Rudolf Arnheim Cinema Como Arte
Rudolf Arnheim Cinema Como Arte
Orelha
O leitor brasileiro tem acesso afinal a uma versão integral do primeiro livro de
um dos maiores autores da teoria da imagem e da Gestalt, Rudolf Arnheim. A tradução a
partir do original alemão Film als Kunst coloca à disposição dos especialistas do
estudo de cinema características do autor ainda pouco conhecidas, visto que ele foi lido
até então em uma versão americana da obra que teve diversos capítulos mutilados se
não simplesmente suprimidos. O texto integral demonstra por exemplo uma articulação
entre seu arcabouço teórico psicológico, a Gestalt, com uma dimensão estética de
moldes modernistas, e também com uma abordagem a respeito da inserção social do
cinema, que aproxima seu trabalho à Teoria Crítica, característica que até agora mereceu
pouco destaque em Arnheim.
Esta edição traz tanto os já conhecidos dois capítulos iniciais, em que Arnheim
examina em moldes kantianos uma crítica comparada da percepção visual da imagem
do mundo em comparação com uma percepção visual da imagem de cinema, quanto os
outros três capítulos na íntegra, em que com o rótulo de análise do som no cinema, ele
faz na verdade uma ampla crítica social da submissão da arte cinematográfica ao gosto
burguês e das massas, e ainda constrói um registro histórico do momento em que o
cinema sonoro mais precário serviu como ponta de lança da indústria cultural para
promover um massacre contra a produção cinematográfica mais sofisticada dos anos 20
e 30, pondo fim ao período de ouro do cinema mudo.
Mas este livro não se destina somente a especialistas em cinema. Primeiro livro
do hoje consagrado teórico, Cinema como arte é um clássico da teoria da imagem e
contribui para o entendimento das características da produção audiovisual, numa
linguagem das mais acessíveis, oferecendo instrumentos tanto para a crítica e a análise
como também para o próprio processo de produção cinematográfica.
Rudolf Arnheim
Nasceu na Alemanha em 1904, foi redator da Weltbühne, onde desenvolvia
crítica de arte e cinema. Trabalhou em universidades americanas depois de sua
imigração. Seus livros sobre Arte, Teoria da Recepção e Teoria da Mídia, baseados na
Gestalt, qualificam-no como um dos mais influentes teóricos da arte.
Marco Bonetti
Tradutor. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, dedica-se ao
estudo das teorias da imagem desde a década de 90, quando morou na Alemanha.
Contou com o apoio para esta tradução da Escola Superior de Propaganda e Marketing
do Rio de Janeiro (ESPM-RJ), instituição pela qual obteve uma bolsa da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj) e onde lidera o grupo de pesquisa
Comunicação, Novas Tecnologias e Sociabilidade. Coordena também o grupo de
estudos de teoria da imagem e de televisão digital na Universidade Federal de Juiz de
Fora.
Quarta capa
Primeiro livro do hoje consagrado teórico Rudolf Arnheim, Cinema como arte
é um clássico da teoria da imagem e contribui para o entendimento das características da
linguagem audiovisual, oferecendo instrumentos tanto para a crítica e a análise teóricas
quanto para a própria formação de quem pretende se dedicar ao processo de produção
cinematográfica.
CAPA
Rudolf Arnheim
Cinema como arte: as técnicas da linguagem audiovisual
Já se passaram mais de 40 anos desde que este livro foi escrito em alemão e
publicado em Berlim (1932). Que ele ainda demonstre vitalidade é admirável, e também
gratificante para o seu autor. O tema com que ele se ocupa transformou-se em quase
todos os seus aspectos, e os diversos filmes que cito são, em sua maioria, datados já de
meio século atrás. Se a obra, entretanto, ainda pode ser lida com proveito, isso se deve
principalmente a dois motivos. Particularmente para o leitor alemão, ela não ficou em
evidência tempo suficiente para sair da moda. Assim como muitos dos filmes
comentados por mim foram recuperados dos porões dos produtores e distribuidores,
copiados, e restaurados - resgatando aquela antiga maestria, esmero e cuidado -, esta
análise teórica também se liga a um material que não representa um cinema velho e
ultrapassado, mas sim a obras que constituem hoje a coleção do que há de melhor na
história do cinema. A longevidade destes filmes antigos deve-se ao fato de eles
conservarem uma fonte de saber repleta de soluções originais. Porém, ainda mais
importante para a atualidade do livro é o fato de que o fundamento teórico desenvolvido
naquela época e as peculiaridades identificadas como características da forma de
expressão do filme continuam válidas e aplicáveis para todo o cinema apesar de
diversas circunstâncias terem se alterado.
O livro surgiu numa época a um só tempo desfavorável quanto aos fatores
conjunturais, mas apropriada em relação ao estágio de evolução da linguagem
cinematográfica. O incêndio do Parlamento e a subsequente fase de destruição
generalizada na Alemanha fizeram com que ele desaparecesse um ano após seu
lançamento. A partir de então, a primeira edição preservou-se viva apenas escondida
numas poucas bibliotecas e antiquários. Ainda em 1933, em Londres, uma tradução
inglesa, infelizmente muito ruim, esgotou suas vendas. Ao mesmo tempo, Cinema
como Arte ganhou muita importância por representar uma época do cinema que
terminava. Não foi somente uma transição histórica, mas também, em particular, uma
transição na história do cinema, que vivia o fim de um rico período de desenvolvimento.
Após o apogeu do filme mudo, o cinema falado levou a toda parte do mundo uma
reviravolta muitas vezes destrutiva, que fez o bom cinema morrer na Alemanha, dando
lugar a um movimento de barbarismo crescente de forma e conteúdo. Assim minha
tentativa de descrever e defender a qualidade dos métodos de expressão
cinematográficos da época foi, ao mesmo tempo, uma espécie de registro para a
posteridade do valor de uma arte em agonia de morte - situação que não permitiu
aflorarem novas obras que dessem o devido destaque às propriedades positivas daquela
então nova forma de arte.
Em meados da década de 50, quando eu e meu editor americano da Universidade
da Califórnia preparávamos uma nova edição, convenci-me de que a primeira metade do
livro permanecia totalmente válida graças ao seu rigor sistemático. Ao mesmo tempo, a
estrutura do capítulo O conteúdo dos filmes determinando as relações de tempo e espaço
do cinema podia ser aproveitada somente em parte, e pareciam obsoletos os antigos
debates das dores de parto do filme sonoro. Assim, na edição americana, apresentei
metade do texto original complementando o texto com quatro novos artigos que havia
escrito entre 1933 e 1938 para uma enciclopédia de cinema planejada pelo Instituto
Internacional de Ensino de Cinema da Sociedade das Nações1 em Roma. Esse
empreendimento editorial projetado para ser grandioso, ao qual me associei como
colaborador, foi abandonado com a saída da Itália da Sociedade das Nações e, a partir
de então, os artigos destinados a ele puderam ser utilizados pelos autores em distintas
publicações. A edição americana Film as Art serviu de base para traduções nos mais
importantes idiomas nos anos 60 mesmo apresentando um pensamento que havia sido
desenvolvido antes de 1932. A nova versão alemã torna o texto original acessível
novamente.
