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Rudolf Arnheim Cinema Como Arte

O livro 'Cinema como Arte' de Rudolf Arnheim, agora disponível em sua versão integral em português, oferece uma análise profunda da linguagem audiovisual, articulando teoria psicológica e estética modernista. Arnheim critica a submissão do cinema ao gosto burguês e documenta a transição do cinema mudo para o sonoro, destacando a importância da forma visual na narrativa cinematográfica. A obra é acessível tanto para especialistas quanto para iniciantes, servindo como um recurso valioso para a crítica e a produção cinematográfica.

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Rudolf Arnheim Cinema Como Arte

O livro 'Cinema como Arte' de Rudolf Arnheim, agora disponível em sua versão integral em português, oferece uma análise profunda da linguagem audiovisual, articulando teoria psicológica e estética modernista. Arnheim critica a submissão do cinema ao gosto burguês e documenta a transição do cinema mudo para o sonoro, destacando a importância da forma visual na narrativa cinematográfica. A obra é acessível tanto para especialistas quanto para iniciantes, servindo como um recurso valioso para a crítica e a produção cinematográfica.

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Título

Cinema como arte: as técnicas da linguagem audiovisual


Rudolf Arnheim
Texto integral inédito

Orelha

O leitor brasileiro tem acesso afinal a uma versão integral do primeiro livro de
um dos maiores autores da teoria da imagem e da Gestalt, Rudolf Arnheim. A tradução a
partir do original alemão Film als Kunst coloca à disposição dos especialistas do
estudo de cinema características do autor ainda pouco conhecidas, visto que ele foi lido
até então em uma versão americana da obra que teve diversos capítulos mutilados se
não simplesmente suprimidos. O texto integral demonstra por exemplo uma articulação
entre seu arcabouço teórico psicológico, a Gestalt, com uma dimensão estética de
moldes modernistas, e também com uma abordagem a respeito da inserção social do
cinema, que aproxima seu trabalho à Teoria Crítica, característica que até agora mereceu
pouco destaque em Arnheim.
Esta edição traz tanto os já conhecidos dois capítulos iniciais, em que Arnheim
examina em moldes kantianos uma crítica comparada da percepção visual da imagem
do mundo em comparação com uma percepção visual da imagem de cinema, quanto os
outros três capítulos na íntegra, em que com o rótulo de análise do som no cinema, ele
faz na verdade uma ampla crítica social da submissão da arte cinematográfica ao gosto
burguês e das massas, e ainda constrói um registro histórico do momento em que o
cinema sonoro mais precário serviu como ponta de lança da indústria cultural para
promover um massacre contra a produção cinematográfica mais sofisticada dos anos 20
e 30, pondo fim ao período de ouro do cinema mudo.
Mas este livro não se destina somente a especialistas em cinema. Primeiro livro
do hoje consagrado teórico, Cinema como arte é um clássico da teoria da imagem e
contribui para o entendimento das características da produção audiovisual, numa
linguagem das mais acessíveis, oferecendo instrumentos tanto para a crítica e a análise
como também para o próprio processo de produção cinematográfica.

Rudolf Arnheim
Nasceu na Alemanha em 1904, foi redator da Weltbühne, onde desenvolvia
crítica de arte e cinema. Trabalhou em universidades americanas depois de sua
imigração. Seus livros sobre Arte, Teoria da Recepção e Teoria da Mídia, baseados na
Gestalt, qualificam-no como um dos mais influentes teóricos da arte.

Marco Bonetti
Tradutor. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, dedica-se ao
estudo das teorias da imagem desde a década de 90, quando morou na Alemanha.
Contou com o apoio para esta tradução da Escola Superior de Propaganda e Marketing
do Rio de Janeiro (ESPM-RJ), instituição pela qual obteve uma bolsa da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj) e onde lidera o grupo de pesquisa
Comunicação, Novas Tecnologias e Sociabilidade. Coordena também o grupo de
estudos de teoria da imagem e de televisão digital na Universidade Federal de Juiz de
Fora.
Quarta capa
Primeiro livro do hoje consagrado teórico Rudolf Arnheim, Cinema como arte
é um clássico da teoria da imagem e contribui para o entendimento das características da
linguagem audiovisual, oferecendo instrumentos tanto para a crítica e a análise teóricas
quanto para a própria formação de quem pretende se dedicar ao processo de produção
cinematográfica.

CAPA
Rudolf Arnheim
Cinema como arte: as técnicas da linguagem audiovisual

Prefácio à nova edição alemã (1978)

Já se passaram mais de 40 anos desde que este livro foi escrito em alemão e
publicado em Berlim (1932). Que ele ainda demonstre vitalidade é admirável, e também
gratificante para o seu autor. O tema com que ele se ocupa transformou-se em quase
todos os seus aspectos, e os diversos filmes que cito são, em sua maioria, datados já de
meio século atrás. Se a obra, entretanto, ainda pode ser lida com proveito, isso se deve
principalmente a dois motivos. Particularmente para o leitor alemão, ela não ficou em
evidência tempo suficiente para sair da moda. Assim como muitos dos filmes
comentados por mim foram recuperados dos porões dos produtores e distribuidores,
copiados, e restaurados - resgatando aquela antiga maestria, esmero e cuidado -, esta
análise teórica também se liga a um material que não representa um cinema velho e
ultrapassado, mas sim a obras que constituem hoje a coleção do que há de melhor na
história do cinema. A longevidade destes filmes antigos deve-se ao fato de eles
conservarem uma fonte de saber repleta de soluções originais. Porém, ainda mais
importante para a atualidade do livro é o fato de que o fundamento teórico desenvolvido
naquela época e as peculiaridades identificadas como características da forma de
expressão do filme continuam válidas e aplicáveis para todo o cinema apesar de
diversas circunstâncias terem se alterado.
O livro surgiu numa época a um só tempo desfavorável quanto aos fatores
conjunturais, mas apropriada em relação ao estágio de evolução da linguagem
cinematográfica. O incêndio do Parlamento e a subsequente fase de destruição
generalizada na Alemanha fizeram com que ele desaparecesse um ano após seu
lançamento. A partir de então, a primeira edição preservou-se viva apenas escondida
numas poucas bibliotecas e antiquários. Ainda em 1933, em Londres, uma tradução
inglesa, infelizmente muito ruim, esgotou suas vendas. Ao mesmo tempo, Cinema
como Arte ganhou muita importância por representar uma época do cinema que
terminava. Não foi somente uma transição histórica, mas também, em particular, uma
transição na história do cinema, que vivia o fim de um rico período de desenvolvimento.
Após o apogeu do filme mudo, o cinema falado levou a toda parte do mundo uma
reviravolta muitas vezes destrutiva, que fez o bom cinema morrer na Alemanha, dando
lugar a um movimento de barbarismo crescente de forma e conteúdo. Assim minha
tentativa de descrever e defender a qualidade dos métodos de expressão
cinematográficos da época foi, ao mesmo tempo, uma espécie de registro para a
posteridade do valor de uma arte em agonia de morte - situação que não permitiu
aflorarem novas obras que dessem o devido destaque às propriedades positivas daquela
então nova forma de arte.
Em meados da década de 50, quando eu e meu editor americano da Universidade
da Califórnia preparávamos uma nova edição, convenci-me de que a primeira metade do
livro permanecia totalmente válida graças ao seu rigor sistemático. Ao mesmo tempo, a
estrutura do capítulo O conteúdo dos filmes determinando as relações de tempo e espaço
do cinema podia ser aproveitada somente em parte, e pareciam obsoletos os antigos
debates das dores de parto do filme sonoro. Assim, na edição americana, apresentei
metade do texto original complementando o texto com quatro novos artigos que havia
escrito entre 1933 e 1938 para uma enciclopédia de cinema planejada pelo Instituto
Internacional de Ensino de Cinema da Sociedade das Nações1 em Roma. Esse
empreendimento editorial projetado para ser grandioso, ao qual me associei como
colaborador, foi abandonado com a saída da Itália da Sociedade das Nações e, a partir
de então, os artigos destinados a ele puderam ser utilizados pelos autores em distintas
publicações. A edição americana Film as Art serviu de base para traduções nos mais
importantes idiomas nos anos 60 mesmo apresentando um pensamento que havia sido
desenvolvido antes de 1932. A nova versão alemã torna o texto original acessível
novamente.
Quando folheei novamente um dos exemplares que ainda guardo da primeira
tiragem da Editora Rowohlt, notei, em primeiro lugar, o modo leve de escrever
característico da minha contribuição na revista Weltbühne, que se adaptava melhor ao
meu estilo do que o alemão sisudo, universitário, dos acadêmicos. Eu havia pouco antes
me doutorado com os psicólogos da Gestalt Max Wertheimer e Wolfgang Köhler, no
Instituto de Psicologia da Universidade de Berlim, com uma dissertação experimental
sobre teoria da percepção. Contudo a redação jornalística diária me atraia mais naqueles
anos de juventude do que o jargão dos laboratórios e dos textos especializados, o que
me levou a permanecer na Weltbühne entre 1928 e 1933 com Carl von Ossietzky e Kurt
Tucholsky. Eu era redator da seção cultural e free-lance fixo. Foi a influência da
Weltbühne que aguçou minha atenção para o valor ideológico e político do cinema,
apesar de eu sempre ter tido a clareza de que a análise formal dos meios de expressão
não era algo irrelevante – como ainda hoje se diz a torto e direito de modo certamente
ingênuo –, mas sim que cada análise ideológica devia gravitar em torno da forma de
expressão.
Como acontece a muitas obras de iniciantes, eu descarreguei sobre o cinema
muitas ideias que tinha no coração a respeito da arte em geral. Apesar de eu me
expressar hoje de um modo menos intransigente, Cinema como Arte já revela em
forma embrionária parte do que desenvolvi em trabalhos posteriores sobre a arte e o
pensamento visual. As opiniões dos jovens críticos de cinema também apontam ser
fundamental ver o filme como uma forma de arte visual, a despeito de esta abordagem
ter tanto pontos positivos como negativos. Os mais profundos e mais peculiares
resultados de observação sobre os filmes de hoje ainda partem da análise dos planos, e
não da palavra falada. Ninguém nega que o diálogo agrega valor ao desenvolvimento
narrativo quando integrado de forma precisa e breve. Porém a grande imagem sobre a
tela permanece, como sempre, no cinema, no comando prioritário da percepção e na
condução da ação artística, não saindo impune quem diminui o papel do visual
simbólico em favor de aborrecidos falatórios, sejam eles servidos com a leveza do
sotaque francês ou com o peso do sueco. A inserção da cor acrescentou muito pouco à
forma de expressão cinematográfica por estar solidamente amarrada a uma fidelidade
1
Associação internacional com sede em Genebra que funcionou de 1919 a 1946 com o objetivo de
promoção da paz.
extrema com a realidade, mas fortaleceu a possibilidade de exposição narrativa no
filme. Já em relação à projeção em três dimensões, acredito hoje que ela trará somente
mudanças muito cosméticas, sendo tão boa para a produção cinematográfica quanto a
superfície bidimensional, embora seu uso ainda dependa do surgimento de técnicas que
a tornem uma prática de autoria mais manuseável. Em boa medida a história da pintura
e do teatro já anteciparam as possibilidades da utilização da terceira dimensão da
imagem.
Embora os princípios do livro permaneçam inalterados no seu fundamento, eu
ampliaria hoje uma teoria do filme em pelo menos dois aspectos. Inicialmente eu
sustentava uma visão predominantemente negativa sobre o realismo mecânico do
quadro fotográfico. Meus ataques a esse aspecto do cinema já mostravam naquele
tempo que, ao contrário do que uma análise superficial poderia apontar, ninguém é
condenado à escravidão submetido pelo aparato cinematográfico como se não houvesse
caminhos alternativos. Pelo contrário, existem inúmeras variações de possibilidades
criativas abertas pela câmera. E é isso mesmo. Foi comprovado de lá para cá que a
montagem dos diretores a partir da matéria-prima produzida pela captação mecânica
óptica espontânea constitui uma inacreditável potência cultural criativa dos planos
cinematográficos. Isso foi muito bem demonstrado no livro sobre teoria do cinema feito
por Siegfried Krakauer. Ele também viu que esse instrumento não deve ser combatido, e
sim potencializado no que é de mais eficaz, ou seja, quando a matéria-prima fílmica sem
forma dá base a um novo saber que nos explica o mundo ali, diretamente, como uma
meia forma, aberta e sem fim. O crítico francês André Bazin também se pronunciou
neste sentido.
Um segundo complemento também me pareceria hoje importante. Para preparar
Cinema como Arte, descrevi anos a fio num pequeno livro preto, que ainda hoje
conservo, episódios memoráveis de filmes, como se ele fosse para mim um zeloso
crítico de cinema, embora às vezes também reconduzisse ao meu juízo trechos de
pobres filmes medíocres. Quando reuni exemplos suficientes, debrucei-me sobre eles
para desenvolver uma teoria. Não foi só a partir de filmes, entretanto, que construí
minha visão sobre cultura, mas a partir da pintura e das artes plásticas, portanto sobre
formas de expressão de imagens estáticas. E assim minha maneira de trabalhar
representou uma novidade na Teoria da Arte Visual, pois considerava o filme como um
ordenamento enfileirado das cenas, com muito destaque para as situações estáticas em
meio às quais o fluxo da narrativa transcorria pairando sobre elas e só então construindo
as relações. Hoje, eu optaria por entender o filme, como é costume dizer, como uma
sinfonia do todo e analisar cada uma daquelas miniaturas valiosas como momentos
extraordinários dentro do transcorrer da narrativa.
Por fim, devem-se presumir aqui no mínimo duas alterações fundamentais na
natureza do cinema. O desenho animado encontrava-se, naquele tempo, ainda em seus
primórdios. Certamente os primeiros filmes de Disney - aquelas geniais transcrições de
antigos livros ilustrados para populares desenhos de animação -, demonstraram as
possibilidades de uso de forma e cor dessa espécie de quadros com as tintas em
movimento, que começou já nestes desenhos pioneiros a quebrar a rotina da indústria do
entretenimento com experimentos extraordinários, como os do filme Fantasia, em que
se demonstrava a possibilidade da produção de uma imagem animada abstrata. Disney
trabalhou junto com Oskar Fischinger, que já havia criado curtas musicais alemães
recheados de danças abstratas. Por outro lado, foram empreendidas pesquisas
igualmente nos anos 20 por Richter, Eggeling e Ruttman, mas foi nos anos posteriores
que começamos a ver um desenvolvimento técnico muito promissor ao qual hoje se
agregam os recursos de informática e as abstrações construídas sinteticamente sobre o
amparo da televisão.
O desabrochar de uma arte de vanguarda inteiramente impopular, intelectual, e
de elite foi resultado de uma outra novidade com a qual, meio século mais cedo,
ninguém poderia sonhar, o desenvolvimento de um aparato técnico do qual os artistas se
apropriaram como instrumento de criação. Houve uma espécie de libertação do cinema
em relação à indústria do entretenimento e ao controle político, o que resultou num
fecundo desenvolvimento de uma arte cinematográfica sem compromissos que se
propagou do mesmo modo sem fronteiras como já circulavam as outras artes visuais
descoladas da indústria cultural, possibilitando alcançar um desenvolvimento estético,
social e econômico não somente por meio da produção de filmes como também pelo
desenvolvimento de teorias do cinema.
Rudolf Arnheim
Ann Arbor, Michigan

Introdução

O tema e o autor deste livro têm quase a mesma idade, aproximadamente 25


anos. Quando eu usava fraldas, as Feiras Mundiais anuais mostravam a descoberta
recente dos filmetes que faziam muito mais alarde sobre si mesmos do que
apresentavam algum valor. Quando entrei na adolescência, o cinema provocou o
desagrado de todo homem de bem, pois foi indisciplinado e mostrou tanto nudez quanto
sensualidade, sob a licenciosidade histérica dos primeiros anos do pós-guerra em busca
da liberdade, formando uma gigantesca e variada espécie de ardor da puberdade, como a
que até então a jovem arte da fotografia alimentara muito secretamente, escondida nas
gavetas das escrivaninhas. Esses filmes tinham de ser mesmo ruins, porque para mostrar
bem a obscenidade é preciso talento, e talentos só se mostram em consciências mais
maduras. Porém, a má fama do cinema nascia antes ao optar por temas de apelo mais
comercial do que social, o que aliás ainda hoje se vê quando alguns filmes são
depreciativamente prejulgados em função de sua temática “descomprometida”.
Quando o estatuto do cinema foi votado no ano de 1920 na Assembléia Nacional
da República de Weimar, os alemães de direita e de esquerda eram unânimes na opinião
de que deveria ser mantido um controle rígido sobre a produção de filmes. Um deputado
democrata divulgava então a descoberta num internato de meninas em Munique de que
metade das jovens perdeu a inocência seduzidas por alguém num cinema (e
exclamavam, Oh! Oh!). Apesar disso, se mantinha em aberto a pergunta de se eram
culpadas por isso a tela de linho branco ou a escuridão do espaço de projeção. O Partido
Popular incluiu em sua plataforma que “a vontade popular” pedia censura. A declaração
do Partido Social-democrata dizia que os correligionários tentaram evitar uma censura,
mas.... E assim foi então, através do estatuto, que se ergueu uma espécie de Estado de
Sítio sobre os filmes, que é mantido até os dias de hoje. Enquanto o teatro escapou de
toda proibição, estabeleceu-se para o cinema um departamento de controle que praticou
censura prévia, e uma regra geral estipulou uma faixa etária mínima. Somente ao
departamento de controle era concedido o direito de liberar individualmente os filmes
para menores de 18 anos. Além disso, as salas de exibição eram sobrecarregadas com
um alto imposto sobre diversão, enquanto o teatro tinha de pagar somente um percentual
ínfimo que não representava praticamente nada.
Essas medidas colocaram os filmes sob um pesado controle de conteúdo que se
mantém até os dias de hoje, ainda que descenda de uma época quando ainda se chamava
o projetor de cinematógrafo, e embora sua manutenção seja tão absurda quanto alguém
resolver proibir o tráfego de trens entre Nuremberg e Furth com o argumento de que as
movimentações centenárias de vagões naquele percurso modificaram o clima
prejudicando a saúde dos viajantes. A situação alcançou limiares tragicômicos em
momentos como o do surgimento do cinema falado, quando qualquer peça de teatro que
fosse filmada deveria também ser censurada, e podia acontecer que uma canção
incidental tradicional de uma peça de teatro (musical) encenada centenas de vezes em
diversos teatros alemães livremente corresse o risco de ser proibida a partir de então.
Nos registros dos filmes censurados pelo departamento encontra-se, por exemplo, o
seguinte:

H.J. Ulm tocou no órgão do teatro da Ufa “Universo”, em Berlim, a Toccata em


Ré-menor de Johan Sebastian Bach. Klangfilm G.m.b.H. Berlim. Nacional.
I Ato, 106 m – 20.8.29 – 23223 – instruído na Renânia – Filme sonoro.

Ou seja, pode ocorrer a alguém que durante uma apresentação de uma tocata do
mestre de capela barroco Johan Sebastian Bach fosse “posta em perigo a ordem ou o
direito públicos”; fosse “ferida a sensibilidade religiosa” fosse “exercida uma ação
gritante ou imoral” e até mesmo que fosse “posta em perigo a visão alemã ou a relação
da Alemanha com estados estrangeiros”.
Não há como desconsiderar que essa atmosfera negativa em torno do cinema
consolidasse uma má fama que ainda hoje o acompanha na maioria dos círculos das
pessoas cultas. Elas não perdoam a sua origem simples nem a digressão dos primórdios
do cinema. E seria justamente essa velha geração que deveria conferir legitimidade à
arte do filme, porque o controle da cultura de massa está em suas mãos. Minha jovem
geração foi de modo muito irregular à escola nos anos de guerra e o pouco que aprendeu
foi segundo o ponto de vista de que interessa mais o que é destruído hoje do que o que
foi construído ontem. Até mesmo por esta razão, para muita gente jovem, não custa
muito ter entusiasmo pelo cinema, já que ele parece não vir de um lugar longínquo. Os
jovens simplesmente o aceitam na sua atualidade. Este livro pretende mostrar aos jovens
que a arte do cinema não caiu dos céus, mas que se construiu a partir de regras e
princípios precursores tão sólidos como os de todas as outras artes. Talvez isso estimule
muitos a buscar este conhecimento da tradição não só do cinema como de todas as
outras artes, com mais entusiasmo do que hoje é comum ocorrer quando buscam
informações sobre as grandes épocas e as grandes torcidas dos jogos de futebol.
O livro pretende mostrar, por sua vez, aos mais velhos que os filmes são
estudados ou poderiam ser estudados com a mesma utilidade com que são comumente
analisadas as obras das artes tradicionais, ou seja, que tanto se pode falar sobre Ticiano,
Cézanne, Barroco e pintura ao ar livre como se pode falar, com a mesma sobriedade,
sobre Charlie Chaplin, Greta Garbo, e técnicas de edição e mobilidade de câmera.
Talvez assim, eles possam ir ao cinema sem preconceitos e consigam fruir melhor sua
arte. Além de se enriquecerem culturalmente. Com certeza, há também, entre os “mais
antigos” muitos que viram filmes magistrais russos ou americanos com entusiasmo e
prazer e que sabem que não deve jogar no mesmo tacho Buster Keaton e Harry Piel,
Asta Nielsen e Gerda Maurus, mesmo que eles possam ser encontrados em salas de
exibição vizinhas. Muitos, entretanto, vão ao cinema ocasionalmente e
indiscriminadamente, sem se preocupar com a programação. Eles não conhecem os
bons atores e escolhem o filme na esquina mais próxima numa noite monótona. Depois
eles voltam para casa às 11 horas cheios de desdém e asco. Outros elogiam um
Reinhardt, mas quando alguém pergunta sobre o que era o filme, dizem simplesmente:
“se passava à beira do Reno...”, “um drama original em 12 atos”, ou, “à frente do
divertido segundo ato `Bananas comportadas´, estava no papel principal um velho ator
cômico cânone do humor”. Num máximo de franqueza, outros lançam injúrias contra o
cinema, onde juram nunca mais por os pés. Estes dizem que não vão mais ao cinema
como quem diz que não vai mais a um bar, mas esquecem que a relação entre o filme e
o cinema é a mesma que a de uma boa ou uma má bebida e o estabelecimento que a
serve.
O conteúdo que se segue poderá ajudar a todo aquele que prefere ter nas mãos
um livro em vez de um ingresso de cinema, ou àquele que entende melhor um texto do
que uma cena de filme. Eles poderão aprender que a capacidade de transmitir uma trama
com profundidade, uma transmissão com profundidade espirituosa, não é exclusividade
da palavra, mas que também é permitida ao cinema. O leitor deverá perceber que isso
depende menos da “ação” (seja kitsch ou razoável) do que do cuidado com a fotografia,
com cada enquadramento, cena, representação e corte. Como Stendhal dizia: “não há
nada de mais original e verdadeiro do que os detalhes!” Importa menos a uma arte de 25
anos de existência quantos trabalhos impecáveis ela produziu: o que importa é quanto
ela conseguiu encantar ao explorar as possibilidades criativas dos aparelhos de
filmagem neste seu princípio.
A nova geração não tem nenhum motivo para desdenhar do cinema. Ela vê que
surge muita coisa ruim e pouca coisa boa no cinema, mas isso ocorre com qualquer
outra arte também. Ela vê a velocidade do desenvolvimento e a vitalidade dos
empreendimentos da indústria cinematográfica, o que é interessante. Nós já não
vivemos mais a primeira grande era do cinema alemão. Não nos era permitido ir ao
cinema quando Lubitsch ainda filmava na Alemanha, quando Emil Jannings interpretou
o rei “Henrique VIII” e Asta Nielsen fez “Hamlet”. Com isso, não estou dizendo que
respeitávamos totalmente essa proibição. Não havia nas grandes cidades quase nenhum
garoto de 16 anos que não fosse ao cinema; e também que não evitasse
propositadamente as programações liberadas para público infantil que eram chatas de
matar, dramas patrióticos da Alemanha dos grandes tempos ao lado de filmes
considerados, não se sabe por quem, entusiasmantes e artísticos (imagine como era um
filme com o título “A vida divertida do Senhor Hamster em Akkerfeld”). Por isso,
ludibriávamos, com um chapéu de adulto encobrindo o rosto, o porteiro, pedíamos com
voz rouca um bilhete para as primeiras filas e então contemplávamos assassinatos e
prostitutas, bêbados e policiais, salões de milionários, sedutores e invasões, celas de
presídios, e toda ordem de selvageria que fazia mal eventualmente aos nossos olhos,
mas não aos nossos espíritos. O cinema alimentava nossa sede por maravilhas com
aquelas fantasias que os jovens adoram e buscam de alguma fonte que as possa fornecer.
E assim surgiu uma gratidão em relação ao cinema do mesmo tipo que nós temos pelos
nossos livros de infância, uma feliz lembrança das malcriações em Max ou Moritz2, ou
pelo velho criminoso judeu de Oliver Twist. Ainda hoje vamos de vez em quando aos
cinemas de 80 centavos de marco na esquina mais próxima e sentimos prazer e comoção
com “A noite macabra de Lord Gray” e “A vertigem do pecado”.
Já nos tornamos mais capazes de assimilar intelectualmente o cinema e ele
tornou-se mais capaz de encantar. Paul Wegener dirigiu e atuou pela segunda vez em
seu “Gollem”, Fritz Lang deixou a “Morte cansada” caminhar sobre a tela branca num
silêncio fantasmagórico e seu enigmático “Dr Mabuse” viver sua rumorosa aventura em
2
Título de um desenho em quadrinhos alemão do século XIX que foi precursor dos commics norte-
americanos. Também foi o apelido dado no país, respectivamente, ao francês Max Linder - o mais
conhecido astro cinematográfico anterior a 1914 com suas séries de pastelão Max Condecorado, Max
Fotógrafo, Max Virtuose - e seu principal concorrente, Rigadin - que ganhou diversos apelidos em países
distintos, Moritz na Alemanha.
um refinado trabalho de filme policial. “Dr Caligari” abriu as portas para um “Gabinete
das Figuras de Cera” e, após a reabertura das fronteiras aos filmes estrangeiros, vieram
Charlie Chaplin, Fatty e centenas de outros humoristas desconhecidos cujos automóveis
explodiam como caixas de truques mágicos, barbudos que davam com cassetetes nas
cabeças uns dos outros. As grandes companhias de filmes americanas com direção e
fotografia altamente requintadas, traziam uma atuação comportada de seus mocinhos,
que levava os espectadores alemães a dar de ombros, porque causava uma primeira
impressão de serem más histórias, kitschs sem qualquer valor. Seguiram-se, como
prazeroso refinamento da cinefilia, as excepcionais atuações dos vanguardistas
franceses, que realizaram exercícios sobre as possibilidades das câmeras, ricos de
inovações e de boas ideias, expedições no reino dos meios de expressão até então ainda
não desbravado. Os grandes filmes russos alcançaram, por fim, sem qualquer concessão
a atenuações ou falsa moral, um primoroso domínio dos recursos cinematográficos,
além de mostrar a beleza dos rostos camponeses e das paisagens rurais. Todas estas
iniciativas lançaram ar fresco nos estúdios onde a arte do cinema ainda era conduzida a
partir de um interior estéril. Lentamente construía-se uma tradição para o filme. Foi
quando o desenvolvimento do cinema falado pôs tudo abaixo e as pessoas que faziam
cinema tiveram de se lançar com afinco ao trabalho de demonstrar que o cinema não
estava morto.
Em mais uma das fantásticas e frutíferas manifestações da vida moderna,
fortaleceram-se muito rapidamente as críticas cinematográficas. Muito foi escrito de
elevado e de brilhante sobre os filmes, mesmo que, em sua maioria, não pelos críticos
de cinema, os quais tinham muitas razões para isso, mas notoriamente muito pouco
conhecimento. Ainda ocorre, em especial nos jornais das pequenas cidades, que a crítica
seja escrita como uma contrapartida à inserção comercial paga pelo distribuidor do
filme na seção de anúncios. Nas grandes publicações se encontra também toda sorte de
críticos que vêm do teatro ou da literatura, sem qualquer intimidade naturalmente com
as particularidades da nova forma de arte, e comumente sem conhecimento dos recursos
técnicos. Eles tanto escreveram coisas inteligentes como considerações inúteis; sem
falar dos prosadores descuidados, com seu belo discurso agradável que cai bem aos
corações, mas que não sustenta uma reportagem mais criteriosa. Deveria se supor que as
boas obras críticas alimentassem um relacionamento não tão recente. O amante do
cinema alegra-se com elas, enquanto os adversários do cinema querem que elas os
conduzam sistematicamente e em profundidade ao entendimento dos quadros animados.
Aqui nesta obra, nem brilhantismo nem elevação do pensamento estão em jogo. No que
diz respeito ao livro, cabe cumprir seu trabalho. O filme será tratado em cada página na
linguagem mais clara, citando as coisas mais palpáveis e mundanas possíveis. Se, apesar
disso, persistir algo mais difícil de entender, assim se dá não apenas pela falta de dom
do autor, mas também pela dificuldade de um tema sobre o qual nem a psicologia nem a
estética obtiveram alguns indispensáveis esclarecimentos até agora. O próprio
conhecimento ainda é precário, mas trabalhar sobre um solo ainda pouco explorado,
embora seja emocionante, é desafiador tanto para o autor como para o leitor.
Na literatura mais importante sobre estética do cinema, devem-se citar os
trabalhos de Bela Balázs, além de Panorâma do Cinema, de Leon Moussinac e
Argumento e montagem e Diretor e Ator no Cinema ambos de Pudovkin, esses
últimos dois, pequenos escritos que contêm muito material prático. No resto, como
sempre em estética, devem-se analisar as manifestações dos artistas em si e, na verdade,
assim como elas, os problemas e detalhes do trabalho prático, as chamadas “perguntas
técnicas puras” altamente instrutivas.
Muitos criticarão, ao menos antes de ter lido o livro até o final, que não há
nenhuma ilustração na obra. Um livro sobre cinema sem imagens parece certamente
uma contradictio in adjecto. Acontece que não seriam muitos os pontos de nossas
especulações para os quais seria fundamental uma demonstração por imagens. Por outro
lado, seria bom localizar e ampliar determinadas imagens de certos filmes. A obtenção
destas imagens tropeça, entretanto, nas maiores dificuldades3. O que se pode encontrar
nos respectivos estúdios está submetido às regras das assim chamadas poses oficiais, as
quais naturalmente quase nunca possuem os enquadramentos que se quer e que, de
resto, já foram reproduzidas por quase todas as revistas à exaustão. A perspectiva de
publicar imagens sem muita relação com o texto, por ter de cumprir uma restrição
primitiva levou-nos a uma posição inversa. Já se tornou demasiado comum colocar uma
imagem lá onde a compreensão falha. Nosso tempo está doente certamente de uma
epidemia da imagem, e pode-se dizer que uma preguiça mental geral ainda sairá
fortalecida por isso. Mesmo em livros sobre filmes que não pretendem ser somente
reprodução de ilustrações, mas que propõem abordagens mais teóricas, encontram-se
muito comumente, entre uma montanha de imagens, poucas linhas de texto colocadas
comedidamente, decorativas, formando poucas contribuições intelectuais. Por isso,
optamos por uma oposição a esta mania, assim como a um tipo de saber gerado a partir
de aforismos desconectados, e à busca de convencimento a partir de opiniões não ditas.
Que boa parte do discurso neste livro seja a respeito dos órgãos dos sentidos,
olhos e ouvidos, e a respeito das características técnicas e psicológicas da câmera e da
projeção na parede – com muito pouco a respeito da “Metafísica” e da “Filosofia da
Cultura”, do “Mistério da Artisticidade” e da “Irracionalidade das qualidades estéticas”-,
isso é resultado das convicções mais profundas do autor. A elas, soma-se o fato de que a
arte, em maior ou menor medida, manifesta-se como uma coisa compreensível, terrena e
concreta, assim como as demais coisas deste mundo, e de que o único caminho possível
para o entendimento da arte é considerá-la a partir das descobertas da psicologia dos
sentidos, encarando as artes audiovisuais como uma forma refinada do ver e do ouvir.
Quem toma por simplório o funcionamento cotidiano dos sentidos em suas funções
corriqueiras, em oposição radical a uma sensibilidade excepcional da arte, tem uma
concepção errada sobre ambas as situações e se fecha para uma visão unificada muito
esclarecedora, que aflora quando se considera a estrita ligação entre elas. É verdade que
o abandono de um fundamento mais filosófico pode nos afastar dos problemas mais
profundos do mundo. Mas ocorre, tanto na estética quanto nas ciências naturais, que os
problemas complexos nem sempre sejam tão terrivelmente importantes assim,
problemas a cuja hermeticidade os filósofos aludem sempre triunfantes como, por
exemplo, a compreensão das individualidades. Mas agindo assim, ao menos, não se
corre o risco de elevar ao posto de primeira importância algo que está mais para a casa
do irrelevante, armadilha da qual se libera quem conhece o que constitui a última
simplicidade. Compreender o elementar já é um excepcional e grande trabalho. Privar o
compreensível por veneração do incompreensível felizmente não é o objetivo de todo
mundo.
Junto com a formação cinematográfica tradicional, ver sempre filmes, conversar
regularmente com apaixonados pelo cinema sobre assuntos da sua especialidade, ver
algumas vezes o trabalho em estúdio e, finalmente, manusear pelo menos uma vez uma
câmera e editar um filme – ao lado deste conhecimento todo sobre o filme e sua
produção, o que ajudou a constituir este livro foi certamente o conhecimento prévio da
moderna psicologia experimental. Muitos críticos evitam este caminho de aproximação
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Felizmente para esta edição brasileira os limites passam a ser contornados com o DVD que acompanha a
tradução da obra.
teórico do cinema. Eles não percebem que fundamentam silenciosamente seus trabalhos
numa outra determinada visão psicológica, que é o que se tem visto atualmente, e que
esta teoria psicológica é muito popular para as pessoas com instrução, tida como
verdadeira, mas que já se sabe ser tão ultrapassada como a mecânica atômica ensinada
nas escolas do século passado. Muitos tratados estéticos tornaram-se sem utilidade por
este motivo. Quando se usa uma teoria errada a respeito do simples ato de olhar, torna-
se impossível poder esclarecer corretamente algo complexo ou interpretar esteticamente.
Com seriedade, mas a partir de palavras leves, cabe à Estética derivar leis da arte
a partir da observação das qualidades e do caráter de suas obras. Será mostrado, no
segundo capítulo, que a filmagem nunca é uma simples reprodução fiel da realidade e
serão esclarecidas as diferenças entre uma “Imagem do mundo” e uma “Imagem de
cinema”. Essa diferença, vista até agora como uma fragilidade da técnica do cinema,
constitui, ao contrário, sua maior potencialidade para formar e para explicar a realidade.
É o conteúdo do terceiro capítulo. A bem dizer, sem esta “fraqueza”, nascida de uma
visão que compara a arte com a realidade, a própria arte não seria de modo algum
possível. No quarto capítulo será mostrado como se pode criar não somente a partir dos
recursos da câmera de gravação e dos rolos de filme, mas também através da escolha de
o que será filmado, o modo como a forma artística é aplicada ao conteúdo significado.
Uma aplicação destes princípios sobre o filme sonoro constitui o quinto capítulo, e um
breve prognóstico a respeito do futuro do cinema, o último.
É importante justificar por que demos tanto espaço para a análise do filme mudo
em nossa investigação.
Vivemos sob tal tirania das empresas cinematográficas, que se tornou raro tratar
dos filmes mudos, que já não se veem mais. Mas eles ainda existem, mesmo que não
tenham importância comercial para as empresas. Em lugar nenhum na história das
outras artes alguém pensou em condenar ao esquecimento épocas passadas e seus
mestres. Ao contrário, vemos, em quase todos os domínios, uma grande valorização do
passado em relação ao presente - e isso com justiça, pois boas obras de arte não
envelhecem, além de que o longo passado contém mais bens do que o curto presente. Os
bons filmes mudos dormem nos arquivos, mas não estão mortos, mesmo que hoje não
sejam mais exibidos ou não entrem em cartaz. Eles serão resgatados futuramente por
seu valor, e compensa analisar seus méritos certamente. Não somente porque o filme
mudo representou uma fértil nova forma estética, mas também porque nasceu, a partir
do seu desenvolvimento, todo um novo conhecimento para a realização do cinema em
geral – mesmo que ele não seja mais exibido (para a estética não importa se algo existe,
mas somente se ele pode existir).
Uma pesquisa rigorosa do filme mudo, além disso, contribui muito para o
esclarecimento da situação do cinema falado. Cinema mudo e cinema sonoro são
evidentemente coisas distintas, mas há, até agora, um reduzido número de bons filmes
sonoros, o que torna um pouco fantasioso esperar descobrir regras estéticas a partir
deles, enquanto que, para uma estética dos filmes mudos, existe um manancial
disponível para análise. Recomenda-se assim um método indireto de exame do filme
sonoro, não isoladamente, mas sim a partir do filme mudo e, quando preciso,
confrontando os dois. Justamente assim se comprova que os meios de expressão
desenvolvidos no cinema mudo no âmbito visual foram transferidos para o cinema
sonoro. Portanto, conserva-se o poder de esclarecimento do segundo a partir da análise
do primeiro. Isso é muito claro em relação a princípios muito importantes nascidos nos
filmes mudos (algo da montagem e da estruturação dos contrastes). Se este paralelo
permanecia restrito à análise do visual, é claro que pode ser transportado para o jogo
mais amplo da imagem e do som. Surgem então métodos e fundamentos muito gerais - a
partir dos quais se pode estabelecer um questionamento estético do cinema, rico em
lições para o entendimento do filme sonoro mesmo quando o discurso é diretamente
voltado ao cinema mudo. Tudo depende mais da forma de enunciar o problema do que
de encontrar a solução, visto que a forma de problematizar em todas as artes é sempre a
mesma (apenas as respostas é que não o são!).
Por esse motivo podemos esperar de nosso livro que tudo o que foi dito sobre o
cinema sonoro tanto quanto o que foi dito sobre o cinema mudo seja útil e atual. Foi
consenso geral até agora que as teses dos teóricos da arte, sejam válidas ou não,
exerceram grande influência sobre o trabalho dos artistas. Por outro lado, as teorizações
sobre os trabalhos de arte encontram, em cada época, sua ruína a partir das novas obras.
Ocorre um fato inédito na história da arte até os nossos dias, uma marcha militar de
produção de filmes sonoros que fez aflorar um curso de produção artística totalmente
destituída de orientação teórica. Filme mudo ou sonoro? Filme falado ou falatório?
Montagem ou naturalismo? Sincronismo ou assincronismo? Perguntas enunciadas em
alto e bom tom cujas respostas podem ser dadas não somente pelos diretores, mas
também pelos teóricos. E o teórico que direciona seu trabalho para o campo da estética e
que examina o que já está feito, se alegra quando é útil para a determinação de um
porvir a partir do seu trabalho.

PRIMEIRO CAPÍTULO
IMAGEM DO MUNDO E IMAGEM DO CINEMA

Com o cinema acontece o mesmo que com a pintura, a música, a literatura e a


dança: podem-se utilizar dos elementos que eles oferecem (som, imagem, cores,
movimento) para fazer arte, mas isso não é uma necessidade. Os mesmos recursos
produzem cartões postais de paisagens coloridos, por exemplo, que não são arte, nem
têm pretensão de ser. Uma marcha musical militar, uma narrativa de revista e uma dança
de strip-tease, muito menos. A projeção de uma película não é necessariamente um
filme de arte.
Aliás, muitas pessoas cultas, educadas, contestam até hoje que haja qualquer
chance de um filme ser arte. Elas dizem que o cinema não poderia ser arte porque ele
não faz nada além de reproduzir mecanicamente a realidade. Quem diz isso, pensa em
sua diferença em relação à arte da pintura. O caminho - desde a imagem na natureza
captada através dos olhos, passando pelo sistema nervoso do pintor para chegar às suas
mãos, o pincel, até o surgimento finalmente de uma criação a partir de uma quantidade
de cores aplicadas sobre uma tela como marcas palpáveis - não é um trajeto mecânico
como o da fotografia, em que os raios de luz emitidos pela realidade são captados pelo
sistema de lentes e sensibilizam uma camada química que reage à luz. A pergunta é se
esta diferença de caminho seria suficiente para lançar a fotografia e o cinema para fora
do templo das musas.
Vale a pena refutar com veemência essa objeção de que fotografia e cinema
seriam apenas realidade reproduzida mecanicamente e que não teriam então nada a ver
com arte. Não fosse por outro motivo, pelo menos porque a partir dos esforços nesta
refutação surge como desdobramento um saber que traz à tona as características do
filme de arte.
O caminho para essa refutação é a identificação das propriedades básicas
materiais da imagem cinematográfica e sua posterior comparação em relação às
propriedades correspondentes da imagem do mundo, gerada quando olhamos para a
realidade, a fim de identificar as diferenças entre elas. Isso explicita os aspectos em que
a imagem de cinema e a imagem do mundo diferem em sua natureza e possibilita
verificar se não é justamente a partir destas diferenças que o filme desenvolve seus
meios próprios de expressão artística. Podemos identificar assim os meios de expressão
particulares do filme!

PROJEÇÃO DOS CORPOS SÓLIDOS NO PLANO BIDIMENSIONAL


DA RETINA E NO PLANO BIDIMENSIONAL DA IMAGEM

Vamos pensar num objeto qualquer bem específico da realidade óptica, por
exemplo, um cubo. Deposito inicialmente este cubo à minha frente, inclinado sobre uma
mesa, e me posiciono em relação a ele de tal modo que eu só possa ver um lado dele. Eu
vejo então um quadrado □. Não posso deduzir a partir deste ângulo que o que está ali à
minha frente é um cubo. Eu vejo somente uma superfície de quatro lados. A causa:
nossos olhos, do mesmo modo que a lente fotográfica, têm um determinado ponto de
vista e enxergam somente o trecho do espaço óptico que não se encontra encoberto a
partir dali. Do modo como o cubo repousa neste momento, cinco das suas faces estão
encobertas pela sexta face e, por isso, só se vê a primeira. Essa mesma face quadrada
que vemos poderia muito bem recobrir coisas diferentes que não fossem um cubo – ela
poderia ser a base visível de uma pirâmide deitada, ou poderia ser simplesmente a
superfície de uma folha de papel cortada como um quadrado, sem nada por trás, sem
profundidade – de modo que o ângulo escolhido para esse cubo não me dá a imagem
característica de um cubo.
Essa constatação é certamente importante. Para eu representar fotograficamente
um cubo, não é suficiente que eu deposite um objeto “cubo” de verdade no campo
visual da minha câmera. É mais importante qual ponto de vista eu tomo dele e,
consequentemente, de qual posição ele será visto. O ângulo que escolhemos até aqui
transmite mal a ideia do cubo real. Já um outro ângulo mais elevado e enviesado do
cubo seria mais representativo. Ele exporia três faces do cubo e a relação entre as três,
ou seja, mostraria o suficiente para revelar bem claramente qual é o objeto representado.
O mundo visível está cheio de objetos no espaço, mas o espaço visível aparece
para os nossos olhos (assim como para a câmera) em cada momento somente a partir de
um único determinado ponto de vista. Por outro lado, como só podem ser vistos os raios
de luz projetados em linha reta desde os objetos até os olhos ou a câmera, essas
impressões são captadas ou vistas como um plano na retina ou na película fotográfica.
Disso decorre que a produção de uma simples cópia fotográfica da imagem do mais
simples objeto não é um simples processo mecânico, mas sim algo que deve ser
construído.
No ponto de vista II (vemos três lados do cubo) está contida mais realidade do
objeto “cubo” do que em I (uma face, como um quadrado). Podemos dar como motivo
disso que a vista II mostrou mais partes do cubo do que a vista I, ou seja, em vez de um
lado, três lados. Mas não se trata, na maioria dos casos, somente de quantidade. Não
basta encontrar um determinado ângulo que contenha mais quantidades da superfície
para representar melhor um objeto. Se fosse assim, poderíamos concordar que a
produção de imagem fosse uma atividade bastante mecânica, a qual se deixaria
solucionar por cálculos. Mas não. Para encontrar a imagem característica, não há
nenhuma fórmula; aquela depende de sensibilidade. Se um determinado homem de
perfil parece “mais com ele mesmo” do que de frente, se a parte de dentro da mão ou a
parte externa é mais significativa, se uma determinada montanha é filmada melhor a
partir do norte ou do oeste, tudo isso são coisas que não podem ser calculadas, mas
devem ser sentidas.
Visto que a imagem fotográfica não permite que esse ponto de vista seja alterado
a partir da movimentação dos olhos em relação à imagem – diferentemente do que
ocorre quando o cubo está à nossa frente -, deve-se questionar aquele que chama
depreciativamente a autoria de imagens do cinema como uma atividade mecânica,
porque já desde o mais simplório dos casos, já na reprodução fotográfica de um simples
objeto, é requerido um sentido de realidade para que a imagem seja reconhecida como
forma característica de determinado objeto, uma inteligência que passa muito distante
de um fazer mecânico!
Se esse sentido em si tem algo a ver com a criação artística, não é muito fácil
dizer. Ele é utilizado em muitos trabalhos “não artísticos”, em um sem número de
representações simples de objetos. Pode-se, entretanto, questionar se o trabalho de
encontrar a forma de expressão característica de um objeto com ajuda de um
determinado material de representação, mesmo quando primitivo, não seria, isso sim, já
um certo tipo de arte. Junto com esta questão, coloca-se o problema de saber se a arte é
uma atividade que deriva do funcionamento dos sentidos ou, pelo contrário, se se trata
de uma ação altamente especializada que contém suas próprias regras específicas, como
fazem os teóricos das ciências humanas. Achamos que faculdades primitivas, como
dividir uma linha ao meio num só golpe de vista, perceber a diferença entre dissonância
e consonância musicais, entre outros exemplos de percepção, diferem das reais criações
artísticas somente em grau, não em espécie.

ACHATAMENTO DA PROFUNDIDADE DO ESPAÇO

Que nossos olhos, cuja retina é plana, só possam perceber imagens planas
(projeções do espaço real sobre a superfície do olho), mas possam nos proporcionar uma
impressão espacial tridimensional, isso é em parte resultado de que cada olho localiza-
se alguns centímetros distanciado do outro e não constrói exatamente a mesma imagem
obtida pelo outro, mesmo quando ambos se voltam para um mesmo objeto: a pequena
diferença do ponto de observação de cada olho (a paralaxe) já realiza um deslocamento
característico que indica uma profundidade. A construção perceptiva de uma única visão
a partir dessas duas imagens ligeiramente diferentes possibilita ao cérebro construir uma
percepção espacial tridimensional. O mesmo princípio é sabidamente utilizado pelo
estereoscópio, um artefato no qual são colocadas duas fotos ligeiramente distintas lado a
lado, cada uma delas visível somente a um dos dois olhos, ou seja, visão dupla a partir
da qual o cérebro monta uma imagem única que também constrói uma sensação de
profundidade. Este recurso não está disponível para o cinema porque o filme é
observado por mais de uma pessoa. Se o cinema só tivesse um único espectador a cada
sessão, seria possível produzir cinema tridimensional muito facilmente. Assim como no
estereoscópio, dois filmes projetariam imagens distintas gravadas a partir de duas
câmeras distanciadas em alguns centímetros uma da outra, compondo uma só cena.
Algum aparato físico simples faria com que a tomada da direita fosse vista somente pelo
olho direito e a da esquerda, pelo olho esquerdo. Isso funcionaria. Mas ainda não foi
bem equacionado encontrar um modo de fazer essa projeção de um filme tridimensional
para um grande público, fazendo com que a noção espacial da imagem de cinema
tradicional seja muito reduzida. Ela pode ser um pouco intensificada em situações como
o deslocamento das pessoas e das coisas entre o primeiro plano e o fundo do campo,
mais distante da câmera mesmo numa imagem plana – mas basta uma olhadela uma
única vez para uma situação equivalente representada num estereoscópio, com sua forte
sensação de realidade tridimensional, para reconhecer como a espacialidade do cinema é
fraca e pouco plástica. Uma grande diferença entre a realidade óptica e a imagem do
cinema.
O cinema não produz nem uma imagem tridimensional pura nem uma imagem
plana pura, mas as duas coisas - uma dentro da outra. As imagens de cinema são, ao
mesmo tempo, planas e espaciais. No filme “Berlim”, de Ruttman, há uma tomada de
dois trens de metrô deslocando-se um em direção do outro. A câmera posicionada no
alto mostra os dois trens se movendo por baixo. Quem analisa cada plano vê em
primeiro lugar um trem que parece querer se afundar na tela, correndo na direção do
público (plano próximo) para trás da tela (fundo do campo), e o outro trem que corre do
fundo da tela para frente, em direção ao público (imagem com profundidade espacial).
Porém, ao mesmo tempo, também é possível perceber o mesmo movimento como se um
trem corresse da parte de baixo da tela para a parte do alto e o outro do alto para baixo
(verticalmente no mesmo plano da tela). O segundo tipo de deslocamento resulta da
projeção do movimento tridimensional sobre o plano da tela, o que naturalmente cria
uma direção de movimento diferente do movimento real.
A perda da noção de profundidade traz como segundo desdobramento uma força
exagerada nas sobreposições. Enquanto o encobrimento um objeto por outro quando
olhamos para eles na realidade – um ônibus que passa por trás de um poste - ou no
estereoscópio é entendido como casual e desimportante, quando ele ocorre numa
superfície plana, produz um corte radical. Mesmo na realidade, se uma pessoa segurar
um jornal de modo a cobrir um lado do rosto com ele, mas colocando o jornal próximo
de si, o sumiço de um pedaço do rosto será percebido com uma estranha intensidade.
E ainda há mais, pois, junto com a falência da noção de profundidade, perde-se
também aquilo que a psicologia chama pelos nomes de “regularidade de tamanho” e
“regularidade de forma”. A imagem projetada por um objeto do campo visual sobre a
retina do olho reduz-se à proporção do quadrado do distanciamento. Afaste-se de um
objeto plano que se encontra a um metro para dois metros, e, em conseqüência, a
superfície dele projetada na retina diminuirá para um quarto do tamanho original. Toda
película fotográfica funciona assim. A fotografia de um homem deitado feita a partir do
ponto de vista próximo aos pés e distante dos membros superiores do corpo mostrará
solas dos pés gigantes e uma cabeça muito pequenina. É admirável que, em nosso dia-a-
dia, nossa percepção não se iluda com as distorções projetadas na retina, ou seja, que
nós não vejamos do mesmo modo como funciona uma ampliação fotográfica. Citarei
alguns exemplos. Se há um homem a um metro de distância de nós e outro com
aproximadamente a mesma altura a dois metros de distância, na retina, a superfície
corporal do de trás será de aproximadamente um quarto do tamanho do mais próximo.
Se há uma pessoa que coloca sua mão aberta muito próxima dos nossos olhos, isso não
causa a impressão de que a mão seja gigante e desproporcional em relação ao corpo
dela. Nós percebemos tanto que os dois homens citados anteriormente são do mesmo
tamanho, quanto que a mão é perfeitamente proporcional. Esse fenômeno é o que se
chama “regularidade de tamanho”. Ele se baseia numa experiência cotidiana de nosso
olhar, desenvolvida desde a infância, a qual nos possibilita perceber racionalmente qual
é o tamanho objetivo das coisas, de forma que o cérebro promova uma espécie de
correção praticamente automática da deformação da imagem originada em função das
distintas distâncias. Para a maioria das pessoas – com exceção dos pintores e
desenhistas que recebem um treinamento específico –, é impossível perceber as medidas
tais como se apresentam na retina, o que também explica por que uma pessoa mediana
não treinada nos métodos de desenho tenha tamanha dificuldade em desenhar as coisas.
O problema novo colocado pelo cinema é que uma clara percepção das distâncias seria
necessária para o funcionamento correto da regularidade de tamanho, isto é, onde a
sensação de distância está presente, como no estereoscópio, a regularidade de tamanho
funciona muito bem, mas quando não está, como muitas vezes ocorre na imagem de
cinema, a correção automática feita pelo cérebro praticamente desaparece. Se duas
pessoas são colocadas de forma que uma esteja o dobro de distância da outra em relação
à câmera cinematográfica, o resultado será a impressão de que o mais próximo é
consideravelmente maior e mais robusto do que o outro.
O mesmo ocorre com a regularidade de forma. A imagem retiniana de uma mesa
é como uma fotografia dela: o lado mais próximo do observador parece
consideravelmente mais largo que o de trás, de modo que a superfície que sabemos ser
retangular parece ser um trapézio. Mas um observador comum com olhar destrinado,
não percebe a mesa assim: ele continua vendo a mesa em forma retangular (e também a
desenha assim). A distorção perspectiva que há em todo o corpo extenso com
profundidade não é notada, mas compensada inconscientemente. Isso é a regularidade
de forma ou de contorno. Na imagem cinematográfica, ela desaparece; a mesa parece
maior na frente e menor atrás, fenômeno que se intensifica quanto mais próxima ela
estiver localizada da objetiva da câmera, fazendo a parte próxima parecer mais larga, a
de trás, mais estreita.
Esse fenômeno cinematográfico não se dá exclusivamente pela perda da noção
de profundidade, mas também, e principalmente, pela percepção nítida que o expectador
tem da artificialidade da imagem cinematográfica - fenômeno pelo qual também são
culpados a falta de cor do cinema preto e branco, a limitação do campo pelas molduras
da imagem e da tela, etc. Todas essas diferenças em relação à imagem do mundo real
fazem juntas com que o tamanho e a forma não sejam mostrados na imagem
cinematográfica em suas proporções objetivas, mas sim nas proporções retinianas com
as respectivas distorções perspectivas.

A SUPRESSÃO DAS CORES E O PAPEL DA ILUMINAÇÃO

A ausência de cores no cinema preto e branco torna a imagem técnica tão


diferente da realidade que é mesmo extraordinário o fato (que deveria ter chamado tanto
a atenção do público) ter passado praticamente despercebido até o momento em que
começaram a surgir os filmes coloridos. A redução de todas as cores a tons de branco e
preto nunca deixa inalterada a luminosidade real – quando, por exemplo, “traz” um
vermelho ao tom escuro e um azul ao tom claro (perda que desaparece por meio do
negativo pancromático) –, fato que diferencia radicalmente a imagem de cinema da
imagem do mundo. Apesar disso, todo espectador de cinema aceita o mundo de luzes e
sombras projetado sobre a tela como verossímil, o que se relaciona com o aparecimento
do fenômeno que denominaremos “ilusão parcial” (Página 37 f). O espectador não se
revolta porque o mundo do cinema nos mostra um céu que tem a mesma cor de um
rosto, ele aceita uma bandeira preta, cinza e branca como se fosse preta, vermelha e
dourada (as cores da bandeira alemã); uma boca escura, como se fosse vermelha;
cabelos brancos como louros; etc. Mas não se pode deixar de destacar que, por causa
disso, a folha de uma árvore se torna escura tanto quanto uma boca de mulher, ou seja:
não se trata somente de transpor um mundo colorido para um outro em preto e branco,
mas de se estabelecer uma nova escala de relação de tons que podem ser transpostos um
para o outro, criando uma nova similaridade de coisas que não são de cor semelhante no
mundo real das cores, e de se criar relações de similaridade de tons de cinza em que não
havia nenhuma relação de similaridade de umas cores com as outras.
Isso já é um indicador de que, diferentemente do que ocorre na realidade, no
filme, a iluminação tem um papel muito mais importante. Por exemplo, a luz carrega
consigo a possibilidade de as formas das coisas serem claramente reconhecíveis: sabe-se
bem que na lua cheia as crateras que cobrem sua superfície ficam invisíveis quando o
sol está em linha reta em relação a ela, porque, assim colocado, ele não produz nenhuma
sombra na superfície lunar. A luz do sol deve vir lateralmente para que se tornem
visíveis os contornos das montanhas e mares lunares. Há mais ainda: o fundo de uma
imagem deve ter uma cor que contraste suficientemente com o objeto, de modo a
garantir sua distinção para que não haja sobreposições de partes que nos enganariam,
fazendo pensar que a parte do fundo pertence ao objeto ou parte do objeto pertence ao
fundo. É importante notar na história da arte que, desde a pintura primitiva, não só o
objeto em si, mas também um fundo está presente na imagem.
Um novo problema característico desta regra surge na fotografia de esculturas.
Ali com certeza não se pode seguir um procedimento mecânico. Há dificuldades
específicas que os fotógrafos e os escultores têm de enfrentar. De que lado a escultura
deve ser fotografada? De que lado deve ser iluminada? De cima? De baixo? Da
esquerda? Da direita? É preciso pensar em tudo isso para que a fotografia seja capaz de
representar a escultura com fidelidade e para que não se torne algo tão distinto dela que
nem se possa reconhecer sua forma original.

BORDAS DA IMAGEM E DIMENSÃO DO OBJETO NA TELA

O campo da nossa visão é limitado. No centro do olho, há uma região chamada


“mais aguda” do olhar enquanto, para as bordas, a nitidez decai e, por fim, o campo
visual encontra um limite que, como um todo, tem forma circular e que se explica pela
estrutura do olho. Se mantivermos o olhar sobre um ponto determinado, poderemos
visualizar esse campo circular limitado. Ocorre que este fato não tem nenhum
significado na prática. Ele não é notado pela maioria das pessoas. O motivo por que não
o notamos no dia-a-dia é termos a possibilidade de movimentar os olhos e a cabeça, o
que fazemos de forma constante sem nos darmos conta e que resulta em nunca
percebermos nossa limitação em ver, apesar de o campo visual ter efetivamente uma
certa extensão! É por isso que é totalmente falso o que reconhecidos teóricos da imagem
e também diretores dizem: que os limites da imagem cinematográfica na tela equivalem
aos limites de nosso campo visual em relação à realidade. A psicologia demonstra que
isso não é verdade. O limite da imagem de cinema e o limite do campo visual não
podem ser comparados porque o espaço visual factual de uma pessoa não respeita
nenhuma limitação. É fácil notar isso a partir da percepção de uma sala qualquer.
Mesmo que nossos olhos não possam observar a sala inteira a partir de um único ponto
de vista, onde nos localizemos, somos capazes de ter uma percepção da sala inteira sem
qualquer esforço porque construímos uma representação dela como um todo na própria
memória a partir da movimentação inconsciente e permanente dos olhos, que varrem
todo aquele espaço; cabeça e olhos se agitam e nós percebemos a totalidade do espaço
como se fosse uma imagem única delimitada.
Isso não pode acontecer nem no filme nem na fotografia. Vamos falar
inicialmente da tomada fixa simples. Sobre as câmeras em movimento – travelling - ou
giratórias – panorâmicas – falaremos mais à frente, (mas já podemos adiantar que esses
meios também não substituem de modo nenhum a visão espacial do corpo num
ambiente! E nem têm este objetivo). Em qualquer imagem, é fácil determinar qual é seu
limite. O espaço filmado é visível até uma certa extensão, mas surge então uma
margem, um fim da imagem, que não deixa ver o que se seguiria ao lado, na
continuação do trecho de imagem que é mostrado. Não devemos considerar esta
limitação como se fosse uma falha, um embaraço da técnica, o que a tornaria menos
completa do que a visão humana. Ao contrário, trabalhamos no sentido de que são
justamente essas limitações que possibilitam as escolhas que fazem o cinema ser uma
arte!
Por causa da limitação do campo (e também pela falta de sensação de inclinação
dada pela gravidade - pág. 43), acaba sendo muito difícil reconhecer claramente a partir
de uma foto qual é a situação espacial representada. Fotografe, por exemplo, a encosta
de uma montanha a partir de baixo para cima ou os degraus de uma escada a partir do
teto, ou analise fotos já feitas sobre esses motivos, e se perceberá que não é fácil ter uma
noção exata da inclinação, saber se uma superfície está inclinada para cima ou para
baixo. Só é possível perceber claramente qual é a situação a partir de meios ópticos
puros - uma elevação ou uma depressão - quando a imagem também mostrar uma base
de chão que sirva para estabelecer um ponto de referência. Só neste contexto se
perceberá uma depressão como depressão. Pelo mesmo motivo, é preciso ter algum
elemento conhecido como parâmetro de comparação para mostrar o tamanho de coisas
difíceis de dimensionar (mostrar o tamanho de um prédio ou de uma árvore fica mais
fácil se colocarmos um homem ao lado na cena). No mundo real, um homem
caminhando em qualquer lugar deixa, sem perceber, seus olhos vaguearem ao redor da
situação e, mesmo que ele direcione seu olhar fixamente em direção ao chão, terá uma
percepção direta de toda a situação, que não vem só da visão, em sua mente. Por
exemplo, ele é orientado por seus músculos e por seu senso de equilíbrio e gravidade
muito precisamente sobre o fato de estar subindo ou descendo, o que possibilita a seu
corpo formar uma imagem mental muito mais ampla em relação à inclinação do solo,
mesmo se estiver olhando somente para o chão, criando também uma imagem óptica
desta inclinação da superfície. Em contraste com isso, alguém que observe uma foto ou
um filme, conta somente com o que é apresentado na imagem para seus olhos
observarem, sem poder buscar referência em nenhuma outra sensação corporal, como a
sensação de estar subindo ou descendo, e também sem poder contar com uma série de
outros recursos físicos com os quais o sistema óptico é capaz de cooperar quando o
corpo do observador está diretamente colocado no lugar em que os olhos observam uma
situação qualquer.
A limitação do quadro interfere também na questão da distância em relação ao
objeto. Quanto menor for o trecho de realidade que se pretenda enquadrar, mais perto
dele deve-se colocar a câmera, e a figura será mostrada num tamanho maior dentro dos
limites da imagem. O inverso também é verdade: mais longe, tamanho menor. Para
poder colocar um grande número de pessoas num quadro, deve-se afastar a câmera a
uns bons metros de distância. Para enquadrar uma única mão ocupando a imagem toda,
a câmera deve se aproximar até meio metro dela porque, senão, a mão ficará pequena e
tudo o que está em torno dela também será mostrado. Em primeiro plano, a mão
parecerá ser gigante e ocupará toda a superfície da grande tela. À câmera cabe, portanto,
assim como um homem numa situação da realidade, a escolha de mostrar um objeto de
perto ou de longe – uma autonomia que deve ser controlada com muita propriedade
porque representa um importante recurso de direção.
Se o tamanho com que um objeto filmado aparece sobre a tela é determinado por
um lado da distância na qual a câmera se coloca quando o enquadra o objeto, por outro
lado, também, naturalmente, depende do tamanho absoluto em que a imagem final é
projetada. O grau dessa ampliação decorre da lente da câmera de projeção e da distância
entre o projetor e a tela, além da profundidade da sala de projeção. Pode-se projetar
cada filme em tamanhos distintos, tão pequeno como a projeção de uma lanterna mágica
com a qual as crianças brincam ou em uma proporção gigantesca como numa sala de
cinema enorme. Há, entretanto, uma proporção ideal entre o tamanho da tela e a
distância dela em relação ao espectador: no cinema, o espectador senta-se relativamente
distante, portanto a projeção deve ser grande; para um projetor doméstico pequeno, o
espectador senta-se perto, por isso a potência dele pode ser bastante menor. Apesar
disso, é comum o tamanho da projeção ser maior do que o ideal. Nos grandes cinemas, a
projeção é tão grande que os espectadores das primeiras fileiras veem a imagem de
forma muito distinta da que assistem os das últimas filas. E o tamanho com que se vê a
imagem é relevante. Toda gravação pede uma certa limitação do tamanho de projeção.
Por exemplo, algo que se movimente em frente à câmera, quando projetado em uma tela
grande (como quando o espectador está muito perto da tela no cinema), vai correr mais
rápido do que se for projetado numa tela pequena pela razão de que, no primeiro caso,
uma superfície maior teve de ser transposta no mesmo intervalo de tempo.
Do mesmo modo, um movimento brusco e irregular na tela grande pode ser visto
como confortável e harmonioso numa tela pequena. Outro elemento que depende do
tamanho da projeção é a nitidez com que os olhos do espectador percebem mais ou
menos claramente as linhas que definem o objeto filmado. Há uma grande diferença
quando se vê uma pessoa tão bem definida que se podem reconhecer os desenhos no
enfeite de sua gravata ou tão pouco definida que mal se reconhece o seu rosto. Por fim,
é importante dizer que o tamanho com que se mostra um objeto é um recurso de
expressão quando conscientemente manuseado pelo diretor. E é possível, pelo fato de o
espectador se encontrar mais próximo ou mais distante da tela, que haja alguma
distorção em relação ao que o diretor previra e que não se entenda o que ele queria
comunicar. Ainda não surgiu um projetor capaz de contornar estes problemas em
projeções para grandes públicos, para que todos possam ver numa grande sala uma
imagem projetada de modo igual para cada um. Para isso, todos teriam de se sentar uns
atrás dos outros o máximo possível em linha reta. O fato de alguém ter de ficar de lado
em relação à imagem já causa prejuízos sem dúvida para a qualidade da percepção.

QUEBRA DA CONTINUIDADE DE ESPAÇO E TEMPO

No mundo real, cada experiência ou sequência de acontecimentos se dá para um


observador num ambiente homogêneo de espaço e tempo. Eu vejo dois homens falando
numa sala. Coloco-me a quatro metros deles. Posso alterar essa distância, posso me
aproximar, mas isso não é feito por meio de um salto descontínuo no espaço. Eu não
posso instantaneamente saltar os dois metros, tenho sim de percorre-los até chegar ao
lado deles. Eu posso abandonar o ponto de observação, mas não posso aparecer na rua
como num passe de mágica. Devo, para tanto, sair da sala, passar pela porta, descer as
escadas... Isso não é diferente com o tempo. Eu não posso instantaneamente ver o que
duas pessoas farão daqui a dez minutos, ao contrário, se quiser ver o que vai acontecer,
devo esperar passarem-se esses dez minutos. Não há para um observador na realidade
nenhum salto no tempo ou no espaço, mas sim uma continuidade espaço-temporal.
No cinema não é assim. O trecho de tempo filmado pode ser cortado em
qualquer ponto. Uma cena pode ser seguida de outra que ocorre num tempo totalmente
diferente. E assim também a continuidade espacial pode ser quebrada. Posso estar
colocado a cem metros de uma casa e no segundo seguinte estar batendo com a mão na
sua porta. Posso estar num segundo em Sidney e, no seguinte, em Magdemburg. Só
preciso para tanto colar duas tiras de filme. Essa possibilidade decorre de uma simples
trucagem técnica. O uso prático dessa liberdade precisa ser limitado, na maioria dos
casos, de modo que o conteúdo do filme crie uma outra unidade do ambiente espaço-
temporal estabelecido pela narrativa (a chamada diegese). É a essa unidade narrativa
que as cenas individuais devem se reportar. Em particular no que diz respeito ao tempo,
há regras muito bem definidas:
No interior de cada cena, há um fluxo linear do tempo, de modo que uma coisa
que vem depois de outra no mundo real também deve sempre vir logo a seguir dela num
tempo sem interrupções no cinema - caso que conta com algumas exceções, como uma
digressão que remeta a narrativa para uma experiência anterior, ou um sonho ou
memórias relembradas, casos que possuem um tempo próprio interno que se relaciona
com o tempo da narrativa principal de um modo claro (antes de, depois de etc.). No
interior de uma cena, um acontecimento sucessivo implica numa sucessão temporal. Se
eu mostro uma tomada de uma pessoa que ergue um revólver e atira, não posso mostrar
logo a seguir, num primeiro plano, o mesmo revolver elevar-se novamente e disparar
mais uma vez, porque isso já aconteceu antes e pareceria ao espectador como que uma
repetição sem sentido de um único fato apresentado como se fossem dois fatos, um
mostrado depois do outro.
Acontecimentos temporais de uma cena são mais facilmente e naturalmente
mostrados através de um único e mesmo enquadramento. Vemos numa imagem alguém
se sentar à mesa e escrever e, atrás dele, outra pessoa tocar piano. Desse modo, a
situação encontra-se representada da forma mais clara possível. Mas ela é
frequentemente dividida em diversos planos distintos que formam um todo e também
fica clara. Esta opção pode se dar por motivos estéticos, desde que a situação geral do
espaço seja mostrada como uma unidade.
Duas cenas que ocorrem ao mesmo tempo em lugares diferentes podem ser
mostradas simplesmente montando uma depois da outra. Por causa do sentido delas,
percebe-se que são simultâneas. Esse recurso pode se dar pelas primitivas legendas
escritas com textos de diálogos ou intertítulos (“Enquanto Elisa lutava entre a vida e a
morte, Eduardo estava embarcando no vapor do São Francisco”). Ou ainda visualmente:
o espectador sabe que a corrida de cavalos começa às 15h40. Vemos uma sala na qual
há pessoas interessadas na corrida, alguém olha o relógio, e são 15h40. Já na próxima
cena: pista de corrida, os cavalos correm em disparada. A sequência das cenas mostra
que elas foram cortadas com habilidade e montadas de modo que cada trecho fosse
colocado ao lado um do outro para que sua alternância seja capaz de mostrar o
desenvolvimento contínuo das duas situações.
Dentro de uma cena, a continuidade de tempo não deve ser violada. Não só as
ações simultâneas não devem ser mostradas uma atrás da outra, como nenhum tempo
interior dela pode ser pulado. Se um homem vai da porta à janela, devo mostrar o
percurso sem omissões. Não é verossímil retirar parte do percurso, situação em que o
espectador veria o caminhante perto da porta dar uma espécie de solavanco e surgir
imediatamente na janela. Esse corte é muito abrupto e só pode ser tolerado quando
alguma outra imagem é colocada neste meio, de modo a “ocupar” o tempo mostrando
outra coisa. Só com a finalidade de obtenção de algum efeito cômico uma supressão
brusca poderia ser utilizada por meio da simples supressão do tempo no interior de uma
cena - como quando Chaplin entra numa casa de penhor e sai no mesmo instante como
que num passe de mágica, mas já despido do seu casaco. Mostrar uma ação do princípio
ao fim seria muitas vezes aborrecedor e anti-artístico, o que leva a que o curso da ação
seja muitas vezes interrompido por outras cenas que ocorrem ao mesmo tempo em outro
lugar. É melhor que cada cena mostre somente os momentos mais esclarecedores para o
entendimento da narrativa, mas é preciso cuidar para que seu conteúdo não se torne
incoerente do ponto de vista da passagem do tempo. E assim, um bom filme deve prever
o tempo que ocupará cada cena no roteiro, de modo que seja garantida uma unidade de
tempo e que cada uma delas dure o tempo necessário para mostrar o que é importante e
nada além do que é relevante.
Enquanto a unidade interna de uma cena deve manter necessariamente intocada
a continuidade do tempo, já há outros tipos de ligações em que isso não é obrigatório,
como cenas que ocorrem em lugares distintos, e em que é indiferente sua relação
temporal, ou seja, se ocorreram umas antes, ao mesmo tempo ou depois das outras. Isso
se torna claro em muitos filmes educativos, que não mostram uma unidade de tempo,
mas uma sequência de situações. Poderíamos dizer, por exemplo: “... tanto coelhos
quanto leões podem ser amestrados!”. Primeira imagem: o treinamento de coelhos. No
interior desta cena, há um intervalo de tempo. Segunda imagem: adestramento de leões.
Aqui também decorre um tempo. Mas estas duas cenas mostram-se sem qualquer
ligação temporal uma em relação à outra: o adestramento de leões pode ocorrer depois,
ao mesmo tempo, ou antes do de coelhos e, além disso, esta duração de tempo não faz
diferença, uma vez que o sucesso da cena não depende dela. Essas situações ocorrem
frequentemente nos filmes narrativos também.
O fato de que algumas cenas ocorreram depois das outras, ou ao mesmo tempo,
tem de ser esclarecido pela própria lógica da narrativa, porque a simples exposição de
uma cena após a outra não é garantia no cinema da percepção de uma sucessão de
acontecimentos temporalmente ligada.
A independência espaço-temporal no cinema em relação à realidade é muito
maior do que no teatro. A peça de teatro também pode conduzir a cena de um lugar para
outro ou mesmo para outro tempo, como no filme. Mas a mobilidade das cenas
apresentadas num espaço-tempo real, como o do palco, é evidentemente muito mais
limitada e, no interior de uma cena, não pode haver um corte brusco. Essa mudança
também deverá ser claramente sinalizada. A cortina deverá cair ou as luzes diminuírem
até o palco se escurecer. Como consequência de um corte que não respeitasse essa
clareza, poderia haver um estranhamento ainda maior por parte da plateia, visto que o
público perceberia uma transição esquisita entre lugares diferentes. Por força dos limites
do teatro, algum grau de estranhamento deveria naturalmente ocorrer, já que lugares
diferentes, na prática, têm de ser apresentados sobre o mesmo tablado cênico, com seu
espaço homogêneo e seu ininterrupto decorrer de tempo. Que esse estranhamento não
ocorra é o resultado de um raro fenômeno: a ilusão desenvolvida pelo teatro (e também
pelo cinema) é somente parcial. De um lado, a verossimilhança do conteúdo de uma
cena teatral é muito valorizada - as pessoas devem falar no palco como falam na
realidade: as empregadas agirem como empregadas, um conde, como um conde4... Num
salão burguês cenográfico, não pode existir uma tocha de iluminação, nem pode haver
um telefone ao lado da cama de Desdêmona na Grécia antiga. Porém percebe-se que
aquilo não é uma situação real. Qualquer casa num espaço cênico deve ter somente três
paredes, pois a quarta é o lado do observador e deve estar livre. Todo o público ri
quando o cenário cai e mostra que a parede do quarto é de cartolina pintada, ou quando
um tiro é ouvido alguns segundos antes de o revólver disparar. Mas o público não ri ao
ver que a sala representada no palco só tem três paredes. A diferença entre essas duas
situações é que a discrepância em relação à realidade é aceita tranquilamente quando a
própria situação a exige. É a esse fenômeno que queremos denominar pelo conceito de
ilusão parcial.
O palco existe em dois distintos reinos por assim dizer, cujos campos se
dividem. Por um lado, ele é real, mas apresenta somente um pedaço da realidade. Há um

4
Apesar de que há limitações até onde a imitação deva ser fiel. A empregada e o conde devem ser naturais
enquanto for possível a eles ser ao mesmo tempo claros e audíveis – caso contrário, os atores deverão
falar com voz empostada e em alto som!
tempo real e um espaço real onde está o público, mas eles são suprimidos para dar lugar
ao tempo e ao espaço imaginários representados no palco. Por outro lado, o palco é
lugar de atuação, aparência, encenação, e não um puro fingimento. O ingrediente de
ilusão no palco é muito forte porque contém um espaço (o palco) real e um intervalo de
tempo real. Essa presença de realidade é muito pequena quando olhamos para uma
imagem de fotografia. A fotografia mostra tanto quanto o palco um determinado espaço
e tempo (um momento), mas não o faz como o palco, com auxílio de um espaço real (o
do palco) e de um intervalo real de tempo (a duração da cena). O fato de a superfície da
foto representar um espaço físico é resultado de uma tão forte abstração mental, já que o
espaço da foto não permite de modo nenhum criar a ilusão de ser um espaço real.
O cinema, com sua imagem em movimento, faz uma ponte entre o teatro e a
fotografia. Ele mostra o espaço, embora de modo distinto do palco o qual se apoia na
existência de um espaço real. Nesse sentido, o espaço do cinema é mais parecido com o
da fotografia, construído a partir de uma superfície plana. Mas, por diversos motivos, a
noção espacial do cinema não é tão estreita como a da fotografia: uma grande ilusão de
profundidade é dada ao espectador. Em oposição à fotografia e à semelhança do teatro,
o cinema tem um intervalo de tempo que pode ser ocupado por imagens que indicam
um fluxo de realidade, embora este tempo não seja tão íntegro como o tempo real do
teatro e, por isso, possa ser interrompido a qualquer momento por outro fluxo de tempo
(um flash-back, por exemplo) sem chamar a atenção do espectador como se fosse uma
ruptura radical do fluxo temporal: o cinema não deixa de ser composto por uma imagem
bidimensional plana, a qual pode deixar de ser mostrada quando se bem entender para
que se sigam a ela outras imagens, mesmo que filmadas em momentos muito distintos.
O cinema serve para criar, assim como o teatro, uma ilusão parcial. Ele
proporciona, num alto grau, uma impressão de vida real (que pode ser tão forte porque,
ao contrário do teatro, reproduz a realidade, ou seja, pode usar o mundo real como um
cenário, o mais fiel possível à realidade). Por outro lado, ele cria uma apresentação
artificial num grau tão elevado, ao poder colar as tiras de filme livremente, que o teatro
nunca o poderia acompanhar. Por causa da supressão da cor, da ausência de sensação de
profundidade estereoscópica, da clara limitação da tela de projeção, entre outras
características, o realismo do cinema é felizmente desmascarado. O cinema é sempre
local de desenvolvimento de um acontecimento “real” e ao mesmo tempo um quadro
plano em que ele é projetado.
Desta situação decorrem as concessões artísticas denominadas Montagem. Já foi
dito que o filme tem a possibilidade de apresentar sequências disparatadas de tempo e
espaço, uma a seguir da outra, ao gravar situações reais em fitas de película
manipuláveis que podem ser emendadas. Usar essa colagem de modo impensado é
somente uma técnica que, utilizada somente assim, ao acaso, resulta num amontoado de
cenas tão incompreensíveis que a sua simples contemplação resulta num mal-estar como
o enjoo de navegar em alto mar. A montagem conscientemente utilizada vai muito além.
Por exemplo: na primeira imagem, vê-se um homem que toca a campainha da porta e,
imediatamente a seguir, aparece um cenário totalmente diferente, mas que é exatamente
o interior da casa na qual se vê a empregada caminhar em direção à porta – num certo
sentido, isso significa que o espectador foi como que arremessado num solavanco
através da porta da casa para o outro lado da cena -, a moça abrir a porta e ver o
visitante. Imediatamente a imagem salta novamente e vemos a partir do ponto de vista
do visitante o rosto da empregada. Cada solavanco desses ocorre em uma fração de
segundo. Agora surge aos poucos no fundo do cenário uma mulher e, no momento
seguinte, somos arremessados oito metros para frente, em sua direção, e nos vemos
próximos do seu rosto.
Poderia se supor que esta espécie de malabarismo relâmpago, arremessando o
ponto de vista pelo espaço cinematográfico, causasse uma sensação desagradável ao
público. Mas todo espectador de cinema sabe que não há desconforto algum numa
montagem bem feita, ao contrário, os saltos propiciam um claro entendimento da cena
até agora descrita, cuja observação se dá tranquilamente e com a maior facilidade. Os
pulos somente seriam realmente desagradáveis se essa movimentação se desse
efetivamente a cada espectador, por ocasião de cada corte, mas fisicamente ele só
precisa se dar efetivamente na movimentação da câmera na realidade, para a gravação
da tomada seguinte. Mas conforme dissemos, não é isso que acontece, pois a realidade
construída pelo cinema não é total, mas somente uma ilusão parcial, ao mesmo tempo
em que ela se apresenta como realidade, apresenta-se como imagem.
A plasticidade que os assuntos mostrados em planos nos filmes criam quando se
seguem cenas gravadas nos locais mais distintos não gera a sensação de ruptura
violenta, mas sim a mesma sensação confortável de quando observamos uma sequência
de distintos cartões postais. Assim como eles não nos incomodam minimamente pelo
fato de mostrem os locais mais distintos ou épocas distintas também, isso também não
nos perturba no filme. Vemos uma mulher de corpo inteiro no fundo de um quarto e,
imediatamente a seguir, na próxima imagem, seu rosto gigantesco na tela como se uma
página fosse virada: uma nova imagem está lá. Se o cinema tivesse uma impressão de
localização espacial muito forte como a do teatro, a montagem seria impossível.
Somente o fato de a realidade da imagem de cinema ser parcial possibilita a montagem.
Enquanto os elementos de exceção do palco em relação à realidade abrangem
somente a quarta parede da sala que está ausente, a transição de lugares dos diferentes
cenários, a fala empostada, etc., o cinema vai muito além. Para começar, o ponto de
vista de observação pode mudar, o que depende até mesmo do tipo de lente utilizado na
filmagem. O espectador do teatro está sempre à mesma distância do ator no palco,
enquanto o de cinema salta para frente e para trás, olha de longe, de perto, de cima,
através da janela, da esquerda, da direita, ou seja, o cinema cria um sistema de descrição
que seria impossível reproduzir na realidade do palco cênico. Essa possibilidade só
existe porque o fato de a imagem mostrar distintos pontos de vista depende unicamente
do posicionamento da câmera no momento em que filma, seja mais próximo ou mais
distanciado do objeto, embora isso não implique em que o espectador ou os atores
tenham de saltar junto com a câmera quando ocorre tal movimentação.
Muitos autores, dados a um pensamento teórico mais penetrante, acharão talvez
o conceito de “ilusão parcial” até aqui apresentado muito vago e pouco compreensível.
“Não faz parte da ilusão que ela seja completa?” – perguntariam. “Posso acreditar que
esteja em Nova York quando estou sentado com meus amigos de Berlim? Posso ver uma
sala se no momento anterior havia uma rua ali?” Sim, posso. De acordo com uma
psicologia antiquada, mas profundamente impregnada no pensamento popular, uma
ilusão só pode ser eficiente quando oferece uma relação completa de todos os detalhes.
Mas qualquer um sabe que o mais incompleto desenho infantil de um rosto feito a partir
de um ponto, outro ponto, uma vírgula e um ponto de exclamação pode causar uma
forte impressão de que se trata de uma pessoa zangada, contente ou triste. A impressão é
muito forte, apesar de a representação estar longe de ser completa. Que ela nos seja
suficiente é o resultado de que, mesmo na realidade, não reparamos em cada detalhe: se
víssemos um rosto pela primeira vez e nos desviamos dele a seguir, não conseguiríamos
dizer, logo depois, se a pessoa tinha olhos azuis ou castanhos, se tinha um chapéu sobre
a cabeça ou não, etc. Assim, na observação da realidade nos satisfazemos com o
reconhecimento do essencial, conhecimento tão suficiente para nós que, quando
desenhamos (mesmo com técnica) nos damos por satisfeitos em representar poucos
traços. Isso também ocorre no teatro e no cinema: quando somente o essencial do
acontecimento é mostrado, a ilusão já é completa para nós. Se a pessoa projetada na tela
se assemelha a uma pessoa e vive como uma pessoa, não é tão fundamental assim que a
vejamos com bochechas redondas e avermelhadas como um ser humano e também não
nos incomoda o fato de sabermos que ele não vive em um espaço real – ela é viva o
suficiente mesmo assim. E, pela aceitação deste mundo da imagem, torna-se possível
produzir o belo, os filmes de valor artístico no cinema, porque não importa que os
objetos e acontecimentos sobre a tela sejam ao mesmo tempo vivos e mortos, realidade
e simples luzes projetadas numa superfície plana.

