisível, pois
muito especiais. Muitas das chamadas supernovas esconde-se atrás de nuvens de material ejetado, al-
de Tipo I — porque não se vê hidrogénio nos seus go que também pode ter acontecido à nossa estrela
espectros — resultam da morte de estrelas muito fantasma no início. É evidente que uma estrela não
maciças. Estas estrelas gigantes não só têm uma vi- pode ter um grande número destas erupções, pois
da curta como também são bastante instáveis. Per- acabaria por ficar sem material. Além disso, pode
dem frequentemente material através de pequenas ocorrer um evento tão forte que a estrela depois
explosões, porque as suas altas temperaturas e os não se parece nada com o que era antes, mal ten-
seus intensos processos de fusão as tornam instá- do sobrevivido: é uma estrela zombie. São precisos
veis. Algumas perdem quase toda a sua camada de anos de observações antes e depois de um aconteci-
hidrogénio do exterior da estrela e explodem co- mento deste tipo para ver o que de facto aconteceu
mo supernovas de tipo Ib. Outras chegam mesmo à estrela. Ainda não observámos um evento claro
a perder hélio, o segundo elemento da cadeia de deste tipo, mas temos candidatos, como a superno-
fusão: são as supernovas de tipo Ic. As mais extre- va SN2009ip (que explodiu em 2012, mas que rece-
mas têm uma explosão tão grande que o material é beu a designação em 2009 por causa de uma destas
ejetado a uma velocidade de dezenas de milhares de grandes erupções) ou a supernova SN2015bh, que
quilómetros por segundo, quase 10% da velocidade esteve a sofrer erupções de material durante déca-
da luz. Estas são supernovas do tipo Ic com «linhas das antes de explodir.
largas», o que significa que as linhas espectrais são
alargadas pelas grandes velocidades a que o mate- CAMPO MAGNÉTICO DECRESCENTE
rial é ejetado. Devido à sua maior luminosidade e As estrelas de neutrões recém-nascidas têm fre-
velocidade de expansão, estes tipos de superno- quentemente campos magnéticos verdadeiramen-
vas são conhecidos como hipernovas. Se a estrela te impressionantes, razão pela qual são chamadas
original tinha, e manteve até ao fim, uma rotação magnetares. Se um destes magnetares se apro-
extremamente rápida, pode ocorrer um fenómeno ximasse da Lua, o seu campo magnético apagaria

Os elementos mais pesados do que o ferro criam-se em


processos explosivos que se produzem nas estrelas
54 SUPER
GETTY

Uma recriação, tal como imaginada pelos cientistas, das linhas do campo magnético do magnetar SGR 1806-20. Situada na
constelação de Sagitário, a 50 000 anos-luz da Terra, é um tipo particular de estrela de neutrões da Via Láctea.

todos os cartões de crédito do planeta, embora es- do que uma estrela de neutrões normal. A partir
se não fosse o nosso maior problema. Estes campos daí, só temos de esperar pelo fim do Universo, ou
magnéticos contêm muita energia e as estrelas de não? De facto, algumas delas têm uma segunda vi-
neutrões dão a volta em poucos segundos, o que faz da, ou pelo menos uma segunda explosão. Muitas
com que o campo magnético se ajuste de tempos a estrelas, ao contrário do nosso Sol, encontram-se
tempos. A energia libertada nestes casos é tão gran- em sistemas binários ou múltiplos, e se houver
de que produz flashes de raios gama, raios X e, por duas estrelas maciças no sistema, ambas acabarão
vezes, outros comprimentos de onda, como a rádio. por se tornar estrelas de neutrões ou buracos ne-
Na nossa galáxia, conhecemos mais de 30 magne- gros (conhecidos como objetos compactos) após as
tares deste tipo. Em 2020, um deles, SGR 1935 2154, explosões. Também pode acontecer que um objeto
produziu uma explosão de rádio que se assemelhava compacto se aproxime o suficiente de um aglome-
muito a outro fenómeno pouco compreendido e re- rado de estrelas para capturar outro objeto, mas is-
centemente descoberto: os fast radio bursts (FRBs). to é muito menos provável do que um sistema que
As FRBs ocorrem normalmente em galáxias distan- nasceu como binário.
tes, mas a sua origem é ainda um mistério. A razão Como todos os corpos maciços em órbita, um
pela qual algumas FRBs se repetem e outras não (ou sistema de dois objetos compactos perderá ener-
talvez todas se repitam, mas num intervalo de mui- gia através da emissão de ondas gravitacionais e os
tos anos) também é desconhecida. Ter detetado algo objetos aproximar-se-ão gradualmente. Este pro-
como uma FRB num magnetar galático pode ser uma cesso de aproximação pode demorar centenas ou
pista para a sua origem, mas ainda não podemos ex- milhares de milhões de anos. Ao fim de todo este
plicar todas as FRBs. Os magnetares não permane- tempo, os objetos orbitam cada vez mais perto e ca-
cem ativos para sempre; o seu campo magnético di- da vez mais depressa. As últimas órbitas podem du-
minui e, passado algum tempo, não são muito mais rar frações de segundo, até que os objetos se tocam

SUPER 55
SHUTTERSTOCK

O telescópio
James Webb
em órbita no
espaço
ultraterrestre.

Astrónomos da
Universidade de ouro ou o estrôncio, são criados em quilonovas as-
Warwick, na Grã- sociadas à fusão de duas estrelas de neutrões. Em
Bretanha, 2017, este cenário foi comprovado pela primeira vez
descobriram como
uma estrela anã
quando foram detetadas ondas gravitacionais, um
branca foi ejetada curto GRB e uma kilonova, provenientes do mesmo
dos restos de uma objeto.
supernova a grande
velocidade.
Observações
BURACOS NEGROS
posteriores da Mas a grande maioria das ondas gravitacionais de-
estrela mostraram tetadas atualmente não provém da fusão de estrelas
que ela é 99,9% de neutrões, mas sim de buracos negros, tendo sido
oxigénio puro. observados quase 50. É muito mais fácil detetar a
fusão de buracos negros do que de estrelas de neu-
trões, devido à sua maior massa. Estas observações
permitem-nos conhecer as massas dos objetos an-
GETTY

tes de se fundirem e a massa do objeto resultante.


Todos estes buracos negros são provavelmente res-
tos de estrelas maciças ou mesmo fusões de outros
e se fundem, produzindo um buraco negro maior. objetos. Os resultados mostram intervalos de massa
Estas órbitas finais produzem grandes quantidades que nem sempre eram previsíveis com os modelos
de ondas gravitacionais que podem ser detetadas de evolução estelar e que precisam agora de ser me-
pelos novos observatórios de ondas gravitacio- lhorados. Para a astronomia clássica, baseada no
nais na Terra. No caso da fusão de duas estrelas de estudo da luz e não das ondas gravitacionais, estes
neutrões, pode ocorrer um fenómeno semelhante objetos são muito mais difíceis de estudar porque
ao GRB, com um disco de acreção e dois jatos de não produzem uma explosão nem geram qualquer
material emitidos a velocidades ultra-racionais. traço detetável nas ondas eletromagnéticas. Sem os
A duração da emissão de raios gama é mais curta, detetores de ondas gravitacionais, seria quase im-
razão pela qual são conhecidos como GRBs curtos possível ter comprovado a sua existência.
(enquanto que os de estrelas massivas em colapso Vimos que a vida e a morte das estrelas mais ma-
são chamados GRBs longos). Para além disso, um ciças podem ser muito variadas. Algumas explodem
tipo mais fraco de supernova, uma kilonova,é pro- como supernovas ou mesmo hipernovas e tornam-
duzido a partir do material remanescente. A sua -se objetos compactos com propriedades exóticas,
caraterística especial é o facto de criar elementos outras como estrelas fantasma.
pesados que não são produzidos em nenhum outro Também após a sua morte, algumas podem produ-
processo no Universo, pelo menos não em grandes zir eventos tão extremos e, no entanto, tão esquivos
quantidades. Elementos bem conhecidos, como o que só são detetáveis por ondas gravitacionais. e

56 SUPER
I N F O G R A F I A S

Estrela É um corpo celeste formado por nuvens de gás e poeira,


O Sol é a estrela mais
próxima da Terra. A
temperatura média da chamadas nebulosas, que em certas regiões do espaço
sua superfície é de
6000 °C. com densidade superior à média, giram e se condensam.

VIDA E MORTE DE A nebulosa O núcleo emite NOVA ESTRELA Após milhões de O núcleo
UMA ESTRELA condensa-se e
divide-se numa
um jato de gás e
o disco
À sua volta fica um
disco de materiais.
anos, esgota o seu
combustível,
comprime-se e
desencadeia
As estrelas mais pequenas protoestrela: um circundante Podem formar-se arrefece lentamente uma reação
têm, em média, 10 núcleo denso e um condensa-se. planetas e outros e reduz a sua explosiva.
disco de poeira à corpos menores. massa. Parte dessa Produz-se uma
vezes menos massa do sua volta. massa é convertida “supernova”.
que o Sol. As estrelas em energia emitida.
maciças têm uma massa
20 vezes superior à do
Sol. Estes dois tipos
de estrelas evoluem
de forma diferente.
SEQUÊNCIA GIGANTE VERMELHA
PRINCIPAL 4 milhões de anos
10 milhões de anos

ESTRELA MACIÇA
PROTO ESTRELA
100 a 1000 anos Se o núcleo
for muito
pesado, SUPERNOVA
BURACO NEGRO 1 a 2 anos
forma-se um
buraco negro. Se o núcleo de ferro
NEBULOSA se sobrecondensar,
Uma nuvem de gás e pode dar origem a
poeira interestelar. ESTRELA DE
NEUTRÕES uma estrela de
neutrões.
ANÃ BRANCA

ESTRELA PEQUENA A estrela torna-se uma


PROTOSTAR anã branca, vai-se extin-
50 milhões de anos guindo lentamente até
se transformar numa anã
negra.
Uma bola de gás e
poeira é ejetada da
nebulosa. O seu
SEQUÊNCIA PRINCIPAL
núcleo quente 10 milhões de anos NEBULOSA PLANETÁRIA
contrai-se e gira GIGANTE VERMELHA 35 mil anos
A estrela brilha 100 milhões de anos Quando o combustível se
devido à gravidade.
intensamente e A sua massa permanece a extingue, o núcleo
consome lentamente mesma, mas aumenta de condensa-se e as camadas
as suas reservas de tamanho. O seu núcleo aquece exteriores desprendem-se.
hidrogénio. e as suas camadas exteriores
crescem e arrefecem.
ANÃS E GIGANTES LONGAS DISTÂNCIAS, IGUAL LUMINOSIDADE
GRÁFICO DE HERTZPRUNG/RUSSEL
As estrelas de uma constelação podem estar a grandes distâncias umas
Dois astrónomos, das outras, mas têm um brilho semelhante quando vistas da Terra.
Hertzsprung e Supergigantes
Russel, classificaram Rigel, uma estrela
MAGNITUDE ABSOLUTA

as estrelas de acordo supergigante


com o seu espetro e Gigantes branca azulada, é
luminosidade. a mais brilhante.
Sequência
principal
Sequência principal
São as mais numerosas
A Terra
Gigantes e
supergigantes
Muito luminosas Anãs
brancas
Anãs brancas A constelação
pouco luminosas de Orion vista
da Terra. anos-luz
TEMPERATURA (EM MILHARES DE GRAUS CELSIUS)

SUPER 57
CURIOSIDADE NEUROCIÊNCIA

POR
MANUEL
MARTÍN-LOECHES

O QUE É QUE
Doutorado em
Psicobiologia.
Secção de Neurociências

O NOSSO CÉREBRO
Cognitivas do Centro
Comum de Evolução e
Comportamento Humano

TEM DE TÃO ESPECIAL?


UCM-ISCIII.

QUANTO MAIS O ESTUDAMOS, MAIS NOS SURPREENDEMOS COM A SUA


COMPLEXIDADE, UM ÓRGÃO QUE FAZ DO SER HUMANO UM ANIMAL SINGULAR E ÚNICO.

omos a única espécie a e salientou que, à medida que os nosso pesa cerca de 1300 gramas.

S ter chegado à Lua, a úni-


ca a ter enviado satélites
de exploração aos con-
animais cresciam, necessitavam de
mais tecido nervoso para governar os
seus corpos e que, se uma espécie
Mas o rácio de encefalização do ele-
fante é de apenas 1,3. O seu cérebro é
grande porque o seu corpo é grande.
fins do sistema solar e ainda mais excedesse a quantidade necessária, No entanto, os elefantes são animais
além. Somos a única espécie a ter tendia a ser mais inteligente.Assim, que demonstram grande inteligência
descoberto de que é feita a matéria, uma espécie com um quociente de 1 e personalidade, com uma certa flexi-
a única espécie a ter vislumbrado a indicaria que o tamanho do seu cére- bilidade no seu comportamento e ca-
existência e a estrutura dos átomos bro é o tamanho esperado para o seu pacidade de adaptação. Talvez nem
e a ter sido capaz de manipular essa corpo, enquanto as espécies com um tudo seja uma questão de tamanho
organização a nosso bel-prazer e em cérebro com o dobro do tamanho do cérebro em relação ao tamanho
nosso proveito. A tecnologia e o co- esperado teriam cerca de 2 ou 2,5, do corpo.
nhecimento humanos são incompa- como é o caso dos chimpanzés, que
ráveis com os de qualquer outro ser são seres realmente inteligentes (por DE FACTO, ALGUNS AUTORES, COMO
vivo deste planeta. É lógico que nos alguma razão são a espécie geneti- SUZANA HERCULANO-HOUZEL, VOTAM
perguntemos o que é que faz com camente mais próxima de nós). Mas MAIS NO NÚMERO DE NEURÓNIOS do
que isto seja assim. E é evidente que talvez não tão inteligentes como nós, que no tamanho relativo. Para esta
a resposta está no nosso cérebro. que temos um quociente de cerca de neurocientista brasileira, não é a re-
Mas, como primatas curiosos, que- 7,5. O cérebro do elefante africano lação com o tamanho do corpo que
remos ir mais longe. Queremos saber é enorme comparado com o nosso. é realmente relevante, mas simples-
o que é exatamente que torna o nos- O cérebro do elefante africano pesa mente o número de neurónios. Mas
so cérebro único. E aqui a resposta cerca de 5700 gramas, enquanto o também o desenho, a montagem e
é mais complexa. Há alguns dias, a a configuração do cérebro. Se assim
prestigiada revista Nature publicou no não fosse, o elefante, com os seus 257
seu sítio Web um dossier informativo mil milhões de neurónios, voltaria a
sobre o que torna o cérebro humano ganhar-nos (nós só temos 86 mil mi-
tão especial. É um sinal do grande lhões). Por outras palavras, o nosso
interesse e da atualidade de um tema cérebro é muito capaz em compara-
sobre o qual todos os dias descobri- ção com o do elefante, não por causa
mos algo de novo. E é por isso que do número de neurónios, mas porque
hoje quero falar aqui sobre o assunto. está no cérebro de um primata, que
Mas aviso-o: seja o que for que torna o não é o mesmo que o de um probos-
nosso cérebro especial, não é apenas cídeo. O cérebro de um chimpanzé
uma coisa, mas várias. Talvez muitas. é muito semelhante ao nosso, mas
Vamos destacar algumas. tem apenas um pouco mais de 6 mil
Estou certo de que o leitor já ou- milhões de neurónios. É uma grande
viu muitas vezes falar do tamanho diferença.
do nosso cérebro como a principal Mas nem tudo conta, e no cére-
causa da nossa singularidade inte- bro isso é muito verdade. De facto, a
lectual. Sem dúvida que isso tem al- parte que talvez nos interesse mais
go a ver: de facto, o nosso cérebro é para compreender o que nos torna
bastante grande para o corpo da nos- humanos é a fina camada de cerca de
sa espécie. Foi Harry J. Jerison que, 3 milímetros de espessura que cobre
nos anos 70, propôs a existência de o cérebro, que conhecemos como
ISTOCK

um quociente de encefalização (QE) córtex cerebral. Quando falamos de

58 SUPER
OS NEURÓNIOS

ASC
HUMANOS SÃO
MUITO MAIS
COMPLEXOS NAS
SUAS LIGAÇÕES,
Golfinho
COM UMA MAIOR
O tamanho do CAPACIDADE DE
cérebro de um
animal não é tudo,
o número de
COMPUTAÇÃO E
neurónios e a sua
complexidade
INTEGRAÇÃO
também são
importantes.