Quando folheei novamente um dos exemplares que ainda guardo da primeira
tiragem da Editora Rowohlt, notei, em primeiro lugar, o modo leve de escrever
característico da minha contribuição na revista Weltbühne, que se adaptava melhor ao
meu estilo do que o alemão sisudo, universitário, dos acadêmicos. Eu havia pouco antes
me doutorado com os psicólogos da Gestalt Max Wertheimer e Wolfgang Köhler, no
Instituto de Psicologia da Universidade de Berlim, com uma dissertação experimental
sobre teoria da percepção. Contudo a redação jornalística diária me atraia mais naqueles
anos de juventude do que o jargão dos laboratórios e dos textos especializados, o que
me levou a permanecer na Weltbühne entre 1928 e 1933 com Carl von Ossietzky e Kurt
Tucholsky. Eu era redator da seção cultural e free-lance fixo. Foi a influência da
Weltbühne que aguçou minha atenção para o valor ideológico e político do cinema,
apesar de eu sempre ter tido a clareza de que a análise formal dos meios de expressão
não era algo irrelevante – como ainda hoje se diz a torto e direito de modo certamente
ingênuo –, mas sim que cada análise ideológica devia gravitar em torno da forma de
expressão.
Como acontece a muitas obras de iniciantes, eu descarreguei sobre o cinema
muitas ideias que tinha no coração a respeito da arte em geral. Apesar de eu me
expressar hoje de um modo menos intransigente, Cinema como Arte já revela em
forma embrionária parte do que desenvolvi em trabalhos posteriores sobre a arte e o
pensamento visual. As opiniões dos jovens críticos de cinema também apontam ser
fundamental ver o filme como uma forma de arte visual, a despeito de esta abordagem
ter tanto pontos positivos como negativos. Os mais profundos e mais peculiares
resultados de observação sobre os filmes de hoje ainda partem da análise dos planos, e
não da palavra falada. Ninguém nega que o diálogo agrega valor ao desenvolvimento
narrativo quando integrado de forma precisa e breve. Porém a grande imagem sobre a
tela permanece, como sempre, no cinema, no comando prioritário da percepção e na
condução da ação artística, não saindo impune quem diminui o papel do visual
simbólico em favor de aborrecidos falatórios, sejam eles servidos com a leveza do
sotaque francês ou com o peso do sueco. A inserção da cor acrescentou muito pouco à
forma de expressão cinematográfica por estar solidamente amarrada a uma fidelidade
1
Associação internacional com sede em Genebra que funcionou de 1919 a 1946 com o objetivo de
promoção da paz.
extrema com a realidade, mas fortaleceu a possibilidade de exposição narrativa no
filme. Já em relação à projeção em três dimensões, acredito hoje que ela trará somente
mudanças muito cosméticas, sendo tão boa para a produção cinematográfica quanto a
superfície bidimensional, embora seu uso ainda dependa do surgimento de técnicas que
a tornem uma prática de autoria mais manuseável. Em boa medida a história da pintura
e do teatro já anteciparam as possibilidades da utilização da terceira dimensão da
imagem.
Embora os princípios do livro permaneçam inalterados no seu fundamento, eu
ampliaria hoje uma teoria do filme em pelo menos dois aspectos. Inicialmente eu
sustentava uma visão predominantemente negativa sobre o realismo mecânico do
quadro fotográfico. Meus ataques a esse aspecto do cinema já mostravam naquele
tempo que, ao contrário do que uma análise superficial poderia apontar, ninguém é
condenado à escravidão submetido pelo aparato cinematográfico como se não houvesse
caminhos alternativos. Pelo contrário, existem inúmeras variações de possibilidades
criativas abertas pela câmera. E é isso mesmo. Foi comprovado de lá para cá que a
montagem dos diretores a partir da matéria-prima produzida pela captação mecânica
óptica espontânea constitui uma inacreditável potência cultural criativa dos planos
cinematográficos. Isso foi muito bem demonstrado no livro sobre teoria do cinema feito
por Siegfried Krakauer. Ele também viu que esse instrumento não deve ser combatido, e
sim potencializado no que é de mais eficaz, ou seja, quando a matéria-prima fílmica sem
forma dá base a um novo saber que nos explica o mundo ali, diretamente, como uma
meia forma, aberta e sem fim. O crítico francês André Bazin também se pronunciou
neste sentido.
Um segundo complemento também me pareceria hoje importante. Para preparar
Cinema como Arte, descrevi anos a fio num pequeno livro preto, que ainda hoje
conservo, episódios memoráveis de filmes, como se ele fosse para mim um zeloso
crítico de cinema, embora às vezes também reconduzisse ao meu juízo trechos de
pobres filmes medíocres. Quando reuni exemplos suficientes, debrucei-me sobre eles
para desenvolver uma teoria. Não foi só a partir de filmes, entretanto, que construí
minha visão sobre cultura, mas a partir da pintura e das artes plásticas, portanto sobre
formas de expressão de imagens estáticas. E assim minha maneira de trabalhar
representou uma novidade na Teoria da Arte Visual, pois considerava o filme como um
ordenamento enfileirado das cenas, com muito destaque para as situações estáticas em
meio às quais o fluxo da narrativa transcorria pairando sobre elas e só então construindo
as relações. Hoje, eu optaria por entender o filme, como é costume dizer, como uma
sinfonia do todo e analisar cada uma daquelas miniaturas valiosas como momentos
extraordinários dentro do transcorrer da narrativa.
Por fim, devem-se presumir aqui no mínimo duas alterações fundamentais na
natureza do cinema. O desenho animado encontrava-se, naquele tempo, ainda em seus
primórdios. Certamente os primeiros filmes de Disney - aquelas geniais transcrições de
antigos livros ilustrados para populares desenhos de animação -, demonstraram as
possibilidades de uso de forma e cor dessa espécie de quadros com as tintas em
movimento, que começou já nestes desenhos pioneiros a quebrar a rotina da indústria do
entretenimento com experimentos extraordinários, como os do filme Fantasia, em que
se demonstrava a possibilidade da produção de uma imagem animada abstrata. Disney
trabalhou junto com Oskar Fischinger, que já havia criado curtas musicais alemães
recheados de danças abstratas. Por outro lado, foram empreendidas pesquisas
igualmente nos anos 20 por Richter, Eggeling e Ruttman, mas foi nos anos posteriores
que começamos a ver um desenvolvimento técnico muito promissor ao qual hoje se
agregam os recursos de informática e as abstrações construídas sinteticamente sobre o
amparo da televisão.
O desabrochar de uma arte de vanguarda inteiramente impopular, intelectual, e
de elite foi resultado de uma outra novidade com a qual, meio século mais cedo,
ninguém poderia sonhar, o desenvolvimento de um aparato técnico do qual os artistas se
apropriaram como instrumento de criação. Houve uma espécie de libertação do cinema
em relação à indústria do entretenimento e ao controle político, o que resultou num
fecundo desenvolvimento de uma arte cinematográfica sem compromissos que se
propagou do mesmo modo sem fronteiras como já circulavam as outras artes visuais
descoladas da indústria cultural, possibilitando alcançar um desenvolvimento estético,
social e econômico não somente por meio da produção de filmes como também pelo
desenvolvimento de teorias do cinema.