PERDA DOS DEMAIS SENTIDOS ALÉM DA VISÃO

Nossos olhos não são um aparelho com funcionamento isolado, mas trabalham
em estreita colaboração com os outros órgãos dos sentidos no corpo. É até mesmo
surpreendente que eles possam perceber algo sozinhos, sem auxílio dos outros sentidos.
Por exemplo, é bem conhecida a sensação de vertigem ao assistirmos um filme com
permanente movimentação rápida da câmera. A vertigem decorre de que os olhos nos
indicam estarmos num mundo muito diferente daquele que a sinestesia muscular indica,
de um corpo em repouso numa poltrona; ao contrário, os olhos indicam que o corpo se
move, enquanto a sensação corporal é de que ele descansa.
Quando vemos um filme, nossa sensação de movimento vai depender do que os
olhos proporcionam, pois não contamos com os estímulos que receberíamos se
estivéssemos próximos da mesma cena na realidade. Disso resulta que todo o
paralelismo que as pessoas gostam de estabelecer entre o funcionamento do olho e o da
câmera é falso, principalmente a comparação da movimentação do olho com a
movimentação de câmera. Quando eu movimento meus olhos ou minha cabeça, o raio
de visão se altera. Eu estava vendo parte da porta, agora vejo a estante e, então, a mesa
de jantar e a janela. Essa movimentação não faz os objetos escorregarem perante meus
olhos, dando a impressão de que as coisas se movem. A sala permanece como antes,
imóvel. Foi somente a direção do olhar que se alterou e, por isso, eu vejo agora apenas
outra parte da sala que permanece estática. Não é assim que a coisa se dá
necessariamente no cinema. A câmera foi movida na filmagem de modo que passam a
ser mostrados porta, estante, mesa e janela num movimento sobre a tela. Visto que a
câmera não é uma parte do corpo do observador como sua cabeça ou olhos, o
observador não sabe que ela se movimentou. Ele vê coisas diversas se seguirem sobre a
tela como se estivessem em movimento. Em “Os novos senhores”, de Jaques Feyder, há
uma cena em que a câmera percorre em tempo acelerado uma parede com cartazes
pendurados. Efeito: os cartazes parecem correr na frente de uma câmera parada. A
situação filmada é muito clara e possibilita uma fácil orientação espacial, por isso o
espectador corrige sua impressão imediatamente: quando uma câmera situa-se na altura
próxima às pernas de uma pessoa e sobe em travelling até mostrar o rosto, o espectador
sabe muito bem que o personagem não foi deslizando para baixo na frente da câmera
parada. Mas, comumente, os cineastas utilizam o travelling de câmera de um modo
distinto em que as coisas não ficam tão claras, como E. A. Dupont, em “Variedades” O
público sente uma suspensão que não é reconhecível e que leva a um mal-estar
semelhante ao de um enjoo em alto mar. Esta diferença entre o movimento dos olhos e o
da câmera é agravada por causa da rigidez da área de projeção da imagem, que se
encontra delimitada por uma espécie de moldura, ao contrário da visão na qual mal nos
damos conta dos limites. Disso decorre que a movimentação de câmera coloca sempre
novos objetos no interior do quadro, que logo desaparecem, enquanto o movimento dos
olhos constrói um espaço comum sem divisões que é percorrido pelo olhar.
Temos no filme, portanto, uma certa relatividade do movimento. Como não há
sensações corporais que mostrem se a câmera está em movimento ou parada - e, quando
em movimento, a que velocidade e em que direção ela se move -, a câmera é vista como
se estivesse parada. Assim, quando algo se move na imagem, esse movimento é
interpretado, em primeiro lugar, como movimento do objeto e não como consequência
de um movimento de câmera frente a algum objeto em repouso. Isso conduz a um efeito
estranho percebido quando a direção do movimento se inverte: filmamos um carro a
partir do interior de um segundo carro que ultrapassa o primeiro, observamos na tela um
carro que parece andar para trás embora, objetivamente, ele esteja se deslocando para
frente. Há, porém, a possibilidade de indicar claramente quais movimentos são
absolutos e quais são relativos, dependendo da composição da imagem pelos objetos e
pelo entorno em que se encontram. Pode-se esclarecer, na situação anterior, que a
câmera está em um carro em movimento se a imagem mostrar parte desse carro em
contraste com a paisagem, visto que a parte do carro parecerá fixa na mesma região da
tela enquanto a paisagem se move, o que demonstra claramente que é o ponto de vista
que está se movimentando e fazendo deslizar pela tela uma paisagem que sabemos estar
em repouso.
Há também relatividade nas direções espaciais - acima, abaixo etc. É outra
consequência do que chamamos de “bordas da imagem”. A imagem de algo que desliza
para baixo na tela não é garantia de que o objeto cai porque a imagem não oferece ao
espectador as mesmas sensações gravitacionais que o orientam sobre o que sobe ou
desce no mundo. Não é perceptível se a câmera está reta ou inclinada, por isso a
imagem não pode garantir que a superfície projetada verticalmente na tela seja
realmente vertical. Isso ocorre quando uma câmera é fixada no teto sobre uma cama e
mostra a cabeça de uma pessoa deitada. É fácil ter-se a impressão de verticalidade. O
referido personagem parece estar de pé e até os travesseiros parecem estar grudados
numa parede. A tela de projeção é interpretada na verticalidade embora, pelo fato da
câmera filmar de cima, ela represente uma superfície horizontal. Esse engano só é
evitado quando há objetos no interior da imagem que possam esclarecer qual é a real
orientação e direção da realidade.
Por fim, os outros sentidos. Ninguém que assiste a um filme mudo francamente
se dá conta da falta dos ruídos que seriam ouvidos se a mesma situação se passasse na
realidade. Não sente falta dos sons dos passos quando alguém caminha na tela, do ruído
das folhagens, ou do tic-tac do relógio. A ausência desses sons (e da fala dos
personagens também, é claro!) raramente é percebida, embora ela devesse ganhar os
contornos de uma terrível catástrofe se ocorresse de verdade no mundo real: a pessoa se
consideraria imediatamente vítima de surdez. Que esse temor não se instale no cinema é
resultado óbvio de o espectador, apesar da estranheza, não se esquecer de que tudo o
que se apresenta à sua frente é somente um filme. Essa perturbação da ausência do som
isoladamente não é suficiente para impedir que se forme o ambiente de ilusão. E a
explicação para isso é o que já se esclareceu anteriormente: para construirmos uma
impressão total, não é preciso que todos os seus detalhes sejam captados pelos sentidos
naturais, sendo possível um convívio tranquilo entre ilusão parcial e todo. Essa espécie
de “incompletude” - se quisermos chamar assim o fato de haver menos informações
sensoriais em relação a uma observação qualquer se comparado às informações
sensoriais geradas a partir da percepção natural de algo na realidade - não será
prejudicial ao pleno entendimento se o pouco que for dado aos sentidos já for o
suficiente para entender o essencial daquela realidade que se quer representar. Por isso,
foi só com o surgimento do cinema sonoro que saltou aos olhos a lacuna acústica do
cinema mudo. E isso não deveria significar nada, pois a introdução do filme sonoro não
é um argumento nem contra nem a favor da possibilidade do cinema mudo.
O mesmo se dá com o cheiro. Pode haver pessoas que dizem sentir cheiro de
incenso quando assistem a uma missa católica num filme, mas esses estímulos olfativos
objetivamente não existem para ninguém.
Cheiro, sinestesia e paladar nunca são acessados diretamente pelo cinema: só
podem ocorrer sensações de cheiros, peso ou percepções táteis estimuladas
indiretamente e mediadas pelo caminho da esfera visual. Assim se ergue como uma
importante regra o fato de que seja errado filmar situações e acontecimentos que
culminem numa ação não representável opticamente. Um tiro pode ser reconhecido num
filme mudo porque o barulho do disparo pode ser desnecessário para um diretor
habilidoso. É suficiente o espectador ver o gatilho ser pressionado ou, eventualmente, a
queda do adversário. No filme “As docas de Nova York”, de Joseph von Sternberg, um
tiro é apresentado visualmente de forma criativa pelo súbito voo assustado dos pássaros.

Segundo capítulo
COMO FILMAR

Os recursos da câmera e a montagem de seqüências

A possibilidade técnica é a
mais valiosa inspiração.
A câmera é a Musa.

Bela Balázs

Noções estéticas básicas

Demonstramos por meio do confronto entre a imagem de cinema e a imagem do


mundo quais são as características específicas em que elas se diferenciam (mas a partir
de agora teremos de utilizar uma estratégia distinta, porque vamos entrar num campo
particular dos recursos cinematográficos que não possui paralelo na realidade).
Pudemos utilizar aquele confronto como caminho consistente para derrubar a máxima
de que o cinema nada mais seria além de uma reprodução mecânica da realidade.
Mostramos que a câmera registra uma impressão totalmente distinta da dos olhos. E não
foi à toa que conduzimos aquela ampla demonstração, já que ela revelou as leis que
regem a arte do cinema.
Sem essa distinção, não seria possível entender o que é visto de modo geral
como arte.
A princípio, podemos até nos surpreender pelo fato de a maior censura lançada
contra o cinema, no sentido de ele não poder produzir arte, nascer justamente do seu
parentesco com o real. Trata-se de algo pelo menos estranho se nos lembramos de que,
desde o surgimento dos meios de expressão artística, a busca de similaridade com a
natureza foi elogiada e tida como um dos mais altos ideais estéticos. Nas tradições
chinesa e também grega, encontram-se inúmeros relatos nos quais o talento dos artistas
era glorificado quando eles conseguiam fazer pinturas e esculturas com tamanho
realismo que até mesmo os animais (sim, os animais!) se iludiam: pardais que bicavam
uvas pintadas, touros que mugiam para vacas de bronze... Mas a verdade é que, apesar
destas lendas, na prática, a pintura e a escultura só foram naturalistas muito
esporadicamente, mesmo indo contra a vontade de muitos, cujos esforços sabidamente
se lançaram nesta direção. Se o objetivo final das artes visuais fosse de fato criar um
naturalismo ilusório, o ponto culminante da pintura seriam os Panoramas 5 e, no caso da
escultura, os gabinetes dos bonecos de cera que só obtiveram sucesso nos parques de
diversão.
Uma necessidade profunda de arranjar as coisas ao seu redor - e mesmo de
registrá-las em imagens - ocupa os sonhos da humanidade desde os tempos mais
remotos. Para os primitivos homens das cavernas, uma imagem valia como se fosse a
própria coisa representada, ou seja, uma pintura do inimigo era vista como uma maneira
de exercer poder sobre ele. Uma imagem pode ainda representar uma experiência vivida
por um sujeito. Assim como cada um de nós tem necessidade de compartilhar suas
vivências, assim como muitas vezes elas ecoam em nossos sonhos, a atividade de
produzir imagens como uma forma de expressão do que se experimentou é mais um
mecanismo para descarregar nossas tensões.
O fato é que essa necessidade de expressar a subjetividade ou de representar o
mundo é uma das raízes das artes plásticas. Mas pode-se ver muito facilmente também
que ela não tem nada a ver especificamente com a arte em si, que ela não pretende ser
nada além da produção de uma cópia de coisas e emoções. Para atingir este seu
objetivo, ela pode até mesmo ser extremamente primitiva. Para uma criança, alguns
rabiscos desenhados no papel são suficientes para representar o “papai”, bastando que
estes sinais sejam parecidos o suficiente com um rosto. Para os selvagens, um
ornamento muito rústico representa o mar, o inimigo, a caça. Alguns bobalhões
contemporâneos encontram satisfação sexual fazendo desenhos de mulheres nuas nas
paredes e portas dos banheiros. Esse tipo de representação, muito primário, só se
preocupa com as coisas, não faz nenhuma diferença quais foram os meios utilizados
para representá-las, nem sua forma e, por conseqüência, não está em jogo nenhum valor
estético. Imagens de deuses ou a representação de guerras triunfantes no desenho
egípcio são trabalhos de representação objetiva e não subjetiva, uma vez que não podem
ser tomados como Arte num sentido mais elevado.
A segunda raiz da arte é o gosto natural do homem por simetria e equilíbrio. Esta
predileção é fundamentada claramente na biologia, pois caminha junto com o princípio
de equilíbrio e estabilidade presente na constituição de todo organismo. A mais
primitiva expressão neste sentido pode ser constatada até mesmo no trabalho de uma
faxineira, que não precisa ser orientada a seguir qualquer ordenamento estético para
organizar os objetos pelos princípios de equilíbrio e simetria: o tinteiro no centro da
mesa, a espátula de abrir cartas à esquerda e o mata-borrão à direita dele. Um instinto
parecido encontra-se também num comerciante meticuloso que cola o selo exatamente
em paralelo aos cantos do envelope. São dezenas de “arranjos” destituídos de qualquer
sentido prático. Eles seguem uma orientação para a beleza. Expressão biológica disso é
o organismo funcionar como quem pinta um quadro sempre que lhe é permitido, mesmo
que para isso não exista a mínima razão.
Esses esforços em busca do equilíbrio e da simetria são valorizados para onde
quer que se olhe, independente do material utilizado, e, muito frequentemente, de forma
totalmente inconsciente. O egípcio enfeitava as paredes das câmaras mortuárias com
desenhos de jarros e pães a fim de que servissem como provisão para que seus faraós
não fossem condenados a passar fome na sua peregrinação até o reino dos mortos, um

5
Termo criado em 1791 para designar espaços de 360 graus onde os espectadores contemplavam do
centro uma imagem representando em geral cenários de guerra, cercos, batalhas ou vistas de cidades
reproduzidos com muita exatidão e verossimilhança a partir de pinturas.
trabalho que foi feito sem a menor ambição artística ou decorativa. Eles não sabiam
nada a respeito da importância de dividir harmoniosamente a área de disposição desses
objetos para criar uma boa relação de equilíbrio ou de que os membros em um relevo
poderiam estar bem ou mal dispostos – e apesar disso um sentimento formal
inconsciente os levou a construir obras magistrais.
O pensamento consciente sobre o modo de fazer artístico é um produto cultural
extraordinariamente tardio e, até os dias de hoje, só acessível a um grupo muito seleto
de pessoas. A maioria das pessoas, o sujeito comum, ainda pensa que a arte é apenas
uma reprodução de objetos, tanto hoje como três mil anos atrás, e repara somente no
conteúdo da obra de arte, julga a obra somente pela sua semelhança com a realidade.
Para o sujeito comum, entre as gravuras coloridas de um livro de zoologia e as pinturas
de animais de Rubens ou de Delacroix há somente uma diferença terminológica, mas
nenhuma diferença fundamental.
Por isso, até hoje, a fruição da arte é confundida com o prazer que a obra de arte
proporciona. Quando uma pessoa fica em paz ao observar por um instante uma
paisagem bucólica em frente a uma Vênus de mármore, ela pensa se comportar como
um apreciador da arte. Por esta razão, até hoje a sociedade de massa é uma inimiga
anônima do desenvolvimento da arte. Ela percebe no cinema só o enredo narrativo e
volta o seu interesse somente ao conteúdo.
A representação artística não se resume somente a mostrar mais uma vez o que
já se encontra na realidade. O naturalismo oferecido nos gabinetes de bonecos de cera
produz arrepios e não fruição estética. Assim, o artista não deve camuflar ou deturpar a
artificialidade de seu meio fazendo cera se passar por pele humana. Ao contrário, uma
boa obra de arte traz à mostra as características particulares do artifício utilizado, de
forma clara e límpida. Se nos permitirmos ser um pouco esquemáticos, pode-se
comparar o trabalho de representação dos artistas com uma brincadeira: formar um
quadrado a partir de dez tiras de papel. A satisfação após resolver tal quebra-cabeça
encontra-se no feito e em observar a obra, não no sentido de admirar o quadrado em si,
uma vez que todos na vida já viram muitos quadrados, mas pelo fato de lembrar que dez
pedaços que até então tinham cada um sua forma particular constituam agora uma só e
única forma simples unificada. O que é de admirar num desenho de bico de pena feito
por van Gogh não é a paisagem rural que ele criou – já que um campo agrícola não tem
nenhuma originalidade –, mas sim o fato de que foi possível gerar uma impressão óptica
de um campo agrícola real a partir do bico de pena. Isso é algo extraordinário. Ninguém
acredita ver um campo agrícola real no desenho. Qualquer um percebe os traços
grosseiros da ponta da pena, mas é certo que uma obra de arte como essa proporciona
prazer estético.
A fruição ao contemplar o bico de pena não advém somente do fato de ter sido
obtida uma representação muito realista por meio um material diverso. O bico de pena
não foi conduzido somente com este objetivo, mas constituiu um ornamento harmônico
em si, dado que ele consegue construir uma forma com sua própria regularidade: a
distribuição das áreas pretas e brancas no espaço retangular do desenho tem um forte
equilíbrio em van Gogh; os traços se agrupam num belo padrão, destacam-se uns dos
outros, organizam-se em fileiras; as formas estão sincronizadas e não colidem confusas
umas contra as outras, sem relação, nem se enfileiram em rígidas linhas paralelas.
Geram-se assim qualidades ornamentais, nascidas do próprio meio de construção de
imagem utilizado. Os traços cumprem o papel de representação da realidade, mas
preenchem também a superfície com a construção de uma forma original e bela.
Fruição estética é o prazer de constatar o sucesso de um determinado tipo de
trabalho nestas duas frentes. Este prazer não é possível se o meio utilizado se oculta, e
somente a coisa retratada permanece visível. “Somente a ilusão revelada é arte”, disse
uma vez Max Leiberman. Mas também não basta o fato de o ilusionismo naturalista do
Panorama gerar uma cópia da realidade admirável, porque se sabe que tudo ali é pintura.
Fazer com que os meios utilizados sejam identificáveis não é a única condição da obra
de arte, porque eles podem ser utilizados também para fazer qualquer simples cópia.
Para ser arte, o trabalho deve explicitar o jogo travado entre o objeto e a representação.
As grandes obras de arte cuidam de extrair muito claramente qualidades que só são
possíveis alcançar dadas as características particulares do material utilizado, e a forma
que a obra assume deve mostrar como isso foi feito de modo claro e transparente.
Nossa hipótese é de que a obra de arte agrega um valor intangível ao objeto
representado a partir do fato de “caracterizar” o material de produção utilizado do modo
mais original possível na própria obra. Pastel e lápis, por exemplo, são materiais difíceis
de manusear neste sentido, porque o artista facilmente produz um borrão que, apesar de
poder representar o objeto a partir de cuja imagem o desenho foi produzido, não tem
marcas próprias do pastel ou do lápis em si. O mesmo ocorre na escultura com argila ou
gesso, materiais que muito facilmente formam uma massa lisa sem particularidades. E,
neste sentido, ainda mais perigoso – mesmo que não do mesmo modo – é o material do
cinema.
Enquanto os materiais dos escultores e pintores em seu estado bruto – bloco,
argila, trações de pena ou pincel – não são minimamente parecidos com a matéria das
coisas representadas, a matéria-prima do cinema é facilmente confundida com os
objetos em si. O cineasta posiciona sua câmera, gira o filme, faz a tomada, sem ter
qualquer outro trabalho, e gera uma cópia óptica dos objetos. Por isso, é imenso o risco
de que o filme e o objeto sejam confundidos um com o outro.
O cineasta necessita encontrar um modo de sublinhar as características
peculiares do material cinematográfico para fazer arte, mas deve fazê-lo de uma forma
que não descaracterize também os objetos. Pelo contrário, deve-se potencializar a
exploração dos objetos pelo filme no sentido de fortalecê-los, concentrá-los e interpretá-
los.
As condições que possibilitam fazer arte com uma câmera são justamente cada
uma das diferenças entre a imagem de cinema e a imagem do mundo, discutidas
anteriormente. Veremos a seguir uma série de exemplos de como essas características
peculiares do material cinematográfico podem ser utilizadas e como já o foram para
atingir resultados artísticos.
Toda representação artística tem, como já se mostrou, duas raízes: o instinto de
expressão/representação e o instinto de ornamentação. Por causa da semelhança entre o
material cinematográfico e aquele que é visto na observação natural das coisas, o filme
atende muito bem ao instinto de expressão/representação. A primeira sensação que o
filme “Variedades” incita vem daí: de que eram vistas em movimento sobre a tela
branca coisas semelhantes às que se apresentam na realidade, com a mesma vitalidade.
Uma locomotiva se aproximando ou o imperador em pessoa andando a cavalo numa
alameda eram imagens que elevavam os espíritos às alturas. O prazer que aqueles filmes
trouxeram é idêntico ao dos Panoramas de guerra, do trem fantasma – vindo apenas da
própria visão das coisas. Um cinema de arte só se desenvolveu gradualmente quando os
produtores, consciente ou inconscientemente, começaram a desenvolver potencialidades
próprias da câmera e utilizá-las para obter efeitos artísticos. Sua arte permanece ainda
até hoje como se estivesse guardada num compartimento secreto e indecifrável para a
maioria das pessoas. O cinema agrada um grande público, porém o prazer que traz à
maioria das pessoas, mesmo quando um filme de arte é apresentado, não tem nada a ver
com fruição estética mas se reduz à situação, ao roteiro, à ambientação.
USO ARTÍSTICO DA PROJEÇÃO DOS CORPOS NUM PLANO

Na primeira parte do capítulo 2 (pág. 25), “projeção dos corpos sólidos num
plano...” foram mostradas as peculiaridades que nascem do fato de as três dimensões
dos corpos e do espaço serem reduzidas à superfície bidimensional da cópia fotográfica
ou cinematográfica. Foi demonstrado ali que se pode construir ou não, no plano, uma
“forma característica” do objeto, dependendo do ponto de vista adotado em relação a
ele. No início do cinema, ninguém estava muito preocupado com isso. Colocava-se a
câmera no meio do set apontada para as personagens para que se pudesse filmar seus
rostos e o movimento de seus corpos. Se fosse preciso mostrar uma casa, a câmera se
posicionava diante dela, na rua, distante o suficiente para enquadrar toda sua fachada na
imagem. Só muito lentamente passou-se a recorrer aos efeitos que se poderiam extrair a
partir do controle do enquadramento.
No início do filme “Chaplin imigrante”, de 1917, um navio chacoalhando
terrivelmente é mostrado de perfil. Os passageiros estão enjoados: as mãos segurando a
boca, balançando sobre o convés. Então Chaplin entra em cena: nós o vemos de costas,
debruçado numa borda do convés, com a cabeça inclinada para fora do barco e com as
pernas tremendo em espasmos. Qualquer um percebe que o coitado paga seu tributo ao
mar por causa do mal-estar. Mas, de repente, ele dá um salto, endireita-se, apoia os pés
no convés, vira-se em nossa direção de modo ligeiro e só então percebemos que sua
postura não tinha nada a ver com enjoo: ele simplesmente se contorcia porque fazia
esforço para fisgar um peixe.
Esse efeito surpresa é obtido pela manipulação do enquadramento. A adoção de
um ponto de vista preciso da câmera oculta a verdadeira ação, e o espectador percebe a
situação do modo como o diretor quer. O objetivo de uma cena assim não é
simplesmente mostrar que uma pessoa faz isso e mais aquilo, por exemplo, que ela
pesca ou que enjoa. Trata-se de uma pessoa fazer isso e aquilo enquanto um observador
a vê a partir de um ponto de vista muito específico, sendo conduzido a tirar uma certa
conclusão por causa do que vê a partir dali. O efeito de surpresa só ocorre porque a cena
é percebida deste lugar bem determinado. Se a cena fosse filmada a partir do lado da
água, qualquer um teria percebido desde o início que Chaplin não enjoava, pescava, e
não seria levado a criar a falsa impressão que dá graça à situação. A descoberta que
fazemos no momento em que ele se vira não é construída sobre a situação pura, mas sim
sobre uma situação fílmica, já que ela só funciona porque foi utilizada uma propriedade
particular da técnica cinematográfica como meio para atingir aquele efeito.
A cena não é filmada de modo que se reconheça logo a situação, pelo contrário:
não há nenhuma pista correta que indique o que Chaplin realmente faz, e é por meio
deste artifício que surge a chance de consumar o engano. O artista burla o princípio de
mostrar a forma característica e faz justamente o contrário intencionalmente para atingir
um determinado objetivo.
O mesmo recurso foi utilizado na abertura do filme “Variedades”, de Dupont, na
apresentação do protagonista. O preso, interpretado por Emil Jannings, senta-se de
costas para a câmera, olhando na direção de um juiz que vemos de frente. Nas suas
costas largas, há um grande número de presidiário gravado no uniforme. Um motivo em
si, mesmo abstrato, é claramente exposto visualmente deste modo: “Este é somente um
entre muitos, não um indivíduo, mas apenas um número!”. E é isso o que se mostra
visualmente por meio do símbolo imagético, embora pudesse ter sido possível também
dizer a mesma coisa de um modo bem distinto. Por exemplo, em um filme mais
fantástico, o presidiário poderia ser mostrado sem a cabeça, somente com um número
sobre o pescoço (à semelhança do que já vimos inúmeras vezes em caricaturas como a
de uma toga de juiz com um sinal de parágrafo sobre a cabeça!). O inusitado na cena de
Dupont é que nenhuma deturpação da realidade foi necessária para apresentar um
sentido abstrato. Uma realidade corriqueira sem manipulação, totalmente compatível
com a situação descrita, foi filmada e, apenas pela cuidadosa escolha do ângulo de
câmera, conseguiu-se atingir o efeito desejado. Uma ocorrência específica não
desvirtuada da realidade produziu o típico, mas também o simbólico, pelo fato de sua
tomada ter sido bem escolhida e bem filmada.
As decisões tomadas na filmagem (no caso, a escolha de um determinado
enquadramento) não são tratadas como “quantités negligeables” (quantidades
desprezíveis), nem como mal necessário. Em vez disso, são utilizadas conscientemente
aproveitando as particularidades do meio para produzir um sentido especial, e, por isso,
podemos afirmar que foi atingido um efeito artístico com esta seleção: o episódio
narrativo “Conversa entre juiz e condenado” em si é uma coisa distinta da filmagem da
história citada em nosso exemplo, porque a filmagem adotou um ponto de vista único,
ou seja, escolheu, dentre uma centena de outras possibilidades de enquadramento, um
lugar ímpar, e porque podemos perceber como esta restrição do ponto de vista valorizou
o conteúdo – pois ofereceu a possibilidade artística de agregar à cena um pensamento
novo, um tipo de conteúdo especial a mais, criado a partir da produção da imagem em
si.
Não se deve confundir essa análise teórica do resultado com uma descrição
psicológica do processo criativo, ou seja, não se deve concluir, a partir desta análise,
que Dupont tenha dito a si mesmo: “Eu busco uma representação simbólica da ideia de
que o preso é um número. Qual recurso de gravação devo utilizar para encontrar isso?
Ah... seria o posicionamento de câmera... então vamos raciocinar!”. Não é assim que a
coisa funciona. O caminho trilhado por ele deve ter sido completamente diverso. Ele
pode ter visto por acaso o ator de costas e percebido que aquilo daria um bom resultado.
Aqui o caso é só analisar o trabalho pronto e entender quais foram os meios de
expressão aproveitados.
No cinema russo, que outros copiaram, encontramos planos que dão uma força
vigorosa às personagens, obtida pelo enquadramento do ator de baixo para cima - a
chamada “perspectiva de rã”. Um duro capitão de fragata capitalista ou um general são
mostrados em contra-plongée como se fossem montanhas. Ao filmar de um
determinado ângulo, o diretor se afasta da cópia mecânica do real e extrai algo positivo
a partir da filmagem: a tomada ganha um sentido. A necessidade imposta pelo meio, de
retratar, se transforma num dom quando se sabe como fazer.
Com esse posicionamento habilidoso de câmera, alcança-se o duplo efeito que é
fundamental numa obra de arte: não só mostrar o contorno característico das coisas, mas
também possibilitar a fruição a partir da apreciação da forma que se apresenta nela. A
filmagem de um gordo magnata em contra-plongée não só deforma e dirige a impressão
da realidade mostrada ao espectador, mas também oferece, quando bem feita, um jogo
de formas bonito. É incomum – ou ao menos era até alguns anos atrás – perceber
conscientemente esse tipo de elaboração. A aparência gigante do tronco em relação à
cabeça pequena no alto do corpo, resultante da relação perspectiva, a deformação dos
traços do rosto, como o nariz que se sobressai e mostra seus dois orifícios escuros sobre
o bigode e o queixo visto por baixo, tudo isso tem um forte encanto formal que nada
tem a ver com o conteúdo da imagem. O estranho e o inesperado deste ponto de vista
valem como uma interpretação – “mostrar um lado oculto de uma coisa” –, tornando o
desconhecido uma coisa identificável. No filme “Entreato”, de René Clair, há uma cena
de uma bailarina que dança sobre uma placa de vidro, filmada por baixo do vidro:
quando a bailarina pula, vemos o vestido abrir-se como pétalas de uma flor e fechar-se
novamente, tendo, no centro desta espécie rara de cálice, o jogo do movimento das
pernas. O prazer desta estranha tomada é puramente formal e sem qualquer sentido,
estabelecido somente pela admiração plástica. Se tivesse ainda um sentido, seu mérito
seria ainda maior. Um elemento erótico poderia ser agregado neste posicionamento de
câmera ou algo semelhante.
É comum ver tomadas no cinema que não têm nenhum sentido em relação ao
conteúdo, mas que somente propiciam mostrar formas belas. O diretor encontrou algum
ponto de observação bacana e o utilizou mesmo sem agregar à cena qualquer
significado. Isso ocorre tanto em filmes que são voltados à realidade quanto na ficção.
Em ficção, cada cena deveria servir à exposição do enredo, mas o diretor sente-se no
direito de soltar-se desta amarra. Ele mostra duas pessoas conversando numa tomada
frontal e, de repente, mostra as mesmas personagens vistas do alto, por cima das
cabeças. Pelo fato de não ter com isso mostrado nada diferente, este diretor trai o
próprio cinema.
No belo “Martírio de Joana d´Arc”, filme de Carl Dreyer, encontra-se uma longa
discussão entre os padres e a mártir. O que mais interessa são os diálogos. Uma situação
como esta, de debate de opiniões das personagens contradizendo umas as outras o
tempo todo, não proporciona muitas opções de composição para a câmera. A solução
mais recomendada para escapar de tal dificuldade é a de que cenas desse tipo nem
mesmo sejam usadas em filmes mudos. Carl Dreyer cometeu um erro, mas tentou
compensar a falta de estímulo visual desse tema através de uma variação das formas: a
câmera mostra-se viva, fotografa a cabeça da jovem inclinada do alto, dirige-se
inclinada aproximando-se do queixo, mostra os orifícios das narinas dos juízes, corre
rapidamente por suas testas, assalta-os pela frente quando eles lançam um
questionamento, filma-os de lado quando estabelecem uma segunda questão, constrói
retratos numa pluralidade inquietante. Mas esse jogo formal todo não cria qualquer
sentido. E justamente porque o fluxo de imagens não contribui em nada para explicar o
interrogatório, o espectador ficaria muito mais agradecido ao diretor caso fosse
submetido a um estilo menos agitado e subjetivo, que não chegasse ao ponto de o deixar
entediado, mas com o qual o diretor conseguisse potencializar o conteúdo, revestindo-o
na forma da obra. A ditadura da autonomia da forma artística, um clamor da indústria
cultural, é um abismo que ameaça muitos cineastas, em especial os franceses.
Esses enquadramentos sofisticados vistos cada vez mais nos grandes filmes dos
últimos anos, usados com finalidade tanto de produção artística quanto da elucidação de
enredos, e hoje utilizados por toda a parte, eram vistos como um erro nos primórdios da
fotografia e do cinema. Os primeiros diretores teriam se envergonhado de um
enquadramento inclinado. É muito instrutivo entender por que, antes rejeitado, é
utilizado hoje naturalmente.
O que cativava, nas primeiras filmagens, era mover sobre as telas algo idêntico
ao seu original do mundo, que o filme se comportasse exatamente como ele. Esta
orientação conduziu evidentemente o modo como o filme era gravado. O objeto era
filmado com o intuito de deixar claro seu funcionamento. Pode-se perceber que o
trabalho da câmera pretendia conservar e captar a vitalidade do objeto, visto que a ideia
de que o modo de filmar pudesse ser uma arte com valor em si, ou de que pudesse
fortalecer a mensagem transmitida pela obra, não havia nem sequer sido cogitada. A
verdade é que não se fazia ainda arte cinematográfica, mas só se gravavam imagens de
coisas. A deformação somente podia ser entendida como um erro, porque não havia nela
nenhuma intenção.
Só gradualmente – e provavelmente sem intenção consciente – surgiu a ideia de
se estabelecer uma forma da realidade filmada a partir da utilização das diferenças entre
filmagem e realidade, ou seja, pensar uma outra instância de trabalho, uma arte superior
à simples reprodução. Essa possibilidade fora até ali mantida despercebida ou então fora
simplesmente descartada, mas passou, em um determinado momento, ao contrário, a ser
alimentada conscientemente, exposta ao espectador como instrumento de inovações
formais artísticas. A gravação não se submeteria mais a um objeto filmado em si, mas a
uma ideia visual característica, ao esclarecimento dos conteúdos dos pensamentos, etc.
Depois de incorporado ao cinema, percebeu-se que um enquadramento
excêntrico produz um novo efeito além de caracterizar um objeto, que é o de agregar um
determinado sentido, de surpreender o espectador e de ressaltar características até então
ocultas do objeto, justamente ilustradas pelo modo de mostrar o objeto que se imaginava
ser totalmente conhecido. Podovkin disse, em seu admirável livro sobre cinema, que o
filme aspira de certo modo a elevar os espectadores acima do reino das concepções
comuns.
A visão serve ao homem comum em sua vida somente como meio de orientação.
Só se vê do mundo o quanto for necessário para se relacionar corretamente com ele. Ao
atender um cliente numa loja de artigos masculinos, o vendedor reparará menos na
aparência do rosto do comprador do que na gravata que ele usa (para conhecer seu
gosto) ou no padrão de preço de sua roupa (para estabelecer sua estratégia de
argumentação e venda). A mesma pessoa, num escritório onde busca uma vaga de
emprego, estará menos preocupada com a gravata do futuro empregador do que com a
sensação de aprovação ou reprovação expressa em seu rosto (para saber se está
agradando). É comum a muitos casais um não saber dizer qual cor têm os olhos do
outro. As pessoas não sabem que quadros enfeitam seu quarto, como é seu tapete, se sua
faxineira se veste bem ou é desleixada, etc. É uma exceção – em geral de pessoas
dedicadas e treinadas esteticamente – alguém de repente deixar seu olhar percorrer
despreocupado o outro para reparar nas mãos de seu interlocutor, para sentir a beleza na
forma de um telefone ou mesmo para observar o jogo de sombras sobre a calçada.
Para o entendimento de uma obra de arte, é fundamental que o observador esteja
aberto para perceber essas qualidades formais, ou seja, que se encontre num estado
alterado em relação ao funcionamento normal de sua percepção na vida, o que
evidentemente é uma situação antinatural. O que o cinema faz não é gerar um
conhecimento como, por exemplo: Ali está um policial! Na verdade ele faz dizer: Como
um policial se posiciona! Como foi caracterizado este policial! Ele foi bem produzido!
Como o ator pode se movimentar de forma a criar um personagem mais típico que
caracterize bem o policial! Como pode se dar mais dignidade a sua figura se ele for
fotografado de baixo para cima!
Há estratégias para conduzir o espectador a uma percepção assim. Se a tela
mostrar um barco a remo no lago, o público provavelmente constatará: “Ah, um barco a
remo”. E nada mais. Mas, se a câmera deslocar-se de modo que o público observe o
barco e os remadores do topo, estabelece-se uma perspectiva incomum e talvez nunca
antes vista pelo espectador. Deste modo, o interesse pelo objeto é substituído pelo
interesse pela forma. A forma de eixo que o barco assume chama a atenção do
espectador, assim como o singular fluxo dos remadores para frente e para trás -
aspectos que permaneciam despercebidos antes e se revelam, fortalecendo um lado
peculiar e rico do objeto. O observador é levado a reparar em algo novo mesmo a partir
do que já era conhecido há muito tempo e, assim, ele também é ensinado. Como ele foi
estimulado a notar se o objeto da realidade foi bem ou mal caracterizado, de modo
original ou simplório, a própria imagem do objeto serve como um treinamento cujo
resultado é o aprimoramento da capacidade de interpretação da verdade e das funções
dos objetos. O estímulo para isso foi despertado a partir da visão do inusitado no filme.
Eu vejo sobre a tela a projeção de um filme sobre o tema cavalo. Isso deveria significar
para mim não mais do que uma constatação, uma notícia de que um cavalo está ali. Se
ele é filmado de um ponto de vista diferente que mostre sua vitalidade, as qualidades
ópticas da imagem tornarão mais forte a possibilidade de transmitir a sensação de estar
ali um cavalo vigoroso – um grande animal de pelo brilhante, etc.. - ou seja, não só a
forma em si, mas também a capacidade de representação é fortalecida6.
Vale revisar em forma esquemática o que foi desenvolvido.
É característica da fotografia representar corpos sólidos a partir de um ponto de
vista congelado como superfícies bidimensionais.
Essa redução do tridimensional ao bidimensional é um recurso que pode se
tornar um instrumento do diretor, que a utiliza como meio com para os seguintes fins:
1 – Por meio dela, o objeto pode ser filmado de um modo inusitado e
surpreendente, chamando muito mais a atenção do espectador sobre o que é mostrado.
O objeto filmado ganha com isso um realismo cuja expressão de conteúdo é mais viva e
mais rica.
2 – O diretor não conduz a atenção do espectador só sobre o objeto, mas também
sobre suas qualidades formais. Surge a possibilidade de buscar pontos de vista
inusitados que oferecem ao espectador a condição de ver mais de perto e reparar: a)
como a nova forma impõe um recorte instigante do próprio objeto, algo que não era
conhecido; b) como a projeção do corpo sólido - numa superfície de contorno, linhas,
áreas em preto e branco e nítida limitação pela fronteira da moldura - serve para
construir uma bela representação do objeto. Que um ângulo só seja usado como
amostra, sem que para isso simplifique, estilize, altere ou desfigure, mas que sozinho
possa conduzir a um efeito especialmente artístico, só depende do talento de encontrar a
orientação correta e o ângulo apropriado.
3 – Chamando a atenção para facetas do objeto, o diretor faz com que o
observador perceba se o objeto foi bem caracterizado e de que modo o foi. Em outras
palavras, se ele é um bom exemplo de seu tipo (um bom modelo) e se ele se move e
reage como os objetos de sua espécie.
4 – Mas esse novo tipo de representação não serve apenas como meio de alarde e
trucagem com finalidade de tornar a imagem atraente. O objeto também pode se mostrar
a partir de um ponto de vista que assimile um saber em grau mais ou menos profundo
(“O preso como número”). Aqui também se pede um esforço especial para que o objeto
não seja deformado ou estilizado de qualquer modo, mas sim precisamente apresentado
como algo vindo da realidade capaz de criar este novo significado.
Para finalizar, mais um exemplo prático.
A imagem de uma situação bem cotidiana: um homem percorre uma rua. A
tomada mais comum seria que o cinegrafista tivesse filmado esse homem a seu lado ou
à sua frente. Vamos mostrá-lo, porém, visto de cima, com o que a ação é sublinhada e
chama-se a atenção para o fato de que uma fotografia de um corpo tridimensional deve
ser filmada de um determinado ponto de vista selecionado (não simplesmente registrar
passivamente o objeto). Não se vê o rosto do homem, porém somente seu chapéu, e do
alto. Mal se vê uma pequena parte do corpo (os ombros), de uma das pernas (somente o

6
O lado negativo disso é que o diretor que utiliza mal esse recurso cai no resultado inverso e
pode até mesmo comprometer a transmissão de uma mensagem, que se torna indecifrável por ser mal
transmitida ou por suas características serem desvirtuadas de modo a não produzir a impressão
pretendida.
sapato), e da outra (a parte inferior da coxa). Como imagem do objeto “homem
andando”, este quadro é o mais pobre possível. Um observador que nunca tivesse visto
um europeu ocidental andando não poderia nunca extrair nada da aparência física de um
homem a partir desta imagem. Mas o cinegrafista tem outra intenção. Ele descarta a
informação redundante do objeto e tenta instigar o espectador a extrair algo a partir da
imagem e do conhecimento que tem sobre o assunto, ou ainda, eventualmente, ensinar
algo novo por meio deste enquadramento estranho. Ele atua de modo idêntico ao de um
dramaturgo, que pressupõe que o público conhece as regras básicas de funcionamento
da alma humana. Não é preciso o autor dar aulas elementares sobre esse tema: ele
trabalha sobre a experiência comum e o conhecimento das pessoas em geral como
material de base das formas e sentidos da obra. Vejamos como analisar esta imagem a
partir dos tópicos anteriormente apresentados.
1 – Ninguém observará essa imagem sem se sentir instigado. O fotógrafo cria,
pela excepcionalidade do enquadramento, uma “imagem armadilha” como dizem os
publicitários. Enquanto a fotografia feita a partir de uma posição usual de câmera talvez
mal fosse reparada, a fotografia feita deste outro modo faz os olhos do espectador se
arregalarem e fortalece o próprio objeto: “Ah” - interpreta alguém - “vê-se ele correndo,
os braços se movimentam; o movimento para diante impregna de todo o corpo de vida”.
Temos um forte contato com esse homem.
2 – Nós não vemos somente um homem correndo, mas também o fato de que
uma imagem muito rara o representa. Então se conclui que: a) Quem já conhece sua
representação “normal” encontra um novo prazer nesta tomada: que a rápida visão do
topo do chapéu faz o papel da figura como um todo, que a bota se destaca sob a aba, que
o braço e a perna esquerdos parecem compor uma só figura. Pode-se dizer que é uma
variação do tema “homem andando” espirituosa e enriquecedora. Assim como um
desenhista nos dá a sensação de que uma pessoa conhecida ganha vida a partir de linhas
traçadas, também o cineasta oferece uma nova interpretação de um objeto conhecido
por meio de um ponto de vista inusitado; b) O corpo sólido do “homem caminhado” foi
transformado em uma imagem plana, e essa superfície organiza-se de modo a fortalecer
o inusitado: nós quase vemos a figura de uma estrela do mar. Isso porque o escuro do
corpo liga-se à sombra projetada no chão, formando uma espécie de cruz: a perna
esquerda e a bota da perna direita formam uma linha em diagonal em relação à moldura
da imagem e que se desloca do alto à direita para baixo à esquerda. o contorno de ambos
os braços constitui uma figura em S, cuja extensão principal do ângulo direito liga-se
com a direção das pernas; e aproximadamente no meio desta cruz está o chapéu
redondo. Em contraponto ao tópico “a”, em que chamamos de saber um novo
agrupamento de formas conhecidas, compreendemos agora em “b” o objeto puramente
como uma superfície preta e branca e observamos como ele se encaixa numa moldura
retangular na qual se apresenta de esboços de linhas e de superfícies.
3 – Para o ponto 3, nossa imagem não oferece um bom exemplo. Porque nada
pode ser falado de especial interesse sobre a escolha do objeto como típico. Trata-se de
um homem totalmente comum, de modo algum bem ou mal escolhido.
4 – Já se falou antes que o ângulo de filmagem escolhido tem um significado
conhecido, um sentido gerado no objeto. De modo mais penetrante do que num
enquadramento tradicional, vê-se neste exemplo como os braços impulsionam o corpo
que se dirige para frente, a caminhada torna-se muito dinâmica pelo vai e vem das
pernas esguias, bem como o chapéu que protege, cobrindo todo o ser, mostra claramente
sua função.
A projeção dos corpos sólidos no plano bidimensional da imagem não se
restringe somente ao fato de que todo o corpo deve ser mostrado a partir de um
determinado ponto de vista. Dentro deste tópico da projeção dos corpos, também
devemos tratar do fato de os distintos corpos se colocarem uns atrás dos outros, da
sobreposição, e do que os artistas num sentido aproximado chamam de uma
“composição”. As coisas, quando estão no mundo, situam-se num espaço que é possível
atravessar, observar de um lado ou de outro. Quando o espaço está representado no
filme, entretanto, a câmera coloca-se num lugar determinado pelo diretor (vamos tratar
adiante da câmera em movimento) e o que podemos ver é somente o que uma pessoa
seria capaz de ver com seus próprios olhos se permanecesse fixa e voltada para um
determinado lugar, ou seja, algumas coisas estão dispostas umas atrás das outras a partir
daquele ponto de vista: elas se colocam no caminho, umas encobrem as outras. A
impossibilidade de mobilidade do olhar é uma restrição, mas, mais uma vez, pode se
transformar num meio útil de controle da obra, visando obter resultados especiais.
Vejamos um bom exemplo:
No filme “Arsenal”, de Alexandre Room, encontra-se uma cena excepcional.
Um condenado foi levado à prisão. Ele é visto por trás, caminhando por uma longa viela
entre dois muros enormes. Numa rachadura do muro, ele encontra algo que não via
havia muitos anos: uma pequena flor que serve aqui (de modo até banal) como símbolo
da natureza e da liberdade de que há tanto tempo ele devia sentir falta. Ele pega a flor,
depois fica irritado, vira-se para trás – fica de frente para a câmera – levanta indignado
os punhos, esbraveja e se vira novamente para a direção original, seguindo seu caminho.
Então a câmera recua. A direção do plano permanece a mesma, mas a câmera salta
alguns metros para trás e se encontra agora por trás das grades, mostrando a cadeia onde
o homem estava preso até então e também que agora ele já se encontra em liberdade. A
grade fica em primeiro plano, encobrindo quase toda a imagem, mas através das barras
vê-se a mesma cena anterior: a rua de pedra com os muros como fossem dois braços
ameaçadores que saem da cadeia e se levantam em direção ao homem, tentando agarrá-
lo. Esse truque do diretor criou um efeito impressionante. E muito instrutivo.
A força da tomada explica-se pela hábil utilização da escolha na composição em
função do posicionamento de câmera. O que se vê a partir da óptica da câmera são os
elementos para entender a situação real filmada ali: havia um portão com grades de
onde partia uma rua cercada por dois muros compridos e um homem. Centenas de
enquadramentos seriam possíveis. A câmera poderia se mover de frente em direção à
cadeia, de forma que o portão gradeado estivesse ao fundo. Poderia mostrar o homem
passando pela grade aberta e acompanhá-lo, a seu lado, rumo à liberdade. A cena
poderia ser filmada do alto, fornecendo uma boa visão do conjunto geral da situação.
Esses quadros mais gerais foram preteridos na escolha do diretor. Entre o primeiro
enquadramento - em que não se veem as grades - e o segundo - feito a partir da prisão,
mas no qual a cadeia se revela mantendo a mesma composição por trás - não há nada
mais além da sobreposição pelas grades. Mas é justamente o fato desta diferença ser
mínima que dá o forte efeito desejado. Mostra, assim como no exemplo do homem
andando, que o artista escolhe muito frequentemente o enquadramento que nem sempre
é o que permite a visão mais clara, mais próxima, mais completa para expor a situação.
Já que o diretor encarrega-se da escolha do enquadramento, ele tem a
possibilidade de colocar na imagem o que quiser: ao encobrir o que não deseja mostrar
ou não deseja mostrar provisoriamente (seja o encobrindo por outro objeto ou deixando-
o de fora do campo), busca e coloca no quadro o que é importante para ele e o que
provavelmente fosse pouco relevante ser mostrado do ponto de vista da situação em si.
Ou seja, por meio do enquadramento, ele controla a composição como um meio de
expressão, estabelece ênfases, cria interpretações e pode mostrar o desimportante ou o
que encobre, sem interferir na situação em si mesma, a qual não precisa, de modo
nenhum, ser adulterada. Ele também pode mostrar coisas juntas, ou uma encobrindo em
parte a outra, tendo de escolher um enquadramento bem específico se quiser construir
um vínculo entre duas coisas que ressalte sua relação.
No enquadramento I não se podiam ver as grades, ou seja, o tema “cadeia” não
está ainda presente na imagem. O espectador vê o preso andar na estrada, livre, não
mais na cela. E, de repente, a personagem se irrita, e o objeto de sua indignação, a
prisão, é colocado em cena pelo truque muito convincente, sem que uma troca de
ambiente fosse necessária (o diretor poderia ter recorrido, por exemplo, como se vê
frequentemente, a colocar inserções de imagens da cadeia ou da cela), ou por uma
“lembrança” ou “visão” que esclarecesse tudo. Mas o motivo é mostrado a partir da
própria situação: as grades avançam de modo brilhante sobre a imagem, como se a
cadeia fosse uma personagem antagônica que entrasse em cena.
O que faz do enquadramento um grande recurso não é somente que a ideia de
cadeia tenha sido conduzida de alguma forma à cena, mas também que o modo como
isso ocorre mostra-se muito apropriado: de repente, as grossas barras de ferro da grade
cobrem boa parte da tela, da cena anterior. Elas aparecem e (aqui há a colaboração de
um outro recurso fílmico específico que será analisado adiante por motivo didático)
estas barras se tornam gigantes em comparação com o que se encontra no fundo da
imagem, ou seja, com o homem em proporção pequenina: um convincente símbolo do
violento poder da Justiça que torna o homem impotente e que sempre pode novamente
recair sobre ele.
O cineasta que transforma em um talento o processo de escolha do
enquadramento organiza o objeto conforme sua vontade: coloca em primeiro plano o
que é para ele importante, encobre o que não é e, dos objetos, tira relações. As grades e
o homem estão à mesma distância um do outro. Por outro enquadramento de câmera,
essa distância seria mostrada de modo claro, se bem que talvez não fosse de modo
nenhum possível sobrepor as grades e o homem nesse outro tipo de plano. O
enquadramento perderia a relação homem-grade que o fato de eles aparecerem juntos
possibilita criar. A grade passaria despercebida numa outra posição, ficaria com todo o
seu sentido simbólico ocultado, porque esse significado nasce justamente da
apresentação de ambos sobrepostos. Ele surge por meio do recurso de que a grade não
está na cena num primeiro momento e então, enquanto tudo o mais permanece igual, ela
entra - a melhor maneira de chamar a atenção sobre si mesma e de tornar gritante que
ela não entrou ali sem intenção. Ela entra em cena como se fosse um ator. Vê-se como o
diretor conduz a atenção do espectador, dá a ele direções, induz a extrair dos objetos
significados por meio da utilização de seu meio.
Somente nos trabalhos dos grandes cineastas encontram-se cenas que conseguem
extrair com tamanha simplicidade um sentido simbólico tão profundo. Na maioria das
vezes, o sentido apresenta-se numa camada mais superficial e às vezes não há sentido
algum. No filme “Diário de uma garota perdida”, de Pabst, o ajudante da farmácia beija
a filha do patrão. Ela está perto da porta de vidro da loja. A cena é filmada do lado de
dentro: a câmera está na loja, vê-se o casal se beijando e, atrás dele, a porta de vidro que
abre para fora. Então o enquadramento salta para outro lugar: o casal continua no
mesmo lugar, mas a câmera posicionou-se fora da farmácia e se veem os dois através da
porta de vidro. Esta alteração no enquadramento não tem nenhuma função, não
representa nada - e coisas que não significam nada não devem ocorrer num trabalho de
arte. O sentido desta sequência é superficial, é decorativo. Ver de fora através do vidro é
tão agradável aos olhos como ver de dentro. Podemos comparar esta situação com a de
um músico quando expõe seu tema em tom maior e, em seguida, em tom menor. A
vizinhança formal no caso das tonalidades tem de fazer sentido suficiente em relação à
música inteira para que se justifique, e é assim também no caso do cinema – e do teatro.
Quando as alterações não conseguem enriquecer a obra, elas são fracas do ponto de
vista estético. O enriquecimento teria ocorrido se o duplo posicionamento de câmera
tivesse agregado um novo sentido à situação. A filmagem do enquadramento II poderia
mostrar que alguém acompanhava a cena de fora, que seus olhos se voltassem em
direção à farmácia, de modo que seria por meio da mudança de posição da câmera que
se perceberia esse novo personagem - um acréscimo no conteúdo. O ponto de vista da
situação seria então transferido de dentro da farmácia para o novo personagem que vê
de fora com a ajuda do enquadramento II, e a troca de lugar assim seria plenamente
justificada por acrescentar informação. Mesmo assim, seria somente um sentido
relativamente superficial, pois serviria a uma adaptação óptica da exposição do enredo,
sem nenhuma profundidade simbólica7.
A sucessão de ambos os planos no filme de Pabst recorre somente aos tópicos a
e b do ponto 2 de nossa esquematização, mas tomadas desse tipo são insuficientes num
filme dramático uma vez que, por terem só interesse puramente decorativo e formal,
servem somente para o deleite dos olhos. Em 2 a: é bonito ver, um sobre o outro, o
vidro e o casal ou ver como o reflexo do vidro sobrepõe os rostos e a moldura da porta
serve de quadro para os rostos. Já em 2 b: o padrão estimulante que a sobreposição da
forma da porta e das formas humanas estabelece, a sobreposição das superfícies, a
variação de luz.
Esse mesmo estímulo serve naturalmente à cena da grade de Room, mas sem se
contentar ali somente com isso. A imagem é bonita, a pequena figura do homem sendo
encoberta pelas barras gigantes da grade: um feliz truque puramente óptico.
Nos dois exemplos dados até aqui, o princípio do enquadramento foi utilizado
para criar uma relação entre dois objetos a partir da disposição dos dois em perspectiva:
grade e preso em um, porta de vidro e casal no outro. Isso é obtido pela possibilidade de
se ver através de objetos como grade e vidro. Esta disposição de uma coisa na frente da
outra é muito utilizada também para esconder um objeto atrás do outro. Vejamos
exemplos de três filmes distintos.
O primeiro exemplo é muito semelhante ao que já vimos em “Imigrante” de
Chaplin (reforçando a ideia da tênue fronteira entre os recursos chamados de “visão do
corpo numa superfície plana” e “sobreposição em perspectiva de dois corpos”). Trata-se
de um curta-metragem, em que Chaplin foi abandonado pela esposa porque é um
beberrão. Ele aparece de costas para a câmera, sentado a uma mesa sobre a qual se vê
uma fotografia da mulher que o deixou, e chacoalhando os ombros, aparentemente
soluçando, chorando, sofrendo. O ator vira-se no momento seguinte na direção da
câmera e a situação sofre uma reviravolta: o motivo da agitação dos ombros é que ele
chacoalhava com as mãos um recipiente para fazer um coquetel, feliz da vida. O
enquadramento mostrava Chaplin no primeiro plano, mas de modo que as partes
visíveis do corpo dele não conseguissem esclarecer a situação real suficientemente. O
ocultamento de um corpo – Chaplin que faz uma caipirinha - por outro – as costas do
homem em agitada movimentação -, com uso da sobreposição, poderia ser visto como
uma limitação do cinema – o ocultamento também dificulta a representação da ação
dramática -, mas estamos vendo como diretores habilidosos aproveitam-se desta
“dificuldade” a qual possibilita um jogo de esconder que ganha a dimensão de criação

7
Para possibilitar, por seu intermédio, um alargamento do entendimento num todo, o enquadramento de
um filme não precisa ter sempre a mesma densidade da cena da grade em “Arsenal”. Ao contrário, é pela
oscilação do grau de profundidade que se enriquece a composição do filme.
artística. Este princípio é particularmente rico porque criou um mecanismo de
ocultamento inexistente antes do cinema, um artístico “esconder atrás”: como não é
surpreendente ver um homem de costas, achamos que a imagem deve ser suficiente para
mostrar o que ele faz, e, como ele se desespera, a composição da imagem transparece
claramente que sua esposa fugiu. Deste modo, o espectador ganha plena certeza de que
ele chora, mas o pequeno homem vira-se e revela-se feliz.
Segundo exemplo: cena do filme “A dama misteriosa”. A espiã Greta Garbo
matou um general russo no consulado. Há grande risco de que a ação seja descoberta,
porque há soldados na porta que esperam para serem recebidos pelo superior. O corpo
do general está sobre uma poltrona de braços cujo largo encosto está voltado para a
porta por onde os soldados deverão entrar. Não se consegue ver o corpo a partir dali,
mas somente o braço do morto sobre o encosto da poltrona a partir do ponto de vista da
porta. Os soldados batem insistentemente. Greta Garbo senta-se sobre o braço da
poltrona e grita: “Entrem!” Então a câmera mostra o ângulo visto a partir da porta para
que o observador veja o quarto do mesmo modo como os soldados que entram e logo se
contêm em posição de sentido. O largo encosto da poltrona deixa entrever, no suporte de
braço, a mão do general ao lado da perna de Greta Garbo sentada e com o rosto virado
para a porta e para o espectador. Os soldados cumprimentam a dama e pedem
instruções. Greta Garbo cochicha na direção do ouvido do morto, simula ouvir sua
instrução e dá a eles uma resposta. Os homens viram-se e partem... O perigo se foi!
Terceiro exemplo: em “A linha geral”, de Eisenstein, uma pobre camponesa vai à
propriedade de um homem rico para pedir emprestado um cavalo. O gordo gulag está na
cama, levanta-se em frente a ela e grita a humilhando. Eisenstein posiciona-se com a
câmera por trás, de modo que se enxerguem suas largas costas como se fossem de um
gigante (em primeiro plano). Elas se erguem e encobrem totalmente a camponesa que
parece ridiculamente pequena no fundo da cena - a imagem é toda ocupada de repente
por essas costas desproporcionais. O poder e a pompa são representados por meio do
hábil enquadramento, as costas, obstruindo a câmera, ocupam todo o espaço e a
camponesa suplicante, pequenina, mal é vista por trás. Resultado: a imagem mostra que
o poderoso oprime e encobre – a mulher praticamente já não se encontra mais ali.
Em “Arsenal”, um recurso muito parecido é utilizado, mas não dá o mesmo
resultado. Um carcereiro entra na sala do diretor para fazer uma revelação. Como a
poltrona alta é mostrada de costas, assim como no filme de Greta Garbo, não sabemos
se há alguém sentado nela. Mas o carcereiro começa a falar, portanto o diretor está e
logo sai de trás da poltrona – é a entrada do diretor em cena. É uma estratégia bastante
diferente, mas é desmotivada, sem sentido. Fica parecendo simplesmente um truque do
diretor, sem importância para o desenvolvimento do enredo, e, por este motivo, o efeito
não impressiona muito. Gera um efeito puramente decorativo, algo do tipo 2 b de nossa
tabela da página 57: ele mostra através de um jogo de esconde das formas o que é
possível fazer por meio da perspectiva, mas não cria com isso qualquer outro sentido, já
que seria indiferente que o diretor tivesse saído de trás da poltrona ou de trás de um
candelabro.
Agora um exemplo do tipo 1 (pág. 57). Assim como se pode extrair uma
impressão particularmente cheia de vitalidade de um objeto apropriado por meio de um
enquadramento excepcional, pode-se fazer o mesmo também a partir da sobreposição de
dois corpos localizados um atrás do outro no espaço. No início de “Novos senhores”, de
Jacques Feyder, é mostrado o ensaio de uma ópera. Uma cena assim já foi representada
dezenas de vezes, e, em geral, passa despercebida. Mas, desta vez, nós nos sentimos
como se estivéssemos sobre o palco, no tumulto da preparação. Para obter esse efeito: a
câmera fica no alto, junto aos refletores do palco, e filma voltada para baixo. Próximas a
ela, veem-se as silhuetas de dois funcionários, grandes, em primeiro plano. Eles se
inclinam para frente e lançam uma corda sobre o palco. Vê-se o chão do palco ao fundo,
fortemente iluminado como a superfície de água de um poço. Lá embaixo, outros
funcionários ocupam-se em estender um tapete: eles estão colocados tão ao fundo que
parecem pontos, figurinhas. A corda que cai em sua direção parece ser tão deformada
que os seus movimentos oscilatórios mal são notados. Somados, a grande profundidade,
o contraste de iluminação entre o claro do palco e o escuro dos bastidores, a corda
balançando, a diferença de tamanho entre os trabalhadores na penumbra no alto e os
outros muito iluminados no chão, tudo isso agrega um valor representativo imenso à
cena. É possível sentir a poeira e o sopro de vento fresco do ar do teatro.
Já refletimos a respeito das dificuldades que podem surgir em razão da
necessidade de adotar um certo enquadramento e, respectivamente, de encontrar o modo
de mostrar distintos corpos em uma sobreposição, um encobrindo o outro. Deve haver
um método mais adequado de se posicionar quando é preciso mostrar um grupo de
pessoas que ouve alguém. É difícil equacionar a situação oferecendo uma boa visão
dela. Quando a câmera é colocada às costas das pessoas, encobre quem fala. Pode-se
contar com o recurso de colocar a câmera por cima do grupo: a câmera se vê mais
claramente no centro da conversa e pode mostrar todos a partir dali. Um ângulo assim
encontra-se em “A noite depois da traição”, de Arthur Robison.
Uma dificuldade que ocorre dezenas de vezes num filme e que sempre se tenta
tratar de modos distintos é a de registrar o diálogo entre duas personagens. Seria bom
mostra-las atuando claramente, com o enquadramento do rosto das duas no melhor
ângulo... Mas isso não é possível infelizmente, porque, quando duas pessoas encontram-
se frente a frente, uma delas terá de ser mostrada de frente, e a outra de costas na
imagem. Pode-se recorrer a um plano com ambas de perfil, mas, na maioria das vezes,
não se consegue assim captar bem as expressões nem mostrar claramente a gesticulação
dos atores. Recorre-se a utilizar uma montagem: mostra-se o diálogo a partir de uma
troca de posicionamento de câmera - sempre com um falando e aparecendo primeiro, e
outro falando e aparecendo em seguida – e montagem é feita a partir das gravações da
mesma cena feitas diversas vezes utilizando os dois melhores enquadramentos possíveis
para cada um dos atores; ou então se arrisca mostrar um dos interlocutores de costas.
Um belo exemplo desse tipo de solução encontra-se no filme “A senhora do Amor”, de
Clarence Brown, com Greta Garbo, quando um pai fala com seu filho. Vê-se a silhueta
do pai de costas para a câmera, muito grande, próxima no primeiro plano, e, ao fundo,
sentado, bem pequeno, e sob forte iluminação, o filho, cujo rosto está voltado para o pai
e para a câmera. Não se consegue ver o rosto do mais velho, mas o que ele fala capta-se
não só por seus modos, seus gestos como também, e inclusive pelas reações percebidas
a partir do rosto do filho. Este discurso trazido indiretamente ao conhecimento do
espectador é muito enfático e vivo e então, mais uma vez, uma restrição do meio de
gravação pode ser transformada num trunfo.
No filme “Novos senhores”, de Jacques Feyder, há uma solução muito original.
Um casal está conversando. Suas cabeças estão muito próximas e então se passa para
um primeiro plano no qual metade da imagem fica encoberta pela silhueta negra da
parte de trás da cabeça do homem (a câmera fica atrás dele) e recobre metade do rosto
da mulher, já que a outra metade do seu rosto é fortemente iluminada. Por meio desta
apresentação pela metade, a situação torna-se cheia de vida e de expressão. Em outra
cena, os dois se encontram no guarda-volumes feminino do teatro. Ela está à frente do
espelho e se maquia: seu rosto aparece de frente no espelho e, ao lado, está o rosto do
homem que se ocupa com alguma coisa e olha para ela. Assim, consegue-se que o
espectador veja os dois rostos de frente, embora um esteja de frente para o outro – o que
não seria possível sem o espelho.
Leon Moussinac demonstrou, em seu instrutivo livro Panorama do Cinema (no
capítulo sobre “Variedades” de Dupont) que a variação casual de enquadramentos
inteligentes, apropriados e cheios de expressividade, é um achado tardio do cinema de
arte. Anteriormente, a câmera era deixada na frente dos atores e o diretor tentava gravar
de modo que tudo fosse claramente visto, mesmo quando corria o risco de perder algo
da espontaneidade do ator. Moussinac diz que:

“É elucidativo que nenhuma cena num filme levasse em conta o posicionamento


da câmera. A câmera trocava continuamente de posição conforme a cena, o detalhe, as
expressões e os melhores ângulos, ou seja, todo ângulo que fosse o mais apropriado
para o registro do trabalho interpretativo. Não se via nunca, por exemplo, diversos
atores com o rosto voltado para a objetiva, como é a regra de muitos filmes franceses ou
americanos mais recentes. Jannings interpretava tanto de costas como de frente muitas
vezes. Se isso for analisado como uma mania, deve-se pelo menos reconhecer que esta
mania tinha uma finalidade. Ela constituía um modo de expressão dos cineastas:
fotografar de todos os ângulos e dos melhores – se o cinema não precisa recorrer a
artifícios como a eliminação da quarta parede da sala do teatro para mostrar o
desenvolvimento da história na sala, foi porque passou a entrar nas salas para mostrar as
partes da história.”

É compreensível entender por que os cineastas foram se apropriando muito


lentamente de seu meio. Já antes foi visto que o cinema desempenhou em seu princípio
a função de registro mecânico dos objetos da realidade. A câmera era até então vista
somente como o órgão de gravação à frente do qual se deveria agrupar uma quantidade
de coisas diversas gravitando em torno de um assunto. Antes que o cinema começasse a
se transformar em uma arte, ele se submetia a um interesse exclusivo de representar a
forma dos objetos. O que até então era empecilho de registro de algum motivo real
passou a ser usado para criar representações muito particulares, que só os meios
cinematográficos propiciam. Estes meios são plásticos, mostram-se capazes de superar a
simples reprodução mecânica do objeto e fortalecem o objeto representado: o estilizam,
acrescentam a ele um determinado sentido especialmente vivo e particularmente
decorativo, etc. Aquilo que é admirado no cinema não é mais tomado somente a partir
do objeto real, mas sim a partir da imagem, que é capaz de esclarecer algo sobre o
objeto explorando suas propriedades formais, mesmo quando essas características não
ficam patentes ao se observar somente o objeto em si. Justamente onde o mecanismo de
replicação para, onde as condições de filmagem pedem por qualquer conformação do
objeto é onde começa a arte. E a partir do mesmo momento em que a arte entra em cena,
qualquer observador que tivesse antes um entendimento insuficiente com o qual se
satisfazia ao constatar o objetivo na imagem - e dizer: Ah, uma locomotiva, um par
romântico, um funcionário de hotel irritado! – têm sua percepção ampliada. Este
observador passa a contar com uma percepção artística das formas daqueles objetos que
soma a eles um saber além de mostrar que é uma locomotiva, um casal, etc.

USO ARTÍSTICO DA DIMINUIÇÃO DA PROFUNDIDADE ESPACIAL

Comentamos acima (pág. 27) o efeito do achatamento do espaço na imagem


cinematográfica.
Todo corpo registrado numa imagem cinematográfica parece ainda ter volume ao
mesmo tempo em que passa a ser plano. Isso contribui em muito para que
enquadramentos, como os que foram discutidos na seção anterior, tornem-se tão
poderosos. A imagem de um homem filmado a partir da “perspectiva de rã” cria uma
forte distorção da realidade por causa da perda da profundidade espacial. A mesma
tomada vista num estereoscópio, com grande percepção da profundidade, seria muito
menos impactante. O contraste entre o gigantismo do tronco e a pequenez da cabeça
desaparece no mundo, pois se percebe imediatamente que se trata do resultado da
deformação da distância relativa entre cada um deles e o observador. A
bidimensionalidade da imagem aguça a redução da noção de profundidade. Quando se
perde o senso espacial do objeto fotografado e ele é avaliado somente pela quantidade
de área preenchida na tela retangular, a desproporção torna-se gritante: um corpo
gigante e uma cabeça encolhida.
As qualidades puramente decorativas de um enquadramento (pontos 2 a e 2 b do
esquema da página 57) também se fortalecem por causa da compressão da
espacialidade. Toda boa imagem de cinema é puramente formal, no sentido de que
preenche uma superfície plana e constrói um padrão. As linhas se combinam no
conjunto, na direção e na organização dentro dos quatro cantos que limitam a imagem.
A divisão da área branca e preta da imagem é carregada de sentido estético, seja pela
sua harmonia, dada a presença de equilíbrio, ou mesmo por meio do puro acento
gráfico, como ocorre ao concentrar toda a escuridão em um determinado canto da
imagem. A força deste plano de figuras e linhas que se refere aos corpos
tridimensionais, mas que os transforma em parcelas de uma imagem plana a partir da
projeção da sua imagem numa superfície, faz com que a percepção de
tridimensionalidade por parte do observador fique muito reduzida na imagem de
cinema. Anteriormente, vimos uma tomada de uma bailarina, cuja saia vista de baixo,
através de um vidro, parecia se abrir e fechar como pétalas de uma flor. Trata-se de um
efeito muito incomum. Ela não ocorreria numa visão normal do objeto tridimensional da
bailarina. Só quando se observa este objeto a partir de um ponto de vista muito
específico e se projetam suas formas numa superfície, pode-se observar a curiosa
expansão e contração do contorno da saia. Este efeito de superfície ligado a um sólido
seria pouco percebido a partir de uma visão estereoscópica tridimensional. Apenas
quando a noção de profundidade é suprimida, o sobe e desce da saia é ressaltado como
um abrir e fechar de um círculo no plano.
A mesma falta de ilusão de profundidade encontra-se – com o mesmo valor de
efeito artístico – na pintura. É difícil obter num quadro uma sensação tridimensional,
dadas suas qualidades formais. Esta diferença da imagem plana em relação à imagem da
realidade não significou impossibilidade de beleza, ao contrário, proporcionou uma
fértil possibilidade da realização estética. Esta é uma das mais importantes qualidades
formais da imagem cinematográfica: a de que todo objeto filmado divida-se em dois
sistemas de relações totalmente distintos, ao mesmo tempo, em funções totalmente
distintas a partir de uma mesma imagem! É por isso que, como foi descrito no exemplo
da página 58, um homem caminhando pode ser filmado de modo que suas pernas e seus
braços vistos de cima formem uma superfície em forma de cruz. É um bom exemplo. A
perda da profundidade serve para transformar o que poderia ser visto como um limite
para os olhos em algo extraordinário, por meio do qual se fortalece a liga bidimensional
até mesmo em imagens com forte sentido de tridimensionalidade, porque ambas
caminham lado a lado, criando um efeito plástico muito completo.
Esse efeito não se resume às projeções de um objeto isolado numa superfície,
mas serve também para acentuar a perspectiva de diversos objetos sobrepostos. Em uma
imagem com forte marca de tridimensionalidade, assim como é a imagem que vemos da
realidade, não se percebe muito a sobreposição. Sobrepor dois objetos, ou encobrir um
pedaço de um por trás de outro, soa ser algo casual e irrelevante. A escolha do lugar a
partir do qual iremos observar um ambiente também parece ser casual e indiferente
quando se trata de observar a realidade, já que seu espaço é tridimensional e podemos, a
qualquer momento, nos deslocar nele para adotar um outro ângulo de visão. No caso de
a tridimensionalidade não estar presente, o ângulo filmado passa a ser obrigatório. É
como se o espaço fosse contraído. A sobreposição e o encobrimento passam a ser fortes,
arbitrários..., e surge a tendência de procurar no enquadramento um sentido motivado,
saber por que o limite da imagem foi estendido exatamente só até ali e não a um outro
lugar. Parece não existir mais espaço algum entre os objetos mais próximos ou mais
distantes. Eles são colados como formas planas, parecem, na prática, pertencer a uma
mesma superfície plana.
O achatamento da profundidade espacial impulsiona a imagem de cinema em
direção à irrealidade, o que é muito bom. Qualidades formais como as decorativas, ou as
sobreposições precisas que contêm significados, ganham poder ao se apresentarem
como a única visão possível aos olhos do observador. Uma tomada como a do exemplo
da página 69, em que metade do rosto da mulher é escondida pela escura silhueta da
cabeça do homem, não teria 10% de sua eficiência num ambiente tridimensional real. E
a razão disso é que a disposição tornou-se necessária, indicando que o recorte do rosto
pela metade não tenha sido casual, mas sim preciso e intencional. Uma vez que ambos
os rostos apresentam-se como se estivessem num mesmo plano, sem nenhum espaço
que os separe, cresce o sentimento de que eles se fundem um com o outro no mesmo
lugar.
Antes (página 28), dissemos que o achatamento da tridimensionalidade conduz a
uma eliminação quase completa do que os psicólogos chamam de “regularidade de
tamanho” e “regularidade de forma”. Para complementar esta informação, é preciso
saber que, mesmo no mundo real, essa percepção também se perde para os olhos quando
os objetos encontram-se a uma proximidade ou distância muito exageradas. Filmando
assim, o cineasta reforça ainda mais as possibilidades de se obter diversos tipos de
resultados.
Todo mundo já viu inúmeras vezes, num filme, uma locomotiva se aproximando,
e é muito forte a impressão de que ela vem na direção do observador. Isso ocorre porque
a dinâmica do movimento de arremesso para frente é alavancada ainda por um outro
movimento, que não tem nada a ver com um atributo do objeto em si, a locomotiva que
viaja, mas sim com a localização do observador. No caso da imagem, é a posição da
câmera: quanto mais perto a câmera estiver da máquina, maior esta aparecerá na
imagem e mais violentamente sua figura escura passará veloz sobre a tela... Trata-se de
uma dilatação dinâmica da figura na direção das margens da imagem, e esta dilatação
acentua o movimento objetivo da locomotiva. O trem invade o interior da imagem e,
muito rapidamente, a preenche toda de preto, retirando-se logo depois para fora do
quadro. Aqui a dilatação lateral pela perspectiva acelera a sensação de velocidade apesar
de, objetivamente, a locomotiva ter um mesmo tamanho, inalterado, e também manter a
mesma velocidade. Assim, abre-se ao cineasta mais uma possibilidade de interpretação.
Carl Dreyer utilizou esse recurso em “O martírio de Joana D´Arc” quando,
muito rapidamente, mostra um monge saltando de sua cadeira para frente, num
movimento oposto ao da câmera que avança em sua direção. O resultado é que o rosto
cresce muito rapidamente na tela, ganhando uma proporção gigantesca de close e
ocupando toda a imagem. Aqui também a movimentação dinâmica é potencializada pela
distorção do posicionamento de câmera – a explosiva projeção da superfície do objeto
sobre todo o campo. Caso a câmera estivesse distanciada a alguns metros do ator, a
dilatação perspectiva causada pelo movimento para frente seria imperceptível e o efeito
mal seria notado.
Um famoso exemplo de uso da distorção perspectiva vem do filme “O fim de
São Petersburgo”, de Pudovkin. Dois camponeses migram, por causa da fome, para a
cidade grande para procurar emprego e alimento. A intensidade com que a cidade
mostra-se violenta e gigantesca para os dois e também o quanto eles são desprezados e
pequenos ali, em sua luta pela sobrevivência num ambiente tão colossal, é simbolizado
por uma tomada: no primeiro plano, está uma estátua de um cavaleiro gigantesca e de
cor negra, um Czar gordo de pedra estendendo violentamente o braço. Por trás vê-se
uma praça vazia na qual são vistos dois pontinhos escuros que parecem formiguinhas
passando, mas que, na verdade, trata-se dos dois colonos caminhando. Se esta imagem
tivesse uma forte tridimensionalidade, em primeiro lugar, seria claramente notado que a
escultura e as pessoas encontram-se a grande distância e, portanto, que a desproporção
de tamanhos não é tão gritante assim, ao contrário, seria claramente perceptível que a
desproporção é um desdobramento natural da diferença de distância. Em segundo lugar,
os camponeses e a estátua não seriam relacionados e comparados tão imediatamente
porque o fato de aqueles passarem por trás desta seria visto como uma simples
coincidência, dado que se veria facilmente por ambos pertencem a planos muito
distintos da imagem. Apesar de reconhecermos a distância de planos por razões ligadas
ao conteúdo, ou seja, porque somos homens, logo criamos nossa percepção do mundo
não só imediatamente a partir das impressões dos sentidos, mas também pelo
reconhecimento e entendimento. Mesmo assim, enxergamos um imenso colosso naquela
cena, sobrepondo duas pessoas do tamanho de moscas, efeito obtido pelo fato de a
superfície onde ambos são projetados ser uma só.
Na verdade, os dois camponeses não são muito menores do que a estátua. Seria
fácil invertermos o ponto de vista colocando os dois colonos gigantes em primeiro
plano, jogando Czar para um plano de fundo, como um pequeno acessório. O argumento
da narrativa de Pudovkin, no sentido de nos sensibilizarmos com a dor dos dois colonos
oprimidos, assustados, semelhantes a seres minúsculos, é fortalecido a partir das
proporções, da brutalidade da pedra e do poder da cidade, os quais o diretor teve a
possibilidade de destacar por meio da manipulação da distorção perspectiva para fazer
seu pensamento apresentar-se a partir de uma simbologia visual. Embora os objetos da
realidade contivessem também um poder simbólico em si mesmos, com esse reforço –
como por exemplo os egípcios fizeram em certa medida ao colocar em seus relevos as
figuras de seus faraós gigantescas e as de seus inimigos pequeninas –, um novo sentido
profundo é acrescentado pela simples disposição do agrupamento frente à câmera. Então
a partir do enquadramento, surge algo externo à narrativa, mas que enriquece o
conteúdo da história.
Foi semelhante o uso que Eisenstein fez em “A linha geral”, com uma distorção
perspectiva que estiliza simbolicamente as proporções de tamanho. Ele deseja mostrar
um departamento burocrático, um escritório, no qual tudo o que se relaciona com a
administração sufoca a evolução sensata do trabalho. Um funcionário dita a uma
datilógrafa. A câmera foi disposta diretamente na frente da máquina de escrever, de
modo que as engrenagens desta aparecem imensas na imagem, como se fossem um
guindaste gigantesco, encobrindo em boa medida a funcionária que aparece muito
pequena por trás deste primeiro plano da máquina. Quando a câmera inverte seu
sentido, o mecanismo permanece gigantesco, mas agora se vê o pequenino rosto do
homem que dita o texto. Uma ideia abstrata que não implica em si mesma uma falta de
proporcionalidade óptica é aqui transposta para uma desproporção capaz de representá-
la.
Em “A turba”, de King Vidor, há uma passagem assim também. Um garoto
senta-se com seus colegas à rua e diz a eles: “Meu pai sempre diz...”. A seguir, ele
interrompe a frase ao reparar num burburinho em frente a seu prédio: uma ambulância
parada e uma maca sendo conduzida para dentro. Um mau pressentimento o aflige.
Então, há um corte para a próxima cena. A câmera é colocada no alto da escada do
prédio, voltada para baixo, compondo uma imagem larga do corrimão que vai se
estreitando até chegar ao fundo da imagem, no portão do prédio, o pequenino portão do
prédio. As pessoas, atraídas pela notícia de desgraça, aglomeram-se tentando entrar
pelo pequeno acesso. Elas são mostradas muito pequenas como se fossem formigas num
movimento fervilhante. Identificamos o garoto que então sobe assustado, mas decidido
a saber o que se passou. A princípio, ele aparece pequeno na tela, mas vai crescendo ao
chegar mais perto da câmera, conforme os degraus também vão sendo mostrados mais
largos. Ele ultrapassa as pessoas - até conseguir se colocar à frente de todas - e continua
a subir pelas escadas cada vez mais vazias, mais largas, fazendo-se tanto maior na tela
quanto mais se aproxima da câmera. E o ambiente vai ficando cada vez mais vazioaté
que, totalmente sozinho, o garoto chega ao algo, uma criança abandonada, que vai
descobrir que acabou de perder o pai.
A grandiosidade dessa ação está na simplicidade e na clareza do método
utilizado. Nada é mais trivial do que a exposição de uma escada, mas esta ação natural
constrói, na composição do conjunto, uma simbologia tão profunda, original e carregada
de sentido como a que se encontra numa bela canção.
Nota-se o quanto a arte da operação de câmera contribui para a obtenção desse
resultado. O diretor ou o autor do roteiro desejam que uma cena como esta seja tão boa
como a que acabou mesmo se realizando neste caso. Entretanto, se o operador não
tivesse colocado a câmera milimetricamente no lugar certo para a gravação, mas
deslocado por vinte centímetros – para cima ou para baixo -, ou ainda se ele tivesse
colocado a câmera exatamente no centro da escada - em vez de ficar um pouco mais
para o lado esquerdo - , qualquer alteração faria com que a perspectiva da escada não
fosse a mesma e o ótimo efeito poderia se perder. A iluminação também deve ser
correta: uma leve falta de luz no fundo, um pequeno exagero de luz no meio onde
ocorre a caminhada, no plano mais próximo, transformaria provavelmente todo o
fundamento da imagem e destruiria o resultado visual.
Quando o cinema começou, os diretores cuidavam para que o ator não colocasse
as mãos ou pés muito próximos da câmera para que não parecessem ter proporções
gigantescas na imagem. Que essa distorção de tamanho na imagem passasse a ter
alguma serventia e pudesse ser utilizada como efeito artístico, trata-se de uma conquista
que marca o início da transformação do cinema em arte.
Esperamos que tenha sido possível esclarecer, em primeiro lugar, lançando mão
dos exemplos até aqui utilizados, o quanto o achatamento da profundidade
tridimensional da imagem é um trunfo para o artista, já que se pode extrair da
manipulação das dimensões em perspectiva subjetiva uma ideia clara, bem como se abre
a possibilidade de mostrar as coisas do mundo ampliadas ou reduzidas - independente
de elas serem na realidade grandes ou pequenas. Esta manipulação atribui sentidos
simbólicos a seu conjunto na cena. Em segundo lugar, esclarecer sua utilização na forma
da colocação dos objetos uns atrás dos outros, o que resulta numa obrigatoriedade de
ponto de vista para quem vê a imagem de cinema e o leva a buscar uma relação de
conteúdo (simbólica) a partir dos objetos colocados juntos, por sobreposição ou por
recorte, que se sabe serem escolhidos intencionalmente e cheios de significado. E, em
terceiro lugar, esclarecer sobre extrair algo de belo a partir da disposição decorativa do
objeto fotografado sobre a superfície plana do quadro. Se isso ficou claro, os esforços da
técnica do filme para um cinema tridimensional, ou seja, o desenvolvimento de uma
sensação de profundidade estereoscópica, serão vistos com um misto de sentimentos.
Em uma imagem com perfeita ilusão tridimensional, reduzem-se as distorções de
tamanho da perspectiva, que passam a ser vistas do mesmo modo como as que
encaramos ao ver a imagem do mundo. Ali, essa alteração passa sem ser notada, e não
se apresenta como meio artístico de modo nenhum. A sensação de superfície plana
torna-se, com certeza, quase totalmente nula, e a sobreposição de corpos uns atrás dos
outros será vista como casual. Técnicos não são artistas e não trabalham para explorar
as fortes possibilidades de um efeito artístico, mas sim buscam fortalecer a naturalidade
da imagem. Para um técnico, é irritante que o filme não tenha uma boa
tridimensionalidade, porque ele busca como meta uma simulação da realidade que possa
ser penetrada à sua semelhança. Ele se chateia porque o filme não tem cores e não tem
som e assim trabalha para criar o filme colorido e o cinema sonoro. O grande público,
distante da arte, quer ver no cinema o maior realismo possível e, portanto, preferiria um
filme tridimensional a um bidimensional, um colorido a um preto e branco, um falado a
um mudo. Todo novo passo rumo a esta igualdade com a imagem do mundo cria uma
nova sensibilidade, e cada nova experiência sensível faz a sala de projeção se encher. A
indústria do filme é a principal interessada em cada nova descoberta. Ainda se tratará
desse aspecto adiante.