«massa cinzenta» ou «matéria pen- seu papel. O facto de ser proporcio- o cérebro do chimpanzé termina a
sante», referimo-nos normalmente a nalmente maior na nossa espécie do sua maturação por volta dos 6 anos,
esta parte do cérebro. É a parte mais que noutros primatas, incluindo os na nossa espécie demora quase 30
evoluída do nosso cérebro, a nossa chimpanzés, sugere que é uma das anos. Uma eternidade.
última aquisição. E é aqui que vol- possíveis chaves para compreender Se olharmos mais de perto pa-
tamos a ver grandes diferenças em a nossa singularidade. Mas há mais, ra o córtex cerebral, descobrimos
relação a outras espécies. Por exem- muito mais. mais. Por exemplo, os interneuró-
plo, o nosso tem cerca de 16 mil mi- nios bipolares são mais abundan-
lhões, em comparação com os 4 mil NÃO PARECE HAVER NEURÓNIOS ES- tes do que noutras espécies. São
milhões do chimpanzé. Ou os quase PECÍFICOS DO CÉREBRO HUMANO. neurónios que estão envolvidos no
6 mil milhões do elefante. Mais uma Há milhares de tipos de neurónios, controlo da excitabilidade de outros
vez, ganhamos por esmagadora sim, mas os mesmos padrões bási- neurónios, uma espécie de «travão»
maioria. Não admira que tenhamos cos repetem-se em ratos, macacos, necessário para ativações propor-
sido os únicos a chegar à Lua. chimpanzés, elefantes e humanos. cionais e adequadas. Também va-
O leitor poderá ficar impressiona- No entanto, encontraremos diferen- mos encontrar uma diferença notá-
do com o facto de o cérebro do ele- ças na forma como estes neurónios vel no número de células que não
fante ter tantos neurónios, mas tão se desenvolvem. Assim, o neurónio são neurónios. Refiro-me às células
poucos (em proporção) no seu cór- mais prototípico é talvez o neurónio gliais, indispensáveis à manuten-
tex cerebral. Algo semelhante acon- piramidal do córtex cerebral. Ora, se ção e à estrutura do cérebro. E para
tece no nosso cérebro, embora não compararmos os nossos com os de melhorar a comunicação entre os
de uma forma tão notável. O facto é outros seres vivos, veremos que são neurónios, uma vez que revestem
que a grande maioria dos neurónios muito mais complexos nas suas liga- os seus axónios para os tornar mais
dos nossos cérebros, tanto dos ele- ções, com muito mais exuberância eficientes na transmissão do impul-
fantes como dos primatas, encontra- nas suas ramificações e pontos de so nervoso. O nosso cérebro não só
-se numa pequena estrutura na parte contacto com outros neurónios, e os tem muito mais destas células por-
de trás do nosso cérebro conhecida seus corpos são também maiores. que tem muito mais neurónios, mas
como cerebelo (que significa, pre- A sua capacidade de cálculo e de também porque tem proporcional-
cisamente, cérebro pequeno em integração deve, portanto, ser muito mente muito mais ligações.
latim). Esta estrutura está principal- maior. Esta pode ser uma das chaves Bem, isto é o que estamos a desco-
mente envolvida no controlo dos mais importantes para a singulari- brir sobre o nosso cérebro e o que o
nossos movimentos, mas também dade do nosso cérebro. Em grande torna único. Não é mau aprender so-
está cheia de mistérios. Entre outras parte, parece que esta diferença se bre todos estes fatores se alguma vez
coisas, está envolvida na maioria deve a algo que normalmente atrai quisermos desenvolver máquinas
das tarefas cognitivas de alto nível muita da nossa atenção: o longo que pensem realmente como nós,
(linguagem, memória, atenção, ra- período de desenvolvimento do cé- um desejo antigo da nossa espécie.
ciocínio), mas ainda não consegui- rebro humano. É aqui que nos des- Outra coisa é o facto de eles também
mos determinar claramente qual é o tacamos. Por exemplo, enquanto sentirem o mesmo que nós. e

SUPER 59
CURIOSIDADE MATRIZES E MATRAZES

POR
EUGENIO MANUEL
FERNÁNDEZ AGUILAR
Físico
Diretor da Super
Interessante digital

MARY SOMERVILLE:
A TRADUTORA CELESTIAL
ESTA CIENTISTA TOTALMENTE AUTODIDATA É UMA DAS PRECURSORAS DA
ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR QUE CARATERIZA ATUALMENTE A CIÊNCIA
MODERNA. A SUA PAIXÃO LEVOU-A A DESVENDAR OS MISTÉRIOS DO UNIVERSO.

ary Somerville foi uma homens. Entrou neste mundo a 26 tinha ideias conservadoras sobre o

M matemática, astrónoma
e escritora científica es-
cocesa, conhecida pelo
de dezembro de 1780, em Jedburgh,
na Escócia. Mary Fairfax (nome de
solteira) cresceu no seio de uma fa-
papel das mulheres, pelo que Mary
foi enviada para uma escola para
aprender as competências domésti-
seu contributo para a popularização mília abastada, embora a sua edu- cas tradicionais. Mas a sua mente ia
de ideias complexas numa época em cação tenha sido limitada. O seu pai, para outro lado: desde muito cedo foi
que a ciência era dominada pelos um vice-almirante da Marinha Real, dominada por uma curiosidade que
ia para além do que era esperado.
Aprendeu a ler e a escrever em casa,
Mary Somerville, ao ponto de, aos 13 anos, lhe ter caí-
nascida Fairfax, era do nas mãos um livro de álgebra.
inteiramente
autodidata e ficou
ESTE EPISÓDIO DESPERTOU NELA UM
totalmente
fascinada pela FASCÍNIO PELA MATEMÁTICA QUE A
matemática a partir ACOMPANHARÁ PARA O RESTO DA VI-
do momento em DA. A partir daí, começou a estudar
que descobriu um
livro de álgebra. de forma autodidata, aproveitando
todas as oportunidades para apren-
der com os textos científicos que lhe
eram disponibilizados, tarefa nada
fácil para uma mulher do seu tempo.
Aos 24 anos de idade, Mary casou-
-se com Samuel Greig, embora tenha
sido um casamento breve devido à
morte do consorte em 1807. Embora
Samuel não tenha apoiado os seus
interesses académicos, este período
deu-lhe a liberdade de prosseguir
os seus estudos de forma indepen-
dente depois de enviuvar. Foi nessa
altura que começou a frequentar
salões literários e a cultivar os seus
conhecimentos de matemática e as-
tronomia.
Tudo mudou para melhor com o
seu segundo casamento. Em 1812,
Mary casou-se com William Somer-
ville, um médico do exército e mem-
bro da Royal Society. William foi um
aliado vital na sua vida: incentivou
ALBUM

a sua educação e deu-lhe acesso a


GETTY

60 SUPER
ASC

A análise de Mary Somerville das perturbações da órbita de Urano no seu livro The Connection of the Physical Sciences esteve na origem
da investigação do astrónomo John Couch Adams que levou à descoberta de Neptuno em 1846 por Johann Galle e Urbain Le Verrier.
Em sua honra, um asteroide foi batizado com o seu nome, assim como uma cratera na Lua.

textos de todo o género. Serviu até levou-a a escrever The Connection postas ao seu género e, na sua auto-
de veículo para contactos na comu- of the Physical Sciences (1834), um biografia, publicada postumamente
nidade científica. Graças a ele, Mary texto que aborda a física, a química, em 1873, exprimiu a sua frustração
teve a oportunidade de estudar ma- a astronomia e a matemática. Este perante as muitas barreiras que en-
temática e física avançadas com uma livro tornou-se um compêndio das frentou ao longo da vida. Foi a pri-
intensidade que poucas mulheres ideias científicas da época, com meira a assinar a petição em massa
do seu tempo alcançaram. William destaque para a forma como as dis- dirigida ao Parlamento para dar às
admirava e respeitava o seu traba- ciplinas estavam interligadas. Mary mulheres o direito de voto, organi-
lho, circunstância que constituiu um antecipou, de certa forma, a abor- zada pelo filósofo Joh Stuart Mill.
apoio fundamental para as primeiras dagem interdisciplinar que cara-
realizações científicas de Mary. teriza todas as ciências modernas NOS SEUS ÚLTIMOS ANOS DE VIDA,
atuais MARY SOMERVILLE CONTINUOU A DE-
EM 1831, MARY PUBLICOU UMA REFOR- Mary Somerville foi uma acérrima DICAR-SE À CIÊNCIA E AO ESTUDO COM
MULAÇÃO DE A MECÂNICA CELESTE, DE defensora da educação feminina UMA PAIXÃO INABALÁVEL. Apesar da
PIERRE-SIMON LAPLACE,uma obra ver- numa altura em que o acesso ao co- sua idade avançada, nunca perdeu
dadeiramente complexa, apenas ao nhecimento era praticamente proi- o seu interesse pelo conhecimento
alcance de algumas mentes privile- bido às mulheres. Ao longo da sua e pela investigação. Mudou-se para
giadas da época. Mas porquê limitar- vida, questionou as restrições im- Itália com a família, onde viveu até
-se a traduzir o texto? Mary tinha mui- ao fim da sua vida num ambiente ro-
to mais para dar e, por isso, explicou deado de intelectuais e pensadores,
conceitos complexos da mecânica
celeste num estilo claro e acessível.
MARY FOI A que a consideravam uma mente pro-
digiosa. Mesmo nos seus últimos
Esta publicação foi amplamente elo-
giada pela comunidade científica e
PRIMEIRA MULHER dias, Maria manteve uma curiosi-
dade inesgotável, trabalhando nos
consolidou a sua reputação como in-
telectual. Este trabalho tornou-a uma
A ASSINAR A seus escritos e mantendo-se a par
dos desenvolvimentos científicos.
celebridade científica e, em 1835, foi PETIÇÃO EM MASSA Morreu a 29 de novembro de 1872,
admitida na Royal Astronomical So- com 91 anos, em Nápoles. O asteroi-
ciety, juntamente com Caroline Hers- PARA O SUFRÁGIO de 5771 Somerville e uma cratera na
chel, o que fez delas as primeiras mu- Lua têm o seu nome, lembranças ce-
lheres a receber tal honra. FEMININO NO lestiais de uma mulher que dedicou
A sua capacidade de interligar a sua vida a desvendar os mistérios
diferentes ramos do conhecimento PARLAMENTO do universo. e

SUPER 61
EXPLORER MOTOR

O LEXUS MAIS AVENTUREIRO E CAPAZ


O NOVO NX OVERTRAIL ESTÁ DISPONÍVEL EXCLUSIVAMENTE COM UM MOTOR
HÍBRIDO DE 2,5 LITROS DE 244 CV COM TRAÇÃO INTEGRAL, COM UM MODO
"TRAIL" PARA UMA CONDUÇÃO CONFORTÁVEL E ESTÁVEL EM SUPERFÍCIES
MAIS ACIDENTADAS OU IRREGULARES.

Lexus NX Overtrail é uma in-

O terpretação do popular SUV


premium de tamanho médio
NX, concebido para clientes
cujos estilos de vida convergem entre
atividades exteriores, desfrutando do ar
livre e uma paixão pela condução todo-
-o-terreno. Distingue-se facilmente dos
outros modelos NX pelo seu estilo exte-
rior. Tem uma maior distância ao solo,
com uma suspensão 15 mm mais ele-
vada, proporcionando ao condutor uma
visão dominante do ambiente. Apre-

senta jantes de liga leve exclusivas de otimiza automaticamente a suspensão


18 polegadas em preto mate com pneus e os sistemas de controlo do veículo
todo-o-terreno robustos. Os detalhes em de acordo com as condições. Também
preto também incluem as barras de teja- inclui a sofisticada Suspensão Variável
dilho, as coberturas dos espelhos retro- Adaptativa (AVS) que responde instan-
visores exteriores e os anéis dos faróis taneamente às mudanças nas condições
de nevoeiro. Em superfícies rochosas e de condução para manter uma condução
escorregadias, o condutor pode ativar o estável, confortável e segura. A precisão
modo "Trail" que foi adicionado à sele- da condução e o controlo da carroçaria
ção de modos de condução. Este modo são melhorados pelo desempenho adi-

62 SUPER
A ÚLTIMA GERAÇÃO do Sistema de Segurança Lexus utiliza tecnologia
avançada de câmaras e radares para analisar os arredores do NX,
detetar perigos e alertar o condutor ou ativar a travagem, a direção e
o controlo do veículo para ajudar a evitar um acidente. Por exemplo, o
O HABITÁCULO TAMBÉM É NX foi o primeiro Lexus a ser equipado com o E-Latch, um sistema que,
INCONFUNDÍVEL, com um acabamento ligado ao "Monitor de Ângulo Morto do Veículo", emite um alerta se o
exclusivo Overtrail. Os estofos dos condutor ou um passageiro estiver prestes a abrir uma porta quando
bancos são em pele sintética Tahara um veículo se aproxima por trás. Se for preciso e houver risco de co-
preta, macia mas resistente, que lisão, bloqueia a abertura da porta. Os sensores de estacionamento
contrasta com o caqui dos bancos, dianteiros e traseiros oferecem também assistência adicional nas ma-
apoios de braços, painéis das portas e nobras em lugares de estacionamento apertados.
costuras. Também inclui um ecrã de alta
definição de 14 polegadas, um assistente
de voz a bordo e sistemas de navegação
integrados e baseados na nuvem. A
disposição interior também é flexível,
pelo que os bancos traseiros podem ser
facilmente rebatidos se necessitar de
mais espaço para a bagagem ou para os
seus acessórios de lazer. Mesmo com
todos os bancos levantados, há espaço
na bagageira para duas malas grandes.

PONTUAÇÃO: 4,40

UMA NOVA ERA PARA A FORD


O NOVO FORD EXPLORER to- consola adicional de 17 litros
talmente elétrico é o primeiro e o compartimento seguro My
de uma vaga de novos veículos Private Locker. Com várias ver-
cional dos amortecedores na traseira do elétricos inovadores da Ford. O sões de motores elétricos, pode
veículo. O novo NX Overtrail está agora SUV de tamanho médio acomo- atingir uma autonomia de até
disponível exclusivamente com um mo- da cinco pessoas, possui um 602 km, uma carga que vai de
tor híbrido de 2,5 litros com 244 cv e ecrã tátil móvel SYNC Move 2 de 10% a 80% em aproximadamen-
tração integral. 14,6 polegadas e um sistema de te 26 minutos. O Explorer pode
infoentretenimento totalmente acelerar mais depressa do que
Preço: 71 100 euros. conectado com um sistema de um Ford Focus ST Performance,
áudio premium, integração de com 340 cv, o que significa que
PONTUAÇÃO: 4,87 aplicações sem fios e tecno-
logia avançada de assistência
pode atingir os 62 km/h em 5,3
segundos. Também pode rebo-
ao condutor. Possui ainda 470 car até 1200 kg.
litros de arrumação e uma mega Preço: a partir de 34.800 euros.