Rudolf Arnheim
Ann Arbor, Michigan
Introdução
Ou seja, pode ocorrer a alguém que durante uma apresentação de uma tocata do
mestre de capela barroco Johan Sebastian Bach fosse “posta em perigo a ordem ou o
direito públicos”; fosse “ferida a sensibilidade religiosa” fosse “exercida uma ação
gritante ou imoral” e até mesmo que fosse “posta em perigo a visão alemã ou a relação
da Alemanha com estados estrangeiros”.
Não há como desconsiderar que essa atmosfera negativa em torno do cinema
consolidasse uma má fama que ainda hoje o acompanha na maioria dos círculos das
pessoas cultas. Elas não perdoam a sua origem simples nem a digressão dos primórdios
do cinema. E seria justamente essa velha geração que deveria conferir legitimidade à
arte do filme, porque o controle da cultura de massa está em suas mãos. Minha jovem
geração foi de modo muito irregular à escola nos anos de guerra e o pouco que aprendeu
foi segundo o ponto de vista de que interessa mais o que é destruído hoje do que o que
foi construído ontem. Até mesmo por esta razão, para muita gente jovem, não custa
muito ter entusiasmo pelo cinema, já que ele parece não vir de um lugar longínquo. Os
jovens simplesmente o aceitam na sua atualidade. Este livro pretende mostrar aos jovens
que a arte do cinema não caiu dos céus, mas que se construiu a partir de regras e
princípios precursores tão sólidos como os de todas as outras artes. Talvez isso estimule
muitos a buscar este conhecimento da tradição não só do cinema como de todas as
outras artes, com mais entusiasmo do que hoje é comum ocorrer quando buscam
informações sobre as grandes épocas e as grandes torcidas dos jogos de futebol.
O livro pretende mostrar, por sua vez, aos mais velhos que os filmes são
estudados ou poderiam ser estudados com a mesma utilidade com que são comumente
analisadas as obras das artes tradicionais, ou seja, que tanto se pode falar sobre Ticiano,
Cézanne, Barroco e pintura ao ar livre como se pode falar, com a mesma sobriedade,
sobre Charlie Chaplin, Greta Garbo, e técnicas de edição e mobilidade de câmera.
Talvez assim, eles possam ir ao cinema sem preconceitos e consigam fruir melhor sua
arte. Além de se enriquecerem culturalmente. Com certeza, há também, entre os “mais
antigos” muitos que viram filmes magistrais russos ou americanos com entusiasmo e
prazer e que sabem que não deve jogar no mesmo tacho Buster Keaton e Harry Piel,
Asta Nielsen e Gerda Maurus, mesmo que eles possam ser encontrados em salas de
exibição vizinhas. Muitos, entretanto, vão ao cinema ocasionalmente e
indiscriminadamente, sem se preocupar com a programação. Eles não conhecem os
bons atores e escolhem o filme na esquina mais próxima numa noite monótona. Depois
eles voltam para casa às 11 horas cheios de desdém e asco. Outros elogiam um
Reinhardt, mas quando alguém pergunta sobre o que era o filme, dizem simplesmente:
“se passava à beira do Reno...”, “um drama original em 12 atos”, ou, “à frente do
divertido segundo ato `Bananas comportadas´, estava no papel principal um velho ator
cômico cânone do humor”. Num máximo de franqueza, outros lançam injúrias contra o
cinema, onde juram nunca mais por os pés. Estes dizem que não vão mais ao cinema
como quem diz que não vai mais a um bar, mas esquecem que a relação entre o filme e
o cinema é a mesma que a de uma boa ou uma má bebida e o estabelecimento que a
serve.
O conteúdo que se segue poderá ajudar a todo aquele que prefere ter nas mãos
um livro em vez de um ingresso de cinema, ou àquele que entende melhor um texto do
que uma cena de filme. Eles poderão aprender que a capacidade de transmitir uma trama
com profundidade, uma transmissão com profundidade espirituosa, não é exclusividade
da palavra, mas que também é permitida ao cinema. O leitor deverá perceber que isso
depende menos da “ação” (seja kitsch ou razoável) do que do cuidado com a fotografia,
com cada enquadramento, cena, representação e corte. Como Stendhal dizia: “não há
nada de mais original e verdadeiro do que os detalhes!” Importa menos a uma arte de 25
anos de existência quantos trabalhos impecáveis ela produziu: o que importa é quanto
ela conseguiu encantar ao explorar as possibilidades criativas dos aparelhos de
filmagem neste seu princípio.
A nova geração não tem nenhum motivo para desdenhar do cinema. Ela vê que
surge muita coisa ruim e pouca coisa boa no cinema, mas isso ocorre com qualquer
outra arte também. Ela vê a velocidade do desenvolvimento e a vitalidade dos
empreendimentos da indústria cinematográfica, o que é interessante. Nós já não
vivemos mais a primeira grande era do cinema alemão. Não nos era permitido ir ao
cinema quando Lubitsch ainda filmava na Alemanha, quando Emil Jannings interpretou
o rei “Henrique VIII” e Asta Nielsen fez “Hamlet”. Com isso, não estou dizendo que
respeitávamos totalmente essa proibição. Não havia nas grandes cidades quase nenhum
garoto de 16 anos que não fosse ao cinema; e também que não evitasse
propositadamente as programações liberadas para público infantil que eram chatas de
matar, dramas patrióticos da Alemanha dos grandes tempos ao lado de filmes
considerados, não se sabe por quem, entusiasmantes e artísticos (imagine como era um
filme com o título “A vida divertida do Senhor Hamster em Akkerfeld”). Por isso,
ludibriávamos, com um chapéu de adulto encobrindo o rosto, o porteiro, pedíamos com
voz rouca um bilhete para as primeiras filas e então contemplávamos assassinatos e
prostitutas, bêbados e policiais, salões de milionários, sedutores e invasões, celas de
presídios, e toda ordem de selvageria que fazia mal eventualmente aos nossos olhos,
mas não aos nossos espíritos. O cinema alimentava nossa sede por maravilhas com
aquelas fantasias que os jovens adoram e buscam de alguma fonte que as possa fornecer.
E assim surgiu uma gratidão em relação ao cinema do mesmo tipo que nós temos pelos
nossos livros de infância, uma feliz lembrança das malcriações em Max ou Moritz2, ou
pelo velho criminoso judeu de Oliver Twist. Ainda hoje vamos de vez em quando aos
cinemas de 80 centavos de marco na esquina mais próxima e sentimos prazer e comoção
com “A noite macabra de Lord Gray” e “A vertigem do pecado”.