USO ARTÍSTICO DA ILUMINAÇÃO E A AUSÊNCIA DE CORES

Com o espectro de cores ocorre o mesmo que com a profundidade. O fato de o


cineasta só poder contar com o preto e o branco leva-o a valorizar a iluminação na busca
de efeitos. O pintor não retira mecanicamente as cores que usa da realidade (como
ocorre no filme colorido), mas cria sua palheta de cores, o que lhe dá a possibilidade de
se afastar bastante da similaridade com o real a partir da livre composição e da mistura
de cores para a obtenção de seus efeitos artísticos. As cores do filme são naturais, ou
mesmo que ainda não o sejam por culpa de limitações técnicas no momento atual, esse
hiato – ao contrário dos outros limites, dos quais extraímos potencialidades criativas -
não é suficiente para servir ao artista como recurso criativo.
A possibilidade de produzir filmes de arte em cores ainda é uma promessa,
embora a produção de filmes em preto e branco já há muitos anos tenha provado ser
capaz de produzir arte de alto valor. A redução da escala cromática para valores de cinza
lineares (do branco puro até o preto puro) oferece uma bem-vinda distância do cinema
em relação à imagem do mundo e abre a possibilidade de se obterem vantagens estéticas
e de produção de sentido por meio do uso dos elementos da iluminação.
O cineasta - visto que raramente é suficientemente apreciado o trabalho do bom
cinegrafista - tem em suas mãos o controle das intensidades de branco e preto que serão
captadas na filmagem a partir do objeto. Dependendo de como dispõe as lâmpadas, de
como deixa as sombras se formarem, de como, na luz natural, dispõe a câmera em
relação ao sol, de como intercepta e reflete a luz por meio de acessórios de iluminação,
o cineasta pode envolver um objeto claro num ambiente também claro ou pode deixa-lo
em contraste contra o negro com sua iluminação. Este é um dos mais importantes meios
de composição que o filme oferece. O primitivo, mas ainda eficiente, simbolismo -
cheio de força das luzes e sombras -, a pureza do branco e o segredo do preto, o
contraste das trevas, tudo isso constitui o universo inesgotável de possibilidades da
iluminação. No filme “As Docas de Nova York”, de Sternberg, por exemplo, as duas
personagens principais são caracterizadas deste modo. O rosto branco da garota, a sua
roupa clara e o cabelo loiro constituem um contraponto óptico à figura do trabalhador
vestido de negro, que alimenta o navio com carvão. Assim já fica exposta – com muita
competência e plena de congruência artística –, a partir da simples presença dos dois
contracenando juntos, a distinção entre estas duas almas humanas, que se forma já a
partir do mais simples olhar para a superfície em preto e branco sobre a qual eles são
projetados a se movimentar sobre a tela. Uma tal caracterização em um filme colorido
seria muito mais difícil de construir. Um recurso semelhante encontra-se no filme
“Canção para a vida”, de Gravowsky, na assustadora cena de uma operação de parto que
ganha uma rigidez mórbida a partir de um recurso simples que se aproveita do contraste
entre o branco dos aventais longos, da pia de esterilização e do algodão em rolo contra o
negro fechado das luvas de operação de borracha dos médicos e dos instrumentos
também pretos. Não fosse o contraste tão bem marcado pelo cinegrafista, o valor da
cena teria se perdido.
Pensemos no rosto de uma mulher loira. No filme preto e branco, sua pele e cor
do cabelo igualam-se numa certa tonalidade de branco, assim como os olhos azuis que
ficam claros, mas, num forte contraste, passam a ser negros a boca de forma
arredondada e o contorno dos olhos castanhos. Um rosto assim é estranho, as sua
impressão é mais expressiva, passa a ser mais notado em si mesmo e na mímica que
expressa. A linha negra que delimita os cabelos de um rosto muito claro é bonita e
característica. A quem não chamou a atenção como a maioria dos rostos no cinema
parecem irreais, celestiais, bonitos? Ou como estes rostos dão frequentemente a
impressão de não serem naturais, mas sim uma criação artificial – com a qual as
técnicas de máscara e maquiagem naturalmente se ligam? Um bom rosto de cinema
deve transmitir a mesma alegria de uma gravura bem feita. Todos que já viram uma
sessão de estreia de um filme sabem como parecem doentios os rostos rosados dos
atores ao vivo quando comparados com os rostos projetados pelo filme na tela. As
máscaras gigantescas, plásticas e impressionantes projetadas na tela não combinam com
pessoas de carne e osso. Elas são matéria-prima artística, materiais ópticos.
A divisão da superfície da imagem é entendida e inteligível, sobretudo, através
do material de imagem que oferecem as áreas brancas, pretas e cinzas, as linhas negras
sobre o fundo branco, ou as linhas brancas sobre o fundo preto.
Pode-se comparar o cinema com a música, na qual só é possível usufruir do
prazer sonoro porque as alturas dos tons são bem determinadas na escala musical e
porque essas alturas podem ser utilizadas criando os intervalos nas composições.
Proporciona prazer ouvir com que riqueza artística esses tons foram arranjados uns após
os outros ou em acordes. Assim como seria impossível produzir música sem o
temperamento dos tons e intervalos, também só é possível existir uma arte imagética
(caracterizada e representada por suas obras-primas) de valor quando se torna claro qual
é o meio com o qual ela trabalha. Branco e preto são meios muito evidentes. Todo filme
de arte de primeiro time, sobretudo os bons filmes russos e americanos, mostra um uso
do branco e do preto muito destacado (portanto sem misturas difusas das tonalidades
trabalhadas, ou contornos pouco claros) para mostrar logo quais são suas qualidades
formais.
O resultado de uma tomada externa depende quase exclusivamente da luz. No
filme de Walter Ruttmann “Berlim: sinfonia de uma metrópole” há uma cena famosa
que mostra uma rua vazia do norte de Berlim nas primeiras horas da manhã. A clara
neblina característica no céu da manhã contra a imprecisa escuridão das fachadas dos
prédios, ou seja, uma divisão dos tons reforça a eficiência desta imagem. Na mesma rua,
com o mesmo equipamento, poderia ser feita uma imagem muito mais difusa e menos
valiosa (e esta diferença poderia ser ainda maior num estúdio onde o cinegrafista tem a
luz sob controle e pode direcioná-la). Ruttmann mostra então alguns poucos homens
caminhando pela rua vazia: operários que se encontram a caminho da fábrica. Eles são
vistos contra o céu acinzentado como silhuetas escuras, e também estas figuras negras
na rua acinzentada caracterizam o segredo do amanhecer que surge do encontro entre a
escuridão e a claridade.
Nos filmes policiais, todo tipo de efeito é obtido quando um feixe de luz de uma
lanterna ilumina de repente um lugar escuro, passando pelos móveis ou revelando uma
pessoa escondida. Uma luz branca forte incide sobre um rosto formando um contorno
que lembra o efeito de placas luminosas. No filme “O Fim de São Petersburgo”, de
Pudovkin, vemos a dança das nuvens em torno da lua, as sombras das folhas projetadas
sobre o solo, os focos de luz das lanternas dos carros, o reflexo brilhante sobre as águas,
a marca negra de sangue que escorre sobre a pele clara e os cabos brilhantes do
telégrafo em contraste com o céu escuro como uma constelação. São todos efeitos
capazes de deleitar os olhares e que só são possíveis de construir com o filme preto e
branco.
O uso inteligente da iluminação define bem os contornos do objeto na imagem.
Basta comparar o rosto da atriz Baranowskaia em um dos filmes russos que fez para
Podovkin com um outro oriundo de estúdios estrangeiros como “Gás venenoso” ou “A
vida é assim”: pode-se notar nitidamente como ela apresentou nos filmes russos, um
rosto vivo e movimentado, rico de formas e maciço por meio dos contrastes de luz,
enquanto esse mesmo rosto parece fraco, indistinto, cinzento e pouco marcante nos
filmes alemães. Tudo por conta da técnica de filmagem e de iluminação. O mesmo
ocorre com Greta Garbo no filme alemão “A rua sem alegria” em comparação com um
filme americano da atriz. Mesmo considerando que o filme alemão é mais antigo e que a
técnica da maquiagem ainda era muito incipiente, temos de reconhecer que mal é
possível reconhecer o belo rosto da atriz: ele é esbranquiçado, mascarado, a pele é
cinzenta e pouco definida, os olhos são inexpressivos e os cabelos parecem
empoeirados. Já nos filmes americanos, a pele ganha uma tez brilhante como um
mármore, clara, os olhos frios exercem um estranho domínio e os cabelos sedosos e
leves parecem fosforescentes, iluminados por uma luz oculta. Pode-se, com a ajuda da
iluminação bem feita, fazer um rosto feio tornar-se harmonioso ou um assimétrico obter
uma imagem simétrica, pode-se emagrecer ou engordar a pessoa, envelhece-la ou
rejuvenescê-la. O mesmo se dá com os ambientes internos ou externos: um quarto pode
parecer quente e confortável ou terrivelmente frio, grande ou pequeno, limpo ou sujo
conforme a colocação das luzes. O efeito de um raio de luz solar que se projeta num
quarto escuro como uma listra dificilmente pode ser obtido em um filme colorido. A
rara emoção de um campo com raios que acendem contra o céu escuro uma luz clara, a
silhueta das encostas das montanhas contra um céu ao entardecer, o indescritível
acinzentado de uma área industrial ou ainda as vagas nos campos de cereais - com a
dança dos grãos iluminados pela luz do sol entre as sombras das plantações – são efeitos
do filme preto e branco com os quais se podem atribuir muitas significações desejadas
sem esforços8.
O prazer resultante de encontrar materiais que vêm da realidade – como minério
de ferro, latão escovado, pele lisa, pele de animal felpuda, pele humana macia – e que
são passíveis de utilização como matéria-prima por terem texturas que se diferenciam na
superfície do filme (ou da fotografia) é maior em todo o caso porque as cores não estão
presentes ali. Com as cores, estas texturas dos materiais são muito mais forçosamente
reprodutíveis, como na famosa pintura em seda de homens de Terborch. Há uma técnica
entre os pintores de se intercambiar as texturas de materiais, mas o que admira é o fato
8
Por exemplo o conhecido primeiro ato do “Nibelungos”, de Fritz Lang, em que Siegfried caminha pela
floresta encantada.
de se conseguir atingir este efeito sem uso de cores, só com os recursos do preto e
branco9. É possível aos fotógrafos alcançar – mas por meio de técnicas sofisticadas –
texturas com uma impressionante fidelidade à natureza do objeto e assim conseguir
encontrar uma maneira particularmente fiel de representá-la, por exemplo na fotografia
de Albert Renger-Patzsch no filme “Os russos”). Mas isso não ocorre sempre. Todos já
repararam como chama atenção a tomada cinematográfica de uma mesa posta: o tipo de
coisas escuras que se come, redondas e finas superfícies, balas brilhantes e todo tipo de
coisas planas os atores cortam em pedaços e colocam na boca sem que se possa
reconhecer de que se trata.
Com a luz ocorreu o mesmo que com os enquadramentos da filmagem: no
princípio, buscava-se evitar todas as alterações possíveis a partir de efeitos de
iluminação, assim como foram evitadas as deformações perspectivas e sobreposições - e
também suas possibilidades. O objetivo da iluminação era justamente iluminar a
imagem para os olhos, sendo sua utilização de outro modo tida como erro. Um exemplo
instrutivo disso foi documentado pelo diretor americano Cecil de Mille:

“Como eu vim do teatro, queria levar para o cinema um conhecido efeito de


iluminação que utilizei uma vez numa montagem e que era bem conhecido nas peças.
Na cena citada, um espião saia de trás de uma cortina e era visto em primeiro plano,
mas, para que não fosse muito bem visto quando estivesse ali, eu iluminei somente
metade do seu rosto, deixando a outra metade no escuro... Analisei o efeito na projeção
e o achei muito bom. A ideia de iluminar daquela maneira me parecia aliás tão boa que
decidi utilizá-la ao longo de todo o filme, ou seja, jogar a luz somente a partir de um ou
de outro lado do ator – um método hoje já muito utilizado. Quando mandei o filme para
o escritório do estúdio, recebi do gerente um telegrama que me repreendia de modo
violento. Era mais ou menos assim: ‘- O senhor enlouqueceu? Espera que possamos
cobrar um ingresso inteiro se o senhor só mostra meio ator?’”

O filme não foi distribuído até que de Mille retrucou seu produtor a partir da
autoridade misteriosa que exercem os grandes mestres europeus. Ele telegrafou de volta:
“Se o senhor for tão estúpido a ponto de não reconhecer o chiaroscuro de Rembrandt
quando vê este filme não precisa mais me responder”.
Foi o bastante. O lançamento proclamava o filme com o slogan: “O primeiro
filme iluminado no estilo de Rembrandt”. Foi lançado a um preço que era o dobro do
ingresso normal. E foi bem sucedido.
Essa história é muito ilustrativa de como aprendemos a ver com outros olhos.
Hoje, o grande público já está acostumado com modalidades de iluminação como a que
de Mille experimentou pela primeira vez (sem valorizá-la em si mesma como recurso
artístico). Mas, naquele tempo, a imagem cinematográfica ainda tinha de ser fiel ao
objeto, e toda alteração deste padrão de realismo era vista como uma deformação da
realidade, ou seja, um desvio do objetivo principal do filme. Um homem iluminado de
um só lado seria visto na tela como meio homem, mas, no mundo real, os homens não
são divisíveis ao meio. Conclusão: a imagem do senhor de Mille não prestava. Uma
equação simples: a fonte de luz devia ser disposta de modo que o objeto fosse
claramente reconhecido em cada parte. Não se queria nenhuma sombra perturbadora,
mas sim uma visão clara. Só mais tarde se aprendeu a utilizar a luz como meio de
expressão que devia ser colocado a serviço dos efeitos artísticos.

UTILIZAÇÃO ARTÍSTICA DA
9
Assim como há toda uma categoria de efeitos em exposições artísticas para se obter uma sensação de
realidade com a ajuda de outros tipos de materiais
LIMITAÇÃO DO CAMPO E DA DISTÂNCIA DO OBJETO

A livre movimentação dos olhos em todas as direções constrói um círculo visual


sem limites rígidos. A imagem de cinema, ao contrário, é limitada claramente por uma
moldura. Só o que está no campo é visível e assim o diretor de cinema vê-se limitado,
mas, ao mesmo tempo, tem a possibilidade de escolher um ponto de vista
conscientemente a partir do todo da realidade, recortar um tema ou motivo deste todo. O
enquadramento da imagem de cinema é um meio de criação de formas e estilos - como
na sobreposição perspectiva - , pois permite mostrar qualquer detalhe da realidade e dar
a ele, deste modo, um significado determinado ou, ao contrário, torná-lo irrelevante,
deixar algo entrar de repente na imagem para surpreender, jogar com o reflexo de coisas
ou acontecimentos que ocorrem fora do campo, que são ouvidos, etc.
O campo é onde se constrói a qualidade plástica da imagem. O preenchimento
do espaço da imagem, a divisão da sua superfície, etc. só são passíveis de criar uma
composição porque uma determinada delimitação ou moldura serve de referência a suas
coordenadas para a construção do “padrão da imagem”. É só em relação à moldura que
são estabelecidas as linhas horizontais e verticais. Elas se reportam a estes eixos. Toda
linha oblíqua é vista enviesada na imagem porque contrasta com as orientações vertical
e horizontal das bordas da imagem, o que se explica pelo fato de todo desvio necessitar
de um sistema de referência visível que mostre de onde ele se desviou.
Numa boa imagem de cinema, todas as linhas e boa parte das direções estão em
uma bem balanceada relação umas com as outras ou em relação à moldura. Elas se
postam umas paralelas às outras ou se opõem, constroem um padrão calmo ou
selvagem, simples ou complicado. E o mesmo também ocorre com a distribuição das
áreas em branco e preto. Se a imagem de cinema fosse infinitamente grande, não
haveria muito a falar sobre a qualidade da divisão do espaço, porque a divisão depende
da existência de um campo limitado que possa ser dividido. Não há equilíbrio no
ilimitado, à exceção de padrões como os de uma tapeçaria, que seguem uma exposição
em série - o que não vem ao caso, pois a imagem de cinema nunca se constitui de
padrões puros, mas sim de representações a partir do real. O problema dos limites da
imagem é reconhecidamente atual em toda parte. Abel Gance filmou as famosas cenas
de seu Napoleão em três recortes no sentido horizontal da tela. No cinema, três
projetores apresentavam suas imagens lado a lado, construindo uma larga faixa
panorâmica de projeção que só poderia ser vista daquele modo por uma única câmera se
ela tivesse sido colocada muito mais distante do que efetivamente foi. Nos Estados
Unidos, já se tentou, de diversos modos, aumentar o formato da imagem. Mas, quanto
maior é a área de projeção da imagem, mais difícil será construir uma partição estética
da imagem. A tendência da ampliação da imagem caminha na mesma direção da busca
pela cor, pela tridimensionalidade e pela sonoridade no cinema. É a busca de gente que
não sabe que o valor artístico está relacionado com as limitações do meio e que só quer
desenvolver quantidade em vez de qualidade. Essa gente prefere mostrar algo cada vez
mais próximo da realidade e não percebe que, com isso, torna cada vez mais difícil a
possibilidade de o cinema vir a produzir arte.
De resto, as tentativas de ampliação da imagem de cinema trouxeram de volta a
questão de até quando a norma de um formato padrão internacional válida hoje é
artisticamente justificada. Foram feitas pesquisas estatísticas sobre os formatos
conhecidos utilizados no passado para descobrir quais formatos eram os preferidos
pelos pintores. O diretor russo Eisenstein aproveitou sua estadia em Hollywood para
proferir uma palestra a favor da forma quadrada para o cinema, pois, por intermédio de
coberturas com máscaras, podem ser obtidos nele retângulos de todas as proporções. Ele
disse:
“Nem a forma horizontal de tela nem a vertical são em si mesmas ideais...
Como é possível tendências horizontais e verticais de movimento no filme se mostrarem
equilibradas por igual? O campo de batalha ideal para uma disputa assim é encontrado
com facilidade – é o quadrado. O quadrado é o único formato capaz de produzir
diversos tipos de retângulos possíveis de visualizar por meio de distintas coberturas de
partes à direita, à esquerda, acima, abaixo. Ou pode ser utilizado como um todo com
finalidade de impregnar a alma do espectador com uma sensação cósmica de sua
‘quadradidade’. E isso sobretudo numa sequência dinâmica de distintos tamanhos, de
um pequeno quadrado no meio da tela até um quadrado brande que ocupasse toda sua
superfície!”.

No princípio da fotografia, e também do cinema eram feitas tomadas gerais, ou


seja, que apresentavam uma visão geral do objeto ou da situação representada. Seria
possível fazer, como se faz hoje, um recorte que pudesse mostrar somente duas mãos ou
metade de um rosto, mas isso não era feito. Como a possibilidade técnica existia, mas
não era até então utilizada, é bom esclarecer quando este tipo de enquadramento deixou
de ser visto como algo proibido ou como erro e passou a ser visto como utilizável e até
enriquecedor. Se uma pessoa fosse filmada, ela deveria aparecer de corpo inteiro na
imagem. Os limites da imagem eram vistos somente num sentido negativo: que eles não
recortassem nada! O interesse recaia somente sobre o objeto apresentado, e não sobre a
forma de apresentação. Que fosse possível criar formas com o corte era uma ideia que
representava uma revolução, a mesma que deveria ser encontrada em todos os outros
recursos da arte do filme para que o filme pudesse ser artístico. Do mesmo modo como
o produtor de Cecil B. de Mille resistiu a aceitar uma imagem da personagem com o
rosto iluminado só pela metade, também parecia ser absurdo - mais parecido com uma
brincadeira de mau gosto - deixar para fora das molduras da imagem parte da totalidade
de qualquer coisa. Hoje, alguns anos depois, faz parte do estilo de um diretor a forma
como ele manipula recortes os mais originais.
No filme “Buster Keaton cameraman”, Keaton apaixona-se por uma moça que
trabalha numa agência de filmes jornalísticos. Vemos a seguinte cena: pela manhã, o
escritório abre, os funcionários começam a chegar e se vê a sala de espera com o saguão
onde os clientes esperam. A garota entra, tira o casaco e se senta em seu posto de
trabalho. Mas, de repente, a câmera se vira e somente então se vê um canto da sala
oculto, onde Buster Keaton está sentado com seu tripé na mão a esperá-la. Ele passou
ali a noite inteira para esperar a moça por pura paixão. É um exemplo de que também
numa tomada geral algo pode ficar de fora. O plano geral é uma ideia muito relativa e
bastante imprecisa com certeza, que não pode ser definido de uma maneira clara se não
se quiser afirmar que ele inclui tudo o que é relevante para mostrar uma determinada
situação. Pode-se dizer que uma uma tal situação, da apresentação do escritório, poderia
ser chamada de plano geral. Mas aquele canto fundamental onde Buster Keaton se senta
não estava até então visível - e é a partir desse ocultamento que a cena constrói seu
sentido. Poderia se ter optado por outro enquadramento para mostrar a mesma situação:
a garota sobe as escadas, abre as portas do escritório e vê Buster Keaton sentado no
canto. Porém, a situação perderia seu tom de cômico e de antinatural que ocorre no
formato original do filme, porque o espectador pensava estar vendo a totalidade da
situação amplamente exposta, um escritório em que as pessoas trabalham normalmente:
mas, de repente, ele vê, como que caído do céu no meio deste escritório organizado, o
que ninguém poderia prever encontrar, ou seja, o todo fechado mostrado ao espectador,
em que paira uma tranquilidade do pleno entendimento do ambiente, era falso e há uma
completa reformulação desta estrutura do lugar, alterada pela inclusão do que não era
mostrado até então. Este elemento ocultado não combina de modo nenhum com a
situação até então tida como verdadeira. Há uma violenta transformação. É um efeito
parecido com o de “Gente fina”, onde Chaplin é mostrado maravilhosamente vestido de
fraque e cartola – mas somente da cintura para cima – e de repente se vê que ele não usa
calças, está só de ceroulas. Aqui também a parte que aparece – a metade de cima
mostrada – é interpretada como um todo numa estrutura fechada (homem elegantemente
vestido), e a descoberta do restante que até então não era mostrado lança uma luz
totalmente diferente e transforma tudo em uma situação cômica.
Agora uma cena bem diferente. No filme “As Docas de Nova York”, de
Sternberg, é mostrada uma suicida que pula de um cais na água. Só se vê na imagem a
superfície da água em movimento onde se projeta o reflexo do cais e da mulher que
salta. Só se vê indiretamente como ela pulou, sua imagem espelhada na água. Mas, no
próximo momento, vê-se o corpo dela cair no mesmo ponto enchendo de ondas o lugar
onde sua imagem era projetada. A surpresa da colocação das visões direta e indireta
ligadas é impressionante.
O efeito é construído com a ajuda da escolha precisa do enquadramento. O
equipamento é posicionado de um modo que não mostra o mais importante na situação:
o cais e a mulher – do ponto de vista das gravações mais antigas voltadas à apresentação
dos objetos, um enquadramento totalmente equivocado. O acontecimento do qual se
origina a imagem com esse enquadramento proposital mostra somente seu reflexo na
imagem. Obtém-se, com este método, o resultado de que o espectador, que teria
somente prestado atenção muito mais facilmente ao enquadramento direto do
acontecimento para constatá-lo, por causa do estranhamento da exposição, emociona-se
muito mais e se interessa mais – um efeito parecido com o da deformação perspectiva
(página 56) pode também ser mostrado.
Truques artísticos semelhantes são utilizados com frequência. Às vezes,
constituem verdadeiros modismos, como uma sombra escura do vilão projetada sobre
um muro iluminado. As sombras funcionam como anúncio: aparecem antes da
personagem que as projeta. Isso cria um suspense e serve para chamar a atenção ou para
indicar ao público algo a respeito do que se avizinha.
Com certeza, o valor inerente à limitação da imagem pela moldura é bem
comprovado pela figura do plano de detalhe, no sentido próprio do termo, do close-up.
Quanto maior é o recorte do detalhe, maior ele será mostrado na tela. O plano de detalhe
não serve somente para o cineasta tornar claro, por meio do aumento das medidas, algo
que não seria identificado claramente sem esta aproximação e que se passaria por um
mero detalhe num plano geral - como, por exemplo, que uma pessoa tem lágrimas nos
olhos ou que há um rato no canto da sala –, mas também é a partir do destaque do
detalhe que se pode extrair algo muito inusitado. É comum o cineasta introduzir o
espectador numa situação nova a partir de seus detalhes característicos – por exemplo:
vê-se um pêndulo de um relógio, depois o relógio inteiro, e então a câmera volta-se para
trás e mostra que as pessoas estão numa sala e olham atentas para o relógio, ou seja, o
relógio é o centro das atenções e por isso foi mostrado primeiro. No filme “Diário de
uma Perdida”, de Pabst, é mostrado um reformatório. Inicialmente, vê-se o rosto mau,
severo e autoritário, da tutora. A seguir, vê-se que ela bate um gongo num ritmo regular.
Então a câmera vira-se para trás e mostra que ela está de pé na cabeceira de uma mesa,
na qual as alunas sentam-se para o almoço e conduzem as colheres a suas bocas no
ritmo militar ditado pelo gongo. Também aqui, o ponto central é representado pelos
detalhes característicos da situação que orientam o espectador numa certa direção a fim
de criar, para ele, uma espécie de caminho de descoberta da surpresa, já que esse tipo de
revelação a partir dos detalhes é muito instigante e envolve muito mais o espectador do
que se a situação toda fosse mostrada de uma só vez.
Essa sequência, indo do detalhe ao plano geralpode ser conduzida de maneiras
distintas. Podem-se gravar as cenas em detalhe e as tomadas gerais separadamente para
então reuni-las no filme pronto – num salto de uma imagem para a outra. Pode-se deixar
a câmera ir se afastando a partir do plano próximo para trás, de forma a que o conteúdo
da imagem vá diminuindo e se tornando mais geral até que o detalhe no início grande vá
se tornando aos poucos pequeno e vá se arrumando no quadro da situação mais geral.
Uma terceira forma é manter a câmera fixa e trabalhar com mascaramento, para que a
maior parte da imagem permaneça escura e somente num espaço pequeno (redondo)
surja aos poucos, como de um buraco, a parte da imagem focalizada. Este buraco vai se
dilatando num fade-in até que o objeto em close ocupe todo o quadro.
Há inúmeros outros tipos de uso para o close, logo não é possível apresentar
todos num esquema.
Em “As Docas de Nova York”, há uma cena romântica entre o marinheiro e a
garota. Eles se sentam e bebem, mas não há muito para se ver que remeta ao universo
do amor... então vem num close um detalhe incrivelmente obsceno: ela apalpa
maliciosamente uma tatuagem eróptica no braço do marinheiro, e ele contrai os
músculos para diverti-la. A mesma cena em tomada geral não seria minimamente
eficiente. Se o homem inteiro fosse mostrado em vez do braço, sumiriam os valores de
nudez, o vigor e a indecência – um resultado muito forte do princípio da tomada da
parte pelo todo. Essa mulher vê no homem somente a potência, a nudez, a musculatura.
Exemplos como esse se encontram em todo filme, por exemplo, ao ver os pés de
uma pessoa que sobe a escada – e que remete visualmente para o som dos passos – ou
ao ver somente as pernas de um casal apaixonado. Em “Os novos senhores”, de Feyder,
há uma cerimônia em comemoração à inauguração das residências em uma colônia de
trabalhadores. O ministro está com pressa e caminha cada vez mais rapidamente até que
toda a comitiva corre. Close-up: um homem gordo da comitiva, ninguém em especial,
que enxuga o suor. Ele é mostrado num ato característico para representar o sofrimento
de todo o grupo naquela situação. Em “A Mãe”, de Pudovkin, as cenas passadas na
frente do prédio da Justiça são apresentadas com uma sequência muito rápida de closes
sucessivos das pedras frias e acinzentadas do prédio e das botas em tamanho gigante de
um soldado da guarda, mostradas numa forte cor escura, inquietante, que conduz muito
eficientemente à agitação das cenas que se seguem. Sobretudo no cinema russo,
desenvolveu-se uma grande técnica da utilização do close.
A possibilidade de se alterar o recorte da imagem e a distância em relação ao
objeto serve de meio para o cineasta fazer aflorar ideias gerais possíveis de associar às
coisas sem ter de desfigurar a realidade, mostrando parcelas dela, deixando pedaços
representarem o todo, e para construir suspense mostrando ou deixando de mostrar o
que tem importância e valor visual diretamente na imagem. Dar destaque a algo que
provoque nos espectadores a necessidade de se extrairem significados simbólicos a
partir daquilo que foi destacado, colocar detalhes essenciais de uma situação geral em
destaque e chamar a atenção sobre eles.
O close, porém, possui uma grande desvantagem: não deixa muito facilmente
claro ao espectador qual é o espaço onde se desenvolve a ação e onde se encontra o
objeto ou a parte deste objeto mostrada. Isso acontece especialmente em filmes em que
o uso de close é exagerado, em que quase nenhum plano geral é mostrado, como, por
exemplo, no “Martírio de Joana D’Arc”, de Dreyer, ou em muitos filmes russos. O
primeiro plano de uma cabeça a mostra claramente, até em seus menores detalhes, mas
não informa onde se encontra o homem cuja cabeça está sendo mostrada, se ele está na
rua ou numa sala, ou como ele está posicionado em relação às demais personagens: se
está próximo ou distante, virado de frente ou de costas para elas, se está no mesmo
espaço ou em outro local. O excesso de closes leva muito facilmente o espectador a
percebê-los como um jorro de informações que o deixam incerto, desorientado. O
cineasta é, na maioria das vezes, forçado a não mostrar primeiros planos isolados, mas
intercalados com planos gerais que deem informações claras sobre as relações espaciais
da situação geral.
Por outro lado, amplia-se a possibilidade de se escolher o aspecto desejado do
objeto a ser mostrado, um poderoso recurso do cineasta e que falta ao teatro. No teatro,
o espectador senta-se sempre à mesma distância do palco de atuação, e esta distância
determina o tamanho com que se pode ver tanto a ação quanto os objetos em cena. Já se
trata certamente de uma forma de ilusão inocente o investimento de esforços pelo ator
de teatro para construir uma mímica facial sofisticada, porque ela só será reparada pelo
público sentado entre a primeira e a quinta fileiras. Mesmo sem pensar no estado
perfeito ou não da visão de cada espectador ou se ele se utiliza do recurso precário
daqueles binóculos de ópera, na primeira fileira, só se perceberá uma parte do que se
passa no palco.
Não se trata, portanto, de um mero detalhe técnico. A distância constante do
espectador em relação ao palco cria, no teatro, um parâmetro para a escolha e disposição
das coisas “conforme seu tamanho”, parâmetro este que se torna muito importante do
ponto de vista estético. Sobre o palco, no que diz respeito à óptica, “tem valor” somente
um grau muito diferenciado de escala que seja nitidamente percebido a partir da
movimentação do ator, de suas roupas ou do cenário e da decoração. O filme pode
potencializar este tamanho e, o que é ainda mais importante, pode manipulá-lo. Se, num
momento, o olhar do espectador volta-se para uma sala onde havia um grupo de
homens, a câmera mostra, no próximo momento, o mesmo lugar a partir de um ponto de
vista muito distinto em que uma coisa muito diferente coloca-se no centro da imagem -
as outras coisas tornam-se maiores e ganham sentido, ou talvez desapareça tudo o que
no plano geral até então era importante. Da sala com dois homens só resta uma pequena
superfície de meio metro quadrado que mostra uma mesa sobre a qual há uma flor.
Antes ela mal podia ser vista, já que só aparecia como um pequeno detalhe do plano em
meio ao amplo espaço representado. Esta flor passa agora a ocupar toda a tela, no centro
da imagem, e, assim, a ser o centro da ação. Logo depois, os dedos de uma mão
projetam-se sobre a flor, também gigantes, e passam a ocupar o centro da ação, mesmo
que até então mal fossem notados e não tivessem nenhum papel.
Por essa razão, a margem de operação do cinema é amplamente maior que a do
teatro, visto que, mesmo que o teatro tivesse um recurso semelhante, sua aplicação
sobre os elementos não humanos teria muito menos poder. O teatro se apoia-se nas
palavras, e não seria fácil, nas cenas normais do teatro, cujo sentido também está no
diálogo, combina-las com quaisquer efeitos extraídos a partir da exposição de coisas
mortas, animais ou plantas, seja a partir de sua simples apresentação ou mesmo a partir
de ações acompanhadas ou não de sons. Esse tipo de representação só muito raramente
é possível no teatro e mesmo nos filmes sonoros, pois a utilização deste tipo de recurso
em momentos fundamentais pode servir de estorvo e criar um efeito desarticulador.
Ainda não se demonstrou claramente, e poucos espectadores de teatro deram-se
conta desta característica, que toda arte teatral é antinatural e estilizada em razão de a
interpretação ser conduzida toda com base na palavra. A construção da cena teatral é
revestida de fala desde o princípio, concebida de modo a contar com a utilização
ilimitada do discurso para deixar transcorrer a trama, portanto toda a supremacia da
simples ação sobre a palavra é vista como uma falha. A mais importante qualidade
característica do drama, a palavra falada, pode se desenvolver ao longo de milênios da
evolução do teatro com uma absoluta pureza. Que este modo de conduzir uma trama
não seja natural fica claro somente quando se constata, a partir de um filme mudo, como
se pode representar uma narrativa sem dificuldades, mesmo sem utilizar nenhuma
palavra.
O filme consegue superar a dificuldade de que as coisas não conseguiam chamar
a atenção dos espectadores sobre elas mesmas. Imagine que, em uma determinada cena
de teatro, uma flor repousasse sobre uma mesa. Não há como a flor chamar a atenção do
público sobre si mesma sem a ajuda de um ator. A possibilidade de o objeto que deveria
ser notado ser visto somente por um ou outro espectador no transcorrer da obra, em
função de uma exigência leve que o tornasse despercebido, obriga toda obra de arte a ter
mecanismos rígidos de controle do direcionamento da atenção dos espectadores. Eles
devem se voltar para o ponto em torno do qual o autor deseja que se repare e que a visão
disso aponte para o sentido pretendido. O cineasta controla a atenção do espectador da
maneira mais rigorosa, pois, por meio da localização da câmera, conduz diretamente ao
campo da imagem o que quer que se situe no ponto central da atenção e direciona
somente para o que é importante os limites da imagem, dentro dos quais estarão os
objetos que poderão ser vistos. Sem que a flor precise gritar: “Agora, olhem para mim”,
o interesse dos espectadores volta-se para ela com força total, já que não é permitido ver
nada mais além dela naquele momento: ela se mostra em toda a tela. E o mesmo se dá
com outros pequenos acontecimentos, seja o movimento de uma mosca ou a tragada de
um cigarro, ocorrências enfim que não teriam força suficiente de chamar a atenção
sobre si, de serem trazidas à tona, por causa do seu tamanho caso se dessem no palco de
um teatro.
No cinema, esses pequenos acontecimentos, estes papéis interpretados por
assessórios, são do mesmo tipo dos acontecimentos “macroscópicos” desempenhados
pelos atores. E isso resulta numa muito promissora homogeneidade.
A possibilidade de se mudar rapidamente a distância em relação aos objetos
conduz naturalmente a uma relatividade das medidas de tamanho. O espectador não tem
referência, mesmo a partir de suas experiências passadas, para poder avaliar o tamanho
do que é mostrado, ou seja, ele não sabe a partir da imagem se uma mosca mostrada é
objetivamente pequena ou uma montanha, grande, por não ter um ponto de referência
do tamanho objetivo na imagem dada – ele não sabe a que distância a câmera foi
colocada em relação ao objeto numa filmagem determinada. Numa mostra arquitetônica
em exposição em Berlim, viam-se algumas tomadas de prédios que foram construídos lá
e, imediatamente a seguir, imagens de uma maquete da cidade de Roma. O observador
via ambas imagens de prédios ampliadas do mesmo tamanho, embora as primeiras
fossem feitas a partir de altos prédios, fotografados a partir de uma distância ampla
conveniente, e as maquetes tivessem alguns centímetros de altura e tenham sido
fotografadas de muito perto. As experiências de vida do espectador podem não ser, num
caso destes, ricas o suficiente para avaliar as reais dimensões do que é apresentado na
imagem e para interpretar claramente a imagem. Esta relativização conduz, por um lado,
a que coisas objetivamente de tamanhos muito diferentes possam ser mostradas com
dimensão igual na imagem e, com isso, podem se construir relações entre ambas. Isso
ocorre, por exemplo, em uma cena do filme “Os homens da Renânia do Sul”, na qual a
barriga redonda de um estudante estirado sobre o sofá mescla-se com a paisagem: uma
forma parecida, redonda mostra as montanhas que estão em torno da cidade de
Heidelberg. Essas duas coisas de tamanhos totalmente diferentes acomodam-se
tranquilamente lado a lado na imagem: a pequena barriga de perto e a grande montanha
muito ao longe são equivalentes quando filmadas e possibilitam a construção de uma
relação entre ambas.
Por outro lado, por meio de determinados efeitos, a real dimensão das coisas
pode ser mostrada para o espectador. O crítico de cinema Julius Bab citou como
exemplo de obra de mestre do cinema de arte uma cena da filmagem de “Casa de
Boneca”, de Ibsen. Uma sala aparece e, de repente, entra nesta sala uma mão gigantesca
que torna claro que a sala é na realidade muito pequenina, que ela pertence a uma casa
de boneca. Até então a sala era tida como se tivesse o tamanho normal, porque não há
na imagem nenhum ponto que desmentisse essa visão, que indicasse se tratar da vista de
uma casa de boneca, de um brinquedo. E a transformação repentina, por um meio pouco
sofisticado (a comparação com uma mão humana), traz uma nova consciência da
situação aos olhos do espectador do melhor modo: a simples comparação entre o
tamanho de uma mão com a sala de brinquedo mostrou-se eficiente. Uma vez mais, uma
“falha” da linguagem cinematográfica, a impossibilidade do estabelecimento preciso do
tamanho objetivo a partir da imagem, foi transformada em algo mais, utilizada como um
recurso artístico.

UTILIZAÇÃO ARTÍSTICA DA QUEBRA


DA CONTINUIDADE DO ESPAÇO E DO TEMPO

Ao contrário do que ocorre na realidade, no cinema são possíveis saltos no


espaço e no tempo. A colagem das sequências com distintas situações de tempo e espaço
é chamada de montagem. A montagem é o recurso da arte cinematográfica que até agora
foi mais a fundo estudada pelos teóricos, em especial pelos russos. Eles inauguraram em
seus filmes as possibilidades de utilização artística da montagem e também foram eles
que, pela primeira vez, tentaram apresentar sistematicamente os fundamentos da
montagem (além de levarem mais longe o entusiasmo pela montagem). Eles chegaram
mesmo a sustentar que a montagem seria a mais importante característica artística do
cinema (e também fizeram uso excessivo da montagem em seus filmes) e disseram que
as tiras de filme isoladas seriam simples pedaços de realidade, como se um filme
montado fosse, por assim dizer, composto a partir de recortes da realidade. Podovkin
inicia seu livro “Teoria do cinema” com a frase: “o fundamento da arte cinematográfica
é a montagem”. Nós tentamos mostrar anteriormente como a mais singela tomada já não
é – e de modo algum - um simples pedaço da realidade, como existe uma grande
diferença entre a mais inocente imagem cinematográfica em relação à imagem do
mundo e como deve ser considerado seriamente o processo de produção artística.
Percebe-se facilmente, porém, de onde vem a ideia de que é somente com a
montagem que principia uma arte cinematográfica. A simples imagem cinematográfica
resulta, “afinal, de um processo de gravação no qual o homem intervém somente por
meio de um controle, de algo que pode ser visto superficialmente como simples
reprodução da realidade. Na montagem, porém, ele controla a organização das imagens:
o transcorrer do tempo é recortado, tempos e espaços disparatados são colados uns aos
outros – isso equivale a um processo criativo muito mais tangível e formativo. Um
modo de ver assim superficial é, portanto, compreensível”.
Pudovkin descreve o princípio da arte cinematográfica assim:

“No trabalho dos cinegrafistas, não há nenhum espaço para a arte. Eles
fotografam a ‘arte de outros artistas’. Não há o que falar a respeito de nenhuma
peculiaridade do trabalho dos atores de cinema, de nenhuma arte particular dos filmes
ou de métodos de produção da imagem pelo diretor. O que faz de específico um diretor
cinematográfico o tempo todo? Segue o curso do script, que é exatamente igual a um
roteiro feito para o teatro; só que as palavras das personagens são retiradas e
substituídas pelas possibilidades do movimento corporal sem o som e muitas vezes pela
apresentação de legendas. O diretor monta as cenas numa ordem puramente teatral; ele
organiza entradas e saídas, movimentos, transições. Com a cena assim organizada, ele
procede com a ação e o cinegrafista simplesmente registra em película
cinematográfica... a câmera permanece totalmente fixa à frente das cenas já formadas e
desenvolvidas por si próprias”.

Foi a evolução da arte do cinema que criou a montagem. É preciso diferenciar


inicialmente a montagem de uma cena com uma unidade de tempo e espaço de uma
outra em que o tempo ou o espaço se diferenciam. Foi a partir desta última que,
historicamente, a montagem começou, pelo fato de ser menos revolucionária: colam-se
as distintas tiras de filme assim como no teatro as cenas diferentes são encenadas umas
depois das outras. A humanidade já se acostumou há milênios, no teatro, com a ousadia
de se colocar lado a lado cenas que não se ligam pelo tempo contínuo ou por um mesmo
espaço. Mas então surgiu algo na montagem que só muito precariamente era possível
fazer no teatro: fatiam-se as cenas e misturam-se seus pedaços uns entre os outros. Uma
ação deixa-se interromper repentinamente para outra ação se mostrar, a qual também é
interrompida para conduzir novamente à primeira, e se volta então à segunda, e assim
por diante. É um método cuja origem encontra-se no drama do teatro clássico, em que
muitas vezes, em cenas de guerra, uma ação saltava de um campo de batalha localizado
numa extremidade do palco para o outro lado. Só que, no cinema, este procedimento é
utilizado despreocupadamente porque, diferente do teatro que utiliza a área real do
palco para dividir as cenas, ele pode enfileirar elegantemente - e muito rapidamente -
um lugar diferente atrás de muitos outros lugares diferentes.
É muito mais ousado conduzir uma única situação unitária, fatiando a realidade
ao alterar a colocação da câmera dentro do ambiente; conduzindo-a para mais perto,
novamente recuando, e variando o conteúdo da imagem. O que nós presenciamos foi o
surgimento de uma escrita enérgica e emocionante possibilitada pela emancipação da
câmera.
Com a montagem, o cineasta ganhou finalmente um meio de expressão de
primeira linha capaz de registrar, dar forma, significado e profundidade de significação
às ações filmadas na realidade. Ele seleciona apenas aquelas cenas extraídas do decorrer
da trama que o interessam e mostra somente o mais importante das coisas e atitudes de
que ele dispõe nas filmagens, colocando-as lado a lado. Ele seleciona detalhes e deixa
outras coisas de lado. Já vimos exemplos deste tipo anteriormente.
Às vezes, tais imagens são consideradas na montagem de um modo que não
seria possível naquela sequência no mundo real, mas somente estabelecendo alguma
ligação abstrata ou artística ao se sucederem.
“Eu queria representar cinematograficamente a felicidade que um
prisioneiro sentiu ao receber uma notícia. A imagem do seu rosto feliz era
insuficiente. Mostrei então o movimento ansioso das mãos e um close da parte
inferior do rosto com o sorriso nos lábios. Juntei este material com alguns outros
materiais diferentes – planos de um rio correndo volumoso, a luz do sol refletida
nas águas, pássaros nadando em um lado e por fim o sorrido de uma criança.
Com esta composição foi apresentada a ideia de ‘alegria do preso’”.
(PUDOVKIN)

Pode-se questionar a eficácia desse tipo de montagem. A cena é do filme de


Pudovkin, “A mãe”. O autor argumenta que a fotografia do rosto radiante seria
insuficiente, o que é característico da visão russa sobre o material bruto anterior à
montagem, a matéria-prima10. E é muito questionável se a disposição do sorriso, do
ribeirão e dos raios solares é capaz de produzir uma clara noção de um pensamento
simbólico que unifique as ideias de “prisioneiro contente” e “criança feliz”. Na poesia,
isso é muito mais fácil de fazer, mas o é em razão de ser possível ali colocar os motivos
mais disparatados uns ao lado dos outros em palavras, sem chocar, visto que a
linguagem verbal tem uma representação muito mais vaga, mais abstrata. Mas, ao
mesmo tempo, é muito mais coerente quando liga uma palavra a outra, diverso do que
ocorre quando se liga uma imagem a outra muito diferente, o que causa muito mais
estranhamento. A unidade daquela cena, a história do prisioneiro que se alegra, é
interrompida pela introdução de outro ambiente, visto que a comparação e as
associações como de riacho e raios de sol não são apenas figuras abstratas, mas sim
recortes individuais da natureza com corporeidade e minúcias que se perturbam ao se
sucederem.
Independente do grau de eficiência desse exemplo, existe, em todo o caso, essa
possibilidade de montagem, e o que há de mais característico nela é que cada nova
tomada na sequência não pertence necessariamente ao mesmo tempo e espaço, mas só
mantém uma unidade de conteúdo abstrato. Não teria o menor sentido e seria indiferente
perguntar: “O rio correu depois que o rosto sorriu?” Ou: “A que distância estão os
pássaros em relação às crianças brincando?”. O trabalho do cineasta é dispor juntos
estes fatos de modo a levar o espectador a chegar ao pensamento desejado, ou seja, que
não fique pensando nas relações de espaço e tempo entre as cenas. Contra o uso feito
por Pudovkin, pode-se argumentar que a continuidade espacial da trama principal
parece ser quebrada pela montagem, isto é, torna-se fácil que o espectador confunda-se
e ache que o lugar dos acontecimentos mudou repentinamente de um riacho para as
crianças, enquanto ele deveria somente tentar abstrair um significado simbólico que não
tem nenhuma relação com o lugar dos acontecimentos.
Por outro lado, ocorre frequentemente que uma unidade espacial existente seja
fragmentada pela montagem. Um homem é mostrado e depois outro homem, mas não se
percebe que estes dois homens devem estar no mesmo espaço. O local da cena parece
ter mudado, e não é possível perceber que as duas personagens têm a ver uma com a
outra. Uma vez que a montagem recorta situações em que o tempo e o espaço são
comuns e mostra interligadas outras situações que podem ter tempo e espaço distintos,
ela corre o risco de que o processo não seja bem entendido pelo espectador, de que falte
a ele a noção da totalidade espacial e temporal, criando uma interpretação distinta
daquela que desejava o cineasta.
Pudovkin propôs cinco classificações da montagem num sistema que não parece
totalmente satisfatório porque deriva em parte do modo de cortar em parte do conteúdo
da cena e esses dois fatores não podem ser separados um do outro:
1 – O contraste. “É mostrado, por exemplo, o estado deplorável de um homem
faminto; este quadro será muito mais impactante se for contrastado com uma riqueza
desmesurada”. (Novamente aparece aqui a desvalorização do material anterior à
montagem). Nada é dito sobre a técnica de corte, sobre colocar uma depois da outra ou
sobre deixar seus motivos se sobreporem internamente na imagem.
2 – O paralelismo. “Este método assemelha-se ao contraste, mas vai além. Os
dois materiais de tipos distintos se revezam na imagem montada. Vê-se que a ordem
lógica é falsa. O contraste é uma técnica sobre o conteúdo, o método de paralelismo
recai sobre o modo de edição.”

10
O que se observa muito na teoria dos russos, mas pouco na sua prática visto que mesmo eles elegem
com cuidado imagens das quais e pode extrair rico sentido mesmo a partir do material bruto fotografado.
3 – Similaridade. “No final de ‘A Greve’, as cenas do assassinato dos
trabalhadores são intercaladas por cenas do abate de um boi no matadouro”. Esta
categoria volta-se bastante para o conteúdo. Ela é, a princípio, indiferentemente válida
se for utilizada na montagem por sobreposição ou colocando uma imagem após a outra.
(A primeira forma pode ser tida como mais eficiente!).
4 – Sincronismo. – Dois eventos mostrados sucessivamente mantêm uma
relação por ocorrerem no mesmo momento (Por exemplo, em “Burguesia”, de Schiller,
enquanto um amigo corre para casa, o outro é aprisionado. Percebe-se um paralelismo
em relação ao tempo. Somos tomados por um suspense: haverá tempo suficiente para
ele salvar o amigo?) Aqui surge um terceiro princípio a respeito do qual as três
classificações anteriores não faziam menção. Nos outros três métodos, nada havia sido
dito a respeito da continuidade temporal da montagem.
5 – Leitmotiv (tema recorrente). – “Se o autor pretende sublinhar um
pensamento fundamental do roteiro de modo especial, ele pode ser auxiliado pelo
método da repetição. A cena característica é colocada diversas vezes de forma parecida
no roteiro, como se fosse um refrão”. De novo, um problema puramente de conteúdo.
Não é um esquema muito bom de classificação... Timoschenko apresenta quinze
princípios da montagem. Vejamos:
1. A troca de lugar;
2. A troca do local da câmera;
3. Mudança de enquadramento;
4. Destaque dos detalhes;
5. Montagem analítica;
6. Flash-back;
7. Salto para o tempo futuro;
8. Acontecimentos paralelos;
9. Contraste;
10. Associação;
11. Concentração;
12. Alargamento;
13. Montagem monodramática;
14. Refrão;
15. Montagem.
Essa divisão não será aprofundada porque também possui lacunas. Trata-se de
uma simples enumeração de fatores, certamente incompleta e assistemática, alguns dos
quais não deveriam estar lado a lado, mas subordinados uns aos outros.
Vamos tentar apresentar uma outra divisão detalhada a partir dos sistemas de
Pudovkin e de Timoschenko.

OS PRINCÍPIOS DA MONTAGEM

I) Princípios de corte

a) Duração da unidade de corte

1) Trechos longos (cada uma das cenas montadas na sequência tem um


tamanho relativamente longo. Ritmo tranquilo.);
2) Trechos curtos (cada uma das cenas montadas na sequência tem um
tamanho relativamente curto. A sucessão cria um conteúdo agitado e movimentado.
Ponto alto da trama. Efeito de tumulto. Ritmo acelerado.);
3) Combinação de trechos curtos e longos (em uma cena longa,
intercala-se um par de trechos muito curtos. Ou o contrário. Ritmo acompanha a
variação dos tamanhos);
4) Trechos variados (colocação de trechos de distintos tamanhos na
sequência sem que se perceba um padrão. Ora correspondência longa, ora curta. A
duração depende do contexto. Não tem efeito rítmico).

b) Montagem da cena completa

1) Em sequência (a ação é apresentada até o fim. Então é posta uma


outra ação e assim sucessivamente.);
2) Paralela (as ações são recortadas em pedaços que são intercalados.
Troca da apresentação de uma para outra ação de modo intermitente.);
3) Insert. (apresentação de uma cena ou de uma imagem isolada no
meio de uma ação. Imagem embutida)

c) Montagem do conteúdo de uma cena

1) Combinação de planos gerais e closes (colocar no meio de um plano


geral, o que é um conceito relativo, um close.).
A) Primeiro um plano geral, depois um detalhe dele, ou vários
detalhes, como planos separados. A “concentração”, de Timoschenko.
B) De um detalhe, ou vários, para um plano geral que
contenha estes detalhes. O “alargamento”, de Timoschenko. Por exemplo, na página 89,
a cabeça da tutora e depois a sala de refeições.
C) Closes e planos gerais em sequência aleatória.
2) Sequência de planos de detalhe (nos quais nenhum dos objetos
encobre o outro). A “montagem analítica”, de Timoschenko. Um evento ou uma ação
mostrados somente a partir de pequenos detalhes. (Como no tópico b-1 da cena
completa, a montagem aqui também pode ser sequencial ou paralela, assim como pode
ser usada como inserts).

II) Relações de tempo

a) Sincronismo

1) Diversas cenas completas (a “montagem paralela”, de


Timoschenko, ou “sincronismo”, de Pudovkin.). Montagem em sequência ou paralela.
Na montagem em sequência, pode ser utilizada a legenda: “Enquanto ocorre isso em X,
em Y ...”;
2) Detalhes de um espaço captados no mesmo instante (colocação
na sequência do que ocorre ao mesmo tempo no mesmo lugar. Aqui se senta o homem,
ali a mulher, etc.). É a “montagem analítica”, de Timoschenko. Muitas vezes
inutilizável, em especial quando algo ocorreu e, portanto, não poderia acontecer de
novo, duas vezes, visto de pontos de vista distintos.

b) Antes e depois

1) Cenas completas que se sucedem. Mas também cenas colocadas


como inserts mostrando o que ocorreu anteriormente (“flash-back”) ou o que ocorrerá
no futuro (“previsão”). Uma provoca uma repetição do que já se foi, ou esclarecimento
do passado; a outra é um salto para o tempo futuro;
2) Desenvolvimento do conteúdo de uma cena. Sequência de
detalhes de fatos que se sucedem no tempo. Por exemplo, imagem 1: ele aponta o
revólver; imagem 2: ela corre.

c) Indiferença quanto ao tempo

1) Ações gerais que não se sucedem no tempo, mas que são


coexistentes. Eisenstein: tiros sobre a população montados junto com o abate do boi no
matadouro. O que ocorreu antes? E depois? Isso é indiferente;
2) Tomadas independentes que não mantêm relações temporais
uma com a outra. Raras em filmes dramáticos, mas comuns, por exemplo, em Vertov.
Exposição de diversas imagens;
3) Inserção de cenas numa sequência geral. Página 97: montagem
simbólica de Podovkin. Imagens inseridas sem relação temporal com a trama, só há
relação de conteúdo.

III) Relações espaciais

a) Mesmo espaço (em tempo distinto)

1) Para cenas inteiras: alguém volta, vinte anos depois, ao


mesmo lugar. Uso destas cenas em sequência ou montagem paralela;
2) Conteúdo de uma cena “de tempo comprimido”. Há um salto
no tempo de modo que se vê imediatamente o que se passaria depois de algum tempo.
Inutilizável porque quebra o raccord11 dentro da cena.

b) Mudança de lugar

1) Cena como um todo. Cenas em sequência ou montagem


paralela de lugares distintos.
2) Conteúdo da cena. Diversas visões do espaço apresentado.
c) O espaço é indiferente. O mesmo que no tempo indiferente, só que em
relação ao lugar.

IV) Relações de conteúdo

a) Similaridade

1) De forma
A) A forma do objeto (em “Os homens da Renânia do
Sul”: da barriga redonda do estudante passa-se a mostrar, com uma forma parecida, uma
montanha abaulada.);
B) A forma do movimento (do vai e vem do pêndulo
do relógio segue-se o movimento de um balanço no parque).

2) De conteúdo
11
A ligação verossímil, que aparenta ser uma montagem “correta” de um ponto de vista da naturalidade da
cena, de sua semelhança com a realidade.
A) De um objeto singular (montagem de Pudovkin:
preso feliz, riacho, pássaros nadando, criança feliz);
B) Cena como um todo (Eisenstein: os trabalhadores
são mortos, o boi é abatido.)

b) Contraste

1) Da forma
A) Da forma do objeto (um homem gordo e depois
um magrinho);
B) Da forma do movimento (depois de um
movimento rápido, outro lento);
2) De conteúdo
A) De um objeto (um desempregado faminto, uma
vitrine de doces em uma padaria).
B) Da cena como um todo (na casa dos pobres e na
casa dos ricos);

c) Combinação de contraste e similaridade

1) Similaridade de forma e contraste de conteúdo


(Timoschenko: os pés de um prisioneiro num castelo e as pernas de uma bailarina no
teatro; ou o rico na poltrona e o prisioneiro na cadeira elétrica).
2) Similaridade de conteúdo e contraste da forma (como em
“Buster Keaton em Sherlock Holmes Jr”: ele vê um casal se beijando na tela do cinema
e beija sua namorada na sala de projeção do filme.)

Essa exposição não pretende ser completa - e com certeza não o é. Ela deve ser
vista somente como uma estrutura que oferece uma visão panorâmica aproximada.
Pode-se acrescentar ainda algo aos enunciados no ponto IV: os trechos de filme
podem ser colados na montagem, como se observa frequentemente nas boas montagens,
de modo que eles não sejam somente adição de informações quando colocados lado a
lado, mas que acrescentem coisas distintas deles em razão da ligação estabelecida. Na
cena de Eisenstein, a simples exposição do assassinato das massas trabalhadoras,
combinada com a cena do abate bovino, gera um forte significado. O significado puro
de uma cena individual é transformado pela montagem. Se a figura de um homem muito
alto é mostrada depois da de um homem bem pequeno, o valor da altura do homem
maior, para o espectador, será muito diferente do que se ele tivesse sido mostrado só: a
altura é realçada pelo contraste. Mas é comum esta indução ir bastante além, podendo
até parecer que duas cenas em sequência constituem uma só, que quase não seja
percebida a separação entre o homem pequeno e o grande, a ponto de se pensar, em vez
desta oposição, simplesmente que o homem pequeno esticou-se. Vê-se um rosto gordo e
redondo e, logo a seguir, um estreito e longo, dando a impressão de que o primeiro rosto
afinou-se, tornou-se estreito e longo.
O mesmo tipo de fenômeno foi observado pela psicologia experimental.
Wertheimer escreveu um trabalho de pesquisa sobre “a visão do movimento”, no qual
ele coloca duas lâmpadas, separadas por poucos centímetros uma da outra, num quarto
escuro. Com a escolha correta da distância entre elas e do tempo com que irão piscar
alternadamente, dá-se a impressão ao observador de que não se trata de duas fontes de
luz separadas e próximas, mas sim uma única fonte que corre da esquerda para a direita
e retorna. Esta junção dos raios de luz, que são objetivamente separados, em uma única
percepção contínua observa-se também na montagem do cinema. Na verdade, o
fundamento que possibilita ver o movimento na imagem também parte deste princípio.
Objetivamente, as tiras de filme são constituídas por imagens estáticas e só se consegue
apresentar a impressão do movimento contínuo porque elas são projetadas uma sobre a
outra muito rapidamente e porque elas são quase perfeitamente iguais. O cinema tem
por fundamento a montagem de imagens individuais. Uma montagem despercebida.
Elevar este efeito a uma escala, por assim dizer, macroscópica, ou superior, explica os
efeitos que já foram agora discutidos. Se for mostrada uma imagem I com um rosto de
perfil e uma imagem II com o rosto de frente, surgirá para o observador a impressão de
que o rosto virou-se para frente.
Esse fenômeno já foi utilizado para obter efeitos estritamente artísticos. Há uma
famosa cena de Eisenstein que mostra um leão de pedra levantar-se e rugir. Esta cena foi
montada a partir da filmagem de três estátuas diferentes de leão. Primeira estátua: um
leão deitado. Segunda: um leão sentado. Terceira: um leão de pé que ruge e parece
irritado. É obtida, então, uma impressão muito forte, por intermédio desta montagem, de
que a pedra ganhou vida. Um efeito muito semelhante está em “Assim é a vida”, de Carl
Junghaus. Imagem I: um santo com os braços cruzados. Imagem II: um santo parecido
que eleva os braços aos céus. Efeito (com forte acento simbólico): o sagrado está vivo e
dá um sinal.
Esse princípio possibilita que a trucagem da montagem não se constitua num
simples enfileiramento de imagens de tempos e lugares distintos disparatados, e sim que
se forneça uma unidade tão forte da ação que nem se nota se tratar de montagem, e a
aparência construída é projetada como se fosse realidade. Se forem retirados alguns
quadros de uma película contínua que mostra uma pessoa caminhando, dar-se-á a
impressão para o espectador de que o caminhante foi jogado para frente, mas o mesmo
observador não percebe facilmente que esse efeito foi obtido pela colagem de imagens,
que são contínuas. Talvez nem seja bom chamar este tipo de colagem de montagem para
destacá-lo dos métodos anteriormente apresentados. A montagem no sentido apropriado
da palavra implica em que o espectador perceba nitidamente quando são colados trechos
de filme diversos: ela serve para combinar agrupamentos da realidade em torno de uma
ação. Já o exemplo dado a pouco não serve unicamente para unir situações
descontínuas, mas altera a própria natureza da ação contínua. Pode-se querer fazer
pessoas aparecerem do nada ou desaparecerem repentinamente (Chaplin usou este
truque, e também os surrealistas franceses, como René Clair, o fizeram: um homem
sacode a varinha mágica e o público desaparece). Pode-se também produzir uma
aceleração do tempo, por exemplo, no filme “Mercado em Berlim”, de Wilfried Basse,
em que há uma cena que mostra como as tendas vão se erguendo na praza vazia. O
efeito é obtido construindo-se uma imagem a partir de tomadas feitas de meia em meia
hora e colando lado a lado aquilo que na realidade demorou para acontecer, portanto se
veem as tendas surgirem rapidamente em poucos segundos, num passe de mágica, até
que a feira mostra-se totalmente montada. Contudo, esta “montagem despercebida”
também pode ser usada para construir cenas menos antinaturais. Seria possível que um
giro repentino da cabeça, um voo ou mesmo outras situações parecidas ganharem
vitalidade com a retirada de alguns quadros da película. Assim é possível criar
movimento para coisas imóveis, como já foi exemplificado acima no caso dos leões.
O exemplo mais elementar desse tipo de “montagem despercebida” e que já vem
pronto como princípio primário da filmagem, é o fato de o projetor mostrar rapidamente
os fotogramas estáticos da ação, uns após os outros, produzindo a crença de se ver uma
imagem da ação em movimento.

USO ARTÍSTICO DA PERDA DOS OUTROS SENTIDOS NÃO VISUAIS

Acima (pág. 41) foi comprovado como a perda da sensação de equilíbrio pela
gravidade e do uso dos músculos do corpo associada à visão determina uma diferença
entre a imagem sobre a tela, filmada por uma câmera, e a imagem do mundo, obtida
pelo olhar. Uma pessoa sabe responder em qualquer momento se seus olhos olham
horizontalmente, para cima ou para baixo. Ela sabe se os olhos e o corpo estão parados
ou em movimento, e ainda em que grau de velocidade se move). Ao contrário, o
espectador não sente qual é o posicionamento da câmera com que uma imagem de
cinema é feita e, portanto, ele assume a princípio que a câmera permaneça sempre
parada - a não ser que o conteúdo da imagem indique algo em contrário - e que ela está
posicionada na horizontal, direcionada em linha reta. Se um objeto move-se sobre a
imagem de cinema, o espectador acredita que ele objetivamente se moveu, mas não que
a câmera moveu-se em relação ao objeto que permaneceu estático. E, conforme as
coordenadas espaciais indiquem, ele sempre vai considerar que o que está no alto da
imagem é algo elevado no espaço, em vez de pensar que a câmera poderia estar
colocada numa certa inclinação.
Encontra-se o uso da “relativização do movimento” em cenas de “O Doutor
Mabuse”, quando a cabeça do malfeitor aparece sobre um fundo preto e cresce
repentinamente, pela aproximação da câmera, até ocupar a tela toda em tamanho
gigante, para demonstrar como esse homem misterioso é poderoso. Na filmagem, não
foi o rosto que se moveu na direção da câmera, e sim esta é que foi movimentada. No
filme russo “O documento de Shangai”, há imagens de uma corrida de cavalos. Elas
mostram cavalos montados por jóqueis na pista com inserts intercalados de uma
bandeira tremulando ao vento, a qual é muito interessante porque no pano está gravado
um cavalo a galope montado por um cavaleiro. A tremulação da bandeira pelo vento
parece dar vida ao desenho, porque o cavalo ocupa todo o campo (em close), não
deixando ver o que está ao redor da bandeira. Deste modo, a bandeira passa a se
assemelhar a um cavalo real em movimento, como se o desenho estivesse animado,
correndo, e a câmera corresse a seu lado, acompanhando o deslocamento - para assim o
desenho continuar sempre no centro da imagem. Um truque sutil, mas com um ótimo
resultado: a ilusão de uma ilusão. Para obter, a partir da imagem, a ilusão de que a
câmera se move acompanhando um objeto em movimento, a bandeira é filmada de um
modo muito específico. E o mais impressionante deste resultado é que ele é obtido a
partir de uma restrição do meio cinematográfico - que tem de ser sempre respeitado -,
ou seja, o espectador, na verdade, não sabe se a condição estática do objeto é real ou
somente relativa, visto que a bandeira poderia estar se movendo também. Enfim, este
resultado não é obtido a partir de um artifício de manipulação da realidade, mas sim a
partir da própria essência de algo do mundo, a ondulação de uma bandeira.
Em “Os quatro diabos”, de Murnau, há uma cena num circo: um cavalo branco
gira na arena num belo trote. A câmera segue o cavalo de modo a mantê-lo no centro da
imagem, mas como se estivesse parado porque suas patas não estão visíveis: aparece
apenas a parte superior do corpo. Tem-se a impressão de que o fundo gira, num
travelling panorâmico do picadeiro que muda o tempo todo para o espectador.
O movimento aparente da imagem, obtido por intermédio da movimentação da
câmera, foi utilizado por Pabst, na “Ópera dos três vinténs”, com muita propriedade
para ressaltar o caráter de fábula do seu filme.
Com a perda da sensação de equilíbrio gravitacional, a tomada em “perspectiva
de rã” também se torna particularmente poderosa. Se um homem é filmado de baixo
para cima, é possível perceber que a cena foi filmada com a câmera inclinada para cima.
Mas esta não é a primeira impressão da percepção da imagem: o espectador acha antes
que a imagem na tela é vertical e que é a pessoa que se encontra inclinada. Ela parece
não estar totalmente reta, e sim um pouco inclinada para trás, sua parte de baixo mais
próxima da lente e a de cima mais distante.

(AQUI ENTRAM AS FIGURAS 1 E 2)

A situação real é a da Figura 1: o homem AB está reto e o plano da câmera CD


está inclinado. Mas, como o espectador não sabe de antemão isso, ele pensa que o plano
da câmera é vertical (Fig. 2) e que o homem AB está inclinado para trás.
Esse efeito faz com que um ângulo de visão inclinado seja muito mais chamativo
e impactante na tela do que quando ocorre na visão das coisas do mundo, mesmo que
esta também seja uma visão inclinada.
Tal relatividade da localização da câmera em relação ao objeto pode ser
explorada para criar efeitos como o seguinte: uma pessoa em pé, totalmente na vertical,
(Figura 1, segmento AB) é filmada com a câmera na posição normal, horizontal, e sua
imagem confunde-se com a de um homem deitado que seja filmado a partir de cima
(Figura 2). As imagens destas duas tomadas apresentam-se na tela da mesma forma
(Figura 3), mas sabemos que essa verticalidade só é real na tomada da Figura 1, ou seja,
uma pessoa poderia ser vista como se estivesse de pé, com a cabeça no alto da tela,
mesmo que estivesse, na realidade, deitada (Figura 2). Esta falta de referência pode ser
aproveitada em diversas situações da ação para a construção de um sentido, por
exemplo, se um soldado em pé fosse mostrado em uma primeira imagem e fosse
substituído pela imagem de outra pessoa na mesma posição relativa da tela, mas que
percebemos depois se tratar de uma vítima da guerra, morta, deitada.
Uma “limitação” da técnica de filmagem, a incapacidade de perceber
diretamente a partir de uma imagem fotográfica as orientações espaciais corretas, serve
para construir um uso do efeito artístico.
A maior das deficiências do cinema mudo, para as pessoas que pouco entendem
sua linguagem, é justamente a falta do som. Elas acham que o cinema sem som ainda é
uma técnica desenvolvida somente pela metade, que ainda se encontrava incompleta.
Esta opinião faz o mesmo sentido que dizer que a descoberta de técnicas de pintura a
óleo tridimensional – cujas tentativas de resultado infeliz podem ser vislumbradas nos
quadros do grupo de Arthur Segal – deveria ser interpretada como o principal avanço de
toda a história das artes plásticas.
Foi diretamente da ausência de som que o cinema ganhou estímulo para
desenvolver possibilidades de efeitos artísticos preciosos. Chaplin escreveu em algum
lugar que, em nenhum dos seus filmes, há uma única cena em que ele falasse, ou seja,
que movesse os lábios. As demais personagens também o fazem raramente. Centenas de
situações diversas das relações humanas são representadas nos filmes de Chaplin, mas
nenhuma o obrigou a utilizar a faculdade tão recorrente na vida que é a fala. E ninguém
se deu conta disso antes que seu depoimento mostrasse quanto é surpreendente este fato.
Nos filmes de Chaplin, a palavra falada é substituída pela pantomima. Chaplin não diz
estar feliz pela visita de uma moça bonita, mas realiza a dança muda dos pãezinhos. Não
argumenta, ao contrário, luta. Ele demonstra seu amor com o sorriso, com um levantar
de ombros ou ainda levantando seu chapéu. Quando está no púlpito, não prega com
palavras, mas representa a história de David e Golias. Quando tem piedade, recheia a
carteira da moça pobre com dinheiro. Quando desiste, vai embora (cena final de “O
Circo”). Esta concretude óptica inacreditável de todas as cenas de Chaplin representa
boa parte de sua arte e não deve se esquecer disso ao dizer – como é dito com
frequência e sem nenhum fundamento – que os filmes de Chaplin não são realmente
“cinematográficos” (porque a câmera serve somente como instrumento de registro).
Já foi dado anteriormente como exemplo, em “As Docas de Nova York”, de
Josef von Sternberg, o tiro que se mostra a partir do voo dos pássaros. Um efeito assim
pode ser visto como um truque do diretor para superar de algum modo a limitação do
silêncio e então mostrar ao espectador, por meio deste recurso óptico que houve um
estampido. Mas ele vai muito além disso. Deve-se perceber que se trata de uma nova
forma de escritura, da qual resultam novos valores positivos artísticos. Esta exposição
indireta de uma situação da realidade pelo uso de um material diferente, em que não a
situação em si, mas apenas o seu desdobramento é mostrado, constitui o meio favorito
de todas as artes. Para citar um exemplo qualquer: quando Dante explica que Francisca
de Rimini apaixonou-se pelo homem com quem costumava ler, ele o faz com a frase: “E
naquele dia eles não leram mais”, ou seja, o faz de modo indireto, apresentando o relato
das consequências. Naquele dia, os dois se beijaram. E, por esta forma indireta, o leitor
impressiona-se mais.
Assim também a revoada dos pássaros é um recurso forte, mais forte
provavelmente do que seria ouvir um tiro de revólver. E outro fator ainda se segue: o
espectador não só percebe que houve um tiro, mas vê, com os próprios olhos, parte da
qualidade do ruído. A coisa ocorre de repente e o tipo de revoada indica uma analogia
ao impacto do estrondo que o tiro proporcionou. (Trata-se do mesmo mecanismo pelo
qual é possível transmitir sensação de alegria por meio de uma música sem ter de
mostrar um homem contente, mas sim através da vivacidade do som, da dança rítmica e
da melodia que têm características acústicas que indicam a felicidade como um estado
de espírito dinâmico). Em “Novos senhores”, de Jacques Feyder, há uma concentração
política num local público. Os ânimos acirram-se e, na tentativa de controlar a situação,
Suzane coloca uma moeda numa máquina toca-discos (junk-box): o local todo fica
iluminado pelo acendimento de inúmeras luzinhas do equipamento e a música passa a se
sobrepor ao discurso demagógico. Não se ouve a música, evidentemente, pois se trata de
um filme mudo. Entretanto Feyder mostra que o público que ouve o orador, de repente,
começa a relaxar os rostos, tranqüilizar-se, e, depois, que todas as cabeças começam a
balançar devagar num ritmo comum – e cada vez mais claramente - até que todos
estejam contaminados pelo balanço, que passa a controlar o vai e vem dos corpos, como
se obedecessem a uma voz de comando, até que o orador tem de ceder à musica. A
sequência mostra muito bem o poder que a música exerce sobre aquele grupo de
homens descontentes de um modo mais intenso pelo visual do que se ouvíssemos a
música. Demonstra visualmente que eles se unem, ficam de bom humor, e mesmo o tipo
de música que toca é representado diretamente pelo balanço, pelo ritmo. Chama a
atenção, numa cena dessas, com que facilidade e sagacidade o diretor tornou visível
algo que não poderia ser visto do ponto de vista óptico e isso engrandece efeito. Se a
música simplesmente surgisse, então o espectador seria apenas levado a constatar: “Ah,
toca uma música”. Já por este método indireto, as características especiais e profundas
da música são demonstradas – seu ritmo, o poder de união e comoção das pessoas, tudo
isso é destacado. Essas características assim apresentadas aparecem como a própria
música. Do mesmo modo, fica muito mais evidente o caráter repentino, explosivo e
perturbador do tiro transcrito em elementos ópticos porque todas essas características
são mostradas, e não somente o som puro do tiro. O filme mudo apresenta, pois, grandes
possibilidades artísticas por sua condição silenciosa: o que não pode ser dado em sua
forma original acústica é transposto num equivalente óptico e, em vez de apresentar
somente a situação tal como se dá na realidade com suas características, o filme mudo é
capaz de formatar a situação e de interpretá-la.
Dada a falta de corporeidade física, o cinema mudo não passa a sensação de uma
pantomima pura. A ausência do som não chama a atenção, a não ser em ações que
culminem em algo eminentemente acústico que não possa ser substituído e cuja falta
será sentida. Nas demais situações, só se dá falta do som quando já se está habituado
com o cinema sonoro. Portanto, a culpa de que se torne cada vez mais difícil, num
futuro qualquer, apresentar a fala de uma pessoa sem o respectivo som, por mais rica
que seja essa outra forma de expressão, recai diretamente sobre o cinema sonoro.
Quando se ouve uma pessoa falar, sua expressão facial e seus gestos passam a ser
somente um complemento ao sentido das palavras. Já quando não se ouve nada, mas
somente se vê o movimento dos lábios, a dinâmica da movimentação labial e a
contração dos músculos faciais, dos membros, do corpo, é a partir desses elementos,
indiretamente, que se entenderá o sentido da fala e a sua interpretação artística. A
expressividade do que se diz torna-se clara de um modo puro e direto que muito
dificilmente se deixaria perceber por intermédio da fala. Tanto o ator como o diretor
possuem um espaço de criação na distância entre a realidade e a interpretação sem som
para criar formar originais (a capacidade criativa do artista só pode se manifestar onde a
imagem do mundo e o meio de representação não sejam idênticos).
Um diálogo bem representado num filme mudo é algo bem distinto do simples
registro óptico de um diálogo real. Caso um diálogo seja filmado de qualquer maneira
num filme mudo, o espectador, na maioria dos casos, não perceberá o que se passou,
porque as expressões faciais e gestuais não serão suficientemente claras. Num diálogo
de filme mudo, os lábios deixam de ser parte do sistema que tem por objetivo
pronunciar os sons e passa a ser um meio de expressão visual. O modo de deformar a
boca, a velocidade do movimento dos lábios..., tudo isso constitui instrumentos de
expressão com um valor seu próprio, e não mais apenas um subproduto colateral da
produção do som. Frequentemente, observa-se como uma risada num filme mudo é mais
expressiva que uma de um filme sonoro. A inquietude da boca aberta em movimento
produz uma interpretação visual do ato de gargalhar cheia de vida e cheia de arte, que
perderia certamente seu encanto se esta abertura da boca fosse acompanhada do som
que emite. Numa ocasião, os cineastas russos utilizaram esta possibilidade do cinema
mudo de modo incomum e muito eficiente: a tomada do sorriso histérico de um soldado
enlouquecido era sucedida por outra da boca, com os dentes às mostra, do corpo de um
outro soldado morto pela inalação de gás.
Como consequência da ausência da palavra falada, aumenta-se ainda mais a
capacidade de observação do espectador sobre as expressões faciais utilizadas e, deste
modo, a ação chama uma atenção especial sobre si mesma. Frequentemente, as cenas
dos filmes mudos antigos são muito expressivas, mesmo que se trate, por exemplo, da
tomada de um vendedor vagabundo que oferece suas mercadorias e que usa gestos
grandiloquentes para anunciá-los. Caso ouvíssemos sua voz, a expressividade dos gestos
não teria nem metade de sua força, e a situação como um todo despertaria muito menos
interesse sobre si mesma. Tirando a palavra, os gestos são separados do sentido da fala e
fortalecidos em si mesmos por meio de suas características visuais próprias e podendo
chamar a si a condução da ação, porque as pessoas prestam atenção em tudo o que se
mostre de novo. Esta possibilidade nasce do fato de que o publico concentra-se no poder
de representação visual. Assim se dá que a simples supressão de um elemento da
situação real, no caso, o som, potencializa a apresentação artística da própria ação e a
fruição é ainda maior porque pode agregar a ela ainda uma beleza plástica.
Mas ocorre que, só muito raramente, uma simples imagem feita a partir de uma
situação real conseguirá representar um diálogo num filme mudo com a mesma eficácia
obtida no registro do trabalho de um vendedor ambulante, visto que este é naturalmente
acompanhado de gestos chamativos já em seu contexto natural. Serve como auxílio para
a obtenção deste resultado o fato de se poder aproveitar de um conjunto de cenas para a
seleção somente daquelas que sejam mais significativas, por meio dos cortes que
deixam expor somente imagens que ilustrem o diálogo. Mas este processo seletivo
também conduz, na maioria das vezes, somente a poucos casos acidentais de êxito. Daí
a dificuldade dos atores de teatro em se adaptarem às exigências do filme mudo, e
também a constatação de que as técnicas desenvolvidas por atores bem-sucedidos no
filme mudo sejam pouco adequadas ao palco cênico.

