RECUPERAÇÃO JUDICIAL E TRIBUTOS
Daniel Moreti1
Sumário: 1. A recuperação judicial como meio de implementação do princípio
da preservação da empresa. 2. O crédito tributário e a recuperação judicial. 2.1.
Não sujeição dos débitos tributários à recuperação judicial e a necessidade de
apresentação de certidão negativa tributária como condição para a sua conces-
são. 2.2. O parcelamento especial de débitos tributários para empresas em re-
cuperação judicial. 2.3. A continuidade das execuções fiscais durante o proces-
samento da recuperação judicial. 3. A necessidade de adequação da legislação
aos princípios que orientam a preservação da empesa. Considerações finais.
1. A recuperação judicial como meio de implementação
do princípio da preservação da empresa
Aos trinta anos da Constituição Federal, muitos avanços
ainda se fazem necessários, especialmente para implementa-
ção de diversos de seus princípios, como é o caso da preserva-
ção da empresa em razão de sua função social.
A preservação da empresa é corolário da função social da
propriedade e figura como fundamento da recuperação judicial.
1. Doutor em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestre em Direito Tributário pela
PUC/SP. Professor de Direito Tributário e Processo Tributário em cursos de Gra-
duação e Pós-Graduação em diversas instituições de ensino. Autor de diversas
obras e artigos jurídicos de Direito Tributário. Advogado. Juiz do Tribunal de Im-
postos e Taxas do Estado de São Paulo.
213
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS
No sistema econômico capitalista, cujas características
basilares são a garantia do direito de propriedade e a liber-
dade de iniciativa e de competição, existe a primazia para o
exercício de atividades econômicas pelos agentes da iniciativa
privada, com fundamento no princípio da livre iniciativa.
Tais atividades são desempenhadas principalmente pelo
empresário e pela sociedade empresária ao exercerem, profis-
sionalmente, atividade econômica organizada para a produção
ou a circulação de bens ou serviços (art. 966 do Código Civil).
A atividade empresária é vital para a economia brasileira,
de tal sorte que o próprio artigo 170 da Constituição, ao cuidar
dos princípios gerais da atividade econômica, coloca a livre
iniciativa como fundamento da ordem econômica, ao lado da
valorização do trabalho humano, fundamentos estes que ilu-
minam a estruturação de uma ordem econômica que objetiva
assegurar a todos a existência digna e alcançar a justiça social.
Daí a importância da preservação da empresa, enquanto
atividade econômica, que desempenha sua função social ao
gerar empregos, contratações e arrecadação tributária ao Es-
tado; além de contribuir para o desenvolvimento econômico,
social e cultural etc. Tal importância é anotada na lição de
Fábio Ulhoa Coelho:
A empresa cumpre sua função social ao gerar empregos, tribu-
tos e riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econômico,
social e cultural da comunidade em que atua, de sua região ou
do país, ao adotar práticas empresariais sustentáveis visando à
proteção do meio ambiente e ao respeitar os direitos dos consu-
midores, desde que com estrita obediência às leis a que se en-
contra sujeita.2
Foi exatamente o princípio da preservação da empresa
em razão de sua função social que inspirou a edição da atual
Lei nº 11.101/2005, que disciplina a recuperação judicial, a
2. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de Empresa. 16ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2012. Vol. 1, p. 76.
214
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
E O SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
recuperação extrajudicial, e a falência do empresário e da so-
ciedade empresária.
A recuperação judicial, instrumento criado para propi-
ciar a superação da crise econômico-financeira do devedor e
garantir a manutenção da fonte produtora, nesse passo, pos-
sui seus objetivos e fundamentos enunciados expressamente
pelo próprio diploma normativo:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a su-
peração da situação de crise econômico-financeira do devedor,
a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego
dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo,
assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo
à atividade econômica.
Assim é que, a recuperação judicial, ao menos em sua
ideologia, afigura-se como instrumento destinado à recupe-
ração da empresa com o principal objetivo de garantir a sua
função social.
2. O crédito tributário e a recuperação judicial
Existem, na ordem jurídica brasileira, inúmeras distor-
ções e “conflitos” envolvendo o crédito tributário e a recupe-
ração judicial.