Já nos tornamos mais capazes de assimilar intelectualmente o cinema e ele
tornou-se mais capaz de encantar. Paul Wegener dirigiu e atuou pela segunda vez em
seu “Gollem”, Fritz Lang deixou a “Morte cansada” caminhar sobre a tela branca num
silêncio fantasmagórico e seu enigmático “Dr Mabuse” viver sua rumorosa aventura em
2
Título de um desenho em quadrinhos alemão do século XIX que foi precursor dos commics norte-
americanos. Também foi o apelido dado no país, respectivamente, ao francês Max Linder - o mais
conhecido astro cinematográfico anterior a 1914 com suas séries de pastelão Max Condecorado, Max
Fotógrafo, Max Virtuose - e seu principal concorrente, Rigadin - que ganhou diversos apelidos em países
distintos, Moritz na Alemanha.
um refinado trabalho de filme policial. “Dr Caligari” abriu as portas para um “Gabinete
das Figuras de Cera” e, após a reabertura das fronteiras aos filmes estrangeiros, vieram
Charlie Chaplin, Fatty e centenas de outros humoristas desconhecidos cujos automóveis
explodiam como caixas de truques mágicos, barbudos que davam com cassetetes nas
cabeças uns dos outros. As grandes companhias de filmes americanas com direção e
fotografia altamente requintadas, traziam uma atuação comportada de seus mocinhos,
que levava os espectadores alemães a dar de ombros, porque causava uma primeira
impressão de serem más histórias, kitschs sem qualquer valor. Seguiram-se, como
prazeroso refinamento da cinefilia, as excepcionais atuações dos vanguardistas
franceses, que realizaram exercícios sobre as possibilidades das câmeras, ricos de
inovações e de boas ideias, expedições no reino dos meios de expressão até então ainda
não desbravado. Os grandes filmes russos alcançaram, por fim, sem qualquer concessão
a atenuações ou falsa moral, um primoroso domínio dos recursos cinematográficos,
além de mostrar a beleza dos rostos camponeses e das paisagens rurais. Todas estas
iniciativas lançaram ar fresco nos estúdios onde a arte do cinema ainda era conduzida a
partir de um interior estéril. Lentamente construía-se uma tradição para o filme. Foi
quando o desenvolvimento do cinema falado pôs tudo abaixo e as pessoas que faziam
cinema tiveram de se lançar com afinco ao trabalho de demonstrar que o cinema não
estava morto.
Em mais uma das fantásticas e frutíferas manifestações da vida moderna,
fortaleceram-se muito rapidamente as críticas cinematográficas. Muito foi escrito de
elevado e de brilhante sobre os filmes, mesmo que, em sua maioria, não pelos críticos
de cinema, os quais tinham muitas razões para isso, mas notoriamente muito pouco
conhecimento. Ainda ocorre, em especial nos jornais das pequenas cidades, que a crítica
seja escrita como uma contrapartida à inserção comercial paga pelo distribuidor do
filme na seção de anúncios. Nas grandes publicações se encontra também toda sorte de
críticos que vêm do teatro ou da literatura, sem qualquer intimidade naturalmente com
as particularidades da nova forma de arte, e comumente sem conhecimento dos recursos
técnicos. Eles tanto escreveram coisas inteligentes como considerações inúteis; sem
falar dos prosadores descuidados, com seu belo discurso agradável que cai bem aos
corações, mas que não sustenta uma reportagem mais criteriosa. Deveria se supor que as
boas obras críticas alimentassem um relacionamento não tão recente. O amante do
cinema alegra-se com elas, enquanto os adversários do cinema querem que elas os
conduzam sistematicamente e em profundidade ao entendimento dos quadros animados.
Aqui nesta obra, nem brilhantismo nem elevação do pensamento estão em jogo. No que
diz respeito ao livro, cabe cumprir seu trabalho. O filme será tratado em cada página na
linguagem mais clara, citando as coisas mais palpáveis e mundanas possíveis. Se, apesar
disso, persistir algo mais difícil de entender, assim se dá não apenas pela falta de dom
do autor, mas também pela dificuldade de um tema sobre o qual nem a psicologia nem a
estética obtiveram alguns indispensáveis esclarecimentos até agora. O próprio
conhecimento ainda é precário, mas trabalhar sobre um solo ainda pouco explorado,
embora seja emocionante, é desafiador tanto para o autor como para o leitor.
Na literatura mais importante sobre estética do cinema, devem-se citar os
trabalhos de Bela Balázs, além de Panorâma do Cinema, de Leon Moussinac e
Argumento e montagem e Diretor e Ator no Cinema ambos de Pudovkin, esses
últimos dois, pequenos escritos que contêm muito material prático. No resto, como
sempre em estética, devem-se analisar as manifestações dos artistas em si e, na verdade,
assim como elas, os problemas e detalhes do trabalho prático, as chamadas “perguntas
técnicas puras” altamente instrutivas.
Muitos criticarão, ao menos antes de ter lido o livro até o final, que não há
nenhuma ilustração na obra. Um livro sobre cinema sem imagens parece certamente
uma contradictio in adjecto. Acontece que não seriam muitos os pontos de nossas
especulações para os quais seria fundamental uma demonstração por imagens. Por outro
lado, seria bom localizar e ampliar determinadas imagens de certos filmes. A obtenção
destas imagens tropeça, entretanto, nas maiores dificuldades3. O que se pode encontrar
nos respectivos estúdios está submetido às regras das assim chamadas poses oficiais, as
quais naturalmente quase nunca possuem os enquadramentos que se quer e que, de
resto, já foram reproduzidas por quase todas as revistas à exaustão. A perspectiva de
publicar imagens sem muita relação com o texto, por ter de cumprir uma restrição
primitiva levou-nos a uma posição inversa. Já se tornou demasiado comum colocar uma
imagem lá onde a compreensão falha. Nosso tempo está doente certamente de uma
epidemia da imagem, e pode-se dizer que uma preguiça mental geral ainda sairá
fortalecida por isso. Mesmo em livros sobre filmes que não pretendem ser somente
reprodução de ilustrações, mas que propõem abordagens mais teóricas, encontram-se
muito comumente, entre uma montanha de imagens, poucas linhas de texto colocadas
comedidamente, decorativas, formando poucas contribuições intelectuais. Por isso,
optamos por uma oposição a esta mania, assim como a um tipo de saber gerado a partir
de aforismos desconectados, e à busca de convencimento a partir de opiniões não ditas.
Que boa parte do discurso neste livro seja a respeito dos órgãos dos sentidos,
olhos e ouvidos, e a respeito das características técnicas e psicológicas da câmera e da
projeção na parede – com muito pouco a respeito da “Metafísica” e da “Filosofia da
Cultura”, do “Mistério da Artisticidade” e da “Irracionalidade das qualidades estéticas”-,
isso é resultado das convicções mais profundas do autor. A elas, soma-se o fato de que a
arte, em maior ou menor medida, manifesta-se como uma coisa compreensível, terrena e
concreta, assim como as demais coisas deste mundo, e de que o único caminho possível
para o entendimento da arte é considerá-la a partir das descobertas da psicologia dos
sentidos, encarando as artes audiovisuais como uma forma refinada do ver e do ouvir.
Quem toma por simplório o funcionamento cotidiano dos sentidos em suas funções
corriqueiras, em oposição radical a uma sensibilidade excepcional da arte, tem uma
concepção errada sobre ambas as situações e se fecha para uma visão unificada muito
esclarecedora, que aflora quando se considera a estrita ligação entre elas. É verdade que
o abandono de um fundamento mais filosófico pode nos afastar dos problemas mais
profundos do mundo. Mas ocorre, tanto na estética quanto nas ciências naturais, que os
problemas complexos nem sempre sejam tão terrivelmente importantes assim,
problemas a cuja hermeticidade os filósofos aludem sempre triunfantes como, por
exemplo, a compreensão das individualidades. Mas agindo assim, ao menos, não se
corre o risco de elevar ao posto de primeira importância algo que está mais para a casa
do irrelevante, armadilha da qual se libera quem conhece o que constitui a última
simplicidade. Compreender o elementar já é um excepcional e grande trabalho. Privar o
compreensível por veneração do incompreensível felizmente não é o objetivo de todo
mundo.