SUPER 63
EXPLORER MOTOR

O PRIMEIRO 100 %
ELÉTRICO DA SKODA
O NOVO ELROQ É O PRIMEIRO MODELO TOTALMENTE
ELÉTRICO DA SKODA e também o primeiro a adotar a
nova linguagem de design Modern Solid, que combina
robustez, funcionalidade e autenticidade. O seu extenso
equipamento de série inclui câmara de visão traseira, Crew
Protect Assist, Side Assist, ecrã de infoentretenimento de
13 polegadas e SmartLink. O que mais chama a atenção,
no entanto, é o seu generoso espaço interior. Inclui a maior
bagageira do seu segmento, com 470 litros de capacida-
de. Existem também novas funcionalidades Simply Clever,
incluindo compartimentos inteligentes com 48 litros de
capacidade de arrumação e uma rede de arrumação para
o cabo de carregamento sob a prateleira traseira. Estará
disponível com três tamanhos de bateria e sistemas de
propulsão diferentes, com autonomia até 560 quilómetros
e recarga de 10 a 80 por cento em 28 minutos. A primeira
versão a chegar será a limitada First Edition, que estará
disponível nos mercados europeus a partir do primeiro
trimestre de 2025. Preço: a partir de 33.900 euros. PONTUAÇÃO: 4,53

TÃO DESEJÁVEL POR


DENTRO COMO POR
FORA
marca Opel renovou completamente o Mokka,

A um SUV compacto, campeão de vendas. O Vizor


preto integra visualmente o novo Blitz e os faróis
num único elemento.
De facto, a assinatura familiar do spoiler das luzes LED à
frente e atrás é a caraterística mais marcante do exterior.
No interior do automóvel, todo o design do painel de
instrumentos é mais fresco, como se pertencesse a uma
classe superior de veículos, e oferece de série um ecrã digital
de 10 polegadas com informações ao condutor e um ecrã tátil
a cores igualmente grande. O Mokka está disponível com um
motor a gasolina de 136 cv, como um híbrido com tecnologia
de 48 volts, bem como o Mokka Electric, com 156 cv e até 403
quilómetros de autonomia.
Preço: a partir de 26.350 euros.

PONTUAÇÃO: 3,78

64 SUPER
“ A MINHA OPINIÃO

PORQUE O AUTOMÓVEL
FAZ PARTE DA NOSSA VIDA
A TERRÍVEL TRAGÉDIA DE VALÊNCIA
AINDA ESTÁ FRESCA NAS NOSSAS
PONTUAÇÃO: 3,45 MENTES. Os entusiastas dos automóveis,

UM SUV TODO-O-TERRENO COM ATÉ 7 LUGARES os cromos das revistas de automóveis ou


as crianças crescidas que nunca deixam
de sonhar com aquele carro que encheu a
O TAYRON É O SUV DE GRANDES DIMENSÕES DA VOLKSWAGEN, com infância de sonhos e ilusões, podem não
cinco e, opcionalmente, sete lugares, que se situa entre o Touareg e o ter tido consciência da realidade do carro
Tiguan. Com um design de SUV claro e potente, um elevado nível de e da sua utilidade até agora, quando no
conforto e um generoso espaço disponível. Por exemplo, cinco passa- pior e mais terrível cenário ele se torna a
geiros podem usufruir de até 885 litros de espaço para bagagens em sua única e essencial ferramenta de so-
viagens de férias. A gama de motores incluirá um total de sete grupos brevivência. As pessoas agarradas a um
motopropulsores eficientes, incluindo duas versões híbridas plug-in volante - provavelmente inconscientes da
de nova geração que podem atingir gamas elétricas de mais de 100 morte iminente - conduziam convencidas
km e distâncias de condução de longo alcance de até 850 km entre de que a água não podia ser mais forte do
paragens para reabastecimento. E com uma capacidade de reboque de que os seus filhos, mais forte do que os
até 2,5 toneladas, o Tayron está perfeitamente equipado para rebocar seus empregos ou mais forte do que as
atrelados de todas as formas e tamanhos. suas vidas. Não é nada difícil encher esta
coluna com clichés e lugares-comuns
repetidos mil vezes desde então, mas às
vezes não há outra forma de exprimir a
indignação que sentimos.
A tragédia ataca descaradamente os mais
fracos mais uma vez, com a única vantagem
de não perderem quase nada porque, em
muitos casos, não tinham quase nada. Tu-
do se torna mais complicado quando esse
"quase nada" é tudo, quando um carro que
foi mimado durante anos, ou mesmo déca-
das, desaparece no horizonte, na lama.
Como aquela criança sonhadora ou
aquele nerd, permitam-me sonhar neste
momento com uma reconstrução cheia
de "tudo" e sem capacidade para "nada".
Que os milhares de carros destruídos res-
surjam em cada uma das famílias que pre-
cisam deles para sobreviver e que a falta
de respeito pela natureza desapareça de
uma vez por todas.
Como vêem, não falei dos políticos. Não
me apetece.

José Manuel González,


coordenador da secção Motor,
não perca o seu blogue em
www.muyinteresante.es/curiosidades-motor

SUPER 65
M U N D O I M P O S S Í V E L

HEMATÓFAGOS E MORTOS-VIVOS

A CIÊNCIA DOS

e dos
Ao longo da História, sempre existiram inúmeras superstições
que atribuíam a poderes geralmente demoníacos a possibilidade
de ressuscitar cadáveres. Estas crenças levaram, por vezes, as
pessoas a queimar ou mutilar os corpos de pessoas consideradas
más, com receio de que estas saíssem do túmulo e assustassem o
comum dos mortais. Muitas tradições falam-nos de lendas negras
de mortos-vivos, e mesmo culturas como a americana dos nossos
dias parecem desfrutar de uma verdadeira avalanche de filmes,
séries, revistas e jogos de vídeo sobre estas personagens, que
fazem as delícias dos amantes do terror.

Texto de ALEJANDRO NAVARRO, bioquímico e divulgador

66 SUPER
SHUTTERSTOCK

SUPER 67
N
a civilização moderna, os túmulos? As leis da termodinâmica deixam perfei-
mortos-vivos são identifi- tamente claro que um cadáver não pode voltar a an-
cados com os zombies, um dar espontaneamente, basicamente porque qualquer
conceito importado do Haiti e movimento requer consumo de energia. Em todos os
relacionado com o vudu, uma seres vivos, a transferência de energia faz-se através
variante das antigas religiões do ATP (adenosina trifosfato), uma molécula uni-
animistas comuns no Golfo versalmente presente que, obviamente, deixa de ser
da Guiné na época dos trafi- fabricada quando o metabolismo pára e o organismo
cantes de escravos. De acordo morre. As estruturas que ainda não se decompuseram
com as crenças locais, alguns não dispõem, portanto, de qualquer fonte de energia
sacerdotes podem trans- e não podem funcionar por si próprias.
formar-se em feiticeiros, os No entanto, a verdade é que existem alguns me-
chamados bokor, cujas habilidades incluem a capa- dicamentos que podem provocar comportamentos
cidade de roubar as almas das suas vítimas, transfor- muito semelhantes aos dos famosos mortos-vivos dos
mando-as em escravos involuntários. Estes zombies filmes. Não foi por acaso que, em 1864, o governo hai-
ainda não morreram verdadeiramente, mas basta um tiano se viu obrigado a proibir o envenenamento com
passo para os considerar verdadeiros mortos-vivos, substâncias capazes de provocar «um estado de letar-
um passo dado por muitos aventureiros e escritores, gia mais ou menos prolongado», seguido do enterro
especialmente a partir da década de 1930 . temporário das vítimas. Uma dessas drogas é o estra-
Mas o que diz a ciência sobre os zombies? Haverá mónio(Datura stramonium), uma planta conhecida
alguma razão objetiva para que, ao longo dos sécu- no Haiti como «pepino zombie», biologicamente
los, pessoas de diferentes culturas possam acreditar aparentada com o tomate, o pimento e a beringela,
que os mortos são capazes de se levantar dos seus cujas sementes são utilizadas em todo o mundo desde
tempos imemoriais por feiticeiros e xamãs de todos os
tipos devido às suas propriedades alucinogénias. Com
um elevado teor de alcalóides tóxicos, como a hios-
SHUTTERSTOCK

ciamina, a atropina e a escopolamina, uma pessoa sob


o efeito do stramonium pode delirar durante horas ou
mesmo dias.

O estramónio, Datura stramonium, é uma planta conhecida no Haiti


como o «pepino zombie» pelas suas propriedades alucinogénias,
utilizadas em algumas religiões animistas como o vudu.

GETTY
ASC
ASC

Em cima, Erzsébet Báthory, uma nobre húngara, conhecida


como «a condessa sangrenta», enlouquecida pelo desejo de
recuperar a sua juventude e beleza banhando-se no sangue
das suas vítimas.

Para além do «pepino zombie», uma outra subs-


tância que tem sido proposta como responsável
pelas lendas dos mortos-vivos é a tetrodotoxina,
ASC

o veneno que está na origem dos envenenamentos


provocados pela ingestão de fugu, o prato japonês Em cima, diferentes modelos de caixões com sistemas que
feito de peixe-balão que só deve ser cozinhado por avisam se o ocupante está vivo. Na época vitoriana, tiveram
cozinheiros especializados. A tetrodotoxina paralisa grande sucesso devido ao terror de ser enterrado vivo.
uma pessoa e pode mesmo causar a morte por asfi-
xia, mas tem a propriedade aterradora de a manter
consciente porque não atravessa a barreira hemato- histórias horríveis de pessoas que acordaram dentro
-encefálica. No entanto, a maioria dos especialistas do caixão em que tinham sido colocadas, pensando
rejeita-a como candidata a «droga zombie» porque que estavam mortas. Esta possibilidade preocupou
os seus efeitos não são realmente compatíveis com tanto as pessoas na época vitoriana que se tornou
um estado de transe. moda vender caixões equipados com sinos e outros
Tal como o estramónio, a tetrodotoxina e substân- dispositivos para o caso de ser necessário um aviso.
cias semelhantes têm efeitos neurotóxicos, mas não é Mas se os zombies não passam de drogas e pertur-
necessário recorrer a venenos para explicar o «com- bações mentais, o que dizer dos vampiros, essas cria-
portamento zombie». De facto, várias perturbações turas demoníacas que não estão vivas mas também
mentais, como a esquizofrenia catatónica, a amnésia não estão mortas e que supostamente se alimentam
ou certas psicoses, podem estar relacionadas com ele, de sangue humano? Bem, tal como os mortos-vivos,
para não falar de doenças como a raiva, que podem a crença neles é muito antiga, pois existem descrições
certamente explicar a suposta agressividade dos hi- no folclore de muitas das culturas antigas do mundo.
potéticos mortos-vivos. A catalepsia, doença em que De facto, na época medieval, a sua existência real tor-
o corpo fica completamente paralisado durante um nou-se tão aceite que até a lei sálica dos francos punia
período de tempo prolongado, foi também objeto de os vampiros com multas.

SUPER 69
É muito provável que o mito dos «mortos-vivos»
tenha origem no antigo fascínio pelo sangue como
líquido da vida, embora a imagem que hoje temos
destes seres seja a do moderno «vampiro eslavo»
O peixe-balão
só pode ser — mais concretamente da Transilvânia —, magro,
manuseado e pálido e de longas presas, vestido com roupas anti-
cozinhado por quadas e dotado de uma força sobre-humana. En-
mãos tre os seus hábitos chocantes, abomina a luz do sol.
especializadas,
Ora, por estranho que pareça, há vários meca-
uma vez que a
tetrodotoxina nismos tão reais como o leitor e eu que podem
pode matar explicar convenientemente o aparecimento e o
quem o come. comportamento destes supostos demónios. Em
primeiro lugar, o vampirismo, entendido como
um distúrbio mental que leva o paciente a excitar-
-se sexualmente na presença de sangue humano,
é raro mas real, e pode explicar casos históricos
como o da condessa húngara Erzsébet Báthory,
apelidada de «a sangrenta», que, segundo a tradi-

GETTY
ção, assassinou centenas de donzelas virgens para

ALTERAÇÕES MORFOLÓGICAS E FUNCIONAIS ASSOCIADAS


A FATORES «JOVENS» EXTRÍNSECOS

Parabiose Transfusão de plasma jovem Administração direta de


GDF11

Rato jovem Rato velho


(3 meses) (18 meses)

Alterações morfológicas Alterações funcionais

|^Neurogénesis |^Olfato
|^Plasticidade sináptica |^Funções cognitivas
|^Padronização mitocondrial em |^Exercício de resistência
células satélites musculares |^Força de agarrar
|^Macroautofagia
↓Hipertrofia cardíaca
ASC

A administração de fatores extrínsecos jovens a animais idosos — por meio de parabiose, transfusão de plasma ou administração
direta do fator de crescimento e diferenciação 11 (GDF11) — rejuvenesce os órgãos e tecidos envelhecidos. Este facto é evidente a
partir da observação de padrões macro e microscópicos. As alterações morfológicas resultam numa melhoria funcional
considerável, incluindo o aumento da função cognitiva e muscular.

70 SUPER
se banhar no seu sangue e não perder a sua beleza.
Em segundo lugar, as epidemias de peste que asso-
laram a Europa no passado levaram a que os mortos
fossem enterrados à pressa para evitar o contágio,
nalguns casos quando ainda não estavam comple-
tamente mortos, o que, sem dúvida, deu origem a
cenas macabras que alimentaram as lendas de ca-
dáveres com expressões aterradoras ou mesmo de
mortos que escapavam da sepultura.
Digamos que o comportamento de Erzsébet Bá-
thory está muito mais próximo do vampirismo do
que o de Vlad «o Empalador», um príncipe valá-
quio do século XV e herói nacional da Roménia, que
inspirou Bram Stoker a criar a personagem Drácula,
mas que foi apenas um dos muitos governantes do
seu tempo que usavam o terror como método para
manter os seus inimigos à distância, mas nada mais.