A Lei 11.101/2005 e o Código Tributário Nacional, espe-
cialmente com as modificações promovidas pela LC 118/2005,
trazem as seguintes questões envolvendo o tema:
• Não sujeição dos créditos tributários ao plano de re-
cuperação judicial. (art. 187 do CTN).
• Obrigatoriedade de apresentação de certidão ne-
gativa tributária como condição para homologação
do plano de recuperação judicial. (art. 57 da Lei
11.101/2005 e art. 191-A do CTN).
215
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS
• Parcelamento especial de débitos tributários para
empresas em recuperação judicial. (art. 6º, §7º da Lei
11.101/2005 e art. 155-A do CTN).
• Não suspensão das execuções fiscais em razão do de-
ferimento da recuperação judicial, diversamente do
que ocorre com as ações e execuções de outras na-
turezas, que ficam suspensas pelo prazo de 180 dias,
contados do deferimento da recuperação judicial
(art. 6º, §7º).
Com base em tais regras, geralmente, enquanto a empresa
que vive aguda crise econômico-financeira busca meios para, a
partir de um plano de recuperação judicial devidamente apro-
vado pelos credores, reerguer-se, o Fisco exige regularmente
os seus créditos tributários, inscrevendo-os em dívida ativa, re-
metendo as certidões de dívida ativa para protesto e ajuizando
as respectivas ações de execução fiscal, sem qualquer relação
ou comprometimento com o plano de reestruturação.
Os planos de recuperação judicial, por sua vez, em geral,
não contemplam a forma de pagamento dos débitos tributá-
rios, o que é uma falha.
Não é só. Para que o plano de recuperação judicial, aprova-
do pelos credores, seja homologado pelo juiz e colocado em prá-
tica, é necessária a apresentação de certidão de regularidade
fiscal, o que implica na necessidade de a empresa recuperanda
pagar os débitos tributários ou realizar o seu parcelamento 3.
Por certo, se a empresa recuperanda apresenta as certi-
dões de regularidade fiscal, significa que quitou ou parcelou
seus débitos, de modo que as execuções fiscais serão atingi-
das, respectivamente, pela extinção do crédito tributário ou
pela suspensão de sua exigibilidade.
3. A certidão de regularidade fiscal do tipo positiva com efeitos de negativa também será
expedida caso haja execução fiscal garantida por penhora ou qualquer causa de suspen-
são da exigibilidade do crédito tributário, nos termos dos artigos 151 e 206 do CTN.
216
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
E O SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
Todavia, as regras atuais não se coadunam com os princí-
pios constitucionais que orientam a recuperação judicial.
2.1 Não sujeição dos créditos tributários à recupera-
ção judicial e a necessidade de apresentação de
certidão negativa tributária como condição para
a sua concessão
A legislação atual veicula meio específico para garantir
e privilegiar a satisfação do crédito tributário sem nenhum
comprometimento com as demais necessidades gerais da em-
presa que está em recuperação judicial.
Assim é que, no curso da recuperação judicial, após o pro-
cessamento das fases formais - nas quais se verifica a presen-
ça dos requisitos de caráter adjetivo para prosseguimento da
ação - é apresentado o plano de reestruturação pela empresa
recuperanda, nos termos do art. 53 da Lei nº 11.101/2005. Caso
não haja objeção de credores no prazo legal, o plano será con-
siderado tacitamente aprovado. Se houver objeção de algum
credor, o plano é levado à apreciação e deliberação de todos os
credores, por meio de assembleia geral, conforme artigos 55 e
56 do mesmo diploma normativo.
Todavia, para que seja concedida a recuperação judicial
e tenha início o cumprimento do plano que foi aprovado pelos
credores, de forma expressa ou tácita, é necessária a apresen-
tação de certidões de regularidade fiscal, nos termos do art. 57
da Lei nº 11.101/2005 e do art. 191-A do CTN.
Dessa forma, a apresentação da certidão negativa de débi-
tos tributários é condição para o deferimento da recuperação
judicial, de modo que os créditos da Fazenda Pública devem
estar previamente regularizados (extintos ou com exigibilida-
de suspensa), pois não se incluem no plano de recuperação.