OUTRAS POSSIBILIDADES DA TÉCNICA CINEMATOGRÁFICA

1 – A movimentação de câmera
Até aqui a análise concentrou-se, na maioria dos casos, na câmera fixa. Mas bem
se sabe que a câmera pode ser montada sobre um carrinho, pendurada num cabo ou
elevada e girada para dar uma vista panorâmica ou de algo da situação. Pela
aproximação da câmera, o objeto torna-se maior e, ao mesmo tempo, aparece menos o
que está ao seu redor. Há a possibilidade de se conduzir, num movimento contínuo, uma
imagem em tomada geral para um close de um detalhe, sem que seja necessária uma
montagem. Assim como o contrário também se dá, o afastamento da câmera leva à
transformação do close em um plano geral.
A movimentação de câmera é útil principalmente quando o ambiente em torno
da ação não permanece o mesmo – diferente do que se dá no teatro mas também muitas
vezes no próprio cinema. Ocorre então uma inversão, em vez de um palco por onde as
personagens passam e se deslocam, surge, por assim dizer, uma situação em que as
personagens não se alteram no transcorrer da ação, o que passa a se modificar é o seu
entorno. A câmera pode acompanhar o herói, seguir com ele por todos os cômodos de
uma casa, subir as escadas, percorrer ma rua, sendo que o personagem permaneça
sempre do mesmo modo e no mesmo tamanho na imagem, enquanto é o ambiente quem
se altera, gira numa tomada panorâmica, muda permanentemente. Isso dá ao diretor um
recurso que seria muito difícil de conseguir no teatro, a possibilidade de mostrar o
mundo como um contraponto do indivíduo, colocando o homem no centro de seu
mundo. Portanto, uma experiência muito subjetiva que surge a partir da exposição de
elementos visuais.
É possível apresentar, deste modo, experiências marcadas por uma profunda
subjetividade, ou seja, produzir facilmente, por intermédio de uma movimentação
apropriada de câmera, uma simulação da visão de “tudo o que se apresenta aos nossos
olhos”, causando no espectador as sensações de enjoo, vertigem, incômodo, a impressão
de que ele se levanta, etc.
A câmera ganhou muita mobilidade com o surgimento dos tripés com
movimento articulado que, segundo o Dr. Nicholas Kaufmann, foi desenvolvido pelo
pesquisador americano Akeley para poder obter imagens mais estáveis do voo de
pássaros e da corrida de animais. Antes, os tripés só permitiam movimentos da esquerda
para a direita ou de cima para baixo. Todos os outros movimentos eram obtidos somente
pela combinação desses dois, por meio de uma manobra muito complicada envolvendo
duas manivelas (sem falar na terceira que rodava o filme). Hoje a câmera tem uma
simples manopla com a ajuda da qual é possível controlar qualquer movimento. Os
operadores de câmera ainda utilizam, para determinadas tomadas, câmeras muito mais
leves que podem ser sustentadas diretamente com as mãos.
2 - O filme montado na direção reversa
Ainda nos encontramos muito no início no que se refere ao uso de efeitos que
não sirvam para ser utilizados como meio de representação apropriada a um filme
realista, justamente por eles criarem um tipo de imagem que entra em conflito radical
com o que costumamos ver no mundo natural. Entretanto, eles oferecem extraordinárias
possibilidades para os artistas que não se contentam em servir simplesmente como
escravos da obrigação de se produzir uma imagem semelhante à do mundo real. Tudo o
que foi mostrado até aqui, em termos de meio de expressão cinematográfica, desde a
escolha do ângulo de filmagem até a montagem, pode ser utilizado em geral para
mostrar ao espectador uma imagem parecida com a da realidade (mesmo que
artisticamente escolhida e formatada), mas também se presta a produzir trucagens que
analisaremos a partir de agora, com as quais se podem produzir leituras plásticas a partir
da realidade, apesar de gerarem imagens que não dão a menor impressão de ser algo
real. Com uma câmera giratória ocorre que o espectador ainda possa pensar: quando
estou bêbado, vejo o mundo girar desta maneira. Já quando se trata de exibir um filme
em que tudo corre ao contrário - os carros andam para trás, as pessoas caminham de
costas, por exemplo -, qualquer impressão de que se trate de um acontecimento real
desaparece. Como os cineastas ainda hoje só se permitem, na sua grande maioria,
produzir imagens que possam ser consideradas pelo público em geral como verossímeis
(ou seja, que não entrem em conflito com o que ocorre no mundo real tal qual se o
conhece), todos estes recursos, obtidos por meio de trucagens que confrontem uma
aparência naturalista, são descartados, apesar de todo seu potencial artístico e criativo.
À exceção de curtos filmes humorísticos com sátiras de assuntos cotidianos
semanais quase não se encontra a projeção em direção reversa. Os seus potenciais ainda
não foram experimentados. Pode-se imaginar que um diretor que quisesse mostrar um
homem entrando de uma maneira afetada numa sala pudesse obter um bom efeito
filmando ele saindo de costas do lugar para projetar a cena ao contrário, o que resultaria
no avanço do homem. É certo que tal efeito só seria útil poucas vezes. Mas também é
possível brincar com os efeitos da força de gravidade também. Em um filme didático de
E. Beyfuss, se não estou enganado, foi mostrada uma cena em que um artista era
erguido céu acima por um paraquedas. A certa altura, o paraquedas fechava-se, e o
homem entrava de costas num elegante salto para cima, para dentro do avião. Era
naturalmente uma projeção em reverso. Exemplos como o de cacos que se unem para
formar um jarro inteiro ou das expressões faciais invertidas existem, mas só
conseguiram provocar riso, isto é, ainda não foram capazes de demonstrar força como
um recurso a mais para os artistas. Quando se pensa nestas possibilidades, segue-se a
sensação de que ainda estamos muito no início do desenvolvimento do cinema e de que
todo este potencial poderá ser desperdiçado se, por motivos econômicos, a evolução dos
filmes mudos de arte for interrompida. Deve-se ter a certeza de que o filme de arte
(aquele que não tem a finalidade de atrair o público) será elevado, muito cedo a um
estágio em que serão produzidos trabalhos herméticos para os quais não haverá a menor
possibilidade de se obter aceitação por um grande público. Isso não quer dizer que
deixará de crescer a produção de filmes naturalistas, mas que, em paralelo, evoluirá - se
os homens de negócio do cinema o permitir – uma produção de cinema de arte a partir
do fato de existirem potencialidade do meio que podem ser utilizadas para a produção
artística, resultando numa construção ficcional tão fantástica que possibilitará ver como
simplório o mais selvagem Futurismo da pintura do pós-guerra.
3 - O tempo acelerado
Se uma sequência de fotogramas for filmada a uma velocidade mais lenta do que
será projetada, ela irá comprimir o tempo, criando a impressão de que ele foi acelerado.
Este efeito de aceleração do tempo já foi utilizado, por exemplo, para caracterizar o
ritmo dos modernos meios de transporte: os carros atiram-se pelas ruas; as pessoas
avançam e se cruzam em longas filas, que andam com espantosa agilidade e fluidez; e
as folhas das árvores agiram-se nervosas. Este truque já foi muito utilizado pelos
diretores, como fez Eisenstein, em “A linha geral”, ao apresentar a lenta morosidade de
um escritório que é acelerada, repentinamente, por um murro violento na mesa, o qual
faz tudo começar a se movimentar como um raio: os funcionários disparam pela sala, os
selos e assinaturas irrompem sobre as folhas e, num instante, todo o serviço fica pronto.
Pode-se inserir, no meio de uma cena com velocidade normal, outra em que um
homem faça uma refeição muito rapidamente; e utilizar a aceleração nesta inserção para
obter um efeito qualquer. Mas a aceleração também pode servir para outras situações. A
filmagem de “Milagre das flores”, de I. G. Farben, não mostra nada além de tomadas,
com o tempo acelerado, das plantas. Contudo, a partir deste recurso, construiu-se
certamente um dos filmes mais comovedores, fantásticos e belos que já foram
realizados porque as tomadas revelam que as plantas possuem um movimento que não
percebemos a olho nu, uma vez que ele ocorre num tempo muito lento, embora
perfeitamente visível quando o tempo acelerado é utilizado. As plantas são
repentinamente trazidas à vida e mostram movimentos impressionantes que só estamos
habituados a ver homens e animais produzirem os movimentos respiratórios das folhas,
embalados por ritmos diversos; a dança agitada das folhas ao redor da flor; o modo
quase obsceno com que a flor se abre; etc. Ver como a planta tateia temerosa, incerta,
procurando um lugar onde suas raízes possam se apoiar, ou ver um cacto que vai
definhando e deixa cair sua cabeça, expirando quase que com um suspiro, trata-se da
descoberta de um novo mundo vivo, em um ambiente onde é certo que já se sabia tratar
de vida, mas que nunca foi possível perceber até então em sua riqueza de ação. As
plantas são elevadas a um outro patamar como seres vivos porque se vê que elas
possuem os mesmos princípios dos animais, as mesmas condutas, e os mesmos desejos.
Trata-se de um caso tão bem sucedido que não se podem esperar outras
utilizações tão felizes de um tal recurso. Mas sempre é possível que sejam feitas
descobertas semelhantes a partir de outros materiais inorgânicos. Já se fizeram algumas
experiências desta espécie com projeções aceleradas da formação de cristais e de pedras
de gelo.
O recurso também pode ser aproveitado pelo artista. Os russos mostraram como
é possível inserir tomadas abstratas no meio de filmes realistas, como o brilho de raios
de luz ou a precipitação efêmera, quase imaterial, de uma chuvinha. Deste modo, estas
tomadas espirituosas podem ser aproveitadas pelo menos como elementos de
montagem. Mas por que uma flor sobre o parapeito de uma janela não pode começar a
balançar suas pétalas repentinamente no meio de um filme de ação ou abrir seus botões?
Por exemplo, Jean Renoir em “A pequena vendedora de fósforos” utiliza uma rosa
florindo com aceleração de tempo, mesmo que com isso não crie nenhum sentido.
4 - A câmera lenta
Quando a película roda na câmera mais rapidamente do que será posteriormente
projetada obtém-se um prolongamento do tempo, de modo que, para reduzir um
movimento a 20% de sua velocidade, basta expor cinco vezes mais fotogramas
registrando o acontecimento. Este recurso chamado de câmera lenta foi até agora mais
utilizado em filmes didáticos para expor os detalhes dos movimentos imperceptíveis a
olho nu em cada fase: analisar os menores detalhes da técnica de um boxeador, de um
violinista, da explosão de uma granada, do salto de um cão. A câmera lenta é muito
raramente utilizada com finalidades artísticas, apesar de ser muito rica em
possibilidades porque pode ser utilizada para mostrar uma drástica redução na
velocidade dos acontecimentos reais e, além disso, porque pode construir novos tipos de
movimento que não parecem simplesmente constituírem um movimento natural
desacelerado, mas sim algo completamente distinto, escorregadio, flutuante,
sobrenatural. Para criar a impressão de alucinação ou de algo fantasmagórico, esse tipo
de recurso é muito eficiente.
Da mesma maneira como a câmera acelerada, é preciso estudar que tipo de
resultado é possível produzir com câmera lenta quando ela reduz a velocidade de
expressões faciais de um ator e se o material resultante teria um bom uso como
ingrediente da montagem. Que aspecto assume em câmera lenta, por exemplo, um rosto
que repentinamente assume um aspecto de terror ou alegria? Mesmo com sua utilização,
seria possível construírem-se efeitos que não fossem percebidos pelo espectador como
retardamento de um movimento objetivo da realidade, mas que se apresentassem na
forma de algo visto como um “movimento totalmente original”. (Alguns diretores têm
feito experiências de uso de câmera lenta. Novamente Pudovkin foi um dos pioneiros,
no seu filme “O mundo é belo”, em que se apresenta, em câmera lenta, um sorriso de
criança que se prolonga vagarosamente num longo close-up).
Em “Entreato”, um filme surrealista, vê-se um carro fúnebre fugir do cortejo que
o segue a pé. O carro dispara pela rua e as pessoas o seguem em câmera lenta: muito
lentamente elas elevam seus pés do chão, como se estivessem atoladas nele; mexem
lentamente as cabeças; e os braços giram, como pêndulos, para frente e para trás numa
lentidão desumana. Isso gera um terrível efeito cômico no qual mal se percebe que a
imagem seja um movimento desacelerado de uma ação comum, porque se assemelha
muito mais a uma caricatura da corrida.
5 - A imagem congelada
A imagem fixa da fotografia comum não é algo, no fundo, tão diferente assim da
imagem animada do cinema como se poderia imaginar na prática, e é possível utilizar
imagens fixas de outros modos diversos além dos cartazes dos filmes ou para ilustrar as
revistas de cinema. A inserção de uma imagem fixa no meio do curso do filme resulta
num forte efeito, sobretudo porque o fluxo de tempo que é constante nas cenas acaba
por radicalizar a rigidez da imagem fixa, montada em meio a ele, de modo que a
interrupção do tempo parece ser fantasticamente petrificadora. E visto que o tempo
contagia esta imagem, a paralisação ganha um valor de movimento, ou seja, de um
movimento paralisado. Na observação de uma única fotografia, esta sensação de
paralisação quase nunca ocorre, pois a foto não e vista a partir de um ponto de vista
temporal. Mesmo o tempo que transcorre quando observamos a foto também não é visto
como intervalo de tempo, por não se relacionar com o tempo da ação mostrada pela
imagem. Uma imagem fixa no meio do filme funciona como a praga de Deus sobre a
mulher de Lot. No filme “Pessoas num domingo” (Filmstudio, 1929), surge um
fotógrafo na praia. Passamos a ver as pessoas que ele enquadra na máquina, mostrando
a parte superior do corpo, e, embora eles estejam inicialmente se movendo no filme,
repentinamente elas ficam imobilizadas como se fossem retratos. As pessoas começam
se movendo, sorrindo e, repentinamente, como num passe de mágica, são congeladas e
se mantêm sem movimento, aprisionadas por alguns segundos.
O efeito particular que se obtém com a inserção de uma imagem fixa no meio de
uma sequência não pode ser alcançado com a filmagem de um ator que interrompa, de
repente, seu movimento e permaneça como que congelado naquela posição. Primeiro,
porque há uma diferença perceptível entre esta interrupção, por meio da interpretação
artística, e aquela total rigidez de uma imagem fixa. Segundo, porque o ator só poderá
interromper o movimento em determinadas posições apropriadas, pois ninguém
conseguiria manter-se completamente parado numa posição absurda como aquela que a
fotografia consegue obter sem depender da vontade do intérprete ou das leis físicas do
movimento dos objetos fotografados.
6 - Fade-in, fade-out e dissolve
O fade-in inicia-se com a tela escura e a imagem vai aparecendo gradualmente.
O fade-out é quando a imagem está na tela e vai se escurecendo até a tela ficar escura. O
dissolve é um tipo de transição entre imagens em que a primeira imagem vai sumindo
para dar lugar à outra, que fica cada vez mais nítida.
Para evitar transições bruscas de uma imagem para outra, a transição pode ser
feita lentamente, surgindo a partir de uma tela escura, ou ir desaparecendo aos poucos
até que a tela escureça. Esse efeito pode ser construído na própria gravação por
intermédio do uso da íris, o controle da abertura da lente, que pode ser aberta ou fechada
lentamente, mas também pode ser conseguida por meio da manipulação de um negativo
filmado normalmente. O fade pode ser utilizado para representar uma experiência
subjetiva de uma pessoa, como se a imagem mostrada fosse o que a pessoa vê em
relação à ação, por exemplo, para mostrar que ela acordou ou que adormeceu. Mas é,
sobretudo, como recurso de transição entre imagens que ele é mais poderoso, visto que a
montagem direta de imagens, na maioria das vezes, é entendida como se as duas
imagens pertencessem a um mesmo intervalo de tempo e que não é fácil tornar claro se
uma cena terminou nem se a próxima imagem já se refere a um outro local. Com o uso
do fade-out, o espectador tem a impressão de que houve uma ruptura, como se uma
cortina de teatro fosse baixada e, quando surge um fade-in, espera-se que venha algo
totalmente novo.
Pelo nome de dissolve é chamada uma transição gradual entre duas imagens. Ele
não é o resultado de uma montagem direta, como entre um trecho de um filme e outro,
mas sim de uma sobreposição em que a primeira imagem vai se tornando menos visível
lentamente enquanto a segunda vai se tornando cada vez mais perceptível até cobrir
inteiramente a imagem anterior. Este efeito também pode ser obtido por meio do
controle de íris ou pela manipulação química do negativo. E também serve como o fade
para deixar claro que houve uma transição entre duas cenas, porque esta transição
gradual destrói a ilusão de se tratar de um tempo contínuo e de um espaço comum, já
que produzir, por assim dizer, uma sobreposição visual de tempos e espaços só é
possível se esses espaços e tempos forem diferentes. Nunca se poderia sobrepor algo
que constituísse um contínuo no tempo e no espaço. O dissolve mostra um contraste de
coordenadas temporais ou espaciais e não é possível extrair delas uma única cena
comum com espaço e tempo contínuos à cena anterior.
O dissolve serve muitas vezes para tornar mais vigoroso o efeito da montagem
em contraste ou similaridade (Pág. 103), porque, quanto mais natural, tranquila, ou
menos abrupta for a transição entre duas imagens, mais se torna enfática a relação entre
seus conteúdos (seja de similaridade ou de contraste). A conexão revela-se com mais
intensidade. Podem-se dissolver duas cenas a partir do princípio de similaridade, de um
modo que se construa uma zona neutra de transição abstrata, mostrando o que há de
comum entre elas, por exemplo, um balanço comum e uma imagem de pêndulo de
relógio com as oscilações de um balanço infantil.
7 - Sobreposição. Montagem simultânea.
O dissolve está a um passo apenas da exposição de mais de uma cena sobreposta
na imagem. Este efeito já era conhecido da fotografia, quando se obtém uma
sobreposição pela múltipla exposição do negativo a diferentes motivos, mas, no cinema,
resulta num efeito ainda mais poderoso. É um método eficiente de representar o caos e a
confusão. Foi usado diversas vezes em cenas de trânsito nas ruas para produzir a
sensação de burburinho bem característica da situação.
Mas também é possível obter outros efeitos a partir dela. Na cena de “Novos
Senhores”, de Feyder, apresentada no capítulo III, o conflito entre o discurso político e a
música da máquina precisava ser demonstrado. Feyder sobrepôs o close do orador que
gesticula alvoroçado na direção da pianola automática e outro close do interior da
máquina onde se vê um instrumento de percussão: uma baqueta sobe e desce percutindo
o instrumento. Dada a sobreposição, atinge-se não só o couro do instrumento, mas
também a cabeça do homem. O que era um confronto nos planos puramente do acústico
e do contexto narrativo passou a ser visto do ponto de vista estritamente óptico. E
mesmo que as duas cenas se encontrem na realidade no mesmo espaço, em virtude de
não apresentarem uma congruência espacial como closes separados e sobrepostos, elas
podem ser confrontadas abstratamente para se atingir a relação desejada, sendo
projetadas artificialmente uma sobre a outra. A palavra “artifício” evidentemente não
deixa de carregar uma certa dose de desprestígio presente no uso deste recurso por ser
antinaturalista.
Deparamo-nos muitas vezes com a agitação de uma festa representada pela
sobreposição das imagens dos convidados dançando e dos músicos tocando. Se essas
tomadas fossem montadas uma em seguida da outra, seriam interpretadas muito
certamente pelo espectador como a simples apresentação da situação: o diretor deseja
mostrar que um conjunto musical toca ali e que pessoas dançam. Mas a sobreposição é
um meio apropriado de acrescentar às cenas comuns um conteúdo extra não só com o
fim de esclarecimento dos acontecimentos, mas também de acrescentar sentimentos e
novos significados.
Este recurso, apesar de ser cômodo, soa algo artificial. Isso se percebe quando o
comparamos com os efeitos de mudança de ângulo de filmagem apresentados na Página
50 e nas seguintes. Lá se vê como são construídas relações entre objetos ou situações,
pelo enquadramento do conjunto de um certo modo ou pela cobertura parcial de um
objeto por outro, sem violentar o que está dado na realidade, porque esses objetos e
situações só precisam de um enquadramento apropriado para que a relação se estabeleça
sem qualquer interferência na disposição original das coisas em sua realidade e sem
destruir as relações espaciais originais dos lugares. Por exemplo, a sobreposição
perspectiva do prisioneiro e das grades. É preciso, primeiramente, concordar que a
sobreimpressão de duas películas para obter o mesmo efeito daria uma sensação de
corpo estranho na imagem resultante, de que o material da grade interferiria em
desacordo com o restante da imagem - o que não seria apropriado a um filme de ação de
estilo realista. Em segundo lugar, o valor artístico da cena parece ser maior quando se
acrescentam sentido e forma sem ter de manipular os materiais no set. Por isso, o
resultado é mais elegante e mais surpreendente (dois conceitos que, sobretudo para a
valorização de uma obra de arte, não são supérfluos como muitos consideram). O poder
abstrato que o cineasta constrói a partir de sua imagem, com o uso dos meios de
expressão cinematográficos, não deve surgir de fora dos meios como uma deformação,
mas é sim mais poderoso quando surge dos próprios meios, agrupando de maneira
apropriada os elementos da realidade sem interferir no material com o qual conta. Com
a sobreposição de películas, tem-se frequentemente a impressão de que o sucesso do
cineasta foi alcançado de um modo fácil demais, o que não quer dizer que só o
complicado seja mais belo do que o simples – muito pelo contrário.
À semelhança da sobreposição de fotogramas, a “montagem simultânea” pode
ser também utilizada com bons resultados. Queremos chamar por este nome a colocação
de duas cenas lado a lado no interior de um mesmo quadro. Sua primeira utilização foi
bastante questionável do ponto de vista artístico, voltada para mostrar lembranças do
passado, pensamentos. Os heróis mostravam-se pensativos e, repentinamente, surgia no
canto, no alto da imagem, numa forma arredondada, o conteúdo do que eles pensavam.
Este método é muito pobre, porque o caminho da ideia até sua forma de representação
visual é muito direto e não apresenta qualquer relação com o que acontece no mundo
real, já que as imagens não ficam surgindo da cabeça dos outros para que possamos ver.
“Um homem pensa em sua esposa” é um tema abstrato que não pode ser facilmente
mostrado visualmente sem ganhar uma concretude. Poderia se recorrer a uma situação
em que o homem contemplasse a fotografia dela, tornando a situação clara. Trata-se de
uma opção que não é minimamente original, mas é uma forma de tornar algo abstrato
concretamente visível. O recurso da montagem simultânea deveria implicar no esforço
de se encontrar na realidade uma situação concreta que tornasse compreensível aos
olhos do público o tema abstrato da cena. Duas coisas são colocadas lado a lado, de
modo a sugerir uma relação entre elas, e mostra-se assim, de uma forma visualmente
perceptível, algo a respeito do assunto, mas isso sempre se dá de modo pouco criativo e
artificial. Esta impressão ainda marca a maioria das tentativas que foram feitas com este
recurso. Quando Eisenstein, em “A linha geral”, faz aparecer a imagem de um enorme
touro sobre a imagem de vacas, fica a sensação de que a força expressiva desta cena, em
comparação com outras soluções do mesmo diretor dentro do campo do naturalismo,
seria mais banal e de que seu efeito nasce muito mais da consequência do tema em si do
que da composição visual utilizada. Embora se tenha construído uma tomada
nitidamente simbólica, é certo que o pensamento resultante depende pouco da sua
disposição e forma em relação ao restante da situação.
A montagem simultânea é muito mais impressionante quando não atribui sentido
a partir de uma simples exposição do conteúdo, mas sim de sua configuração formal.
Vertov mostrava uma mesma cena duas ou três vezes sobreposta em uma única imagem,
como a passagem de um mesmo bonde mostrada três vezes na superfície da tela, o que
resultou num tipo de desenho geométrico que não deixa de ter valor.
Nos exemplos de montagem simultânea mostrados até agora, era fácil para o
espectador percebe-las como tal, ou seja, ele podia sentir imediatamente que diversas
imagens distintas combinavam-se num conjunto. Mas é possível montar a sobreposição
de um modo a conduzir o observador à ilusão de estar frente a algo que, na realidade,
não existe. Por exemplo, através da possibilidade de mostrarem objetos duplicados,
como na cena de uma pessoa que dialoga com ela mesma. Este tipo de montagem é feito
quando duas gravações distintas são feitas separadamente e juntadas muito
apropriadamente, de modo que não se perceba resultar de uma sobreposição. Este
processo passou a ser utilizado com mais frequência nos últimos tempos para permitir
aos astros do cinema desempenharem mais de um papel. Houve uma comoção quando
Henny Porten, como uma serviçal severa, conversou com a patroa, a dama Henny
Porten. “Olha só... diziam... ela não só consegue interpretar qualquer papel como
interpreta mais de um papel ao mesmo tempo!” Paul Morgan cantou em um musical de
Hollywood um dueto consigo mesmo. A utilização artística da duplicação foi feita ainda
não só por Conrad Veidt, em “O estudante de Praga”, como no filme de Friedrich
Ermler, “O homem que perdeu a memória” (Sowkino). Neste, há uma batalha
simbólica: um soldado alemão e um russo atacam-se com baionetas, mas vem o close e
mostra que ambos têm o mesmo rosto (os dois são representados pelo mesmo ator). Eles
se reconhecem e deixam as armas de lado. Então, os generais russo e alemão ordenam
que se retomem os combates, mas os ajudantes aos quais eles dão suas ordens têm
também o mesmo rosto dos soldados. A loucura da guerra que leva o homem a lutar
contra o próprio homem porque carrega um uniforme diferente, nunca havia sido tão
bem representada. “Em todos os homens há algo em comum, um parentesco” – esta
frase abstrata é concretizada mediante a criação de uma realidade ficcional na qual esta
generalidade é mostrada visualmente de modo primoroso. Todos eles têm o mesmo
rosto e as diferenças dos uniformes se tornam fúteis e absurdas frente ao que os olhos
percebem nitidamente a partir da igualdade dos rostos.
8 – Lentes especiais
A visão múltipla a partir de um mesmo objeto pode ser obtida diretamente sem a
necessidade de montagem com o uso de lentes especiais e prismas. As possibilidades de
uso destes meios não parecem ser muito promissoras. Um mesmo rosto pode ser
fragmentado em cem pequenos rostos, pode ser deformado, mas se trata de um efeito
especial rígido que abre muitas poucas possibilidades e que rapidamente passa a ser
visto como esquemático e gasto. É isso que se vê em “Canção da Vida” de Granowsky,
quando diversas imagens iguais de taças de champanhe, bebês e caveiras ocupam a tela
para criar um simbolismo. A trucagem parece estereotipada, mecânica e facilmente
risível.
Sem montagem ou uso de lentes, Chaplin conseguiu dividir um homem em
várias imagens de modo surpreendente e engraçado na cena do labirinto dos espelhos
em seu “O Circo”
9 - Imagem fora de foco
A imagem fora de foco era encarada antigamente somente como um erro. Mas os
diretores aprenderam a utilizar muitas destas “falhas” para alcançar determinados
objetivos.
Inicialmente, de modo similar ao fade-in e ao fade-out, para deixar uma imagem
ir surgindo de ou desaparecendo em um borrão. Muitas vezes a indefinição ou a
dificuldade de entender do que se trata uma imagem lhe confere um atrativo. Não se
percebe bem o que está para ocorrer, pode-se lançar em especulações, mas, de repente, a
imagem se torna clara e mostra algo surpreendente. Em “A linha geral”, de Eisenstein, a
primeira visão que temos de uma máquina misteriosa ao redor da qual gira toda a trama,
uma centrífuga de leite, é feita a partir de um borrão fora de foco em close-up e o ajuste
lento do foco mostra-nos pela primeira vez e claramente, sua aparência, o que
desemboca num efeito muito forte. Só se percebe a princípio o brilho de luzes sobre
uma superfície – o reflexo das lâmpadas sobre o alumínio polido da máquina –, mas o
foco vai se ajustando até apresentar a centrífuga como se ela surgisse a partir de uma
nuvem12.
A falta de foco serve ainda para criar uma visão subjetiva de um campo visual
embaçado, como quando se quer mostrar como um bêbado ou um drogado está vendo as
coisas. E, do mesmo modo, ela pode ser usada, assim como o close, para focalizar
detalhes de um objeto, deixando o restante da imagem fora de foco, como se se tratasse
de algo que estivesse muito distante. Já que a câmera mostra apenas uma certa
profundidade de campo no foco, é possível alterar o foco do primeiro plano para o
fundo, ou vice-versa, para criar uma espécie de diálogo que leva a atenção do
espectador para o plano mais próximo em que se encontra um homem, por exemplo,
para o plano mais distante em que se coloca outra personagem, de modo que o diretor
possa controlar o olhar do espectador ora para uma ora para outra personagem.
10 - Imagem refletida
Por fim é possível mostrar a realidade por meio de seu reflexo em materiais que
sirvam como espelho, o que se torna muito interessante quando feito de modo que o
observador não percebe estar vendo uma imagem indireta da situação. Esse recurso
12
Efeito semelhante também foi usado por Wilfried Basses na primeira cena de “A óptica I, 4” com uma
imagem de uma propaganda em um luminoso.
pode ser obtido numa filmagem do reflexo de uma personagem em um espelho d´água,
por exemplo, já que o espectador não terá como saber se a câmera foi montada numa
posição tal que o reflexo mostre-se como uma pessoa em pé, ou seja, diretamente
voltada para a personagem na realidade (por se tratar de filme preto e branco será mais
difícil perceber alguma diferença de tonalidade do reflexo e, por causa do achatamento
da profundidade, característico da imagem cinematográfica, não se perceberá a
diferença entre a profundidade do espaço real e a planura do espelho onde a imagem
reflete). O espectador acreditará ver uma tomada real da situação e, de repente, a água
pode ser agitada de modo que o reflexo se desmanche até sumir por completo, tornando-
se irreconhecível. É fácil encontrar materiais que possibilitam esse tipo de composição
de modo bem original. E esse efeito pode ser usado, mesmo que não houvesse água
nenhuma em cena, como um recurso para apresentar a ideia abstrata de que uma pessoa
real, de carne e osso, desfaz-se como uma caricatura trêmula - ou também como uma
alucinação (uso feito por Granowsky em “Canção da Vida”).
Outra possibilidade é fotografar um objeto refletido num espelho. O espectador
acredita ver, novamente, uma imagem direta - filmada diretamente a partir do objeto -,
segue a ação, e, de repente, surge uma pedra que estilhaça o espelho, destruindo aquilo
que o observador pensava ser o mundo real e criando um choque óptico muito forte.
Também é possível usar espelhos que deformem, um efeito que pode ser ainda
muito mais poderoso do que o de uma sala de espelhos num parque de diversões ou
num labirinto, ou mesmo o de uma taça de café niquelada, caso ela consiga refletir algo
sem que o espectador perceba se tratar de uma imagem refletida, mas uma deformação
de algo real.

QUADRO DOS MEIOS CRIATIVOS DA CÂMERA,


DA EDIÇÃO E DA MONTAGEM

Para responder ao argumento predileto dos adversários do cinema de que o filme


é uma cópia mecânica da realidade e não pode ser arte, nós analisamos diversos
aspectos da representação cinematográfica e mostramos que, desde seus princípios mais
básicos, a imagem de cinema é bastante diferente da que os olhos humanos captam
como uma imagem da realidade - diferenças que já se iniciam desde quando uma pessoa
coloca a câmera num lugar qualquer e passe a utilizá-la. Não só as diferenças existem,
mas também podem ser utilizadas como fonte de uma construção artística da realidade,
de modo que o que se considera uma “deficiência” da técnica cinematográfica (e que os
técnicos estão tentando contornar na medida do possível), na realidade, é o seu principal
trunfo que possibilita a utilização artística do filme.
Para maior clareza e unidade, vamos apresentar uma síntese das características
da filmagem e de suas possibilidades de uso num breve resumo:
1- Todo objeto deve ser filmado a partir de um certo ponto de vista
a) Enquadramento que mostre a forma característica do
objeto
b) Enquadramento que transmita uma visão particular do
objeto (perspectiva de rã: passando ideias de força e grandeza);
c) Enquadramento que chame a atenção do observador por
ser incomum;
d) Efeito surpresa resultante da exposição de parte de um
objeto originalmente encoberta (Chaplin chora? Não. Faz uma batida.).
2- Os objetos colocam-se lado a lado ou um cobre o outro por efeito
da perspectiva
a) Pelo recorte ou cobertura, o desimportante fica fora de
vista, destacando a importância do que está no campo;
b) Efeito surpresa resultante da rápida descoberta do que
estava fora da vista por estar encoberto;
c) Um objeto engole outro visualmente: um objeto coloca-se
na frente de outro, retira-o de cena;
d) Construir uma relação entre objetos colocando-os lado a
lado em perspectiva (preso e grades da cadeia);
e) Valorização plástica da tela de cinema.
3- Tamanho visível, o que está na frente é grande e o que está atrás é
pequeno:
a) Destaque de uma parte do objeto (as botas filmadas de
perto se tornam gigantescas);
b) Ampliação ou redução do tamanho do objeto para
representar visualmente o poder ou falta de poder. Mobilidade e
relatividade dos tamanhos.
4- Divisão entre o iluminado e o que fica na sombra. Ausência de
cor:
a) Modelagem da textura e do contorno de um objeto a partir
da disposição das luzes e sombras;
b) Destaque, agrupamento, separação ou ocultação dos
objetos por intermédio da disposição de luzes e sombras.
5- A limitação do campo
a) Seleção do que é mostrado;
b) Planos de detalhe e close-up;
c) Efeito surpresa: algo que não era mostrado entra de
repente na imagem. Algo que já estava ali mas se encontrava encoberto,
fora do campo da câmera;
d) Criação de suspense. O ponto central da trama fica no
extracampo (por exemplo, só se percebe que algo acontece, mostrando-se
a reação de alguém ao fato).
6- A distância em relação ao objeto é variável:
a) Close e plano geral;
b) Escolha da melhor distância para mostrar um objeto ou
situação (diferente enquadramento para mostrar um alfinete ou uma
montanha);
c) Relatividade da dimensão de tamanho (casa de bonecas ou
casa de pessoas).
7- Ausência da continuidade de tempo e espaço. Montagem:
a) Apresentação em sequência ou em montagem paralela de
dois eventos com temporalidade distinta;
b) Sequência de dois lugares distintos;
c) Caracterização de um espaço comum pela apresentação de
suas partes;
d) Composição de uma ideia (simbólica ou intelectual) ou de
uma forma por colocar lado a lado coisas que estão em lugares sem
qualquer relação;
e) “Montagem imperceptível”. Iludir ao se construir uma
realidade modificada, fantástica (súbitas aparições ou desaparecimentos
etc.);
f) Ritmo das sequências ditado pelas sucessões de cenas
longas ou curtas.
8- Ausência da sensação gravitacional do espaço:
a) Relatividade do movimento. Coisas paradas parecem se
mover, e as que se movem parecem estar paradas;
b) Relatividade das orientações espaciais (a dificuldade de
saber se algo está na horizontal ou vertical, etc.).
9- Compressão do espaço e da profundidade espacial:
a) Realce das deformações perspectivas (ver também 3);
b) Realce da colocação em perspectiva de coisas lado a lado
(ver também ponto 2);
10- Ausência do som:
a) Realce do que é visto, por exemplo, da expressão facial;
b) As características e efeitos do som podem ser
transportados para formas visuais (tiro e revoada de pássaros).
11- O movimento de câmera:
a) Representação de impressões subjetivas como queda,
elevação, balanço, enjoo, etc.;
b) Representação da subjetividade com a colocação do
indivíduo sempre no centro do mundo (da situação).
12- Projeção reversa
a) Inversão da direção do movimento
b) Inversão da sucessão dos acontecimentos (cacos se unem
num vaso inteiro)
13- Tempo acelerado
a) Aceleração de um acontecimento ou de uma ação,
alteração de suas características dinâmicas (rebuliço);
b) Compressão de longas durações (a respiração das plantas).
14- Câmera lenta:
a) Prolongamento visual de um movimento ou de uma ação,
alteração de suas características dinâmicas (atração, deslizamento);
b) Dilatação do tempo (dar visibilidade a ações muito
velozes).
15- Uso de imagens fixas:
a) Interrupção brusca do movimento, paralisação (mulher de Lot).
16- Fades e fusão:
a) Ruptura para distinguir cenas;
b) Impressão subjetiva: acordar, adormecer;
c) Fortalecer o contato e a coerência de imagens em
sequência.
17- Sobreposição de negativos:
a) Sensação de caos e de confusão;
b) Construção de relações por meio da proximidade das
imagens ou da sua sobreposição;
c) Indicação de semelhanças simbólicas;
d) Modificação da realidade (atores contracenando consigo
mesmos).
18- Lentes especiais:
a) Multiplicação das imagens, distorção.
19- Exposição fora de foco:
a) Sensação subjetiva: acordar, adormecer;
b) Criação de suspense: exposição lenta (algo surge aos
poucos);
c) Comando sobre o deslocamento do olhar do espectador
para o plano mais próximo ou para o fundo.
20- Fotografia de reflexos ou espelhos:
a) Destruição da imagem, deformação dos objetos do mundo
refletidos ali.

Conduzimos essa sistematização sobre o que a câmera registra, seja qual for o
objeto mostrado, o tipo de situação, o tipo de decoração e cenário, ou como o ator foi
maquiado, mostrando as possibilidades ilimitadas que os recursos de filmagem em si
possuem para formatar e representar a realidade. O cineasta escolhe uma determinada
situação que ele pretende filmar: ele pode deixar fora do campo gravado, a partir deste
local, alguns objetos; pode encobri-los ou mesmo colocar outros em evidência (e sem
precisar recorrer a qualquer interferência direta no ambiente e na disposição do que está
contido naquele pedaço de realidade). Ele pode aumentar ou diminuir o tamanho de
algo, pode mostrar o pequeno em tamanho maior do que o grande e o grande em
tamanho menor do que o pequeno. Pode organizar, no tempo e no espaço, coisas umas
em paralelo às outras, atrás umas das outras ou montá-las intercaladamente. Pode
destacar o que é importante, por mais pequenino que seja, e pode representar um todo
por meio de alguma parte ou particularidade dele. Pode mostrar em pé o que está
deitado ou mostrar deitado o que está em pé. Pode mover o que está parado na tela ou
mostrar fixo o que está em movimento. Ao descartar parte dos sentidos da percepção, dá
um novo e importante papel ao que está sendo mostrado, de modo que pode até mesmo
fazer o que está presente representar o que não está ali. O cinema faz o mudo falar e
representa assim o sentido do som. Ele não mostra o mundo objetivamente como é, mas
como se apresenta na subjetividade. Ele cria novas realidades onde as coisas podem se
duplicar, inverter seus movimentos e resultados de ações, deformar movimentos,
desacelerá-los ou acelerá-los. Um reino de magia no qual a força da gravidade não dita
normas, e poderes secretos movem coisas inanimadas. Coisas quebradas unem-se
novamente num todo. Constroem-se pontes que ligam simbolicamente situações e
objetos que nunca estiveram próximos na realidade. Ele interfere na estrutura da
realidade para transformar corpos e espaços físicos concretos em fantasmas sem corpos.
Ele estanca o fluxo do mundo e das coisas, transforma estas em pedras, e então dá vida
às pedras que se movimentam na tela. Constrói, a partir do espaço do mundo sem forma
e sem limites, uma imagem bela, com forma e recheada de conteúdo, tão subjetiva e tão
rica como meio quanto a pintura.
Estando isso claro, não é sem espanto que se ouve o que diz um autor tão
inteligente e famoso como Thomas Mann (no texto “Sobre o cinema”). Ele chama o
cinema de “imagens da vida”, recurso a partir do qual é impossível produzir arte e que
seria um equívoco “analisá-lo utilizando critérios da esfera artística”. Cinema é, para
ele, “um material por meio do qual não se consegue conduzir a nada de original,
valoroso, emocionante”. “Ele não é arte, é vida e realidade e os efeitos de suas projeções
de movimento sem som são sensacionalmente rudes se comparadas com os efeitos
espiritualizados da arte. São os mesmo efeitos que a vida e a realidade exercem sobre
qualquer um, suavizados pelo conforto do ambiente e pelo conhecimento prévio de que
se trata de um local de atuação, enriquecido e ambientado com música”. Diz ainda: “A
arte é uma esfera neutra em que se diz o que se quer. É um mundo do espírito mantido
sempre elevado, um mundo dos estilos, da escrita à mão, dos formatos personalizados,
muito objetivo e mundo de entendimento (‘Porque ela vem do entendimento’, como
disse Goethe) – o mais significativo, elegante, puro e belo é que sua comoção emerge de
um meio estranho, resulta da esperança de poder combinar coisas distintas bem.”
O percurso da nossa investigação tentou mostrar quanto é possível, por meio do
cinema, criar espiritualidade, mesmo que ele não se utilize da fala que muitos acreditam
possuir o monopólio da elevação do espírito. Já é tempo de abandonar este pensamento
de que o cinema é realidade sem forma, uma simples imagem da vida, matéria-prima e
reprodução mecânica da realidade que se contraporia radicalmente à arte. Justamente
com a ajuda dos critérios apresentados por Thomas Mann, percebe-se que o cinema é
uma arte, porque nele se apresenta uma ordem tal de fartura de recursos para mostrar a
matéria-prima da realidade, dando-lhe forma, estilo e transformação, como se fosse uma
espécie de estilo de escrita pessoal capaz de dar plasticidade e de oferecer distintos
graus de informação a partir de sua composição.
As restrições ao cinema presentes do pensamento de Thomas Mann podem dar
conta das cenas rápidas românticas dos filmes que, ao acaso, ele assistiu. São cenas que
se podem ver todos os dias no cinema porque constituem realmente uma maioria. Mas
falar sobre o que o cinema é, certamente, não é o mesmo que dizer como ele pode ser. E,
assim como se poderia dizer ser difícil extrair algo de valioso das operetas de Lehar e
Kalman a partir do que se pudesse defender a favor de que elas têm algo a ver com a
arte da música, toda a produção fabril da nossa indústria cultural, evidentemente,
poderia ser utilizada como prova contrária à inclusão do cinema no campo artístico.
É preciso dizer que a maioria dos diretores de cinema não faz uso dos recursos
que foram aqui apresentados de modo original. Eles não produzem obras de arte, mas
simplesmente contam histórias populares com a técnica. Tanto eles quanto os estúdios e
o público de massa estão todos mais interessados na trama, e não na forma. Mas há
exemplos suficientes a favor da tese de que se poderia trabalhar melhor. Não há um
número excepcional de obras de arte cinematográficas bem feitas, coerentes e
perfeitamente finalizadas. Contudo, a favor do cinema ainda se pode argumentar que se
trata de uma arte nova e que muito ainda está para ser experimentado de suas
possibilidades expressivas – embora já haja filmes suficientes que, em determinadas
cenas, em certas tomadas, em certas interpretações de determinadores atores,
demonstram o que o cinema poderia vir a ser e também que ele permanece como
potência inexplorada. Mas não é proibido, sobretudo se tratando de arte, prender-se ao
pouco que é bom em vez de se perder no muito que há de ruim.

Terceiro capítulo

IV – O que filmar

“Todo aquele que conta uma simples história


sabe que estimula a visão de uma imagem mental
cujo sentido ele não poderia
fazer ouvir sem o intelecto”

Thomas Mann

Conteúdo e forma

Até agora, tratamos dos recursos de câmera com os quais podemos contar - ou
poderíamos contar - em uma produção cinematográfica, mas não falamos nada ainda a
respeito daquilo que é filmado pela câmera. Esta oposição entre como e o quê não deve
ser confundida com a oposição entre forma e conteúdo. A operação com este par de
conceitos é perigosa porque raramente é dado o devido destaque para o fato de que
forma e conteúdo não são distintos em termos de qualidade, mas apenas em termos de
quantidade. São graus de uma mesma escala, em que cada situação coloca-se
arbitrariamente de modo relativo. Pode-se chamar a mesma situação ora de forma, ora
de conteúdo, dependendo do aspecto que for priorizado. A história do diretor geral B
que se apaixona pela sua secretária, senhorita C, pode ser chamada de conteúdo do
filme. Mas é também forma quando se pensa nela como a dramatização de uma ideia
abstrata: embate entre rico e pobre, luta entre diferentes classes, relações humanas, etc.
Uma cena que apresenta como o diretor da empresa manteve a secretária no escritório
depois do expediente pode ser chamada de forma do filme (a história de amor entre o
diretor e a secretária). Mas ela pode ser chamada de conteúdo se considerarmos como
forma o modo pelo qual esta cena foi filmada: a secretária veste o casaco, cobre a
máquina de escrever, o diretor a vê e a chama, etc.
Numa abordagem preliminar, seria plausível formular que: o quê é filmado, é a
matéria-prima, o conteúdo. O como é filmado, é a forma. Mas percebe-se logo como
esta vinculação é superficial e perigosa, pois é possível também chamar a escolha de
filmar este o quê, com total propriedade, de um trabalho de forma. Se alguém vai
buscar o material para representar uma ideia (a luta das convenções contra o amor) ou
no tempo presente, ou no passado histórico, isso já é também uma escolha de forma. E,
montar uma cena de rua a partir das imagens do tumulto dos carros, dos pedestres, dos
prédios ou dos guardas de trânsito (com isso criando uma caracterização a partir de
detalhes), tudo isso refere-se ao o quê. Mas a questão da escolha do material não deixa
de ser, em parte, uma questão formal. A estratégia de dizer que tudo o quê é filmado é
conteúdo não seria uma simples questão terminológica, mas sim um procedimento
perigoso porque pode facilmente levar a considerar como matéria-prima algo que, na
realidade, já é resultado de um processo de construção por meio de artifícios. A fruição
artística é a apreciação de um processo criativo e a verificação de hipóteses que
consigam avaliar, a partir das imagens, quanto este processo criativo conseguiu ser
levado adiante. Por isso, a pior consequência de classificarmos o cinema como puro
conteúdo, que não faz nada além de reproduzir mecanicamente a realidade, é chegar à
conclusão de que o cinema não é mesmo arte porque ele não trabalha com questões de
forma.
Por outro lado, uma diferenciação simplista a partir dos conceitos de forma e
conteúdo, além de ser uma estratégia reducionista, rouba todo o valor daquilo que passa
a ser chamado pejorativamente de “forma pura”, ou de “simples técnica”. A forma passa
a ser considerada algo exterior à obra, um trabalho braçal, para o qual o público não
deve voltar sua atenção – um assunto restrito aos estúdios dos produtores. Se o pintor
utiliza em seu quadro azul e vermelho, se o músico usa um instrumento de vara ou de
sopro, se o diretor usa a câmera em movimento ou a câmera parada, tudo isso seria pura
forma, simples técnica, e “nós não temos nada com isso”. Esta é a opinião de muitos
que só avaliam a história retratada na obra de arte (a trama, o enredo) para extrair a
partir dela seu entendimento artístico. A fruição artística vem, para essas inúmeras
pessoas, da história, logo há o mesmo grau de interesse entre uma história apresentada
pelo artista e outra que simplesmente ocorra de igual maneira na realidade. Existindo
uma história envolvente, como uma mulher nua, todo o restante é simples forma.
Esclarecida a impropriedade desse aparente antagonismo absoluto entre forma e
conteúdo, percebe-se claramente como é limitadíssimo o que se pode retirar de qualquer
matéria-prima pura, não modificada, e como é muito mais fácil valorizar uma situação a
partir da manipulação da forma. Isto é notado desde um exemplo de manipulação muito
primitiva, como a escolha do tema, até intervenções em níveis mais sutis ou mesmo em
graus mais sofisticados. O resultado de ver deste modo o cinema é encará-lo como uma
espécie de escrita a partir das coisas, na qual a diferença entre forma e conteúdo torna-se
relativa, mas que oferece um dos recursos mais importantes para o entendimento da sua
arte. O que já era considerado dado previamente - chamado pejorativamente de “a
simples matéria-prima” ou “o assunto”, aquilo que já tem forma na própria realidade,
adquire um novo status, cheio de possibilidades de elaboração artística, mesmo que tudo
aquilo que se refere à pergunta como, de caráter mais técnico, seja posto de lado,
deixado como assunto exclusivo dos produtores, e que só se preste atenção ao resultado
final. O que é chamado comumente de “observação do resultado” é, na realidade,
ignorar a forma artística para apreciar uma obra de modo somente superficial a partir
exclusivamente do assunto.
Trata-se então de investigar a câmera como instrumento, mas sem descuidar do
fato de o que ela capta não ser simplesmente recebido de um modo qualquer como uma
matéria-prima animada. Ao contrário, deve-se atentar para o fato de que essa matéria-
prima já foi “elevada à forma artística” com os recursos anteriormente descritos e
também com o muito que já pode ter sido feito mesmo antes que a câmera começasse a
funcionar.
O material passível de ser filmado é evidentemente sempre algo visível, a face
da superfície de todas as coisas do mundo: pessoas, animais, plantas, trabalhos humanos
e natureza. Mas não é qualquer realidade que serve para ser filmada. É preciso que o
objeto tenha um significado. Pode-se filmar para entreter ou para informar. É instrutivo
saber como as pernas de uma estrela-do-mar se movimentam ou como é feita uma
operação de apendicite. A estrela-do-mar e a operação podem ser mostradas em
imagens, reveladas ao observador com representações típicas dos temas “estrela-do-
mar” - e “cirurgia de apêndice”. O público sairá instruído tanto sobre o modo quanto
sobre a própria natureza destes acontecimentos: o indivíduo reconhecerá um tipo de
atividade13.
À semelhança dos filmes educacionais, o filme de arte interessa-se pelas
histórias de determinadas pessoas porque essas histórias possuem algo de generalidade,
algo que representa todas ou muitas pessoas em geral. No trato do dia-a-dia há muito
poucas atividades com um interesse tão especial assim. Preocupamo-nos com o destino
de nossos parentes, de um amigo, de um ministro..., mas na obra de arte trata-se sempre
de um destino individual exemplar. O que é apresentado numa situação exposta pela
obra de arte capta o interesse do público, porque a obra caracteriza um tema que o
espectador conhece. “Quando a arte se reveste de material corriqueiro”, diz Nietzsche,
“ela é reconhecida da melhor maneira como arte”. Certamente, pode-se dizer das mais
famosas obras de arte da história que elas manipulam coisas que todo homem conhece -
ciúmes, amor infantil, vingança, fidelidade, traição - e que, justamente nestas obras-
primas, o assunto em geral é muito pouco particularizado. Portanto, serve para
esclarecer este assunto um enunciado muito simples, como: um homem amava uma
mulher que não podia ter e, por isso, se suicida. O artista também pode se utilizar de um
caso atípico como uma experiência peculiar de uma pessoa de conduta anormal, mas a
fruição artística só ocorrerá se for feita uma descrição tal que remeta a algo que seja
conhecido do público que, porém, demonstre-se em contraste com esta variação do

13
Esses casos têm de fazer parte do tipo geral para poderem ser reconhecidos por seu intermédio já que
nenhuma informação a mais será oferecida – mesmo que seja algo excepcional ou pertença a casos mais
raros. As pernas da estrela-do-mar interessam porque é assim que as estrelas-do-mar se movem. Os
irmãos siameses interessam porque representam um caso raro
homem comum de que a pessoa utilizada encontra-se desvirtuada. (Assim como, por
exemplo, a observação científica de um corpo doente é um método interessante para
mostrar como funciona um corpo saudável).
A arte não tem a função de ensinar como as coisas ocorrem ou de contar
histórias. O assunto oferece somente a forma visual que a reveste de modo geral. Quem
lê um romance de Hamsun pode enriquecer seus conhecimentos a respeito da vida dos
peixes das ilhas Lofot, na Noruega, mas não foi com esta finalidade que o romance foi
escrito, uma vez que Hamsun não é um professor de geografia. Ghirlandajo não queria
dar aulas de interiores arquitetônicos do Quatroccento, nem Rembrandt, a respeito das
vestes dos judeus do gueto de Amsterdã. Portanto eles usam essas coisas como conteúdo
ou como forma (como se queira chamar) em suas obras. Seu trabalho artístico consistiu
em apresentar coisas ou situações - fictícias ou imaginárias - como arte, construída a
partir dos recursos de determinados materiais de expressão, que se passam por, ou
parecem caracterizar, estes temas a partir do que é exposto visualmente. Para se
construir uma obra de arte visual não só a imagem é importante, mas também – e
sobretudo - o modo de enriquecimento do material utilizado que dá, por assim dizer, o
tom com ajuda do qual será conduzida a obra.
É importante aqui acrescentar ainda algo: o artista não escolhe seus temas em
função das restrições que a maioria do público faz sobre o que representa ou não um
tipo geral conhecido, buscando, pois, evitar que seu trabalho não agrade apenas a um
público restrito, ou seja, premeditando que novos tratamentos de forma podem ser
recebidos de maneira mais simpática na exposição de temas velhos já conhecidos.
Embora esta informação não seja verdade, pode-se chamar de uma frequente
coincidência que isso ocorra muitas vezes assim. Existe mesmo uma crença ingênua de
que um grande artista nunca criou, em qualquer sentido mais profundo, voltado para um
público. Para o público, trabalhariam somente autores de operetas como Courths-Mahler
e Franz Lehár. No entanto, não se pode esquecer que um grande artista também vive no
meio de uma maioria - como todas as outras pessoas vivem no meio de grupos em
sociedade -, sendo, portanto, um ser social e, como tal, associado em alguma medida ao
grau de permissividade, de reconhecimento e de tolerância de sua coletividade. Seu
trabalho deve certamente ter uma aparência diferente da que teria caso o artista estivesse
no deserto, mas o impulso criativo nunca se origina realmente do desejo de agradar
outras pessoas – e que elas gostem do trabalho –, de impor ou de servir. Os marxistas
demonstraram que, em todo trabalho de arte, colocam-se elementos de origem social e
econômica e pensam ter assim descoberto, ou, ainda mais, desmascarado, a origem da
arte. Eles estão a quilômetros de distância do entendimento da arte em geral. O impulso
criativo vem muito mais a partir do objeto representado: o artista vivencia algo, vê algo,
sente um comichão nos dedos, fica inquieto e, então, cria. O artista não pode enxergar
quanto será possível avançar no entendimento de sua obra. Para ele, já é bastante,
suficiente, vestir sua experiência com as roupas do meio de expressão de modo que
exponha seu talento. Talvez seja um acaso, ou talvez haja um bom motivo para que
aquele objeto que o artista construiu cheio de valor para a maioria não seja rico em
nuances individuais, de extraordinária raridade, mas sim erguido a partir da mais
comum e antiga experiência de todos os homens. Do mesmo modo, não é verdade que o
artista tem uma experiência do mundo mais intensa do que os outros seres humanos com
quem vive. É muito mais plausível a hipótese de que o senso de observação e as
experiências intensas são mais comuns se o artista já tiver passado por elas antes de elas
serem postas em forma de arte. As vivências do artista não são diferentes das dos não
artistas em termos quantitativos, mas somente em termos qualitativos. Nem toda
experiência causa impressão a ele como artista, ao contrário, lhe sugere como poderia
ser expressa com seu material de produção (cores, palavras, filme). Ele vive as
experiências como algo formalizável e, talvez, até mesmo como formas. Ele diz: “Pode-
se utilizar isso para fazer um filme!”, “Isso é uma cena de filme”. “Os homens comuns,
se não se importarem com o esforço, podem escrever o que veem, eles veem e sentem
tudo o que seria digno de escrever, e a única diferença entre o inculto e o erudito
constitui-se muitas vezes apenas no tipo de percepção ou na arte de se conduzir o seu
próprio livro”. (Lichtenberg).
Sem que o artista queira ter reconhecimento de seu público com isso, ocorre, na
maioria das vezes, que seu trabalho tenha por base um capital de saberes, de coisas
conhecidas por todos. Thomas Mann diz: “O poeta descobre inicialmente descrente e
depois com eufórica alegria que sua solidão e falta de relacionamento eram uma ilusão,
uma ilusão romântica, se preferir. Ele descobre que serviu como escritura ou como boca.
Que ele falou por muitos ao falar por si, enquanto acreditava falar por si somente”. O
quanto este capital é levado adiante, o que se pode ou não considerar como sendo de
conhecimento geral, isso não tem resposta, porque tal resposta passa pelas
individualidades - e isso é da maior importância, por tornar clara a razão de qualquer
conversa a respeito de a arte ser tão reativa aos valores absolutos. O que um considera
da maior relevância é tido como estranho para outro, o que um vivenciou pode não ser
conhecido por outro – e veja que se trata de coisas que não estão quase nada
relacionadas diretamente ao valor estético das obras de arte, mas sim a respeito do que
são ou não suposições em relação ao mundo para cada um. O que um percebe, a partir
do destino de Hamlet, como uma doença que nenhum homem saudável poderia
compartilhar, outro enxerga como o reflexo da essência da alma humana, coisa que não
tem nada a ver com a saúde do corpo. O que um acredita representar uma paisagem
retratada fielmente pelo pintor registrando a mesma iluminação e grupo cromático
mostrados na realidade, outro classifica como um quadro ruim porque o pintor não foi
capaz de reproduzir “corretamente” a realidade, ou ainda outro sustenta que esta
variação seja simplesmente um novo modo de mostrar a paisagem, que nunca antes fora
utilizado, sendo um resultado fértil do trabalho de evolução da arte. Se a base a partir da
qual o valor da obra de arte deve tomar seus parâmetros já é tão instável, não se deve
ficar admirado que tão pouca unidade exista, por fim, no julgamento do público.
Essa pluralidade de “conhecimentos prévios” que a interpretação individual de
uma obra de arte faz aflorar, não se estende somente sobre coisas profundas e difíceis de
compreender, como a natureza humana, mas também sobre muitas coisas do mundo
exterior – e esses elementos externos não são irrelevantes. É mostrado num filme, por
exemplo, um homem com uma camisa preta o qual de repente ergue o braço direito
solenemente, de modo que um espectador perceba ser um fascista fazendo a saudação
romana, mas que um outro espectador, talvez, reconheça a saudação nazista por causa
da roupa. Pode-se pensar que o diretor pressupôs este conhecimento ou que ele tivesse
construído as cenas do filme com ajuda da imagem do homem de preto erguendo o
braço, cenas estas que só entende aquele que conheça a aparência de um fascista e cuja
elegância e interesse podem sumir se for preciso esclarecer do que se trata com
antecedência: este homem de preto que vocês veem ali... E isso acontece do mesmo
modo que a graça de uma piada se perde se for preciso explicá-la! 14 A Torre Eiffel, a
Estátua da Liberdade ou as pirâmides do Egito são conhecimentos ópticos que o diretor
pode considerar compartilhados por todo homem, no mundo inteiro, assim como o
Panteão, a bandeira do Japão, o jardim suíço do Papa, a fotografia de Lênin e a nota de
um dólar. Para o diretor de cinema, este reservatório de conceitos ópticos absolutos é
14
Arnheim também faz uma piada com um trocadilho entre homem de preto e homem negro.
um verdadeiro tesouro e lhe torna possível a ele dizer muitas coisas imediatamente
somente na forma de imagem.
No filme americano “O homem da multidão”, há um ato que se passa num
vagão-dormitório. Estas cenas são comprometidas e pouco inteligíveis porque o carro-
dormitório tem uma outra disposição na Europa. Naturalmente seria possível mostrar no
filme qual é o modo de organização do vagão-dormitório americano, mas este trabalho
não foi feito pelo diretor. Ele tomou o ambiente por cenário da ação dramática, já que
servia muito bem a seus propósitos na situação, e supôs que o público americano
entenderia muito bem a situação em razão de sua experiência neste ambiente. A falta
deste conhecimento para o europeu faz com que – como decorrência natural – ele não
consiga nem avaliar estas cenas esteticamente, nem entender aproximadamente o que se
passa ali. Nos filmes japoneses, observa-se outro tipo de cumprimento para dar boas-
vindas que, para o ocidental, parece com uma despedida – o que pode prejudicar o
entendimento e a eficácia da cena de um filme japonês.
Mas essas dificuldades não se restringem evidentemente somente aos filmes. Em
toda arte existem fronteiras individuais e nacionais, e pode-se dizer que elas não
prejudicam de modo algum a difusão das boas obras de arte.

A exposição

A câmera só pode registrar situações concretas, físicas, sendo muito mais difícil
ao diretor do que para o escritor conseguir representar uma história dramática, porque,
em vez de ter de passar toda essa série de suposições importantes para o entendimento
do que se passa somente a partir da imagem, este pode apresentá-las com explicações
abstratas no corpo do texto sem a menor dificuldade e sem correr o risco de uma falsa
interpretação. Já o cineasta, mesmo quando trabalha com apoio do diálogo sonoro, é
colocado frente à dificuldade de revestir o curso de sua história de tal forma que as
informações importantes possam ser extraídas a partir da própria imagem. Uma frase
tão simples como: “ela mora absolutamente só na sua casinha” é extraordinariamente
difícil de representar num filme já que ela não se refere a uma situação permanente a
qual, só com muita dificuldade, pode ser transmitida por meio de uma cena que a
caracterize.
As características individuais das personagens em casa, que podem ser
apresentadas com uma dúzia de palavras pelo escritor, devem ou ser apresentadas
visualmente pela aparência dos atores, ou esclarecidas pelo desenvolvimento narrativo.
A última opção é a mais correta, pelo menos para quem não quer trabalhar com os
estereótipos enrijecidos dos filmes baratos nos quais sempre é claro, desde o primeiro
momento, que a mocinha loura é inocente, que a morena é a criminosa e que o senhor
de bigodes não tem boas intenções.
Um filme é conduzido em geral, como uma peça de teatro, mediante as coisas, o
que torna muito reduzidas as possibilidades de esclarecer ao público aquilo que é
importante ser pressuposto. Um meio de exposição tão incômodo como o monólogo
narrativo de Ricardo III é praticamente inviável de representar no cinema, em particular
num filme mudo. O trabalho de exposição é muito mais difícil para o cinema do que
para a dramaturgia, a qual conta com recursos tal qual uma narrativa no palco. Decorre
daí que a exposição é construída da maneira mais pobre pela média dos autores de
scripts e que, mesmo quando dá bons resultados por deixar claras as premissas para
entender a narrativa de um modo original, isso ocorre quase sempre sem o som.
Assim o filme também informa quando dá noções gerais do lugar onde se passa
a situação da narrativa por recursos simples, como o início de uma cena pela tomada
geral da cidade onde a história se desenvolve. O filme de Piel Jutzis, “Mamãe Krausen
rumo à felicidade”, começa com a tomada de uma fileira de prédios em Berlim. Essa
imagem fixa-se em uma janela aberta. Vê-se, dentro do quarto, que duas pessoas
dançam, e a câmera as aproxima deles até enquadrá-las num close dentro do quarto
apresentando, assim, aos olhos do espectador os dois protagonistas da trama e a casa
onde a narrativa se desenrola. Esta forma de narrar, mostrando primeiro uma visão
panorâmica para só então conduzir ao acontecimento, modifica o método usual de
exposição dos textos narrativos.
Em geral tanto o escritor quanto o autor do cinema recomendam se iniciar uma
exposição em vez de se apresentar a situação de forma abstrata como que num
inventário de itens. Isso porque é certo que o leitor percebe melhor se um determinado
sujeito é mau não só quando a personagem é apresentada em uma situação que
caracterize sua personalidade, mas também por intermédio de suas falas. Procedendo
assim, o diretor age melhor do que se fosse somente dito: “ele tinha um mau caráter”.
Apesar disso, é possível encontrar, mesmo nas páginas dos melhores exemplares de
prosa, esse método de exposição equivocado, fato que serve aqui para mostrar que o
material de expressão do cineasta, ao contrário do material do poeta, interfere de modo
muito mais enérgico na forma de exposição, sendo muito mais difícil e incômodo te-lo
sob controle.
Nos filmes ruins ou medianos, é comum que só se entenda claramente o sentido
do enredo depois da leitura de seu prospecto. Ele apresenta na forma verbal o tema do
filme como matéria-prima, como conceito, sem forma visual, mas, a partir dele, não há
erros de interpretação. O texto diz: “Ela renuncia por ter grandeza na alma...”, e então
alguém percebe: “Ah! Este é o motivo por que ela foi de repente para o quarto!” Para a
maioria dos filmes - e em especial para aqueles de valor mediano -, o enredo principal
não encontra nenhuma relação com quaisquer características particulares do material
artístico no qual ele ganha forma. Portanto, o argumento nada mais é que uma matéria-
prima invisível da ação, que também poderia muito bem ser usada para escrever uma
poesia15. E assim se passa com tudo o que possa vir a ser formulado neste tipo de
linguagem mental que nós utilizamos o tempo todo. Isso quer dizer que, no cérebro do
autor, surge a situação inicialmente numa forma das mais abstratas: “Um criminoso”,
“Ela compreende...”, “Depois de diversas tentativas...”, “Ele não sabe mais o que
fazer...”, etc. Então, passa-se destas ideias para uma imagem, uma ação. Nossas ideias
cotidianas, e até mesmo nossa linguagem cotidiana, são utilizadas para organizar as
coisas do mundo em torno de conceitos que as tratam não como coisas individuais, mas
como casos particulares de categorias porque é assim que se coloca o mundo: uma
ordem importante para podermos nos comportar corretamente nele. Assim se consegue
construir uma designação válida de coisas particulares com ideias gerais. Nossos
pensamentos e palavras podem, deste modo, representar sem serem visíveis. Portanto,
quem não é artista plástico nato, ou seja, quem não vê diretamente formas puras na
natureza como um material de expressão, pensa e compreende o que conhece a partir
desta forma abstrata de pensamento. Vem daí a inadequação plástica da obra de arte
ruim, sua inadequação em relação ao material de expressão específico. É também isso o
que explica a existência de cineastas medianos que mostram a ideia por meio de sua
simples história, a partir do que se explica por que é possível extrair de uma boa ideia
um filme ruim, que não tenha nada a ver com o cinema em si. É possível, entretanto,
atingir bons resultados como ocorreu com determinados diretores que enriqueceram a
exposição imagética a ponto de ligá-la fortemente às concepções mais profundas do
15
É por isso que se pode utilizar, em geral, um romance para fazer um filme e, dificilmente, um filme
para fazer um bom romance, embora na prática isso seja feito muitas vezes!
tema retratado e que fazem caminhar bem ao lado de uma boa forma de depressão a sua
essência. (Por exemplo, Chaplin).
Há um filme com Irene Rich que começa com uma legenda: “Berenice Miller
era casada com um homem que se juntou a ela não por amor, mas por dinheiro”. Então
se vê a imagem de Berenice. Segue outro texto: “Depois que seu marido morreu, ela
percebe que não deve continuar a jogar fora sua juventude”. Outra imagem: Berenice
sentada num banco ao lado de um jovem que conversa com ela. Ninguém questiona se a
situação foi apresentada neste início de filme muito claramente, mas é difícil imaginar
cenas que se aproveitem tão pouco dos recursos cinematográficos e que sejam mais
pobres do que este tipo de exposição. A apresentação do tema no sentido da ideia não
conta com nenhuma imagem minimamente criativa que ajude a elucidar algo num filme
assim. Mal podemos gravar o rosto dos personagens apresentados. Diz-se
frequentemente que um tipo de filme assim não é “cinematográfico”, mas sim
“literário”, com o que se pretende defender que o roteiro pode ser muito amador, por ser
parte de uma obra exemplar em termos de qualidade literária, já consagrada e
reconhecida, e que deve apresentá-la simplesmente como se fosse o próprio romance.
Esta visão é muito difundida, mas evidentemente equivocada. A culpa por um filme ser
ruim não decorre do tipo de literatura utilizado como base para fazê-lo, mas da
necessidade de se recorrer à exposição de conceitos abstratos, para tornar o pensamento
inteligível, espalhados por diversas passagens em que só a imagem não seria suficiente
para entender a trama.
No filme “Senhora do amor”, duas personagens importantes foram apresentadas
de uma maneira muito pouco cinematográfica. Há, inicialmente, um diálogo entre dois
irmãos que se entregam a uma vida selvagem e então vem uma legenda: “Só se entende
esses dois irmãos quando se conhece quem são seus amigos. Senhor X, que aprova suas
condutas”. Entra então a imagem de um senhor que olha algo através de um binóculo.
Outra legenda: “E o senhor Y, que condena seus comportamentos”. Imagem: um
segundo senhor olhando através de binóculos. Quando se veem estas cenas, acredita-se
que ambos observam, com seus binóculos, o estilo de vida dos irmãos, sendo que um
procura elogiá-los e o outro, criticá-los. Mas não é nada disso! Os dois senhores estão
numa corrida de cavalos e olham as coisas em geral por meio do binóculo. O motivo
principal pelo qual esses dois senhores entram na história não é esclarecido pelas
imagens e, portanto, a exposição permanece bruta, sem ser trabalhada em termos de
imagens. Elas funcionam como simples apêndices ilustrativos dos textos, tão pobres
quanto seria possível, mostrando simplesmente o lugar onde os dois se encontravam
naquele instante, num momento em que a situação apresentada tinha um outro conteúdo
completamente diferente e fora de contexto.
Vamos contrapor a esse exemplo o de uma boa apresentação. A exposição do
tema no prospecto do filme “Novos Senhores”, de Jacques Feyder, diz o seguinte: “A
dançarina Suzanne Varrier, da ópera de Paris, está apaixonada pelo deputado e conde de
Montoire-Grandré”. Isso é o que há de mais importante e vem em primeiro lugar
quando se quer elucidar o enredo com palavras. No filme, não há nenhuma legenda que
conduza o início da trama. A coisa se dá assim: é apresentado um ensaio de balé na
ópera, onde uma das meninas bailarinas aponta de modo desajeitado para Suzanne! No
palco, onde o ensaio se passa, um técnico monta a iluminação, desviando o foco de luz
até focalizar Suzanne. Este homem será, mais tarde, o pivô de um conflito do casal
Suzanne e Conde Montoire. O funcionário entra em cena antes mesmo do conde.
Estabelece um anúncio visual representando antecipadamente o que ainda nem se
imagina que poderá acontecer. Depois, Suzanne vai para o camarim. É seu aniversário.
Um grande arranjo de flores repousa sobre a mesa. E um cartão: “Conde Montoire”. Ela
se veste, passa pela porta e procura um táxi, mas então percebe que há um carro na
frente do teatro e que espera por ela, um grande e imponente automóvel novo, com as
letras iniciais de seu nome na placa e um chofer que a cumprimenta. Ela entra no carro
e... Nova surpresa! Há mais um cartão: “presente de aniversário do Conde Montoire”.
Em “Senhora do Amor”, os dois homens são apresentados igualmente em uma
situação totalmente adversa de uma que representasse, de algum modo, sua função no
enredo; já em “Novos Senhores”, o conde é apresentado no princípio indiretamente, mas
assim mesmo com diversas de suas características particulares, como ser namorado da
dançarina, como ser galanteador que dá presentes caros, e rico protetor. Assim, seu
papel fica totalmente elucidado num instante, sem uso de palavras. Por meio exclusivo
da exposição indireta, é obtido um efeito muito forte, primeiro, por ocorrer antes mesmo
que o conde tenha entrado em cena e, segundo, porque coisas como o arranjo de flores e
o automóvel são usadas como meio de representação de características da personagem
que se extrai da própria situação, sem deformá-la minimamente, quase que
exclusivamente por meio de uma concentração estilística. A figura do conde em breve
entrará em cena, confirmando o que já foi apresentado.

Os estados mentais

Somente objetos e ações físicas servem como material de exposição para


conduzir o filme. Mas também é possível, a partir deles, representar processos mentais.
Isso é possibilitado, sobretudo, por meio das expressões do rosto humano e pela
expressividade do corpo, dos braços e das pernas que são capazes de representar, da
forma mais direta e familiar, os pensamentos e sentimentos humanos. Mas eles não são
o único recurso para tornar visíveis estados mentais e talvez nem mesmo sejam os
melhores métodos ou mais valorosos (ainda falaremos mais adiante ainda da palavra).
Como a maioria das pessoas não tem o hábito de observar os gestos com que
expressa estados de ânimo ou representa algo, ela não repara como é forçado e
antinatural o modo pelo qual se expressa a maioria dos atores na maior parte dos filmes.
A “mímica natural” da vida cotidiana é uma coisa notável. Ela é muito pouco clara,
imprecisa, enigmática e muito pessoal – na verdade, em sua maioria, é extremamente
pobre, monótona, restrita ao uso de poucos músculos. É difícil para a maioria das
pessoas reconhecer pela expressão de uma pessoa qual é seu estado de ânimo. Muitas
pessoas parecem estar sorrindo quando choram e muitas sorriem de uma forma ácida
que lembra o sofrimento. De todas as coisas que se veem cotidianamente, a
representação corporal é uma das mais imprecisas. Ela não deixa claro, não se sabe o
que ela significa: resignação, dúvida, estupidez ou reserva. O rosto é tomado por rugas e
se torna contraído, mas não conseguimos combinar estes sinais para formar uma única e
inequívoca impressão. A maioria dos gestos só se deixa compreender quando faz parte
de uma situação mais geral, quando, pelo meio da fala e de inúmeras outras pistas,
sabemos em que situação aproximadamente a pessoa se encontra. Só assim é possível
entender o jogo desordenado de sinais posto em marcha, em desacordo, como um
indício de cobiça ou prazer.
A mímica dos animais e dos povos primitivos é muito mais nítida e marcante,
mesmo que, por motivos externos, torne-se para nós em boa parte também difícil de
entender. Há muitos motivos por que o homem civilizado foi perdendo esta habilidade.
Primeiro, nossas normas sociais levaram a um empobrecimento da mímica porque ela é
vista como uma forma incorreta, em nossa sociedade, por expressar desejos e
sentimentos sem moderação. Quando se observa uma mãe com um filho, pode-se ver
como ela reprime naturalmente as expressões e gestos do rosto e do corpo da criança:
“Não olhe assim para seu tio!”, “Vê se sossega!”. Em segundo lugar, o homem moderno
não expressa de um modo muito simples seus pensamentos e sentimentos como o
homem primitivo e o animal. A grande variedade de seus interesses, a agilidade e
flexibilidade do pensamento, a velocidade com que coloca em choque impulsos e
repressões, tudo isso gera um eco no jogo expressivo e dos gestos, os quais se tornam
impossíveis de serem reduzidos a uma única impressão determinada, dado o
refinamento e a sofisticação da nossa vida mental.
Mas, em uma boa obra de arte, tudo deve ser muito claro (mesmo que se trate de
uma imagem de confusão, ela deve ser apresentada claramente como confusa), e, por
isso, os diretores têm de usar a mímica com muita propriedade.
O ator deve ser capaz de produzir gestos e mímicas “puros”. Seu rosto deve se
mostrar de tal modo, e ele tem de saber manipulá-lo para tanto, que fique clara
imediatamente, com muita intensidade e em cada um de seus detalhes, a impressão que
se pretende produzir. Um ator ruim não é aquele que não consegue controlar cada
músculo do rosto para manipular seus mínimos movimentos, mas aquele que não
entende como conseguir, por intermédio destes movimentos, obter uma expressão clara.
Se ele tem a linha dos lábios muito fina, não irá combinar com uma cena em que precise
demonstrar energia. Ou, se seus olhos castanhos sempre transmitem uma sensação de
nervosismo que não se deixa apagar, ele não poderá fazer uma cena em que o rosto
deveria transmitir profunda tranquilidade e harmonia. O que vale para a expressão de
um estado momentâneo da alma decorre naturalmente da exposição de suas
características visuais. O ator precisa construir uma aparência, por meio da
interpretação, que deixe estas características transparecerem nitidamente. É uma parte
do trabalho interpretativo que só cumpre sua função de modo apropriado quando sua
estrutura é construída com o mesmo cuidado do de uma composição musical ou do de
uma poesia lírica. Ele deve interpretar o seu “papel” de tal modo que nada que seja
importante fique de fora.
Por que esta mímica purificada do cinema não parece antinatural ao espectador
que vê, na sua vida, gente que se comporta de modo muito menos padronizado, com
expressões muito mais impuras e misturadas? A capacidade de percepção destas
características é, para a maior parte das pessoas, muito pequena. Estas pessoas não têm
por hábito reparar detalhadamente nas expressões daqueles com quem convivem – nem
na vida, nem no cinema. Elas se contentam em entender o significado dos gestos e
expressões tanto num como no outro e também preferem os gestos característicos,
muitas vezes exagerado dos atores, por eles transmitirem muito melhor a mensagem do
que os gestos naturais. Além disso, o que os amantes da arte buscam no cinema não é a
simples imitação da natureza, mas sim arte. A exposição artística é sempre também
esclarecedora, clara, elucidada em relação às situações apresentadas. Isto, no mundo
real, nem sempre se percebe, pois as coisas se nos apresentam incompletas, somente
dadas, e misturando-se com todo um restante de coisas com que não se relacionam. Já
no cinema, as coisas são mostradas por completo, totalmente claras e livres do que seja
estranho a elas, e o mesmo ocorre com as expressões corporais em um filme.
Mas essa estilização da mímica tem suas próprias limitações. Em um filme
narrativo, portanto um filme “naturalista”, é fácil atingir um ponto a partir do qual a
forma característica da expressão mimética confunda-se com um antinaturalismo
grosseiro. É fácil entender que, num meio de tão forte presença óptica como é o cinema
– em particular o cinema mudo -, tanto o diretor como o ator se portem de modo a
deixar a expressão física apresentar-se com muita força e destaque. Na comédia,
percebe-se claramente até onde os gestos e caras tão pomposos podem levar o cinema,
mas, nos filmes “naturalistas”, é preciso tomar cuidado. Todo meio de expressão, em
qualquer arte visual, abre um amplo caminho que o artista tem de trilhar e que se opõe
violentamente ao caminho da naturalidade. Embora o artista tenha de aderir a esse
caminho da arte, seu uso não deve deixar transpassar o ponto em que deixe de ser fiel à
realidade (pensamos logo no extremo do “Jugendstil” em literatura, no cubismo, na
pintura e nas artes gráficas).
A maior parte dos atores desenvolveu tanto um gestual quanto expressões faciais
com os quais os espectadores se acostumaram a reconhecer facilmente e que são, em
certo sentido, “cinematográficos”, embora possam ser classificados como pouco
artísticos. Isso porque eles servem como uma coleção de clichês capaz de representar
com uma expressão estereotipada todo estado mental que se deseje. Quando o ator
estufa e esvazia o peito seguidas vezes com energia, fica claro que ele se encontra num
forte estado de excitação interna, já que este movimento oscilatório é muito
característico “plasticamente”, satisfatório e eficaz, embora sua dessemelhança em
relação ao que ocorre no mundo real seja gritante - um gesto assim não poderia nunca
ser reconhecido como natural, mas sempre como uma representação. Os movimentos
corporais tornar-se-iam uma coisa muito desagradável a qualquer um se houvesse
sempre um momento característico que traduzisse em mímica corporal cada sentimento
interno - sem que pudéssemos exercer controle sobre ele - e que mostrasse tudo, sem
restrições, o que uma pessoa pensa ou sente, mostrando de forma visível cada um desses
estados da alma através de expressões do corpo ou do rosto. O conjunto desses
movimentos constituiria uma espécie de linguagem de sinais que também seria
totalmente abstrata, como se fosse uma espécie de legenda que se colocasse em seu
lugar: “Erwin ficou muito emocionado com esta notícia”. Na verdade, o filme sonoro
promete liberar totalmente a mímica desta função por meio da introdução de
explicações faladas, o que valoriza ainda mais o uso da mímica em outras funções.
Bons atores e bons diretores já mostraram que grandes efeitos podem ser
construídos a partir de uma “atuação” a mais discreta possível. Os grandes atores obtêm,
com muito pouca movimentação gestual, obtêm muito melhor resultado a partir de sua
simples presença. Os atores de teatro, que precisam compensar a visão prejudicada dos
detalhes causada pela distância a partir do palco para o público, criando movimentos
muito exagerados do corpo e da expressão facial, acostumaram-se com essa hipertrofia
dos efeitos. Eles são, entretanto, totalmente impróprios para o cinema e truncados,
porque, através da ampliação da imagem proporcionada pela aproximação da câmera, o
menor detalhe pode ser apresentado grande na tela, com total clareza – um recurso
poderoso para mostrar satisfatoriamente bem ao espectador o que se passa sem
necessitar de exageros. Os últimos desenvolvimentos do cinema – sobretudo sob
influência dos russos – levaram a uma redução significativa dos movimentos do ator e a
um proporcional aumento do aproveitamento da “aparência” do ator como meio para
caracterizar algo, visto que essa aparência pode se impor a partir de sua pura presença
quando estabelece a relação apropriada com a situação. Naturalmente, o roteiro deve
estar muito bem feito para potencializar este efeito, porque, já que o ator não fará
nenhuma “encenação”, a situação em que ele se encontra deve estar muito clara a cada
momento e também deve refletir o estado de espírito em que a personagem se encontra
– mesmo em trechos em que ela não faça nada além de permanecer sem se movimentar.
Este desenvolvimento deve, muito provavelmente, levar a que, como os russos já
praticam hoje, cada vez menos o ator seja escolhido do corpo tradicional e que cada vez
mais se busquem pessoas com características físicas apropriadas ao papel, encontradas
ao acaso, para atuar no lugar daquele. Já que os recursos expressivos do roteiro e da
câmera desobrigam o ator cada vez mais de técnicas, ocorre como se a pessoa que entra
em cena passe a ser vista como um elemento, tanto quanto um bule de café ou um
cachorro, que não precisa apresentar nada além de sua simples presença e aparência
para atuar e, por esta razão, tipos que pareçam “naturais” são muito mais apropriados do
que aparências construídas por meio de artifícios. Um típico vendedor de seguros, um
policial, um sapateiro ou um marceneiro caem melhor no papel do que seus colegas
atores bem penteados – sem a menor sombra de dúvida. Torna-se fundamental para o
ator combinar bem com o lugar aonde ele vai “atuar”, e se tornam sem utilidade, por
exemplo, caracterizações técnicas de personagens típicas do teatro, apreciadas pelos
diletantes daquela arte.
Isso evidencia que a mímica já não é mais o único recurso para representar os
estados da alma da personagem (não vamos nos ocupar aqui da comprovação da
importância do uso da palavra porque ela já foi discutida não só no que diz respeito ao
cinema sonoro, mas também exaustivamente no que diz respeito ao próprio teatro, que é
falado). Trata-se de algo importante porque, se o cinema dependesse unicamente da
mímica para expressar o estado da alma das personagens, isso levaria muito
rapidamente a um esgotamento dos seus recursos expressivos visto que, apesar de os
gestos sempre poderem ser entendidos, eles perderiam com o tempo seu encanto pela
contínua repetição dos mesmos recursos. Poderíamos concluir, a partir desta diferença,
que o filme mudo não seria capaz jamais de alcançar uma densidade artística no mesmo
nível do teatro, pois a base em que ele se apoiaria – a simples mímica, os gestos e a
simulação da fala – seria muito primitiva! 16 Se o ator declama um monólogo de
Shakespeare, ele consegue atingir uma densidade de comoção enorme sem ter de apelar
a qualquer outro recurso de manipulação artística. Mas é impossível alcançar o mesmo
grau e profundidade se o ator só puder contar para isso, num filme mudo, com sua
gesticulação e mímica. Um filme mudo pode sim ser tão profundo como um drama de
Shakespeare, mas nunca o conseguirá por uma mera encenação sem som do monólogo
de Hamlet!
Como é então que se representariam estados psicológicos mais densos num filme
sem o uso da mímica e das palavras? Vamos partir de um exemplo: o tema trágico do
palhaço é muito conhecido e ocorre no filme de Sjöströms, “O homem esbofeteado”, em
que um conhecido cientista cai em desgraça e se torna palhaço. Seu rosto foi maquiado
até parecer uma placa de gesso fria e redonda de modo que não se pode perceber nela o
menor indício de uma interpretação visual, ou seja, seu rosto veste uma máscara, mas
mesmo assim o público sente do modo mais intenso a dor da queda desse ser humano
somente a partir do fato de que ele sabe como esse homem era e como foi reduzido à
total desimportância. Sem que o ator tivesse de fazer praticamente nada, o estado de
espírito da personagem é exposto claramente, porque o roteiro do filme é todo
direcionado para elucidar a questão representada nesta cena, de modo muito objetivo. (o
mesmo se dá com o professor Unrat em “O Anjo Azul”).
Percebe-se como a essência da trama pode ser representada pelo ator a partir de
sua simples presença na cena. Mas o ator também pode expressar seu estado de espírito
como personagem por meio de sua atuação simples, sem ter de recorrer a qualquer
mímica. No filme “Chicago”, de De Mille, há tomadas do ambiente de um júri em que
se passa um forte clima de expectativa. Inicialmente é mostrado um close de um banco
onde se encontram algumas jovens que seguem com os olhos arregalados o
desenvolvimento da exposição do crime e que mascam chicletes: suas bocas mordem
num ritmo descontraído, mas constante, como máquinas. Ocorre então uma revelação

16
Essa especulação não depõe em nada contra o cinema mudo. Ao contrário, explicita cada vez mais que
a interpretação do ator não é a principal fonte de recursos para conduzir a trama no cinema. O
desenvolvimento do cinema depende da aceitação de que o ator deve ser liberado de sua função
meramente convencional sem o que só serão atingidos bons resultados mas nunca soluções geniais.
decisiva e elas são mostradas novamente em close, mas, como se seguissem a um
comando ríspido, param imediatamente de mastigar – e expressam, deste modo,
tamanha surpresa como se não conseguissem praticamente respirar. Esse tipo de
surpresa também poderia ser expressado por meio da mímica, mas todos devem
concordar que é muito mais interessante o modo como ele foi representado nesta cena.
Não se trata, portanto, de olhos arregalados que se contorçam nem de respirações
aceleradas exageradas que já se viram centenas de vezes nos filmes mudos e que já não
causam mais ao público nenhuma surpresa nem impacto quando se veem novamente e
que transmitem a ideia: “Ora, alguém se espantou!” Esta forma indireta de
representação é muito mais inovadora, o que ajuda em que se tenha um efeito muito
mais forte e eficiente, fortalecendo também o sentimento transmitido por sua imagem.
Mas este tipo de representação não causa impacto somente por ser mais novo: ele
também age num nível mais elevado. Isso porque o vínculo entre o acontecimento
exterior e a emoção interna não é somente conceitual e abstrato, mas é construído a
partir da estrutura interna de um refletido como estrutura visual no outro. Quando as
moças param de mastigar, não se fica sabendo ou não se percebe que elas estão
espantadas somente porque se sabe, a partir da própria experiência de cada um, como as
pessoas que se espantam ficam internamente alteradas. Ao contrário, esta sensação que
conhecemos é replicada no movimento rítmico e constante de mastigar, que é de repente
interrompido, reproduzindo exatamente aquela espécie de falta de ar que sentimos numa
tal situação, e tem a mesma estrutura do sentimento interno. Se fôssemos descrever o
sentimento interno do acompanhamento sossegado das garotas em relação à exposição
dos fatos no júri, poderíamos enxergar sua mastigação sossegada e o espanto, sua
repentina interrupção – enxergamos nas duas situações um paralelismo formal. Esta
essência interna é transposta para uma forma óptica.
Surge, portanto, uma situação exterior que consegue representar um estado de
ânimo subjetivo. Quando, em “Mulher na Lua”, Willy Fritsch corta com uma tesoura o
botão de uma flor que estava num vaso ao lado de sua mesa enquanto fala ao telefone,
consegue mostrar melhor do que se fizesse qualquer cara contorcida como ele está
nervoso. Isso é extraordinariamente cinematográfico (num nível até mesmo
primitivamente cinematográfico) porque é ação, ação visual. Em “Novos Senhores”, de
Feyder, é mostrado um velho conde que conta a sua amiga, a pequena bailarina, que o
até então ministro Gaillac teve de ir para o exterior. Gaillac é o amor secreto de
Suzanne, que se emociona muito com a notícia, mas que tem de se comportar como se
nada houvesse acontecido porque ela não pode deixar que seus sentimentos sejam
percebidos. O que acontece? Suzanne e o conde estão num café. Enquanto ela olha para
ele, ele lhe conta a história. Ela não demonstra nada em seu rosto e diz delicadamente:
“Nossa!”. Mas, ao mesmo tempo, sua mão torna-se trêmula e ela derruba café na xícara.
O que se passa com Suzanne quando ela fica sabendo da má sorte de Gaillac não é
praticamente notado por meio de alguma expressão facial, mas a cena já carrega esta
informação em si mesma e sabemos que ela teria de manter sua reação sob controle. Em
lugar desta solução, um diretor menos habilidoso que não soubesse como a explicitar
“cinematograficamente” poderia ter recorrido a mostrar a atriz representar sua comoçãol
contorcendo o rosto, se agitando, girando as pupilas dos olhos..., tudo isso direcionado
somente ao espectador de modo que o conde não notasse nada. Jackes Feyder, ao
contrário, expõe uma pequena ação que é totalmente verossímil, mantendo a desfaçatez
de Suzanne, mas expondo ao mesmo tempo seu estado emocional alterado que contrasta
com a dissimulação a partir de uma imagem que revela sem violentar a realidade.
Nestes pequenos exemplos, entende-se muito bem o que é um bom trabalho de cinema.
Pode-se encontrar esse recurso também numa famosa cena de amor de Greta
Garbo, a cena do cigarro em “A Carne e o Diabo”. Ela conheceu o jovem oficial John
Gilbert em uma festa onde dançam dentro das mais respeitosas convenções sociais: duas
pessoas totalmente desinteressadas uma na outra poderiam fazer exatamente o mesmo, e
não se presenciou ainda nada que pudesse prenunciar o que poderia ocorrer... Eles vão
então ao jardim, a moça coloca um cigarro na boca e o homem oferece um fósforo
aceso, mas, em vez de usar o fogo para acender o cigarro, a moça guarda o cigarro
novamente e usa a chama para iluminar seus rostos para que se admirem. A ruptura
abrupta do ritual social oferece, com muito mais intensidade do que qualquer mímica, a
representação dos sentimentos. Ela prenuncia: algo diferente vai acontecer.
A representação do estado de ânimo, que é um monopólio dos atores no teatro,
também pode ser representada no cinema por coisas inanimadas assim como pela ação
do ator. Uma janela quebrada pode ser tão eficaz como uma boca trêmula; e um monte
de bitucas de cigarro, tão representativo como dedos tamborilando. Assim fica claro,
mais uma vez, que o homem passa a ser, no cinema, mais um elemento na ordenação
das coisas do mundo. Tanto quanto a representação corporal das personagens, a
apresentação das coisas também pode expressar sentimentos humanos e ações.