ASC
Por outro lado, existem algumas doenças que Comportamentos como o do Nosferatu podem ser explicados
provocam sintomas que não se afastam muito do por doenças como a anemia ou a raiva.
que se espera de um vampiro, como a palidez acen-
tuada caraterística da anemia ou as deambulações
noturnas sem rumo e bizarras típicas do sonambu-
lismo ou de algumas formas de esquizofrenia, para jovens com os de ratos velhos parece trazer alguns
não falar da agressividade e fotofobia associadas à benefícios para estes últimos, como a recuperação
raiva. Além disso, as pessoas que morrem de car- da massa óssea, o rejuvenescimento dos músculos
búnculo demoram mais tempo a decompor-se e e dos órgãos internos e, em última análise, uma
mantêm o sangue a circular durante mais tempo. maior longevidade.
Por último, existe uma doença rara, a porfiria eri- A que se deve este facto? Tanto quanto sabemos,
tropoiética congénita (CEP), em que a acumulação existem fatores no sangue jovem que promovem
de moléculas denominadas porfirinas, resultante certos tipos de células estaminais a recuperar a ca-
de uma deficiência de uma enzima envolvida na pacidade de regenerar tecidos, algo que não acon-
síntese do grupo heme da hemoglobina, provoca tece no sangue mais velho. O que é interessante é
uma fotossensibilidade extrema nos doentes, le- que as células «reativadas» não provêm do animal
sões e hemorragias cutâneas, crescimento anor- mais jovem, mas sim do mais velho, só depois de
mal dos pêlos do corpo, olhos avermelhados, den- terem sido sujeitas ao efeito do sangue jovem... ao
tes maiores do que o normal devido à destruição verdadeiro estilo da Condessa Bathory!
das gengivas e o aparecimento de uma tonalidade Perante esta evidência, os cientistas mobilizaram-
castanho-avermelhada semelhante a sangue seco. -se em busca dos misteriosos fatores de rejuvenes-
Além disso, as pessoas afetadas sofrem de anemia cimento presentes no sangue jovem, cuja abundân-
e, ainda por cima, são intolerantes ao alho. Embo- cia parece diminuir com a idade. Entre os suspeitos
ra esta e outras doenças relacionadas sejam raras, identificados até à data, contam-se a proteína GDF1
a sua natureza hereditária pode ter aumentado a — que regula o crescimento e a diferenciação de vá-
sua incidência em locais onde se realizavam casa- rios tecidos — e a oxitocina, a hormona que desem-
mentos entre parentes, um costume que foi comum penha um papel fundamental no parto e na lactação.
durante séculos entre as famílias nobres da Europa A investigação ainda está a dar os primeiros passos e
de Leste. Será uma coincidência que a maioria dos é provável que o segredo não esteja tanto no sangue
vampiros da tradição se situe nesta área geográfica dos jovens como nos defeitos que se vão acumulando
e seja de classe social elevada? Não poderíamos afir- com a idade. Por isso, é difícil dizer se alguma vez
mar com certeza. veremos transfusões rejuvenescedoras para os ido-
No entanto, por mais estranho que possa pare- sos no ambulatório, mas é bem possível que algumas
cer, a ligação entre o sangue e a ideia de «juven- destas investigações venham a ter um impacto con-
tude eterna» não é totalmente despropositada. Be- siderável na nossa saúde no futuro.
ber o líquido que dá vida não é diferente de comer Como se pode ver, as histórias de zombies e de
qualquer outro alimento — não se conhece nenhum vampiros proporcionam muito mais do que um se-
caso de alguém que tenha evitado a morte comen- rão agradável a ouvir histórias de terror. Pelo con-
do morcela, por exemplo — mas o seu poder reju- trário, abrem a porta ao estudo de alguns dos mais
venescedor pode ser real, pelo menos se olharmos fascinantes segredos da medicina, da toxicologia e
para os estudos científicos das últimas décadas. De da bioquímica, alguns dos quais podem certamente
facto, a ligação dos sistemas circulatórios de ratos ajudar-nos a viver mais e melhor. e

SUPER 71
CURIOSIDADE TECNOCULTURA

POR
JAVIER MORENO
Matemático
e escritor

EMBOSCADA
DIGITAL
TAL COMO OS OUTROS ANIMAIS, O SER HUMANO TAMBÉM TEM DE RECORRER A TÉCNICAS
DE DESORIENTAÇÃO OU DE DISTRAÇÃO FACE Á VIGILÂNCIA ATENTA DO ALGORITMO.

uando se trata de fugir mas) que essa vigilância é um mal sos em que a pergunta acima pare-

Q do perigo, a estratégia
de muitos animais não
é lutar contra um pre-
menor quando comparada com os
benefícios que obtemos em troca.
Shoshana Zuboff generalizou o
ce ter uma resposta afirmativa. Por
exemplo, se falarmos da extensão
do Firefox Trackmenot, esta tem a
dador cuja força é impossível de uso do conceito de «capitalismo tarefa de enviar informações erra-
medir, mas sim emboscar-se numa de vigilância» para se referir pre- das para os servidores do Google,
nuvem de tinta (como faz a lula), nu- cisamente a esta capacidade das MSN ou Yahoo, para que não pos-
ma confusão ruidosa (ao estilo dos tecnologias da Internet de captar sam descobrir com certeza o que
gafanhotos, das osgas ou de certas dados pessoais para elaborar per- procurámos e para que lhes seja im-
espécies de ratos). Por vezes, a na- fis individualizados, com o objetivo possível definir perfis de utilizador.
tureza coloca os predadores diante de nos classificar como potenciais Uma outra estratégia para evitar os
de presas com pouca capacidade consumidores de produtos que, em sistemas de reconhecimento de ima-
de se defenderem, quer pela sua muitas ocasiões, estão para além gem é a utilização de óculos de sol,
fragilidade, quer pela parcimónia da nossa imaginação. Em alguns máscaras, lenços, bandanas, cha-
dos seus movimentos. Nesse ca- casos, esta vigilância digital pros- péus, maquilhagem ou penteados
so, a única opção de sobrevivência segue o objetivo tradicional de me- que perturbem. Alguns criadores de
é atordoar o inimigo, confundir os lhorar a produtividade dos trabalha- vestuário criaram o que é conhecido
seus sentidos através da estridula- dores; na maioria dos casos, porém, como Adversarial Fashion (ou ves-
ção ou de um jato de tinta. a vigilância não é exercida sobre os tuário «anti-vigilância»). De facto,
É claro que o que dizemos sobre os trabalhadores, mas sobre os utiliza- existem roupas e acessórios especi-
animais pode ser extrapolado para dores dos sítios Web, recolhendo ficamente concebidos para enganar
o caso da cultura humana. Não fa- os seus dados de navegação com a os sistemas de reconhecimento de
laremos propriamente de predação, intenção de vender essa informação imagem. Por exemplo, alguns desig-
pelo menos não num sentido literal. a terceiros e, assim, gerar nichos de ners criaram vestuário com padrões
mercado para converter em alvos de visuais complexos que confundem
O PANÓTICO DE BENTHAM OU O EFEI- recomendações e vendas. os algoritmos, quer ao sobrecarre-
TO HAWTHORNE são apenas dois gar o sistema com informação extra,
exemplos da forma como a vigi- MAS VOLTEMOS À NOSSA IDEIA ORIGI- quer ao interferir com a deteção do
lância modifica o comportamento NAL, a de uma presa que tenta de- corpo humano e do rosto. Outras
dos vigiados, seja numa instituição fender-se de um predador, não atra- peças de vestuário incluem padrões
penitenciária ou numa empresa. vés de um confronto aberto ou de que emulam caraterísticas de rostos
Atualmente, os instrumentos de vi- qualquer estratégia de camuflagem, humanos para enganar os sistemas
gilância são mais numerosos (e, so- mas através desse método original de reconhecimento facial.
bretudo, mais sofisticados) do que de produção de ruído, de ofuscação Por último, existem técnicas de
na Inglaterra do século XVIII ou nos visual ou acústica. Para simplificar o maquilhagem que visam evitar o
Estados Unidos da segunda década esquema e trazê-lo totalmente para reconhecimento facial. De facto, al-
do século passado. Não só isso, co- o nosso campo, substituiremos o guns investigadores desenvolveram
mo, em muitos casos, essa vigilân- esquema predador/presa pelo es- técnicas de maquilhagem que se
cia é indetetável, quer porque não quema vigilante/vigiado. Será então baseiam na modificação de pontos-
temos consciência da sua existên- possível, perguntamo-nos, evitar a -chave do rosto que os algoritmos
cia, quer porque assumimos e acei- vigilância através de um meio seme- analisam. Estas técnicas podem in-
támos (quer na sua versão física sob lhante ao que mostrámos no caso cluir cores vivas ou padrões geomé-
a forma de câmaras, quer na versão de algumas espécies animais? tricos à volta dos olhos, nariz e boca,
digital exercida por sites e platafor- Poderíamos mencionar alguns ca- o que confunde o algoritmo.

72 SUPER
em mais um produto a ser vendido a
ASC

quem estivesse interessado, e evitar


o subsequente bombardeamento de
anúncios. E talvez tenha conseguido,
afinal: que empresa poderia estar
interessada num perfil como o de
Ludlow? De facto, poderíamos dizer
que Ludlow grafitou o Sumuro, vezes
sem conta, até este se tornar um pa-
limpsesto ininteligível, o equivalente
informacional do ruído branco.
Em What the state sees. Como falha-
ram certos esquemas para melhorar
a condição humana, James Scott,
politólogo e antropólogo americano
interessado no estudo das socieda-
des não-estatais, analisa como os
censos e a burocracia estatal ser-
vem um duplo objetivo.

A INFORMAÇÃO RECOLHIDA PELO ES-


TADO AJUDA-O A INTERVIR PARA cons-
truir infra-estruturas ou promover
iniciativas que ajudem os cidadãos.
Scott observa que esta vontade bem
intencionada de modernizar o Esta-
do ignora muitas vezes as idiossin-
O panótico, um tipo de arquitetura prisional, permitia que o diretor, na sua torre, observasse crasias dos seus destinatários, cho-
todos os prisioneiros nas suas celas individuais, sem que estes soubessem se estavam a ser cando de frente — e desmantelando
observados.
— as práticas e os saberes locais.
essa modernização não poderia ser
conseguida sem uma vontade de
A SATURAÇÃO POR OFUSCAÇÃO PARE- e ossos partidos, teve filhos, viveu visibilidade que se concretiza na uti-
CE SER UM DOS MÉTODOS DEFENSIVOS em quase todos os lugares possíveis lização de mapas, de recenseamen-
MAIS EFICAZES para evitar a vigilância do planeta, praticou várias religiões e tos ou de sistemas jurídicos que uni-
omnipresente. Um extenso catálogo alistou-se em vários exércitos estran- formizam as particularidades locais.
de tais estratégias pode ser encon- geiros. Claro que ninguém acreditou No seu livro, Scott dedica uma última
trado em Obfuscation: A User’s Guide nas histórias de Ludlow, e não era secção precisamente às estratégias
for Privacy and Protest, de Brunton e isso que ele pretendia, mas sim con- que estas comunidades podem utili-
Nissenbaum . Veja-se, por exemplo, fundir o algoritmo da famosa rede zar para «não serem vistas» ou para
a que foi empreendida em 2012 pelo social para evitar ser transformado evitar o controlo do Estado. São for-
empresário Kevin Ludlow, confron- mas de resistência que envolvem o
tado com o dilema da melhor forma direito destas comunidades a man-
de esconder dados do Facebook. terem práticas que escapam à nor-
Deixando de lado a opção óbvia de EMBOSCADA ma abstrata imposta por uma busca
abandonar as redes, Ludlow pensou teórica de eficiência, práticas capa-
que uma forma de atingir o seu ob- PARA PASSAR zes de se adaptarem à contingência
jetivo seria saturar o seu mural com implícita na complexidade do real.
informação. Ludlow chamou ao seu DESPERCEBIDO, Encontramos, portanto, no livro de
método «Bayesian Flooding», em Scott, uma versão política e econó-
homenagem à ferramenta matemá- PARA ESCAPAR mica das estratégias que discutimos
tica (Teorema de Bayes) que está na neste artigo.
base de muitos algoritmos de reco- AO CONTROLO DO Emboscar para passar desperce-
mendação e reconhecimento de pa- bido, para escapar ao controlo do
drões. Nos meses seguintes, Ludlow ESTADO OU AO Estado ou das plataformas. Talvez
encheu o seu mural com centenas este seja um dos últimos recursos
de estados sem sentido e por vezes CONTROLO DAS de que dispomos para escapar à
contraditórios. Casou e divorciou-se visibilidade absoluta a que parece-
várias vezes, sofreu de vários cancros PLATAFORMAS mos condenados. e

SUPER 73
CURIOSIDADE CRIMINOLOGIA

POR
VICTORIA PASCUAL
Socióloga e criminologista

CIBERCRIME:
A FACE INVISÍVEL DO
CRIME NA ERA DIGITAL
A CRIMINALIDADE ATRAVÉS DAS REDES SOCIAIS E DA INTERNET ESTÁ A AVANÇAR A UM
RITMO FRENÉTICO, ASSUMINDO CONSTANTEMENTE NOVAS FORMAS. A SOCIEDADE TEM
DE EVOLUIR PARA ACOMPANHAR O RITMO E CONTRARIAR OS ATAQUES.

O
cibercrime, uma forma dos de mais de três mil milhões de mesmo o ativismo político, conhe-
de atividade criminosa contas de utilizadores. cido como hacktivismo. Grupos co-
que utiliza computado- Fraude online: este tipo de ci- mo os mundialmente conhecidos
res e redes, tem cresci- bercrime inclui técnicas como o «Anonymous» têm utilizado as suas
do exponencialmente com o avan- phishing, em que os criminosos capacidades para promover causas
ço da tecnologia. Desde o roubo enganam as pessoas para que re- políticas e sociais.
de dados pessoais à perturbação velem informações sensíveis atra- O cibercrime recorre a uma varie-
de infra-estruturas críticas, a ci- vés de e-mails falsos ou sítios Web dade de métodos e técnicas para
bercriminalidade afeta indivíduos, fraudulentos. Inclui também esque- atingir os seus objetivos. Vejamos
empresas e governos em todo o mas de compras online, em que são os mais importantes:
mundo. Uma melhor compreensão vendidos produtos inexistentes ou Engenharia social: esta técnica
do que se trata ajudar-nos-á a pro- em que os cartões de crédito são manipula as pessoas para que di-
tegermo-nos e a tomar decisões clonados. vulguem informações sensíveis. Os
em relação ao mundo digital. Cyberbullying e sextortion: O cibercriminosos podem fazer-se
cyberbullying envolve a utilização passar por figuras de autoridade ou
OS PRIMEIROS CASOS DE CIBERCRI- da Internet para assediar ou intimi- utilizar táticas de intimidação para
ME remontam às décadas de 1970 dar alguém, enquanto o sextortion enganar as vítimas. Um exemplo é
e 1980, quando os hackers come- é uma forma de chantagem em que o vishing (phishing de voz), em que
çaram a explorar as primeiras redes os criminosos obtêm imagens ou os criminosos telefonam às vítimas
informáticas. Um dos primeiros in- vídeos comprometedores e depois fazendo-se passar por representan-
cidentes conhecidos foi o «worm» extorquem dinheiro à vítima. tes de uma empresa.
(minhoca, em português) de Morris, Malware e ransomware: O mal- Técnicas avançadas: os ciber-
em 1988, que infetou cerca de 10% ware é um software malicioso (pro- criminosos utilizam ferramentas
dos computadores ligados à Inter- grama informático) concebido para sofisticadas, como keyloggers
net na altura. Com a expansão da danificar, perturbar ou assumir o (programas que registam as te-
Internet na década de 1990, aumen- controlo de sistemas informáticos. clas premidas), botnets (redes de
taram também as oportunidades pa- O ransomware, uma forma de mal- computadores infetados que são
ra a cibercriminalidade. Os ataques ware, encripta os dados da vítima e controlados remotamente) e ex-
tornaram-se mais sofisticados e va- exige um pagamento para os liber- ploits de dia zero (vulnerabilidades
riados, indo da usurpação de identi- tar. Um dos incidentes mais conhe- desconhecidas dos criadores de
dade à fraude financeira. cidos é o ataque de WannaCry em software) para levar a cabo os seus
Atualmente, a cibercriminalidade 2017, que afetou mais de 200 000 ataques. Além disso, a inteligência
assume muitas formas, cada uma computadores em 150 países. artificial está a ser cada vez mais
com as suas próprias caraterísticas Os cibercriminosos variam mui- utilizada para automatizar os ata-
e métodos de execução. Vejamos to em termos de idade, antece- ques e torná-los mais eficazes.
algumas das mais comuns: dentes e motivações. No entanto, Estes crimes têm, logicamente,
Hacking e roubo de dados: os partilham algumas caraterísticas impacto nas nossas sociedades.
hackers acedem ilegalmente a sis- comuns. Muitos são jovens, com Os custos da cibercriminalida-
temas informáticos para roubar in- conhecimentos informáticos avan- de são astronómicos. De acordo
formações valiosas, como dados çados e um profundo conhecimen- com um relatório da Accenture, a
pessoais, informações financeiras to da tecnologia. As motivações cibercriminalidade custou às em-
ou segredos comerciais. Um exem- para cometer o cibercrime podem presas mundiais cerca de 600 mil
plo famoso é o ataque ao Yahoo! incluir ganhos financeiros, a procu- milhões de dólares (cerca de 560
em 2013, que comprometeu os da- ra de poder, o desafio pessoal ou mil milhões de euros) em 2018. Es-