Junto com a formação cinematográfica tradicional, ver sempre filmes, conversar
regularmente com apaixonados pelo cinema sobre assuntos da sua especialidade, ver
algumas vezes o trabalho em estúdio e, finalmente, manusear pelo menos uma vez uma
câmera e editar um filme – ao lado deste conhecimento todo sobre o filme e sua
produção, o que ajudou a constituir este livro foi certamente o conhecimento prévio da
moderna psicologia experimental. Muitos críticos evitam este caminho de aproximação
3
Felizmente para esta edição brasileira os limites passam a ser contornados com o DVD que acompanha a
tradução da obra.
teórico do cinema. Eles não percebem que fundamentam silenciosamente seus trabalhos
numa outra determinada visão psicológica, que é o que se tem visto atualmente, e que
esta teoria psicológica é muito popular para as pessoas com instrução, tida como
verdadeira, mas que já se sabe ser tão ultrapassada como a mecânica atômica ensinada
nas escolas do século passado. Muitos tratados estéticos tornaram-se sem utilidade por
este motivo. Quando se usa uma teoria errada a respeito do simples ato de olhar, torna-
se impossível poder esclarecer corretamente algo complexo ou interpretar esteticamente.
Com seriedade, mas a partir de palavras leves, cabe à Estética derivar leis da arte
a partir da observação das qualidades e do caráter de suas obras. Será mostrado, no
segundo capítulo, que a filmagem nunca é uma simples reprodução fiel da realidade e
serão esclarecidas as diferenças entre uma “Imagem do mundo” e uma “Imagem de
cinema”. Essa diferença, vista até agora como uma fragilidade da técnica do cinema,
constitui, ao contrário, sua maior potencialidade para formar e para explicar a realidade.
É o conteúdo do terceiro capítulo. A bem dizer, sem esta “fraqueza”, nascida de uma
visão que compara a arte com a realidade, a própria arte não seria de modo algum
possível. No quarto capítulo será mostrado como se pode criar não somente a partir dos
recursos da câmera de gravação e dos rolos de filme, mas também através da escolha de
o que será filmado, o modo como a forma artística é aplicada ao conteúdo significado.
Uma aplicação destes princípios sobre o filme sonoro constitui o quinto capítulo, e um
breve prognóstico a respeito do futuro do cinema, o último.
É importante justificar por que demos tanto espaço para a análise do filme mudo
em nossa investigação.
Vivemos sob tal tirania das empresas cinematográficas, que se tornou raro tratar
dos filmes mudos, que já não se veem mais. Mas eles ainda existem, mesmo que não
tenham importância comercial para as empresas. Em lugar nenhum na história das
outras artes alguém pensou em condenar ao esquecimento épocas passadas e seus
mestres. Ao contrário, vemos, em quase todos os domínios, uma grande valorização do
passado em relação ao presente - e isso com justiça, pois boas obras de arte não
envelhecem, além de que o longo passado contém mais bens do que o curto presente. Os
bons filmes mudos dormem nos arquivos, mas não estão mortos, mesmo que hoje não
sejam mais exibidos ou não entrem em cartaz. Eles serão resgatados futuramente por
seu valor, e compensa analisar seus méritos certamente. Não somente porque o filme
mudo representou uma fértil nova forma estética, mas também porque nasceu, a partir
do seu desenvolvimento, todo um novo conhecimento para a realização do cinema em
geral – mesmo que ele não seja mais exibido (para a estética não importa se algo existe,
mas somente se ele pode existir).
Uma pesquisa rigorosa do filme mudo, além disso, contribui muito para o
esclarecimento da situação do cinema falado. Cinema mudo e cinema sonoro são
evidentemente coisas distintas, mas há, até agora, um reduzido número de bons filmes
sonoros, o que torna um pouco fantasioso esperar descobrir regras estéticas a partir
deles, enquanto que, para uma estética dos filmes mudos, existe um manancial
disponível para análise. Recomenda-se assim um método indireto de exame do filme
sonoro, não isoladamente, mas sim a partir do filme mudo e, quando preciso,
confrontando os dois. Justamente assim se comprova que os meios de expressão
desenvolvidos no cinema mudo no âmbito visual foram transferidos para o cinema
sonoro. Portanto, conserva-se o poder de esclarecimento do segundo a partir da análise
do primeiro. Isso é muito claro em relação a princípios muito importantes nascidos nos
filmes mudos (algo da montagem e da estruturação dos contrastes). Se este paralelo
permanecia restrito à análise do visual, é claro que pode ser transportado para o jogo
mais amplo da imagem e do som. Surgem então métodos e fundamentos muito gerais - a
partir dos quais se pode estabelecer um questionamento estético do cinema, rico em
lições para o entendimento do filme sonoro mesmo quando o discurso é diretamente
voltado ao cinema mudo. Tudo depende mais da forma de enunciar o problema do que
de encontrar a solução, visto que a forma de problematizar em todas as artes é sempre a
mesma (apenas as respostas é que não o são!).
Por esse motivo podemos esperar de nosso livro que tudo o que foi dito sobre o
cinema sonoro tanto quanto o que foi dito sobre o cinema mudo seja útil e atual. Foi
consenso geral até agora que as teses dos teóricos da arte, sejam válidas ou não,
exerceram grande influência sobre o trabalho dos artistas. Por outro lado, as teorizações
sobre os trabalhos de arte encontram, em cada época, sua ruína a partir das novas obras.
Ocorre um fato inédito na história da arte até os nossos dias, uma marcha militar de
produção de filmes sonoros que fez aflorar um curso de produção artística totalmente
destituída de orientação teórica. Filme mudo ou sonoro? Filme falado ou falatório?
Montagem ou naturalismo? Sincronismo ou assincronismo? Perguntas enunciadas em
alto e bom tom cujas respostas podem ser dadas não somente pelos diretores, mas
também pelos teóricos. E o teórico que direciona seu trabalho para o campo da estética e
que examina o que já está feito, se alegra quando é útil para a determinação de um
porvir a partir do seu trabalho.
PRIMEIRO CAPÍTULO
IMAGEM DO MUNDO E IMAGEM DO CINEMA
Vamos pensar num objeto qualquer bem específico da realidade óptica, por
exemplo, um cubo. Deposito inicialmente este cubo à minha frente, inclinado sobre uma
mesa, e me posiciono em relação a ele de tal modo que eu só possa ver um lado dele. Eu
vejo então um quadrado □. Não posso deduzir a partir deste ângulo que o que está ali à
minha frente é um cubo. Eu vejo somente uma superfície de quatro lados. A causa:
nossos olhos, do mesmo modo que a lente fotográfica, têm um determinado ponto de
vista e enxergam somente o trecho do espaço óptico que não se encontra encoberto a
partir dali. Do modo como o cubo repousa neste momento, cinco das suas faces estão
encobertas pela sexta face e, por isso, só se vê a primeira. Essa mesma face quadrada
que vemos poderia muito bem recobrir coisas diferentes que não fossem um cubo – ela
poderia ser a base visível de uma pirâmide deitada, ou poderia ser simplesmente a
superfície de uma folha de papel cortada como um quadrado, sem nada por trás, sem
profundidade – de modo que o ângulo escolhido para esse cubo não me dá a imagem
característica de um cubo.