Realidade e necessidade

O cinema é a arte que mais se assemelha à realidade – quando entendemos por


realidade as coisas que nos mostram nossos olhos e ouvidos. Vistas as limitações que
descrevemos no segundo capítulo e que não perturbam a sensação de ilusão, o cinema
nos mostra o mundo exatamente como nós o vemos na realidade. O que a câmera
registra é a realidade - do modo mais fiel possível.
Entretanto se sabe como os filmes são muitas vezes antinaturais, ou seja, como
eles podem mostrar o mundo de um modo diferente do que o mundo realmente é. É que
o conceito de realidade, que se encontra então em pauta, é um outro já mais elevado.
Vejamos a seguinte cena: em frente ao portão de uma fábrica, no horário de saída,
estaciona um carro luxuoso; um operário sai da fábrica; o chofer salta do carro, o
cumprimenta e abre a porta; então o operário entra, e o carro parte. Ou ainda: uma
mulher dá gargalhadas quando vê um estranho pegar seu filho e espancá-lo com um
cassetete. Estas cenas são antinaturais não no que se refere à realidade que captam e
mostram, mas porque se contrapõem a regras de comportamento e a regras psicológicas
do nosso mundo.
E nós não vamos deixar de ter essa sensação mesmo se o cinegrafista que filmou
essas duas cenas apareça e diga: “Vocês estão enganados! Estas duas cenas não foram
interpretadas, mas tratam de acontecimentos reais que foram filmados sem que se
percebesse. O operário é um milionário que tem por divertimento trabalhar como
funcionário em sua própria fábrica, e a mulher cruel é uma doente mental que não
entende nada do que se passa a seu redor!”
As cenas que o cinegrafista registrou são recortes de situações que não se opõem
à essência do que aconteceu. Mas um tal recorte do real pode ser considerado
antinatural e sem sentido. Se não considerarmos as duas cenas como representativas do
comportamento geral, elas passam a ser entendidas como possíveis e ganham um
sentido. Elas se contrapõem à naturalidade porque contrariam a regra social de que
operários não conseguem ter carros caros e de que mães não ficam impassíveis quando
veem seus filhos serem maltratados. Mas o que pensamos ser um operário é um
milionário, e quem pensamos ser uma mãe é uma alienada. O problema então é que as
cenas foram apresentadas de modo a pensarmos se tratar de um operário e de uma mãe.
Porque se cria necessariamente essa impressão? Não se pode dizer que foi uma
precipitação considerar antinaturais as situações apresentadas porque não há como saber
quando uma situação representa uma absoluta exceção, como nesses exemplos. Não se
trata de precipitação... estamos sim frente a um fato dos mais importantes. No cinema,
as situações que não sejam características não podem ser utilizadas. O público é
obrigado a considerar aquilo que é mostrado numa situação como a essência da mesma,
não podendo considerar trata-se de uma outra coisa que não serve, de modo nenhum, ao
entendimento do filme. Ninguém senão um operário deve sair vestido daquela maneira
de uma fábrica, portanto o espectador tem o direito de considerar que se trata de um
trabalhador.
A situação é muito distinta quanto vivenciamos algo no mundo ou numa sala de
cinema. O filme deve mostrar ao público tudo o que for importante para entender sua
história e deve descartar tudo o que seja superficial ou cause confusão. No mundo real
não é assim, pois o observador e a situação relacionam-se de modo casual e impreciso: é
possível que o observador presencie um momento não característico e secundário de
algo, portanto uma fase não significativa do acontecimento. Isso não pode ocorrer no
cinema porque uma obra de arte quer ser entendida, logo deve mostrar tudo o que é
essencial e nada do que seja supérfluo.
Esse “rigor da construção” já é cobrado desde a montagem de um simples
quadro da imagem. Mesmo a localização da câmera frente ao espaço de gravação não
pode ser casual, mas deve ser rigorosamente escolhida. Quais personagens devem ser
mostradas à frente e quais devem ficar atrás, se a câmera deve estar distante ou próxima,
qual é a duração de um único plano, tudo isso deve ser determinado de modo muito
preciso – e o mesmo ocorre com cada passagem isolada dentro da trama narrativa!
Quantas pessoas são apresentadas, quais funções elas desempenham, também isso deve
seguir rigorosamente em harmonia com o todo da história. Com auxílio da montagem,
os trechos característicos do local dos acontecimentos podem ser aproveitados melhor, o
que acontece de modo semelhante à construção da passagem do tempo. Mostrar que o
herói da trama se barbeia pela manhã pode ser uma perda absoluta de tempo - a cena
deveria ser descartada -, mas também pode ser a cena mais importante do filme (por
exemplo, porque foi assim que a mocinha o vê aparecer pela primeira vez). A escolha
desses trechos de ação característicos e a capacidade de comprimir neles informações
que fazem a trama se desenrolar é o principal trabalho do autor no cinema.
O avanço no sentido de que cada tema introduzido em um filme seja
fundamental, tenha de desempenhar um “papel” nele, aponta para a possibilidade de se
criar, em teoria, o que se poderia chamar de uma ideia cinematográfica. Um exemplo:
no filme “Homem da multidão”, de King Vidor, há, num cômodo, um homem que
ensaia um número de canto. Ele interrompe o ensaio a cada momento para fechar uma
porta do banheiro, mas esta não permanece nunca fechada e deixa ver no fundo uma
privada. Esta representação satírica de um romântico que se fundamenta na situação
mais coloquial só é possível se o diretor for muito preciso e não deixar nenhuma atitude
ou feição do ator surgirem sem sentido. A representação do ensaio não pode ser uma
atividade acessória da cena, mas deve sim ser o meio de caracterização que fala
diretamente ao público. Somente se a combinação do homem com a porta for precisa e
não casuística, se a abertura da porta do banheiro ocorrer no momento certo, se a
apresentação do banheiro causar a impressão apropriada, a cena funcionará. Portanto,
nada neste filme pode ser conduzido ao acaso. Somente assim este motivo invisível
irônico poderá ser apresentado claramente e com força suficiente para ser percebido.
Devemos concordar que uma composição tão particular só está presente em
filmes muito geniais. A grande maioria deles, incluindo até mesmo alguns filmes bons,
apresenta muitas coisas e ações desnecessárias, além de imagens e montagens feitas de
modo muito pouco elaborado.

Esquematização

Não é possível extrair uma fórmula generalizante do valor dos filmes com base
no fato de eles terem sido feitos a partir de uma ideia abstrata representada por sua
trama, ou de terem sido construídos a partir dos detalhes das imagens individuais até
que fosse surgindo uma unidade na sua totalidade. Essa separação estanque dependeria
da possibilidade de determinar muito nitidamente a separação entre uma e outra
estratégia, sendo que quase nunca elas se encontram em qualquer filme numa roupagem
que seja tão pura assim em relação a qualquer um desses dois tipos. O autor pensa em
algo: “Eu quero apresentar o comportamento de um jovem rico que renuncia a seus bens
por idealismo e tenta viver como um proletário, mas que então vive uma desilusão!”.
Mas, ao mesmo tempo, isso surge para o autor como uma situação bem específica
como: o herói vê na estação de trem uma criança suja, dirige-se até ela e generosamente
e lhe oferece bombons; já a mãe da criança caminha até ela, pega a criança, joga os
bombons fora e adverte – “Você não deve aceitar nada de estranhos. Nunca se sabe o
que eles querem!”.
Uma cena assim é como se tivesse sido desenvolvida num ateliê. Ela ainda
precisa ser decupada e pode ir para um storyboard. E estas cenas individuais conduzem
a narrativa de modo que o autor frequentemente seja levado a acrescentar nelas algo da
trama geral, como: por que o herói carregava bombons? Na verdade, são os confeitos
que ele pretendia dar a sua noiva, mas eles se separaram. A estação de trem também
deve ser justificada. E assim, de um modo muito pouco sistemático - por assim dizer de
baixo para cima e de cima para baixo -, sempre surgem novos impulsos que constroem
um bom filme. Assim entendemos aquilo que Goethe disse a Schiller: “E assim, quando
ocorre de o plano da obra conseguir colocar ao mesmo tempo os acontecimentos e a
narrativa juntos, se obtém uma tal vantagem que ela nunca pode ser desprezada”. Filmes
ruins são apresentados muito frequentemente num modo muito sistemático e mecânico.
Isso já pode vir de uma separação, desde sua origem, muito inconveniente e pouco
salutar entre a trama e o storyboard, que na prática é muito comum e sobre a qual ainda
falaremos.
Conduzir o filme ao mesmo tempo para baixo e para cima, ou seja, unificar tema
e cenas individuais, é muito conveniente porque, deste modo, o resultado são imagens
muito vivas. Uma condução muito sistemática - como é a regra prática da indústria
cinematográfica - em que primeiro a história é escrita em forma de roteiro e depois
passada, na forma de temas abstratos, para as cenas concretas acaba resultando, na
maioria dos casos, em imagens muito pouco originais. Os profissionais de cinema já
vivem hoje uma tamanha rotina que eles podem transferir mecanicamente qualquer
tema de um roteiro para uma decupagem. Há centenas de casos precedentes de como
representar um suicídio num filme (tiro de revólver, atirar-se no trilho do trem, tomar
veneno ou pular da ponte para dentro do rio). Há ainda um depositório de situações -
amorosas, roubos de cofres, vida de estudantes – que são representadas da mesma
maneira.
É claro que uma tal prática é totalmente inconcebível, artisticamente falando,
porque o filme só poderia contar com a organização de formas já dadas para fazer uma
ação viva. Os padrões formais esquematizados orientam a narração, sim, mas o fazem
de modo pouco interessante e, por isso, deixam o público que gosta de arte
decepcionado. Um sentimento extraordinário e instigante característico da boa arte não
pode nunca ser alcançado desta maneira.
Essa esquematização pode começar desde um nível muito elementar. Até mesmo
a história pode ser fabricada em uma espécie de linha de montagem. Conhecemos muito
bem filmes sobre o Reno ou sobre Heidelberg, filmes policiais, de guerra, de estudantes,
de caubóis, filmes sobre bairros orientais da Rússia czarista, todos eles feitos em série,
embora, neste nível, a esquematização seja muito pouco perigosa em relação ao cunho
artístico da obra. Só basta assistir a “Heidelberg antiga”, de Lubitsch, ou aos filmes de
crime de Sternberg e de Bancroft para comprovar. “Submundo”, “Polícia” e “As docas
de Nova York” são exemplos capazes de mostrar que temas batidos também podem ser
assunto para versões muito boas. Quando um gênio como Lubitsch trabalha, o coração
bate mais forte e chega a quase sair da boca por causa da trama de Karl Heinzen e
Käthi, ou mesmo a partir de um tema banal, como o de Chaplin em “Mulher de Paris”.
O problema da escolha do tema foi exagerado pelos intelectuais. Nós não
tratamos aqui nem de modos de ver o mundo, nem de questões políticas, mas falamos
de questões artísticas. Cum grano salis17, pode-se dizer que a arte repousa sobre os
detalhes, mesmo que isso não diga respeito somente ao cinema. Claro que a descrição
do ambiente deformada em filmes medíocres é irritante. Há muita política e pouca arte
nessas histórias de terríveis cidades em miniatura, ilusórias, com uma elegância de
fachada cuja existência real permanece um sonho distante. Mas o exemplo de Jacques
Feyder, com “Novos Senhores”, mostra que mesmo a partir de um tema com forte
tendência à rejeição, pode ser feita uma obra de arte. A história da arte é repleta de
exemplos assim.
Pudemos acompanhar nos últimos anos um desenvolvimento interessante no
cinema alemão. Como reação contra o mundo encantado e distante da realidade de
muitos filmes medíocres, houve um desenvolvimento no sentido de representar o
mundo exterior, que se encontra próximo do público, com temas realistas como a vida
do proletariado, dos pequenos funcionários públicos, das vendedoras, etc. O avanço foi
difícil porque esses filmes não são valorizados. As pessoas veem os tipos - como os de
Ziller -, os interiores de casas esfumaçadas e a miséria dos bares do mesmo modo
desinteressado como veem os tenentes Husardos e os castelos luxuosos, porque há
muito mais vitalidade na mais singela comédia americana feita por alguém como
Lubitsch do que em dezenas de filmes sobre a pobreza, que mostrem de modo fidedigno
mas com pouco talento a vida “como ela é”.
A questão do tema acaba se tornando no fundo um problema político.
Artisticamente falando, ele é muito pouco interessante. Assim, por exemplo, não é
verdade que há temas que se passam em tempos mais apropriados ao romance, ao teatro
ou ao cinema porque combinam mais com o meio. O que combina ou não com o meio,
no entendimento do público de arte, é uma questão, sobretudo, de qualidade sobretudo.
A ação de Lear é mais emocionante do que um acontecimento que se refira aos túmulos
de soldados de 1914 porque o poeta que escreveu sobre a guerra não é tão genial quanto
Shakespeare, e não por causa do tema. Mesmo as situações mais atuais, próprias e
individuais de nosso tempo, podem ser representadas de uma forma muito mais viva
pelos heróis dos geniais contos de fadas do que por personagens sem graça de um
presente sem nuances. O que é relevante em relação ao tempo numa obra de arte se
encontra muito além da simples época em que se passa a trama.
É também um erro atribuir a elevada qualidade do cinema russo ao fato de ele
usar como temas episódios oriundos da sua revolução. Cada vez fica mais claro que é
justamente esta amarra doutrinária aos temas revolucionários o que ofuscou até aqui nos
17
Expressão latina equivalente a “com certa parcimônia”
filmes russos, mesmo nos melhores, a veracidade, a unidade e o vigor. A revolução
ajudou a arte do cinema em um outro aspecto muito diferente: os estúdios russos
puderam produzir sem se preocupar com os custos e com o gosto do público. E assim
cada diretor russo pode desenvolver seu talento livre das dificuldades que, em todos os
outros cantos do mundo, atrapalharam o desenvolvimento do cinema, porque os
diretores dos outros países tiveram de enfrentar todas esses outros obstáculos também.
Que nada disso se origine no tema não significa que o autor e o diretor possam
descuidar de sua escolha. Ao contrário, logo surgem problemas se o diretor não
canalizar toda sua sensibilidade artística diretamente para desenvolver o tema do filme.
Os filmes americanos “Homem da Multidão”, “Chicago”, “A garota sem fé”, “Rivais” e
“Os quatro diabos” mostraram de forma semelhante uma situação de um sujeito na
grande cidade, o qual passa pelos problemas da luta pela sobrevivência, do terror da
guerra e da miséria da vida circense. Mas não é preciso ser muito esperto para perceber
que esses temas foram escolhidos pelos autores por darem uma margem muito grande
de apresentação de aventuras sensacionais. Isso determina o valor geral desses filmes,
mas eles tiveram de ser trabalhados com muita habilidade em cada um de seus detalhes.
Acabamos nos distanciando muito de nosso assunto. A questão volta a ser a
padronização dos temas dos filmes e há ainda o que falar sobre isso, como o fato de
surgir, como resultado desta homogeneização, uma indústria do cinema que em geral
raras vezes apresenta uma grande novidade para o próprio cinema.
O arquiteto Walter Gropius expressou a ideia de que se poderia produzir uma
construção civil em série de moradias de modo que todas elas se parecessem diferentes
umas em relação às outras na aparência, mas que fossem construídas a partir dos
mesmos elementos padronizados – elementos que poderiam ser fabricados em série. É
justamente a partir deste princípio que a indústria cinematográfica produz filmes como
mercadorias. Os elementos são sempre os mesmos e são trabalhados sempre da mesma
maneira, mas eles são combinados de modos diversos e, assim, podem ser produzidos
novos filmes sempre a partir dos mesmos materiais. Desfaçatez, segredos, resgates no
último momento, disputas em torno de uma mulher, falsas desconfianças, disputa por
herança, perseguições... Não seria difícil construir uma tabela em que cada situação de
um filme pudesse ser desmembrada e com a ajuda da qual, a exemplo de uma tabela
periódica da química, fosse possível encontrar as lacunas e preenchê-las com as
situações que ainda faltam ser exploradas.
Os autores de roteiros parecem estar completamente fora do nosso mundo. A
matéria-prima a partir da qual eles trabalham para criar suas ideias não é retirada da
realidade, mas sim de outros filmes que tenham obtido algum sucesso a partir de uma
determinada história.
A situação que surge desse quadro é da maior periculosidade quando se aplica
não só para a escolha da história como também para a compreensão tanto da forma de
produzir as imagens quanto dos posicionamentos de câmera. O inesgotável parque de
tipos humanos passa a se reduzir a alguns poucos tipos, a arte passa a ser normalizada a
partir de situações determinadas e caracterizada por certos detalhes, os mesmos recursos
artificiais passam a se repetir sempre, os mesmos elementos são utilizados nas mesmas
funções, as mesmas decorações para os mesmos ambientes, e para as mesmas paisagens.
Surgem o velho barão, a gorda cozinheira, o detetive elegante, a camareira
maquiada, o cocheiro obeso, a esposa sofredora, o inventor genial, a sogra
desengonçada, o garoto magro, o dentista espirituoso, o advogado sempre ao telefone, a
pobre criada, o marido ciumento, a mãe idosa, o guarda florestal preguiçoso, a filha do
dono do pensionato, o cavaleiro protetor, o bandido acrobático, o amigo imaturo, o
papagaio barulhento, o pastor fiel.
Some-se a isso, o relógio que marca as horas, a placa com o nome na porta da
casa, o revólver escondido, o buraco da fechadura, as pernas que se trançam, o chapéu
masculino, a notícia de uma morte estampada num jornal, o monóculo caindo, uma taça
de champagne se quebrando, o smoking fora de hora, a primeira frisa do teatro, o
cinzeiro com guimbas de cigarro, a fotografia de uma mulher distante, a visão de um
cavalo, o escorrer de uma lágrima, o dinheiro rasgado sobre o tapete, as estátuas nas
salas de tesouros, as ondas circulares na água, o tremular das franjas da toalha de mesa,
o espelho retrovisor do chofer de táxi, as bolhas de sabão nas costas, o declive da
paisagem à beira da estrada, a manipulação do aparelho de telégrafo, o cartão de visita
com a coroa real, a luz da lanterna, o cheque de um milhão de dólares, a falta de dentes
na boca da zeladora, os dedos sobre o piano, as nuvens encobrindo a lua...
E o mais surpreendente é que todas essas passagens cinematográficas foram
concebidas um dia por cineastas talentosos. Mas ocorre que seu uso imitado – e por um
número insuportável de vezes - acabou com todo o seu frescor. Quem representou pela
primeira vez um beijo de forma indireta, mostrando somente as pernas do casal, seus
movimentos, sua excitação, seu toque, desenvolveu um recurso cinematográfico quase
mágico. Mas, quando se veem estas pernas sempre a se trançar em todos os beijos de
um filme qualquer, elas perdem sua boa qualidade como forma de representação muito
rapidamente.
A produção de filmes comuns nunca permanece estacionada num mesmo estágio
de desenvolvimento do meio de expressão cinematográfico. Estes filmes aparecem
sempre na retaguarda dos desenvolvimentos de ponta, de modo que aquilo ainda hoje
considerado um grande efeito artístico tornar-se-á em dois anos uma prática comum. O
uso de close-up e a utilização de objetos num determinado contexto, foram criados por
cineastas talentosos e depois rotineiramente foram copiados. Assim, nos últimos anos já
se encontra nos filmes mais comuns uma montagem ativa e o uso da colocação de
câmera no estilo russo. E segue uma evolução vagarosa no nível da produção em geral e
no padrão de utilização dos recursos cinematográficos. O problema é que o novo é
transformado em banalidade quando passa a ser comum e facilmente aceito.
Não se deve admirar o curto tempo de duração do valor de uma inovação no
cinema. É verdade que se trata de algo distinto do que nos acostumamos a ver nas artes,
em que o novo não desvaloriza o antigo. Seria um disparate avaliar que uma pintura
impressionista seja melhor do que uma do treccento italiano já que utiliza um tipo de
perspectiva muito mais elaborado. Mas é importante notar que há, sim, um
desenvolvimento da técnica impressionista desde Manet até Cézanne. No interior de um
determinado estilo artístico, há evolução e incompletudes que são elaboradas até que se
atinja seu completo desenvolvimento. Há um desenvolvimento do romance psicológico,
da harmonia polifônica, da dança de balé, do estilo da construção, etc., e, no interior de
tal desenvolvimento, o novo desvaloriza em certa medida o estágio anterior.
É o que se passa no cinema que, apesar de sua juventude, já desenvolveu pelo
menos duas importantes formas estilísticas claramente distintas. Assim, não faz sentido
considerar um filme russo melhor do que uma comédia de Chaplin por causa da
utilização consciente do controle e da movimentação de câmera e da montagem. Na
comédia norte-americana, também há, na verdade, uma montagem e um tipo de
enquadramento. As cenas eram mais longas, há menos cortes e eles ocorrem somente
quando se altera o lugar onde se desenvolve a nova ação ou quando um close é
apresentado. Esses closes são usados de um modo muito primitivo, como uma lente de
aumento, e não são utilizados como meio de expressão. A câmera era vista somente
como um equipamento de gravação, ela era colocada bem no centro da ação e movida o
mínimo possível. Os filmes cômicos pertencem evidentemente a um período anterior ao
desenvolvimento do movimento de câmera e da montagem. E, por este motivo, no
estágio atual de desenvolvimento do cinema eles não são de modo algum nem
preservados nem valorizados. Isso porque eles padecem internamente de uma limitação,
o que resultou num estilo totalmente rígido, quase engessado, e que não possibilita
praticamente a utilização da montagem e não permite também mudanças de
enquadramento, as quais quase não são utilizadas.
Já pensando no grupo dos filmes que se utilizaram de técnicas de enquadramento
e de montagem, encontramos tanto filmes comuns quanto esquematizados. Estes
últimos não conseguiram elevar o nível da produção a partir do uso dos novos recursos
de expressão, nem extrair deles um resultado melhor. O que era para ser instigante e
cheio de vida tornou-se seco e vazio.
Isso ocorre porque se desenvolveu o que se poderia chamar de “ateliê
industrial”. Desde a primeira concepção da ideia até o direcionamento dos holofotes,
tudo segue uma regra absoluta. Esta regulamentação pode não parecer estranha quando
se trata da fabricação de automóveis. No que se refere à arte, porém, a estandardização é
uma piada de péssimo gosto. Além de cobrar um mínimo esforço intelectual, ela cobra
uma fabricação muito rápida e pouco trabalhosa. Consegue desta maneira, como jamais
havia sido possível até então, fazer do artista que sempre foi taxado de improdutivo -
financeiramente falando - uma espécie de artesão que, num sentido mais técnico, tem de
trabalhar como um operário, mão-de-obra industrial.

Sobre a psicologia da confecção dos filmes

Faremos uma pequena digressão em um campo externo à estética. Quando se


trata da produção de um filme, deve ser demonstrada sem dúvida a tendenciosidade de
seu teor.
O público escolhe o filme que ele quiser. O produtor trabalha conforme o dito
popular: ele contabiliza os filmes que obtiveram sucesso e os que não obtiveram e, a
partir disso, conduz a sua produção. Mas que tipo de filme querem as massas?
Vamos tratar aqui não de questões formais, mas dos problemas do conteúdo. Que
tipo de conteúdo querem as massas?
Quase todo filme dissemina, consciente ou inconscientemente, uma tendência
determinada. Não se trata de que algo seja explicitamente pregado, e o perigo desta
tendenciosidade reside justamente nisso: em que nada é formulado teoricamente,
nenhuma ideia é claramente apresentada. Contudo, o próprio ponto de vista a partir do
qual se observam as coisas do mundo, a própria escolha das histórias e também os
desfechos das tramas com suas lições de moral, todos passam suas mensagens assim
mesmo.
Na vida, acontece todo dia que homens inocentes sejam culpados por algum mal,
que boas ações sejam julgadas com desprezo, que um homem trabalhador tenha má
sorte enquanto o homem mau - que não merece - tenha boa sorte, que os criminosos
andem de carro e que inventores geniais permaneçam desconhecidos. Mas não no
cinema. Já que temos tão raramente plenos poderes, ao criar histórias, as adaptamos aos
nossos desejos. No cinema, as coisas se passam como se tudo no mundo fosse do modo
que achamos ser justo e belo. O que o querido Deus não proporciona, o homem mesmo
coloca em sua própria criação. E ele é ingênuo o suficiente para considerar como justiça
verdadeira esta compensação de justiça fictícia. Ele simplesmente ignora, com o
coração sem pesar, a diferença entre realidade e imagem.
Esses filmes servem para alegrar o público de dois modos: eles apresentam
como agradável e bom o que todo homem deseja e, ao mesmo tempo, mostram a
punição das pessoas ruins. Como veremos, eles trabalham com valores burgueses,
portanto que esses filmes consigam, apesar disso, encontrar uma aceitação no mundo
todo é uma mostra de como estão difundidos, por toda a parte, o gosto pelos valores
burgueses e conservadores. Há muitas pessoas que são muito modernas e
revolucionárias em teoria, em princípios, mas que caem em contradição na prática: elas
aceitam com facilidade dizer que uma garota deve buscar sua felicidade, mas vigiam sua
vizinhança e se sentem vítimas de uma tragédia caso a própria filha venha a parir um
filho fora do casamento. São pessoas que, em teoria, desaprovam que soldados armados
possam ser grosseiros com os cidadãos por divertimento, mas que não conseguem
conter seu prazer ao ver a pancadaria no cinema que mostra soldados ou policiais
musculosos batendo rudemente em seus corpos. É que o mal é da natureza humana e a
ignorância nasce também com ela, determinando àquele preocupado em melhorar o
mundo a necessidade, não de dirigir a própria energia contra os comportamentos
selvagens dos outros, mas, principalmente, de transformar a si mesmo A ignorância e o
mal no homem são somente tocados pela produção cinematográfica. Ela está mais
preocupada com o fato de o descontentamento não se transformar em uma ação
revolucionária, restringindo-se, assim, numa ideia genérica de apontar para o fato de
que o mundo poderia ser um pouco melhor. Ela serve os valores de agressividade em
doses homeopáticas.
Contudo, isso não acontece apenas porque 90% da produção cinematográfica
está nas mãos das pessoas que têm interesse na manutenção da ordem social que é
favorável a elas, pessoas que têm interesse em desviar as energias revolucionárias e em
deixá-las chocarem-se contra um para-choque. Seria impossível levar uma produção
cinematográfica para milhões de pessoas se ela não atendesse ao gosto delas. A
produção de filmes flerta com aquilo a que as pessoas estão mais habituadas. Se ela é
inimiga da arte e do desenvolvimento, é porque oferece o tipo de produto engordurado
que alimenta o ódio à arte e à transformação em cada uma destas pessoas.
Só é preciso analisar algumas dessas histórias para logo se evidenciar quanto
veneno está embutido no que parece ser uma simples fonte de entretenimento. Por isso,
vamos citar histórias que são reproduzidas literalmente de crônicas de jornais
especializados.
“O roteiro de Franz Rauch não segue uma linha contínua, o sentimento que
move a trama não tem sempre a mesma intensidade. Ele trata do romance de um conde
recém-empobrecido com a filha de um empresário. Ele a conhece quando ainda era rico,
e mais tarde se torna, por acaso, professor do irmão da moça. Ela se irrita com a postura
arrogante do conde. E, após superar obstáculos diversos, tudo termina num belo final
feliz”.
Trata-se certamente de um enredo engraçado, alegre e multifacetado, mas é
ainda mais. O roteiro de Franz Rauch lança uma bruma sobre o cérebro.
Assim como a estrutura psíquica de um paciente pode ser revelada pelos
psicólogos a partir das histórias simples dos sonhos, o material da história dos filmes
também serve para uma análise psicológica do homem comum. Existe um ressentimento
contra a postura arrogante dos ricos e nobres. Essa arrogância é uma injustiça presente
no mundo real, por exemplo, o título de nobreza que é um tipo de abuso e a riqueza que
é construída a partir da fome de milhares de pessoas. Por isso, a revolta contra ela
deveria servir de estímulo para combater a riqueza e a nobreza, para construir um
mundo melhor. Mas, ao lado do sentimento revolucionário, repousa o conformismo que
prefere adotar o caminho mais sossegado da falta de atitude. O cinema não é um
instrumento inadequado de influência. Ele desvia o ódio contra o infortúnio de forma
geral, de maneira que ele se apresente numa forma muito especial, quase amável,
totalmente atípica. Parece que os ricos ganham seu dinheiro e os nobres conduzem-se à
superioridade sem onerar os bolsos do público de cinema por meio de um truque
inocente. A ruína financeira do rico conde indica que há, sim, justiça no mundo – e isso
dá prazer aos pobres, que desembolsaram um marco para ir ao cinema. Este prazer é o
que dá valor ao marco18 gasto mesmo que, do lado de fora da sala, os ricos e os nobres
continuem a ser tão ricos como sempre foram.
“Joe Dallmann escreveu um roteiro leve que agrada o gosto do grande público.
Um velho general está numa situação financeira desastrosa de modo que cai em boa
hora o pedido de casamento de um joalheiro para sua filha. Um dia antes do casamento,
o joalheiro toma conhecimento de que sua noiva ama outro homem. Isso faz com que,
no dia de núpcias, conclua que a união não é possível, desista da noiva e rompa com a
relação.”
Pouco antes do rompimento com a noiva, o joalheiro ainda assina um cheque
muito generoso. O personagem é simpático e o ressentimento da história não está
direcionado contra ele, mas contra sua riqueza. O rico não consegue obter a mulher, ou
seja, não é possível conseguir qualquer coisa com o dinheiro. E isso amortece a raiva
dos despossuídos. A injustiça de que haja gente rica e pobre no mundo é atenuada pelo
fato de que o rico queira uma coisa, e que um pobre consiga aquela coisa num episódio
totalmente individual. O truque reside em que uma situação perversa típica ganhe uma
solução inusitada dando esperanças, mas também esconde o fato de nascer de uma
apresentação ilusória de uma exceção que é uma parte tomada como se fosse o todo. E o
pobre – e isso é o mais curioso dessa história – não consegue somente a garota como
também ganha o dinheiro, porque dinheiro não é somente algo ruim quando outra
pessoa o detém, mas também é uma coisa boa quando somos nós mesmos quem o
possuímos. Assim o filme não estimula sentimentos revolucionários, mas sim alimenta
comportamentos egoístas oriundos do ressentimento contra a riqueza. Por fim, o que dá
um tom picante à história é que o pai da garota é um general, porque a pobreza
envergonha mesmo!, porque a heroína do filme não deve ser desonrada, e porque o
oficial saxão deve receber uma compensação. Assim temos tudo colocado lado a lado: o
ódio contra a riqueza humana ao lado do joalheiro que age com a maior benevolência; a
maneira como o joalheiro não consegue possuir a mulher a despeito de sua fortuna,
demonstrando que o amor é algo para o qual o dinheiro não tem a menor serventia; e, ao
mesmo tempo, o desfecho que liberta os despossuídos da própria situação de dificuldade
e vergonha, da baixa autoestima que a própria pobreza cria. Não é possível dizer que
sejam belas as motivações que o filme revela e alimenta.
Noventa por cento dos filmes tratam de pessoas ricas. Eles são sonhos filmados
e libertam os desejos por riqueza. O público alegra-se com o carro que o herói usa como
se pertencesse ao próprio espectador, e sente a mesma emoção quando uma criada ajuda
a heroína a vestir seu casaco em pura seda. Parece muito claro nestes filmes que eles
não querem colocar nas narrativas as pessoas ricas como elas efetivamente são no
mundo real, mas sim simplesmente como representantes de um mundo irreal da fartura
fantasiosa – totalmente emancipada de qualquer necessidade de cuidado econômico -
dos meios para sobrevivência. As pessoas ricas, nos filmes de ficção, não são ricas
porque ganham muito dinheiro, mas sim porque elas levam suas vidas sem se
preocuparem com nada; ficam o dia todo em casa, têm o dia todo para os amigos e as
mulheres amadas. Quando tomam um táxi, elas não pagam. Quando frequentam um
restaurante caro no qual o proprietário recomenda um peixe e são interrompidas por um
pretendente inconveniente ou pela sogra que apareceu numa mesa próxima, a conta não
precisa ser pedida nem paga, e a funcionária que guarda os pertences devolve o casaco
18
Moeda alemã na época, substituída pelo Euro.
de pele sem pedir nenhum comprovante. Uma vez que fosse esclarecido realmente que o
comércio ou uma fábrica raramente financiam esse tipo de despesa, viria à mostra que
se está à beira de uma falência e, assim, seria necessário a filha estar disposta a evitá-la
oferecendo seu corpo em sacrifício a um provedor bruto, mas também que fosse
explicitado o seu mau-caráter esbanjador num modo por demais direto. Mas essas
pessoas dispensam porta-moedas e carteiras como fantasmas que transitam num
opulento mundo de sonhos e que passam a sensação ao público de não haver do que
reclamar da realidade, porque o conteúdo da ação mata tanto o desassossego quanto o
desespero pelo motivo de que, lá dentro do filme, eles não têm nenhuma necessidade.
É muito instrutivo como um ou outro final de filme sobre o mundo representa a
ideologia da burguesia no cinema, por exemplo, o nativo nu das terras primitivas que
deve se adaptar ao gosto moral das cidades. No filme “Tabu”, de Murnau, os moradores
das ilhas vivem sem preocupações, felizes como os barões de fraque dos filmes sobre a
sociedade. Do mesmo modo como eles, os índios também se ocupam do amor e do
casamento. A semelhança do como o diretor geral fala ao telefone com rugas no rosto
para que o espectador perceba a tensão característica dos negócios, o índio corta flores e
faz uma coroa enfeitada, por puro entretenimento, para cobrir com pétalas a cabeça de
sua amada. O que se relaciona com a economia surge sempre com um caráter
demoníaco, como quando o dono do albergue, um chinês dissimulado, apresenta uma
conta abusiva. O amor é o pano de fundo de todo roteiro em sua luta contra as
convenções, seja contra um tabu da religião dos mares do sul, seja contra o sacramento
do casal católico. Mas, tanto num caso como no outro, quem sai vitoriosa na situação é
a norma, e o papel do vilão recai sobre o tubarão.
Uma solução característica exemplar do problema geral do caminho individual
foi dada pela política emocional de Thea von Harbou, em “Metrópolis”: ali a luta
sangrenta entre o mundo subterrâneo dos trabalhadores e o mundo da superfície dos
empregadores foi atenuada porque o filho do magnata da indústria torna-se um bom
amigo dos trabalhadores e, sob o som de sinos, une as mãos do representante dos
operários com a do seu chefe-pai. Assim a questão social do mundo transforma-se num
acerto em torno de uma negociação por melhores condições salariais.
É muito instrutiva também a história americana de “Garota sem fé”. Há uma
disputa entre os internos de uma instituição educacional para saber se Deus existe ou
não. No debate, os adeptos das posições contrárias criam um tumulto, e uma escada se
quebra deixando uma pequena criança cair. No chão agonizante, ela pergunta - tomada
pelo medo da morte - se irá para o céu ou se não há mesmo um adorado Deus. Dilema
para os ateus! Uma situação vivida pela criança é assim utilizada como propaganda que
advoga o valor da consolação da igreja.
O filme de ficção não só reforça o conformismo geral com a Igreja e o
capitalismo, ele preza também o caráter sagrado do casal e a divindade da instituição da
família.
“Um jovem conde abandona a mãe e parte porque odeia o seu padrasto. Ele
trabalha num arriscado número de circo. Depois de muitos anos, quando se imaginava
que já estivesse morto, retorna à Europa. Então reencontra uma garota que se
preocupava com ele no circo, se apaixona por ela e se casa. O casamento de sua mãe vai
muito mal e o padrasto tenta evitar o encontro entre mãe e filho. Mas o amor da mãe
fala mais forte e os dois se veem. O padrasto tenta assassinar o enteado, mas ele mesmo
cai na armadilha que armou para o jovem e despenca no chão no meio do picadeiro.”
(Roteiro de Georg Klaren e H. Jacobi)
Percebe-se que a presença de um padrasto em lugar do verdadeiro pai, de uma
pessoa que persegue o menino injustamente, preserva o axioma do amor dos pais por
seus filhos intocado. Uma trama de mau comportamento, tão imoral, somente é
apresentada quando se demonstra, também na mesma trama dramática, que algo não
corre bem e que, portanto, deve ser recolocado nos trilhos. A vida da família foi
destruída e, por isso, o causador da situação deve ser punido. A dissonância é
fundamental para que haja uma libertação por meio de um acorde que restaure a
harmonia. O casamento infeliz que o malfeitor impôs à esposa e a infração que
representa contra o segmento do estado de casado serão vingados no chão do picadeiro
juntamente com a tentativa de agressão contra o enteado para o qual ele deveria se
portar como se fosse um pai. Como a mãe e o filho são os representantes dos princípios
de paz e de ordem, eles atingirão sua merecida felicidade.
“O filme é construído primorosamente e não há nenhum prejuízo pelo tema não
ser novo. É a história de um homem que trai seu melhor amigo com a mulher, mas sem
intenção, porque ele não conhecia a mulher do amigo. Só mais tarde o marido descobre
que o mau-caráter desta traição não foi o amigo, mas a mulher. Também não é novidade
o que ocorre na sequência desta tragédia conjugal, que o homem traído entre numa crise
ao precisar decidir se resgata ou não os ocupantes de um submarino afundado onde está
também o amigo de quem ele quer se vingar.”(“Submarino”)
Finalmente ele se decide evidentemente pelo salvamento. O que se passava por
uma quebra de uma grande relação de confiança e amizade é, na verdade, resultado do
desconhecimento da origem da traição: a gravidade da ação condenável do amigo é
atenuada porque ela se mostra não ser intencional. Neste meio tempo, o amigo culpado
pode se penitenciar de seu delito ao longo do martírio no submarino afundado –
equivalente ao martírio a que ele deveria se submeter no entendimento comum, segundo
o qual um adúltero deve ir para o inferno. A mulher totalmente culpada, que não é
apresentada com bons olhos no decorrer do filme, mas somente agarrada a cigarros,
dança e beijos, recebe sua punição: é abandonada e fica sozinha quando o amigo a
descarta enojado.
Na vida, muitos pais tratam mal os filhos sem que Deus os lance contra o
picadeiro, e ocorre muita traição que não leva a submarinos afundados. O filme de
ficção, porém, não passa por nenhuma prova da experiência. O “happy end” surge, desta
maneira, não só por um motivo estético, mas, sobretudo, com uma função de catarse
moral. Ele nunca é simplesmente psicológico e casual, mas sim valorizado eticamente.
Não é suficiente que ele mostre o desenvolvimento e a resolução de um conflito: ele
deve tomar partido e sustentar que sua resolução não é sem sentido nem um caso
aleatório como ocorre sob o regime da mãe natureza, mas sim que é sábia como se
regida pelo rei Salomão.
A inimiga da relação estabilizada é representada pela figura da Vamp, uma
mulher fatal que reúne características similares à de um vampiro ou de uma sereia que
promove o encantamento de marinheiros. Ela é a Succubus (deusa feminina sedutora)
da mitologia do cinema, é o diabo que tenta o homem a cometer o pecado. Mas o diabo
deve ser punido exemplarmente. Em “Era assim”, Greta Garbo trai dois amigos
alternadamente até que ambos a exemplo do terror no submarino se encontram numa
cena de duelo. Mas o bem prevalece: Deus olha do alto do picadeiro, e a Vamp se afoga
infeliz entre lágrimas geladas. Para o vício não se propagar, ele deve ser purificado por
um jovem de alma pura que faça a Vamp renunciar a sua desprezível leviandade, por
exemplo, como em “A admirável mentira de Nina Petrovna”, em que um passado
complicado conduz, entretanto, a uma superação. Em “A dança da morte do amor”, a
conquistadora de corações Grega Garbo cai no alcoolismo. Seu amado é compensado,
entretanto, com o prêmio das carícias eróticas – um acaso excepcional – mas ela senta-
se deprimida à mesa de um restaurante e entrega-se à bebida com olhos apáticos.
Do modo semelhante, “Querida dos deuses”, tem uma cena no hall do cantor de
ópera, interpretado por Janning em que uma conduta mal comportada leva à ruína das
cordas vocais. O médico de garganta torna-se um defensor da boa conduta. Logo que o
cantor renuncia à bailarina e à russa – dois tipos de mulher que, no padrão psicológico
do cinema, representam, sobretudo, a ilegalidade por si sós – e se conforma com uma
pacata vida no seio da família, apesar do prognóstico pessimista do médico e contrário a
qualquer senso de realidade, sua voz é prontamente restituída – do céu, onde Deus
mora, porque a manutenção dos talentos se dá por meio de verdadeiros milagres.
“O tema não é novo, mas foi aprofundado psicologicamente. Uma criança sofre
em meio à infelicidade do relacionamento de um jovem casal, e o pai não tem a mínima
consideração por isso. É, portanto, uma felicidade que o pai não retorne de uma viagem
marítima em que embarcou com uma amante, fato que é dado como uma casualidade.
Agora a mulher pode se casar com seu verdadeiro amor. Mas, no dia do casamento, o
primeiro marido reaparece. Ele não se nega a uma separação, mas quer que a criança
fique com ele. A esposa não pode aceitar isso porque sabe que comprometeria a
felicidade pessoal da criança. Então a amante intervém, na forma de um deus ex
machina19, e mata o marido (“O coração de mãe”).
A parte culpada será punida com exílio e morte. O desfecho não necessita, desta
vez, de uma força maior, mas pode se consumar com a amante que, pela sua
ilegitimidade, não tem a obrigação de um comportamento moral e pode carregar sobre
suas costas uma morte sem qualquer dificuldade. Se a própria mulher como um deus ex
machina matasse o respectivo marido, poderia se pensar que o peso moral seria o
mesmo. Mas não é bem assim. Mesmo a personagem que fez concessões pelo
casamento - e com isso foi parar ao lado de quem tem créditos na trama - não tem
permissão para carregar sem punição um crime na consciência no último ato. Quem ama
sem fidelidade deve também morrer – e não há mais o que fazer. Do mesmo modo em
“Canção popular” de Lulu Pick, um gordo sedutor de meninas não é morto por sua
própria mulher mas por uma zeladora.
Infidelidade em geral se relaciona com culpa: “... logo que a noiva se foi, o
noivo fechou o livro e vestiu o smoking para dar um passeio. Então ele desconfia de um
barulho vindo da sala do tesouro que só poderia ser de um maçarico de um bandido. Ele
pega uma lanterna, acende a luz e caminha pela sala do cofre onde surpreende os
ladrões que furavam a porta blindada por fora. Ele pensou imediatamente em chamar a
polícia quando uma mulher foi em sua direção, precisamente uma “dama” que ele havia
mandado chamar em segredo, mas que só queria prendê-lo no escritório para que seus
cúmplices ladrões tivessem o trabalho facilitado. Ela diz a ele cinicamente: ´Ligue
mesmo para a polícia! Sua mulher vai ficar contente!´ Deprimido, ele desiste.” (“Me
perdoa”)
O caráter criminoso de uma ação de infidelidade é ressaltado pelo fato de que a
amante vem do mundo do crime, um contexto que não guarda nenhuma relação com a
questão da infidelidade, mas que pode ser pontualmente combinada com ela com o
objetivo de mostrar sem retoques a associação que se pretende mostrar a seco. Isso faz o
espectador envergonhado associar imediatamente uma coisa à outra. O realismo de uma
ação desonesta.
É difícil aflorar algo especialmente positivo quando são exploradas as áreas mais
profundas do inconsciente humano. Isso se dá também em nosso caso. Nós mostramos o
tipo de moral padronizada que está presente nos filmes voltados ao público em geral.

19
Termo que faz referência ao teatro barroco, em que deuses surgidos como que por milagre no palco,
interferiam na trama para impor uma solução inesperada para um drama complexo, aparentemente sem
saída.
São situações agudas que analisamos, mas que não se imagine que escolhemos
intencionalmente casos de especial maldade. Ao contrário, se qualquer um não tem nada
melhor para fazer à noite e então se dirige sem conhecer a programação, para a sala de
cinema de oitenta centavos de marco mais próxima da sua casa, em nove de dez filmes
que sejam vistos ao acaso poderá constatar situações que combinam com a análise que
desenvolvemos.
O que isso significa? Que os filmes que se destinam à grande massa de público
revelam a imagem característica de mundo do espectador: os ricos e nobres são
inimigos e devem se dar mal, mas nem tanto porque seus privilégios sejam imerecidos,
e sim porque nós não participamos também destes privilégios. Nós desejamos também
as vantagens, a riqueza, a moleza e a libertação do trabalho cotidiano. Nós enxergamos
nossa própria pobreza e desconforto com os olhos do inimigo, nós nos culpamos e
buscamos encobrir nossos pontos fracos com cenários coloridos, porque não somos no
fundo conscientes, mas sim crentes e devotos. Nossos desejos são muito mais fortes do
que nossa razão, sentimo-nos totalmente satisfeitos quando uma coisa que desejamos
ver acontecer se realiza na representação cinematográfica e não nos preocupamos
minimamente se esta realização foi obtida por meio de acontecimentos manipuláveis e
simbólicos: nós ficamos, por exemplo, felizes quando a igualdade entre ricos e pobres é
obtida por meio de uma cena de amor e nos damos por satisfeitos, sem senso crítico,
com a alegria resultante do efeito de bom comportamento.
Nós acreditamos, de longa data, que há um deus amoroso no céu. Não lançamos
críticas racionais – ou reparos - contra as outras pessoas, mas sim censuras morais, cujas
regras são extraídas de um código de comportamento estúpido. Traição ou
desentendimentos familiares não são para nós casos infelizes que se dão quando
pessoas, cujas personalidades não combinam, estão juntas porque a natureza as
conduziu a um erro de percurso. Trata-se muito mais de crimes condenáveis que devem
levar a uma condenação eterna, perdão ou arrependimento. Pessoas que se entregam a
essas condutas devem, se não quiserem nos aborrecer, ser lançados para fora da
convivência com o mundo burguês tradicional; não podem permanecer em nosso círculo
social, mas devem ser tratadas como criminosos, vigaristas, ou cortesãos. Um homem
com uma loja de atacados o qual se deixa uma vez desviar numa má conduta, mas que
recua num arrependimento sincero, pode seguir sua vida de senhor respeitável - o
mesmo se dá com mulheres e crianças.
Que tipo é assim retratado? É o alienado. E, por isso, mostra-se uma situação tão
perigosa que os milhões que gostam dos filmes de ficção, secretamente e sem se
aperceberem disso, são levados à alienação. Um dos aspectos mais importantes disso é
que a maioria do público pertence ao proletariado, mas, no subconsciente da alma dos
proletários - justamente onde a clareza da razão tem menos penetração -, reside uma
grande quantidade de ideologia burguesa, como não poderia deixar de ser por uma razão
histórica: a razão, antecedendo os sentimentos em algumas dezenas de anos, já tem
consciência de classe, e os sentimentos ainda se afundam na visão moralista e na visão
de mundo do passado burguês. Esta névoa no inconsciente encobre uma tradição
centenária que até hoje é zelosamente alimentada na escola, na Igreja e pelo Estado.
Mas ela é felizmente, para muitas pessoas, somente deixada no porão, sendo que, no
andar de cima onde entra o ar puro da razão, há senso crítico e bons impulsos
revolucionários. Estas pessoas não alimentam a sensação de descobrirem em si um lado
mau quando se sentam livremente no cinema para ver “O conde e a florista”. Isso
porque elas sabem contrabalancear esse tipo de filme que valoriza a existência de um
lado perigoso da sua alma, o qual, por ser encoberto num canto, escondido, é difícil de
ser combatido. Assim, recomenda-se que ele deve ser eliminado num combate cujo
trabalho, de todo modo, é mais intenso porque escola, Igreja e Estado também estão
envolvidos.

O caso Greta Garbo

Não queremos encerrar nossos comentários sobre os filmes comerciais atuais


sem apresentar, por meio de um caso particularmente especial, o que acontece quando
uma pessoa de verdade, um ser humano moderno e natural, lança-se no universo da
indústria cinematográfica. O caso de Greta Garbo mostra muito claramente que não é
possível, mesmo a uma grande atriz reconhecida internacionalmente, proteger-se contra
a padronização, a inverossimilhança e a esquematização que a produção
cinematográfica mediana faz tão frequentemente.
Quando Greta Garbo começa a falar, em “Anna Cristina”, com uma voz
profunda, rouca e descortês, embora utilizando muitas vezes movimentos tão
harmoniosos como os de um felino elegante, o resultado fica muito distante do que se
espera de uma dama: uma parte do público ficou assustada e decepcionada; a outra se
alegrou por somente agora conhecer a voz de quem tantas vezes havia só visto, sem
som.
A decepção foi perceber que, ao longo de anos, ela pôde se passar por alguém
natural da América e não da Suécia, um ser com a pele branca de seda, ornada, bem
cuidada, refinada e opulenta, uma joia para deleite dos homens. Eles viam o modo pelo
qual, mesmo num papel de uma criada no oeste selvagem, ela descia uma escada como
se fosse um anjo entrando pela janela no Natal. Eles a viam com grandes decotes, com
uma flor sobre os ombros ao piano ao lado de diplomatas de fraque cantando uma ária
da ópera Tosca. Eles a viam no parapeito de um camarote, no volante de seu automóvel,
de saia branca num bote. Portanto, uma mulher assim tinha de ter uma voz celestial,
harmoniosa. Greta Garbo, porém, aparece no seu primeiro filme sonoro, lançada e sem
dormir direito numa mesa de um lar e pede com uma voz grave que soa como uma
agulha arranhando um disco: “Uísque”.
O caso Garbo é muito instrutivo. Essa grande atriz, talvez uma das maiores, não
conseguiu, uma única vez, o que uma atriz mediana de uma cidade média da Alemanha
obtém com relativa facilidade: um papel que se adapte a ela, uma peça de bom nível, um
bom diretor w um público instruído. Greta Garbo era pouco notada em Berlim, pouco
valorizada, e aparecia no cinema com olhos escuros e um rosto pouco expressivo. Foi
coroada, nos Estados Unidos, como rainha da beleza pelos cabeleireiros e pelos técnicos
do cinema. Eles usaram artifícios sofisticados e eficientes sobre ela, modelaram seus
lábios e olhos castanhos, deram à sua pele um tom de pérola brilhante, deram brilho a
seus cabelos, e enquadraram seu rosto como numa moldura, dando-lhe uma claridade
quase mágica fosforescente. Eles até lançaram o corte Greta Garbo, um modelo para
milhões de mulheres, mas a verdadeira Grega Garbo permanecia escondida. É
desconhecida até hoje.
Os produtores de cinema americanos perceberam a força particular dessa mulher
sem poder entendê-la e utilizá-la bem. De onde vem seu encanto? Greta Garbo é bonita?
Jeannette MacDonald é bonita, bem proporcionada, educada, harmoniosa, simpática e
bem vestida, mas, quando forma par romântico, “permanece muito comum” (como se
comentou a respeito de “Ópera dos três Vinténs”). Greta Garbo não parece comum
quase nunca. Quando ela olha um homem ou quando quase dá um beijo, ela o faz como
se fosse um felino, de um modo quase animal. Os homens não estavam habituados a
esse tipo de entrega intensa, visto que mantinham seus assuntos pessoais ligados ao
tema da sensualidade embaixo do pano. Que alguém aja na tela como uma pessoa
significa: que alguém apresente a mais importante questão da vida humana não como
simples atuação interpretativa, mas como um destino, dando valor tanto de excitação
como de algo indecoroso.
A indústria cinematográfica, que não gosta de deixar escapar qualquer boa
oportunidade mesmo que tenha de transgredir uma certa noção de decoro, encontrou um
caminho muito peculiar para dar mais poder ainda a Greta Garbo. Pela primeira vez
apresentou uma mulher que não era nem uma garota culta, nem uma jovem espirituosa
como Colleen Moore, nem uma figura fria e demoníaca como Gloria Swanson, nem
uma mulher exótica como Dolores del Rio, mas simplesmente uma pessoa de verdade
cheia de paixão – que surpreendentemente foi catalogada como uma Vamp, destruidora,
imoral, um princípio perigoso! Sabe-se muito bem que uma pessoa comum é o oposto
do que se espera encontrar nos filmes americanos; uma pessoa decente, preservadora
das instituições e, além disso, feliz. E, assim, Greta Garbo se tornou aquela que destruía
os casais estáveis das boas moças de olhos castanhos: atiçava, uns contra os outros, os
homens corretos que a disputam e que, no final do filme, são lançados num inferno,
afogados entre pedras de gelo ou em álcool.
Nunca se foi tão longe em termos de impor as marcas de uma caracterização
mímica da Vamp: o balanço no quadril, o olhar irônico, o apelo harmônico e
temperamental dos braços. Foi o avesso das produções alemãs em que se procurava
impor aos atores algum tipo forte já experimentado e pronto (como as atrizes iniciantes
tentam simular dublês de Greta Garbo). Os americanos buscam, nas limitações da moral
e do comercial, criar uma arte própria de interpretação que tenta forçar esses limites
para construir novos tipos de personagem. E assim Greta Garbo sempre interpreta
mulheres que atentam contra as regras da moral burguesa com ações autênticas e
destrutivas e que não desembocam num final feliz, mas que aparentam não ser nada
além de ações impensadas, resultado da própria situação, que, fatalmente, se contrapõe à
acomodação e à ordem, tudo porque ela se deixa amar por homens enfeitiçados. Os
produtores se aproveitam da força da paixão de uma mulher de verdade para dramatizar
uma luta infrutífera contra o simples vazio, como se ela fosse uma boneca sem vida, que
só tem a perder um bom nome, mas não um coração.
Quando Greta Garbo é caracterizada como uma mulher que tem uma vida muito
difícil, da qual se extrai o conteúdo do filme, não é ousado dizer que essa atriz
representa, neste meio, mais ou menos superficialmente, características típicas das
jovens dos tempos modernos. Porque justamente essa juventude já está marcada pelo
vazio das formas e do conforto e também porque tenta levar a vida simplesmente.
Muitos já chamaram a atenção para isso. A rara particularidade interpretativa que Greta
Garbo desenvolveu em Hollywood, sua quase doentia fidelidade à condição humana, é
um lugar a que, até então, poucos atores haviam chegado. O paradoxo é que seu modo
de lidar com roupas radiantes e suas maneiras indecentes do ponto de vista social – tudo
isso soa incrivelmente familiar e conhecido. E é muito triste o fato de que toda sua
originalidade artística pareça ser resultado de um cuidado com o corpo, algo totalmente
mundano, e do trabalho de contracena com atores de bigodes parafinados.
Agora, em “Anna Cristie”, ela se vestiu num belo vestido de lã, como se alguém
que possui voz grave devesse vestir um material volumoso também. Mas ainda para
mostrar como Greta Garbo pode ser deslocada para outro extremo, ela é apresentada
como uma empregada proletária, o que não combina muito com ela nem com o
manequim luxuoso. Há que se ter esperança, de que ela em breve, pelo menos uma vez
– talvez com o objetivo de adequar sua voz – seja vista como uma pessoa entre pessoas,
como uma mulher que não apenas (o que podemos determinar) ama, mas que saiba
viver e que o interesse pulsante em todo ser vivo fale como um meio mágico
enigmático.

Conteúdo e invenção

Dizem frequentemente que os filmes não teriam nenhum conteúdo elevado, nem
mesmo poderiam tê-lo porque a linguagem verbal desempenha neles uma função muito
reduzida.
É sempre um perigo lidar com o termo conteúdo elevado, erudito. Aqui também
se dá assim. Se for entendido por conteúdo elevado a exposição de pensamentos
formulados de maneira abstrata, o filme não pode nem servir para apresentá-los, mas
esse tipo de conteúdo mais abstrato tem um papel limitado até mesmo na literatura, a
arte da palavra por excelência. Muitas vezes a própria literatura utiliza as palavras para
descrever atividades concretas: é mostrado, por meio de palavras, o que as pessoas em
ação fazem ou pensam; o ambiente é descrito; e, quando as pessoas conversam, sua fala
trata em geral de coisas muito pouco abstratas. Sabe-se que não é a pior literatura aquela
que usa a palavra para a descrição e não para construir uma reflexão abstrata.
Na visão de Wilhelm Schäfer: “Como a fala e suas imagens (as imagens criadas
pelos poetas com a palavra) também é o instrumento do pensador, ela deve naturalmente
ser usada de outro modo pelo poeta, que a eleva a uma nova categoria especial e
criativa.” Essa outra utilização está relacionada a que a fala poética não se reporta ao
poder do pensamento abstrato, mas ao da visualização, com a qual ela – a fala libertada
das relações do entendimento lógico – apresenta imagens pintadas com palavras em vez
de cores. Se o pensador diz cavalo e cachorro, deve falar o poeta de um animal do
campo castanho e de um focinho negro, porque ele precisa, para construir sua imagem
poética, de elementos mais precisos.
Não há, em relação a isso, nenhuma grande oposição entre a arte da palavra e a
do filme. A literatura usa palavras e o filme usa imagens. Em ambas, as ideias
orientadoras não são dadas em abstrato, mas sim revestidas de situações concretas.
Muitos filmes primorosos comprovam que não é vedada ao cinema uma
abordagem mais densa. “A corrida do ouro”, de Chaplin, este filme belo e profundo,
serve bem de exemplo. Todos devem se lembrar da cena em que Chaplin é um
garimpeiro morrendo de fome o qual cozinha suas botinas e se alimenta delas. Muito
educado e com modos refinados à mesa, ele destrincha aquele alimento inusitado. Ele
levanta a parte de cima da bota, de forma que a sola com os pregos aparentes fique
parecendo uma espinha de peixe - do qual alguém retira delicadamente as partes de
carne. Ele chupa os pregos como alguém que retira carne dos ossos de um frango,
enrola os cadarços como alguém que come espaguetes.
Nesse cenário, agrava-se o contraste entre o rico e o pobre de uma maneira
radical e original, simbolizado pelo encontro de opostos dados visualmente. Esse tipo de
contraste pode ser criado facilmente no cinema, como o foi, centenas de vezes, ao
mostrar a alimentação rala de um pobre ao lado da suntuosidade da refeição de um rico.
Este segundo tipo de solução não é possível a partir do uso de abstrações, porque se
torna sem qualquer originalidade, fraca do ponto de vista artístico e sem conseguir
combinar harmoniosamente as coisas.
Se a cena de Chaplin mostrasse simplesmente um homem faminto que devora
uma bota cozida, ela não passaria de uma simples caricatura da pobreza. A elegância e a
força argumentativa da cena vêm justamente de a representação da pobreza ser colocada
em contraste com os modos da riqueza. Contraste este criado do modo mais original e
sem mediação de uma espécie de síntese óptica entre a alimentação precária e com o
cerimonial da alimentação do rico.

Espinha da sola = espinha de peixe


Prego = ossos carnudos
Cadarços = espaguete

Por causa da semelhança na forma óptica de objetos tão contrastantes, obtém-se


um choque tão forte que chega a doer nos olhos do observador, tão claro se coloca. E a
grande arte desta descoberta está no fato de que ela aflora de um tema tão elementar e
humano (“fome versus fartura”), por sua vez, apresentado de um modo tão
cinematográfico. Por isso, não se pode imaginar nada mais característico do visual do
que esse tipo de associação de simples formas das coisas.
Quando Chaplin se delicia com o mais baixo tipo de alimento que se possa
imaginar, como se experimentasse o mais refinado cardápio, ele não só apresenta a
pobreza em si, mas também a apresenta como se ela fosse o mais baixo nível da própria
riqueza, numa escala dos bens de consumo, e com isso ele fortalece esta relação,
fazendo a pobreza ser duas vezes mais extrema – da mesma maneira como o pequeno se
intensifica ao lado do grande e o preto ao lado do branco.
O que há de mais marcante na personagem de Chaplin não é simplesmente ela
ser um vagabundo, mas sim que ela seja um sujeito sem posses na perspectiva de um
sujeito de posse. O chapéu redondo, o paletó do smoking, sua bengala e seu bigode
elegante representam a pobreza como a ausência de bens. E assim ele obtém um
resultado muito mais forte do que a apresentação da “indigência” que não se apresenta
em tal relação.
O mesmo princípio da refeição da botina encontra-se em cada cena de “Em
busca do Ouro”, como a do gordo garimpeiro faminto que vê Chaplin na figura de um
frango e tenta devorá-lo. O movimento de braços feito por Chaplin é visto como um
bater de asas e, quando este se inclina para pegar algo, o outro imagina que o frango
está ciscando o chão. O ponto mais alto da carência de alimento é quando um
garimpeiro agarra o amigo pensando que o corpo do outro é carne comestível – mais
uma vez um tema dos mais profundos da alma humana –, o que também se apresenta
visualmente como uma semelhança formal inesperada da aparência do amigo com um
frango gordo e apetitoso. Aqui novamente é trabalhada a semelhança óptica de dois
objetos radicalmente distintos.
Mais um exemplo de “Em busca do Ouro”: Carlitos teve a maior realização, ele
dança com a garota que deseja, mas suas calças são muito largas e vão caindo, por isso
ele pega uma corda e a usa como cinta. Acontece que, na ponta da corda, há um grande
cão amarrado que precisa acompanhar a dança do casal. Assim, mesmo quando tem
sorte e alcança algum sucesso, Carlitos carrega o azar como se fosse um fato
consumado: a questão simbólica é muito clara e colocada de um modo espantoso.
Dois exemplos de “Mulher de Paris”, de Chaplin: uma garota dá a sua amiga a
notícia de que o namorado da amiga a está traindo. Elas estão numa sessão de
massagem e, enquanto as duas amigas conversam, vimos a massagista, que continua
tranquilamente seu trabalho mecânico como o movimento de um relógio, com suas
mãos massageando para um lado e para o outro automaticamente e sem aparentar se dar
conta da conversa ou demonstrar qualquer expressão facial. Ela olha para uma e para a
outra amiga. Essa semelhança com uma ação puramente mecânica é
cinematograficamente reforçada não só pela expressão do rosto da massagista, mas
principalmente pelo movimento pendular da parte superior do seu corpo, o que ressalta
ainda mais a perturbação por que passam as duas amigas. O mundo segue seu curso
sossegado e inabalado mesmo quando as pessoas passam por dissabores. Essa é a
mensagem que a cena transmite com muita força.
O mesmo tema surge de modo distinto no filme de Pudovkin, “O fim de São
Petersburgo”. Os dois camponeses estão a caminho da grande cidade. Esse caminho é
sua última esperança, pois eles não têm mais o que comer. Caminhando contra a força
do vento, atravessam um campo depois de outro. E então se vê um moinho de vento
girar sossegadamente e indiferente. Pudovkin intercalou muitas vezes essa imagem do
moinho com a dos camponeses: ela mostra que o mundo segue em frente e serve para
aumentar o contraste da situação dramática.
A cena final de “Mulher em Paris”: um homem e uma mulher, Manjou e Edna
Pierviance, se separaram. A mulher vive agora no campo. Um dia ela vai, numa carroça,
levando seus alunos quando cruza, indo em direção oposta, com seu ex-companheiro
num carro muito luxuoso. Os veículos se cruzam, sem que seus ocupantes se deem
conta um do outro, e se distanciam. O filme termina. Novamente, nesta cena, é
transposta para uma situação física concreta com muita eficiência a dupla significação:
duas linhas do destino se afastam uma da outra. Mas a ação concreta fortalece esse
sentido por não ser arbitrária e gasta, ao contrário, é original, além de ter toda a
verossimilhança possível: a justaposição do caminho da vida e da estrada é forte e
comovente.
O desenvolvimento da obra de Chaplin demonstra como ele alcança cada vez
mais as esferas mais profundas do ser humano de modo lúdico. Seus primeiros filmes,
que pouco se diferenciam dos curtas humorísticos de outros autores, raramente atingem
qualquer profundidade ou temas mais sérios. Eles também já são muito espirituosos e
engraçados mas nada que se compare minimamente com “Em busca do Ouro”, cuja
profundidade melancólica e cômica é capaz de trazer lágrimas aos olhos.
Mesmo nos primeiros curta metragens já se vê o principio de associação
surpreendente entre duas coisas muito disparatadas ser frequentemente utilizado.
Carlitos é um ajudante em uma loja de penhores o qual examina um despertador trazido
por um cliente como um médico trata de um paciente. Ele coloca um estetoscópio nos
ouvidos e ouve a batida do relógio (batimento do coração – batida do relógio), bate com
um martelinho na correia do relógio com um rosto grave e de um modo cuidadoso.
Depois abre o tampo do relógio com um abridor de latas (lata de conservas – carcaça de
metal do relógio), extrai as peças do relógio com pinças e, por fim, joga tudo
desmontado dentro do chapéu do pobre do cliente – ele não pode penhorar o relógio. A
cena é muito engraçada, mas totalmente sem sentido 20. Mas uma congruência
extraordinária da forma foi construída, embora a partir de coisas que não têm nenhum
vínculo entre si: não há um sentido mais profundo que se possa extrair da ligação entre
latas e relógios, ou entre as batidas do coração e o tic-tac do mecanismo. O grande
mérito destas situações se dá pela criação de relações elegantes que permitem colocar
juntas numa síntese coisas tão diferentes.
Esse princípio é muito interessante: mostra semelhanças formais surpreendentes
entre conteúdos totalmente distintos; e é frequentemente utilizado com funções
artísticas. Tanto a rima como a aliteração partem deste princípio da semelhança formal
das palavras que muito frequentemente não têm nenhuma relação entre si do ponto de
vista do sentido. (talvez esta abordagem consiga lançar novas luzes também sobre o
funcionamento da rima e da aliteração). Mas na prosa também há muitos escritores que
trabalham com um princípio semelhante. E também na música os padrões de
20
Apesar de que é possível atribuir um sentido a ela: Alfred Polgar disse numa ocasião que ela
representava uma divertida metáfora da psicanálise
semelhança são aproveitados. Seria muito importante estabelecer novas investigações
neste sentido.
Por outro lado, também é possível estabelecer relações com a psicologia do
pensamento cognitivo. As coisas e situações mudam suas funções de uma maneira
semelhante no cinema, na construção de sentido e também no humor. Por exemplo:
Chaplin é um policial. O bandido corpulento dobra um poste com uma lanterna de gás
como se fosse um pedaço fino de arame para amedrontar o pequeno policial. Chaplin
empurra o poste um pouco mais, e o bandido acaba ficando com o rosto de frente para o
gás. O produto então vaza e o bandido desmaia. A função da luminária sofre uma
reestruturação (termo utilizado pela psicologia da Gestalt). Ela é originalmente dada
com um sentido psicológico determinado. Quando alguém quer demonstrar sua força,
ele entorta o ferro da iluminação. Mas a cobertura da luminária, que serve originalmente
como recipiente de combustível, torna-se surpreendentemente um tipo de máscara de
gás sobre o rosto do bandido, e o gás que até então servia para acender a luz torna-se
uma arma. Portanto, o ato de torcer o poste da luminária, que era a princípio uma
demonstração de força, transforma-se num procedimento técnico parecido com o que se
usa para aplicar anestesia numa pessoa.
O mesmo processo ocorre quando alguém tem uma “boa ideia” ou quando
compreende algo. Wolfgang Köhlen demonstrou em pesquisas com animais que um
macaco utiliza um pedaço de pau em sua jaula como escada para subir a uma altura
onde estão penduradas pencas de banana. Aqui também há uma surpreendente mudança
de função de um objeto. Max Wertheimer discute esse tema em “Sobre o processo de
desenvolvimento do pensamento criativo”.
Quando um homem nu é descoberto pelo marido dentro do armário e responde à
pergunta do que significa aquilo com a célebre resposta: “O senhor não vai acreditar,
mas eu achei que meu ônibus passava aqui”, do mesmo modo, ocorre com o enredo
(“um homem em pé aguardando”) que ele seja totalmente reestruturado. No caso da
piada, assim como na comédia cinematográfica, ocorre que a nova função é totalmente
destituída de sentido, ao contrário dos casos de “boas ideias”, como no exemplo do
macaco, nos quais a reestruturação da forma serve a um propósito prático e resulta
numa superação.
As invenções de Chaplin são muito cinematográficas, mas não precisam ser
utilizadas exclusivamente no cinema. Nos números de variedades do palhaço Grock, por
exemplo, acham-se quadros que poderiam muito bem estar dentro de um filme de
Chaplin porque eles também funcionam com base em meios completamente ópticos e
são encontrados a partir dos mesmos princípios. E assim ocorre quando Grock utiliza o
tampo do piano de cauda que ele deixou inclinado como uma escada para subir. É uma
clara reestruturação: converte-se em rampa o que até então era visto como o tampo de
um piano de cauda, e tudo o mais do piano torna-se supérfluo. A posição inclinada, que
era algo absolutamente irrelevante, casual, torna-se a condição mais relevante. Os
truques de Chaplin muitas vezes são possíveis de usar não só nos filmes, mas também
em números que sejam apresentados num teatro (e o próprio Chaplin também começou
seu trabalho em shows), até mesmo porque os filmes cômicos americanos mostravam
um estilo cinematográfico mesmo antes da “descoberta” dos recursos de câmera e dos
efeitos da montagem. Não se utilizavam esses recursos, o equipamento era utilizado
como simples técnica de registro do que se passa na cena.
Em “A linha geral”, de Eisenstein, vê-se um trator que derruba as cercas que
dividem o campo em pequenas propriedades. Essa cena mostra simbolicamente que o
trator, símbolo da economia moderna, impõe uma socialização. Mas essa cena não é
muito boa cinematograficamente porque a ação mostrada surge da simples
transformação de uma ideia abstrata em uma cena concreta, sem levar em conta se algo
assim realmente poderia se dar na realidade. Em um filme realista, as cenas com sentido
simbólico devem ser construídas de modo que não somente seja apresentado esse
conteúdo simbólico, mas também de modo que isso não fira os elementos de
funcionamento do mundo, ou seja, o filme deve usar o mundo sem deturpá-lo para
expor a ideia desejada. Pois é justamente do encontro congruente do simbólico e do
factual que aflora o conteúdo mais forte simbolicamente falando, criando um valor para
a situação surpreendente e também eficiente. No exemplo do filme de Eisenstein, um
dos dois elementos (a situação real) está subjugado em favor do outro (o pensamento
simbólico), o que elimina a congruência da cena. Soa muito artificial e forçado que um
trator seja utilizado para derrubar cercas. Algo parecido ocorre na cena de “O homem
que perdeu a memória”, de Ermler, em que um tanque de guerra passa por cima de uma
cruz, onde um soldado horrorizado está crucificado – cena que só não é possível tachar
de artificial porque não se propõe de modo algum a ser realista.
Ao contrário, outra cena do mesmo filme de Eisenstein é muito mais forte: um
burocrata soviético limpa sua caneta de pena em uma cabeça de Lênin feita de porcelana
e que enfeita seu tinteiro. Aqui ocorre uma concretização do pensamento – “os
burocratas mancham o ideal da revolução!” – mas sem que seja preciso corromper uma
situação factível. Assim, o símbolo mais conhecido da revolução, Lênin, é colocado
juntamente com o funcionário burocrático na mesma imagem e participando da mesma
ação, porém sem nenhuma intervenção forçada já que, na posição de enfeite, é
totalmente justificável que Lênin esteja ali, uma situação natural e concreta.
Como contraponto vamos analisar mais uma cena de “Mulher de Paris”: a
mulher pressiona seu namorado para que se casem porque ela sonha com uma sólida
união, com filhos, e, enquanto dura a longa persuasão, enfadonha, ele caminha em
direção à janela e olha para baixo. Ele vê então uma senhora gorda, casada, cercada por
crianças. A seguir, ele sorri e mostra a situação para sua companheira. A cena é
engraçada, mas é pouco convincente porque o conteúdo abstrato se concretiza como que
num passe de mágica (a ideia das consequências do casamento), de um modo muito
pouco verossímil. A senhora gorda não tem nenhuma relação com a trama e nenhum
motivo para estar ali: sua apresentação só ocorre por força do simbolismo, sem ter
qualquer melhor motivação real. Foi um simples acaso! E o que não passa de casual
destoa numa boa obra de arte.
Agora um exemplo de que as invenções cinematográficas não são utilizadas
somente para representar ideias abstratas. Muito frequentemente elas ocorrem para
apresentar simplesmente situações da trama dramática porque as representam
adequadamente. Uma mulher está grávida, mas pretende se ver livre do bebê. Ela
aparece na escada de acesso, à frente de uma porta de casa (de tal modo que a porta se
encontra um pouco encoberta pela sua silhueta). A porta se abre, uma senhora deixa a
visitante entrar, e a porta volta a se fechar, já sem estar encoberta agora. Por isso se pode
ver uma tabuleta pregada em que lê “Senhora Schmidt, parteira”. Não se trata de um
recurso genial, mas simples. Entretanto, o uso desse recurso é capaz de caracterizar a
técnica cinematográfica que deixa transparecer certas impressões que, de outro modo,
não seriam apresentadas. Quem é a senhora que a mulher procura? A placa está no lugar
apropriado e consegue responder a essa questão. E é interessante nesta cena que há um
momento de estímulo à curiosidade até que a porta se feche mostrando a informação
desejada.
Por fim, um exemplo de que não é necessariamente preciso que o conteúdo de
uma ação passada na trama deva sempre formular um pensamento abstrato, mas que
pode se dar algo bastante diferente. “A linha Geral”: uma camponesa se aproxima de um
gulak obeso e pede ajuda ao camponês. Ele se levanta pesadamente do leito, serve-se de
poncho com uma concha num pote imenso e diz a ela que não atenderá ao pedido. Volta
então a se deitar. E, enquanto ele se recosta, é mostrada a vasilha de poncho em
primeiro plano, onde a bebida se derrama sobre o suporte num movimento de retorno do
líquido que faz analogia com a recusa. O paralelismo apresentado na cena não carrega
em si nenhum conceito abstrato. Ele simplesmente coloca a essência do momento como
em uma espécie de reforço óptico que faz eco em outro material e que causa assim um
forte impacto.
Neste capítulo muito foi dito a respeito de símbolo e simbólico sem muita
preocupação com uma definição, com objetivo didático. Todavia, é bom definir que
símbolo é algo que é capaz de representar alguma coisa ou alguma situação. Porém é
característico de um símbolo, assim como ocorre nos símbolos lingüísticos, tanto que
sua representação seja sempre longamente conhecida e do domínio das pessoas como
que ela não possa ser movido sempre à força de novidades, porque é muito difícil
reconhecer o significado de um símbolo pela sua simples observação. É preciso, sim,
que se tenha conhecimento prévio do significado do símbolo, o que se dá por meio do
aprendizado, da experiência. Preto, vermelho e dourado são as cores da República
Alemã, mas é preciso sabê-lo de antemão, visto que não é possível extrair esse
conhecimento a partir das cores. A âncora e a cor verde são símbolos da esperança, o
contorno estilizado do coração simboliza um coração, mas esse coração significa o
amor. Cabeças raspadas simbolizam pessoas escravizadas; rostos barbeados, senhores
elegantes. As letras do alfabeto simbolizam vogais e consoantes da língua. Entre o
símbolo e o significado não há nenhuma relação que não seja puramente convencional,
raramente ela é visível. Que a águia simbolize a fidelidade parece algo visível, mas não
se pode mesmo extrair da simples observação da águia essa relação.
Daí resulta que o símbolo não seja um meio artístico em si. Já destacamos que
artística é a vestimenta original encontrada na forma visual de apresentação do tema,
que não deve estar desgastada pelo uso constante e que consegue assim não só
representar, como também agregar valor vivo à representação. Por isso dissemos que a
fabricação em massa de filmes gera antes clichês que não são artísticos. Granowsky
usou, em “Canção da vida”, símbolos destituídos de graça e de valor, clichês:
esqueletos, relógios de areia, pessoas como animais em jaulas, etc.
Símbolos são importantes para a vida comum, mas, na arte, seu simples uso não
é garantia de nada, pois o artista deve construir seu próprio simbolismo - e esse tipo de
simbolismo não é chamado de símbolo, mas de arte.