74 SUPER
tes custos incluem tanto as perdas
diretas como as despesas associa- O CIBERCRIME AFETA A CONFIANÇA
das à recuperação e ao reforço da
segurança. DAS VÍTIMAS NA TECNOLOGIA E NA SUA
POR OUTRO LADO, A CIBERCRIMINALI- PRIVACIDADE
DADE AFETA A PRIVACIDADE e a con-
fiança na tecnologia. As vítimas de
roubo de identidade podem passar e o ciberataque conhecido como sou danos significativos e realçou
anos a recuperar a sua reputação e Wanna Cry. a necessidade de correções de se-
credibilidade. Além disso, o cibe- Em 2014, a Sony Pictures foi vítima gurança e atualizações de software
rassédio e a sextorsion podem cau- de um ataque devastador que resul- regulares.
sar danos psicológicos significati- tou na fuga de dados confidenciais, A cibercriminalidade, como qual-
vos à vítima, afetando a sua saúde de correio eletrónico interno e de quer outro tipo de crime, está em
mental e o seu bem-estar a curto, filmes inéditos. O ataque, atribuído constante evolução mas, neste ca-
médio e longo prazo. a piratas informáticos norte-corea- so, sempre a adaptar-se às novas
Se nos centrarmos na esfera nos, foi uma retaliação pelo filme tecnologias e a explorar as vulnera-
política, a cibercriminalidade po- The Interview, que satirizava o líder bilidades emergentes.
de ter sérias implicações para norte-coreano Kim Jong-un. O inci-
a segurança nacional e as rela- dente sublinhou a vulnerabilidade OS AVANÇOS NA INTELIGÊNCIA ARTI-
ções internacionais. Os ataques das empresas de todo o mundo a FICIAL E NA aprendizagem automá-
a infra-estruturas críticas, como ataques bem coordenados. tica estão a ser explorados tanto
a rede elétrica ou os sistemas de Entretanto, o ransomware Wan- pelos cibercriminosos como pelos
transporte, podem desestabilizar naCry espalhou-se a um ritmo alar- defensores da cibersegurança. Os
países inteiros. Os ciberataques mante em maio de 2017, infetando ataques de deepfake, que utilizam
patrocinados por estados são computadores em hospitais, em- a IA para criar vídeos falsos realis-
uma preocupação crescente, co- presas e agências governamentais tas, são uma ameaça crescente que
mo ficou patente nas eleições de em todo o mundo. Os atacantes pode ser utilizada para fraude, difa-
2016 nos EUA, em que se alegou exigiram pagamentos em bitcoins mação ou manipulação política.
a interferência russa através de para desbloquear os sistemas afe- Por conseguinte, os peritos em
pirataria informática e campanhas tados. Embora uma rápida corre- matéria de aplicação da lei, ciberse-
de desinformação. ção por parte de especialistas em gurança e criminologia têm de estar
Exemplos do que estamos a ver cibersegurança tenha conseguido em constante evolução para acom-
incluem o ataque à Sony Pictures travar a propagação, o ataque cau- panhar os cibercriminosos. e

SHUTTERSTOCK

O perfil do cibercriminoso é geralmente o de uma pessoa jovem, com competências avançadas e um profundo conhecimento da tecnologia.

SUPER 75
CURIOSIDADE CHAVES CLIMÁTICAS

POR
JOSÉ MIGUEL VIÑAS
@DIVULGAMETEO,

AS VINHAS,
meteorólogo de Meteored

O VINHO
E O CLIMA
O CICLO VEGETATIVO DA VINHA E O PERÍODO DE MATURAÇÃO DAS UVAS ESTÃO A
DIMINUIR DEVIDO AO AQUECIMENTO GLOBAL. ESTE FACTO COLOCA NOVOS CENÁRIOS
E ESTRATÉGIAS DE ADAPTAÇÃO AOS PRODUTORES DE VINHO.

setor vitivinícola tem manas, incluindo a agricultura, em dos enólogos, deu origem a uma

O vindo a suportar os im-


pactos das alterações
climáticas há já algum
particular a cultura da vinha e a pro-
dução de vinho.
gama extraordinária de vinhos de
alta qualidade, obtidos a partir de
numerosas castas, cuja maturação
tempo e está a começar a prepa- A VINHA É UMA CULTURA RESILIENTE, depende em grande medida das
rar-se para a evolução futura das com uma grande capacidade de condições climatéricas e meteoro-
projeções climáticas. O aumento adaptação a combinações muito lógicas. Se o clima mudar, os vinhos
das temperaturas, combinado com diferentes de temperaturas, precipi- também mudarão, comprometendo
as alterações dos padrões meteo- tação média anual e tipos de solo. A os parâmetros de qualidade garan-
rológicos, está acolocar um grande melhoria progressiva das técnicas tidos pelas diferentes denomina-
desafio a todas as atividades hu- de cultivo, aliada ao bom trabalho ções de origem.
SHUTTERSTOCK

O setor da produção de vinho e de uvas, tal como outras culturas, é cada vez mais afetado pelo aumento global das temperaturas e
pelos impactos das alterações climáticas nas vinhas e nos solos.

76 SUPER
A VINDIMA COMEÇA
CADA VEZ MAIS
ÁREAS DE SECA

ÁREAS ADEQUADAS CEDO EM TODAS


ÁREAS POTENCIAIS
AS REGIÕES
BORDÉUS
DOURO
VINÍCOLAS DO
BORGONHA
MUNDO
TOSCANA

nuar a oferecer vinhos de qualida-


de semelhante aos que produzem
atualmente. Estas estratégias são

PNAS
de natureza diversa. Melhorar a
Alteração da aptidão para a viticultura na Europa entre 1961-2000 e meados deste século eficiência no uso da água de rega
(2050 [2041-2060]), de acordo com um conjunto de 17 modelos globais de circulação ou aplicar técnicas para reduzir a
atmosférica. A vermelho, as zonas onde o aumento dos períodos de seca complicará a temperatura do cacho de uva são
cultura da vinha; a azul, as zonas onde a viticultura continuará a ser viável . algumas das ações que estão a ser
promovidas.
A médio e longo prazo, alguns
Os produtores de vinho estão ca- alcoólico, que já se começa a notar, produtores começam a considerar
da vez mais preocupados com as bem como alterações na acidez. À a possibilidade de cultivar uvas em
alterações climáticas, cuja principal medida que estes desequilíbrios altitudes mais elevadas, a fim de
manifestação é o aumento da tem- se acentuam - favorecidos por um contrariar parcialmente o aumento
peratura (mais dias quentes e me- aquecimento global imparável -, da temperatura.
nos geadas). Esta situação está a mais difícil será manter os vinhos Embora nos países mediterrâni-
encurtar o ciclo vegetativo da vinha dentro das margens estreitas que cos, como Portugal, seja de espe-
e, consequentemente, o período de definem a sua qualidade. rar uma diminuição das áreas cli-
maturação das uvas. A vindima está Por outro lado, a floração mais maticamente ótimas para as vinhas
a começar cada vez mais cedo em precoce acelera o processo de que fornecem vinho de qualidade,
todas as regiões vitícolas do mun- crescimento e subsequente matu- as medidas de adaptação que já
do. No caso particular da Península ração das uvas, o que conduz ine- estão a começar a ser implemen-
Ibérica, esta antecipação é particu- xoravelmente a uma colheita cada tadas serão reforçadas. As alte-
larmente marcada no sul. vez mais precoce. Em média, na rações climáticas não porão em
Península Ibérica, as uvas são colhi- perigo a produção de vinho, mas
POR UM LADO, VERIFICA-SE UM AU- das 15 a 20 dias mais cedo do que constituirão um grande desafio
MENTO DO TEOR ALCOÓLICO dos há algumas décadas. No sul da Pe- para as diferentes denominações
vinhos, devido à combinação de nínsula, a antecipação chega a ser de origem, que são os principais
temperaturas mais elevadas e pe- de um mês e, nalguns anos, a vindi- garantes das caraterísticas (sinais
ríodos de seca prolongados. As ma começa mais de duas semanas de identidade) dos diferentes ti-
temperaturas cada vez mais ame- antes do que é normal na atual es- pos de vinho. Nas palavras do cli-
nas, aliadas a uma maior frequência tação quente. matologista Javier Martín Vide: "A
de períodos quentes, estão a pro- vinha não está em perigo, embora
vocar uma aceleração do ciclo ve- ENQUANTO O AQUECIMENTO GLO- as áreas de distribuição e as castas
getativo da videira, antecipando a BAL continuar a progredir ao ritmo cultivadas variem". O grande co-
data em que as uvas estão prontas atual ou superior, a produção de vi- nhecimento dos enólogos assegu-
para serem colhidas. O problema é nho de qualidade ficará ainda mais rará que as medidas de adaptação
que esta maturação acelerada cria comprometida, o que obrigará os acima mencionadas sejam apli-
um desequilíbrio nas uvas, com o viticultores a fazer alterações e a cadas eficazmente, embora o seu
nível de açúcares a não ser o ideal. adotar diferentes estratégias de custo adicional possa levar alguns
Isto provoca um aumento do teor adaptação para poderem conti- viticultores à falência. e

SUPER 77
A R T E

POMPEIA AO FRESCO
Os frescos das casas de Pompeia, a cidade romana perto de Nápoles que foi soterrada
pela lava do Vesúvio em 79 d.C., são um livro aberto sobre os costumes das famílias
que aí viviam. Dissecamos algumas destas obras de arte para compreender melhor
essa requintada civilização do século I.

Texto de ROBERTO PIORNO, historiador e jornalista

A
s paredes de Pompeia, deco- sões da elite recriavam este caldeirão de influências,
radas com delírios vegetais com repertórios exóticos que conferiam distinção ao
exóticos, trompe l’oeils ar- espaço doméstico. A pintura era um álibi para a osten-
quitetónicos impossívéis e tação, um veículo para expressar a fortuna e o poder
cenas mitológicas, são um ostentado pelo dono da domus.
veículo de transmissão de Em 1748 , a cidade de Pompeia foi resgatada do esque-
ideias. A cultura visual era cimento, quando a sua história trágica, forjada ao longo
central na cidade de Campa- de várias horas de pesadelo no dia 24 de agosto de 79,
nia, cuja plebeus se exprimia foi trazida à luz pelos arqueólogos de Carlos III, rei de
através de graffiti e rabis- Espanha e depois de Nápoles. A decoração romana de
cos nas paredes exteriores e interiores tornou-se rapidamente uma moda entre a
interiores, formando a pri- aristocracia europeia, e o estilo pompeiano tornou-se
meira rede social da história. um símbolo de distinção e bom gosto.
Os ricos falavam dentro de casa através do seleto re- Mas a pintura romana era muito mais do que um meio
pertório iconográfico dos frescos que presidiam às suas de decoração de interiores. Os frescos estavam lá para
mansões. As imagens eram um assunto sério na Roma serem vistos e interpretados. Os pompeianos ricos es-
antiga, e as cenas que adornavam as luxuosas villas das colhiam cuidadosamente o repertório pictórico das suas
classes altas não eram escolhidas ao acaso. Pompeia era villas, de modo a que as paredes enviassem uma men-
uma modesta cidade de província, mas a sua posição sagem que qualquer hóspede com um grau de instrução
estratégica no Golfo de Nápoles — destino de férias pre- moderado pudesse ler. A domus pompeiana não era,
ferido dos patrícios da capital — conferia-lhe um caráter como as casas modernas, um espaço privado, um refú-
muito próprio. gio da azáfama. Pelo contrário, era um elemento teatral
O grande número de tabernas nas suas ruas desafia fundamental para projetar a reputação do proprietário.
a lógica, mas não tanto se considerarmos que se trata- Grande parte da vida pública desenrolava-se no interior
va de um local comercial de primeira categoria, onde da casa, e as pinturas comunicavam códigos precisos.
o fluxo de visitantes devia ser enorme. Além disso, são É por isso que a escolha dos temas — mitos, cenas re-
conhecidas as ligações políticas entre as elites pompeia- ligiosas, arquitetura, etc. — era crucial. As janelas eram
nas e romanas. Pompeia era, portanto, uma cidade de escassas, e é provável que as portas estivessem abertas
provincialismo e cosmopolitismo, e essa abertura à glo- durante o dia para que a decoração requintada e os mo-
balização é visível nos pormenores das suas pinturas. saicos fossem parcialmente visíveis.
Pompeia era uma cidade próspera, aberta ao mundo, Mas, para além do seu significado, os frescos de
que venerava a deusa egípcia Ísis num dos seus templos Pompeia são um testemunho inestimável da vida quo-
mais importantes e importava matérias-primas da Gré- tidiana, dos usos e costumes dos patrícios e dos plebeus.
cia, da Numídia, da Tunísia e da Turquia. Os pigmentos As vilas, lojas e edifícios públicos de Pompeia estão re-
utilizados para produzir as cores dos seus esplêndidos pletos de cenas mitológicas, iconografia histórica, flora
frescos vinham dos mais longínquos cantos do Me- e fauna exóticas..... Mas há também cenas de género que
diterrâneo e do Próximo Oriente. Todo esse fluxo de contam em pormenor como eram, vestiam, pensavam e
estímulos e ideias está presente na cultura visual que viviam os homens e as mulheres desta cidade do Golfo
permeia todas as classes sociais. As sumptuosas man- de Nápoles no século I. e

78 SUPER
AS MATRONAS DA VILLA DOS MISTÉRIOS

Após o casamento, as mulheres usavam a O penteado com risca ao meio e coque baixo, típico do
stola, equivalente à toga para os homens, período republicano, estava fora de moda, embora ainda
que podia ser feita de seda, linho ou fosse usado por mulheres como a que aparece nesta cena.
Este fresco recria o rito algodão e cobria o corpo até aos pés. Os Os caracóis e as tranças estavam mais na moda. As mulheres
de iniciação ao culto mais ricos usavam bordados de ouro ou patrícias tinham uma escrava, a ornatrix, que cuidava dos
de Dionísio, deus do prata. Um cinto(cingulum) estreitava o traje seus cabelos.
vinho e do prazer. Só as na cintura em várias dobras, sinal de
matronas podiam usar elegância.
a palla, um manto que Abaixo da subcula, a roupa interior mais
cobria a cabeça e comum era a fascia pectoralis, uma espécie
chegava até à cintura. de corpete em forma de sutiã. Havia uma
Era um símbolo de variante, o strophium, que consistia em tiras
prestígio e também de de couro e era, portanto, consideravelmente
modéstia. Só o rosto e mais desconfortável.
as mãos eram visíveis.