Essa constatação é certamente importante. Para eu representar fotograficamente
um cubo, não é suficiente que eu deposite um objeto “cubo” de verdade no campo
visual da minha câmera. É mais importante qual ponto de vista eu tomo dele e,
consequentemente, de qual posição ele será visto. O ângulo que escolhemos até aqui
transmite mal a ideia do cubo real. Já um outro ângulo mais elevado e enviesado do
cubo seria mais representativo. Ele exporia três faces do cubo e a relação entre as três,
ou seja, mostraria o suficiente para revelar bem claramente qual é o objeto representado.
O mundo visível está cheio de objetos no espaço, mas o espaço visível aparece
para os nossos olhos (assim como para a câmera) em cada momento somente a partir de
um único determinado ponto de vista. Por outro lado, como só podem ser vistos os raios
de luz projetados em linha reta desde os objetos até os olhos ou a câmera, essas
impressões são captadas ou vistas como um plano na retina ou na película fotográfica.
Disso decorre que a produção de uma simples cópia fotográfica da imagem do mais
simples objeto não é um simples processo mecânico, mas sim algo que deve ser
construído.
No ponto de vista II (vemos três lados do cubo) está contida mais realidade do
objeto “cubo” do que em I (uma face, como um quadrado). Podemos dar como motivo
disso que a vista II mostrou mais partes do cubo do que a vista I, ou seja, em vez de um
lado, três lados. Mas não se trata, na maioria dos casos, somente de quantidade. Não
basta encontrar um determinado ângulo que contenha mais quantidades da superfície
para representar melhor um objeto. Se fosse assim, poderíamos concordar que a
produção de imagem fosse uma atividade bastante mecânica, a qual se deixaria
solucionar por cálculos. Mas não. Para encontrar a imagem característica, não há
nenhuma fórmula; aquela depende de sensibilidade. Se um determinado homem de
perfil parece “mais com ele mesmo” do que de frente, se a parte de dentro da mão ou a
parte externa é mais significativa, se uma determinada montanha é filmada melhor a
partir do norte ou do oeste, tudo isso são coisas que não podem ser calculadas, mas
devem ser sentidas.
Visto que a imagem fotográfica não permite que esse ponto de vista seja alterado
a partir da movimentação dos olhos em relação à imagem – diferentemente do que
ocorre quando o cubo está à nossa frente -, deve-se questionar aquele que chama
depreciativamente a autoria de imagens do cinema como uma atividade mecânica,
porque já desde o mais simplório dos casos, já na reprodução fotográfica de um simples
objeto, é requerido um sentido de realidade para que a imagem seja reconhecida como
forma característica de determinado objeto, uma inteligência que passa muito distante
de um fazer mecânico!
Se esse sentido em si tem algo a ver com a criação artística, não é muito fácil
dizer. Ele é utilizado em muitos trabalhos “não artísticos”, em um sem número de
representações simples de objetos. Pode-se, entretanto, questionar se o trabalho de
encontrar a forma de expressão característica de um objeto com ajuda de um
determinado material de representação, mesmo quando primitivo, não seria, isso sim, já
um certo tipo de arte. Junto com esta questão, coloca-se o problema de saber se a arte é
uma atividade que deriva do funcionamento dos sentidos ou, pelo contrário, se se trata
de uma ação altamente especializada que contém suas próprias regras específicas, como
fazem os teóricos das ciências humanas. Achamos que faculdades primitivas, como
dividir uma linha ao meio num só golpe de vista, perceber a diferença entre dissonância
e consonância musicais, entre outros exemplos de percepção, diferem das reais criações
artísticas somente em grau, não em espécie.
Que nossos olhos, cuja retina é plana, só possam perceber imagens planas
(projeções do espaço real sobre a superfície do olho), mas possam nos proporcionar uma
impressão espacial tridimensional, isso é em parte resultado de que cada olho localiza-
se alguns centímetros distanciado do outro e não constrói exatamente a mesma imagem
obtida pelo outro, mesmo quando ambos se voltam para um mesmo objeto: a pequena
diferença do ponto de observação de cada olho (a paralaxe) já realiza um deslocamento
característico que indica uma profundidade. A construção perceptiva de uma única visão
a partir dessas duas imagens ligeiramente diferentes possibilita ao cérebro construir uma
percepção espacial tridimensional. O mesmo princípio é sabidamente utilizado pelo
estereoscópio, um artefato no qual são colocadas duas fotos ligeiramente distintas lado a
lado, cada uma delas visível somente a um dos dois olhos, ou seja, visão dupla a partir
da qual o cérebro monta uma imagem única que também constrói uma sensação de
profundidade. Este recurso não está disponível para o cinema porque o filme é
observado por mais de uma pessoa. Se o cinema só tivesse um único espectador a cada
sessão, seria possível produzir cinema tridimensional muito facilmente. Assim como no
estereoscópio, dois filmes projetariam imagens distintas gravadas a partir de duas
câmeras distanciadas em alguns centímetros uma da outra, compondo uma só cena.
Algum aparato físico simples faria com que a tomada da direita fosse vista somente pelo
olho direito e a da esquerda, pelo olho esquerdo. Isso funcionaria. Mas ainda não foi
bem equacionado encontrar um modo de fazer essa projeção de um filme tridimensional
para um grande público, fazendo com que a noção espacial da imagem de cinema
tradicional seja muito reduzida. Ela pode ser um pouco intensificada em situações como
o deslocamento das pessoas e das coisas entre o primeiro plano e o fundo do campo,
mais distante da câmera mesmo numa imagem plana – mas basta uma olhadela uma
única vez para uma situação equivalente representada num estereoscópio, com sua forte
sensação de realidade tridimensional, para reconhecer como a espacialidade do cinema é
fraca e pouco plástica. Uma grande diferença entre a realidade óptica e a imagem do
cinema.
O cinema não produz nem uma imagem tridimensional pura nem uma imagem
plana pura, mas as duas coisas - uma dentro da outra. As imagens de cinema são, ao
mesmo tempo, planas e espaciais. No filme “Berlim”, de Ruttman, há uma tomada de
dois trens de metrô deslocando-se um em direção do outro. A câmera posicionada no
alto mostra os dois trens se movendo por baixo. Quem analisa cada plano vê em
primeiro lugar um trem que parece querer se afundar na tela, correndo na direção do
público (plano próximo) para trás da tela (fundo do campo), e o outro trem que corre do
fundo da tela para frente, em direção ao público (imagem com profundidade espacial).