Roteiro e direção

No teatro, o autor e o diretor têm funções bastante diferenciadas. O trabalho do


dramaturgo é em si mesmo uma composição completa na qual não é necessário entrar
em jogo a encenação para que ela se torne uma obra de arte completa. No cinema, a
situação é diferente, o que infelizmente nem sempre é reconhecido com facilidade. O
roteiro de cinema é um documento em papel como o roteiro de teatro, mas a analogia
para por aí.
A adaptação do diretor de teatro já não tem nada a ver com o cinema. Ela pode
ser utilizável ou não utilizável na filmagem. O assim chamado “roteiro de cinema”
tornou-se uma forma intermediária entre a adaptação e o storyboard, não é nada mais do
que uma descrição direta do filme. As ações que serão vistas futuramente podem ser
lidas no roteiro. E cada cena prevista num storyboard completo só se diferencia do filme
rodado porque as imagens a serem rodadas no estúdio e as interpretações estão descritas
no roteiro em forma de palavras.
É muito difícil para o autor construir um roteiro em que deva descrever, só com
palavras, as imagens que deveriam ser mostradas segundo sua vontade. Então o que ele
faz? Ele projeta o filme na sua imaginação e então escreve o roteiro. Descrever mesmo
este quadro ainda é muito difícil. É muito mais fácil apresentar, junto ao texto, um
desenho esquemático do posicionamento de câmera, da posição dos atores e da
disposição dos grupos e cenários. Até mesmo com medidas quando a cena tiver de ser
construída no interior de um estúdio com lugares e posições bem demarcados.
A produção de roteiro e a direção são, num certo sentido, o mesmo trabalho. Só
na prática dos estúdios que não é assim. Mas a prática dos estúdios cinematográficos
deve ser a regra? O diretor conduz o trabalho que o autor escreveu – há uma ligação
entre seus trabalhos – o que torna essa condução mais difícil de ser seguida se
pensarmos nos trabalhos como degraus independentes de uma escada. Tente dar uma
pintura iniciada por Max Liebermann para Max Pechstein terminar. O resultado seria
muito ruim, além de que Liebermann protestaria porque o quadro não seria finalizado
como ele pretendia. O autor do roteiro cinematográfico protesta contra a versão final de
um filme, já que seu trabalho muitas vezes se transforma a ponto de ficar irreconhecível.
A culpa por essa deformação não é exclusiva do produtor que teme a censura e o
gosto do público. Ao contrário, seria um verdadeiro milagre se o roteiro do autor
correspondesse exatamente à concepção do diretor e ao material produzido. É
justamente quando ambos têm uma personalidade marcante que as diferenças entre seus
trabalhos mais se acentuam. O diretor adapta o roteiro ao seu temperamento caso queira
sustentar seu trabalho e também para que possa responder por ele. Ele deve se sobrepor
ao autor.
Na prática, parece que poucas vezes o diretor redige seu próprio roteiro. Chaplin,
por exemplo, procedia assim e, quando ele fazia algo, havia consenso de que aquilo era
o certo. Também podem o escritor e o diretor trabalharem juntos, fazendo o filme em
conjunto. Entre eles, precisa haver uma química tão boa como a que existiu entre Thea
von Harbou e Fritz Lang, o que é muito incomum. Em geral isso não acontece, e os dois
são muito diferentes, muitas vezes escolhidos até pela empresa cinematográfica, o que
gera atritos e desentendimentos: o diretor não faz o filme que ele gostaria de fazer, e o
autor do roteiro reclama porque nunca tem a última palavra e acaba tendo de ceder. Não
sobra nada mais a ele do que receber as cartas enviadas via estações de rádio e seções de
jornais especializados: o filme leva seu nome, mas não é definitivamente um trabalho
autoral seu.
Quem sabe escrever um bom roteiro só pode produzir um ruim por motivos
alheios a ele, até mesmo para atender as exigências dos estúdios. Ele pode cair na rotina
da produção, por exemplo. Assim, ele não é um profissional do papel e da caneta, mas
sim da câmera e das tiras de filme. Ele não é um escritor, e um roteiro de cinema não é
literatura. Por este motivo, o apelo à poeticidade, que é defendido vez por outra pelos
intelectuais e que alguns tentam estimular com esperanças, é tão sem sentido. Em
particular, desde o surgimento do filme sonoro, é possível novamente ouvir este clamor:
como agora o filme fala, é necessário o trabalho de um poeta do texto. É esperar demais
que o poeta, em seu próprio interesse e no da arte do cinema, posicione-se
contrariamente a esta ideia que promete grande reputação e bons resultados, mas que
provavelmente só servirá para arruiná-los em tais projetos. Não se espera que Eisenstein
e Pudovkin escrevam romances, do mesmo modo que não se esperam filmes de
Zuckmayer e Döblin. Mesmo na era do filme sonoro, permanece tendo valor o dito de
que o filme depende do cineasta - e de nada mais.
Os produtores obstruem o caminho para novas gerações. O que se diria de uma
editora de livros que escolhesse seus títulos a partir de relatos muito breves feitos pelos
autores, em resumos de duas laudas de máquina de escrever, para apresentar o conteúdo
de seu romance ou redação? Mas é assim que trabalham, inúmeras vezes, os estúdios
comerciais. É claro que um tratamento de duas laudas pode resultar num filme
extraordinário. Mas, por outro lado, as exposições sucintas traem muitas histórias de
primeira qualidade por não mostrarem nada de suas qualidades visuais. A arte depende
de um processo especial de aprendizado. E, para atingir a prosperidade de qualquer tipo
de arte, não é suficiente ao aspirante produzir textos de duas páginas. Mesmo quando as
empresas abrem oportunidades para novos autores mandarem seus textos, eles não
podem prescindir do apoio para despertar a atenção de assistentes de direção e de
diretores. Elas gostam de experimentar os roteiristas recém-descobertos e dão aos
autores a oportunidade de dirigir seus próprios projetos.
O roteirista que consegue iniciar, mas não terminar sua obra faz a vida do diretor
muito difícil e é uma figura estranha, e desvalorizada, que precisa desaparecer. Abre-se
a porta do estúdio e ele tenta se adaptar ao diretor ou também, se quiser, pode até
mesmo ser sócio. Outra opção é deixar o próprio diretor desenhar seu storyboard
sozinho. Não há uma terceira possibilidade para entrar nos estúdios hoje em dia.

Quarto capítulo
O filme sonoro

O nascimento do cinema falado

Alguns anos foram suficientes para transformar as exibições de imagem em


movimento, inicialmente mais parecidas com truques de magia, em uma verdadeira arte
cinematográfica. O fato de o cinema mudo ter conseguido, a partir de poucas obras
excepcionais, equiparar-se a outras formas de expressão de obras de arte já foi um feito
extraordinário – deve-se lembrar que isso foi alcançado apesar de fortes preconceitos e
de dificuldades técnicas que comprometiam o material artístico. Os dramas
cinematográficos estiveram, pelo menos por quinze anos, submetidos a uma pobreza
técnica e estética gritante, mas assim mesmo conseguiram oferecer muito
entretenimento. Desde então, os diretores, cinegrafistas e arquitetos aprenderam a
controlar com maior precisão o mundo da visualidade, suas formas e sua iluminação por
meio dos recursos dos estúdios. As “características particulares” da câmera tornaram-se
um meio muito bem vindo não só utilizado para reproduzir em imagem a realidade, mas
também para formar, fazer entender, desenvolver e acentuar aspectos da realidade.
Ponto de vista, enquadramento e iluminação em relação a um objeto deixaram de ser
casuais e sem importância e passaram a ser determinantes de tudo o que um bom filme
deve conter, mostrar e construir como unidade para que, por um lado, se construam as
imagens a partir das coisas e, de outro lado, para que eles sustentem ideias que sejam
claramente expostas e apresentadas, sem o que não poderia existir uma boa obra. Um
esforço de anos foi necessário para que se pudesse entender, fruir e apreciar os filmes, e,
deste modo, nenhum objeto, movimento na imagem ou enquadramento passava
despercebido: o público reconhecia seu sentido e se comprazia disto.
Por isso é surpreendente que o anúncio do aparecimento do filme sonoro não
tenha sido recebido pelos amantes da Sética Arte com o imenso prazer que se poderia
esperar. Eles desconfiaram, antes mesmo saberem bem o porquê disso, que o filme
sonoro expulsaria os filmes mudos das telas (o que quer dizer retirar do planeta). O
quanto os progressos do cinema mudo seriam incorporados pelo sonoro, ainda era algo
muito duvidoso: talvez tudo o que foi descoberto até então tivesse de ser descartado
para possibilitar aflorar algo melhor, mais nobre. Mas quem poderia saber isso ao certo?
Quem poderia garantir que o cinema sonoro teria potencialidades artísticas fecundas? E,
mesmo que assim fosse, até que ponto essas possibilidades seriam tão distintas das
outras artes como o cinema mudo até então havia sido?
Muitos adversários do filme sonoro lhe atribuíram - viram no novo recurso -
unicamente um truque comercial da indústria cinematográfica. Com o tempo, o público
foi se desestimulando em razão da fabricação em série de filmes ao longo de anos, e os
cinemas começaram a se esvaziar. E, de repente, o cinema aparece com propagandas da
até então pouco conhecida firma americana Warner Brothers, que prometia um filme
“totalmente falado”: o admirado cantor de cabarés Al Jolson atua, fala e canta, fato que
obteve imediatamente um sucesso internacional. A indústria cinematográfica em geral
aderiu ao processo – e assim nascia o filme sonoro.
Essa descrição está correta, mas pode se tornar falsa se se quiser, a partir dela,
criar a impressão de que com isso a indústria cinematográfica tenha imposto o
monopólio da exibição dessa novidade em função do público o qual correu para vê-la,
embora isso não tenha sido devido a um aprimoramento do gosto. A restrição ao filme
mudo foi um ato de temor ditatorial contra todos os que preferiam este tipo de arte. Mas
palavras de um escritor, percebe-se bem o que ocorreu:
“O filme mudo não morreu por ser uma forma antiquada nem porque o próprio
cinema sonoro tenha tomado seu lugar de existência por direito. Ele é um patrimônio
fílmico que tem todo o direito de ser conservado ao lado do filme sonoro e que
enriquece o programa dos cinemas. Mas ele teve de ser sufocado porque é um obstáculo
no caminho dos trustes da indústria cinematográfica alemã assim como também se
coloca no caminho dos trustes mundiais da indústria do cinema.”
Daí se pode perceber que a indústria cinematográfica não tem outro motivo para
tirar o filme mudo de circulação além do aspecto comercial. Mas é justamente por esta
razão que ela se mostra escrava do gosto do público de massa e que diretores e
produtores raramente se arriscam a produzir filmes que fujam daquilo que já se sabe ser
do agrado da maioria dos espectadores – motivo por que eles passam a ser rotulados
quando o fazem, isto é, o cinema sonoro se rendeu ao gosto comum, o que causa a
impressão de que, quando o público tiver de escolher entre um filme falado e um mudo,
ele sempre optará pelo sonoro.
Essa ideia de uma espécie de eleição permanente que ocorreria em todos os
pontos freqüentados pelos espectadores destoa do que se pode ver na prática já que,
muitas vezes, o cinema sonoro apresentou problemas que resultaram numa péssima
experiência. E esta problemática mostrou-se quando os primeiros filmes sonoros se
apresentaram mal feitos, pouco maduros, lançados sobre o público, produzidos às
pressas sob a forte pressão da concorrência entre os estúdios. Ela também aparecia
quando um beijo soava como um furacão, a voz de uma atriz parecia uma sirene de
fábrica, quando os filmes eram mal filmados e mal projetados, quando os diálogos eram
de péssima qualidade, quando o som saia de sincronia com a imagem - porque o
equipamento falhava. Mas uma péssima experiência cinematográfica deu-se sobretudo
quando os filmes mudos ganharam trilhas sonoras e foram anunciados como filmes
sonoros, quando as vozes das atrizes estrangeiras eram descartadas e substituídas por
outras totalmente diferentes – aliás, faladas em uma língua que não condizia com os
movimentos dos lábios -, quando cenas com conteúdos falados em uma língua e muito
difíceis de traduzir para a do país de exibição eram simplesmente cortadas e remontadas
ou tinham os diálogos suprimidos e substituídos por intertítulos, ou, finalmente, quando
os filmes eram muito selvagemente associados a operetas, principalmente os filmes
mudos – jogados como tema de fundo. Portanto, não se pode dizer ser surpreendente
que o público tenha reclamado muito e lançado sobre o cinema sonoro críticas e
julgamentos como: “é tão novo e já é tão ruim!”
A indústria cinematográfica e a dos eletrônicos – desde os produtores até os
donos de teatros – fizeram o que era possível, em razão do medo de perder seus
públicos, a minguar seu número de clientes, e por muito tempo o filme sonoro se
desenvolveu numa marcha de avanço apesar dos contratempos. E o grande público,
frequentador de cinema, nem sempre amigo da arte, não cobrava que o cinema
produzisse arte, mas sim que contasse histórias, o que ocorre da melhor maneira quanto
mais realista for sua técnica. Filme é, para eles, um substituto de situações reais, e
quanto menos for destacado que ele é um substituto, melhor. O cinema falado é mais
“realista” do que o cinema mudo e, se as grandes massas até então não haviam reparado
na grande falha da ausência acústica, a partir daí ela não deixaria mais o caminho da
preferência, pelo fato de ser “mais próxima do real”. É uma inocente ilusão achar que “o
filme mudo se conservaria por milagre ao lado do sonoro e que poderia enriquecer a
qualidade dos programas nas casas de exibição”. Mesmo que os filmes falados não
optassem por dramas psicológicos complicados e cheios de falas, mas simplesmente
mostrassem as mesmas histórias de roubos que estavam em cartaz no cinema mudo, o
filme mudo pareceria ao seu lado antiquado e menor, sem dúvida, e só se encontraria a
casa vazia de público. A indústria cinematográfica evidentemente não é a única culpada.
E ela sabe muito bem porque abandonou o filme mudo.
Mas o filme sonoro está aí, e não há nenhuma razão para combatê-lo, seja ele
recebido superficialmente, seja um fenômeno duradouro. O que é importante saber é o
fato de que foi em razão do gosto de pessoas avessas à arte, mas com poder de pagar, ou
seja, de uma antiartisticidade inerente a uma indústria elétrica e cinematográfica, que foi
tomada do cinema mudo qualquer possibilidade de este continuar existindo. E também é
por isso que os produtores dos últimos anos realizaram filmes para a massa
desenvolvidos a partir de padrões formais imutáveis e bem sucedidos os quais surgiram
a partir dos desenvolvimentos das possibilidades artísticas experimentadas no período
do cinema mudo sem dúvida. Chaplin dizia que: “Quanto mais tempo trabalho com
cinema, mais certo estou das suas potencialidades, e estou convencido de que mesmo
hoje conhecemos ainda muito pouco dessas possibilidades”. E isso ocorre cada vez
menos às pessoas. O cinema mudo não foi bem aproveitado. Ao contrário, seu
desenvolvimento havia acabado de alcançar um ponto a partir do qual suas
possibilidades haviam simplesmente começado a ser exploradas. Que essas
possibilidades não pudessem mais ser aprimoradas, que os grandes diretores tivessem
sido postos contra uma parede, obrigados a recuar ou a encontrar outros caminhos que
provavelmente não seriam encontrados e, portanto, perder-se-ia o que servira até então
para possibilitar as grandes obras - sobretudo porque a produção de um filme é muito
mais cara do que possa imaginar uma pessoa que não conheça sua realidade –, este
estrangulamento de uma arte bela e promissora é certamente uma história trágica. O que
podemos pensar quando Hollywood anuncia que:
“O último filme de Buster Keaton acaba de estrear. Ele foi apresentado no pouco
importante espaço do Teatro Boulevart. Antigamente, o melhor dos teatros ainda era
insuficiente para acolher uma estreia do ator. Os melhores críticos dos jornais estariam
na premiére para comentar o filme. Mas na estreia havia lugares vazios e poucos críticos
desconhecidos a assistiram. O episódio abriu um debate entre a produtora Metro e
Buster Keaton, no momento seguinte, a respeito da necessidade de se discutir o
problema. A Metro quer que Keaton reaja com o lançamento de um próximo filme
falado.”
Trata-se de um terrorismo branco contra um grande artista. Até então os artistas
tiveram de se submeter evidentemente aos desejos de seus financiadores, mas raramente
havia acontecido que uma exigência fosse tão direta e contrária ao seu trabalho, que
deles se exigisse, por exemplo, criar música quando eles queriam apenas pintar. Basta
pensar como essa exigência soa nefasta ao trabalho de Buster Keaton, cuja unidade e
forma de expressão mímica dependem basicamente da imobilidade do rosto em
contraste com uma situação cômica de mobilidade dos braços e com a própria sucessão
dos acontecimentos cheios de peripécias. Enfim, é uma novidade terrível que
desemboca num afastamento do artista em relação ao público porque quase todo artista
tem a ilusão prazerosa de que o grande público o entende e gosta dele (o que, nos casos
de Keaton e de Chaplin, sabe-se não ser sempre totalmente verdadeiro).
A velocidade em se copiar a adesão ao filme sonoro por parte dos produtores,
diretores e atores não foi positiva já que a nova técnica ainda era questionável. Isso
tanto do ponto de vista artístico como comercial. O negócio do cinema transformou-se
mas as pessoas permaneceram as mesmas, criando uma situação grotesca em que os
diretores e todas as demais pessoas não conheciam o modo de funcionamento da
sonorização num grau muito elevado, devendo, portanto, contar com outras pessoas no
set as quais também não conheciam muito bem a natureza do cinema, mas que
simplesmente seguiam as orientações da firma. A consequência natural disso é que a
técnica de fala dos filmes sonoros submeteu-se ao diletantismo, à imaturidade e à
péssima dicção técnica das escolas de atores como a de Kyritz, ou a dar tiros no escuro.
É difícil entender como as pessoas envolvidas com cinema encontraram energias, em
países com tradição de centenas de anos em técnicas de atuação e direção teatral, para se
arriscarem a utilizar técnicas alegremente amadoras numa corrida forçada e sob a
pressão de uma concorrência brutal, como se não estivessem num espaço sujeito à
crítica pública, mas sim numa reles aventura de um círculo amador dramático, num
ensaio de casamento ou se expondo no círculo familiar. Por isso, a maioria desses filmes
são muito pouco profissionais e servem a fins apenas grosseiros.
É claro que todos precisavam continuar trabalhando para não morrer de fome –
mas é uma pena a velocidade com que essas pessoas tornaram-se afinadas com o
espírito de transação capitalista que construía um sólido edifício ideológico. Pelas
declarações dos atores e diretores nos jornais especializados, podia-se ter a impressão de
que eles desejaram ardentemente o lançamento do cinema sonoro por décadas para
verem liberado o cinema da tranca que lacrava suas bocas. Esta falta de gratidão para
com um passado no qual eles se tornaram grandes (no duplo sentido da palavra), a falta
de consideração por um ramo que eles praticaram por um longo tempo e também a
ausência de sentimento por aquilo que até então eles fizeram muitas vezes revelam que
esses autores oferecem um grande exemplo de como há muito pouca fidelidade no gosto
do público, mesmo quando uma arte tenha alcançado muito e bons resultados – e
diversas vezes. Praticantes, esnobes, críticos de cinema destituídos de qualquer noção e
chefes de redação jornalística - não é preciso refletir demais por quais motivos -
louvaram o desenvolvimento técnico sem muita reflexão e descartaram como a última
das coisas tudo o que era “velho”. Portanto, é preciso criar, a respeito de determinados
cineastas, um julgamento mais justo sobre o valor e a importância artística de seus
trabalhos.

Cinema sonoro é teatro?


O cinema sonoro foi, no final das contas, nada mais que a descoberta de um
grande recurso técnico. E a importância extraordinária desta invenção para o registro
documental do som é inquestionável. Mas qual foi a contribuição desta novidade para a
arte?
Como o som deve ser valorizado e utilizado? Ele é um recurso possível de se
utilizar no desenvolvimento interior da arte? É um recurso que a aprimore, porém, sem
descaracterizá-la em seus fundamentos, algo como a tinta a óleo ou como a gravura em
cobre? A descoberta do piano com martelos, por exemplo, criou a possibilidade de se
produzirem notas percutidas que podem se prolongar em duração pelo tempo que o
pianista desejar enquanto ele mantiver a tecla pressionada. Com o cravo, só era possível
prolongar a nota por um breve instante. Esta invenção do piano deu aos compositores
novas possibilidades, mas ela não transpôs os limites e fronteiras da música. Com o
filme mudo também se deram séries de inovações que se potencializaram com
invenções, ampliando extraordinariamente o campo de trabalho dos cineastas e fazendo
suas obras frutificarem: os tripés hidráulicos, os rebatedores de iluminação, o negativo
policromático... O que ocorre com o microfone? Seria ele algo parecido? O cinema
sonoro seria um outro tipo de arte com suas regras particulares? Mais ainda: este novo
tipo de material tem alguma relação com a arte?
Essa última pergunta é muito pertinente e não pode ser respondida simplesmente
com a explicação de que: “O filme mudo já era tão rico de possibilidades que serão
ampliadas agora; como elas poderiam empobrecê-lo?” Não é tão simples assim, dizer
que a sonorização adiciona possibilidades artísticas: pode muito bem ocorrer que, com
este “enriquecimento” do material, se passe a fazer menos do que até aqui já foi
realizado.
E há ainda outra questão importante. O filme sonoro é diferente, em seus
princípios, do cinema mudo e, talvez, ele difira em tão alto grau de seu antecessor que já
se possa dizer constituir uma outra forma artística, a qual, aliás, já existe há muito
tempo. Será que ele não se aproxima, em sua nova configuração técnica, mais do
próprio teatro que do cinema mudo? Ocorreria assim com os criadores da nova técnica o
contrário do que aconteceu com o grande navegador Cristóvão Colombo que pensou
estar nas Índias quando havia descoberto a América, isto é, os produtores de cinema
acham que descobriram uma nova parte da Terra, mas teriam encontrado apenas um
novo caminho para um lugar que já há tanto tempo é bem conhecido.
Um teatro mecânico, achatado, registrado em película, porém, que não deixa de
ser teatro. Quando se pergunta então quais são as peculiaridades desta nova forma de
arte e se obtém como resposta que: o cinema falado elevou o filme ao grande reino da
sonoridade, desde a palavra falada até o mais simples ruído, é possível rebater este
argumento. Basta dizer: “Sim, mas isso o teatro já fazia” que, assim, aquela resposta não
mais se sustenta.
Torna-se maior a desconfiança de que o teatro sim começou a se ampliar com o
filme. Erwin Piscator trabalhou com a projeção de cenários nas paredes do palco e
utilizou efeitos sonoros como o de sirenes de incêndio reproduzidas por alto-falantes
colocados por trás do palco. Isso serve como demonstração de que o teatro, sempre que
quis assumir esta situação, utilizou tudo o que está sendo reclamado como propriedade
do cinema sonoro.
Na ação teatral, ainda entram em cena outros inúmeros recursos expressivos que
o cinema futuramente deveria incorporar e poderia utilizar, o que não está sendo dito
com o objetivo de criar uma objeção irrefutável contra o cinema sonoro. Não ocorre,
pois, que se abram abismos entre distintos campos artísticos que impeçam o
estabelecimento de pontes entre eles. Na Idade Média, os pintores moldavam certas
formas em suas pinturas a partir de gesso, sobre o qual eles pintavam para produzir
relevos, e assim estabeleciam uma ligação da pintura com a arte dos relevos, sendo que
ninguém diria que a arte de relevo seja por isso um sub-ramo da pintura, nem que a
pintura seria um ramo da arte de relevo ou da escultura. Do mesmo modo, o canto lírico
liga-se à ópera – basta lembrar os oratórios de Händel – bem como há exemplos em que
o canto liga-se ao teatro - operetas e musicais. Há, evidentemente, pontes entre o teatro
e a literatura (recitais, romances em forma de drama) e entre a dança e o teatro (a
mímica).
Se alguém pretendesse fazer a definição de uma arte independente de tudo o que
possa ser realizado por outras formas artísticas, não conseguiria ir muito longe. Esta
distinção não se encontra nas fronteiras entre as artes, mas sim em seu cerne. A arte
gosta de atravessar limites com as outras artes, e o que entra em jogo é se a essência de
um tipo de arte colide contra a essência de outro tipo. A pintura em relevos não é como
os trabalhos apresentados como propriamente representativos dos pintores nem, por
isso, menos incontestável esteticamente já que o artista deveria buscar antes as soluções
para seu trabalho nas características peculiares restritas de seu material de expressão. Se
uma cantora num concerto começar a interpretar gestos teatrais, pode-se lamentar esse
fato, com razão, porque ela apela para elementos extrasonoros. A ópera é vista por
muitos como um híbrido pouco trágico, sem graça, entre a música e o teatro, e, quando
um herói no palco recita poesia, ocorre algo tão extravagante como quando uma
dançarina passa a representar trejeitos de um personagem trágico teatral.
Logo se vê que esse reino do intermediário é algo um tanto suspeito. Quando
bons artistas se lançam a ele, buscam o ponto intermediário de duas artes. Sua qualidade
depende diretamente de eles não trabalharem com meios puros ultrapassados. Como é
com cinema sonoro e teatro? Vimos: colocar os recursos juntos numa ação fluída não
representa ainda uma individualidade, e se mostra como algo extraordinário que o
cinema mudo possa ser utilizado tecnicamente no teatro, apesar de não pertencer a seu
princípio puro nem enriquecê-lo, figurando mais como um simples ornamento. O teatro
de Piscator utilizou telas cinematográficas e alto-falantes, tornando-se parecido com
esta duvidosa e estranha junção artística, como uma mímica circense onde o picadeiro é
todo tomado de água. Em suas ondas, africanos digladiam com crocodilos, enquanto
trovões e relâmpagos, cavaleiros e canhões fazem estardalhaço sobre uma ponte. Aqui e
ali há tudo o que ver e ouvir e a palavra só serve para apresentar o desenvolvimento da
ação. As máquinas do teatro de Piscator destroem o reino absoluto da palavra, sem o
qual nenhum teatro puro, ou seja, bom teatro, é possível. A palavra falada é o recurso
central do teatro e, por isso, sua função deve ser levada o mais longe possível, ela deve
ser utilizada até o extremo fazendo coro com a decoração, com a ação e com a mímica,
do modo mais natural possível e, por isso, o teatro de Piscator, com um maquinismo
independente, se torna inimigo da palavra e do próprio teatro, tanto quanto é inimigo
dele o puro naturalismo. Na Alemanha do pós-guerra (Primeira), houve, por exemplo,
na primeira encenação de Leopold Jessner, uma migração extraordinária rumo à
simplificação e à esquematização dos maquinismos de palco, como se fosse feita uma
tabula rasa para que a palavra pudesse ser ouvida melhor e com todo o frescor natural,
dando vida a ela, como num passe de mágica, dentro de um refinado cenário de teatro. A
invasão do espaço dramático por maquinismos de palco selvagens é semelhante à
ocupação do palco com números acrobáticos, de cabaré ou de revistas de variedades,
não tendo nada a ver com a tentativa de renunciar aos valores artísticos ou de incorporá-
los – e existe mesmo o medo, por parte dos públicos de arte do mundo inteiro, de que
isso ocorra também com o filme.
Um teatro cheio de efeitos sonoros seria sem dúvida um péssimo teatro. O
motivo é que os sons são válidos e utilizáveis como elementos de bastidor, mas não
podem ser elevados ao estatuto de ponto primordial da obra para os espectadores, que
sobrepusesse o valor da palavra, ou que fosse o elemento fundamental do trabalho dos
roteiristas - papéis que são reservados para a palavra. Exemplo: há recursos como
percussão, iluminação e escurecimento de cenários que constroem um clima sobre o
palco, mas o bom autor deve utilizar este clima para destacar o texto, servindo-se dele
para fortalecer a palavra, nunca para ofuscá-la.
Assim, o teatro pode criar alguma coisa com efeitos sonoros, mas eles são ali um
recurso acessório. E, por outro lado, o filme sonoro pode apresentar teatro quando o
texto se tornar o principal, mas há que se questionar se as propriedades dos
equipamentos sonoros não oferecem outras possibilidades próprias em um campo
exclusivo de atuação cinematográfico.

A palavra

Indo mais a fundo no problema das particularidades do cinema sonoro e da


relação entre filme sonoro e teatro, surge a questão da palavra. O motivo disso, só a
investigação sobre ela pode nos indicar o caminho.
A palavra, do ponto de vista de uma criação humana e de um instrumento
utilizado pelo homem, é uma coisa existente no mundo, assim como o próprio homem,
os animais, as casas e as árvores. Mas nós demos à palavra também a função de trazer
novamente perante o tribunal da nossa consciência todas as coisas, os acontecimentos,
as reflexões que ela denomina, todos os aspectos de um mundo do qual ela também é
uma das partes. A literatura – poesia, narrativa e drama – serve para que representemos
um mundo baseado unicamente a partir do poder da palavra. Não é preciso ligar a esta
nenhum outro tipo de recurso para que ela consiga representar tudo com clareza e
riqueza suficientes. Daí vem que a palavra se presta com muito poder a ser material para
a arte que nós chamamos de literatura. É muito comum percebermos ilustrações em
livros como perturbações que causam desconcentração: a imagem não complementa o
trabalho das palavras, ao contrário, parece colidir contra ele, porque este sozinho já é
capaz de nos oferecer pleno entendimento. Também do ponto de vista de que uma obra
de arte não pode desrespeitar livremente as regras estéticas sem tornar-se com isso uma
obra ruim, a palavra não só se presta a gerar valor estético, mas também pode se
comportar como um material artístico bastante dono de si: onde a palavra é utilizada
normalmente, outro tipo de expressão não pode ser utilizado sem empobrecer a obra
tanto num aspecto (imagem) quanto no outro (texto). A palavra deve responder sozinha
por aquilo que ela pode responder.
Esse já seria um forte argumento contrário ao uso da palavra no cinema sonoro.
Talvez ele não seja nada além de palavras com ilustrações e, deste modo, nós teríamos
de concluir por seu caráter antiartístico. A imagem do cinema mudo construiu um novo
mundo óptico; a palavra nos dá um outro mundo, o falado – será que o fato de colar um
no outro não está levando ambos a perder, de modo que eles não se complementassem,
mas simplesmente se destruíssem?
Isso seria certamente assim não fosse o fato de a palavra ser a um só tempo um
meio artístico, mas também um pedaço de realidade. Ela, enquanto meio de expressão
artística, não necessita carregar a seu lado outro meio rival; já como parte do mundo,
deve conformar-se em ter a seu lado todo o restante do mundo. E essa dupla função não
pode nem mesmo uma única vez ser separada, como nos mostra o exemplo do teatro,
em que a palavra está sempre na boca do ator. Um drama teatral já é, na grande maioria
dos casos, uma obra de arte completa em sua forma escrita, um trabalho de arte
puramente construído de palavras. E mesmo assim suas palavras são utilizadas pelos
antagonistas da peça do mesmo como se eles estivessem discutindo no mundo real. Não
se pretende dizer com esta afirmação que a palavra utilizada no drama corresponda
exatamente à que é falada na vida real, que seja falada sobre o palco do mesmo modo
como é utilizada nas ruas. Sabemos que, muito pelo contrário, a história do teatro
principia muito pouco realista e que ele se presta pouco a reproduzir nossa conversa
cotidiana. Na verdade, ele utiliza a palavra de modo mais parecido, por exemplo, com o
seu uso em cantigas festivas ou em orações. O diálogo realista só foi inserido no palco
em um estágio já bastante avançado do teatro. Do mesmo modo que faz com todos os
outros recursos materiais, o artista molda também a palavra à forma desejada,
estilizando-a no trabalho artístico. Assim como o pintor não imita os objetos da
natureza, mas sim busca novas formas de representá-los com determinados materiais,
também o autor de teatro atua com esse pedaço do mundo chamado palavra e a
reelabora formalmente, utilizando-se não só dela mesma como meio artístico, mas
também de outros meios bem distantes da própria palavra.
Embora o texto dramático já seja um trabalho artístico completo e independente,
quando ele é levado ao palco, nós permitimos - e assim também o faz o autor - que ele
seja reordenado a partir de molduras ópticas e acústicas enriquecedoras. Interpreta-se
um capítulo de um romance a partir de papéis diferenciados, figurinos, efeitos sonoros e
de bastidores criados no teatro, de modo que deveríamos falar de uma verdadeira
profanação. Mas não fazemos isso quando assistimos à representação de um drama
porque, se por um lado a palavra associa-se de um modo conflituoso com esses efeitos
outros, por outro lado ela se conduz tranquilamente na condição de parcela da realidade
assim como todas as demais coisas visíveis ou audíveis. Quando essa liberdade fica
comprometida, conforme vimos no exemplo dado há pouco (Piscator), podemos lançar
uma crítica feroz que se aplica a certos tipos de teatro comercial. Encontramos uma
divisão nítida entre representações teatrais que entram em acordo com a palavra, no que
se refere aos cenários, à atuação e até mesmo aos gestos dos atores, e que comprovam
ser possível não ter de destruir o valor do texto enquanto um material da apresentação
artística muito sofisticada. Isso em contraposição a uma quantidade de trabalhos que
apresentam um terrível universo de carne e sangue em que tanto a palavra quanto todo o
restante do mundo são servidos como alimento e no qual tudo o que está ali só tem o
direito de figurar.
O caso do cinema sonoro é nitidamente semelhante e a situação aplica-se até
mais apropriadamente porque a dualidade que encontramos no teatro se mostra mais
fraca no filme. A parte falada de um filme sonoro, sozinha, é totalmente destituída de
sentido e não tem nenhum valor artístico independente. O cinema sonoro – em todo o
caso o que é feito atualmente – não surge de um texto artístico que seja complementado
por imagens, mas sim de uma única forma na qual texto e imagem constroem algo que é
destituído de sentido se analisarmos cada uma dessas partes independente da outra. (este
é o motivo por que há tão pouco a esperar dos autores de teatro e dos romancistas em
relação ao cinema). Até mesmo a parte visual do filme sonoro não consegue fazer
sentido isoladamente. Além disso, há o fato de que a palavra no cinema é priorizada
como parte da realidade em vez de o ser como material artístico. Na mesma medida em
que a imagem do cinema destaca seu papel de realidade, tanto quanto a imagem vista no
teatro, aqui também a palavra tende a se aproximar de seu naturalismo. Seja de uma
bela maneira fluída e íntegra, seja de um modo declamado, a palavra deve ser
reconhecida como algo artístico também no cinema se não quisermos que ela se
apresente como uma espécie de corpo estranho isolado em seu próprio mundo. Contudo,
se o cinema sonoro continuar usando a palavra como o faz - imprecisa, esfarrapada
mesmo, que mais se parece com sons desarticulados e barulhentos – ela se tornará um
ruído entre outros ruídos. Essa maneira mais elaborada de tratar a palavra no cinema
sonoro, de qualquer modo, ainda não está sendo valorizada ou procurada pelos
cineastas. Ao contrário, a maioria dos atores de cinema fala – já que não se sentem em
casa ainda em relação ao novo papel que a fala desempenha no cinema falado – de um
modo claramente afetado, exagerado e que elimina a chance de se obterem bons
resultados.

A novela de rádio

A forma mais radical em que aparece uma destas duas técnicas de palco de que
falamos há pouco se materializa na novela de rádio. Mais intensamente do que no teatro,
aqui, efetivamente se constrói o verdadeiro reinado da palavra porque qualquer
corporeidade da ação e do local de atuação deve ser construída no grau que se desejar
unicamente a partir do poder da própria palavra, sem qualquer outra concorrência, já
que os olhos não contam com imagens que venham a se sobrepor ao que as palavras nos
sugerem. O rádio potencializa integralmente o caminho de sugestão óptica da palavra
por causa do seu caráter de transmissão à distância. Seria assim possível especular que o
teatro sofreu uma forte concorrência do cinema falado e transmitiu o patrimônio da arte
dramática para a novela de rádio como uma reação às novas técnicas, tese que
demonstra muito enfaticamente - e ao extremo - que a palavra como realidade natural se
encaminhou para a esfera do cinema falado e que, por outro lado, a hegemonia da
palavra artística se conformaria mais ao drama radiofônico. Pode acontecer
hipoteticamente que a televisão, ou seja, a fusão entre cinema e rádio, também não
prejudique o drama radiofônico. E ainda aventar a hipótese de que um uso muito restrito
da palavra no rádio seja recebido pelas massas sem muito entusiasmo.
Ainda pode-se reparar que não é tão fácil assim encenar dramas escritos para o
palco numa novela de rádio. O que já é uma obra completa no livro, sem os ingredientes
de palco, não se mostra completa no rádio. Falta ao livro uma porção de ingredientes,
como intérpretes, e os tipos de fala das personagens, lugares da ação, número de
participantes, ou seja, inúmeros elementos, desde gestos e ações representados por falas,
que não se podem simplesmente ler, mas interpretar. Devem ser escritos dramas
específicos para novelas de rádio, os quais justamente se aproveitem destas lacunas
abertas pelo rádio como potencialidades de criação artística e que desenvolvam uma
ação dramática diretamente a partir do diálogo das personagens, em vez dos elementos
ópticos ou da observação da direção. O quanto essa construção das relações num
programa de rádio é peculiar, desde os seus mais elementares fundamentos, fica claro
quando, por exemplo, pensamos que o ouvinte, no início de uma cena, está totalmente
desorientado, ou seja, não sabe quem fala, para quem se dirige e onde se encontra.
Coloca-se então a necessidade de uma técnica de exposição própria, assim como há uma
própria ao cinema e outra ao teatro, que se opõe a tais por contar, por assim dizer, com
um nada, um buraco negro visual de onde a ação deve brotar tornando-se inteligível e
imagética – o que lembra em alguma medida o tipo de exposição próprio do romance
literário. Se a partir das novelas de rádio será ou não descoberta uma tal arte de
dramatização sonora tão sofisticada, é difícil dizer. Mas há grande chance de que ela não
surja.
Nós tratamos aqui da rádio porque ela pode oferecer uma oportunidade de isolar
o fator acústico do cinema sonoro. Assim, como já destacamos, não se quer dizer com
isso que o cinema sonoro seja o resultado de uma simples sobreposição da novela de
rádio com o cinema mudo, que somente fosse necessário somar as técnicas artísticas
dessas duas outras modalidades anteriores para obter um bom filme sonoro. Mas ainda
assim, da mesma maneira como muito do que descrevemos da arte de câmera do cinema
mudo se preserva no que tange ao cinema sonoro, onde essas técnicas poderão ser
utilizadas numa nova conjuntura e até poderão se transformar - visto que há muitos
aspectos semelhantes entre os dois tipos de cinema, e também porque os efeitos do
cinema mudo que agregam valor àquela arte são de utilidade até mesmo didática para o
entendimento tanto do cinema falado como das modificações que ele promove –,
também o entendimento isolado da parte acústica será útil. O cinema mudo e a novela
de rádio são pai e mãe do cinema sonoro. Estando claro que o filho não é uma simples
soma das características dos genitores.
Com a novela de rádio, a radicalidade da valorização da palavra, ainda comedida
no teatro, pode atingir o mais alto grau. Os olhos não apresentam nela nenhum papel, o
mínimo que fosse, e mesmo a audição não abre muitas oportunidades além de ouvir o
diálogo do autor. Como os ruídos aqui, assim como qualquer elemento óptico,
significam uma concorrência silenciosa com a palavra, só é possível seu uso de uma
forma comedida.
Além dessa, é possível ainda uma outra forma bastante distinta de arte
radiofônica que somente se inicia por ora, distinta da atual por utilizar como material
artístico toda espécie de sons em geral que se encontram na realidade, ou seja, do
mesmo modo como o cinema mudo serve-se de todo tipo de coisas em geral como valor
visual. Este tipo de arte sonora instaura, assim como na arte visual, uma nova
organização do material criativo. Gemidos e sirenes de fábricas, sons de água correndo
e tiros de revólver, canto de pássaros e roncos – e também a palavra falada – constituem
uma coleção de ruídos sobre ruídos. Se não forem expostos com rigoroso controle da
sua harmonia, eles se amontoam de modo desarticulado, como simples coleções de
barulhos. Todavia, se organizarem-se numa forma de arte, pode-se dispô-los ordenados,
de modo que construam uma unidade de fala e sons, de maneira que até mesmo a parte
falada perderia sua independência e qualidade se não estivesse em conjunto com seus
complementos sonoros. O fundamental aqui é que a palavra em si, neste caso, não
precisa ser utilizada de um modo distinto do da fala em uma simples leitura de texto no
rádio. Se a dramatização do texto tende a uma estilização, ao antinaturalismo da
declamação, visto que a fala dos diálogos fora dos ambientes sonoros deve construir
uma estilização por si só, num drama acompanhado de efeitos sonoros se conta com um
arsenal de ruídos reais que podem se somar ao velho diálogo – integrando palavras e
ruídos de um modo tão natural que eles podem ser muito menos interpretados do que
quando o diálogo é estilizado por motivos de transmissão de uma ideia artística. Aquele
tipo de peça mais tradicional acaba apresentando sons tão afetados como as
declamações de versos alexandrinos e toda espécie de sons antinaturais.
O drama sonoro, de qualquer maneira, até agora não é mais do que uma
possibilidade hipotética e o que nos interessava nele era justamente demonstrar que o
mesmo seria possível teoricamente. Somente a prática poderá mostrar se o universo dos
ruídos é rico o suficiente para se unir à palavra a fim de construir um meio de
constituição de obras de arte valiosas. O problema é que não se pode concluir, a partir
do fato de o visual isoladamente ter sido suficiente (no cinema mudo) para construir
uma verdadeira coleção de obras-primas, que o mundo do acústico isoladamente
também alcançará o mesmo resultado. O visual e o acústico são universos muito
diferenciados.
Ondas de luz e ondas sonoras dão informações para as pessoas a respeito da
constituição das coisas em nosso mundo: como essas coisas “são” e o que elas “fazem”
num determinado momento. Desta maneira, nós obtemos, sem necessidade de um
contato físico táctil com as coisas, conhecimento a respeito delas no espaço real, e,
muitas vezes, essa informação é mais detalhada e melhor do que se tivéssemos um
contato tátil direto com cada uma delas. É o que simplesmente chamamos de ver e de
ouvir.
Acontece que somente uma pequena parte das coisas que estão ao nosso redor
oferece, com sua simples apresentação, ruídos que podemos ouvir. Algumas o fazem
sem parar, mas a maior parte não. O mar esbraveja sem parar, o cão late vez ou outra e
uma mesa nunca produz sons. Já, muito pelo contrário, com o auxílio da luz, nós
podemos permanentemente obter informações visuais de qualquer coisa deste mundo. A
luz oferece um universo de imagens completo e muito mais rico do que os sons. A luz
nos oferece o “ser” das coisas; o som, na maioria das vezes, é algo que “acontece junto
com elas”. A luz nos mostra a “coisa em si”; o som nos dá algo (seja permanente ou
ocasional) exterior à coisa. É verdade que não se pode levar essa afirmação ao pé da
letra porque a luz não nos oferece mais do que se pode saber a respeito da superfície das
coisas modificadas pelas ondas luminosas. (não vamos nos preocupar com objetos que
possuem luz própria). Essas superfícies aparentes alteram-se dependendo da direção e
da relação com o foco de luz. Mas, mesmo assim, nós obtemos muita informação a
respeito dessa superfície: sua localização no espaço, sua extensão, seus limites e
também informações de sua cor e do tipo de material. E esta reação da superfície das
coisas sob a iluminação novamente nos oferece muitos elementos a respeito do “ser”
daquela determinada coisa: quase toda alteração relevante ocorrida com a coisa vai
corresponder a uma alteração equivalente em sua superfície. Nós incorremos em alguma
imprecisão quando dizemos que a luz nos mostra a “coisa em si”. Porém, a informação
que podemos obter por intermédio do som, já que ele também pode nos oferecer muitas
explicações sobre relações permanentes ou momentâneas com as coisas, são
incomparavelmente mais ralas, particulares e indiretas.
Por isso, uma arte acústica tem à sua disposição um material mais pobre do que
uma arte visual. Dado que é um material, é possível produzir a partir dele, mas não no
mesmo grau de profundidade e amplitude. É possível comparar em certa medida com o
que ocorre com a fotografia, meio que possibilita uma reprodução mecânica e que já
produziu muitas belas obras, mas que não trouxe tantos melhoramentos e avanços a
ponto de não conseguirmos diferenciar muito radicalmente o trabalho dos melhores
fotógrafos em relação ao dos fotógrafos amadores - um violento contraste em relação ao
que estamos acostumados quando se trata das outras artes.
Agora, nós precisamos analisar como este material sonoro pode constituir uma
unidade artística juntamente com a imagem no cinema sonoro.
Sons e ruídos estão dispostos no espaço, mas não da mesma maneira como
aquilo que é visível coloca-se no espaço, ou seja, ouve-se (em geral) o que soa no
espaço, mas o som não se situa numa única posição. Perdem-se, por isso, todas as
possibilidades que a adoção de um ponto de vista visual permite, como já vimos na
análise da imagem. (Béla Balázs foi o primeiro a destacar este ponto). O modo de
“mirar” o som não causa qualquer alteração no aspecto formal de um som
(diferentemente do que ocorre com a imagem, em que a mudança do ponto de vista
transforma a aparência do objeto sem ter de fazer qualquer modificação objetiva no
objeto em si que é filmado), mas é possível em todo caso sobrepor sons num espaço
comum, no interior do qual eles podem soar juntos: o longínquo soar de trovões com o
canto próximo. Mas ainda há mais do que isso. Uma indicação em relação à origem do
som também pode ser dada: perto e longe são tornados audíveis por meio de uma
relatividade dos volumes do som, e não pela disposição das fontes sonoras no espaço.
Também não há nada parecido com os efeitos de colocação dos objetos uns ao lado dos
outros ou uns atrás dos outros conforme analisamos em relação às imagens, recurso que
nos oferece, no caso da imagem, grandes potenciais criativos. Os ruídos que soam
conjuntamente se apresentam muito mais como fenômenos independentes, e não
estruturais, uma simples soma de sons existentes. Esta pureza quantitativa sempre
presente faz com que poucos sons sejam passíveis de ser ouvidos ao mesmo tempo.
Bela Balázs escreveu em seu texto que:
“Na tomada sonora não há (será que só por enquanto?) ponto de vista. Um som
pode tocar do alto ou de baixo, de perto ou de longe. Do mesmo modo, ele estará
presente no espaço. Ele não altera sua forma, sua “fisionomia”, em razão de estarmos
voltados para ele numa certa perspectiva. Não é possível filmar um mesmo som que
venha de um mesmo lugar com três câmeras mostrando três enquadramentos diversos,
diferentemente do que se pode fazer quando adotamos planos diferentes para filmar
qualquer objeto visualmente. O som não pode mudar de características por meio de uma
abordagem subjetiva do diretor – ele vai se manter o mesmo som. E somente assim seria
possível dar início a uma arte do som no cinema. Pois é a partir dessas possibilidades
subjetivas que tem início qualquer arte em geral. Os enquadramentos de câmera deixam
claro que o cinema mudo não é uma mera reprodução mecânica, mas sim uma arte
muito original. O modo como o ator fala no estúdio e o modo como o sonoplasta
apresenta os sons pretendem ser uma grande arte. Mas arte de estúdio. Por isso, o
cinema sonoro se limita a ser uma simples reprodução de efeitos de sonoplastia de
estúdio”.
As consequências do que Balázs afirma em seu muito esclarecedor argumento
não abrangeriam somente o cinema sonoro, mas também qualquer representação sonora,
o que já aponta para o fato de que o autor não deve estar totalmente correto. Seu
pensamento é muito pessimista. Se ele estivesse correto, seria plausível não emitir mais
nenhuma opinião a respeito do filme sonoro. Mas o próprio Balázs não se deixou
convencer por seu próprio argumento, motivo por que ele continuou refletindo sobre o
cinema sonoro. E isso é possível porque o fato de não poder enquadrar o som a partir de
um ponto de vista não destruiu todas as outras potencialidades artísticas do som, mas
apenas algumas daquelas que estão disponíveis no elenco dos recursos disponíveis para
o visual, como a escolha da perspectiva de filmagem e a sobreposição de objetos em
cena. O corte do som é possível, possibilitando distintos sons sejam utilizados. Deste
modo, já é possível construir um mundo sonoro à semelhança do que ocorre com o
visual. Assim como se pode construir uma relação entre os objetos a partir do uso da
perspectiva da câmera, aproximando coisas que no espaço físico real estão muito
distanciadas, também é possível criar relações sonoras sobrepondo ruídos simultâneos.
E à semelhança da manipulação do tamanho relativo dos objetos na tela que oferece
uma boa oportunidade de construção de um mundo subjetivo (sem ter de deturpar o
mundo em si), as escolhas acústicas também podem ser manipuladas por meio da
escolha dos locais de colocação dos microfones e do volume dos sons captados, que de
modo mais ou menos significativo podem indicar a que distância as fontes do som se
encontram do centro da ação.
Ocorre que até agora essas possibilidade de manipulação dos recursos acústicos
foram exploradas só primitivamente. No entanto, até mesmo por isso, essas
possibilidades são um tema rico para o aprendizado, já que seu uso é muito amplo e
contém poucas restrições. Para filmar determinados objetos visíveis, de modo que se
crie uma forte relação entre eles com ajuda da manipulação da perspectiva e sem
adulterar ou modificar sua configuração no espaço real, só é preciso agrupá-los num
enquadramento escolhido a partir do posicionamento da câmera. O motivo físico para
tal é que as ondas luminosas se propagam do objeto visível até o local do observador
pelo caminho reto mais curto21. E é por isso – o que se pode deduzir até mesmo
geometricamente – que sempre há um ponto de observação a partir do qual um objeto
encobre o outro próximo pela manipulação do ponto de vista. É claro por que isso
acontece, mas, em relação ao som, não é assim que a coisa funciona. Nossos ouvidos
podem ouvir sons de quaisquer direções e uma fonte sonora não faz sombra para a
outra. Daí decorre que tudo o que soa ao mesmo tempo no círculo do horizonte audível
também é percebido simultaneamente (enquanto do ponto de vista da visão só podemos
perceber aquilo que está na direção em que olhamos, uma vez que não temos olhos nas
costas, por exemplo). Ocorre que não é o fato de dois sons virem da mesma direção que
fará um encobrir o outro: eles chegam aos nossos ouvidos sobrepostos quando soam
conjuntamente. Tudo sobrepõe tudo na audição. O campo acústico sofre maior
dificuldade para criar esse tipo de relação (como encobrir, uma pela outra, duas ou mais
fontes sonoras) e, por este motivo, é mais pobre do ponto de vista artístico.
Um plano bem-sucedido obtém uma ideia para que nós o exploremos como se
ele recortasse a realidade. É deste modo que a formação da imagem torna-se
sensivelmente mais poderosa e consegue ser criativa. A simples sobreposição temporal
oferecida pelos sons cria uma condição incomparavelmente inferior, difícil de manipular
e que não possibilita um maior controle sobre o espectador, no sentido de impor a ele o
entendimento de uma determinada ideia. Por isso, até agora, muito pouco se conseguiu
fazer com a sobreposição de sons que se comparasse ao que foi possível fazer com a
filmagem de um objeto na frente de outro, de uma atravessando a outra ou ao lado da
outra, manipulando as três dimensões do espaço tridimensional que são passíveis de
controle pela imagem cinematográfica.
Decorre dessa mesma incapacidade de encobrir, que, em um outro aspecto, o
sonoro seja até mesmo mais rico em possibilidades do que é o óptico, mesmo quando
este recorre de algum modo a objetos translúcidos, transparentes. O uso da transparência
visual é um fator que também pode ser trabalhado com ajuda da escolha do ponto de
vista da câmera. Se colocarmos dois objetos um na frente do outro, um encobrirá o
outro na maior parte das vezes, mas pode ocorrer que o que se situa à frente seja
translúcido. O problema é que são poucos os proveitos que se pode tirar dessa
transparência: no caso de uma transparência total, como a de um vidro, não há qualquer
alteração que o vidro cause ao objeto posterior. No caso do som, é possível somar
incontáveis camadas de transparência sonora. Se são poucos os corpos que permitem a
luz atravessar, quase todo barulho pode passar através de muitas coisas e se modifica ao
atravessa-las. Assim, podemos ouvir mesmo através de grossas paredes, como no
exemplo de “Sob os Tetos de Paris”, em que sempre o mesmo refrão da canção é
interpretado, mas o modo como percebemos o som depende da sua propagação: ouve-se
de um modo na rua, de outro por dentro dos quartos, através das janelas ou a partir do
bar (o mesmo recurso foi utilizado em “Canção Popular”, de Lulu Pick). E não é só isso,
porque o meio pelo qual o som passa modifica a sonoridade também dependendo de
onde ele é refletido. Ele soa de modo distinto numa sala pequena ou em uma grande,
diferente em um lugar aberto ou fechado de onde um som pode ser sentido de modos
distintos: a partir das diferentes possibilidades da variação da emissão do som e da
alteração indireta sobre ele por intermédio do espaço acústico. Estes dois recursos são
muito importantes tanto para uma arte sonora pura de rádio como para o cinema sonoro.

21
Se não fosse assim, não poderíamos construir imagens a partir das informações luminosas por mais
sofisticados que fosse nosso aparelho visual, porque o ato de ver depende de que cada ponto da retina
receba somente a luz enviada por um determinado ponto visível
A simples variação do posicionamento entre a fonte sonora e o microfone já é
um útil meio de controle da forma sonora, como já pudemos analisar em relação
análoga ao que ocorre com o posicionamento óptico da câmera. Assim como lá é
possível destacar distintos aspectos subjetivos das coisas a partir do plano geral ou do
close, também podemos aqui registrar os sons de muito longe - de modo que as falas se
assemelhem simplesmente a um burburinho sem sentido - ou de perto - de modo que
nos relacionamos com a fala de um modo mais íntimo, ouvindo um simples sussurro,
um gemido ou até mesmo uma respiração. Pela primeira vez (nos moldes do gramofone)
é possível ouvir a voz dos cantores em sua altura natural, já que no teatro sempre foi
necessário, ao contrário, falar alto para ser ouvido, mesmo quando se tratava de tentar
representar um sussurro.
À semelhança da câmera, o som também aqui não precisa se prender à
“continuidade do tempo e do espaço”. No campo acústico, é possível juntar situações
que se encontram na realidade distantes uma da outra no espaço ou no tempo (ou que
sejam imaginadas como se estivessem distantes uma da outra) sem nenhuma
intermediação, simplesmente por meio da montagem. É importante, para o
desenvolvimento da rádio, que se abandone a prática tradicional de simplesmente
colocar os atores à frente do microfone. É possível levar além seu potencial gravando
sons com o mesmo cuidado com que se filmam as cenas em tiras de filmes para serem
utilizadas a partir de cortes precisos. É este trecho sonoro gravado e editado que deve
ser transmitido e ouvido.
Esse tipo de montagem de situações disparatadas no tempo e no espaço serviria
como meio de possibilitar a criação de formas do mesmo modo como as que pudemos
descrever a partir da montagem óptica. Podemos encontrar assim os mesmos princípios
de montagem, equivalentes aos da montagem cinematográfica: paralelismo e contraste,
por exemplo. Walter Ruttmann, que se ocupou deste tipo de experimentação, anotou na
“partitura” de seu trabalho, “Fim de Semana”, que deveriam ser usados sons como: “o
órgão da igreja por cima da imagem do instrumento”, “sons de sinos badalando com
imagens de sinos”. E isso é paralelismo dos sons e contraste das duas sequências, um
dos mais básicos princípios da montagem.
É importante perceber que a montagem acústica apresenta dificuldades que não
ocorrem na montagem visual. Não é possível interromper abruptamente um som do
mesmo modo como é possível fazer com imagens. Essa interrupção do som causa um
efeito tão chocante quanto o da interrupção da projeção cinematográfica quando o filme
se rompe. A montagem visual convencional não causa qualquer sensação de ruptura
abrupta, porque a sucessão de imagens distintas, umas depois das outras, não se
assemelha ao choque que seria não mostrar nada depois de cada imagem. A interrupção
de um som implica a colocação de um silêncio depois dele, o que causa uma quebra
abrupta. A dificuldade está em que não estamos acostumados a ouvir um silêncio
absoluto depois de um som (seria muito desagradável se nossos ouvidos tivessem de se
comportar assim), mas sim ouvimos sons se sucederem uns aos outros sobre um fundo
sonoro mais baixo e contínuo. Esse fundo não é algo estranho, pois compõe o ambiente
sonoro. Entretanto, se o som mais alto cessa e, logo a seguir, não se ouve absolutamente
nada, somente um vazio, como que uma paralisação do mundo, sentimos algo muito
estranho. Há duas possibilidades oferecidas pela montagem para superar isso. Ou se
colam fundos sonoros aos pedaços do filme que não têm som próprio, ou se regulam as
sonoridades de tal modo que formem uma espécie de altura constante do som, que
impeça a percepção da colagem dos trechos.
Mas é justamente do uso dessa “camuflagem” que nasce uma outra dificuldade.
A montagem não pode truncar o fluxo da ação, mas, por outro lado, as rupturas
intencionais devem ser necessariamente percebidas muito nitidamente. O ouvinte deve
saber que o lugar de atuação mudou tanto visualmente quanto no aspecto sonoro. Se a
sucessão na montagem for muito plana, isso não será notado e o ouvinte pensará que a
ação ainda se desenrola no mesmo local. Na prática do rádio, é muito comum que a
transição entre ações distintas seja demarcada por meio de um sinal sonoro ou por um
sinal musical. No filme sonoro, essa dificuldade não é tão séria, já que a montagem
sonora sempre contará em paralelo com o apoio do visual, mas essas transições exigem
cuidado. Muitas vezes, uma transição somente visual pode ser interpretada pelo público
como um novo enquadramento de um mesmo espaço. É que a simples mudança de
ponto de vista mantém a sonoridade igual e, se o espectador não perceber um corte
também na sonoridade, ele pode acreditar se tratar ainda do mesmo ambiente que sofreu
um deslocamento do ponto de vista a partir de uma nova posição de câmera, mesmo que
não seja essa a intenção do diretor. Este é o mesmo caso de uma mudança de cena
visualmente parecida com a anterior, que poderia causar dificuldade de entendimento no
cinema mudo. No filme “M – Vampiro de Dusseldorf,” de Fritz Lang, por exemplo, são
mostradas imagens de dois locais distintos: os criminosos conversam num, as
autoridades policiais no outro. Num momento, vemos e ouvimos o que uns falam, em
seguida vemos e ouvimos o que dizem os outros. O filme mudo teria muita dificuldade
em mostrar que se trata de dois ambientes distintos. Já do ponto de vista sonoro, Lang
apresenta as falas sem diferenciar os ambientes, já que nenhuma fronteira acústica foi
demarcada. Por isso é muito forte a impressão de que ambos os grupos se encontram em
pontos distintos de um mesmo espaço visual e sonoro.
Na página 127, apresentamos um resumo dos meios criativos da câmera. Vamos
utilizá-lo como esboço para um resumo análogo dos recursos sonoros. Assim
poderemos ter uma lista de princípios que, de qualquer maneira, também se aplicarão de
modo mais complexo no cinema sonoro.
Para uma arte sonora, não é possível utilizar os itens 1, 4, 5, e 9 da tabela
relacionada com os recursos visuais. O audível nunca serve para desenhar corpos (1), de
modo que, no que há para o bom ou para o ruim, a forma esquemática ou forma
característica de um corpo nunca poderá ser tratada a partir do som. Também no que se
refere à divisão entre luz e sombra (4), não há nenhum paralelo no campo sonoro, assim
como o som não se submete a qualquer redução como a característica do cinema preto e
branco de tornar tons de cinza a cor (o que é audível soa no alto-falante como soa na
realidade do mundo, inalterado). Uma limitação do quadro visível pela moldura (5)
também não se aplica ao som, porque o microfone, à semelhança dos ouvidos, não se
limita a ouvir somente o que se encontra em determinada direção, mas é capaz de ouvir
tudo o que chega ao espaço onde se encontra, não podendo, da mesma maneira, recortar
um pedaço do espaço acústico deixando o resto de fora. Por fim, não há nenhuma
semelhança entre o som e a projeção plana da imagem dos corpos na imagem de cinema
(9) porque o som se distribui por todo o espaço.
Por outro lado, é possível manipular a distância entre a fonte sonora e o
microfone, aproximando e fazendo o som mais alto, afastando, e deixando som baixo no
fundo, colocando o que é importante em destaque e encobrindo o que não é, à
semelhança do controle da perspectiva e da sobreposição no visual. É possível fazer um
som engolir o outro e, deste modo, encobrir uma fonte sonora: o rangido de vagões de
trem, o som de chibatadas, os gritos de um cocheiro encobrem, mesmo que ainda seja
possível ouvir ao fundo, o choro brando de uma criança. É semelhante a quando algo
que se encontrava encoberto pela perspectiva, de repente, deixa-se mostrar porque as
coisas se movimentaram. Sobre a apresentação de relações pela exposição simultânea,
já foi falado antes. Dissemos que as relações das fontes sonoras são muito frágeis e não
conseguem construir ideias porque sua sobreposição cria um efeito muito mais tênue. O
motivo é que os sons que tocam simultaneamente não constroem uma relação tão forte
quanto os objetos que são vistos lado a lado, estabelecendo uma relação possível de
variação.
O componente ornamental também pode ser musical, criando relações com
harmonias ou melodias. Assim como se pode colocar uma música após a outra, também
é possível montar efeitos sonoros belos e característicos com ou sem acompanhamento
musical. O filme sonoro já explorou – e as novelas de rádio também podem fazer o
mesmo se forem elaboradas de verdade, e não simples junções de quaisquer materiais
sonoros aleatórios – muitos efeitos sonoros elaborados e muitas possibilidades de
relações entre sons peculiares, que tanto os ruídos como as vozes da realidade podem
oferecer. Nesta composição, o princípio do disfarce da montagem desempenha um papel
mais importante no campo sonoro do que no visual. Do mesmo modo que a colocação
em sequência de um rosto de perfil e de um close frontal do mesmo rosto representam
uma rotação do rosto, a colocação de dois sons distintos, um após o outro, também
representa frequentemente um novo contexto. Foi o que fizeram Dziga Vertov em
“Entusiasmo” e Granowsky em “Canção da Vida” ao utilizar distintos sons de máquinas
combinadas com uma melodia, para transformá-la.
Como aspecto parecido com a manipulação do tamanho dos objetos na tela, no
que se refere ao som, só é possível pensar na alteração subjetiva do volume por meio da
regulagem dos microfones. O bater de um pequeno relógio pode encobrir todos os
demais elementos sonoros de uma cena se o sentido da narrativa assim o solicitar. O
volume pode ser regulado de modo que cada som fique na altura certa: ouvir o chirriar
dos grilos não muito baixo, ou os tiros de um canhão não tão altos. Também é possível
criar distintas relações entre os ruídos, como o é com os objetos visíveis. Assim como
na imagem foi possível criar uma equivalência da forma arredondada da barriga do
estudante enquadrada ao lado das montanhas (s. 94), o sussurro de um pássaro pode ser
sobreposto ao barulho do motor de um avião por meio de uma regulagem dos volumes
sonoros.
Para a montagem acústica, valem os mesmos princípios da montagem óptica. É
possível – conforme já tratamos na montagem das imagens – montar sons que
provenham de distintas situações de espaço e tempo uma pós a outra. É possível fazer
montagens simbólicas, por exemplo, o ruído de uma queda d´água, uma gaita tocando e
o som de sinos: conclusão... é dia de folga. Máquinas industriais reduzindo sua
velocidade até parar, canto de pássaros, começa-se a ouvir músicas: caiu a tarde. É
possível controlar, com mais facilidade do que na montagem óptica como serão
sobrepostos ou se sucederão os trechos montados, o ritmo das sequências (montagem de
trechos curtos ou longos). Porém não é possível, como na montagem óptica, caracterizar
um espaço sonoro mostrando cada um de seus sons isoladamente como a caracterização
de um mosaico porque, como já se falou, não é possível recortar partes do espaço
sonoro sem promover uma violência contra a natureza num universo auditivo.
Por meio da movimentação dos microfones, é possível dar a impressão de que as
fontes sonoras se movimentam. Uma personagem que fala parada pode dar a impressão
de se mover caso o microfone se movimente em relação a ela. Assim a movimentação
do microfone passando por distintos universos sonoros pode representar a experiência
subjetiva de uma personagem que caminha. Correr, parar, levantar e vacilar podem ser
representados por meio da movimentação do microfone, bem como é possível
representá-los por meio da movimentação de câmera.
A supressão do elemento visual (como na rádio) resulta no fortalecimento do
valor da sonoridade do mesmo modo como a supressão do som no cinema mudo
fortaleceu o da imagem. Como todo ouvinte de rádio bem sabe, ouve-se melhor o que
alguém diz quando não se pode vê-lo.
O uso da projeção de sons de trás para frente, com velocidade reduzida ou
acelerada, é percebida como algo muito estranho. Granowsky trabalhou com trilhas
sonoras previamente montadas de trás para frente, por exemplo, para interromper
imediatamente e naturalmente um ruído. Num gongo, o som é inserido abruptamente e
continua soando lentamente. Se a cena for projetada de trás para frente, esse som irá
crescendo até chegar a um nada de repente, da forma mais abrupta possível. É algo tão
radical assim que ocorre também se a trilha sonora for suprimida. A música e a voz
humanas podem ser utilizadas tocando ao contrário para construir um certo sentido, por
exemplo, de uma fala de dizeres sem sentido.
É impossível prever todos os efeitos possíveis de produzir a partir do
estiramento do som por meio da desaceleração da fita ou da compressão causada pela
sua aceleração. Como soaria um sorriso diminuído dez vezes em sua velocidade ou um
ditado popular a tempo de galope com a fita acelerada? E deve-se considerar ainda que
a própria qualidade do timbre se altera. A desaceleração faz o timbre mais grave; a
aceleração, mais agudo e mais alto.
O princípio da sobreposição dupla de imagens não tem sentido em relação ao
rádio, mas naturalmente pode ser utilizado no cinema sonoro. Em “Nos encontramos em
Hollywood”, Paul Morgan faz um dueto consigo mesmo. Já a distorção pode ser usada
em ambos. Há cenas em que ela representa o som distorcido dos antigos gramofones
então recém-inventados.

O filme falado puro

Já vimos como ocorre de a palavra falada ser utilizada no cinema sonoro.


Embora a palavra consiga isoladamente construir um trabalho artístico completo capaz
de representar um mundo autônomo, é também possível juntar a palavra a imagens e
sons numa obra de arte unitária. Isso acontece porque a palavra não só é um meio
artístico, mas é também um fenômeno presente no mundo e, como tal, capaz de ser
organizada como tudo o mais que há no mundo. Qual deve ser a função da palavra no
cinema sonoro?
Situada na fronteira que estabelece a divisão entre o cinema totalmente falado e
o cinema mudo, a palavra pode tanto ser utilizada como forma privilegiada de
composição da narrativa do filme (uso que contaria com as imagens e ruídos, nos
moldes do teatro, servem apenas como adereços), como pode ser utilizada junto com os
sons como adereços de uma forma geral construída a partir, prioritariamente, das
imagens. Entre esses extremos, está o filme sonoro, no qual a imagem, a palavra e os
sons se compõem em pesos equivalentes. E, como já foi dito na comparação entre o
filme sonoro e o teatro, é preciso fugir destes extremos, visto que as fronteiras dessas
artes chocam-se constantemente devido a suas capacidades de mistura serem muito
fluídas, de modo que é preciso concentrar-se sobre o centro de cada uma dessas três
linguagens para que o artista consiga se orientar entre elas.
O cinema totalmente falado, no seu mais radical extremo, é somente uma versão
técnica do teatro falado. Por meio dele, é possível fixar apresentações teatrais sobre o
suporte da película. Podem-se utilizar as mesmas cenas, o mesmo diretor e os mesmos
atores e cenários com a única diferença de que a coisa toda não deverá ocorrer sobre o
palco do teatro, mas num estúdio. A apresentação seria feita uma vez e estaria pronta
para reproduções, até mesmo simultâneas, projetadas a partir de distintas cópias. Que
grande avanço seria se pudéssemos ter registrado grandes encenações do teatro do
passado. O sucesso dos filmes sonoros mais antigos deve-se menos ao novo aparato
técnico do que à fama do excelente cantor e ator Al Jolson, cuja arte não teríamos
vivenciado (na Europa) sem esse recurso. Como seria bom se a grande arte de um
Garric, um Duse, Kainz, de cujos talentos temos testemunhos, pudesse ser vista ainda
hoje. Mesmo agora, embora o cinema ainda seja tão recente, já pudemos ver por meio
dele, e com emoção, alguns pintores e também atores em ação, dos quais a arte foi
preservada mesmo depois de suas mortes, como o caso de Lou Chaney, de Albert
Steinreich e de Margarete Koepphe. Os atores eram até agora mortais, mesmo quando
fossem eleitos como imortais. A partir do cinema, a sua arte pôde ser preservada tal qual
a de um poeta, pintor ou músico. E outro grande avanço é o fato de as melhores peças
teatrais em breve poderem ser levadas em cópias cinematográficas aos mais remotos
bairros e serem mostradas em terras distantes.
Dificuldades bastante conhecidas precisam ser superadas na passagem da peça
teatral para o cinema. Não nos referimos à objeção de que a presença física do ator
resulta numa elevação da arte dramática que sua simples projeção imagética na tela
nunca conseguirá obter. Muito mais relevante é se voltar contra o monopólio da
indústria cultural. Mas ainda há outras dificuldades. Já se argumentou que um filme
sonoro é muito mais cansativo do que uma peça teatral. Isso é incontestável por
enquanto. Não fosse por outro motivo, a reprodução sonora ainda é muito precária,
principalmente nos pequenos cinemas suburbanos. As vozes sempre soam na mesma
tonalidade estranha, barulhos concorrem com o som e o tornam difícil de entender,
algumas consoantes são difíceis de distinguir, e os sons são reproduzidos na intensidade
errada e com características deturpadas. Não é raro que até os dias de hoje (década de
30), não se entenda bem entre 60% a 80% dos diálogos mesmo em um cinema de médio
porte. O espectador tem de se concentrar para entender o que o ator diz e para
interpretar corretamente os efeitos sonoros – e isso é naturalmente irritante. Mas é
possível obter grandes avanços em relação a tudo isso.
Mais difícil é resolver o que se segue: a palavra deve ocupar um papel central no
filme totalmente falado, logo deve ter o mesmo volume e claridade. No rádio, foi
estabelecido que o locutor deveria se situar a um metro de distância do microfone para
que sua voz tivesse o melhor desempenho. Mas, se o microfone for colocado tão perto
do ator no cinema, o quadro da câmera nunca poderá se abrir nem o aparelho se afastar
para que o som não varie muito, portanto não é possível uma imagem livre e plena com
som. A consequência é que o diretor deveria se restringir a planos de close nos trechos
falados. Já nos planos abertos, a voz soaria mais fraca e distante. Porém, estamos
acostumados, no cinema mudo, ao uso de closes somente nos momentos em que eles
tenham algum significado, o que faz com que seu uso seja muito comedido. Para o
espectador acostumado com isso, será estranho ver tantos closes que não apresentam
nenhuma função comunicativa, porque nada mais são do que uma restrição da imagem
imposta pela captação da palavra, situação que será muito incômoda para o público.
Pelo menos no período de transição do cinema mudo para o falado, esse tipo de
estranhamento era muito forte já que o público estava habituado a um modo de ver que
não podia mais ser utilizado livremente por causa da nova exigência técnica. Com
certeza a preservação dessas figuras gigantes dos atores na tela, resultará numa
monotonia desestimulante. Nos filmes atuais, isso ainda é muito presente em razão de
os diálogos ainda serem muito curtos e se diluírem cercados por ação – o que se torna
muito claro quando ocorre um número musical com um solo de canto. É uma sensação
semelhante à de um ator que chegasse bem próximo dos ouvidos do espectador de teatro
para declamar um monólogo de Shakespeare. Numa cena do filme de Feyder, “Anna
Cristina”, Greta Garbo fala com seu rosto em close um monólogo não muito extenso. A
monotonia desta passagem é insuportável. No teatro, mesmo na primeira fileira, o
espectador vê o ator relativamente pequeno e sem muita clareza. É uma grande
desvantagem, mas, como se pode ver, também uma grande vantagem: coloca a imagem
numa função secundária em relação à forma artística criada pela palavra. Em todo o
caso, poderia ser encontrada uma forma de contornar essa dificuldade (não se pode
esquecer de que o tamanho da projeção sobre a tela é controlável, dependendo tanto da
distância entre o projetor e a parede como da distância em que se encontra o
observador). Não obstante, vê-se que não é nada fácil deixar o ator num plano fechado
(close) e, apesar disso, mostrá-lo pequeno na tela e perceber como deveria se manter a
distância ideal entre o microfone e o ator22.
Todavia, essa monotonia óptica, dadas as restrições impostas pela gravação do
diálogo, não é a única armadilha para o filme totalmente falado, pois justamente seu
contrário, a presença de enquadramentos sofisticados para estilizar a imagem, também
pode ser problemático. A razão é que a palavra deve ser o elemento soberano, meio de
construção exclusiva da forma da obra, e isso sofre perturbação quando esse valor
primordial da palavra é sobrepujado por princípios ópticos. A interpretação no rosto dos
artistas é um elemento que acaba prejudicando a força do diálogo, de modo que já se
começa a reduzir seu exagero com o controle do enquadramento ou do trabalho com a
montagem, no sentido de se construir um princípio formal que não interfira no domínio
absoluto da fala. Assim, até agora, os filmes totalmente falados sofrem de uma falta de
estilo e de impossibilidades de todo tipo para evitar um mal maior, como quando uma
orquestra sofre a interferência de efeitos pirotécnicos de luz em sua apresentação, por
exemplo, a tentativa de Paul Whiteman que sobrepôs à rapsódia em azul de Gershwin
um horizonte circular com estrelas como num céu. Não foi possível até agora conciliar
com a forma construída com as palavras uma construção visual sofisticada e o uso de
cortes. Bela Balázs escreveu:
“A impossibilidade de um enquadramento do som dificulta muito o
enquadramento ótico da fonte sonora. Se a frase deve ser nitidamente entendida, basta
filmar diretamente e simplesmente o rosto de quem fala, mas não surge daí uma
perspectiva nem interessante nem que agregue algum valor ao texto. A técnica de
enquadramento no filme sonoro se torna tão primitiva como a do primeiro cinema de
anos atrás.”
A verdade é que esse recuo do cinema sonoro não tem por motivo somente uma
impropriedade da técnica (para que se possa ouvir bem o som), ao contrário, origina-se
numa falha estética. O filme falado puro não deveria se deixar seduzir pelas
possibilidades técnicas dos equipamentos. Para o cinema sonoro propriamente, que não
usa tantos diálogos assim, não há nenhum motivo para a imagem ter de aderir a uma tal
greve de criatividade. Ele pode mostrar o ator nos mais criativos enquadramentos, sem o
que será perdida toda a caracterização psicológica e estética do cinema.
A montagem é mais dificilmente utilizada no filme falado porque a palavra não
pode ser recortada e utilizada em cenas de poucos segundos, já que esta precisa de um
tempo para sua articulação. Um diálogo pode, deve e sempre deverá ter sua duração de
quinze minutos, por exemplo, e, durante todo esse tempo, os atores devem permanecer
em exposição aos nossos olhos. Não é possível que eles sejam recortados, fiquem
pequenos no quadro ou que a imagem, em vez de mostrá-los, vá percorrendo o quarto,
suba e mostre o céu com estrelas. Para ver bem isso, é só abstrair um pouco dos textos
22
Essa reflexão vale, naturalmente, para um filme todo falado. Mas, num filme sonoro mais variado em
que a imagem não é apenas um complemento, mas também é um elemento narrativo, o uso de um plano
só também pode se tornar extremamente monótono caso o recurso seja mal utilizado. Se forem bem
manipuladas, as possibilidades do close-ups, assim como o foram no filme mudo, seriam um recurso
muito bem vindo
insossos dos filmes sonoros de hoje e pensar no que há de melhor que a cultura poderia
nos oferecer. Pensar num monólogo da abertura de “Fausto” com imagens de cenas
simbólicas, visionárias, exposta em colorida opulência e em detalhes prateados em
closes do quarto de estudos: o brilho da lua cheia, o vidro pintado, os vermes expostos,
os copos, livros, instrumentos e esqueletos de animais. Essa exposição toda não
acrescentaria nada ao texto de Goethe, mas seria um claro exagero e uma descrição
quase risível que ninguém gostaria de ver.
Do mesmo modo que a imagem, os ruídos também deveriam ser muito
comedidos num filme desses. Eles deveriam somente ser usados quando
desempenhassem alguma função assim como ocorre no teatro. Os recursos do cinema
sonoro não têm serventia num filme totalmente falado.
O filme totalmente falado não se distingue, do ponto de vista estético, em nada
do teatro. A única diferença é que o teatro tem cores e elementos tridimensionais, visto
que se realiza na realidade do palco em vez de estar numa imagem sem espaço e sem
cor. Do ponto de vista do cinema falado, as propriedades particulares do cinema não
representam qualquer vantagem. Quanto mais a sensação de irrealidade advinda do uso
dos equipamentos conseguir se parecer com a realidade, melhor é para o cinema falado.
A razão para isso é que a artificialidade do visual só tem sentido quando ela serve como
recurso criativo artístico. Como isso não é possível num filme totalmente falado, é
melhor se desviar o mínimo possível da sensação de realismo. A descoberta do filme
colorido, o filme em três dimensões e o aumento do tamanho da tela , os quais se
colocam como prejudiciais a uma arte cinematográfica, são úteis ao filme falado. O
filme totalmente falado não tem nada a ver com o cinema na situação de recurso
artístico autônomo.
Esse tipo de cinema totalmente falado deve se desenvolver? O diretor de
produção do cinema artístico de Moscou, Solsky, disse a um jornalista alemão:
“Nós temos a impressão em geral de que o cinema totalmente falado não tem
futuro. Não pensamos em produzir filmes totalmente falados ou a gravação de peças
teatrais completas. Eu acredito que essa posição não seja exclusivamente minha. Esse
cinema não conta com nosso apoio ou apreciação. Ao contrário dele, acredito que um
cinema sonoro – com músicas e sons – não só terá um grande futuro como poderá
causar uma verdadeira revolução do cinema e terá um significado importante do ponto
de vista artístico”
Esse prognóstico não se confirmou por completo. Já surgiram muitos filmes
sonoros russos que contêm falas – e isso apesar de os russos não terem produzido
nenhum filme totalmente falado. Do mesmo modo, em todos os demais países, o filme
totalmente falado foi produzido em raras ocasiões. Pode-se concluir da prática geral que
não se acredita ser suficiente mostrar imagens chatas e monótonas que acompanhem um
filme composto basicamente de falas. Para tanto, os textos devem ser tão fortes, ricos
internamente e completos, de forma que só um poeta poderia construí-los (os poetas,
sim, poderiam utilizar os filmes totalmente falados) e que isso seria muito difícil à
pequena facção de roteiristas a qual produzia somente para o cinema mudo e que nesta
conjuntura não precisava dominar tão bem assim as técnicas de construção de diálogo.
Não é uma boa solução de filme falado aquela utilizada por Dupont em “Atlântida”,
quando algumas pessoas encontram-se no bar e conversam monotonamente durante um
quarto de hora. Já a forma do diálogo não é suficientemente elaborada em “Dreyfus” de
Richard Oswald, quando os atores em certos momentos dramáticos se calam, ou soltam
um “Ah, é verdade!” por entre os dentes e partem, ainda quando isso aparenta uma
plena naturalidade: em algum dos elementos do cinema deve haver alguma forma
artística, seja na fala, seja na imagem. Se isso não ocorre, até mesmo o talento de um
bom ator desaparece no vazio do filme.
A outra lição da prática: o filme totalmente falado e o cinema sonoro não têm
uma fronteira clara, e é justamente dessa fragilidade de seus limites que é possível
serem extraídos efeitos artísticos muito fortes e eficientes para se construir um estilo
próprio. O que não pode ocorrer é haver mistura em filmes totalmente falados típicos ou
em filmes puramente sonoros. Um filme que apresenta, ao longo de toda sua duração,
diálogos, e que não ofereça nada mais para ver que os rostos dos atores falando, não
pode, de repente, mostrar cenas com imagens em que a palavra não desempenhe papel.
Isso deve ser temperado com o uso de montagem e ausência de montagem. Como já
pudemos ver na prática do cinema mudo, é possível, num filme com cenas montadas
muito lentamente, colocar também algumas em que o posicionamento de câmera se
alterne muito rapidamente, dependendo do que a imagem solicita, para que não resulte
em vazio ou monotonia. O mesmo ocorre com o cinema sonoro. A imagem pode ser
utilizada como recurso informativo já que o filme não precisa ser totalmente destituído
de visualidade de contribuições visuais. E os efeitos sonoros são ainda trabalhados de
modo que os ruídos não precisem estar sempre presentes, visto que o barulho também é
um efeito sonoro - talvez o melhor deles. Entretanto, nenhum trecho do filme deve estar
totalmente sem fundo sonoro, sem ser trabalhado acusticamente, como pode ocorrer
com um filme mudo.
Por fim, há mais um gênero de filme sonoro que pode ser chamado de drama
telegráfico e que é consequência da inserção de som num filme o qual tenha a estrutura
de filme mudo. Nele não pode haver nenhuma quebra da sequência de imagens porque a
continuidade sonora não é completa. A única função do som é ajudar a explicar ao
público o enredo. O ator fala em breves palavras somente o que for importante para o
entendimento da trama (“Onde está minha filha, Jean?” – “Ela viajou há meia hora para
Deanville, Senhor”). Em seguida são mostradas imagens que representam o novo
cenário da narrativa. Estes dramas telegráficos não são nem filmes totalmente falados
nem cinema sonoro, na verdade, situam-se num ponto neutro que não é nem bom, nem
ruim; nem certo, nem errado. Eles estão sendo feitos em grande quantidade porque
oferecem bons resultados financeiros aos produtores.