Por baixo da stola,


as mulheres
usavam uma
subcula, uma túnica
comprida sem
mangas, feita de
linho ou de seda.
Servia também de
camisa de noite.

A matrona romana era um modelo de mulher ideal,


com um comportamento social e doméstico exemplar.
Mãe e esposa discreta e recatada, modesta nos seus
trajes, desempenhava um papel fundamental na
educação dos filhos e na administração do lar.
DEA / A. DAGLI ORTI

SUPER 79
A ENTREGA DO PÃO

Em Pompeia havia mais de Tradicionalmente, os romanos fabricavam o


trinta forni (padarias). Só seu pão a partir de farro (daí farrina, raiz de
numa rua a nordeste do farinha), um cereal que já era utilizado na
Fórum havia sete em cem Mesopotâmia neolítica. O consumo de pão de
metros. O forno era trigo só se generalizou no final do período
semelhante aos utilizados imperial.
atualmente em Itália para
fazer piza. O pão era
frequentemente entregue
por uma mula ou um burro.

Muitas vezes, os padeiros encarregavam-se de todo o


processo de produção: moíam o grão para fazer farinha,
coziam o pão e vendiam-no em lojas como esta. Outros
utilizavam farinha já pronta.

Os pães eram
redondos e
divididos em oito
porções para
facilitar o corte.
Muitos padeiros
gravavam o seu selo
na parte superior de
cada pão.

O balcão dá uma ideia de como eram os


móveis de madeira nas lojas de Pompeia.
Após a maré de lava, apenas os pregos
de ferro se conservaram.
DEA / G. NIMATALLAH

80 SUPER
O BORDEL

A abundância de graffitis As prostitutas eram chamadas de lupae (lobas), ou


eróticos nas tabernas Por vezes, as prostitutas pintavam o cabelo ou meretrizes, além de outros apelidos, e cumpriam
indica que a prostituição usavam perucas vermelhas. Daí a alcunha rufa uma função considerada ignóbil, mas ao mesmo
era praticada em vários (vermelha), que deriva da palavra rufián (chulo). tempo útil para a preservação da ordem moral.
cantos de Pompeia. No Além disso, a prostituição era uma fonte de
entanto, havia apenas rendimento para o Estado, uma vez que Calígula
um bordel propriamente estabeleceu um imposto sobre as suas atividades.
dito, com cinco quartos
no rés do chão.

Poucas mulheres
se dedicavam
exclusivamente
ao velho ofício.
As prostitutas
eram legalmente
invisíveis e
tinham de usar
vestes
masculinas.
Muitas
empregadas de
ERNST WAIMAGE BROKER / AGE PHOTOSTOCK

mesa e de bar
ofereciam os
seus serviços a
Quase todos os clientes do bordel, cujas camas ocupavam um preço mais
cubículos minúsculos, eram plebeus, pois os ricos podiam dispor barato (dois ases)
das suas escravas como quisessem e raramente as visitavam. do que os do
bordel.

As prostitutas que exerciam a sua atividade debaixo das pontes


eram conhecidas como fornicatrices, de fornix (arco)
A CASA DO BANQUEIRO
As transações financeiras eram registadas em tabuletas de
cera embutidas numa superfície de pinho ou de buxo.
Os rolos de papiro, antepassados O argentarius (banqueiro) Lucius
do livro, eram também utilizados Caecilius Jocundus foi uma figura-
como suporte para documentos de chave em Pompeia. Era licitador,
arquivo e cartas. leiloeiro, prestamista e cobrador de
A moeda oficial do império era o denário de
impostos.
prata, cunhado em Roma. As autoridades
locais só podiam cunhar moedas de bronze.

Mais de 10.000 textos foram recuperados de Pompeia, quase todos em


latim, mas também em grego e oscan, a língua dos samnitas, uma antiga
tribo itálica. A literacia só era generalizada entre os patrícios.
ASC

SUPER 81
O impluvium ou
tanque de
recolha de
águas pluviais
da casa do
duunviro de
Pompeia,
Pachius
Proculus. Todos
os pavimentos
estão cobertos
com mosaicos
de animais
emoldurados
por bordos
decorativos.
DE AGOSTINI / L. ROMANO

A FULLONICA (LAVANDARIA)

Para remover as manchas, era utilizada urina — normalmente eram instalados urinóis na
fachada — misturada com cal e cinzas. O imperador Vespasiano chegou mesmo a impor um A coruja era um dos
imposto sobre a urina. símbolos ligados a
Minerva, padroeira
de vários grémios
da Roma antiga,
O pano era pisado numa bacia com água e incluindo o dos
sódio para reforçar as fibras. Em seguida, o fullones.
pano era estendido sobre paus de madeira
ou corda para ser seco e escovado. Antes de serem
passados a ferro, os
tecidos, estendidos
numa gaiola de vime,
eram branqueados por
meio de vapores que
emanavam de um balde
de carvão e enxofre
incandescentes.
Uma vez terminado o
processo, o tecido
era inspecionado. A
lã era o tecido mais
comum, mas os mais
ricos usavam
algodão, seda e linho.

Os têxteis eram a principal indústria da economia


de Pompeia. Na fullonica, a versão romana de uma
DEA / G. NIMATALLAH

lavandaria, eram fabricados os panos e a lã era


lavada, estirada e tingida.

82 SUPER
A CASA DOS CASTOS AMANTES

O triclínio ou sala de jantar Tão importante como


era o cenário de banquetes, o jantar era a
jantares opulentos e sobremesa. Muitas
eventos sociais para os O costume, herdado dos gregos, era tomar as refeições em
vezes, os convidados
mais abastados. Os três klinai, sofás dispostos em forma de ferradura, sobre
perdiam
comensais desfrutavam de colchas e almofadas. Os plebeus, pelo contrário, tomavam as
completamente as
menus exóticos de oito suas refeições em bancas de rua que vendiam comida rápida.
boas maneiras devido
pratos servidos em talheres ao álcool ingerido e os
de prata. banquetes
degeneravam em
bacanais.
A ostentação era uma
obrigação para o
O vinho causava estragos. Aqui, um
anfitrião. Vasos de
escravo segura um convidado incapaz
vidro, cristal e prata
de se levantar. Ao fundo, um dos
alegravam a vista. Em
comensais está deitado de costas,
cima da mesa, os
atordoado pelo álcool.
simpula duas
pequenas taças para
servir o vinho.

Tal como o resto do mobiliário de madeira, os divãs eram Em Pompeia, a erupção do Vesúvio não
retirados do triclínio no final do banquete. A dimensão das deixou qualquer vestígio de mobiliário de
salas de jantar, mesmo nas casas dos ricos, era reduzida. madeira. Foi preservado na vizinha
ALESSANDRA BENEDETTI

Herculano, que também foi soterrada pela


lava, e por isso sabemos que os frescos
reproduziam os objetos com grande
realismo.

SUPER 83
P A L E O N T O L O G I A

A estrutura do esqueleto das


SHUTTERSTOCK

aves, com os seus «ossos


ocos», torna-as muito leves e
permite-lhes voar sobre as
nossas cabeças. Atualmente,
sabe-se que as aves e os
dinossauros coexistiram.

84 SUPER
COMO É QUE AS AVES EVOLUÍRAM
A PARTIR DOS DINOSSAUROS TERÓPODES

E os
dinossauros
aprenderam
a voar
A descoberta de um réptil com penas demonstrou a ideia de Darwin de que todas as formas
de vida evoluíram a partir de espécies anteriores. As penas não tinham originalmente a
função de voar, mas mais tarde os seus donos usaram-nas para voar.

Texto de FRANCESC GASCÓ-LLUNA E CARLOS MARTÍNEZ-PÉREZ,


Sociedade Espanhola de Palentologia

SUPER 85
N
os últimos anos, a nossa dos notáveis nesta região, destaca-se a descoberta,
perceção dos dinossauros em 1860, do que parecia ser uma pluma fóssil. O pa-
sofreu uma transformação leontólogo alemão Hermann Von Meyer descreveu-a
significativa em comparação como uma pena moderna, especificamente uma
com as antigas representa- rémige (as penas que formam as asas das aves), e
ções destes animais como chamou-lhe Archaeopteryx, que significa «asa anti-
lagartos gigantescos e ater- ga». Pouco tempo depois, foi encontrado na mesma
radores. No entanto, um dos pedreira um fóssil de esqueleto com impressões de
aspetos mais surpreenden- penas, que Von Meyer identificou como pertencendo
tes em torno do mundo dos ao mesmo animal e também lhe deu o nome de Ar-
dinossauros não é apenas chaeopteryx. Este impressionante exemplar acabou
o tamanho que atingiram nas coleções do Museu Britânico, nas mãos de Sir
ou as formas bizarras que assumiram, mas também Richard Owen, o naturalista que cunhou o termo»-
o facto de ainda viverem entre nós. Desde tempos dinossauro» para incluir a sua primeira espécie,
imemoriais, os dinossauros estão à nossa volta, mes- descoberta como o famoso Megalosaurus ou Igua-
mo que lhes chamemos outra coisa: aves. Esta é a nodon. Owen estudou cuidadosamente estes restos
fascinante história de como descobrimos que os di- e considerou-os como uma ave que conservava ca-
nossauros não se extinguiram completamente. raterísticas embrionárias, o que levou à descoberta
A história da ligação entre aves e dinossauros da ave mais antiga do registo fóssil. Esta descoberta
remonta a Solnhofen, na Alemanha, na segunda foi de grande importância, pois na altura acredita-
metade do século XIX. Esta localidade alberga uma va-se que as aves tinham surgido juntamente com
pedreira de calcários litográficos, formados há cerca os mamíferos após a extinção dos dinossauros no
de 150 milhões de anos no que hoje identificamos co- período Terciário (atual Cenozoico). No entanto, a
mo o Jurássico Superior, famosa pela sua excecional descoberta de uma ave no Jurássico provou que as
preservação de restos fósseis de antigos habitantes aves coexistiam com os dinossauros. Com o tempo
de um ecossistema extinto. Entre os muitos acha- e as novas descobertas, a paleontologia revelou que
muitas caraterísticas que eram consideradas exclu-
sivas das aves surgiram muito antes na sua árvore
genealógica, ou seja, nos dinossauros.
Apenas um ano antes da descoberta da pena do Ar-
chaeopteryx, em 1859, Charles Darwin publicou A
Origem das Espécies, revolucionando tanto o mun-
do das ciências naturais como a sociedade em geral.
A ideia de que todas as formas de vida na Terra evo-
luíram a partir de espécies anteriores, incluindo a
espécie humana, era difícil de aceitar para as mentes
da época. No entanto, a descoberta do Archaeopteryx
SHUTTERSTOCK

Acreditava-se que as aves tinham surgido juntamente com os


mamíferos após a extinção dos dinossauros, mas a descoberta
de uma ave jurássica veio alterar esta ideia. Os dinossauros
possuíam muitas caraterísticas das aves.
ASC

86 SUPER
ASC

Fósseis de aves como o iberomesornis, do Cretáceo Inferior, levaram à descoberta da existência de dinossauros com penas e de
aves primitivas. Os dinossauros e as aves primitivas teriam evoluído morfologicamente , convertendo-se em aves.

forneceu um exemplo concreto de uma forma de para desenvolver a sua teoria da evolução por sele-
transição entre grupos de seres vivos, apoiando assim ção natural, mencionando mesmo a descoberta do
a teoria evolutiva de Darwin. Este réptil com penas, Archaeopteryx como prova da evolução das aves a
considerado por alguns como uma ave com carate- partir dos répteis em reimpressões posteriores da
rísticas embrionárias e por outros como uma forma sua Origem das Espécies.
de transição entre répteis e aves, tornou-se uma peça Nas últimas décadas, a descoberta de numerosos
crucial no puzzle evolutivo. dinossauros com penas e aves primitivas demonstrou
Em 1877, foi descoberto em Solnhofen um outro que a linhagem dos dinossauros às aves é um processo
exemplar de Archaeopteryx, que foi adquirido pelo contínuo de mudança morfológica, bem documenta-
Museu de História Natural de Berlim. Este exemplar, do no registo fóssil. Além disso, o estudo dos fósseis
possivelmente o mais espetacular, mostrava as asas revelou que muitas caraterísticas que pensávamos
abertas com penas perfeitamente dispostas, propor- serem exclusivas das aves já estavam presentes nos
cionando uma visão única desta criatura pré-histórica. dinossauros.
Com o tempo foram encontrados e publicados, até
10 exemplares de Archaeopteryx. Embora a pena PENAS
original que deu o nome ao género tenha caído no Essas estruturas delicadas e coloridas que adornam
esquecimento durante algum tempo, um estudo as aves, as penas, capturaram a imaginação humana
pormenorizado realizado em 2020 confirmou que durante séculos. Mas alguma vez se perguntou como
pertencia aos exemplares de Archaeopteryx, fe- é que estas maravilhas da natureza surgiram e qual é a
chando assim, o círculo em torno da ave mais antiga suaprincipal função?
conhecida no registo fóssil. As penas não são mais do que derivados epidér-
A modesta descoberta de uma pequena pena e micos, ou seja, estruturas que se desenvolvem a
dos seus portadores foi de enorme importância pa- partir das células mais externas da pele, que podem
ra apoiar as ideias evolutivas. Os fósseis, como os ter surgido originalmente como pequenas fibras
do Archaeopteryx, são fundamentais para com- das escamas dos répteis. Estas fibras evoluíram
preender a evolução, pois fornecem provas diretas para estruturas complexas que proporcionaram
do processo evolutivo. Até Charles Darwin se baseou importantes vantagens evolutivas aos seus porta-
nos fósseis, a extinta megafauna sul-americana, dores. Embora muitos possam pensar que a função

A transição dos dinossauros para as aves demonstrou


ser um processo contínuo de mudança morfológica
SUPER 87
A linhagem das aves
teria tirado partido das
suas caraterísticas
hereditárias para voar
cimento. Além disso, as penas protegem a pele das
SHUTTERSTOCK

aves de elementos externos como a chuva, o vento


e a radiação solar. Desempenham também um pa-
pel crucial na comunicação entre aves, quer atraindo
A função original das penas não terá sido a de permitir o voo, potenciais parceiros durante a época de reprodução,
mas sim a de manter o calor e a de comunicar. quer servindo de camuflagem para se misturarem
com o ambiente e evitarem os predadores.
É muito provável que muitos dos comportamentos
primária das penas é o voo, a descoberta de enor- e caraterísticas que observamos nas aves atuais sejam
mes dinossauros com penas, como o tiranossauro herdados dos dinossauros, o que nos permite imagi-
Yutyrannus huali, no noroeste da China, desafia nar não só dinossauros com penas, mas também uma
esta ideia. Isto sugere que as penas não surgiram variedade de cores de plumagem e comportamentos
inicialmente para voar, mas provavelmente tinham surpreendentes.
outras funções.
O metabolismo dos dinossauros pode ter sido mais OSSOS OCOS
semelhante ao dos mamíferos do que ao dos répteis, Uma caraterística que se pensava ser exclusiva das
conservando e gerando calor ativamente. Assim, as aves é a posse de «ossos ocos», o que reduz o pe-
penas surgiram muito provavelmente como um me- so do seu esqueleto e facilita o voo. Isto deve-se ao
canismo de controlo desse calor, isolando o animal facto de as aves possuírem um sistema respiratório
das intempéries. A estrutura única das penas cria muito complexo: dos seus pulmões saem sacos de
camadas de ar aprisionado que ajudam a manter o ca- ar chamados «sacos aéreos». A partir destes sacos,
lor do corpo em condições frias, enquanto no tempo surgem ramificações chamadas divertículos pneu-
quente permitem a ventilação e evitam o sobreaque- máticos. Estes divertículos acabam por formar fossas
ASC

O Sinosauropteryx foi um dos primeiros dinossauros com penas descobertos na Formação Xisiang, na província de Liaoning, China. Era
um dinossauro terópode, caracterizado por ossos ocos e membros com três dedos funcionais.