Porém, ao mesmo tempo, também é possível perceber o mesmo movimento como se um
trem corresse da parte de baixo da tela para a parte do alto e o outro do alto para baixo
(verticalmente no mesmo plano da tela). O segundo tipo de deslocamento resulta da
projeção do movimento tridimensional sobre o plano da tela, o que naturalmente cria
uma direção de movimento diferente do movimento real.
A perda da noção de profundidade traz como segundo desdobramento uma força
exagerada nas sobreposições. Enquanto o encobrimento um objeto por outro quando
olhamos para eles na realidade – um ônibus que passa por trás de um poste - ou no
estereoscópio é entendido como casual e desimportante, quando ele ocorre numa
superfície plana, produz um corte radical. Mesmo na realidade, se uma pessoa segurar
um jornal de modo a cobrir um lado do rosto com ele, mas colocando o jornal próximo
de si, o sumiço de um pedaço do rosto será percebido com uma estranha intensidade.
E ainda há mais, pois, junto com a falência da noção de profundidade, perde-se
também aquilo que a psicologia chama pelos nomes de “regularidade de tamanho” e
“regularidade de forma”. A imagem projetada por um objeto do campo visual sobre a
retina do olho reduz-se à proporção do quadrado do distanciamento. Afaste-se de um
objeto plano que se encontra a um metro para dois metros, e, em conseqüência, a
superfície dele projetada na retina diminuirá para um quarto do tamanho original. Toda
película fotográfica funciona assim. A fotografia de um homem deitado feita a partir do
ponto de vista próximo aos pés e distante dos membros superiores do corpo mostrará
solas dos pés gigantes e uma cabeça muito pequenina. É admirável que, em nosso dia-a-
dia, nossa percepção não se iluda com as distorções projetadas na retina, ou seja, que
nós não vejamos do mesmo modo como funciona uma ampliação fotográfica. Citarei
alguns exemplos. Se há um homem a um metro de distância de nós e outro com
aproximadamente a mesma altura a dois metros de distância, na retina, a superfície
corporal do de trás será de aproximadamente um quarto do tamanho do mais próximo.
Se há uma pessoa que coloca sua mão aberta muito próxima dos nossos olhos, isso não
causa a impressão de que a mão seja gigante e desproporcional em relação ao corpo
dela. Nós percebemos tanto que os dois homens citados anteriormente são do mesmo
tamanho, quanto que a mão é perfeitamente proporcional. Esse fenômeno é o que se
chama “regularidade de tamanho”. Ele se baseia numa experiência cotidiana de nosso
olhar, desenvolvida desde a infância, a qual nos possibilita perceber racionalmente qual
é o tamanho objetivo das coisas, de forma que o cérebro promova uma espécie de
correção praticamente automática da deformação da imagem originada em função das
distintas distâncias. Para a maioria das pessoas – com exceção dos pintores e
desenhistas que recebem um treinamento específico –, é impossível perceber as medidas
tais como se apresentam na retina, o que também explica por que uma pessoa mediana
não treinada nos métodos de desenho tenha tamanha dificuldade em desenhar as coisas.
O problema novo colocado pelo cinema é que uma clara percepção das distâncias seria
necessária para o funcionamento correto da regularidade de tamanho, isto é, onde a
sensação de distância está presente, como no estereoscópio, a regularidade de tamanho
funciona muito bem, mas quando não está, como muitas vezes ocorre na imagem de
cinema, a correção automática feita pelo cérebro praticamente desaparece. Se duas
pessoas são colocadas de forma que uma esteja o dobro de distância da outra em relação
à câmera cinematográfica, o resultado será a impressão de que o mais próximo é
consideravelmente maior e mais robusto do que o outro.
O mesmo ocorre com a regularidade de forma. A imagem retiniana de uma mesa
é como uma fotografia dela: o lado mais próximo do observador parece
consideravelmente mais largo que o de trás, de modo que a superfície que sabemos ser
retangular parece ser um trapézio. Mas um observador comum com olhar destrinado,
não percebe a mesa assim: ele continua vendo a mesa em forma retangular (e também a
desenha assim). A distorção perspectiva que há em todo o corpo extenso com
profundidade não é notada, mas compensada inconscientemente. Isso é a regularidade
de forma ou de contorno. Na imagem cinematográfica, ela desaparece; a mesa parece
maior na frente e menor atrás, fenômeno que se intensifica quanto mais próxima ela
estiver localizada da objetiva da câmera, fazendo a parte próxima parecer mais larga, a
de trás, mais estreita.
Esse fenômeno cinematográfico não se dá exclusivamente pela perda da noção
de profundidade, mas também, e principalmente, pela percepção nítida que o expectador
tem da artificialidade da imagem cinematográfica - fenômeno pelo qual também são
culpados a falta de cor do cinema preto e branco, a limitação do campo pelas molduras
da imagem e da tela, etc. Todas essas diferenças em relação à imagem do mundo real
fazem juntas com que o tamanho e a forma não sejam mostrados na imagem
cinematográfica em suas proporções objetivas, mas sim nas proporções retinianas com
as respectivas distorções perspectivas.
4
Apesar de que há limitações até onde a imitação deva ser fiel. A empregada e o conde devem ser naturais
enquanto for possível a eles ser ao mesmo tempo claros e audíveis – caso contrário, os atores deverão
falar com voz empostada e em alto som!
tempo real e um espaço real onde está o público, mas eles são suprimidos para dar lugar
ao tempo e ao espaço imaginários representados no palco. Por outro lado, o palco é
lugar de atuação, aparência, encenação, e não um puro fingimento. O ingrediente de
ilusão no palco é muito forte porque contém um espaço (o palco) real e um intervalo de
tempo real. Essa presença de realidade é muito pequena quando olhamos para uma
imagem de fotografia. A fotografia mostra tanto quanto o palco um determinado espaço
e tempo (um momento), mas não o faz como o palco, com auxílio de um espaço real (o
do palco) e de um intervalo real de tempo (a duração da cena). O fato de a superfície da
foto representar um espaço físico é resultado de uma tão forte abstração mental, já que o
espaço da foto não permite de modo nenhum criar a ilusão de ser um espaço real.
O cinema, com sua imagem em movimento, faz uma ponte entre o teatro e a
fotografia. Ele mostra o espaço, embora de modo distinto do palco o qual se apoia na
existência de um espaço real. Nesse sentido, o espaço do cinema é mais parecido com o
da fotografia, construído a partir de uma superfície plana. Mas, por diversos motivos, a
noção espacial do cinema não é tão estreita como a da fotografia: uma grande ilusão de
profundidade é dada ao espectador. Em oposição à fotografia e à semelhança do teatro,
o cinema tem um intervalo de tempo que pode ser ocupado por imagens que indicam
um fluxo de realidade, embora este tempo não seja tão íntegro como o tempo real do
teatro e, por isso, possa ser interrompido a qualquer momento por outro fluxo de tempo
(um flash-back, por exemplo) sem chamar a atenção do espectador como se fosse uma
ruptura radical do fluxo temporal: o cinema não deixa de ser composto por uma imagem
bidimensional plana, a qual pode deixar de ser mostrada quando se bem entender para
que se sigam a ela outras imagens, mesmo que filmadas em momentos muito distintos.