Ora, conquanto se trate de crédito tributário - que compõe
o patrimônio público e que, portanto, prevalece sobre os inte-
resses individuais e possui inúmeras garantias e privilégios
217
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS
em relação a créditos de outras naturezas - não se pode admi-
tir que tal interesse viole outros direitos essenciais garantidos
pela Constituição, tal como o princípio da preservação da em-
presa e a inadmissibilidade da cobrança de tributos por meio
coercitivos indiretos (sanção política).
De fato, se a empresa passa por crise financeira, não se
pode exigir, a pretexto de interesse público, que pague ou par-
cele os débitos tributários para que possa pôr em prática o
plano de reestruturação.
A regra estabelece que a empresa pode tentar a sua re-
cuperação, levando em conta os grandes objetivos da recu-
peração judicial (manutenção da fonte produtora, geração de
empregos e o interesse dos credores), desde que acerte suas
contas com o Fisco.
O princípio da preservação da empresa, que atrai a livre
iniciativa e a preservação da fonte produtiva, também encerra
diretrizes que devem ser trazidas à interpretação em conjun-
to com aqueles princípios que garantem e estabelecem privi-
légios ao crédito tributário.
Conclusão em sentido contrário implicaria na total elimi-
nação da fonte produtiva, geradora de empregos, para garan-
tia do cumprimento do crédito tributário.
Ademais, não estamos cogitando a dispensa do cumpri-
mento das obrigações tributárias, mas tão somente trazendo à
ponderação as garantias constitucionais em choque (recupe-
ração da empresa e satisfação do crédito público).
Dessa forma, o condicionamento à quitação ou parcela-
mento dos débitos tributários para a concessão da recuperação
judicial é incompatível com a ordem jurídica, uma vez que viola
o princípio da razoabilidade nas suas três dimensões (adequa-
ção, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).
Isso porque, considerando que o crédito tributário não
está submetido à recuperação judicial, estabelecer a pro-
va de sua quitação ou parcelamento como condição para a
218
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
E O SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
concessão da recuperação judicial, cujo plano já foi apreciado
e aprovado pelos credores, atinge a preservação da empresa e
caracteriza verdadeira prática de sanção política.
Em direito tributário, sanção política corresponde à impo-
sição de penalidades de natureza não pecuniária pela Adminis-
tração Tributária, mediante o emprego de meios coercitivos,
consubstanciados em restrições, vedações ou condicionamen-
tos à fruição de direitos essenciais dos contribuintes, como for-
ma indireta de obrigá-los ao pagamento de tributos.
Rotineiramente, o Fisco se vale de medidas dessa nature-
za, constrangendo o contribuinte para forçá-lo ao pagamento
do tributo, passando, muitas vezes, ao largo de direitos funda-
mentais. Ocorre que tais medidas ignoram garantias e princí-
pios constitucionais sob a justificativa de se estabelecer meios
mais eficientes de arrecadação, violando o devido processo
legal nas suas duas vertentes: formal e substantiva.
Violam o devido processo legal adjetivo na medida em que
desrespeitam as garantias processuais, afastando-se da forma
que deve ser observada no desenvolvimento do processo, além
de violar as garantias do contraditório e a ampla defesa.
As sanções políticas violam também o devido processo
legal substantivo, que compreende o próprio princípio da
razoabilidade, nas suas três dimensões (adequação, necessi-
dade e proporcionalidade em sentido estrito). Essas três di-
mensões da razoabilidade asseguram, respectivamente, que
os atos praticados pelo Estado devem respeitar o equilíbrio
entre meios e fins; a utilização da medida menos gravosa ao
administrado; e que as vantagens dela oriundas se deem em
maior grau do que os prejuízos decorrentes.
Assim, considerando que a exigência de pagamento ou
parcelamento dos débitos tributários não é a forma mais equi-
librada de buscar a satisfação do crédito tributário junto às
empresas que estão em recuperação judicial; bem como que
existem meios de exigência do crédito tributário menos gra-
vosos ao contribuinte; e que, no formato atual, esse privilégio
219
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS
do crédito tributário pode levar até mesmo à quebra da em-
presa, que terá de honrá-lo sem nenhuma relação com o plano
de reestruturação negociado com os demais credores, resta
evidente que os três critérios de mensuração da razoabilidade
mostram-se violados.