88 SUPER
SHUTTERSTOCK
Nos ossos das aves (à esquerda), os divertículos formam buracos e
cavidades (acima), tornando os seus esqueletos muito mais leves.

merosos restos de dinossauros com penas, como o


SHUTTERSTOCK

Microraptor ou o Sinosauropteryx, bem como das


próprias aves primitivas, como o Confuciusornis ou o
Archaeorhynchus, todos do período Cretácico.
No entanto, surpreendentemente, em Espanha
e cavidades nos ossos, o que faz com que o esqueleto também existe um excelente registo fóssil de aves
das aves pese muito menos do que, por exemplo, o primitivas. Remontamos a 125 milhões de anos atrás,
dos mamíferos. ao Cretáceo Inferior, especificamente ao que hoje co-
Esta pneumaticidade surgiu milhões de anos antes nhecemos como Las Hoyas, na província de Cuenca.
de a primeira ave levantar voo. Tanto os dinossau- O que distingue Las Hoyas de outros sítios paleonto-
ros terópodes (os carnívoros, que incluem formas lógicos é a excecional conservação dos seus fósseis,
tão populares como o Tiranossauro, mas também semelhante à do sítio de Solhofen. Ao contrário de
as aves) como os saurópodes (os dinossauros gigan- muitos outros sítios, Las Hoyas preserva não só restos
tes com pescoços longos como o Diplodocus) tinham de esqueleto, mas também tecidos moles como penas,
esqueletos cheios de fossas e câmaras pneumáticas. pele e órgãos internos, oferecendo uma janela única
A linhagem das aves simplesmente aproveitou a sua para o passado.
herança para voar. Entre os numerosos e famosos restos fósseis desco-
bertos em Las Hoyas, destacam-se as aves, que podem
ALTO METABOLISMO ser identificadas como o local mais notável em Espa-
Os dinossauros poderiam ter tido sangue quente, nha para o estudo da sua evolução. Entre os diferentes
como as aves? E se as aves, mais uma vez, apenas táxons descobertos encontram-se o Iberomesornis
tiraram partido deste legado? Na década de 1970, romerali, com uma envergadura de cerca de 10-15
colocou-se a hipótese de os dinossauros poderem cm, o Eoalulavis hoyasi, com uma envergadura de
ter tido sangue quente, e o interior dos seus ossos cerca de 20 cm, bem como o Concornis lacustris e o
era a chave para o descobrir. O estudo microscópico Noguerornis gonzalezi. O mais fascinante é que Las
dos tecidos ósseos dos dinossauros revelou que es- Hoyas continua a ser estudada e todos os anos os pa-
tes tinham um metabolismo elevado, semelhante ao leontólogos descobrem novos vestígios fósseis. Por
dos mamíferos e das aves. Esta descoberta levantou conseguinte, é apenas uma questão de tempo até que
a possibilidade de os dinossauros, tal como as aves, os cientistas descubram novos achados que nos per-
serem animais de sangue quente, o que contribuiu mitam compreender melhor a evolução das aves, com
para mudar a nossa perceção destas fascinantes cria- um toque ibérico.
turas pré-históricas. Agora a perspetiva está mais clara: os dinossau-
ros já tinham um metabolismo elevado e ossos ocos.
A ORIGEM DAS AVES: ONDE PROCURAR Muitos deles estavam providos de penas. E um pe-
Uma vez verificado que muitos dinossauros já apre- queno grupo de dinossauros terópodes graciosos
sentavam caraterísticas aviárias, surge a inevitável aproveitou estas caraterísticas para se tornar, após
questão: onde podemos encontrar um registo fóssil a extinção dos seus companheiros dinossauros, no
suficientemente diversificado da linhagem aviária grupo de vertebrados mais diversificado que existe
para compreender a evolução deste grupo? A respos- atualmente. E é que dinossauros não se extinguiram
ta leva-nos à China, onde há décadas se tem vindo todos: os seus descendentes estão a voar sobre as
a realizar um trabalho prolífico de descrição de nu- nossas cabeças todos os dias. e

SUPER 89
N E U R O L O G I A

O SEU CÉREBRO
quantum
SHUTTERSTOCK

90 SUPER
Alguns investigadores defendem que a nossa capacidade de raciocinar, interpretar e imaginar
só pode ser explicada de forma satisfatória se esses fenómenos cognitivos se basearem em
processos quânticos. Além disso, alguns especialistas defendem que o funcionamento do
nosso cérebro assenta que nem uma luva nos princípios da física do diminuto.

Texto de JOANA BRANCO, bióloga e divulgadora de ciência

E
ntrar no mundo da mecânica nosso espírito e até a nossa imaginação são processos
quântica é aceitar desde logo que que não se conformam com os princípios da lógica
estamos perante uma matéria clássica, mas são de natureza quântica. A ser verdade,
muito difícil de compreender. esta abordagem poderia revolucionar todas as ciên-
Formulada para explicar o cias e todos os conhecimentos humanos, da economia
mundo do muito pequeno — à sociologia.
partículas subatómicas que não
vemos nem, sejamos honestos, NÃO É A PRIMEIRA VEZ QUE UMA DISCIPLINA FORA DA
compreendemos bem — es- FÍSICA SE DEBRUÇA SOBRE ESTA QUESTÃO.
ta disciplina da física recorre a Nos anos 80, o famoso cosmólogo britânico Roger
formalismos matemáticos ex- Penrose — de quem falaremos mais tarde — pos-
tremamente complicados que, por vezes, descrevem tulou que o nosso cérebro se comporta como um
fenómenos que não parecem ter qualquer lógica. Con- computador quântico. Os psicólogos, no entanto,
sequentemente, é um domínio em que prosperam todo concentram-se menos na possível base neurofisioló-
o tipo de magias, teorias new age, terapias alternati- gica deste fenómeno.
vas, pseudo-medicinas e explicações delirantes para Jerome Busemeyer, um dos pioneiros neste cam-
todo o tipo de maravilhas cujo funcionamento ainda po, da Universidade de Indiana Bloomington(EUA),
nos escapa. é claro: «Não estamos a afirmar que o cérebro é um
Por isso, quando descobrimos que há neurobiólogos computador quântico; estamos, na verdade, a usar
e psicólogos que tentam explicar a consciência huma- processos quânticos para descrever fenómenos cog-
na — um dos grandes mistérios da ciência — com base nitivos», diz. Por outras palavras, e tal como este
em diferentes tipos de interações quânticas, é normal mesmo especialista em psicologia matemática da
que todos os alarmes soem. Universidade de Indiana(EUA) explicou à revista
A última década, em particular, não foi fácil para a Science & Vie, quando falamos de psicologia quânti-
psicologia. Acusada de falta de rigor científico e com ca não nos referimos ao funcionamento biológico dos
um número incomensurável de estudos impossíveis neurónios, mas à forma como o nosso cérebro pro-
de reproduzir — condição prévia para a credibilida- cessa a informação para, em última análise, construir
de — a psicologia sofreu. E, no entanto, um grupo pensamentos.
crescente de investigadores está convencido de que Mas o que é que diferencia esta nova abordagem
só podemos explicar o que se passa na nossa cabeça se das posições mais convencionais? Vamos ilustrar
«descermos ao mundo quântico». com um exemplo. Estamos num restaurante e o
Para estes especialistas, o mais pequeno dos nossos empregado pede-nos para escolher entre água ou
pensamentos, o raciocínio por detrás de uma decisão, vinho. De acordo com a psicologia clássica, a nossa
as associações de ideias que nos permitem interpretar opinião sobre o assunto está perfeitamente definida
o mundo que nos rodeia, as reflexões que povoam o em qualquer altura, mesmo que estejamos perante

SUPER 91
LAGUNA DESIGN

um dilema e não saibamos bem o que nos apetece que cada vez mais especialistas se interessam por este
beber. Tomar uma decisão depende apenas da defi- campo. Um deles, realizado nos anos 90, envolve um
nição da nossa preferência. jogo de dados. Nele, é dito aos jogadores que têm 50%
No entanto, de acordo com a psicologia quântica, de hipóteses de ganhar 200 euros e 50% de hipóteses
não existe uma resposta única à pergunta no nos- de perder 100 euros.
so cérebro, mas todas elas ao mesmo tempo — uma Ora, cerca de 70 % das pessoas a quem foi dito
sobreposição de estados — ou seja, somos atraídos que tinham ganho da primeira vez decidiram voltar
pela água e seriamente tentados pelo vinho — mes- a jogar. Sessenta por cento dos indivíduos a quem
mo que tenhamos de conduzir — exatamente na foi dito que tinham perdido também quiseram vol-
mesma medida; vacilamos perfeitamente entre os tar a jogar. Apenas 35% das pessoas a quem não foi
dois. Confuso? Não é para menos. dito nada o fizeram. Segundo a lógica clássica, esta
última percentagem deveria ser a média das duas
O PAPEL DA MECÂNICA QUÂNTICA primeiras, mas não é o caso. Para os especialistas,
De facto, há investigadores que defendem que só a estes resultados são coerentes com a metodologia
mecânica quântica pode explicar a complexidade da quântica.
mente humana e que só tendo-a em conta é possível Como explica o psicólogo Peter Bruza, da Univer-
clarificar certos resultados experimentais que, de ou- sidade de Tecnologia de Queensland (Austrália), nas
tra forma, não fariam sentido. Há uma infinidade de páginas da Science & Vie , «o participante que não
testes em que o nosso cérebro parece desafiar a lógi- sabe se ganhou está num estado de superposição. Po-
ca clássica, e o seu número está a aumentar à medida de ter ganho da primeira vez ou pode ter perdido. Um

92 SUPER
As nossas decisões
sobrepõem-se e reduzem-
se a uma só durante a
tomada de decisão
de nove pessoas que participaram em 25 000 ensaios,
as que foram obrigadas a tomar uma decisão a meio
do ensaio mostraram-se menos confiantes no seu jul-
gamento do que as outras.

PARA OS RESPONSÁVEIS PELO TESTE, estes dados


mostram que as nossas opiniões não estão sempre
num estado bem definido — como estabelece o mo-
delo clássico — mas que estão sobrepostas e reduzidas
a uma única durante o processo de tomada de deci-
são. Assim, quando o processo de decisão tem lugar a
meio da experiência, a resposta é transformada, o que
afeta o resultado final.
De acordo com o modelo quântico, aqueles que não
foram forçados a fazer uma escolha a meio tendem a
tomar decisões mais claras, ou seja, a escolha inter-
média interfere com o julgamento subsequente. Para
os especialistas, o teste também mostra que vivemos
em estados mentais sobrepostos.
Mas, para além de se sobreporem, os nossos pensa-
ISTOCK

mentos podem entrelaçar-se, tal como acontece com


as partículas no mundo quântico? Para estudar se es-
A forma como os nossos cérebros reagem quando olhamos
para o impossível cubo de Necker — à esquerda — ou ta particularidade se manifesta na nossa mente, foi
tentamos perceber o significado de um trocadilho — acima, concebido o chamado teste do cogumelo. Essencial-
um exemplo — é frequentemente utilizada para argumentar mente, este consiste em responder a três perguntas
que os nossos processos cognitivos seguem os princípios da aparentemente simples: um cogumelo é um fruto? É
mecânica quântica. um vegetal? É um fruto ou um vegetal?
Os resultados obtidos nos anos 80 pelo psicólogo
James Hampton revelaram que ninguém considera-
termo de interferência é adicionado às probabilidades va o cogumelo como um fruto. No entanto, um em
clássicas, o que modifica a sua decisão e se ajusta per- cada dois inquiridos disse que era um legume, mas
feitamente aos resultados experimentais [na teoria 90% disse que «ou era um fruto ou um legume».
quântica, o conceito de interferência significa que as Por outras palavras, a grande maioria considerou
partículas estão em vários sítios ao mesmo tempo, ao que devia ser uma destas duas coisas, um resulta-
ponto de poderem atravessar a sua própria trajetória do que, segundo Diederik Aerts, físico teórico da
e obstruí-la]. Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica), revela
Uma outra experiência concebida por Buseme- que os nossos pensamentos podem estar interliga-
yer em conjunto com os psicólogos Timothy Pleskac dos: perante a ambiguidade, a categoria «fruta ou
e Peter Kvam, conhecida como o teste dos pontos legume» não se reduz à soma das suas duas subca-
em movimento, aponta na mesma direção. Consiste tegorias.
em observar pontos num ecrã. A maior parte deles
move-se ao acaso e uma pequena percentagem es- BASEANDO-SE NO CUBO DE NECKER
tá programada para se mover na mesma direção. A Aquela que é provavelmente a experiência mais antiga
alguns voluntários é pedido que decidam se estão a em que se tentou introduzir a mecânica quântica ba-
mover-se mais para a direita ou para a esquerda e que seia-se no chamado cubo de Necker. O cristalógrafo e
avaliem o seu grau de certeza; a outros é pedida a opi- geógrafo suíço Louis Albert Necker demonstrou esta
nião a meio do teste. ilusão de ótica em 1832. Como o nome indica, trata-se
O resultado, publicado na revista Proceeding of the de um cubo, desenhado com traços lineares, mas de
National Academy of Sciences (PNAS), mostra que, uma forma muito peculiar: o observador pode deter-

SUPER 93
O ser humano
vive em estados
de espírito
sobrepostos.
Quando se trata
de tomar uma
decisão, como
escolher um
caminho, todas
as opções se
sobrepõem.
ISTOCK

minar que a sua face frontal é a parte superior direita, português, traduz-se como: «O tempo voa como
mas também a parte inferior esquerda. É uma figura uma flecha; a mosca da fruta gosta de bananas» Es-
ambígua que, de acordo com os psicólogos quânticos, te ditado, famoso entre os psicólogos anglófonos que
pode ser interpretada alternativamente de uma forma estudam a nossa inteligência, representa na perfeição
ou de outra, uma amostra do que é conhecido como uma caraterística intrínseca do humor: a ambiguida-
perceção biestável. de acima referida.
Este conceito, proposto por Harald Atmanspa- A questão é que as palavras flies e like têm dois sig-
cher do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique nificados diferentes. Flies pode significar «moscas»
(Suíça) e Thomas Filk da Universidade de Freiburg e «voos»; também é possível entender like como
(Alemanha), significa basicamente que a perceção é «gostar» e como «como». Por conseguinte, entram
uma oscilação entre dois estados instáveis, um siste- em conflito na mente do leitor, um fenómeno que,
ma dinâmico bem conhecido dos físicos quânticos. segundo os especialistas, é a chave do humor. Sepa-
Segundo estes cientistas, é mesmo possível deduzir radamente, as duas frases acima não são engraçadas.
a velocidade a que cada estado do cubo é captado — Elas só adquirem as caraterísticas de uma piada quan-
trinta milissegundos — e o período em que a perceção do o significado da primeira entra em conflito com o
oscila — três segundos. da segunda. Nesse caso, o cérebro primeiro assimila
Outro fenómeno que parece ter fundamentos que o tempo voa como uma flecha. Depois, ao ler a
quânticos é o nosso sentido de humor, uma questão segunda frase, cai num erro de leitura, até que, de re-
que envolve processos cognitivos muito complexos pente, assimila que as moscas da fruta (flies) gostam
para os quais é igualmente muito difícil criar mode- (like) bananas.
los. De facto, trata-se de uma das capacidades mais Para os autores deste estudo, o conflito necessário
flexíveis da mente humana. No entanto, de acordo para que o humor surja obriga o cérebro a contem-
com uma experiência realizada por Liane Gabora e plar os dois significados da segunda frase ao mesmo
Kirsty Kitto, das Universidades da Colúmbia Britâ- tempo. Por outras palavras, deve estar num estado de
nica, no Canadá, e da Universidade de Tecnologia sobreposição quântica. Da mesma forma que uma su-
de Queensland, na Austrália, respetivamente, a ba- perposição entre partículas colapsa quando é medida
se do humor assenta em fórmulas matemáticas da e o objeto em questão adquire uma única posição, o
teoria quântica. facto de compreender uma piada deve-se ao facto de
Tomemos, por exemplo, esta frase inglesa: Ti- o cérebro optar por uma das interpretações possíveis
me flies like an arrow; fruit flies like bananas. Em da frase, o que resolve o conflito.