Espacialidade da imagem do cinema sonoro

O filme colorido, o tridimensional e o em tela larga são estágios do


desenvolvimento da técnica cinematográfica rumo ao naturalismo que, como já
dissemos, são extremamente bem-vindos para o filme totalmente falado porque estes
recursos liberam a imagem de cinema tanto de sua condição de pura luz e sombra
quanto da condição de irrealidade que, no caso do cinema totalmente falado, não
consegue se reverter em instrumento de produção criativa. Por que, entretanto, esse
avanço não se aplica afinal para o cinema sonoro de forma mais geral? É porque essas
novidades, como é sabido, em função do que se passou com o cinema mudo,
desarticulam todos os meios de formatação artística da imagem: a montagem, a escolha
consciente dos enquadramentos, a construção decorativa da superfície plana da imagem,
etc. Mas será que esses recursos tão especificamente típicos do filme mudo podem ser
preservados para a produção do cinema sonoro? Eles se tornam impossíveis de
manusear se forem postos lado a lado com sons e ruídos?
Vamos investigar isso a partir de agora, ponto a ponto. A consequência desta
investigação poderá ser a enumeração de uma série de restrições contra o cinema
sonoro, contendo todas as potencialidades perdidas do que era possível fazer
unicamente a partir dos recursos do cinema mudo e que já não serão mais possíveis de
realizar. A pergunta é: quanto do que possibilitava o cinema mudo se mantém no cinema
sonoro? Antes, porém, de analisar cada um desses elementos, deve-se passar por outro
problema.
Trata-se do argumento tão elegantemente sustentado, e que precisa ser analisado
antes de qualquer outro, de que a gravação de sons por meios técnicos seria impossível
de se utilizar com fins estéticos. Já foi afirmado: o que se projeta sobre a tela é uma luz.
Esses homens na tela iluminada abrem sua boca, porém a voz que é lançada a partir
dessas bocas e que os alto-falantes reproduzem não é simplesmente uma sombra de voz,
mas sim a voz mesma, verdadeira. Portanto, não seria possível associar sons com
sombras. Luzes e realidade não poderiam ser reunidas em qualquer modalidade de arte
consistente.
Trata-se de uma questão que depende de experimentação prática. A experiência
ensinou que a união entre palavra e imagem pode conduzir o espectador a dois tipos de
reação. Uns não conseguem reunir os sons e imagens em uma única percepção. As
figuras na tela parecem ser terrivelmente destituídas de corpo, sombrias e sem vida,
enquanto, de qualquer outro lugar que com certeza não é da tela, soa a voz independente
sem se relacionar com tais imagens.
Outros expectadores, porém, sentem que a voz sai da boca das figuras na tela e
estas, assim como o som que emitem, ganham prontamente vida, tridimensionalidade e
corporeidade muito mais presentes do que no cinema mudo.
Essas duas reações demonstram que o som constrói a ilusão de um espaço real e
que a imagem cinematográfica muito raramente consegue simular a profundidade
espacial e a corporeidade. Essa contradição da construção espacial se origina do
confronto entre o óptico e o acústico puros (naturalmente também entre a falsa
localização objetiva da fonte do som, já que ela não está na boca e sim em alto-falantes
em pontos fixos). Portanto, como se pode perceber, aqui os fenômenos óptico e acústico
ajustam-se um ao outro da melhor maneira, tendo em comum que ambos são
reproduções dos mesmos fenômenos da realidade (o movimento da boca se ajusta à
perfeição ao som das palavras etc.). Assim ambas as técnicas, embora independentes,
têm uma forte tendência de se misturarem uma à outra na percepção. Para qualquer das
tendências que seja seguida – ou a da perspectiva delas isoladas, ou a delas conjuntas –,
as duas sempre comungam com o mesmo acontecimento. Som e imagem permanecem
separados, mas a espacialidade do som contamina a planura da imagem de um modo
que até então não havia sido possível fazer. A ausência de espacialidade da imagem
achata os lugares e as personagens na superfície da tela. Ao contrário, quando a
tendência da unidade entre imagem e som se insinua, o lugar mostra-se ser mais
profundo e as personagens, tridimensionais (um fenômeno que não tem nada em comum
com a percepção psicológica normal da tela muda).
Deve-se admitir que a maioria das pessoas que tem a impressão de separação,
logo a seguir, dá-se conta da fusão porque, para nosso organismo, causa muita aflição
perceber separadamente coisas muito parecidas23. E a união é uma coisa tão libertadora,
simplificadora, para a percepção que é graças a ela que a diferença da sensação espacial
do som e da imagem também logo é superada.
Essa distinção entre o som e a imagem não impede praticamente que se
estabeleça uma impressão unificada de sua composição. Se estes elementos fosse, para a

23
Basta lembrar como é incômodo forçar a vista para perceber o que tanto um como o outro olho
enxergam diferente, desconstruindo a unidade que a visão normal nos oferece, situação em que parecem
estar descoladas uma imagem da outra, e como é forte a inclinação a que seja feita alguma coisa para
ambas possam estar unidas novamente
maioria das pessoas, percebidos separados o tempo todo no cinema e permanecessem
assim, os cinemas sonoros estariam sempre vazios, dado o tamanho desconforto que tal
sensação causa aos nossos sentidos - o que não poderia ser tolerado por muito tempo
pelo público.
Mas o que acontece é justamente a fusão: a sonoridade dá espacialidade à
imagem e é capaz de transformá-la num espaço com profundidade como o da realidade.
Ligado a isso, surge um perigo muito grande do ponto de vista estético. O que a
descoberta de um mecanismo de projeção estereoscópico representaria num extremo, já
estaria sendo alcançado em alguma medida por meio do cinema sonoro.
A imagem de cinema, tornando-se mais fortemente tridimensional, roubaria da
moldura do quadro cinematográfico seu caráter de estabelecimento de limites precisos.
A moldura do campo cinematográfico seria percebida como muito mais casual, um
recorte modificável, uma espécie de buraco vazado retangular através do qual seria
possível espirar um pedaço amplo de espaço que estaria por trás. Aquilo que
respectivamente estava dentro do campo da imagem ganhava o caráter de uma
composição intencional justamente por estar projetado na superfície plana da imagem. A
moldura da imagem de cinema não era um obstáculo que impedia a liberdade de olhar,
pelo contrário, ela possibilitava a construção de um recorte por meio do qual era
possível o diretor controlar a atenção do público, compondo um sentido ao dispor de
uma maneira específica, um grupo determinado de figuras no interior do retângulo
formado sobre a superfície da tela. Com a transformação da imagem de cinema em
tridimensional, as coisas não se situariam mais na superfície da tela, e sim em seu
interior, em sua profundidade, deixando de manifestar uma relação óptica dos elementos
na superfície e transformando o papel da tela no mesmo de um simples caixote onde as
coisas estariam dispostas meio ao acaso como obstáculos para que víssemos o que está
por trás, e não como elementos de uma construção de formas criativas com inúmeras
possibilidades de composição. A disposição arranjada decorativa de objetos sobre a
superfície preta e branca também só funciona bem, e de maneira totalmente controlada e
consciente, se a moldura do quadro bidimensional for claramente limitada, coisa que
não acontece com a imagem tridimensional.
Ainda se perde, com isso, o controle absoluto que o posicionamento de câmera
proporcionava. Se o ator for filmado de costas numa imagem bidimensional, sua
posição estaria solidamente estabilizada; já em uma imagem tridimensional, ele poderia
ser visto de modos um pouco distintos dependendo do ponto de vista do espectador:
tem-se a impressão de que o ator poderia se virar no momento seguinte e que só se por
um mero acaso isso não acontece. Para deixar mais claro de que efeito psicológico se
está tratando aqui, basta olhar para uma fotografia estereoscópica que mostre um
homem em pé e se perceberá claramente a impressão de que ele está congelado
artificialmente, condenado pelo mecanismo técnico a uma espécie de imobilismo
mágico. Esse tipo de sensação de congelamento não aflora frente a uma fotografia
normal porque sua superfície plana é tão diferente da realidade que ninguém sente que a
ausência de movimentação seja uma deficiência, já na imagem estereoscópica, a ilusão
de espacialidade e corporeidade é tão forte e próxima da sensação de estar defronte ao
real que a ausência de movimento parece muito antinatural. É por isso que, num filme
com forte sugestão de tridimensionalidade, a localização de uma pessoa não parece ser
obrigatória, mas casual. Assim, o enquadramento perde sua característica (de ser esse e
não qualquer outro), o que retira das mãos do cineasta este até então muito forte recurso
de direção artística.
Do mesmo modo, perde-se a capacidade de manipulação do tamanho dos objetos
na tela (algo filmado de longe parece pequeno e quando filmado de perto, grande). Por
causa da maior sensação de profundidade, a deformação perspectiva perde sua força e
passa a ser percebida simplesmente como um resultado da distância espacial. A
regularidade de tamanho (fenômeno natural de regulagem perceptiva psicológica por
meio do qual nossos olhos compensam a aparência relativa do tamanho deformada pela
proximidade ou distância do objeto que aprendemos a reconhecer a partir da nossa
experiência objetiva) volta a desempenhar sua função com eficácia numa imagem
tridimensional, portanto a deformação simbólica intencional com objetos simbólicos a
qual era possível manipular pela perda da noção de regularidade de tamanho, na
imagem tridimensional, torna-se impossível de se manipular.
Por fim, a montagem. Conforme já aprendemos com a análise do filme mudo, a
montagem só é possível por causa da essência imaterial e irreal da imagem de cinema
em função da qual a colagem de distintas imagens em sequência não aparenta ser uma
sucessão antinatural de mudanças aos pulos no espaço real, e sim uma coleção de
imagens à semelhança das de um álbum fotográfico. Se a imagem, entretanto, for
marcadamente tridimensional, a montagem torna-se uma intervenção abrupta e violenta
no espaço real. A montagem de imagens tridimensionais construiria uma sequência tão
estranha como a que temos ao olhar para as gavetas verticais que se sucedem, levando
diferentes pessoas num estranho tipo de elevador antigo que não tem porta, que sobe de
um lado e desce de outro continuamente. Ainda pior: a tridimensionalidade destrói outro
efeito, aquele que não deixava a montagem parecer uma sucessão de pulos num espaço.
A jocosa leveza da sucessão de temas que centenas de imagens poderiam criar está, a
partir de então, perdida – em três dimensões, a imagem ganha corpo, bebe sangue,
assemelha-se aos objetos da natureza e se distancia da arte. O corte passa a ser
percebido como uma violenta interrupção, ou destruição das relações entre as coisas,
como um disparatado jogo cego de objetos saltitando desordenadamente no espaço.
Tudo isso vai acontecer se a imagem de cinema ganhar tridimensionalidade.
Mas ainda é muito cedo para dizer o quanto o som poderá fazer avançar essa
sensação de tridimensionalidade na tela plana. Às vezes, tal sensação coloca-se
fortemente; outras vezes, mal é notada. De qualquer modo, a impressão de
tridimensionalidade que a sonoridade dos atuais aparelhos de reprodução de som
consegue produzir é muito limitada – será isso só por agora? A evolução dos
equipamentos conseguirá produzir um fortalecimento do sentido de espacialidade na
tela? As técnicas de reprodução do gramofone ou do rádio cuja sonoridade hoje mantém
uma muito pequena diferença são suficientes para percebermos o tipo e o tamanho do
lugar onde os sons por eles transmitidos foram produzidos? Será que isso vai se
transformar? Talvez em dez anos a sensação de espacialidade do som seja tão forte que
já seja possível identificar de que lugar os sons vêm tão nitidamente como se
pudéssemos enxergá-los. No entanto, mesmo um tipo de sonoridade tão completa
poderia realmente dar tridimensionalidade à imagem cinematográfica? Ou isso não está
relacionado somente aos equipamentos? Não seriam nossos sentidos muito grosseiros
para permitir tal grau de precisão na identificação espacial do som? Deste modo seria,
então, impossível a qualquer tipo de equipamento, por mais preciso e sofisticado que
fosse acusticamente, criar uma impressão óptica tridimensional. Ou será que a fraqueza
de sensação tridimensional do filme sonoro vem do fato de que o estúdio, na maioria
das vezes, produz um espaço sonoro alterado já que, por exemplo, mesmo uma sala que
nós vemos na imagem produzida num estúdio, na maior parte das vezes, não é uma sala
completa, não tem teto, não tem paredes de tijolos, mas sim é produzida com um par de
materiais de cenografia como tecidos e tábuas coladas, ou seja, não se trata de uma
construção de verdade, mas de um cômodo solto no espaço livre. Os instrumentos de
captação do som “fotografam” um espaço muito diferente do que a câmera registra
visualmente. E, se esse for o motivo pelo qual o cinema obtém uma espacialidade muito
ruim, como será possível contornar esta má formação? Mais importante, como já
pudemos analisar anteriormente, se o fortalecimento da sensação de espacialidade seria
um grande obstáculo para o artista no cinema, é preciso tentar contornar a situação? Por
outro lado, o aprimoramento dos aparelhos de captação sonora não serviria para
melhorar e tornar menos imperfeita a discrepância entre o espaço sonoro e o espaço
visual que tão comumente encontramos nos filmes feitos atualmente? E que papel
desempenha a variável de que o som não parte precisamente do local de onde deveria
vir se estivéssemos observando um espaço real, mas de ele vir sempre do mesmo ponto
fixo onde se localiza o alto-falante? Percebe-se que ainda há muito que aprender. Os
técnicos têm agora a palavra.

Do filme mudo para o cinema sonoro

Ocupamo-nos até agora das questões do âmbito perceptivo e não do estético.


Analisamos se as características próprias do cinema sonoro também poderiam agregar
valor estético por meio da delimitação do quadro, da alternância do ponto de vista da
câmera, da montagem, etc. Vimos que, no cinema sonoro, as falas tornam a imagem
mais vivas e mais corporificadas mesmo que ainda não possamos afirmar que uma
tridimensionalidade plena possa ser alcançada um dia por seu intermédio. Percebemos
que, para alcançar este objetivo, ainda há dificuldades a serem superadas.
Mas é necessário, logo após algumas conclusões de cunho psicológico, levantar
algumas questões estéticas. Os meios de expressão do cinema mudo se mantêm no
mesmo lugar no cinema sonoro? É possível atingir, com o filme sonoro, o mesmo tipo
de valor do filme mudo visto que agora o som e os ruídos vão estar juntos com a
imagem?
No filme mudo, dá-se um monopólio da visualidade, e, assim, a atenção do
espectador concentra-se toda sobre ela. Cada imagem tinha um caráter de obrigação,
seja porque ela tinha de impressionar o público, seja porque não havia nada além dela
para apreciar (especialmente quando um bom autor estava dirigindo o filme). Não era
possível imaginar que qualquer imagem fosse diferente, que fosse casual ou estivesse ali
sem ter uma razão especial. A chegada do som não diminuiria a importância da imagem
de modo que ela perdesse a força que havia exercido até então? Não seria, em muitos
casos, o som em vez da imagem quem nos ofereceria diversas caracterizações? Um
exemplo:
Em um bom filme mudo, cada recorte da imagem é intencional e restritivo. O
que surge no interior da imagem está ali por ser importante. Foi trazido para dentro da
imagem já que, se estivesse fora do campo, fora da moldura da imagem, não seria visto.
A moldura coloca ao mundo do filme. Se a imagem mostrar um canto da sala, decorrerá
necessariamente a percepção de que é justamente neste recorte espacial que acontecerá
o que há de mais importante na ação. Alguém sai da imagem, permanece fora do campo
da visão, e não se pode saber nada mais a respeito dele. Justamente destas escolhas do
que mostrar nasciam milhares de possibilidades que serviam ao diretor como meio para
conduzir sua exposição.
Como é, entretanto, quando o som não parte de algo que está na imagem? A
imagem mostra uma parte do quarto e ouve-se, ao mesmo tempo, um barulho ou uma
voz que vem de outro lugar, de um lado que não está visível apesar de pertencer ao
mesmo quarto e de onde se pode ouvir um barulho ou uma voz que vem dali? O que era
exclusão no cinema mudo, porque o que estava fora do quadro não podia ser percebido,
passa a fazer parte da cena exclusivamente por causa do som, deixa de estar excluído
ainda que esteja fora do quadro da imagem. O controle de exclusão que o quadro
exercia caiu por terra: o espaço dos acontecimentos foi ampliado com o som para além
do espaço do visível. O recorte do enquadramento não perdeu, com isso, seu caráter de
determinação da atenção? Se não há nada a mais para ver do que um casal
sossegadamente sentado em meio ao público enquanto a voz de um cantor que não
podemos ver é ouvida, o espaço da ação não se restringe mais ao que os limites da
margem da imagem enquadram, ao contrário, o que há de mais importante na cena está
fora da imagem. E assim fica demonstrado que se perdeu totalmente a função de
delimitação da ação pela imagem.
Vemos que essa argumentação soa certamente plausível e já aponta para
mudanças a serem consideradas com o surgimento do som, mas é preciso considerar
que, até mesmo no caso do cinema mudo, ela é relativamente falsa. Lá também havia
muitas cenas do seguinte tipo: vê-se uma pessoa que se assusta com a presença de outra
e recua, mas essa outra pessoa não pode ser vista dado o enquadramento da câmera.
Nesta situação, o espaço dramático também avançou para além das margens da imagem,
e o que se segue não é algo que seja dado pelo mundo físico, pelo contrário, é algo que
o espectador gostaria de ver, algo que pertence fundamentalmente à situação narrativa, e
que, por não estar ali para ser visto, parece ter sido excluído pelo recorte específico da
câmera. É o que acontece na cena de conclusão do filme “A velha Heidelbert”, de
Lubitsch: Karl Heinz conduz sua esposa no carro nupcial pela rua. A câmera está muito
próxima dele, no interior do veículo, posicionada de tal maneira que só se vê metade do
carro, o lado de Karl Heinz, mas não se vê a mulher que está sentada ao seu lado. Por
meio deste forte contraste entre a perspectiva subjetiva do recorte e a situação objetiva
mais ampla, surge o sentido da exclusão, pois não há o que reparar na mulher: ela não
tem nenhuma importância para a narrativa, é como se ela não estivesse lá!
Cenas desse tipo tornam-se muito mais fortes no filme sonoro do que no mudo.
A diferença mais importante é que, no filme mudo, o contracampo exterior à imagem só
se torna perceptível se for ajudado pelo sentido do que é visível. Já no caso do cinema
sonoro, o contracampo pode ser sugerido pelos ruídos ou pelos diálogos. Essa
exterioridade acústica não desvia a percepção do espectador da própria imagem, ela
amplia muito mais um conteúdo visual do sentido junto com a imagem, ela alarga a
própria percepção. Num filme sonoro, ouvimos duas pessoas conversarem embora só
uma possa ser vista, portanto a arbitrariedade na exposição de somente esta personagem
torna-se muito mais notória.
Ouvimos uma pessoa falar e só enxergamos suas costas, logo o fato de que seu
rosto foi ocultado intencionalmente é muito mais evidente. A subjetividade de tal
enquadramento torna-se muito mais clara do que podia ser até então num filme mudo
porque a fala cria um contraste, expondo a situação objetiva na qual se produziu a
imagem tomada pela frente – é isso que a fala parece mostrar. Assim como no exemplo
anterior, a alusão acústica à ação em sua totalidade denuncia que o recorte óptico só
deixou visível parte dessa totalidade. Na “Ópera dos três vinténs”, de Pabst só se
consegue ver, preso numa cela, Mackie Messer do joelho para baixo. A câmera foi
posicionada de modo a mostrar só suas pernas. Quando ele fala e não se vê seu rosto,
mas somente o plano das pernas imóveis e os sapatos, gera-se uma sensação estranha
por causa do enquadramento incomum.
A chegada do som não suprimiu a moldura da tela e nem roubou ao
enquadramento o caráter de obrigatoriedade de exclusão, ao contrário, empresta a eles
ainda mais força. Isso com certeza se aceitarmos a hipótese de que a imagem tem tal
força. É muito raro ver, em filmes sonoros, cenas como uma escada qualquer vazia, a
partir da qual se ouve o diálogo de duas pessoas que vão descendo por ela. Neste caso,
toda a atenção do espectador desloca-se da imagem para o som porque é ele que carrega
unicamente a informação que está sendo dada – a imagem é totalmente vazia e não
informa nada. Ao contrário disso, o mais comum é a imagem absorver toda a atenção
quando ela é tão informativa quanto o som. O equilíbrio da importância de ambos só se
estabelece quando tanto o acústico quanto o visual são elementos obrigatórios para se
informar a respeito da situação.
Naturalmente, numa cena assim, o sentido não vem só da imagem, mas também
do som. É por causa de nós vermos uma parte do lugar da ação que se acentua
fortemente o fato de não enxergarmos um outro de onde o som se origina. E assim, um
bom filme sonoro aproveita esta oposição entre som e imagem para enriquecer seu
sentido.
O mesmo ocorre com os outros recursos de expressão do cinema mudo. Por
meio da distribuição de luzes e sombras, por exemplo, o diretor pode tornar partes da
imagem conhecidas e deixar outras escondidas pela escuridão, de modo que elas não
poderão ser reconhecidas mesmo quando projetadas sobre a tela (na cena final da
“Ópera dos três vinténs”, enquanto o texto diz que “o que mora nas sombras, o homem
não vê”, uma romaria de mendigos desaparece pelas sobras de uma ruela). Se uma
pessoa passa então a falar neste quadro de sombras, de modo que mal possa ser vista,
essa penumbra passa a desempenhar um papel de localização dramática. Ou ainda, se
durante um diálogo entre duas personagens é feita uma montagem de imagens em que
se sucedam distintas imagens, será adicionada toda uma dinâmica visto que as imagens
mudam constantemente o ponto de vista enquanto a fala permanece “objetiva”; criando,
pois, um contraste na cena entre a manutenção da fala em oposição às mudanças
subjetivas da perspectiva da imagem. Mas também nesta situação, tudo se origina do
fato de a montagem de imagens respeitar o sentido da cena, sendo valorizada por ela –
porque, muito mais intensamente do que no cinema mudo, o uso de enquadramentos
interessantes, por apresentaram algum valor simplesmente decorativo, é ainda mais
destituído de sentido e se torna chamativo no cinema sonoro, em que o sentido objetivo
da ação é percebido com forte intensidade por causa do som. A imagem deve sublinhar
ainda mais o sentido do que é falado por meio do reforço visual ou, em todo o caso,
colocar-se numa relação clara com o diálogo, de forma a se tornar tão relevante para o
texto que, numa situação ideal, até mesmo ele perdesse seu sentido se não fosse
acompanhado da imagem. Assim fica mais evidente a principal diferença entre um filme
totalmente falado e o cinema sonoro propriamente dito: a imagem, neste último não é
um simples acompanhamento do diálogo, é muito mais importante, um recurso de
exposição tão importante quanto a fala. Do mesmo modo que só é possível entender o
diálogo quando se ouve o que se diz tanto por parte de um quanto do outro interlocutor
(de outra maneira, a fala se tornaria um monólogo), também só deveria ser entendida
uma cena de cinema sonoro quando a imagem e o som tivessem seus verdadeiros
valores próprios insubstituíveis. Nesta solução equilibrada ideal, eles deixariam de
atrapalhar um ao outro como valores expressivos porque eles não seriam mais dois
meios de expressão distintos concorrendo, mas sim um só meio híbrido de expressão em
que ambos se complementariam.
Assim se percebe que é preciso tomar cuidado com a montagem do cinema
sonoro já que ela tem outro tipo de fundamento. Já dissemos anteriormente que o
contraste entre a mudança do lugar da câmera com uma mesma ambientação sonora
representa, objetivamente, uma permanência no mesmo ambiente. Este recurso, na
prática, é tão poderoso que é possível colocar os trechos sonoros uns após os outros e
depois dispor livremente sobre todos eles quaisquer sequências de imagens. O que se
sucede é que as mudanças de localização da câmera parecem estar circunscritas num
espaço muito bem delimitado pelo som. Se a câmera se desloca para outro lugar distante
do original, a intensidade dos barulhos ouvidos ali tem de mudar em conformidade com
a nova situação: determinadas fontes de som devem se tornar então mais próximas,
portanto devem soar mais altas; outras devem ter se afastado, por isso devem soar agora
mais baixo. Isso não pode ser ignorado simplesmente como se o plano sonoro fosse
apenas um pano de fundo que pudesse seguir sem alteração. É criada uma forte relação
psicológica entre a impressão visual e a sonora (ainda voltaremos a tratar desse
aspecto). Já na movimentação a curtas distâncias, nossos ouvidos não percebem a
alteração sonora (excepcionalmente, aqui a culpa não é da baixa qualidade dos
equipamentos de captação do som) e assim não sentimos falta de mudanças de volume
sonoro.
Se for mantido o volume em uma mudança de enquadramento muito radical, em
que se perceba nitidamente uma nova distância em relação à fonte sonora, a sonoridade
representativa da cena terá de mudar, necessariamente, para destacar ainda mais
fortemente essa impressão.
O close tem uma dupla função no cinema sonoro. Ele descola o detalhe de uma
situação que o cerca em geral e mostra o detalhe em tamanho ampliado. Na prática, isso
é obtido com o deslocamento da câmera para perto do detalhe. Essa mudança na
disposição espacial da câmera não é conscientemente percebida na maioria dos casos
pelo espectador, e nem mesmo deve ser percebida. Isso porque, como já vimos, em
decorrência da bidimensionalidade e da irrealidade do quadro do filme mudo, a
sequência de imagens diferentes dá a mesma sensação da resultante da sucessão das
páginas de um álbum com fotografias de lugares distintos, ou seja, o fato de o fotógrafo
estar em lugares distintos para tirar as fotos não é sentido como saltos abruptos de
deslocamento físico que pudessem ser medidos. No filme sonoro, esta mudança é muito
mais marcante. Vemos um grupo de pessoas conversando a quatro metros de distância e,
de repente, passamos a vê-las num close. As pessoas passam a figurar maiores na tela,
mas ouvimos, ao mesmo tempo, suas vozes num volume muito mais alto e, por isso, é
mais destacada a impressão de quanto os equipamentos e os próprios espectadores
foram lançados para perto do grupo (a montagem dá, neste caso, a ilusão de que houve
realmente uma movimentação do equipamento no espaço). Trata-se de um efeito inútil
do ponto de vista informativo e que gera estranhamento. Ele transforma o equipamento
que funcionava como um órgão dos sentidos invisível em um outro que é ativo no
espaço da imagem. Havia, antes do som, raras cenas em que a câmera agia também
assim, mas eram casos em que ela câmera representava o campo visual subjetivo de
uma das personagens da ação, como, por exemplo, numa situação em que uma pessoa
vai por um corredor, e outra acelera atrás dela – daí vem o corte – e vemos a partir de
então, a câmera mostrar aquilo que o perseguido vê enquanto avança como se fosse os
olhos da pessoa vendo tudo mais perto e maior. Neste exemplo, a câmera já está
personificada e a mudança de enquadramento representa um movimento real no espaço,
mas isso só é possível numa montagem de uma imagem que seja um detalhe da imagem
anterior, e, mesmo assim, essa imagem nunca vai poder prescindir do recorte que o
plano mais fechado oferece. Para que esse tipo de movimento seja percebido, não é
preciso que a sensação de mudança de lugar venha do que é visto, pois ele é somente
um tipo de efeito de mudança de lugar no qual a alteração do recorte da imagem e do
tamanho das coisas na tela é utilizada como artifício.
No caso do cinema sonoro, é possível obter a movimentação de um close não só
para o plano geral, como também para cada quadro de um grupo de imagens com sons,
o qual mostre diversos enquadramentos de um mesmo espaço dramático em que a
informação sonora altera-se por meio da movimentação dos microfones, embora tudo o
mais permaneça exatamente como está. Em “A noite nos pertence”, há uma cena em que
duas pessoas estão em dois quartos, um ao lado do outro, e conversam através de uma
porta aberta que une os ambientes. O enquadramento da câmera salta diversas vezes de
um quarto para o outro. O sentido desta mudança nas imagens é mostrar alternadamente
cada um dos falantes na imagem, e não buscar destacar os saltos de um lugar para o
outro ou a movimentação da câmera de um lado para o outro - o que não faria mesmo
nenhum sentido. Mas assim mesmo, essa impressão aparece com certa ênfase no
enquadramento I porque a voz do interlocutor próximo está alta e a do mais distante,
mais baixa. Já no enquadramento II, ocorre o efeito exatamente contrário. Considerando
que estes saltos entre os dois enquadramentos não têm o menor significado já que, de
qualquer modo, ambos os interlocutores estão sendo mostrados, essa oscilação dos
volumes das falas também se mostra totalmente desnecessária e sem qualquer razão de
ser, além de criar uma sensação muito incômoda.
Não é só neste caso em especial que a montagem de sons distantes no interior de
um mesmo ambiente sonoro não pode ser utilizada, na verdade, ela não pode ser
utilizada em qualquer situação. A sequência de imagens montadas não cria uma ruptura
no contínuo do espaço real por causa da bidimensionalidade da imagem e de sua
irrealidade patentes que fazem valer a imagem somente como uma simples sucessão de
imagens. Essas imagens são apenas reflexos sombrios do mundo, porém o que toca nos
alto-falantes não é simples sombra do som, é, sim, o próprio som que é reproduzido. Por
isso, a montagem de sons sempre produz uma ruptura no contínuo acústico: o fluxo
natural de som é destruído e trechos sonoros que não estariam naturalmente ligados são
colados uns ao lado dos outros, muito estranhamente. A montagem de som no cinema,
portanto, só é possível quando ligada a uma mudança de ambiente da própria imagem
que a justifique, porque esta edição acústica representa sempre uma ruptura, por assim
dizer, da coisa em si (e mesmo assim, somente funciona quando se submete a rígidas
regras), não podendo ocorrer no interior de uma cena em que a imagem permaneça
igual, já que a alternância da intensidade sonora entre o que está no fundo e o mais
próximo destruiria a sensação de homogeneidade nesta situação. Do mesmo modo como
é vedado montar sons que indiquem mudança de localização no interior de uma mesma
situação visual, também não deve haver saltos no tempo. O fluxo do tempo no interior
de uma cena deve ser permanente, sem quebra, apenas contínuo. Isso não é de se
admirar já que valia também para a montagem de imagens mesmo no cinema mudo.
Uma mudança de posicionamento no interior de um mesmo espaço de atuação é
possível somente quando a montagem sonora passa despercebida. Por isso é preciso
então optar por saltos de curta distância, em que uma montagem sonora não precisará
necessariamente ser feita, ou deve-se optar por um salto claro da imagem no momento
adequado para que o som prossiga totalmente homogêneo e sem sobressaltos.
Se essas regras de segurança forem seguidas, não haverá nenhum inconveniente
em se utilizar a montagem sonora no cinema. Ela serve, tanto como a imagem do
cinema mudo, como um meio de expressão extremamente rico.
Em geral, a mudança na intensidade dos sons dentro de ambientes com fontes
sonoras mais distanciadas é menos desconfortável do que quando elas estão mais
próximas. Se, no interior de uma sala, os microfones são mudados de lugar e todas as
vozes passam a soar mais altas ou mais baixas, a sensação de estranhamento é muito
violenta. Mas cenas de outro tipo são possíveis: no filme de Trenker, “Montanha em
chamas”, ouvem-se os soldados tiroleses cantarem alto de seus alojamentos. Então corta
a imagem para os italianos que estão do lado de fora, e o canto dos tiroleses passa a ser
ouvido bem mais baixo, mais de longe. Aqui também ocorre um salto sonoro dentro de
um mesmo ambiente, mas ambos os pontos de vista da câmera estão relativamente
distanciados e assim é possível aceitar a alteração no volume do som.
No entanto, o que se passa em relação às expressões do ator? Até aqui falamos
de situações sonoras em que o som se liga à imagem sem interferir um no outro. Já a
expressividade do rosto na mímica do cinema mudo e as falas não podem conviver. É
possível que a expressividade facial manifeste-se no rosto de uma personagem enquanto
uma outra fala, entretanto isso não é possível caso seja a primeira quem fala. No filme
mudo, a expressividade de quem agia como se falasse foi aprimorada
extraordinariamente com resultados excelentes porque estava isolada, sem ser
atrapalhada na construção de sentido promovida por ela devido à competição da
palavra. Justamente deste isolamento artificial da técnica, impunha-se muito claramente
que era a mímica que deveria explicar o que a personagem tinha a “dizer”. Era
justamente da ausência de vida dessa fala muda que nascia sua força particularmente
eficaz. Embora muito eficaz, uma forma muito antinatural de expressividade do rosto
nasceu justamente da mímica sem som. Charlie Chaplin argumentou neste sentido,
colocando-se contra o cinema falado:
“O cinema sonoro enterra a tradição da pantomima que com muito sacrifício
conseguimos integrar ao cinema e deve ser julgado por isso. Ele destrói tudo o que
havíamos aprendido até agora no campo das técnicas cinematográficas. Ações e
movimentos têm de se submeter à fala, que deve ser organizada cuidadosamente como
uma reprodução dos sons naturais, de modo que o espectador construa sua percepção a
partir deles e possa projetar ali suas fantasias.”
“Devagar, passo a passo, nossa técnica de representação foi se transformando
numa forma de arte. Os atores de cinema aprenderam que a câmera não registra
palavras, mas sim ideias. Pensamentos e sentimentos. Eles aprenderam o alfabeto do
movimento, a poesia do gesto. O gesto começa exatamente onde a palavra cala.”
Podemos ver como a expressão facial torna-se monótona, incompreensível e
imprecisa se ela se resumir ao movimento natural do rosto de alguém que fala. Essa
forma menor de expressão não seria obrigatória no caso de um filme sonoro?
Naturalmente é preciso dizer, em primeiro lugar, que esse tipo de expressão da
fala, que no filme mudo não faz sentido e se torna monótono, ganha todo o sentido e
finalidade quando ouvimos o conteúdo do que é falado. Não é correto dizer que o gesto
principia onde a palavra cala, porque sabemos, desde a experiência do teatro, como a
gesticulação de alguém que fala pode ser expressiva. Mas é bem certo que para
acompanhar um texto muito longo, é difícil construir uma expressividade mímica - rica
e variada de sentimentos - no grau em que seria importante o cinema sonoro ter, de
modo que a imagem e o som mantenham um equilíbrio expressivo e que não sejam um
mero acompanhamento desnecessário um do outro. Poucas frases no cinema tornam-se
longas, como já pudemos ver mesmo na atuação de excelentes atores, já que a pessoa
que fala pode ocupar a imagem o tempo todo enquanto o faz, com o que a monotonia
torna-se inevitável. Se, no cinema sonoro, houver necessidade de uma fala mais
prolongada ou de uma sequência de falas, a montagem vai ter de ser muito cuidadosa
para que o diretor não seja obrigado a cortá-la mais e mais até o ponto de ficar tão curta
que descaracterize a própria intenção original, impelido pela exigência dos olhos do
espectador. É necessário que o uso desses recursos se dê dentro de limites estreitos,
pois, como já acentuamos anteriormente, enquadramentos e montagem nunca podem ser
gratuitos, pelo contrário, devem sempre manter uma estreita relação com o que está
sendo falado. Disso concluímos que o uso de diálogos no cinema sonoro é cercado por
limitações. Ser lacônico não é o suficiente, como alguns maus filmes comprovam.
Percebe-se isso nos “dramas telegráficos”, que são hoje realizados. Apesar de as pessoas
falarem pouco neles, mesmo esse pouco pode se tornar insustentável. As imagens que os
constituem são muitas vezes vazias e monótonas, como se estivessem tão limitadas
quanto quando são acompanhadas por longos diálogos.
É certo que o tipo de mímica característico do cinema mudo perde-se no cinema
sonoro, apesar de algumas raras exceções, como quando “vemos” uma conversa que se
dá do outro lado de uma janela de vidro (como a janela do castelo em “O tenente
sorridente”). Sabemos que há expressividade no rosto dos atores do cinema sonoro, mas
sua forma mais característica do cinema mudo, ou seja, a mímica do ato de falar em si,
já não é mais possível. E isso é particularmente ruim quando se pensa que, junto com
ela, perde-se toda uma arte da pantomima que atores como Chaplin elevaram até o nível
da genialidade. Chaplin não preenchia o espaço da palavra só com expressões faciais, ao
contrário, ele atuava de modo muito econômico com o rosto (o que já não acontece com
Buster Keaton), e conseguia, apesar disso, criar centenas de motivos expressivos em que
entra em jogo todo o seu corpo, mostrando, por meio de pequenos episódios
interpretativos exclusivamente visuais, o que deveria ter sido falado. Esta construção
formal é impossível de se realizar quando, juntamente com a expressão corporal, se
colocam a palavra e os sons ambientes. Percebe-se assim como a ausência de
sonoridade deveria ser prezada como instrumento artístico. E se torna plenamente
justificável a resistência de Chaplin contra o cinema sonoro. Ele é o único ator cujo
estilo foi totalmente derivado do fato de o cinema não ter som em seu tempo, de modo
que sua arte não poderia sobreviver de maneira nenhuma ao cinema sonoro. É nesta
limitação que surge o espaço para uma arte elevada. Para Chaplin migrar para o cinema
sonoro, ele teria de encontrar um outro estilo totalmente diferente e novo, ou seu
trabalho desembocaria num péssimo resultado. Portanto, continuar com um trabalho que
até então era visto como insuperável tornou-se, do dia para a noite, uma dificuldade
terrível, como se o mundo todo conspirasse, lançando contra ele obstáculos
intransponíveis. Buster Keaton e outros mais se submeteram prontamente. Seu primeiro
filme falado, enrolado e pobre foi considerado uma grande decepção até mesmo para
seus maiores admiradores.
Mas não era somente a expressividade mímica que saia fortalecida pela
supressão da sonoridade em todo caso. Muitas vezes, essa ausência da ordem que o som
propicia abria margem para uma estilização da imagem e, em especial, quando uma
característica do próprio som era explorada paralelamente pelo ritmo do movimento
mostrado na imagem. Voltamos a pensar na cena de “Os novos senhores” em que a
força do ritmo de uma melodia leva uma multidão que se encontrava nervosa e agitada
a, gradativamente, se acalmar num balanço ordenado para lá e para cá, mostrando
inúmeros corpos sem que fosse necessário ouvir de que música se tratava. É equivocada
a colocação dos entusiastas do cinema sonoro de que:
“Enquanto até agora só era possível se alegrar com o som no cinema mudo,
quando a projeção era acompanhada por alguma trilha sonora que combinasse com seu
conteúdo, a partir de agora, toda imagem poderá ser enriquecida muito mais com o som.
Tal enriquecimento decorre de ambas expressões, imagem e som, contribuírem juntas
para a construção de uma impressão geral e duradoura no pensamento do espectador.
Por exemplo, pensemos no efeito impressionante se ao “Encouraçado Potemkin” fosse
acrescentado um som realista das cenas – ligados às imagens – de modo que não se
quisesse prescindir nem de um nem do outro. Assim é possível compreender o impacto
e o poder incomparáveis do cinema sonoro”
Ou seja, o argumento de que dobrado significa melhor! Este é o refrão preferido
dos defensores do cinema falado. E evidentemente está equivocado. Ninguém – e assim
também nem mesmo o homem mais ingênuo – sente falta do ruído em um filme mudo,
já que nele nunca havia nenhum, e mesmo assim todo mundo o assistia. O motivo é o
mesmo por que, na leitura de um romance, não fazem falta ilustrações e sons, uma vez
que, por intermédio exclusivo da palavra escrita, todo um mundo ficcional é
integralmente construído. Também isso é verdade no bom filme mudo, em que um
mundo completo é representado pela imagem. O acompanhamento do som não fortalece
a imagem se ela por si só já era autosuficiente. Ele também não atrapalha, pois ambos,
imagem e som, juntos são capazes de representar uma situação assim como se dá na
realidade. Mas ele é dispensável e, sobretudo, empobrece a situação muito
frequentemente. O ritmo mecânico dos passos regulares da bota dos cossacos que
descem as escadas de Odessa em marcha são tão fascinantes porque são puramente
visuais e, por meio da visão, conseguem imprimir um estilo na imagem com tamanha
intensidade. O som que corresponderia aos passos não acrescentaria nenhum sentido
adicional à cena que já não este visualmente presente ali. Isso nos conduz a um
princípio que é preciso esclarecer mais detalhadamente.

Similaridade e contraste

No mundo real, uma situação sonora corresponde a uma situação visual em que
a sonoridade se produz. Há evidentemente exceções, pois, quando vemos um gramofone
movimentando com oscilações o braço do instrumento levando a agulha para cima e
para baixo, ou mesmo as vibrações da membrana do alto-falante, não há nenhuma
semelhança entre esta imagem e a imagem dos instrumentos que produziram aquela
interpretação musical que ouvimos. Esta associação forma uma espécie de contraste
entre o som e a monotonia da rotação do disco. Já o movimento de um pêndulo de
relógio equivale exatamente ao tic-tac sonoro que emite em seu ritmo regrado de
oscilações. Por isso, uma dessas informações é desnecessária. É suficiente, para
perceber a situação, ver apenas o relógio ou somente ouvir seu ruído. Destes exemplos
pode-se extrair um princípio do cinema sonoro, segundo o qual a informação visual e a
sonora não deveriam cumprir a mesma função, mas deveriam dividir o trabalho: o som
deve trazer algo distinto do que a imagem mostra para juntos construírem uma única
sensação. Este é o princípio da contrapontística no cinema sonoro. Ele é o avesso da
similaridade, que ocorre quando, por exemplo, vemos e ouvimos o relógio ao mesmo
tempo.
Com a enunciação desse princípio não se pretende dizer que toda similaridade
deve ser banida rigorosamente do cinema. Isso seria um exagero e também uma posição
segregacionista se adotada a todo instante. E também não se deve entender
equivocadamente deste princípio que sempre os casos de similaridade se resumem
àqueles em que é possível ver a fonte sonora junto com o som. A exposição desta fonte
sonora pode entrar em contraste com o próprio som, como pudemos ver no próprio caso
do gramofone. Este princípio, portanto, não deve ser tomado muito ao pé da letra, mas
sim deve ser analisado em sua aplicação a situações específicas: o som é dispensável e
substituível quando ele não acrescenta nada ao que já estaria sendo notado na imagem.
O mesmo também vale evidentemente para a imagem em relação ao som.
É muito instrutivo analisar casos em que o som e a imagem de uma situação real
não são similares, mas justamente lançam-se um contra o outro e se perturbam. Hans
Erdmann, sobre uma cena de um informativo semanal jornalístico sobre a “Entrada das
bandas do esquadrão oceânico em Colônia”, escreveu:
“Uma banda militar em marcha vai crescendo na tela até seus participantes
ocuparem a imagem toda, enquanto a sonoridade cresce muito mais lentamente. Pouco
depois, o volume chega ao ponto mais elevado, quando, de repente, o grupamento passa
e sua imagem simplesmente desaparece, com o que já se vê uma segunda banda ao
longe que se aproxima, mas da qual ainda não se pode ouvir som nenhum”. A imagem
se torna, a partir de então, incompreensível porque o primeiro grupo já saiu do campo
visual apesar de não ter se distanciado do aparelho que continua a captar o som
ensurdecedor. A disposição espacial da cena é muito clara: uma banda em marcha que
vai crescendo visualmente na tela até que sai totalmente da imagem, desaparece,
revelando uma segunda banda ao longe por trás. Esta sequência de imagens não é
fundamentada em nenhum objetivo: o posicionamento da câmera e seu enquadramento
são muito naturais, mas mesmo assim pode acontecer de que o microfone, que não faz
nada além de registrar a sonoridade exatamente do modo como a situação a oferece,
possa destruir a construção subjetiva da cena e também eliminar totalmente seu sentido.
Como o crescendo do som ultrapassa o crescendo da imagem, criando um desencontro,
aquele destrói a limitação natural da cena que a moldura do campo visual estabelecia
como ponto alto da situação e também como ponto final da passagem da banda. Faz isso
completamente por acaso, e passa a ser, com isso, um imenso obstáculo em si mesmo
para a exposição visual da situação, até mesmo para que se entenda a duração real da
passagem. É do encobrimento do que se vê que o registro visual recorta, constituindo
um mecanismo pelo qual supera a mera função de registro e réplica da imagem do
mundo. A câmera ganha esse poder por determinar o enquadramento a partir do qual se
podem construir situações inusitadas. Mais do que abalar este recurso, o próprio
entendimento da banda que está próxima é perturbado pelo fato de que passamos a
enxergar agora uma segunda banda que se encontra longe, imagem que é
permanentemente perturbada pelo barulho muito alto. Percebe-se assim como podem
surgir armadilhas perigosas para a representação cinematográfica. Imagem e som
oferecem juntos grande chance de se perturbarem em vez de colaborarem para construir
uma única impressão conjunta.”
Apesar do que acabamos de falar, a tese de que a similaridade da informação do
som e da imagem é uma vantagem continua sendo o argumento teórico preferido dos
defensores do cinema sonoro, a saber, a ideia de que a simples inclusão do som fortalece
a imagem. Isso se dá ou porque não se conseguiu encontrar uma justificativa melhor, ou
porque assim é possível ver com bons olhos mesmo os filmes muito ruins, justificando-
os com o simples argumento de que a inclusão do som já é em si uma vantagem. Assim,
pode-se fugir das cobranças da construção de uma contrapontística entre som e imagem,
o que é uma arte muito mais difícil e muito mais sofisticada. Independente disso, é
possível encontrar alguns bons momentos de trabalhos de contraponto entre sonoro e
visual até mesmo em filmes de menos valor.
Logo que se tenta desenvolver o contraponto, ergue-se uma grande dificuldade.
É muito fácil separar o som do relógio de sua imagem, bastando para tanto desviar a
câmera, de modo que ela não registre visualmente a imagem do relógio. Já o contrário é
muito difícil. Como mostrar o relógio e suprimir o seu som? Este dilema nasce
naturalmente das características de propagação físicas: enquanto as ondas de luz
avançam em linha reta, de forma que é possível controlar o que a câmera filma num
ambiente qualquer direcionando sua lente sem ter de deixar o local, as ondas sonoras se
dissipam por todo o espaço em geral. Só há dois meios de suprimir o som: ou deixando
o local onde ele soa, ou encobrindo o som com um outro mais alto. A terceira
possibilidade - simplesmente cortar o som do filme - resulta na impressão de falha
técnica ou falta de habilidade.
Era muito comum proceder assim nos primeiros filmes sonoros, pois somente
eram apresentados os sons tidos como importantes. As personagens andavam numa sala,
mas não se ouviam seus passos nem a porta bater ao se fechar, então, de repente, ouvia-
se um tiro de revólver. René Clair recomendava esse tipo de prática com uma
justificativa sofisticada:
“O que fez o cinema sonoro ser insuportável em seus primórdios foi a ausência
da seletividade. Porque se é possível escolher as cores, as notas musicais, as palavras e/
ou as imagens, não é possível escolher os sons. Não há qualquer beleza em ouvir o bater
das portas, nem a respiração das personagens. Nem beleza ao ouvir todas as palavras
quando as bocas se movimentam. Faltava seletividade.”
Krakauer diz em uma crítica que:
“Em uma cena com uma trilha sonora musical ao fundo, via-se o herói bater
numa porta. Mas não só se vê a situação, como também ouve-se a batida. Uma
brincadeirinha que representa uma grande falha estética: porque, se fosse para ouvir
algo, todos os outros sons que compõem a cena também deveriam ser ouvidos. O toque
na porta seria, entretanto, justificado se ele agregasse algum sentido à cena. De outro
modo, ele é perda de tempo. O mesmo vale para as palavras que se espalham
isoladamente”.
Esse tipo de seletividade, em todo o caso, é totalmente impossível, traga o som
algum significado ou não. Ele representaria uma violência imensa contra o modo como
percebemos a realidade. É muito diferente do que o filme faz a partir das imagens,
porque este cria formas sem destruir o mundo real. O filme interfere por meio da
escolha dos enquadramentos especiais, ou recortes da imagem, ou seja, somente
recorrendo a artifícios passíveis de construções a partir de certas escolhas os quais
estabelecem relações entre o espectado4 e o mundo, mas nunca violentando a realidade
em si. O tipo de seletividade em torno do qual os autores falaram não é da mesma
família nem do corte da imagem, nem da limitação intencional dos objetos filmados no
tmepo, no espaço ou na escolha de um determinado pedaço do set de gravação como um
todo. Esta seletividade aproxima-se muito mais de algo como recortar em pedaços os
fotogramas e colar de forma diferente cada uma de suas partes. Um tipo de montagem
que nem se chamaria montagem, visto que destrói o sentido de realidade da situação
filmada. Este tipo de colagem não é a representação de um pedaço de uma realidade
intacta, mas sim a destruição da própria realidade como objeto figurativo de
representação.
No caso de se usar esporadicamente sons num filme, os trechos não sonorizados
darão a impressão de que o mundo sonoro foi suprimido, e não de que ele simplesmente
não está ali (a impressão que prevalece no cinema mudo), o que bate de frente contra a
sensação de realidade.
Já que não é possível montar os sons assim, é impossível evitar a presença de
ruídos desnecessários no filme. Mas é fundamental tentar retirar ao máximo do filme
todas as redundâncias entre som e imagem, para deixar assim presentes, na maior
medida possível, somente sons que agreguem sentido informativo ao filme, do mesmo
modo como fazem as imagens. Elas devem ser agrupadas e filmadas de modo a não
serem descartáveis ou desnecessárias. Só quando tudo o que é mostrado for relevante,
poderemos falar de um bom filme. Se o que é relevante se dilui entre o que é
descartável, o espectador não saberá mais quando deve tentar extrair sentido de algo e
quando não precisa.
Esse trabalho já é suficientemente difícil de se realizar, mesmo quando se
consideram isoladamente as imagens. O cinema não é como o palco, onde as coisas
podem ser dispostas sem que o vazio existente entre elas pareça ser antinatural,
constrastando com o caráter de exposição da realidade que faz parte do filme. Somente
diretores de cinema geniais conseguiram produzir obras em que tudo o que é mostrado
visualmente no filme é importante. Com a inserção do som, a situação é muito mais
complicada. Um dos motivos é porque determinados enquadramentos deverão ser
evitados para não serem redundantes em relação a coisas que já se podem perceber em
razão do som que emitem, ou seja, haverá coisas e situações que não devem ser
mostradas na imagem porque já pudemos percebê-las pelo som, e sua exposição visual
seria totalmente dispensável. E isso implica em mais restrições para a imagem. Trata-se
de um grande paradoxo. O principal trabalho dos produtores de cinema sonoro será
ocultar da imagem as coisas que soam. O som só pode se tornar um meio artístico
eficiente se ele for conduzido conscientemente e não soar descontrolado numa
exagerada abundância caóptica. Para evitar esta exuberância dos sons, sem ter de
agredir a própria realidade, as cenas do filme sonoro já devem estar muito bem
estudadas no roteiro, de modo que sejam registrados os sons que serão utilizados. Esta
será uma arte refinada que se torna muito importante para os produtores
cinematográficos.
Mas essa situação não deve ser vista como uma lástima, ao contrário, deve ser
motivo de comemoração. Já vimos que é justamente a partir das limitações que se
colocam para a técnica que esta deixa de ser mera reprodução mecânica da realidade,
sendo capaz de formalizar o que se pretende transmitir, a fonte de onde se originam os
valores artísticos cinematográficos. No cinema mudo, a lacuna de ausência do som era
preenchida por registros visuais que ofereciam soluções particularmente criativas. Essa
possibilidade perde-se com o cinema sonoro. Mas, em seu lugar, surge uma outra
lacuna: já não se trata de não poder contar com o som, mas sim de impedir que ele seja
desnecessário.
Foram principalmente os russos que se posicionaram fortemente contrários ao
princípio de similaridade do cinema sonoro, e suas reflexões sobre os temas
cinematográficos mostram-se, mais uma vez, muito esclarecedoras.
“Na maioria das produções cinematográficas, o som serve somente como
acompanhamento da imagem. Se continuar assim, o cinema sonoro nunca será uma
expressão autônoma. Sua raiz ficará devendo ou ao teatro, ou ao próprio cinema mudo,
complementado por música, voz e sons.”
Isso foi dito por Andriewsky, o produtor de Meschrapom. E, de modo parecido,
expressou-se Pudovkin, o diretor de “A Mãe” e de “O Fim de São Petersburgo”:
“O sucesso do filme sonoro é certo, mas eu digo que os métodos pelos quais ele
tem sido produzido são ruins e não estão à altura de suas potencialidades. Vejam o
exemplo dos filmes americanos, que são tecnicamente bem feitos e contam com boas
tramas, mas que são conduzidos basicamente pela atuação dramática. A fala foi até
agora aproveitada porque se trata, afinal, de filme sonoro, mas ela parece – na minha
visão – ser utilizada como um simples ornamento, um enfeite tímido que muito bem
poderia ser descartado”.
“Não é de forma alguma necessário expor por meio de palavras uma situação
que é já muito evidente, por exemplo, quando um homem beija uma mulher, e nem é
com uma frase como “eu te amo” que ela se esclarece ou ganha mais vida. Só posso
mesmo pensar em um verdadeiro sentido e em possibilidades de utilização do som
muito distintas desta para um cinema sonoro de qualidade”.
Nessas opiniões, fica patente que nem toda imagem de uma personagem falando
precisa ser uma redundância indesejada da informação. Muito frequentemente a
expressão facial possibilita um enriquecimento deste sentido que a fala e a interpretação
da voz apresentam. E, desta maneira, nem sempre o conteúdo da palavra se transforma
numa simples redundância do sentido que já se poderia ver na imagem, sem necessidade
dela. Mesmo assim, é muito grande o perigo de que som e imagem formem uma simples
redundância. A partir da arte que o ator apresenta na imagem do cinema sonoro, é
possível reconhecer muito claramente o trabalho de um grande diretor.
A contrapontística deve ser desenvolvida no cinema sonoro, mas isso não
significa que o tema da imagem e o tema do som devam sempre criar um contraste.
Muitas vezes, eles podem fazê-lo e alcançar sucesso. Podemos enumerar uma série de
exemplos desse tipo. Durante a missa na prisão, em “Homens atrás das grades”, de
Paulo Fejos, vemos os prisioneiros receberem armas por trás dos bancos de oração com
o que preparam uma rebelião, enquanto ouvimos o religioso dizer do púlpito: “Não
matarás”. Podemos, além disso, ver um Buda impassível, sorrindo, acenando monótono
a cabeça enquanto ouvem-se os gritos: “Socorro, socorro” (em “A casa amarela do
Kung Fu”, de Karl Gruene). Ou também: ouve-se uma voz discursando à mesa
extremamente acalorada enquanto se veem os rostos estúpidos dos ouvintes mastigando
(Granovsky, “A canção da vida”). Há mesmo a cena do julgamento de um assassinato
em “Inquérito”, de Siokmak: o acusado diz “Eu sou inocente, não fui eu”, e o close
mostra o rosto impassível do promotor voltado para a mesa com as provas do crime. E
finalmente: vemos uma imagem, totalmente morta e sem movimento, dos porões de
uma penitenciária e ouvimos como os presos fora de nossa visão se entendem aos gritos
mesmo através das celas (“Homens atrás das grades”). Neste último exemplo, a
monotonia da exposição visual contrasta com a agitação sonora. Naturalmente há
também o contrário: um som contínuo das conversas sem forma dos presos deitados,
enquanto a câmera percorre os corredores mostrando sempre outros presos, os diversos
tipos diferentes que estão ali. Em todos estes casos, há um forte contraste entre visual e
sonoro, embora ambos sem dúvida retratem a mesma situação e não tenham de recorrer
a que sejam mostradas situações distintas artificialmente combinadas24.
Muito frequentemente, entretanto, som e imagem representam uma mesma
sintonia e, nestes casos, torna-se especialmente claro o que se entende por
contrapontística. É possível combinar um raiar do sol com o cantar dos passarinhos,
uma criança em pé na janela com roncos, o barulho do relógio com os ruídos da rua.
Estes são exemplos simples do que o cineasta pode explorar para obter efeitos muito
ricos a partir da imagem e dos sons, cujos efeitos distintos convergem na criação
unificada de um só efeito. Estas relações não devem ser corriqueiras nem podem ser
derivadas de simbologias já desgastadas pelo uso, como o canto do rouxinol na cena de
amor no parque (basta lembrar as cenas de paródia conscientes e inconscientes na
“Marcha nupcial”, de Stroheim) ou o cantar do galo ao amanhecer. Ao contrário, o
talento dos grandes cineastas revela-se em criar novas composições instigantes sem as
quais as combinações valem só como artifício e logro. Em “Canção da vida” de
Granovsky, um jovem fala ao telefone com um médico porque sua mulher sofre no
parto. Ouvimos o jovem perguntar assustado e o doutor responder calmo e frio,
enquanto vemos, como contrapartida visual do diálogo, as mãos ora de um, ora do
outro: o jovem aperta com força e dedos trêmulos um cigarro, já a mão gorda do médico
amassa lentamente a ponta de outro cigarro no cinzeiro. Em “O vampiro de
Dusseldorf”, de Fritz Lang, ouve-se a mãe chamar pelo nome da filha que não voltou
para casa. Não se vê a mãe, e sim as escadarias do prédio totalmente vazias em
perspectiva. O motivo da imagem e do som deriva da situação, como se perceberá a
seguir, e, por isso, é surpreendente. Essas relações entre imagem e som podem ser de
um tipo muito irracional, como em “Sob os tetos de Paris”, de René Clair, em que uma

24
Também há a possibilidade de contraste sonoro: ouvimos as manifestações de uma passeata política na
rua de um quarto, onde o aparelho de som toca uma ópera. E também o contraste no visual: um casal
elegante sai de uma casa de dança e encontra na esquina um ex-combatente de guerra aleijado que tenta
vender flores.
estocada com uma faca é acompanhada pelos rangidos e pelo apito de um trem. Neste
exemplo, as coisas não figuram em suas funções naturais, mas estão ali unicamente
como uma pura afinidade na construção de sentido contido na combinação entre som e
imagem, que é, muitas vezes, especialmente bem-sucedida. Assim como o
acompanhamento musical de um filme do Mickey Mouse é uma analogia construída a
partir do desenvolvimento da trama visual, é possível, como o exemplo acima
demonstra, também se desenvolver o som a partir da situação dramática em si mesma.
À semelhança do cinema mudo, é possível surgir um motivo surpresa a partir de
uma situação geral que parecia ser totalmente conhecida, mas que na verdade sofre, em
certo ponto, uma transformação (como Buster Keaton que esperava no escritório pela
garota por quem se apaixonou colocado fora do enquadramento da câmera). Só que isso
também pode ocorrer com uso do som: ele passa a ser o elemento que transforma uma
dada situação visual ou que a esclarece. Uma pessoa senta-se numa poltrona e mergulha
com os olhos baixos na leitura de um jornal que passa a cobrir a tela, mas, logo a seguir,
ouve-se seu ronco. Ou o contrário: ouvem-se sons vindos de alguém encoberto pela
escuridão, a personagem saca sua arma, anda devagar, acende a luz e, então, vê que se
tratava de um simples gato que produziu o som.
O que serve como valor contrapontístico no interior de uma imagem vale
igualmente para a montagem em sequência de imagens. São os mesmos princípios que
já havíamos esclarecido na análise do filme mudo. Por exemplo, a montagem com
similaridade, que vimos lá, em que se sucedem objetos parecidos na forma e
contrastantes no conteúdo, no caso do cinema sonoro, tanto pode ser uma montagem
visual como uma sonora, além de que se pode variar entre a imagem com contraste
sonoro ou o som com contraste visual. Similaridade sonora: numa cena de “Protegido
dos Deuses”: a música da orquestra da casa de ópera é levemente misturada com o som
distante da plataforma de trem. Este efeito é parecido com o que vimos a pouco da peça
sonora de Ruttmann, só que aqui o contraste do conteúdo que a semelhança formal
contrapontística elucida ainda é acentuado pela imagem que mostra, num primeiro
momento, a ópera e em seguida a plataforma. Há também o contrário, semelhança da
imagem: o mesmo trompete que figurava inicialmente, em meio a um conjunto
orquestral, aparece logo a seguir tocando numa banda de jazz. Ou a montagem de duas
tomadas do mesmo político em fases distintas de sua biografia: 1914, no espírito dos
tempos de guerra; em 1919, um internacionalista. Nestes exemplos, o contraste sonoro
se contrapõe à similaridade visual.

Assincronismo

Há uma outra possibilidade muito diferente de se estabelecer uma


contrapontística entre som e imagem, um recurso que pode ser extraído do próprio
modo de funcionamento do equipamento de filmagem. Sabe-se que a câmera e o
gravador de som são dois equipamentos totalmente independentes: a imagem é fixada
sobre a película em negativo do mesmo modo como era no cinema mudo; e o som é
independente dela, já que é captado pelo microfone, gravado em forma de ondas que
depois eram impressas como sinas de intensidade luminosa ou como variações de uma
curva sonora modulada a qual era fotografada na beirada da película (processo de
gravação visual do som dos primeiros tempos do cinema), respectivamente a partir do
disco do gramofone (com uso de agulha) ou de uma fita magnética (que na época ainda
era pouco utilizada). Os sistemas de produção de imagem e de som têm uma relação de
independência entre si, mesmo quando são postos juntos: eles dependem de
sincronização, depois da qual sua projeção no tempo dá a impressão de que imagem e
som são produzidos juntos. Por vezes, passava-se algo errado na cabine de projeção, o
que tirava o filme de sincronia, e o público assistia incomodado ao desencontro da voz
com a imagem, percebendo claramente como era artificial e falsa a relação entre os dois
sistemas de registro. “Sincronizar” foi um termo que se tornou para os produtores
cinematográficos, nos primeiros anos do cinema sonoro, quase que uma palavra mágica
que passaria a encarnar e esclarecer todos os mistérios da nova técnica. Ela se tornou tão
importante que o diretor Eichberg, quando lhe perguntaram se estava contente com o
seu primeiro filme sonoro, simplesmente respondeu com a maior desenvoltura: “Ele não
é um bom filme, mas está sincronizado”.
A sincronização serve para apresentar o som e a imagem como se eles
efetivamente estivessem juntos na realidade. Mas tecnicamente falando, não há
nenhuma diferença se eles estavam sendo gravados juntamente na realidade ao mesmo
tempo ou até no mesmo lugar. Só importa mesmo saber como essa característica de os
equipamentos independentes poderem ou não ser sincronizados será utilizada.
Assim a chamada sincronização posterior serve para transformar um filme
originalmente mudo em filmes sonorizados posteriormente, para gravar uma dublagem
em língua estrangeira dos diálogos do filme falado, ou ainda para reduzir custos de
produção, já que o filme pode ser todo rodado sem som e posteriormente ser sonorizado
com economia. Não é necessário frisar o quanto este recurso pode ser um tormento para
o realizador. É evidente que um bom filme mudo não pode ser posteriormente
transformado em um bom filme sonoro com a simples adição de uma composição
sonora, e é difícil acreditar em que algum dia seja possível fazer uma sincronização que
seja adequada para o “Encouraçado Potemkin”. Do mesmo modo, é improvável que
fique bem resolvida uma dublagem para alemão de um filme em que os atores falaram
originalmente em inglês, sem que o movimento dos lábios seja totalmente
desencontrado. Os atores teriam de se tornar mestres em mover os lábios de forma
indeterminada para que não ficasse claro para o público que uma voz estranha estava
sendo adicionada ao filme, e assim recairia sobre o ator um fardo de ter de construir
sobre a tela o efeito de encobrir o seu próprio corpo – seria difícil imaginar uma
exigência mais danosa que esta recaindo sobre os atores. Deste modo, os mais
primitivos princípios que atribuíam valor artístico ao filme desmoronam, sem dúvida.
Na melhor das hipóteses de obter um resultado razoável, haveria uma alteração drástica
dos fundamentos da forma original do trabalho e este senão é, e nele também há, uma
perturbação de tamanho suficiente. Para o terceiro tipo de uso acima exposto da
sincronização, a dublagem do ator por ele mesmo, até mesmo isso deve ser descartado.
Pois, mesmo quando é o próprio ator que atuou na cena quem interpreta a sua própria
voz, acompanhando os movimentos do quadro, é quase impossível obter-se uma
unidade sem imperfeições entre palavra e interpretação como a que seria alcançada nas
gravações diretas do todo.
É principalmente como recurso técnico que a independência dos equipamentos
de som e imagem encontra seu uso, como quando a imagem é sincronizada com uma
trilha sonora que, embora tenha relação com a imagem no que se relaciona ao tempo do
acontecimento, não tem relação com o espaço real em razão da distância entre a câmera
e o gravador de som. É certo que o microfone deve estar, em cada tomada, o mais
próximo possível da câmera, porque, de outra maneira, a impressão visual e a sensação
sonora dificilmente conseguirão se adequar para construir uma unidade de percepção
psicológica. Se virmos o ator a cinco metros, mas ouvirmos sua voz muito próxima, a
situação torna-se insustentável, como se o observador tivesse a impressão não só de que
o conteúdo adapta-se de modo muito precário à situação como também de que a própria
forma de apresentação torna-se muito chamativa e, por isso, perde totalmente seu
caráter de naturalidade. Sobretudo para atingir finalidades estéticas, esse tipo de
apresentação mostra-se grosseiramente antinatural. E já frisamos diversas vezes que,
para um filme ser satisfatório, ele não pode nunca violentar a forma como o mundo é
nele representado.
Poderíamos acreditar que essas falhas de produção grosseiras não deveriam
existir num cinema profissional, mas há um grande número de filmes sonoros hoje nos
quais se tem a impressão de que o microfone só foi disposto no local apropriado em
poucas ocasiões. A tentação de cair nessa espécie de mau atalho é extraordinariamente
forte porque facilita muito o trabalho do produtor.
Um motivo para isso é puramente de natureza técnica. Não se querem abandonar
as tomadas mais distantes embora o microfone exija uma proximidade ideal dos atores
pelo menos com o uso dos equipamentos hoje disponíveis. Ou ainda se quer evitar que
um ator que vai ser filmado de costas pela câmera se posicione também de costas para o
microfone, visto que a clareza da gravação de voz naturalmente será prejudicada.
Assim, o microfone simplesmente é colocado à frente do ator. Para quem ouve o som
vendo as costas do ator, fica muito claro que o microfone estava numa outra posição. O
efeito é que a voz e a imagem não podem criar uma unidade espacial. Ocorre ainda que,
numa imagem, a voz soe através de uma porta ou de uma parede. Novamente é claro
que isso ocorre porque a gravação da voz foi feita a partir de um outro local distinto da
posição da câmera, imediatamente à frente do ator, sem parede no meio deles.
Já vimos anteriormente que nossa capacidade de localização da fonte sonora,
quando ocorrem movimentações a curta distância, não é lá muito apurada. Isso parece
se aguçar, contudo, muito mais da simples diferença de distância estender-se do que das
situações que descrevemos até agora, em que a fonte de captação é deslocada de lado,
por exemplo.
Mas não é somente por causa da busca da clareza do som que essas falhas
perceptíveis acabam sendo preferidas, mas também por causa de necessidades da
montagem. Já tratamos a respeito do tipo de complicação que surge quando, no interior
de um mesmo ambiente sonoro, o enquadramento de câmera precisa ser modificado.
Cria-se uma ruptura insustentável se houver uma alteração na intensidade do som dentro
de uma mesma situação sonora. A solução mais adequada é padronizar o registro do
ambiente sonoro no gravador e depois sincronizá-lo com a imagem gravada com a
câmera a partir de um outro ponto de vista. Deste modo, o microfone deve permanecer
no melhor ponto possível para captação do som e registrar dali toda a trilha sonora,
contrapondo a esta trilha as demais imagens.
Ouve-se, por exemplo, um cantor que ensaia no quarto. A câmera coloca-se na
posição mais próxima possível de modo que satisfaça às exigências do microfone.
Enquanto o homem canta, a imagem salta para outro ângulo diversas vezes. Podemos
ver as pessoas que o ouvem no quarto do lado, a rua em frente à casa na qual ele canta.
Entretanto, a intensidade do canto e a sua sonoridade não se alteram, não
correspondendo, portanto, aos saltos (o que não teria qualquer efeito estético e levaria a
uma sensação de ruptura abrupta da situação, além de ser quase insuportável do ponto
de vista da percepção psicológica), mas sim a uma única tomada sonora feita a partir da
primeira localização do microfone, soando como um tapete sonoro uniforme durante
toda a cena. Sabemos que mudar a distância do cantor e ouvir o mesmo som é, do ponto
de vista da percepção sonora real, absolutamente impossível. A voz vinda da casa soa na
rua de um modo, mas continuamos ouvindo o som no cinema daquele mesmo ponto de
vista, como se estivéssemos próximos, dentro do quarto, com o som inalterado, saído
diretamente da boca do cantor para o microfone e sem qualquer parede a atrapalhando
em seu caminho direto rumo ao gravador.
No filme de Wilhelm Thiele, “Valsa do Amor”, há cenas da seguinte espécie: um
salão de festas onde se comemora um casamento, tem, logo acima, uma galeria. De lá,
distante cerca de vinte metros acima do salão, um radialista faz a descrição dos
acontecimentos. Há um plano próximo do locutor e do microfone, e se ouve sua voz.
Então a imagem salta e se vê um plano do salão de festas, mas a voz não sofre qualquer
interrupção, ela continua sendo ouvida tão alta e próxima como antes. Deste modo
coloca-se a necessidade de aproveitar um trecho sonoro mais longo que corresponde à
imagem do locutor, e de recorrer à montagem para cobrir este som de imagens
diferentes – sem isso, esta estratégia não funcionaria. Outro exemplo: duas pessoas
falam ao telefone. Vemos a imagem de uma ao aparelho e se ouve sua voz clara e
próxima. Então a imagem muda para o plano da outra pessoa, mas a voz da primeira
continua soando da mesma maneira como no plano anterior.
Cenas deste tipo são encontradas à exaustão em filmes sonoros, como na cena
final de “Anna Cristina”, em que a voz do locutor continua enquanto se segue a imagem
do mar. É preciso se posicionar contra elas, destacar que, em princípio, numa situação
desta, microfone e câmera deveriam ser dispostos como se fossem um só equipamento.
Com isso não se pretende dizer que, na prática, toda tomada sonora e toda
tomada visual devam ser realizadas a partir do mesmo ponto e ao mesmo tempo. Nas
comédias, por exemplo, podem-se ver cenas em que uma personagem abre a boca e se
ouve um som de uma buzina de carro. Neste caso, a tomada sonora e a visual podem - e
até mesmo devem - ser feitas de modo independente. Só basta que o ruído da buzina
seja gravado à mesma distância que o plano do ator sugere. Imagem e som devem ser
projetados como se estivessem dispostos no espaço e fossem captados por um único
aparelho.
Os recursos utilizados pelo cinema cômico ainda podem ser incrementados.
Animais podem falar com voz humana, homens com a voz de animais e uma criança
com a voz de um velho. Quando alguém se senta, a almofada pode se pronunciar com
voz humana. Quando o café é servido de uma garrafa, o barulho pode ser o de uma
cachoeira. Quando um canhão é disparado, pode soar como um grunhido. Um guindaste
pode começar a falar com os pássaros que estão pousados sobre ele, e uma bofetada
pode disparar como se fosse uma sirene. Mas as tomadas devem ser sempre feitas de
modo a construir uma situação espacial plausível. Caso contrário, seu valor de sugestão
da situação a partir dos elementos visíveis desmorona, e é justamente dali que nasce a
possibilidade de a situação mais esquisita possível se fazer passar por uma coisa natural.
No filme “Milhões”, de René Clair, há uma cena deste tipo. René Clair a
justificou assim: “dois bandidos jogam uma pedra um contra o outro, mas, quando cada
um deles lança uma delas, seu movimento é acompanhado pelo som de um chute numa
bola de rúgbi. É uma metáfora sonora. Um escritor colocaria em seu texto que eles
lançavam pedradas com a mesma violência com que um jogador chuta a bola.” Esta
comparação com um texto escrito é perigosa e demonstra que René Clair trabalhou mais
com o cérebro do que com a imagem cinematográfica, pois o escritor pode muito bem
utilizar em seu texto uma metáfora deste tipo somente porque a imagem que deveria
acompanhar a ideia sugerida pelo texto não acompanha literalmente a leitura. O poeta
escreve: “Ela cruzava o salão com os pés ágeis como os de uma gazela”, somente
porque o leitor nunca veria uma gazela de pele e osso invadir o espaço da sua
imaginação para andar ao lado da garota sem qualquer razão plausível para estar ali
acompanhando seus passos. Se o cineasta quiser dizer o mesmo, ele deverá colocar a
gazela dentro da imagem, já que é na esfera da imagem que ele deve se comunicar. A
palavra oferece, ao mesmo tempo, ambas as possibilidades de descrever acontecimentos
ou de apresentar ideias em pensamentos abstratos. Imagem e som, ao contrário, são
materiais expressivos com um conteúdo tão encarnado de significação que não
permitem mostrar coisas que somente mantenham relações alegóricas em relação à
situação apresentada, mas que não pudessem de modo nenhum fazer parte efetivamente
delas. Assim como uma caveira com seus dentes expostos no filme não é somente um
símbolo de morte, mas também um pedaço de osso real pertencente ao esqueleto de
alguém que já está morto, a relação entre dois objetos que aparecem simultaneamente
em cena nunca pode ser somente metafórica: é sempre real, ontológica. O efeito cômico
dos exemplos dados há poucos surge justamente do fato de haver um contraste entre
coisas que não deveriam caminhar juntas fisicamente (um homem com som de animal)
serem sobrepostas – e isso não se dá no nível da metáfora.
O exemplo de René Claire já se coloca na fronteira do absurdo. A causa é porque
seu filme “Milhões” traz choques grotescos ao mesmo tempo em que muitas passagens
dele são extremamente realistas. Já não acontece o mesmo quando Dziga Vertov
apresenta, em seu filme “Entusiasmo”, imagens dos trabalhadores do campo marchando
com o som das máquinas industriais, e, seu contrário, imagens das máquinas com o som
do canto ritmado, com a finalidade de produzir uma representação metafórica da
solidariedade dos revolucionários. A diferença é que Vertov se mantém sempre dentro
de um estilo antinaturalista por meio de uma montagem em que as noções de tempo e
espaço estão totalmente soltas, utilizando-se da sobreposição de imagens num mesmo
fotograma, através de mudanças na velocidade de aceleração dos movimentos. Isso
forma um estilo próprio e legítimo de combinação de som e imagem que não causa
qualquer perturbação. Já quando René Clair tem o objetivo de substituir a fala humana
por uma música que seja um som equivalente a ela para criar um tipo de filme falado
sem palavras, é de todo direito protestar contra isso. Em “Canção da vida” de
Granovsky, vê-se uma criança recém-nascida gritar, porém o som que se ouve é o toque
de um trompete. Isso seria plausível num ambiente totalmente antinaturalista, artificial e
irreal. No entanto, é totalmente inconcebível num filme naturalista sobre a vida dos
habitantes das ilhas dos mares do sul, como em “Tabu”, de Murnau, que um nativo
abrisse a boca e se ouvisse, sem mais nem menos, o soar de uma corneta ou que a
imagem de uma mulher abrindo a boca fosse acompanhada de um canto de passarinho.
Seria um verdadeiro disparate, produziria um estranhamento incômodo. Isso porque, em
um filme com um estilo mais realista, um tipo de situação como esta nunca seria
interpretada como uma metáfora, mas sim como algo que tivesse de ser encarado como
pertencente à própria situação real.
Por que então os cineastas devem estar tão ligados à realidade? Por que não
apresentar coisas que, em vez de simplesmente serem dispostas como estão na
realidade, fossem substituídas por elementos que teriam somente um sentido puramente
artístico? Pudovkin deu um exemplo de como ele imagina um cinema específico sonoro.
“Uma mulher acompanha seu marido à estação, o trem está prestes a partir e, de
repente, a mulher percebe que se esqueceu de algo muito importante que precisava dizer
a ele. Ela não consegue se lembrar do que se trata no momento. E, enquanto ela reflete
ainda em dúvida, ela ouve – uma alucinação! – o ruído do trem a vapor colocando os
vagões em movimento.”
“Em sua agitação – visto que ela sabe que em poucos segundos seu amado vai
partir –, ela não consegue fugir da impressão de que seus ouvidos já são testemunhas do
barulho do trem partindo embora ele ainda esteja parado.”
“Esse som se acrescenta à situação criando um clímax. Assim o som se insurge
como uma fonte de intervenção dramática.”
O desdobramento a que leva este tipo de cena, sugerido por Pudovkin, caso seja
utilizado no cinema sonoro, é muito claro. O cineasta sustenta que o som e a imagem
devam vir de fontes distintas, e não da mesma esfera porque ele passa por cima do fato
de que som e imagem vindos de uma mesma situação natural evidentemente se
correspondem sempre, mas que, apesar disso, podem ser mais do que a simples
complementação redundante um do outro. Seu pensamento é um típico produto teórico
isolado e conduz na prática, como se vê, a que ele não inaugura nada que seja novo e
eficaz.
O grande problema é que ninguém chegará, por meio da visão desta cena, à
conclusão de que se trata de uma alucinação sugerida pela metáfora. Tentar-se-á
entendê-la adaptando o que se vê à realidade dos ruídos que poderiam fazer parte do que
está sendo mostrado pela imagem. Já que o som entra em conflito com a imagem do
trem que permanece estacionado, provavelmente o espectador acreditará ou que um
segundo trem, que não está sendo mostrado, partiu, ou que som e imagem não têm
mesmo qualquer correspondência e opte por permanecer sem entender a situação. Isso
não será culpa da falta de atenção do expectador ou consequência de que a tomada foi
feita de modo errado, mas simplesmente decorre do fato de que se buscou criar um
efeito que não é possível ser obtido.
O assincronismo pode ser usado para um narrador esclarecer passagens de um
filme mudo sem aparecer ou para que seja incluída uma trilha sonora porque, em ambos
os casos, o som e a imagem encontram-se em esferas completamente distintas uma em
relação à outra. Não há o menor risco de que alguém confunda o som da narração da
situação mostrada na imagem pensando que a voz pertence a alguém que atua no filme,
mas está momentaneamente fora do enquadramento ao lado da câmera. Em “Vampiro
de Dusseldorf”, de Fritz Lang, o chefe de polícia dá informações a um ministro sobre
como se tornou difícil o trabalho da polícia, mas, enquanto sua voz segue dando
detalhes, vamos vendo uma série de imagens do trabalho da polícia nas ruas, por
exemplo, uma equipe de investigação que vai ao local do assassinato. Já em “A casa
amarela de Kunf Fu”, de Karl Grune, uma voz faz a descrição dos criminosos num alto-
falante, que continua enunciando mesmo quando, em vez devermos o alto-falante,
passamos a ver rotativas que imprimem edições especiais de jornais. Estas sequências
trazem a desvantagem de que os outros ambientes mostrados não podem ter nenhum
som, já que, se ao lado da voz do locutor começasse a soar o barulho das máquinas
imprimindo, ou das vozes dos gráficos, que também seriam ouvidas, esta sobreposição
de barulhos poderia causar confusão. E tal confusão seria causada pelo fato de que a
diferença entre a informação sonora e a visual não seria tão clara quanto é necessário
para não haver chance de um entendimento equivocado. Se a separação entre som e
imagem ficasse clara, não haveria objeções ao uso deste mecanismo de efeito puramente
psicológico. Não há nenhum incômodo quando misturamos coisas nitidamente distintas,
sejam elas de diferença qualitativa como homens e sons de trompete, sejam elas de
diferença quantitativas como no exemplo da “Valsa do amor”, em que a voz do locutor
mantém-se nítida na panorâmica do ambiente25.
Mas, mesmo quando não há restrições psicológicas contra esses tipos de
montagem, ainda se coloca a questão de seu valor estético. Teóricos sólidos, como os
russos e franceses, inclinam-se a considerar a construção conjunta a partir de materiais
distintos como o grande segredo do cinema sonoro e tendem a ver os sons e imagens
ligados a uma situação real como simples cópia da natureza, ou seja, material bruto sem
estar agregado como forma artística. Na verdade, entretanto, é justamente o
assincronismo, na maioria das vezes, que desemboca em filmes de um nível artístico

25
Um curioso exemplo de como um uso errado do som pode ser insuportável está em “O Vampiro de
Dussedorf”: quando um homem está em um ruidoso café, está desatento ao murmúrio – e ouvimos a trilha
sonora baixa; quando ele coloca a mão em concha sobre a orelha – a música começa a tocar muito alta.
inferior. Talvez seja bom lembrar os filmes mudos mais antigos, em que, muitas vezes,
um sonho ou um pensamento eram mostrados em um destaque, num canto superior da
imagem, como num pequeno medalhão no interior do qual o pensamento ou sonho
aparecia e se desenvolvia. O problema é que este recurso é muito primitivo porque o
artista ainda não havia entendido naquela época uma outra forma de mostrar duas coisas
ao mesmo tempo (o estado interior de sonho e o exterior da situação da personagem)
por meio de um enquadramento excepcional que fosse capaz de transmitir ambos por
meio de uma única imagem. A ideia de som do trem também parece ser muito primitiva
– e do mesmo modo. O trabalho de criação formal parece que não está ali completo. A
situação em que a mulher se encontra e a situação que ocupa seu pensamento (o trem
vai partir em breve) são lançadas como mera matéria fílmica desunidas uma do outra.
Uma é igualmente independente da outra, no cinema mudo antigo quando as imagens
diferentes eram coladas num mesmo fotograma, no atual quando imagem e som são
dispostos sem uma forte relação formal, são juntados numa caótica pseudo-unidade.
A combinação da voz do chefe de polícia com a imagem do trabalho da
comissão que apura a morte é solta, primitiva e pouco atrativa ou emocionante. É só
compará-la com o exemplo da cena do tráfico de armas por baixo dos bancos durante a
missa para perceber que ali os motivos visual e sonoro contrastam violentamente, mas
se complementam ao mesmo tempo, fazendo parte de uma única situação. É só por meio
do conteúdo unificado em um sentido realista das coisas díspares que se atinge um
ponto tão alto, estimulante, como já começa a se alcançar em alguns bons filmes
sonoros.
Aquelas combinações dadas como exemplos de assincronismo tanto em
comédias como nos filmes simbólicos possuem bom valor estético. É uma excelente
ideia ver o ritmo das máquinas associado ao ritmo da caminhada, a colagem da imagem
do guindaste com a voz humana, já que, nestes casos, é construída uma unidade criativa
entre coisas que na realidade são totalmente diferentes. Já sabemos, por meio da análise
do cinema mudo, que o contraste de coisas que podem ter uma relação de similaridade
formal pode levar a resultados muito bons. A simples exposição conjunta de coisas que
pertencem somente a um pensamento abstrato, mas que não fazem o menor sentido
fisicamente dispostas lado a lado (como no exemplo de Pudovkin), é um produto muito
cerebral, cujo intelectualismo é inimigo da verdadeira arte. É de valor muito
questionável, por exemplo, a “ilustração” do texto da música em “Canção da Vida”:
junto com a frase “O oceano é grande” vê-se uma fotografia do mar, e assim, palavra
por palavra, o texto é interpretado pelas imagens que não têm nada a ver umas com as
outras e não fazem qualquer sentido nem mesmo em relação ao texto, visto que se
referem somente a um contexto físico real enquanto a palavra aponta para sentidos
abstratos. Esse exemplo mostra como a tentativa de transpor para imagem uma
linguagem abstrata oferece um resultado fraco e descarnado.
A seguir iremos estudar o papel da música de fundo, que não deixa de pertencer
também à prática do assincronismo no cinema sonoro.