Tal violação deve ser reconhecida pelo Supremo Tribunal
Federal, seja nos autos da Ação Declaratória de Constitucio-
nalidade - ADC nº 46, proposta pelo Governador do Distrito
Federal, que objetiva exatamente a declaração de constitucio-
nalidade do art. 57 da Lei nº 11.101 e do art. 191-A do CTN, ou
no bojo de outro instrumento processual submetido à análise
da Corte Suprema.
Só assim é que se dará efetivo cumprimento ao princípio da
preservação da empresa em razão de sua função social e se afas-
tará a desarrazoada exigência de regularização dos débitos tribu-
tários como condição para a concessão da recuperação judicial.
2.2 O parcelamento especial de débitos tributários
para empresas em recuperação judicial
Não obstante a inconstitucionalidade da apresentação de
certidão negativa tributária como condição para a concessão
da recuperação judicial, o art. 155-A do Código Tributário Na-
cional, incluído pela LC 118/2005, em harmonia com a Lei nº
11.101/2005, trouxe inserto o comando para que o legislador
ordinário estabeleça regras especiais para parcelamento do
crédito tributário de devedor em recuperação judicial.4
O parágrafo quarto do dispositivo supra prevê que serão
aplicadas as leis gerais de parcelamento do ente da Federa-
ção em que se encontra o devedor enquanto não editada a lei
específica5.
4. Art. 155-A. (...). § 3o Lei específica disporá sobre as condições de parcelamento
dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial.
5. (...).
§ 4o A inexistência da lei específica a que se refere o § 3o deste artigo importa na
220
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
E O SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
Com efeito, diante da omissão legislativa quanto à edição
de lei que dispusesse sobre o aludido parcelamento especial,
no âmbito do STJ6, a jurisprudência se formou no sentido de
ser inadmissível a exigência da certidão negativa tributária
para a concessão da recuperação judicial em razão da ine-
xistência da lei que disponha sobre as condições especiais de
parcelamento para o devedor em recuperação judicial. Mais
tarde, em 2014, referida lei - específica sobre parcelamento do
devedor em recuperação judicial - veio a ser promulgada sob
o nº 13.043, ou seja, nove anos após a alteração do CTN que
previa a edição de tal disciplina.
Todavia, o diploma trouxe inúmeros problemas acompa-
nhando a pretensa solução que lhe cabe, dentre os quais ve-
rifica-se a exigência de inclusão de todos os débitos federais
no mesmo parcelamento, inscritos ou não em dívida ativa, in-
clusive débitos previdenciários; e a desistência de ações ou
recursos administrativos.
Notadamente, essas condições para o devedor em recu-
peração judicial aderir ao parcelamento implicam condicio-
namentos ao exercício de direitos em flagrante violação a di-
tames constitucionais, pois estará o contribuinte obrigado a
renunciar ao contraditório e ampla defesa, confessando ser
devedor de todos os débitos a ele imputados, sob pena de não
lhe ser admitido o parcelamento e, por consequência, não ob-
ter a certidão de regularidade fiscal necessária à concessão da
recuperação judicial, nos termos do art. 57, da Lei 11.101/2005.
Sem qualquer dúvida, estamos diante de mais um meio
coercitivo indireto para cobrança de tributos, ou seja, a lei nº
13.043/2014 veicula inúmeras sanções políticas, estabelecendo
que o sujeito passivo que pretende obter o parcelamento de
débitos tributários para que consiga prosseguir na recupera-
ção judicial renuncie a qualquer discussão (administrativa ou
aplicação das leis gerais de parcelamento do ente da Federação ao devedor em
recuperação judicial, não podendo, neste caso, ser o prazo de parcelamento inferior
ao concedido pela lei federal específica.
6. REsp 1.187.404/MT, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, j. em 19.06.2013.
221
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS
judicial) acerca desses débitos, incluindo a totalidade de seu
passivo tributário no aludido parcelamento.
Ademais, o parcelamento especial instituído pela aludi-
da lei prevê o pagamento da dívida em até 84 parcelas, com
a fixação de percentuais reduzidos para as parcelas a serem
pagas nos primeiros anos, mas sem qualquer tipo de redução
ou abatimento, condições estas muito inferiores e desvanta-
josas se comparadas com outros programas de parcelamento
de débitos, constantemente instituídos pela União, pelos Es-
tados e Municípios. Vide, por exemplo, o Programa Especial
de Regularização Tributária - PERT, instituído pela Medida
Provisória nº 783/2017, convertida na Lei nº 13.496/2017, que
estabeleceu a possibilidade de parcelamento de débitos com
a União em até 120 parcelas, com descontos que chegaram à
redução de 90% dos juros de mora e 50% das multas.