94 SUPER
Já existem provas
Os ‘milagres’ dos
científicas da existência
estados quânticos
de fenómenos quânticos
no cérebro humano E xtremamente frágeis e com uma existência subordina-
da a condições muito específicas, os estados quânticos
explicam o mundo do mais pequeno, um ambiente estranho
onde as regras da lógica parecem não fazer sentido, mas que,
segundo os últimos estudos, pode ter uma enorme influência
nas nossas vidas.
Este tipo de pensamento dual é compatível com • Emaranhamento. Definido por Einstein como «uma ação
os formalismos matemáticos da física do muito pe- assustadora à distância», este estado implica que algumas
queno, mas poderá o nosso órgão pensante ser um partículas, embora separadas no espaço, permanecem mis-
verdadeiro computador quântico? Quais são as bases teriosamente ligadas e reagem como se ainda estivessem
neuronais que lhe permitem funcionar como um des- juntas. Esta noção contradiz a física clássica, que afirma que
tes dispositivos? um objeto só pode ser influenciado pelo que o rodeia.
• Dualidade onda-partícula. Os eletrões podem compor-
A TEORIA QUÂNTICA DA CONSCIÊNCIA tar-se como partículas ou como ondas. Na realidade, não são
Já passaram mais de trinta anos desde que Roger nem uma coisa nem outra, mas algo que por vezes pode ser
Penrose e Stuart Hameroff apresentaram a sua teoria detetado como uma onda e noutros contextos como uma
quântica da consciência. Para Penrose e o seu cole- partícula, mas que não sabemos como observar satisfatoria-
ga, um psicólogo da Universidade do Arizona (EUA), mente de outra forma.
unidades minúsculas do citoesqueleto celular conhe- • Efeito túnel. As partículas podem atravessar barreiras apa-
cidas como microtúbulos funcionam como canais de rentemente intransponíveis, num fenómeno que tem sido
transferência de informação quântica. Seriam, por- descrito quase como teletransporte. Graças a esta capaci-
tanto, responsáveis pela manifestação da consciência dade, os eletrões são capazes de penetrar em zonas que, em
humana. teoria, não deveriam poder atravessar.
Apesar dos complexos cálculos desenvolvidos • Sobreposição de estados. A velocidade e a posição de
por Penrose para sustentar esta hipótese, ela care- uma partícula num instante não se podem conhecer com
ce de provas concretas que a sustentem, tendo sido exatidão. O simples facto de tentar medir um destes valo-
considerada pela comunidade científica como algo res obriga a partícula a escolher um estado particular entre a
especulativo. enorme variedade de estados em que se pode encontrar. De
No entanto, nas últimas décadas, sempre que se acordo com a teoria quântica, enquanto a partícula não for
descobre o envolvimento de fenómenos quânticos sujeita a um ato de medição, encontra-se em todos os seus
em sistemas vivos — como na fotossíntese, no fun- estados possíveis ao mesmo tempo.
cionamento de enzimas, no olfato, ou no sistema de
orientação biológica usado por certas espécies de aves
nas suas migrações — alguém se lembra de mencionar
a proposta de Penrose e Hameroff.
Longe de pensar que o seu trabalho tinha algo a ver
Duas
com isso, um grupo de investigadores, entre os quais
particularidades do
o espanhol David López, da Universidade de Varsóvia mundo quântico: o
SHUTTERSTOCK

(Polónia), deparou-se com o que pode ser conside-


MARK GARLICK SPL

emaranhamento, a
rado a primeira prova da existência de fenómenos capacidade de duas
quânticos no cérebro humano. partículas
López e os seus colegas tinham como objetivo es- separadas se
tudar o ruído que ocorre no nosso órgão pensante comportarem da
quando em repouso — uma caraterística inata do ór- mesma forma — na
gão — que desaparece quando as ligações neurais são imagem acima — e
ativadas. «A medição do ruído pode ser usada para a sobreposição, um
fenómeno em que
quantificar eficazmente a forma como as diferentes
se fala em estados
áreas do cérebro são ativadas ou para limpar o sinal diferentes ao
de uma ressonância magnética, por exemplo», diz mesmo tempo até
Lopez quando questionado sobre a utilidade das suas ser observado,
experiências. como o gato, morto
ISTOCK

Ao trabalharem com uma pequena área do cé- e vivo.


rebro, os cientistas encontraram um sinal que,

SUPER 95
Microtúbulos: as
condutas quânticas que
podem dar origem à consciência
SHUTTE
RSTOCK
SPL

1 NEURÓNIOS 2 MICROTÚBULOS

A hipótese mais Mas para Roger Penrose e


difundida sustenta Stuart Hameroff, a chave está
que a consciência em minúsculos polímeros
surge da troca de cilíndricos chamados
sinais eletroquímicos microtúbulos. Há centenas
entre os cem mil deles em cada neurónio.
milhões de neurónios
do nosso cérebro.

RSTOCK
SHUTTE

4 BIOCOMPUTADORES

Alguns especialistas defendem


que, em cada nanossegundo,
as tubulinas podem
apresentar-se num estado
aberto ou fechado, de acordo
com os princípios da mecânica
quântica, funcionando assim
como computadores 3 TUBULINAS

microscópicos. Cada microtúbulo


contém milhões de
subunidades
proteicas
5 CONSCIÊNCIA chamadas
Os defensores dos tubulinas. Estas
fenómenos quânticos estão dispostas
no nosso cérebro numa espécie de
dizem que a rede molecular.
consciência surge
devido à atividade
combinada dos
microtúbulos. Em
cada neurónio, isto
equivaleria a um
poder de
computação de mil
triliões de operações
GETTY

por segundo.
A ideia de uma espécie de consciência quântica é uma
lufada de ar fresco num domínio de investigação que
nunca deixou de atrair a atenção dos cientistas

surpreendentemente, se assemelhava muito a um


eletrocardiograma. «Detetámos um pico para cada
batimento cardíaco, mas não conseguíamos explicar
as observações através da física clássica», explica
López.
Nesta altura, os especialistas pensaram que teriam
de entrar no complexo mundo da ciência quântica.
«Era muito claro para nós que estávamos perante
um sinal que media a interação da atividade cere-
bral em repouso com a entrada de sinais cardíacos e
que era necessário um ponto de vista quântico para o
explicar», diz o investigador. Segundo ele, as coisas
ficaram ainda mais interessantes quando compara-
ram os resultados observados num grupo de pessoas
com mais de 65 anos e num grupo de indivíduos mais
jovens, entre os 18 e os 30 anos. «Essa relação entre
GETTY

o sinal cerebral e o sinal cardíaco, que observámos


nestes últimos, desapareceu com a idade», explica. A nossa atividade mental emana dos cem mil milhões de
«No entanto, é verdade que há um declínio tanto do neurónios que povoam o nosso cérebro e das ligações
coração como do cérebro, e isso pode afetar esta inte- sinápticas que ocorrem entre eles. Segundo alguns cientistas,
esta comunicação resulta de interações quânticas que são
ração», diz López.
desencadeadas no interior das células nervosas.

FALAMOS DE COERÊNCIA QUÂNTICA


Tudo se complicou quando a equipa descobriu que
um dos voluntários tinha adormecido a meio do sinal — que faz com que se pareça com um eletro-
teste. Quando analisámos os dados do exame des- cardiograma — não pode ser explicado pelas leis da
sa pessoa em particular, vimos que havia um sinal física clássica.
perfeitamente sincronizado e claramente cardíaco Ainda assim, para Lopez, a hipótese postulada por
no início, mas à medida que o teste avançava, de- Penrose e Hameroff continua a ser altamente dis-
sapareceu, reaparecendo apenas no final», diz ele. cutível. No entanto, não nega que as suas medições
Foi aí que tivemos a ideia de que poderia ser um sinal podem ser usadas para apoiar a ideia de uma certa
sensível às alterações da consciência». E acrescenta: consciência quântica, uma lufada de ar fresco num
«Num estado de alerta, ou seja, enquanto estamos campo de investigação que, apesar de muito contro-
acordados, tanto o coração como o cérebro têm de verso, nunca deixou de atrair a atenção dos cientistas.
atuar de forma coordenada. Mas quando esse esta- David López conta que, quando Hameroff leu o ras-
do muda e entramos numa fase de sono, a sincronia cunho do seu artigo, entrou em contacto com a sua
quebra-se e o sinal muda e torna-se mais ruidoso. equipa para discutir os avanços que têm sido feitos
Analisámos todas as opções possíveis para explicar neste campo nos últimos tempos, incluindo os pro-
estes resultados e, para nós, a única coisa que faz movidos por Matthew Fisher, um físico teórico da
sentido é que estamos a falar de coerência quântica. Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, que
Ou seja, se o objeto que queremos medir — no nos- é um dos mais entusiastas defensores das teses de
so caso, o sinal que obtemos e relacionamos com a Penrose e Hameroff. Fisher lidera atualmente um
consciência — se separa em várias ondas, pode haver macro-estudo conhecido como «The Quantum Brain
um momento em que elas interferem e produzem o Project» ou «QuBrain».
sinal», diz López. Este projeto, no qual a Fundação Heising-Simons
Os investigadores dizem ter muitos indícios de injetou 1,2 milhões de dólares, visa estudar a hipó-
que se trata de um efeito quântico. É um fenómeno tese do cérebro quântico sob diferentes ângulos. A
muito sensível ao movimento», diz López. Precisa- ideia é tentar encontrar a prova definitiva que liga os
mos de condições calmas para o medir. Basta que o fenómenos da física do muito pequeno à consciência
voluntário se mova no scanner para que o sinal se- humana, duas coisas que, na verdade, partilham uma
ja distorcido. Além disso, mostrámos que o pico do complexidade maravilhosa. e

SUPER 97
PERGUNTAS E RESPOSTAS

AS VESPAS SÃO
CARNÍVORAS?

LUIS MIGUEL RUIZ GORDÓN


Normalmente lembramo-nos das vespas, insetos himenóp-
teros da família Vespidae, pelas suas picadas dolorosas,
mas são um grupo muito diversificado, com diferentes
comportamentos e hábitos alimentares. cia irritante, especialmente quando se trata de salsichas,
No entanto, em geral, embora também cacem outros in- bifes ou qualquer tipo de enchidos.
setos, as vespas são principalmente necrófagas amantes Com as suas mandíbulas poderosas, arrancam pequenos
de carne. Quem já comeu ao ar livre no campo terá sido pedaços de comida, roem e cortam o tecido e fazem bo-
incomodado por vespas robustas do género Vespula ger- las de pele, carne e gordura, que levam para o vespeiro
manica, por exemplo, que vêm almoçar com uma insistên- para se banquetearem.

A que se deve a luz cinzenta?


É o nome dado a um evento astronómico em que a lua adquire uma cor acin-
zentada semelhante à das cinzas no momento em que está minguante e se
aproxima da fase de lua nova.
ALAN DYER/STOCKTREK IMAGES

Para o observar, é preciso estar num local com céu limpo e seco, e deve haver
uma circunstância: o Sol, a Lua e a Terra devem estar quase alinhados por es-
ta ordem. O primeiro ilumina o lado do nosso satélite que não podemos ver,
de modo a que se veja a silhueta de toda a sua superfície.

As unhas crescem O que é a diplomacia do pingue-pongue?


mais lentamente Em abril de 1971, quando a equipa de ténis de mesa dos

no inverno? EUA se encontrava na cidade japonesa de Nagoya para


disputar o campeonato mundial, recebeu um convite
Sim, é verdade que a invulgar para jogos de exibição na China. As duas potên-
taxa de crescimento cias não mantinham relações diplomáticas desde os anos
— 1,5 milímetros por 50, mas o gesto surgiu depois do atleta americano Glenn
mês, em média, para Cowan ter entrado no autocarro da delegação chinesa e
as unhas dos pés e ter feito amizade com o seu rival Zhuang Zedong. Iniciou-
3 mm para as unhas -se assim uma fase de desanuviamento — a diplomacia
das mãos — abranda do pingue-pongue — que culminou com a histórica visita
ligeiramente durante de Richard Nixon ao país comunista em 1972.
os meses mais frios
IAN HOOTON/SPL

do ano, embora não


seja claro por que
razão isso acontece.
Provavelmente, tem
a ver com uma menor exposição ao sol, um fator que afeta
certamente o cabelo: menos calor abranda a circulação san-
guínea e as raízes do cabelo produzem menos queratina, a
proteína fibrosa que forma o cabelo e as unhas. É o mesmo
que acontece quando se deixa de regar uma planta.
As unhas dos dedos podem ficar mais compridas ou mais
curtas devido a outras circunstâncias. Assim, as crianças
e as mulheres grávidas têm de as cortar com mais fre-
ASC

AFP

quência, e também as da mão dominante crescem mais Nixon visitou a China em 1972, na sequência de jogos de
depressa. pingue-pongue.

98 SUPER
O QUE VEIO PRIMEIRO,
A GALINHA OU O OVO?

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NÚMERO 303
MENSAL ○ JULHO 2023

ENTREVISTA
NUNO MAULIDE
A QUÍMICA ORGÂNICA
SEM COMPLEXIDADE
PÁG. 42

GUERRA
PORTUGAL NA
1ª GUERRA MUNDIAL
PÁG. 80

TECNOLOGIA
SERÁ QUE ALGUMA
VEZ VEREMOS A
FUSÃO NUCLEAR A
FUNCIONAR?
PÁG. 36

HISTÓRIA
A ÚLTIMA NOITE
DE GIACOMO
CASANOVA
PÁG. 88

CRIMINOLOGIA
PORQUE É QUE
AS CRIANÇAS

MORFOLOGIA
MATAM?
PÁG. 74

GALÁCTICA
N.º 303

PORTUGAL NA
QUE FORMA TÊM AS GALÁXIAS E PORQUÊ? 1ª GUERRA MUNDIAL

SUBSCRIÇÃO ANUAL SUBSCRIÇÃO ANUAL


versão impressa versão digital

39 E/ano 19 E/ano

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