Filme e música

A música pode ser utilizada no cinema de dois modos: produzida a partir da


própria situação filmada ou como música de fundo.
O gênero da filmagem de operetas serve como um material de análise muito
elucidativo. Torna-se claro ali que um filme em que as pessoas interpretam canções por
princípio resulta em algo um tanto artificial. Deveria ser impossível números musicais
complexos brotarem sem mais nem menos de uma situação totalmente cotidiana, mas é
assim que são dirigidas muitas operetas hoje em dia. Um filme absolutamente comum é
interrompido em diversas passagens por números musicais e de dança. Em um
determinado ponto da ação, alguém se senta de repente ao piano ou dedilha um violão e
todos os que se encontram à sua volta ficam paralisados, como modelos que posam para
uma pintura, para ouvir a música e, assim, há como que uma interrupção momentânea
no fluxo da narrativa que pode se estender por minutos.
É um tipo de mesclagem que não serve como forma artística. Por meio dela,
evidentemente é possível registrar cinematograficamente a apresentação de óperas ou de
operetas de teatro. Como elas têm um “estilo” sobre o palco, também terão um “estilo”
no filme sonoro (as belas operetas de Lubitsch apresentam um estilo totalmente teatral).
O problema é que não se trata de uma forma artística cinematográfica, mas
simplesmente da forma artística teatral filmada, do mesmo modo como também é puro
teatro filmado um filme totalmente falado. Uma opereta cinematográfica propriamente
dita é, sim, possível, mas só se a música, o canto e a imagem constituírem uma unidade
contrapontística. Haveria até mesmo uma dificuldade em utilizar, nestas composições,
as canções, porque elas não permitem que, junto a si mesmas, seja apresentado algum
diálogo, embora não impeçam que ocorra uma sucessão de imagens. Deve ser
aprimorada em breve uma técnica para as operetas do cinema que consistiria em não
apresentar a canção do princípio ao fim, mas sim em aproveitar apenas os trechos
apropriados desta canção. O cantor não deveria assumir nem uma pose exagerada, nem
cantarolar toda uma ária. Ele deveria, em vez disso, cantar enquanto a câmera passeia
furtivamente, escolhendo um par de tomadas bem feitas em que também fossem
ouvidos todos os detalhes sonoros apropriados a cada situação. Uma saída agradável
passível de uso nas operetas é que diversos cantores se sucedam na interpretação da
letra musical, cada um como solista num trecho. Enquanto a música segue, o lugar que é
apresentado na imagem muda, mostrando sempre uma outra personagem que, por sua
vez, segue e canta. Assim, a imagem não precisa se manter engessada enquanto a
música vai se desenvolvendo.
A questão da música de fundo coloca-se, como se sabe, não só para óperas e
operetas filmadas, mas também para todo o cinema sonoro. O tipo de acompanhamento
musical que era feito no cinema mudo pode ser mantido no filme sonoro?
É preciso um pouco de cuidado em relação a essa questão. O motivo é que a
essência da música incidental fundamenta-se no fato de que ela não pertence ao espaço
em que a ação se passa, mas que surge, sim, de uma outra esfera muito distinta da
mostrada pela imagem e que caminha lado a lado com ela. Esta separação não sofria
qualquer perturbação no filme mudo porque sabíamos que não havia nenhum outro som
além da música associada à imagem. Mas, no cinema sonoro, também há sons que são
emitidos a partir da situação espacial que vemos na tela e, assim, surge o risco de que o
espectador projete a música incidental para o lado de dentro do espaço do filme em si.
Já no teatro também ocorria o mesmo problema. Em trechos e passagens narrativas de
caráter ficcional, fantasioso, decorativo, como o que existe nas interpretações de
Shakespeare por Reinhardt, a música mais artificial pode às vezes também invadir o
espaço interno da cena (na fábula musical “A ópera dos três vinténs”, a musica de Kurt
Weil cai extraordinariamente bem em cada passagem). Mas como seria inserir música
numa cena do teatro naturalista de Gerhart Hauptmann sem que o espectador
imediatamente começasse a se perguntar de onde está vindo esta música e quem a está
tocando? Isso se agrava no cinema porque ele consegue, na maioria das vezes, passar
uma impressão de realismo muito maior do que o teatro. O perigo de existir uma
confusão entre as esferas sonoras interior e exterior da imagem é, por isso, muito maior.
Todavia, mesmo quando essas dificuldades forem superadas, há argumentos
contrários ao uso de música de fundo que, na verdade, eram até mesmo mais fortes no
caso do cinema mudo. Nos últimos anos do cinema mudo, começou a surgir uma
espécie de culto em torno da musicalização. Os dirigentes dos grandes cinemas
tornaram-se pessoas tão conhecidas como os diretores de cinema cujos filmes esses
dirigentes “ilustravam musicalmente”, e as críticas dos jornais ficavam muitas vezes a
cargo de especialistas de música, profissionais que analisavam com todo rigor a
propriedade da música instrumental utilizada e julgavam qual era a qualidade da musica
utilizada como acompanhamento. Músicos famosos, como Hindemith, compunham
trilhas sonoras, e os conservatórios e faculdades de arte ofereciam cursos específicos
sobre composição para filmes. Na verdade, tudo isso era inútil, porque a música sempre
é melhor no cinema quando consegue não desviar a atenção do espectador em relação
ao filme, ou seja, a boa trilha consegue não ser excessivamente notada. A música no
cinema era pouco mais do que uma questão de costume, já que quem via com
frequência filmes mudos sem acompanhamento musical sabe que era muito fácil
adaptar-se ao silêncio e que a música não fazia nenhuma falta. Claro que uma música de
fundo apropriada – portanto pouco notada – pode elevar o mérito de um filme, como no
caso da trilha de Edmundo Meisel para “O Encouraçado Potemkin” e para “Sinfonia de
uma metrópole”, mas a chance de que ela cause transtornos é muito grande. A qualidade
da música não era um fator essencial para o sucesso de um filme. Ela surgia muito mais
como um complemento do trabalho, que se constituía por si só já numa obra autônoma.
E era justamente por isso que a música transformava-se num fator ainda mais perigoso
para os melhores filmes. A música incidental contamina profundamente a atmosfera da
cena: seja ela triste ou alegre, viva ou arrastada – conforme for o caso. Se o diretor
produz uma cena triste e a liga com outra alegre – desde que seja um bom diretor -, ele
conseguirá justamente dar maior força aos sentimentos a partir do contraste entre elas.
Mas se ele, ao mesmo tempo, produzir uma mudança no ambiente musical da trilha
sonora, então o contraste será ainda maior, ampliando extraordinariamente o valor do
sentido visual.
A trilha sonora como trilha não pode nunca ser avaliada por seus méritos
isolados da imagem que a acompanha a cada instante. Em qualquer obra de arte, a
existência de fatores adicionais a ela e que a complementam deve se dar do modo o
menos invasivo possível, sem chamar muito a atenção do público, porque, de modo
contrário, estes fatores haveriam de interromper em alguma medida a própria impressão
criada pela obra de arte em si. O que se pode observar a partir da condução de músicas
de valor artístico próprio é que se passa a prestar atenção na música, retirando do filme
grande parte da atenção que ele exige. Se seguirmos compulsoriamente a imagem e,
depois, virmos o filme todo, sem sabermos dizer direito se ele foi acompanhado de
Beethoven ou de Walther Kollo, isso não deixa de ser o mais apropriado para o cinema.
O valor que a música pode agregar ao filme é certamente uma arte mais
primitiva, e não um valor musical propriamente dito: o tipo de clima dado pela
harmonia e pelo ritmo colore o filme, mas isso pode ser obtido tanto a partir de música
ruim – do ponto de vista de uma estética musical – quanto da boa. Aliás, diversas vezes,
a música de pior qualidade adapta-se melhor, desde que suas características rítmicas e
harmônicas correspondam ao que é pedido, porque é mais direta, mais eficiente e mais
clara. Basta lembrar que, também no caso da dança, o mais apropriado não é a melhor
música, mas, por vezes, até mesmo um gênero mais rústico de marcha, tango ou
fragmento lírico que caia bem aos movimentos. Eles servem, justamente por isso, como
melhor acompanhamento para a boa dança. O surgimento do cinema sonoro melhorou a
situação desta relação entre cinema e música. Primeiro, porque a música não seria mais
determinada pelo regente musical da sala de cinema. Terminou o martírio da
“Cinemateca”, uma coleção sonora na qual era encontrado um trecho musical
equivalente a cada acontecimento cinematográfico, desde a imagem de uma
motocicleta, de um raio ou até de um beijo. Se quisermos ter uma breve ideia desta fase
hoje apenas histórica da música no cinema, podemos fazê-lo simplesmente percorrendo
um trecho de um roteiro produzido por um regente de cinema para acompanhamento de
uma “ilustração cinematográfica” no estilo antigo:
16. (corta para Homolka) Gauwin, Demochares, em compasso 2/4
17. (pernas no sofá) “Friedricke, você é musical” de Nelson
18. (Donald com o livro) Vitória régia, Harmonia para cinema nº 5
19. (nuvens no céu) Um trêmolo misterioso
20. (Donald se levanta) Tema misterioso agitado
21. (Berlin pela manhã) Tristesse patética – na Harmonia para cinema nº 4
22. (bilhete) Uma melodia tranquila
23. (corta para Kussmaul) Um scherzo-stacato
24. (escadas da casa) Um andante melancólico
25. (mãos batendo) Música tumultuada (cerca de 2 minutos)
26. (a polícia sai) Tema dramático apaixonado – Harmonia para cinema nº 11
27. (Donald com a mala) Tschaikowsky, Reverie interrompida
28. (Kussmaul se exercita) “A mesa farta da Sra. Levy” de Rosen (1 ½ refrão
pesante)
29. (fim do exercício) Melancolia, Harmonia para cinema nº 23
30. (mesa do café) Tensão dramática de Borch (trecho bem curto)
31. (corta para o carro) Como em 29
32. (escritório) Como em 30
33. (cena do quintal) “Um pouco de música também faz parte do amor” de
Nelson (compasso 16, refrão, imitação de realejo)
34. (no bar) Um fox-trot solto
35. (todos à mesa) “Diga-me” de Robert Stolz, refrão
36. (Olga no escritório) Uma bela melodia
37. (outro escritório) Humoresque – Harmonia para cinema nº 12
38. (Berta ao espelho) Um trecho de one-step (dança)
39. (corta para rua) Fox-trot em tempo acelerado
40. (cortes) Em tema grotesco, curto
41. (confeitaria) “Vamos agir como se fôssemos amigos” de Kransz (tango)
42. (lavanderia) Um intermezzo elegante
43. (Donald) Agitato moderato de Hilse
44. (Berta e Wirtin) “Você quer?”, de Lehar
45. (Praça Potsdam) Misterioso pesado nº1 de Levy
46. (Berta entra) Noturno gracioso – Harmonia para cinema nº 17

Essa espécie de salada de frutas musical deixou de ser possível realizar, mesmo
em cinemas pequenos, porque a música de acompanhamento já não era mais produzida
na sala de cinema e sim pelo próprio cineasta, muitas vezes, uma composição exclusiva
produzida especialmente para determinado filme. Havia músicos que sabiam compor
uma música despretensiosa com ritmo e clima adequados e que, apesar disso, não
deixavam de construir valores puramente musicais. Este esforço não é um desperdício
no cinema sonoro tanto quanto era no cinema mudo, porque passou a existir uma
possibilidade de colaboração entre o diretor e o músico durante o processo de filmagem.
Ela não era possível de se abrir no mesmo grau quando o filme já estava pronto e era
musicado posteriormente, mas se mostra como um novo caminho de criação musical
quando a música é concebida para revestir uma cena que ainda será produzida.
Sobretudo, ela serve como um recurso de apoio. Quando o alto-falante fica mudo,
quando o diretor não coloca ruídos e um anjo atravessa o quarto, o músico pode entrar
em cena. Pode-se dizer que esta produção musical na prática resulta em menos
incômodo e limitações do que se pode prever em teoria. Não há uma sensação de
interrupção abrupta quando os ruídos e as vozes somem para dar lugar a uma música de
fundo. Embora, com isso, não se esteja dizendo nada a respeito do valor artístico da
produção.
Em alguns filmes sonoros a música foi muito bem elaborada. E há um futuro
muito promissor provavelmente para a combinação de sons e música, a ligação acústica
entre fontes que não se pode dizer com certeza se pertencem a sons captados da
natureza ou se são produzidos com instrumentos. Na trilha sonora de “Canção da vida”,
de Granowsky, ouvimos uma melodia forte e lenta cuja sonoridade liga-se em paralelo
aos cortes das imagens. Assim, a montagem ganha uma força que era, sim, o objetivo do
diretor, mas que muito dificilmente seria alcançada somente através da exploração do
recurso visual. No filme de Wilhelm-Thiele, “O baile”, o riso sarcástico da criadagem
encaixa-se no refrão da canção do musical. São tentativas de se conseguir uma relação
mais estreita entre a música e o cinema sonoro, para que a música não seja sempre um
simples apêndice, de modo que tente se construir com ela parte integrante da forma
artística do meio.

Cinema sonoro não: simplesmente cinema

Para concluir, vamos responder brevemente uma última pergunta que não tem
interesse exclusivamente teórico: o cinema sonoro é um tipo particular de arte com
regras próprias?
Será sempre uma afirmação corrente que o cinema sonoro deveria ser produzido
de um modo muito diferente do cinema mudo porque ele é uma nova arte sui generis.
Isso é verdadeiro, e ao mesmo tempo falso. Verdadeiro na medida em que um filme
sonoro deve ser feito de um modo distinto do cinema mudo, e falso no sentido de que o
cinema mudo e o sonoro seriam duas artes distintas com regras diferentes. Há só uma
arte do cinema e suas regras se aplicam tanto aos filmes sonoros quanto aos filmes
mudos. Elas valem também para uma arte puramente sonora, já que esta arte do som é
uma parte do cinema sonoro, o que, numa primeira observação, pode parecer novidade e
também algo esquisito.
Talvez o único a reconhecer até agora isso tenha sido o roteirista francês J.
Laudau em uma entrevista radiofônica em que disse:
“O som e a palavra se ampliaram, sem querer, para além do teatro”.
“Um pouco tardiamente se iniciou uma pesquisa sobre as regras particulares dos
filmes sonoros e falados. E muito pouco sucesso foi obtido, enquanto isso, com as
terríveis filmagens de peças de teatro. Aos poucos fica mais estabelecida a convicção de
que não existem regras sonoras independentes válidas exclusivamente para o cinema
sonoro ou falado”.
“O único conjunto de regras exclusivas do talento artístico cinematográfico é
justamente aquele que foi estabelecido depois de trinta anos de experiência com o
cinema mudo.”
“As regras do cinema mudo são a essência da arte cinematográfica em si.”
O que é esse traço característico da arte do cinema que se aplica ao filme mudo,
ao filme sonoro e até mesmo às artes puramente sonoras? A utilização artística dos
aparelhos de gravação acústica e óptica. Esses equipamentos também podem ser
utilizados sem o aproveitamento das possibilidades que lhes são específicas, por
exemplo, na fixação ou na transmissão de uma musica ou de uma recitação por meio de
discos e rádio, a reprodução de uma pintura por fotografia, o filme totalmente falado
(filmagem de imagens e som da peça teatral) – tudo isso se serve das novidades
tecnológicas sem, todavia, explorar suas condições materiais específicas de produção
artística. O filme faz isso em primeiro lugar, a saber, nos domínios ótico, sonoro, e
audiovisual.
A diferença entre isso e o verdadeiro cinema é que este explora a possibilidade
de esboçar todo um mundo de riquezas visuais e acústicas muito semelhantes à
realidade. Mas não para por aí. Este mundo serve para ele como material para produção
de formas específicas. A diferença entre o cinema e o pintor é que aquele não precisa
lutar para construir uma realidade, utilizando-se de esforços e refinamentos técnicos,
porque ele já recebe do equipamento este mundo pronto. Ao contrário da pintura, a
natureza é para ele o material que está mais próximo (se é que não podemos dizer ser a
natureza o único material dele). Já que não mostra os objetos em si, trazendo-os ou
construindo-os como faz o teatro, mas trabalhando com imagens deles, que são simples
cópias da realidade, o cinema pode ligar situações espaço-temporais diversas de modo
totalmente confortável e pode tecer relações entre elas (montagem). Já que o cinema não
está limitado a ter de mostrar o que é visto a uma distância sempre fixa em relação ao
observador (e o que é ouvido também), ele pode se aproveitar conscientemente desta
mobilidade para apresentar o que é visto ou ouvido a distâncias arbitrárias, escolhidas
para que as pessoas percebam as coisas tão próximas na tela quanto ele queira fazer. Por
meio destas escolhas de distâncias e agrupamentos dos objetos que são filmados pelo
ângulo apropriado, o cinema exerce conscientemente sua construção formal.
Recursos como montagem ou enquadramento são comuns tanto ao cinema mudo
como ao cinema sonoro ou ainda às gravações sonoras. As limitações específicas que
cada um desses gêneros impõe são de um tipo mais superficial. Eles não deixam de
fazer parte, por causa dessas especificidades, de uma única arte do cinema que trabalha
com regras unificadas e particulares.
A diferença mais importante entre o cinema mudo e o cinema sonoro é mais
facilmente compreendida quando os comparamos a um trecho musical em que distintos
instrumentos são utilizados. Uma música composta para solo de piano pode ser tocada
também por piano e violino. O trecho vai se manter em essência o mesmo, embora a
função do piano tenha se alterado profundamente. Pode-se pensar numa situação em que
o violino simplesmente acompanhe as notas da melodia do piano, que serão duplicadas
pelo outro instrumento, de modo que o piano já apresenta independente do violino,
sozinho, a totalidade do trabalho, e o violino serve somente como um eco, ou um
apêndice (é o que acontece quando um filme mudo recebe uma adição de efeitos
sonoros exteriores e irrelevantes). Mas esta não é a essência de um dueto (no caso do
cinema, não é cinematograficamente sonora). Se o trecho musical fosse efetivamente
reelaborado de modo a ficar mais apropriado ao dueto, a parte isolada do piano já não
seria mais autônoma, nem faria sentido isolada. O piano dividiria o trabalho com o
violino. Só então se formaria efetivamente uma dupla. Violino e piano não fariam o
mesmo percurso ao mesmo tempo – evitando com isso que um atrapalhe a atenção que
se tem no outro, ou até mesmo que um dos dois seja totalmente supérfluo – mas sim se
complementariam na construção de um trabalho único comum.
Na transposição de uma peça solo para uma versão com dois instrumentos, o
caráter da música em si pode permanecer o mesmo. A diferença é que, por exemplo, o
contraponto que no primeiro caso era feito pelo próprio piano passa a ser dividido pelo
piano e pelo violino. Quem só teve a experiência de escrever para instrumento solo e
quer compor duetos deve ter clareza de que já não pode mais cuidar somente de um
deles como o responsável pelo trabalho completo, como fazia até então, porque, neste
caso, o outro instrumento ficará à míngua. Portanto, esta pessoa precisa aprender a
compor para dueto, mas não precisa, com isso, aprender novas regras de composição
musical.
É justamente esta a situação da transposição do cinema mudo para o cinema
sonoro: é preciso aprender a aplicar as antigas regras de composição ao novo material
que foi disponibilizado. E este reaprendizado é naturalmente mais difícil do que seria
aprender algo totalmente novo.
Para finalizar, vamos refletir a respeito da questão introduzida pelo drama
radiofônico e pelo cinema sonoro, que é o problema da perda desta espécie de idioma de
abrangência internacional que é a imagem sem som. É conhecida a dificuldade que a
indústria cinematográfica enfrentou com o surgimento do cinema sonoro para conservar
sua abrangência internacional. O interesse por essa questão da possibilidade de agradar
a diversos povos não se deve a uma questão ideológica, mas remete a um interesse
puramente mercadológico. Já se tentaram os meios mais arriscados e os mais
abomináveis testes para produzir versões rodadas em distintos idiomas que, mesmo sem
considerar qualquer pretensão de valor artístico, só apresentaram desvantagens. Em
primeiro lugar, elas encarecem sensivelmente os custos de produção, já que cada cena
precisa ser gravada muitas vezes mais – e em alguns casos até mesmo com atores em
papéis distintos dos da primeira versão – sendo o encarecimento sempre um fardo
pesado para a produção cinematográfica. Mais importante ainda é o fato de que a
produção cinematográfica das distintas nações tem de diminuir a produção de filmes
mais ligados à sua própria cultura. Não há dúvida de que um filme americano não tem
mais a mesma marca cultural do país, mesmo que tenha um roteiro americano, um
diretor americano e seja filmado em um estúdio americano, se tiver de rodar com um
ator principal francês que fala na sua própria língua nativa. A objeção mais forte contra
as versões é de que nenhum ator consegue se sair bem numa representação em que
tenha de falar numa língua diferente da sua língua materna. Se um ator alemão
representa em um filme alemão rodado em Berlin, ou em uma versão alemã de um filme
francês feito em Paris, ou ainda em um russo, rodado em Moscou, seu trabalho será
sempre dirigido aos alemães. Basta refletir sobre o prejuízo que isso causaria se, em
lugar do nosso repertório e de nossa admiração pelos atores americanos, eles nos fossem
totalmente desconhecidos porque, em vez de Chaplin, só teríamos visto atuando em seu
lugar Siegfried Arno; em lugar do mexicano radicado em Hollywood Ramon Novarro,
tivéssemos assistido sempre como seu intérprete Franz Lederer; e, em vez de Gloria
Swanson, Henny Porten.
Traria muita esperança o fato de as versões terem um fim rápido e que
voltássemos a assistir como até então os filmes originais. Como será, entretanto,
solucionado o problema da língua? Este problema não se restringe ao cinema, apesar de
ser no seu âmbito que a discussão passou a ser maior. O rádio, o telefone e a expansão
dos correios e das viagens internacionais fizeram com que os povos entrassem num
contato muito mais próximo uns dos outros. Assim se intensificaram os esforços
políticos para criar um internacionalismo contra o qual o nacionalismo se opõe. Os
primeiros são desenvolvimentistas e, portanto, representam os avanços; os outros são
conservadores e permanecem desesperançosos. As fronteiras terrestres, que desde o
surgimento dos aviões transformaram-se num estranho anacronismo, não podem se
tornar por muito tempo mais empecilho para que as pessoas entrem em contato cada vez
mais com línguas estrangeiras. Canções americanas tocam nos alto-falantes, passa um
filme francês no cinema, os correios trazem uma carta em sueco e, em algumas horas, é
possível ir de carro ou de avião para a Itália. Em breve, esse contato maior com o
restante do mundo também será acessível às grandes massas – e que acontecerá então?
Elas terão de aprender as outras línguas. Que isso não seja algo impossível, pode-se
constatar em países como a Suíça, onde vemos muitos falarem alemão, francês e
italiano, independente de terem maior ou menor grau de instrução ou de serem mais ou
menos inteligentes. Talvez muitos não falem assim tão bem e sem limitações, mas em
medida suficiente. O domínio de diversas línguas se transformará em breve num bem
comum como já o é ler e escrever. Como conseqüência disso, as próprias línguas
poderão também ficar mais parecidas. A maioria delas já contém muitas semelhanças, e
isso também será um grande passo no sentido da obtenção de paz no mundo.
Pensamos que: o problema da língua não se restringe ao campo do cinema
sonoro, mas está ligado ao desenvolvimento geral de nossa vida moderna, e uma
solução universal para ele deve ser encontrada. O que, apesar disso, a indústria
cinematográfica fará até que este fato seja solucionado ainda pode nos causar espanto.

Quinto capítulo
O filme completo

“Nenhum artista de verdade deseja ver seu


trabalho colocado ao lado dos produtos da natureza
nem mesmo quer colocá-lo em seu lugar; se o
fizesse, a obra se tornaria uma meia criatura
expulsa do reino da arte e rejeitada
no reino do natural.
O artista deve reconhecer os poderes da arte
como um círculo, que possibilita construir um reino
no interior da natureza; ele deixa, porém,
de ser um artista, se ele desrespeitar a natureza com tais poderes, se quiser
se perder dentro dela.
O artista não deve também
ser um crítico da natureza, ele
deve ser um crítico da arte.
Por meio da mais fiel cópia da natureza
não se constrói uma obra de arte, mas
quase toda a natureza pode acabar
em uma obra de arte. Assim como pode também
ver esvair o seu valor.

(Goethe: a pesquisa de Diderot sobre a pintura)

O filme completo

“Filme completo”. É com esta frase, intencionalmente um pouco pomposa, que


desejamos denominar uma possível forma futura da técnica cinematográfica para a qual
os desenvolvimentos dos dias de hoje apontam e que muito provavelmente, num tempo
determinado, será alcançada: a imagem de cinema que imita ao grau máximo possível a
imagem do mundo.
A agregação do som foi o primeiro passo importante nesse sentido. Sua
introdução deve ser vista como uma consequência de uma inovação técnica, e não
estética, já que sua incorporação não estava nos planos dos melhores cineastas do
período mudo. Eles extraíram das limitações do cinema sem som procedimentos cada
vez mais puros e conscientes que foram capazes de transformar um simples brinquedo
de projeção de luzes e sombras numa verdadeira arte. A introdução do som, em nome da
promoção de um estranho rumo ao maior grau possível de ‘naturalidade’ (no sentido
mais superficial da palavra), destruiu os recursos dos quais os cineastas se serviam, e foi
um um mero acaso o fato de o cinema sonoro também se prestar também a finalidades
artísticas. Esta coincidência foi o que impediu a maior parte dos amantes do cinema a se
dar conta do tamanho do perigo deste caminho que a produção cinematográfica tomou e
que pode representar a vitória do ideal dos panoramas naturalistas sobre a criação
artística cinematográfica.
O desenvolvimento do cinema mudo foi interrompido provavelmente para
sempre quando mal havia obtido seus primeiros grandes resultados; mas ele ainda teve
tempo suficiente para nos legar alguns filmes extraordinários e maduros. Este avanço
técnico será com certeza muito mais veloz ainda a partir de agora. Haverá muito em
breve uma película colorida e uma projeção em três dimensões, e a tecnologia pisará
com sua bota de sete léguas esmagando o cinema sonoro num estágio ainda mais
incipiente do que pisou sobre o cinema mudo.
Por enquanto, esse fim será protelado por alguns anos em função de uma
motivação externa, do fato de a técnica de colorização ainda se encontrar num estágio
muito primário de desenvolvimento, e por um motivo interno, de que o filme sonoro se
encontra numa luta muito arrastada, tentando se livrar de limitações e de ruídos
indesejados. Os técnicos se encontram tão longe do ponto em que os alto-falantes serão
capazes de reproduzir sons de vozes e ruídos com a clareza desejável que é até mesmo
possível que, num tempo mais curto do que o necessário para superar estas limitações,
passemos a utilizar imagens coloridas num grau de qualidade que possamos ficar
observando sem que o estômago se revire. Com esta pobreza de recursos técnicos,
mesmo o mais hábil e qualificado diretor não consegue produzir um bom filme.
Questiona-se como será quando as produções de cinema colorido atingirem sua
maturidade técnica – o que nós perdíamos em razão da redução das cores a uma escala
de preto e branco é bem sabido. Será mantida com a colorização a mesma qualidade de
composição que era possível até então, e aquela permitirá a manutenção da
independência do filme em relação à realidade?
As obras dos mestres da pintura a óleo mostram que as cores oferecem
possibilidades mais amplas do que os grafismos limitados ao preto e branco, permitindo
a criação de um estilo forte e original. Mas é possível comparar a pintura com a
fotografia colorida? Enquanto a mão do pintor encontra-se totalmente livre quando
manipula formas e cores para representar a natureza, a fotografia é obrigada a registrar
mecanicamente as luzes recebidas fisicamente da realidade. Na fotografia em preto e
branco, a redução das luzes coloridas do mundo a uma escala de cinza diferencia a
imagem fotográfica em relação à imagem do mundo, fazendo daquela um material
artístico autônomo. Não se pode dizer o mesmo da fotografia colorida, já que a
transposição não ocorre mais entre uma realidade e uma linguagem qualitativamente
distinta do mundo no que se relaciona às cores. É claro que o artista pode interferir nas
cores, por exemplo, retirando todo o azul da imagem ou, ao contrário, deixando só o
azul nela. Ele pode também alterar a qualidade de uma cor, carregando os tons
vermelhos para o alaranjado, o amarelo para o esverdeado, ou mesmo inverter as cores
das coisas, tornando ou o que era azul, vermelho; ou o que era vermelho, azul – mas
tudo isso se resumiria a uma transposição da realidade, uma manipulação que vai além
do meio e cuja capacidade expressiva pode ser posta em dúvida. Sobra, portanto, apenas
a possibilidade de se elegerem as cores por meio da seleção dos objetos a serem
fotografados. Assim é possível realizar belos trabalhos decorrentes da composição de
imagens coloridas, mas não se devemos esquecer que, deste modo, o poder de
formalização subjetivo da câmera, que é tão marcante no caso do cinema, é muito mais
reduzido, nem que o ponto de base do trabalho artístico fotográfico se impõe, do mesmo
modo, muito mais a partir do que é colocado na frente da objetiva do que sobre o modo
como isto é fotografado. A câmera fotográfica torna-se, portanto, um mero equipamento
de registro mecânico dos mais simplórios.
Não seria correto construir uma estética do filme sonoro em cores somente com
base nisso, assim como não se pode reduzir a esse aspecto do que é filmado toda a
estética do filme mudo - ou mesmo do filme sonoro preto e branco. É preciso pensar
que provavelmente o uso da cor virá acompanhado de técnicas de projeção em terceira
dimensão e também de um alargamento da dimensão da tela, inovações que já se
encontram em desenvolvimento. Com isso, a ilusão de realismo da imagem será
incrementada de modo que o espectador não conseguirá mais distinguir exatamente o
que é o resultado de uma manipulação por meio de efeitos especiais, visto que a ele não
será possível perceber esta manipulação a partir do material que lhe é exibido.
Por meio da simples seleção dos objetos no campo cinematográfico, já é possível
criar um ambiente de cores harmônico e bem realizado. Se o cinema fosse
tridimensional, não haveria mais, no interior do quadro cinematográfico, uma superfície
plana e, portanto, nenhuma superfície lisa disponível para a aplicação de cores, ou seja,
só seria possível utilizar os recursos decorativos, como os que se encontram no teatro,
para decorar a imagem. A ampliação do tamanho das telas de projeção tornará menos
interessantes as composições, sejam planas ou tridimensionais, e recursos como a
montagem ou a escolha apurada do posicionamento de câmera se transformarão em
efeitos de pouca valia se a ilusão de realidade for muito intensificada. Com certeza a
montagem de locais distintos com profunda sensação de realidade será vista como uma
exposição de lugares muito heterogêneos e com um resultado muito incômodo. A
mudança do posicionamento de câmera dará a sensação de um pulo efetivo do
observador no interior do espaço da imagem, pulo muito incômodo. A câmera deverá
evitar esses saltos ficando imóvel, e cada corte será como que uma perturbação. As
cenas deverão ser filmadas do princípio ao fim sem cortes e só poderão ser feitas a partir
de um único lugar. As tomadas, por sua vez, não poderão ser editadas. As possibilidades
desta forma de cinema serão exatamente iguais às do teatro. De todo modo, já não se
poderá falar mais de uma arte cinematográfica específica. As técnicas cinematográficas
terão de regredir ao que eram no princípio do cinema, porque foi com a câmera fixa e
com as tiras de filme sem cortes que o cinema começou. A única diferença será que não
haverá mais uma perspectiva de desenvolvimento futuro à sua frente, mas sim a
ausência total de perspectiva.
Frank Warschauer disse a esse respeito o seguinte:
“Houve uma época em que se negava toda a possibilidade de se fazer arte com o
cinema porque se dizia que ele produzia uma fotografia absoluta do mundo, sendo,
portanto, não uma construção artística de imagem, e sim a imagem mais fiel possível da
própria realidade. E então se percebeu que os verdadeiros problemas artísticos se
encontravam em um outro lugar. Este mundo do cinema, estas cópias, podia selecionar
objetos distintos: o cinema podia obter, por meio dessas cenas, resultados muito
realistas ou muito fantásticos a partir das exigências dos objetos; obter um mundo ainda
sem forma, representativo para o expectador e construir novos pensamentos, novas
formas da realidade...”
“Naturalismo: é uma questão de forma artística e de intencionalidade artística
para a qual a técnica cinematográfica é apenas uma ferramenta e que, tanto antes quanto
hoje, é sempre discutida e sempre complexa. Por isso, é preciso se dar ao trabalho de
separar o que é propriamente inerente à técnica: ressaltar a complexidade do mundo e
relacioná-la com a ideia de busca da fidelidade a este mundo. Por isso, o cinema mudo
preto e branco, foi somente uma primeira etapa. Como o cinema sonoro e ainda outros
desenvolvimentos mais virão a seguir, não é preciso se lamentar de que não estejam se
colocando obstáculos a esse desenvolvimento, só é preciso saber que papel a tecnologia
representa e qual ela não desempenha.”
Lendo esse trecho, percebe-se como nossas observações não foram supérfluas
até aqui, porque elas desmascaram que tal pensamento é um tanto cego. Vimos que o
autor começa o seu trabalho artístico justamente no ponto em que essa fidelidade ao
mundo termina. O problema de que, ao retratar simplesmente a realidade, o cinema não
seria arte não se resolve por meio do controle do que será colocado na frente da câmera,
no estúdio. É preciso, antes disso, como estamos demonstrando, analisar como isso foi
feito, entender que a câmera e as tirinhas de filme não são uma mera cópia da imagem
do mundo porque nem mesmo podem ser. O problema é que a imagem de cinema do
“filme completo” é muito mais parecida com a imagem que vemos ao olhar para o
mundo e, portanto, ela não representa um velho ideal de aperfeiçoamento da forma
artística naturalista que é alcançado finalmente por intermédio da técnica, mas é, sim,
algo que destrói a própria razão de ser da arte do cinema, fazendo o trabalho dele por si
própria.
Esse estranho desenvolvimento representa, em certo sentido, a coroação de um
esforço em busca do naturalismo que pode ser encontrado em toda a história da arte em
geral. Sabemos que a arte figurativa origina-se de duas raízes: a da ornamentação e a da
representação. O campo da representação não é exatamente o mesmo que o campo da
arte, pois ele se identifica antes com o desejo primitivo de se apoderar das coisas do
mundo por meio da sua replicação (basta lembrar os poderes mágicos exercidos pelas
imagens para os povos primitivos). Ele representa uma abreviatura da experiência, um
abrandamento, uma revanche contra o determinado, e, ao mesmo tempo, representa a
semelhança fiel à realidade, traz uma sensação de panóptico. E, deste modo, por meio
das mãos humanas, é construída uma imagem que se parece o mais próximo possível
com os objetos do mundo, numa proporção surpreendente. Tudo isso tem muito pouco a
ver com o prazer estético ou com o impulso para a criação artística, apesar de estar
geneticamente ligado à origem da arte figurativa. A situação dual que age sobre o que o
artista faz e pensa - de um lado puxado pelo impulso de retratar a realidade o mais
fidedignamente possível, e de outro puxado pela força de expressar seu mais puro
estado psicológico – impediu, mesmo depois de milênios, que uma figuratividade muito
radical fosse alcançada pelas artes, tirando alguns raros exemplos, até que, somente nos
tempos atuais, esta novidade se estabelecesse. Contribuiu para isso o fato de o ímpeto
criativo não se voltar somente para a ação de copiar, mas sim de dar forma, atribuir
significação, criar estilo - iniciativas cuja legitimidade nunca foi condenada pelo
pensamento estético. Na contramão, de Goethe a Diderot, (“A pesquisa de Diderot sobre
a pintura”), este problema está presente em uma forma dramática. Até mesmo em
artistas como Leonardo, a busca de uma alta fidedignidade com o real era um elemento
isolado, e a crítica de Platão contra os artistas, acusados de produzirem não mais do que
uma cópia infiel do mundo real caiu totalmente em descrédito (embora até mesmo em
Platão isso não constituísse uma verdadeira censura, visto que ele não condenava o fato
de o artista copiar, mas o fato de a cópia ser algo menos digno do que a coisa do mundo
dos fenômenos).
Até hoje, esse tipo de doutrina se preserva para muitos artistas e até mesmo, em
maior medida, para o público. Na pintura e na escultura, foi somente nas últimas
décadas que surgiram trabalhos em que se percebe uma ruptura com o princípio
figurativo não só por meio das obras, mas também intelectualmente. O expressionismo é
o exemplo mais claro disso. Quando se pensa que o artista deve espelhar na obra a
natureza, é possível ainda pintar como van Gogh, mas de modo nenhum como Franz
Marc ou Paul Klee. Sabemos que a maior reticência contrária a este tipo de arte é
justamente o de ela não ser fiel à realidade. O desenvolvimento do cinema mostra como
o ideal da fidelidade ao real ainda é poderoso.
A fotografia e seu desenvolvimento, o cinema, criam um material artístico tão
naturalista que o público os considera como um tipo de arte muito superior às demais
técnicas de imitação da realidade, mais antiquadas e incompletas, como a pintura e o
desenho. Assim, pelo fato de o cinema ser muito mais dependente, por motivos
econômicos, do grande público do que qualquer outra forma de arte, o ideal de arte do
público se impõe e, se esta opinião se posiciona de modo contrário ao rumo de
desenvolvimento da verdadeira arte, surgem conflitos radicais (como o que atravessou a
implementação do cinema sonoro, e a do filme completo - colorido e tri-dimensional),
que se opõem aos verdadeiros valores artísticos. O filme completo é a coroação de uma
aspiração milenar que confunde arte com produção de réplicas: a tentativa de se fazer a
superfície plana da imagem dar a maior sensação possível de tridimensionalidade, o que
a faz parecer cada vez mais com uma coisa original e não sua cópia. Assim, extinguem-
se as possibilidades de manipulação formal que se constroem a partir desta diferença
entre original e cópia e só resta para a intervenção artística o que pode ser formalizado
no objeto a ser filmado em si.
Em um pequeno e notável artigo sobre cinema colorido no “Jornal das Artes”, H.
Baer disse que a película em cores representa a concretização de anseios que já se
podiam observar de longa data nas artes gráficas:
“As artes gráficas (e a fotografia como parte delas) sempre se preocuparam com
as cores. As mais antigas litogravuras, os clichês dos livros, eram coloridas à mão.
Depois foi acrescentada uma segunda placa colorida, como no retrato de Hars Baldung
Grien ou no retrato de Ulrich Varnbühler de Dürer. Em Burgmair, há uma prancha de
um cavaleiro em uma armadura em preto, prata e dourado. No século XVIII, foram
produzidas impressões em cor com água-forte. No século XIX, as litografias de
Daumier e Gavarnis eram coloridas.”
“As cores se espalharam no grafismo preenchendo o que era uma lacuna para os
olhos. Mesmo as pessoas menos instruídas não se contentam com o preto e branco.
Crianças, camponeses e povos primitivos, preferem que o grau de cores seja o mais vivo
possível. Quem se senta em maior número na frente das telas de cinema também são
pessoas menos instruídas. Por isso, o cinema exige as cores. Elas trarão um novo
atrativo ao cinema”.
Alcançar e utilizar o filme completo não deveria ser por si só uma
catástrofe,.mas isso apenas se fosse permitido manter vivo a seu lado o filme mudo, o
sonoro, o colorido e o colorido mudo. Não há qualquer restrição ao uso do cinema
completo como substituto do teatro, pois ele pode ajudar a disseminar boas peças
teatrais, óperas, operetas, balés, danças individuais ou de musicais, entre outros
formatos de expressão teatral, levando-os para os lugares mais isolados. Ele poderia
ainda exercer uma influência benéfica sobre as outras formas de cinema ao obrigá-las a
encontrar suas características particulares e a produzir se utilizando delas. O filme
mudo, por exemplo, não deveria ter mais nenhum diálogo em forma de legenda porque
isso só se justifica no caso da ausência de possibilidade de uso do som. No cinema
sonoro, as diferenças entre a forma do filme e a forma do teatro devem ser ressaltadas,
assim como o teatro teve de se aprofundar em suas características peculiares de
exploração do texto a partir da simples invenção do cinema, reforçando o papel da
palavra dramática (foi abandonada a prática de colocar na peça todo tipo de imitação de
acompanhamento acrobático, de número de variedades ou até mesmo da projeção de
filmes durante a peça). Do mesmo modo, o cinema completo pode empurrar as outras
modalidades de cinema no sentido de buscar formas próprias.
Isso aconteceria porque, na verdade, apesar de estas formas outras de cinema
manterem alguma relação particular quando colocadas ao lado do filme completo, ou
seja, de um teatro mecânico no sentido de que imita as qualidades do real, tais formas
sempre estarão subordinadas ao cinema completo quando se pensa na função de
imitação da natureza. É neste sentido da imitação do real que o filme completo é um
avanço que supera as outras formas de cinema e que deverá substituir todas elas no que
se refere a esse papel.

Cinema, população de massa e indústria

Há uma influência violenta do gosto da população sobre a produção


cinematográfica, o que nos leva a pensar se a qualidade do cinema não apresentaria
nenhuma perspectiva de melhora e se não haveria uma dose de preconceito a respeito do
próprio gosto das massas. Soa muito pretensioso e antidemocrático apresentar posições
como esta, mas é certamente mais razoável fazê-lo para não se afastar muito da verdade
em lugar de assumir a hipocrisia de se considerar a possibilidade de convicções
fraternas brotarem das massas trabalhadoras, ou ainda de assumir um modo de pensar
segundo o qual elas se elevariam aos poucos e se aproximariam dos verdadeiros valores
artísticos, ganhando algum dia pleno entendimento a seu respeito. Há raras obras de
arte, seja na pintura, na música, no teatro, na dança, na literatura ou no cinema que
sejam passíveis de entendimento sem uma formação educacional considerável. Há um
sentimento natural inato do homem pela arte, é verdade, mas este talento potencial de
análise estética que está latente na maioria das pessoas, não foi até agora plenamente
desenvolvido. Assim não passa de um simples engano quando se apresentam em
formato popularesco, a pessoas despreparadas Beethoven ou Schönberg – e esse tipo de
situação não leva o povo a se educar, mas simplesmente mascara seu desconhecimento.
Assim, essas apresentações se transformam em muitas ocasiões, conscientemente ou
inconscientemente, em ações de dissimulação ou de desvio promovidas pela sociedade
burguesa para dissimular a falta de posses por meio da ilusão propiciada por posses
fantasiosas, meio pelo qual é possível manobrar ainda mais uma vez os fluxos reais
materiais.

Posfácio

Luzes e sombras nas páginas do livro “Filme como arte” de Rudolf Arnheim

Marco Antonio Bonetti


Tradutor, doutor em Semióptica, e professor de Teoria da Imagem da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF) e de Teoria da Comunicação na Escola Superior de
Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM).
Introdução

Bem ao gosto do cinema expressionista, o primeiro livro de Rudolf Arnheim,


produzido a partir da análise do cinema alemão mudo dos anos 20 permaneceu até agora
iluminado somente em parte, mergulhado ainda em sombras em grande medida. Apesar
de ser há muito tempo considerado um dos autores mais importantes da aplicação da
Gestalt para a análise de artes visuais, Cinema como Arte de Rudolf Arnheim, livro
lançado em 1932 em Berlim pela Editora Rowohlt, só foi reimpresso na versão integral
alemã em 1979.
Muitos pesquisadores em todo o mundo consideram o livro um clássico da teoria
do cinema, tendo tomado contato com a obra a partir de uma edição supervisionada pelo
próprio autor lançada em 1957 nos Estados Unidos. Foi essa a versão que
posteriormente ganhou tradução para inúmeras outras línguas, como francês, italiano,
espanhol e até mesmo português (Ed. 70). O que pode ser novidade para muitos, é que
todas essas traduções feitas a partir da versão de 1957 só apresentam parcela do texto
original alemão, visto que o próprio Arnheim optou, juntamente com seu editor da
Universidade da Califórnia, por retirar, da tradução para o inglês, trechos consideráveis
do original, um capítulo inteiro que tratava das “dores de parto” do cinema sonoro e
também grande parte de outros dois capítulos, um sobre o conteúdo dos filmes e outro
sobre a ideia de um “cinema total”, resultante de desenvolvimentos técnicos que
transformassem o cinema numa espécie de duplo da realidade, incorporando elementos
até então não disponíveis, como som, cores na película, projeção em 3-D.
O autor preencheu as páginas deixadas em branco por causa desse expurgo com
outros quatro artigos escritos depois de 1933, quando ele já se encontrava na Itália,
textos que tratam respectivamente do surgimento da imagem em movimento (artigo de
1933), da análise do movimento em si (1934) e por fim dois talvez mais importantes,
um sobre o surgimento da televisão (1935) e outro sobre o cinema sonoro (1938). A
partir da leitura do original alemão, percebe-se que, em vez de ampliar a compreensão
da obra de Arnheim, a troca, apesar de conduzida pelo próprio autor, acabou resultando
numa amputação da obra, e deu origem a uma interpretação daquele livro que
poderíamos considerar até mesmo como equivocada, quando confrontada com o texto
mais antigo. Explicitando em que consiste este desvio, acreditamos que é possível
contribuir em restabelecer um lugar mais apropriado do pensamento de Arnheim no que
se refere a seu primeiro livro e, como conseqüência, no que se refere ao seu pensamento
a respeito do cinema. Em alguns aspectos, é possível identificar muito claramente a
natureza deste desvio a partir da análise dos próprios trechos suprimidos nessa
transmigração da obra para os Estados Unidos. Ela se pauta por vezes em detalhes quase
inocentes como a singela substituição, num dos exemplos mais clássicos do que acarreta
a perda de cor no cinema preto e branco, das flamejantes cores preta, vermelha e
dourada da bandeira alemã (citadas na edição de 1932) pelo branco, azul e vermelho da
bandeira norte-americana (na de 1957). Mas atinge por vezes colorações de fundo mais
comprometedor, como quando abranda ou até mesmo suprime toda uma crítica formal
ao cinema de Hollywood e seu poder nefasto de aniquilamento da arte do cinema mudo,
cujo exemplo mais gritante foi a supressão de toda a crítica que fazia parte do capítulo
sobre o conteúdo dos filmes, e a eliminação do capítulo sobre o cinema sonoro.
A contrapartida do que pode ter ocorrido ali se encontra evidentemente no pano
de fundo histórico ao qual o autor esteve submetido, ou seja, um judeu intelectual de
esquerda, vizinho do Reichstag alemão incendiado pelos nazistas em 1933, que fugiu
primeiro para a Itália, depois para a Inglaterra e, por fim, encontrou abrigo seguro nos
Estados Unidos, país que o acolheu e lhe ofereceu guarida até sua morte aos 103 anos
de idade, em 2007. Mas achamos importante demonstrar que um dos resultados das
concessões que o autor porventura tenha tido de fazer seja coagido ou mesmo por
vontade própria em relação a sua obra “original” ou, talvez melhor colocando, seu
pensamento anterior, pode ter contribuído para o seu estabelecimento em um lugar
teórico equivocado quando, por exemplo, ele é visto como fortemente formalista ou
formativista, desviado dos problemas políticos e sociais do cinema, um modernista em
certo sentido paradoxal ao apresentar caráter em alguns momentos conservador, quando
se retira de contexto sua explícita rejeição aos avanços técnicos como o
desenvolvimento do cinema em cor, com tela larga ou com som, características que o
colocariam erroneamente numa espécie de contramão quando comparado a outros
autores contemporâneos seus como Walter Benjamin ou Siegfried Krakauer.
Ao analisar o original alemão, a impressão que prevalece não é que ele fosse
contra o avanço técnico, mas contra o uso que se fez da nova técnica por parte da
indústria cultural americana para promover um verdadeiro massacre contra o cinema
mudo.
Alguns desses aspectos já estão chamando a atenção de analistas estrangeiros
que se dedicam ao aprofundamento do entendimento da obra de Arnheim 26. E,
concordando com o que eles vêm fazendo lá fora, achamos que um passo primordial
para o entendimento mais apropriado do seu pensamento também no Brasil era
justamente a retomada do texto original integral, a partir de um esforço em torno de sua
tradução para as línguas em que o autor é tradicionalmente utilizado como referência
teórica, passo sem o qual o entendimento de sua obra parece estar fadada a um mal
entendido total de origem e que não se pode justificar num momento histórico muito
distinto, quase 100 anos já distante da época quando o livro foi lançado. E todo o
esforço de tradução que desenvolvi na presente edição foi justificado por esta crença.

O homem e sua época

Arnheim nasceu em Berlim, em 1904. Fez um doutorado sobre psicologia


experimental (Gestalt) em 1928. Já em 1925 havia publicado sua primeira crítica
cultural no jornal Weltbühne, para onde contribuiu principalmente entre 1928 e 1933,
porque a folha fora fechada pouco depois de seu editor Carl von Ossietsky ser preso
pelos nazistas. Já no período da Guerra, Ossietsky foi morto num campo de
concentração. A ligação de Arnheim com a Weltbühne oferece duas grandes pistas para
quem quer entender sua obra.
Primeira, que sua estréia como crítico seguia uma linha muito próxima da visão
da esquerda. O título de seu primeiro artigo “Alma na camada de prata” se encontra
num mesmo espírito tanto de ideias posteriores de Walter Benjamin – quando fala da
perda da aura na obra de arte reprodutível - quanto de “Alma e forma” de George
Lucáks. A forma e o ser humano político tinham de estar imbricados também no cinema.
A própria história do jornal ao qual se filiou indica já como Arnheim se posicionava. O
periódico nasceu antes da Primeira Guerra de um movimento de análise estética do
teatro, e se chamava Schaubühne (Palco de teatro). Passou a se chamar Weltbühne
(Palco do mundo) e ampliou sua área de abrangência para as demais artes somente em
1918. Uma de suas marcas foi ter se colocado fortemente contrário à propaganda militar
alemã da época, monarquista, que via a derrota alemã como resultado não da
ineficiência de suas forças armadas, mas sim da sabotagem por parte dos comunistas e

26
Duas obras mais recentes desfazem alguns desses equívocos. KLEINMAN, Kent; e DUZER, Leslie
(eds.). Rudolf Arnheim: revealing vision. Ann Arbour: Un. Michigan Press, 1997. HIGGINS, Scott
(ed.). Arnheim for film and media studies. Nova York: Taylor e Francis, 2011.
social-democratas dentro do próprio país. A tiragem do jornal era pequena (10 a 15 mil
exemplares por semana), mas era um veículo influente, lido pelos mais importantes
expoentes de esquerda e pelo público formador de opinião.
Na redação da Weltbühne predominavam jornalistas de origem judaica. Os
próprios editores combatiam essa associação ao judaísmo de esquerda, mas toda a
Alemanha fora da redação tinha a convicção de que o jornal era uma folha de esquerda
feita por judeus. Esse aspecto já aponta para o segundo elemento importante que se
pode extrair da análise de Arnheim no período de jornalista. A Weltbühne era de
esquerda, mas sempre se distanciou dos partidos políticos, sendo, em muitas
oportunidades, crítica feroz tanto dos comunistas como dos social-democratas alemães
(que constituíam os dois principais polos de esquerda na época). O editor Ossietsky
cunhou o termo “escrita de sabre” para definir o estilo picante de texto que o jornal
adotava, um caráter sempre cortante e crítico que marcava o jornalismo feito ali. No que
se relaciona à direita, em especial aos monarquistas pós-primeira-guerra que migraram
em massa para as hordas nazistas, o embate fora sempre violento, desde 1918, e teria
conseqüências trágicas para os redatores do jornal depois que Hitler assumiu o poder em
1933. Um dos últimos artigos de Arnheim foi sobre um poeta nacionalista Gottfried
Benn, em quem Arnheim via a inclinação ao irracionalismo nazi como oposição ao
Iluminismo. O título do artigo “Die Flucht zu den Schachtelhalmen” pode ser traduzido
em algo como “Fuga para o pasto”, já que a palavra no título remete a um tipo de grama
antigamente utilizado para alimentação de animais. Ao mesmo tempo em que se
despedia do jornalismo sugerindo aos nazistas que fossem literalmente pastar, em 1933,
Arnheim foge para a Itália e, em 1938, para a Inglaterra, dando seu último salto em
busca de segurança em 1940, quando migra para os Estados Unidos. Uma das vítimas
desta perseguição foi sua obra. Cinema como arte (Film als Kunst), lançado em 1932
em Berlim, foi perseguido, queimado e sobreviveu em raros exemplares escondidos em
bibliotecas de intelectuais isolados. O segundo livro concluído por Arnheim em 1933,
Rádio e a arte sonora só veio a público por meio de uma tradução para o inglês em
1936. E só foi publicado no original alemão em 1979.

A questão social

Em 1957, Arnheim lançou uma versão do livro nos Estados Unidos em que
suprimiu parte do original, criando “uma grande diferença entre Film als Kunst de
1932 e sua adaptação para o inglês, Film as art, de 1957.... [Mesmo amputada]... “a
última edição, foi quase exclusivamente a fonte do nosso entendimento da visão do
cinema de Arnheim no mundo Anglo-americano, apesar de incorporar somente uma
pequena porção da edição original e trazer como apêndice quatro artigos que Arnheim
escreveu posteriormente nos anos 30 após deixar a Alemanha27”.
A visão de que Arnheim não teria uma preocupação social em sua obra, mas
somente formalista ou formativista, no sentido de estar preocupado com a percepção
visual e o modo como as artes constroem com seus meios uma percepção aumentada
deriva justamente, segundo Rentschler, de que “se partiu da edição de 1957 da
Univerdidade da Califórna de Film as art, onde realmente não há nenhuma sombra da
presença do jovem jornalista e certamente de nenhuma de suas inflexões históricas ou
ideológicas28”. O analista da obra de Arnheim lança perguntas sem poder respondê-las.
Seria possível identificar aí uma repressão à crítica social? O próprio Arnheim justifica

27
RENTSCHLER, Eric. “Rudolf Arnheim´s erarly passagem bewtween social and aesthetic film
criticism” In: HIGGINS, Scoth (Ed.). Op. cit.,pág 62.
28
Idem, pág. 63.
as omissões em nome do avanço tecnológico do cinema, o que se justificaria mais
amplamente em relação ao som, à tela grande, à cor. Mas por que isso deveria resultar
na retirada da crítica ideológica? Será que a retirada resulta de uma maturidade teórica
que o distanciou das questões ideológicas? Ou será que a passagem pelo período de
McCarthy nos Estados Unidos e suas suspeitas sempre progressivas contra emigrantes
judeus da Alemanha com passado esquerdista ainda desempenharam um papel decisivo?
Rentschker diz que são puras especulações. Mas são muitos os elementos que indicam
um expurgo do pensamento crítico da versão americana do livro.
Observando como um todo o que foi suprimido, acreditamos na possibilidade do
expurgo ser ideológico. Se considerarmos apenas a justificativa dada por Arnheim na
época, de suprimir o capítulo sobre o nascimento do cinema sonoro porque a discussão
se tornara obsoleta, dado o avanço do filme sonoro, achamos que seria muito mais
coerente ter suprimido não este capítulo, mas o último “O filme completo”, onde
efetivamente se identifica uma espécie de mensagem de saudosismo para que os
defensores da arte se unam em torno de um projeto de resistência que visasse dar
sobrevida ao cinema muito já então agonizante. O capítulo suprimido, ao contrário, é
uma lição impecável a respeito de técnicas que mostram os problemas do som e como
ele deve ser utilizado no cinema. Como o som amplia a noção de profundidade. Os
problemas de ter de editar o som.
Em 1978, já distanciado das maiores turbulências da Guerra Fria, Arnheim
prefaciou a versão alemã que era novamente relançada quase 50 anos depois de aborto
prematuro do original integral. O autor parece feliz ao dizer no prefácio que “a nova
versão alemã torna o texto original acessível novamente.29” Percebe-se o carinho com
que ele se refere ao seu original. Diz que ao folhear o velho exemplar da primeira
edição da Rowohlt que ainda guardava, sentiu o aroma do modo leve de escrever
característico da Weltbühne, que se adaptava melhor ao seu estilo do que o alemão
sisudo universitário dos acadêmicos.
“Apesar de eu ter pouco antes me doutorado com os psicólogos da
Gestalt, Max Wertheimer e Wolfgang Köhler, no Instituto de Psicologia da
Universidade de Berlim com uma dissertação experimental sobre teoria da
percepção, a redação diária me atraia mais naqueles anos de juventude do que o
jargão dos laboratórios e dos textos especializados, o que me levou a permanecer
na Weltbühne entre 1928 e 1933 com Carl von Ossietzky e Kurt Tucholsky,
como redator da seção cultural e free-lance fixo. Foi a influência da Weltbühne
também que me chamou a atenção para o valor ideológico e político do cinema,
visto que já tinha clareza de que a análise formal dos meios de expressão não era
algo irrelevante – como ainda hoje se diz a torto e direito de modo certamente
ingênuo – mas sim que cada análise ideológica devia gravitar em torno da forma
de expressão.30”
Quando avançamos na leitura de um capítulo suprimido em grande medida
intitulado “O que é filmado”, vemos em cada crítica de filme passagens que ilustram o
rigor crítico político da análise de Arnheim.
“Os filmes que se destinam à grande massa de público de todo o mundo
revelam a imagem característica de mundo do espectador: os ricos e nobres são
inimigos e devem se dar mal, mas nem tanto porque seus privilégios sejam
imerecidos e sim porque nós não participamos também dos privilégios. Nós
desejamos também as vantagens, a riqueza, a moleza e a libertação do trabalho

29
ARNHEIM, Rudolf. Cinema como arte: as técnicas da linguagem audiovisual. Trad. Marco Bonetti.
Muiraquitã/Multifoco: Niterói/Rio de Janeiro, 2011 (no prelo), pág. 3.
30
Idem, ibidem.
cotidiano. Nós enxergamos nossa própria pobreza e desconforto com os olhos do
inimigo, nós culpamos a nós mesmos, e buscamos encobrir nossos pontos fracos
com cenários coloridos, porque não somos no fundo conscientes, mas sim
crentes e devotos... Nós acreditamos de longa data que há um deus amoroso no
céu. Não reparamos e lançamos contra as outras pessoas críticas racionais, mas
censuras morais, cujas regras são extraídas de um código de comportamento
estúpido. Traição, desentendimentos familiares não são para nós casos infelizes
que se dão quando pessoas cujas personalidades não combinam estão juntas
porque a natureza as conduziu a um erro de percurso. Se tratam muito mais de
crimes condenáveis que devem levar a uma condenação eterna, perdão ou
arrependimento. Pessoas que se entregam a essas condutas devem, se não
quiserem nos aborrecer, ser lançadas para fora da convivência com o mundo
burguês tradicional, não podem permanecer em nosso círculo social, mas devem
ser tratadas como criminosos, vigaristas, ou cortesãos. Um homem com uma loja
de atacados que se deixa uma vez desviar numa má conduta, mas que recua num
arrependimento sincero, pode seguir sua vida de senhor respeitável, o mesmo se
dá com mulheres e crianças. Que tipo é assim retratado? É o alienado.31”

Para Arnheim, é muito claro por que as histórias dos filmes são alienantes e não
mantém o mínimo contato com a realidade cruel do mundo.
“Isso acontece não só porque 90% da produção cinematográfica estão nas
mãos de pessoas que têm interesse na manutenção da ordem social que é
favorável a elas, pessoas que têm interesse de desviar as energias revolucionárias
e deixá-las lançarem-se contra um pára-choques. Seria impossível levar uma
produção cinematográfica para milhões de pessoas se o cinema não atendesse ao
gosto delas. A produção de filmes flerta com aquilo com que as pessoas estão
mais habituadas. Se ela é inimiga da arte e do desenvolvimento é porque ela
oferece o tipo de produto engordurado e que alimenta o ódio à arte e à
transformação em cada uma destas pessoas.32”

Como exemplo de roteiro ideológico, Arnheim cita que “Joe Dallmann escreveu
um roteiro leve que agrada o gosto do grande público. Um velho general está numa
situação financeira desastrosa de modo que cai em boa hora o pedido de casamento de
um joalheiro para sua filha. Um dia antes do casamento o joalheiro toma conhecimento
de que sua noiva ama outro homem. Isso faz com que no dia das núpcias, conclua que a
união não é possível, desista da noiva e rompa com a relação”. Irritado, Arnheim diz
que, para concluir com chave de ouro a comunhão deste mundo cor-de-rosa fraterno, o
joalheiro dá um cheque de presente ao casal, que além de poder materializar sua
vontade de estar junto ainda poderá usufruir das benesses do dinheiro. Um filme assim,
diz Arnheim, menospreza a inteligência do ser humano, mas, mais do que isso, age no
inconsciente gerando uma imaturidade emocional de satisfação com o mundo que é
conformista e conveniente para quem detém os poderes instituídos sejam políticos ou
econômicos.
Boa parte da crítica social na obra de Arnheim está colocada no quarto capítulo
do livro original, trecho que foi reduzido das 40 páginas da edição alemã para pouco
mais de 10 páginas nas demais versões. A supressão pelo autor na edição americana de
1957 de todos os momentos em que a crítica ideológica se apresenta de modo mais
contundente explicita uma atitude de Arnheim que se mostra muito compreensível
31
Idem, ibidem.
32
Idem. Ibidem.
dentro do contexto histórico em que buscamos colocar acima a vida do autor. Mas é
importante o resgate teórico do conteúdo de seu texto original mesmo depois de sua
morte para recolocar seu pensamento num local mais preciso no que se refere à tradição
crítica à qual ele também parece estar filiado.

A metodologia de Arnheim

A tese teórica central de Cinema como arte é que qualquer arte é uma forma de
expressão autônoma que se utiliza de meios materiais particulares para representar algo.
Mas sua função não é somente representar algo à sua exata semelhança, pois um bolo de
chocolate é feito de modo a ficar idêntico a outro, mas não é uma obra de arte. O papel
da arte não é duplicar algo que existe no mundo. Em mais um trecho omitido na versão
americana do livro, Arnheim explica que o naturalismo nos gabinetes de bonecos de
cera produz arrepios e não fruição estética.
“O artista não deve camuflar ou deturpar a artificialidade de seu meio de
expressão fazendo passar cera por pele humana; ao contrário, uma boa obra de
arte traz à vista as características particulares do meio utilizado de forma clara e
límpida. Se nos permitirmos ser um pouco esquemáticos, pode-se comparar o
trabalho de representação dos artistas com uma brincadeira: formar um quadrado
a partir de dez tiras de papel. A satisfação após resolver tal quebra-cabeça
encontra-se no feito e em observar a obra, mas não no sentido de admirar o
quadrado em si – que todos na vida já viram um quadrado – mas sim pelo fato de
lembrar que dez pedaços que até então tinham cada um sua forma particular
constituam agora uma só e única forma simples unidos. O que é de admirar num
desenho a bico de pena de van Gogh não é a paisagem rural que ele fixou – já
que um campo agrícola não é nada extraordinariamente incomum – mas sim que
é fantástico o fato de se poder criar a impressão óptica de um campo real a partir
de um bico de pena. Ninguém acredita ver um campo agrícola real no desenho;
qualquer um percebe os traços grosseiros da ponta da pena – mas é certo que
uma obra de arte como essa proporciona prazer estético.33”

A razão principal de Arnheim frisar esta diferença entre as coisas e seus duplos e
as coisas e suas representações a partir de outros materiais é que, no caso do cinema, o
material se apresenta num certo sentido escondido, porque o que vemos na tela parece
ser a forma das coisas em si. Mas na verdade, não é. É preciso tomar cuidado e
descobrir qual é a essência do material de expressão cinematográfico. A arte deriva,
segundo o autor, de duas raízes, uma que é a vontade do ser humano de se expressar, e
outra que é sua busca por beleza e regularidade e equilíbrio de formas. A utilização da
arte como instrumento de representação mais fiel do mundo, apesar de ter sido tantas
vezes louvada, é somente uma tendência minoritária na história da arte, a arte figurativa.
E o perigo do cinema é que seu material de produção, a película, a câmera, têm forte
tendência para o naturalismo.
A principal estratégia metodológica de Arnheim já no início de seu livro é o de
isolar o que seria justamente o material do cinema. Para descobrir o que ele é em si,
Arnheim parte de uma situação psicológica de percepção muito simples. Quando nos
colocamos em frente a um objeto da realidade, percebemos por meio da visão uma
“imagem do mundo”. Quando nos colocamos em frente ao mesmo objeto da realidade
filmado por uma câmera cinematográfica e projetado na tela, percebemos por meio da
visão uma “imagem de cinema”. Há diferenças entre a imagem do mundo e a imagem
33
Idem, ibidem.
de cinema? Quais são essas diferenças? A resposta a esta pergunta é o primeiro capítulo
do livro de Arnheim.
Para Arnheim, as diferenças primordiais são seis: 1) na imagem de cinema, a
forma como os objetos sólidos são projetados na superfície plana da tela é distinta da
maneira como eles são projetados no plano da retina porque naquela não há como
mudar o ponto de vista de observação; 2) a paralaxe, ou seja, a distância entre os dois
olhos no rosto, é capaz de oferecer imagens um pouco distintas ao cérebro que consegue
a partir desta diferença criar a noção de profundidade tridimensional, coisa que a
imagem única do cinema não consegue; 3) na imagem de cinema até então não havia
recursos capazes de captar as cores dos objetos, enquanto os olhos enxergam cor, e isso
é um dos elementos que faz com que o papel da iluminação no cinema seja muito mais
importante do que nas situações naturais; 4) as bordas da imagem do cinema impedem o
olho ver além do campo filmado, e o tamanho de um objeto na tela vai depender da
distância com que a câmera estiver dele quando for filmado (o close-up, o plano geral),
enquanto, no mundo, o cérebro compensa as deformações da perspectiva por meio dos
instrumentos psicológicos conhecidos como “regularidade de tamanho” e “regularidade
de forma” (estudados pela Gestalt), além do que os olhos, cabeça e corpo estão em
permanente movimento, “vendo” não só o que está à frente dos olhos, mas também o
que agora está atrás, mas que se sabe estar ali porque já foi visto há pouco; 5) há total
possibilidade de quebra da continuidade de tempo e espaço no cinema (por meio da
montagem de tiras de filme descontínuas) enquanto no mundo real essa quebra do
tempo ou do espaço não é possível; e 6) no cinema estão ausentes todos os demais
outros sentidos que funcionam como apoio à visão, como o sentido gravitacional que
nos indica quando estamos olhando inclinados para cima ou para baixo e que o cinema
não nos oferece.
Essas seis diferenças comprovam a enorme distância existente entre olhar
simplesmente para algo e olhar para algo que é projetado a partir da matéria do filme.
Quanto mais proveito um cineasta souber tirar dessas diferenças, explicitando cada uma
delas ou mesmo criando efeitos surpreendentes a partir da exploração criativa de cada
uma delas, mais ele estará ingressando no universo de uma arte do cinema. O que em
geral é visto por técnicos ou críticos menos dotados como uma falha, o fato do cinema
não conseguir produzir uma réplica fiel do mundo tal como o vemos é, para Arnheim,
condição si ne qua non para que o cinema possa se transformar numa arte.
O autor demonstra a partir do segundo capítulo de seu livro como alguns dos
maiores nomes da história do cinema, Chaplin, Sternberg, Feyder, Eisenstein, Pudovkin
foram artistas neste sentido. Vai desfilando as passagens de grandes cenas em que cada
um desses autores soube se utilizar de algumas daquelas seis características para criar
algo que seria impossível fora do universo da arte do cinema.
O eixo central metodológico do pensamento de Arnheim é uma rocha, e é isso
que faz seu pensamento sobreviver a esses quase cem anos. Mas há algum reparo a
fazer. Não se trata de questionar a força do que ele comprovou, qual seria a matéria do
cinema. O primeiro capítulo do livro é um clássico. Mas sim em discordar da conclusão
a que ele chegou naquele tempo a partir de sua análise. Podemos resumi-la assim: se a
arte do cinema nasce da exploração deste hiato entre a imagem do mundo e a imagem
de cinema, quanto mais a imagem do cinema se aproximar da imagem do mundo, menor
será seu campo criativo. É deste posicionamento que nasce a classificação de Arnheim
como conservador, contrário a avanços técnicos como cinema sonoro, cor no cinema,
projeção tridimensional. No capítulo dedicado ao cinema total, o próprio Arnheim
acabou caindo nesta armadilha em alguma medida, apesar de ter revisto com o passar do
tempo uma visão mais ortodoxa neste sentido. Acreditamos que o acréscimo de som, cor
e até mesmo tridimensionalidade só são capazes de insinuar uma aproximação do
cinema em relação ao real num nível muito básico de análise formal. Só o fato do
cinema sempre poder quebrar tempo e espaço por intermédio da montagem já seria
argumento suficiente para distanciar imagem de cinema da imagem do mundo tanto
quanto o chão da lua. Portanto não haveria qualquer necessidade de crítica virulenta
contra os avanços técnicos do cinema, de um ponto de vista formal e estético. A única
justificativa para a resistência a esse avanço só pode ser explicado por intermédio do
uso nefasto que a indústria cultural fez do avanço técnico para destruir toda uma arte do
cinema anterior a essas inovações. E acreditamos que é nesse lugar de defensor da arte
do cinema dos anos 20 que Arnheim deveria ser colocado. Como foi justamente na
discussão sobre a sonorização do cinema que esse debate se instalou, o fato do capítulo
sobre o cinema sonoro ter sido suprimido da obra enquanto o capítulo sobre o cinema
total era mantido resumido gerou, a nosso ver, esse desvio, de enquadrar Arnheim como
um inimigo das inovações tecnológicas. Ela não foi. Posicionou-se contrário, isto sim,
ao fato de que uma união de um cartel de distribuição de filmes formado pelos
produtores, distribuidores e representantes da indústria elétrica que fornecia os
gravadores de som matou do dia para a noite o cinema mudo e obrigou autores como
Chaplin ou Buster Keaton a migrarem para uma arte na qual não tinham a princípio
nenhum interesse, conforme fica mais evidente a partir da leitura do capítulo que foi
suprimido do livro.

Som ou simplesmente cinema?

O quinto capítulo do livro de Arnheim foi totalmente suprimido das versões


feitas a partir de Film as art. Trata-se de um prejuízo imenso pelos mais diversos
motivos.
Primeiro, porque toda a ferocidade crítica já anunciada no capítulo quarto sobre
o conteúdo do filme é aqui retomada e amplificada. Diz o autor: “a indústria
cinematográfica não tem outro motivo para tirar o filme mudo de circulação além do
aspecto comercial”. Ou ainda “O filme sonoro está aí e não há nenhuma razão para
combatê-lo, seja ele de vida efêmera ou um fenômeno duradouro. O que, entretanto, é
importante saber é o fato de que foi em razão do gosto de pessoas avessas à arte mas
com poder de pagar, ou seja, de uma anti-artisticidade inerente a uma indústria elétrica e
cinematográfica, que foi tomada do cinema mudo qualquer possibilidade de continuar
existindo34”.
No que se refere aos artistas, aponta comodismo. “Diretores e produtores
raramente se arriscam a produzir filmes que fujam daquilo que já se sabe ser do agrado
da maioria dos espectadores... É claro que todos precisavam continuar trabalhando para
não morrer de fome – mas é uma pena a velocidade com que essas pessoas se tornaram
afinadas com o espírito de transação capitalista que construía um sólido edifício
ideológico”. Para ele, os profissionais de cinema mostraram até mesmo alguma dose de
falta de consideração para com a arte cinematográfica: “Pelas declarações dos atores e
diretores nos jornais especializados se podia ter a impressão de que eles desejaram
ardentemente o lançamento do cinema sonoro por décadas para verem o cinema libertar-
se da atadura que lacrava suas bocas. Esta falta de gratidão para com um passado no
qual eles se tornaram grandes (no duplo sentido da palavra), [...demonstra...] a falta de
consideração por um ramo que eles praticaram por um longo tempo, a ausência de
sentimento por aquilo que até então eles fizeram35”.
34
Idem.
35
Idem.
Para Arnheim, a migração para o sonoro chegou a gerar absurdos. Por exemplo,
no episódio Buster Keaton, autor que foi obrigado pelos produtores a realizar filmes
falados - o mesmo problema por que passou Chaplin. Keaton foi vítima de “um
terrorismo branco contra um grande artista. Até então os artistas tiveram de se submeter
evidentemente aos desejos de seus financiadores, mas raramente havia acontecido que
uma exigência fosse tão direta e contrária ao seu trabalho, que dele se exigisse, por
exemplo, colocar música numa obra quando ele queria apenas pintar36”.
No capítulo sobre a sonorização no cinema, o autor demonstra que o fato do
microfone ter de estar próximo dos atores iria restringir o leque de opções de planos, em
especial dos planos mais abertos, no cinema sonoro. Mas também há uma análise sobre
o papel do som para a criação da sensação de tridimensionalidade no campo ou mesmo
na sugestão do extra-campo, levando muito mais longe o que a imagem sozinha já era
capaz de criar em cenas de terror, por exemplo, quando se vê o rosto em pânico de
alguém que é atacado, mas não se vê seu algoz. O som amplia esse tipo de recurso ao
constituir uma segunda fonte de informação extra-campo que se soma à imagem. Mas
também pode criar dificuldades. A primeira delas, é a simples redundância da
informação visual. Imaginem, critica ele, se fosse seguida a sugestão de um defensor do
cinema sonoro que gostaria de ver as botas dos cossacos descendo a escadaria de
Odessa no Encouraçado Potenkim fazendo ploc-ploc-ploc. Ou também o tipo de
dificuldade inédita criada pelo som, em situações como uma banda musical que se
aproxima da câmera até passar por ela e sair do quadro, quando seu ruidoso volume
sonoro permanece junto com a tela mostrando a rua vazia.

A palavra

O outro item estudado por Arnheim naquele capítulo é de uma atualidade


impressionante quanto pensamos nos avanços da televisão digital, por exemplo. Ele se
pergunta se um cinema sonoro, com cor e tridimensionalidade não deixa de ser cinema e
passa a ser teatro – isso foi dito numa época em que não se sonhava ainda falar em
teledramaturgia. “Ocorreria assim com os criadores da nova técnica o contrário do que
aconteceu com o grande navegador Cristóvão Colombo que pensou estar nas Índias
quando havia descoberto a América – os produtores de cinema acham que descobriram
uma nova parte da Terra, mas teriam encontrado apenas um novo caminho para um
lugar que já há tanto tempo é bem conhecido. 37” Este lugar é o teatro. Um palco de
espaço e tempo com cor e tridimensionalidade onde os atores representam uma peça
anteriormente elaborada como forma artística. A forma de expressão que reina no teatro:
a palavra.
A palavra pura (literária) é capaz de criar mundos ficcionais. O que acontece
quando imagens ou sons começam a se agregar a ela? O autor percebe que, num certo
sentido, há até mesmo uma concorrência negativa, visto que uma atenção do espectador
que deveria estar sendo conduzida pela palavra para universos da imaginação pura é
ofuscada por imagens que ocupam a visão do espectador. Mas nem sempre existe aí
concorrência, como nos mostra o caso do teatro, em que um texto se soma aos cenários,
figurino e os corpos dos atores em atuação. Arnheim alerta para a necessidade de um
equilíbrio muito delicado nestes casos, como tantos exemplos de óperas mal
equilibradas ou peças de teatro com recursos muito extravagantes e deselegantes são
capazes de demonstrar.

36
Idem.
37
Idem.
Uma obra de arte técnica puramente sonora poderia ser transmitida pelo rádio.
Dada a lacuna que a total ausência de imagem cria no rádio, haveria a melhor condição
possível para a existência de um verdadeiro império absoluto da palavra na criação
ficcional radiofônica. Os adventos do rádio e da televisão estariam empurrando teatro,
literatura e cinema para novas configurações e papéis. O rádio herdando o reinado
absoluto da palavra até então mais forte no teatro, e abrindo um espaço rico para a
televisão. O cinema buscando um espaço alternativo do que o teatro já oferecia de
visual, e o cinema mudo do ponto de vista de uma arte das imagens em movimento.
Arnheim passa então a estabelecer alguns modelos do que se poderia realizar de
mais positivo com a nova configuração. Primeiro, um “cinema totalmente falado”, uma
obra de origem literária que possibilitaria levar o que hoje só consegue se disseminar em
teatros de grandes cidades para obras possíveis de serem levadas a qualquer cantão
mundo afora.
Depois, um cinema sonoro em que a imagem e o som não se atrapalhassem ou
competissem, poderia servir de apoio para a composição de uma grande forma híbrida
de percepção capaz de levar além as potencialidades da imagem sozinha ou do som sem
imagens a lugares ainda não alcançados.
No término do capítulo sobre cinema sonoro, Arnheim apresenta uma metáfora
que explicita como ele trata do problema do cinema sonoro. Na verdade, ele acredita
que não existe uma arte do cinema sonoro, outra do cinema mudo e uma terceira da arte
de elaboração do som (ruídos, falas e músicas), mas somente uma única arte do cinema
que envolveria essas três “possibilidades”. A diferença entre mudo, sonoro e arte do som
seria somente uma diferença de nível mais superficial que se estabelece dependendo de
quais códigos simbólicos se encontram mobilizados num determinado instante – só
imagem, imagem com som, só som - em função de razões históricas – a ausência de
recursos técnicos que possibilitem se aproveitar do código audiovisual como um tudo –
ou mesmo por opção estética – a ideia de que a exploração do cinema mudo, por
exemplo, ou até mesmo das novelas de rádio poderia ser uma opção do artista.
Mas, independente desta opção ou restrição histórica, quando se investiga quais
são as características peculiares de uma arte do cinema, no fundo se encontraria um
resultado só, a essência da arte do cinema é o uso de equipamentos de registro de
imagem e de som. Qualquer uso de equipamentos já se revelaria então como a essência
da arte do cinema? Não. Os equipamentos de reprodução de imagem e som podem ser
utilizados com uma finalidade distinta da que Arnheim chama de arte do cinema, por
exemplo, quando simplesmente servem para reproduzir do modo mais fiel possível uma
interpretação teatral, ou quando a película é utilizada para captar a imagem de uma
pintura, ou quando o gravador registra uma interpretação musical. Em sua função de
mero registro, os equipamentos cinematográficos não exerceriam sua função estética
cinematográfica. Para se elevar a esse grau de arte, quem utiliza os equipamentos de
registro deve se apropriar da essência da linguagem cinematográfica que tem dois
campos principais, um, do controle de movimentação da câmera, com base no qual o
cineasta opta por filmar um objeto de mais perto ou de mais longe, controlando assim o
tamanho de disposição do objeto na tela e o recorte que realiza em relação ao que será
ou não mostrado na tela, e também o agrupamento de objetos que serão colocados ali
lado a lado ou um atrás do outro criando novas relações visuais; outro, os recursos da
montagem, ou seja, a exploração do fato de que o filme trabalha com um duplo
desencarnado da realidade como matéria prima, o qual pode ser livremente disposto
numa sequência criada pelo cineasta, sem ter de se prender ao contínuo espaço-temporal
que é imposto pelas coisas existentes na realidade.
A metáfora utilizada por Arnheim para explicitar como concebe o melhor uso
dos três gêneros do cinema – cinema mudo, cinema sonoro e áudio sem imagem –
Arnheim fala que áudio e imagem são uma espécie de dueto instrumental – o cinema
mudo é um piano, o áudio puro é um violino, e o cinema sonoro é o dueto. Quem já
trabalhou com composição musical sabe que na produção de um dueto com qualidade
não basta colocar o violino para duplicar a linha melódica do piano, é preciso que o
trecho apresentado pelo piano sozinho não seja completo, que ele dependa do
contraponto do violino para que a música transmita seu pleno sentido e que os dois
instrumentos se justifiquem. Caso contrário, o trabalho do violino seria redundante e
desnecessário. Mas não é pelo fato de começar a compor para duetos que o músico terá
de reaprender novas regras musicais. Ele só terá de levar em conta que cada instrumento
terá seu papel distinto na nova composição. Da mesma maneira, o cinema não tem
regras exclusivas do gênero mudo, do sonoro ou do áudio isolado. As regras
cinematográficas que se aplicam aos três gêneros, assim como as regras de composição
musical para instrumento solo ou dueto, formam um único e mesmo conjunto.
Este é efetivamente o lugar onde acreditamos que Arnheim deveria figurar.
Autores como James Andrew o classificam como um inimigo da técnica do cinema
completo. “(Arnheim)... se opõe a desenvolvimentos tecnológicos como cor, fotografia
tridimensional, som e tela panorâmica, que reduzem o impacto do cinema ao levá-lo
cada vez mais em direção à experiência natural.” (ANDREW, 2002, p 37). Por tudo que
se mostrou acima, discordamos desta visão. Ele foi um analista rigoroso que
demonstrou qual caminho deveria ser seguido quando essas inovações tecnológicas
forem efetivamente alcançadas (depois de quase cem anos, ainda nos perguntamos se
teremos mesmo algum dia tecnologias de transmissão 3D eficientes). Deveremos nos
perguntar mais uma vez se há diferenças entre este novo equipamento e a visão do
mundo para enxergar qual será a nova matéria do cinema em sua versão tecnológica
mais atualizada para criar, a partir das limitações que sempre existirão em alguma
medida, uma brecha a partir da qual a técnica deixa de ser mero instrumento de
reprodução mecânica da realidade, para se tornar algo capaz de dar forma ao que se
pretende transmitir, a fonte de onde se originam os valores estéticos cinematográficos.
No cinema mudo, a lacuna de ausência do som era preenchida por registros visuais que
ofereciam soluções particularmente criativas. Essa possibilidade se perde com o cinema
sonoro. Mas em seu lugar surge uma outra lacuna que é o fato de som e imagem não
deverem se repetir, mas poderem agregar valores a um todo terceiro: já não se trata mais
de não poder contar com o som, mas sim de impedir que ele seja um ornamento
desnecessário. Em qualquer tecnologia ainda mais poderosa de representação que
porventura seja ainda descoberta, se trata de descobrir essas brechas para transformar
cinema em arte.

Bibliografia

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