Essas condições desvantajosas do parcelamento especial
previsto na Lei nº 13.043/2014 são incompatíveis com os prin-
cípios norteadores da recuperação judicial, pois a situação
econômica das empresas em recuperação judicial impõe tra-
tamento verdadeiramente especial, com prazos e condições
que atendam à situação peculiar da empresa.
Não obstante tais violações à Constituição, a questão vem
sendo abordada pela jurisprudência no plano infraconstitu-
cional e não há solução definitiva. Nesse sentido, mencione-
-se o caso no qual o Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo reconheceu o direito de determinada empresa obter a
concessão da recuperação judicial independentemente das
certidões negativas tributárias por duas razões: i) necessida-
de de flexibilização da apresentação das certidões negativas
tributárias para viabilizar a recuperação judicial; e ii) a Lei
nº 13.043/2014, que incluiu o art. 10-A à Lei nº 10.522/2002,
estabelece que o parcelamento é direito do contribuinte, ao
prescrever que o empresário ou a sociedade empresária em
recuperação judicial “poderão parcelar seus débitos com a
Fazenda Nacional (...).”.7
7. TJSP. Agravo de Instrumento 2143991-73.2018.8.26.0000; Rel. Des. Grava Brazil;
222
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
E O SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
O ambiente, portanto, é de extrema insegurança jurídica,
pois estão válidos e vigentes os enunciados normativos que
veiculam exigências contrárias ao princípio da preservação
da empresa, que decorre da importância de sua função social,
além de violar o princípio da razoabilidade.
Ademais, nenhuma solução se vislumbra com as propos-
tas de reforma da Lei nº 11.101/2005, atualmente veiculadas
pelo Projeto de Lei nº 10.220/2018, pois a proposta é apenas
aumentar o número atual de 84 parcelas para 120, além de
viabilizar o aproveitamento parcial de prejuízos fiscais.
2.3 A continuidade das execuções fiscais durante o
processamento da recuperação judicial
Muitas discussões vêm sendo travadas, desde a edição da
Lei nº 11.101/2005, em razão da expressa disposição de seu
art. 6º, §7º no sentido de que as execuções fiscais não são sus-
pensas em razão da recuperação judicial. No entanto, isso, é
certo, para os casos em que a empresa recuperanda não tenha
apresentado as certidões negativas de débitos, pois se o fez é
porque houve a regularização de sua situação junto ao Fis-
co, por meio do pagamento ou do parcelamento do débito, de
modo que as execuções fiscais estarão, respectivamente, ex-
tintas ou suspensas.
Isso porque o fluxo normal de uma execução fiscal, com a
penhora e expropriação de bens, inclusive de ativos financei-
ros, sem que tais atos se harmonizem com o plano de recupe-
ração judicial pode, inevitavelmente, inviabilizar a recupera-
ção e, dessa forma, provocar a quebra da empresa.
O Superior Tribunal de Justiça se posicionou, ao longo
do tempo, no sentido de que “...embora a execução fiscal não
se suspenda em razão do deferimento da recuperação judicial
da empresa executada, são vedados atos judiciais que impor-
tem na redução do patrimônio da empresa ou excluam parte
Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. 24/09/2018.
223
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS
dele do processo de recuperação, sob pena de comprometer,
de forma significativa, o seguimento desta. Assim, sedimen-
tou-se o entendimento de que ‘a interpretação literal do art.
6º, § 7º, da Lei 11.101/05 inibiria o cumprimento do plano de
recuperação judicial previamente aprovado e homologado,
tendo em vista o prosseguimento dos atos de constrição do
patrimônio da empresa em dificuldades financeiras’”8.
Em outra oportunidade, solucionando o Conflito de Com-
petência nº 150.844/GO, a Corte decidiu que “...o juízo onde se
processa a recuperação judicial tem competência para a práti-
ca de atos de execução relativamente ao patrimônio da socie-
dade afetada, fundamentado tal objetivo no desiderato de evi-
tar a realização de medidas expropriatórias individuais que
possam prejudicar o cumprimento do plano de recuperação”9.
Recentemente o STJ submeteu a matéria ao regime dos
Recursos Repetitivos, promovendo a afetação como casos
representativos da controvérsia, os Recursos Especiais nº
1.694.261/SP, 1.694.316/SP e 1.712.484/SP, objeto do Tema 987,
com a seguinte divergência:
“Possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empre-
sa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal.”
Com base em tal decisão, determinou-se a suspensão dos
processos até a decisão final do STJ, nos termos do art. 1.037,
inciso II do CPC, o que, na prática, significa a suspensão da
exigibilidade do crédito tributário em hipótese não prevista
pela art. 151 do CTN.
É acertada a afetação da matéria, dada a multiplicidade
de recursos envolvendo o tema e, ao final, espera-se que o STJ
mantenha seu posicionamento até aqui delineado no sentido
8. EDcl no REsp: 1505290/MG, Rel.: Min. Herman Benjamin, j. 28/04/2015, Segunda
Turma.
9. STJ - AgInt no CC: 150844 GO 2017/0025832-1, Rel. Min. MARCO BUZZI, j.
13/09/2017, S2 - SEGUNDA SEÇÃO.
224
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
E O SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
de que atos expropriatórios do patrimônio do devedor em
recuperação judicial devem ser vedados, sob pena de decretar-
se a inviabilidade do próprio plano de recuperação, eis que a
empresa terá os seus ativos vinculados, compulsoriamente, à
satisfação do crédito fiscal em detrimento de todos os demais.
Registre-se que, a este respeito, em razão da necessária
reformulação da Lei nº 11.101/2005, tramita no Congresso
Nacional o PL 10.220/2018, que veicula propostas que, acaso
aprovadas, serão ainda mais lesivas à recuperação judicial.
Dentre elas, em manifesto confronto ao posicionamento
jurisprudencial que tem se construído, é prevista a não sus-
pensão das execuções fiscais em razão da recuperação judi-
cial, as quais prosseguirão normalmente seu trâmite, sendo
permitida a alienação e a penhora de bens e direitos no juízo
no qual as processa, excluindo a sua avaliação do juízo da re-
cuperação judicial.
Esta proposta mostra-se ainda mais atentatória da recu-
peração judicial, pois autoriza a realização de medidas cons-
tritivas de bens, de forma desconectada do plano de recu-
peração, além de excluir do juízo da recuperação judicial a
apreciação de tais atos.
Acerca da divergência que será definida pelo STJ (Tema
987), não basta que aquele Tribunal venha a determinar, de
forma pura e simples, que é vedada a prática de atos constri-
tivos em face de empresa em recuperação judicial, em sede de
execução fiscal, pois isso significaria, meio indireto de deter-
minar-se a suspensão da exigibilidade do crédito tributário,
em hipótese não prevista pelo Código Tributário Nacional,
sem contemplar o direito da Fazenda Pública.
Assim, é necessário que a questão seja analisada não ape-
nas sob o viés da execução fiscal, mas em conjugação com o
interesse do Fisco que, afinal, postula pelo direito público de
recebimento do crédito tributário, o que sugere que, o STJ
talvez não seja o fórum competente para a solução da questão,
225
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS
eis que requer novo tratamento legislativo, em harmonia com
os princípios e garantias constitucionais.
3. A necessidade de adequação da legislação aos prin-
cípios que orientam a preservação da empesa
Não há dúvidas acerca da desproporcionalidade exis-
tente entre os privilégios do crédito tributário e os demais,
especialmente na recuperação judicial, cuja legislação impõe
a necessidade de regularização dos débitos tributários como
condição para a concessão da recuperação judicial, mesmo
com o plano de recuperação já devidamente aprovado pelos
credores.
Conforme demonstrado nas breves menções feitas ao PL
10.220/2018, inobstante o inafastável princípio de que toda a so-
ciedade (cidadãos e empresas) deve contribuir com o financia-
mento das despesas públicas, o que se dá, basicamente, por meio
dos tributos, tão ruim quanto a atual legislação afigura-se o novo
projeto de lei que, de forma inequívoca, se aprovado, lançará por
terra a recuperação judicial de empresas e fulminará o ideal de
sua função social, em evidente violação à Carta Suprema.
O aludido projeto que pretende reformar a Lei nº 11.101/2005
(e também a Lei nº 10.522/2002, que trata do parcelamento es-
pecial para empresas em recuperação judicial) presta um ver-
dadeiro desserviço à recuperação de empresas e, sobretudo, ao
princípio da função social da empresa, veiculando regras que
contrariam a Constituição Federal e que, se aprovadas, tende-
rão a esvaziar completamente a recuperação judicial.
Dentre os vários abusos e excessos já previstos na legis-
lação vigente, menciona-se que o projeto mantém a exigência
das certidões negativas tributárias como condição para a re-
cuperação judicial; e caso a empresa recuperanda deixe de
pagar o parcelamento de débitos tributários, é prevista a con-
volação automática da recuperação judicial em falência, se a
recuperação judicial ainda estiver em curso, ou a faculdade
226
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
E O SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
de a Fazenda Pública requerer a decretação da falência, se a
recuperação judicial não estiver mais em curso.10
Ora, medidas como essa não passam pelo filtro da razoa-
bilidade, pois o Fisco possui meios legítimos para a cobrança
do crédito tributário. Ademais, é absurdo prever a convolação
em falência pelo inadimplemento de débito que sequer foi in-
cluído no plano de recuperação judicial.
Não se pode admitir que o privilégio do credor fiscal afaste
todos os direitos (individuais e coletivos) que o princípio da
função social da empresa visa resguardar.
É necessário que venha a ser editada lei ordinária federal
que reforme a Lei nº 11.101/2005 e traga verdadeiro mecanis-
mo de adequação do crédito tributário à recuperação judicial,
além de lei complementar que altere o CTN da mesma forma,
de modo que também o Estado participe da recuperação da
empresa, já que, de forma inequívoca, deve contribuir para a
preservação da atividade econômica e o estímulo ao desempe-
nho da função social da empresa.
Para conformar a necessidade de recuperação da empre-
sa com o interesse do Fisco, seria mais eficaz que o crédito tri-
butário passasse a integrar a recuperação judicial, com medi-
das que implementem e permitam a transação tributária para
empresas em recuperação judicial, com condições específicas,
reduções e parcelamentos realmente especiais.
Só assim é que haverá um efetivo comprometimen-
to do Fisco com a recuperação da empresa e a necessá-
ria garantia do crédito tributário, afastando-se privilégios
10. O art. 61 da Lei nº 11.101/2005 estabelece que o devedor permanecerá em recu-
peração judicial até que se cumpram todas as obrigações previstas no plano que se
vencerem até dois anos depois da concessão da recuperação judicial. Durante esse
período, o descumprimento dessas obrigações implica a imediata convolação da re-
cuperação judicial em falência.
Após os dois anos, o descumprimento de obrigações previstas no plano de recupe-
ração judicial não mais implicará a convolação automática da recuperação em fa-
lência, mas existirá título executivo para que cada credor exerça seu direito, indivi-
dualmente, por meio de execução específica ou pedido de falência.
227
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS
extremamente nocivos à implementação de princípios de or-
dem constitucional.
Portanto, a reforma legislativa é imperiosa.
Considerações finais
A recuperação judicial é meio de implementação do prin-
cípio da preservação da empresa, em razão da sua inegável
função social.
A legislação atual, contudo, é falha e ofende a Constitui-
ção ao prever regras que, além de não contribuírem com a re-
cuperação das empresas, impõem obstáculos que podem até
mesmo impedir a reestruturação e culminar na sua falência.
A jurisprudência, embora vasta e repetitiva, não trouxe
soluções ao problema. Isso se dá, no nosso sentir, porque es-
sas soluções dependem da criação de regras legais que res-
peitem a razoabilidade e que, iluminadas pelos princípios
constitucionais que garantem o crédito da Fazenda Pública e
a preservação da empresa em razão de sua função social, con-
juguem essas duas diretrizes, tornando a recuperação judicial
instrumento que comprometa todos os credores, inclusive o
Fisco, com a reestruturação da empresa.
As atuais propostas de reforma da legislação que disci-
plina a recuperação judicial, acaso sejam aprovadas, contri-
buirão ainda mais para a insegurança jurídica em relação ao
tema “Recuperação judicial e tributos” e trarão regras ma-
nifestamente inconstitucionais, o que tenderá a agravar o
problema.
228