O cinema serve para criar, assim como o teatro, uma ilusão parcial. Ele
proporciona, num alto grau, uma impressão de vida real (que pode ser tão forte porque,
ao contrário do teatro, reproduz a realidade, ou seja, pode usar o mundo real como um
cenário, o mais fiel possível à realidade). Por outro lado, ele cria uma apresentação
artificial num grau tão elevado, ao poder colar as tiras de filme livremente, que o teatro
nunca o poderia acompanhar. Por causa da supressão da cor, da ausência de sensação de
profundidade estereoscópica, da clara limitação da tela de projeção, entre outras
características, o realismo do cinema é felizmente desmascarado. O cinema é sempre
local de desenvolvimento de um acontecimento “real” e ao mesmo tempo um quadro
plano em que ele é projetado.
Desta situação decorrem as concessões artísticas denominadas Montagem. Já foi
dito que o filme tem a possibilidade de apresentar sequências disparatadas de tempo e
espaço, uma a seguir da outra, ao gravar situações reais em fitas de película
manipuláveis que podem ser emendadas. Usar essa colagem de modo impensado é
somente uma técnica que, utilizada somente assim, ao acaso, resulta num amontoado de
cenas tão incompreensíveis que a sua simples contemplação resulta num mal-estar como
o enjoo de navegar em alto mar. A montagem conscientemente utilizada vai muito além.
Por exemplo: na primeira imagem, vê-se um homem que toca a campainha da porta e,
imediatamente a seguir, aparece um cenário totalmente diferente, mas que é exatamente
o interior da casa na qual se vê a empregada caminhar em direção à porta – num certo
sentido, isso significa que o espectador foi como que arremessado num solavanco
através da porta da casa para o outro lado da cena -, a moça abrir a porta e ver o
visitante. Imediatamente a imagem salta novamente e vemos a partir do ponto de vista
do visitante o rosto da empregada. Cada solavanco desses ocorre em uma fração de
segundo. Agora surge aos poucos no fundo do cenário uma mulher e, no momento
seguinte, somos arremessados oito metros para frente, em sua direção, e nos vemos
próximos do seu rosto.
Poderia se supor que esta espécie de malabarismo relâmpago, arremessando o
ponto de vista pelo espaço cinematográfico, causasse uma sensação desagradável ao
público. Mas todo espectador de cinema sabe que não há desconforto algum numa
montagem bem feita, ao contrário, os saltos propiciam um claro entendimento da cena
até agora descrita, cuja observação se dá tranquilamente e com a maior facilidade. Os
pulos somente seriam realmente desagradáveis se essa movimentação se desse
efetivamente a cada espectador, por ocasião de cada corte, mas fisicamente ele só
precisa se dar efetivamente na movimentação da câmera na realidade, para a gravação
da tomada seguinte. Mas conforme dissemos, não é isso que acontece, pois a realidade
construída pelo cinema não é total, mas somente uma ilusão parcial, ao mesmo tempo
em que ela se apresenta como realidade, apresenta-se como imagem.
A plasticidade que os assuntos mostrados em planos nos filmes criam quando se
seguem cenas gravadas nos locais mais distintos não gera a sensação de ruptura
violenta, mas sim a mesma sensação confortável de quando observamos uma sequência
de distintos cartões postais. Assim como eles não nos incomodam minimamente pelo
fato de mostrem os locais mais distintos ou épocas distintas também, isso também não
nos perturba no filme. Vemos uma mulher de corpo inteiro no fundo de um quarto e,
imediatamente a seguir, na próxima imagem, seu rosto gigantesco na tela como se uma
página fosse virada: uma nova imagem está lá. Se o cinema tivesse uma impressão de
localização espacial muito forte como a do teatro, a montagem seria impossível.
Somente o fato de a realidade da imagem de cinema ser parcial possibilita a montagem.
Enquanto os elementos de exceção do palco em relação à realidade abrangem
somente a quarta parede da sala que está ausente, a transição de lugares dos diferentes
cenários, a fala empostada, etc., o cinema vai muito além. Para começar, o ponto de
vista de observação pode mudar, o que depende até mesmo do tipo de lente utilizado na
filmagem. O espectador do teatro está sempre à mesma distância do ator no palco,
enquanto o de cinema salta para frente e para trás, olha de longe, de perto, de cima,
através da janela, da esquerda, da direita, ou seja, o cinema cria um sistema de descrição
que seria impossível reproduzir na realidade do palco cênico. Essa possibilidade só
existe porque o fato de a imagem mostrar distintos pontos de vista depende unicamente
do posicionamento da câmera no momento em que filma, seja mais próximo ou mais
distanciado do objeto, embora isso não implique em que o espectador ou os atores
tenham de saltar junto com a câmera quando ocorre tal movimentação.
Muitos autores, dados a um pensamento teórico mais penetrante, acharão talvez
o conceito de “ilusão parcial” até aqui apresentado muito vago e pouco compreensível.
“Não faz parte da ilusão que ela seja completa?” – perguntariam. “Posso acreditar que
esteja em Nova York quando estou sentado com meus amigos de Berlim? Posso ver uma
sala se no momento anterior havia uma rua ali?” Sim, posso. De acordo com uma
psicologia antiquada, mas profundamente impregnada no pensamento popular, uma
ilusão só pode ser eficiente quando oferece uma relação completa de todos os detalhes.
Mas qualquer um sabe que o mais incompleto desenho infantil de um rosto feito a partir
de um ponto, outro ponto, uma vírgula e um ponto de exclamação pode causar uma
forte impressão de que se trata de uma pessoa zangada, contente ou triste. A impressão é
muito forte, apesar de a representação estar longe de ser completa. Que ela nos seja
suficiente é o resultado de que, mesmo na realidade, não reparamos em cada detalhe: se
víssemos um rosto pela primeira vez e nos desviamos dele a seguir, não conseguiríamos
dizer, logo depois, se a pessoa tinha olhos azuis ou castanhos, se tinha um chapéu sobre
a cabeça ou não, etc. Assim, na observação da realidade nos satisfazemos com o
reconhecimento do essencial, conhecimento tão suficiente para nós que, quando
desenhamos (mesmo com técnica) nos damos por satisfeitos em representar poucos
traços. Isso também ocorre no teatro e no cinema: quando somente o essencial do
acontecimento é mostrado, a ilusão já é completa para nós. Se a pessoa projetada na tela
se assemelha a uma pessoa e vive como uma pessoa, não é tão fundamental assim que a
vejamos com bochechas redondas e avermelhadas como um ser humano e também não
nos incomoda o fato de sabermos que ele não vive em um espaço real – ela é viva o
suficiente mesmo assim. E, pela aceitação deste mundo da imagem, torna-se possível
produzir o belo, os filmes de valor artístico no cinema, porque não importa que os
objetos e acontecimentos sobre a tela sejam ao mesmo tempo vivos e mortos, realidade
e simples luzes projetadas numa superfície plana.
Nossos olhos não são um aparelho com funcionamento isolado, mas trabalham
em estreita colaboração com os outros órgãos dos sentidos no corpo. É até mesmo
surpreendente que eles possam perceber algo sozinhos, sem auxílio dos outros sentidos.
Por exemplo, é bem conhecida a sensação de vertigem ao assistirmos um filme com
permanente movimentação rápida da câmera. A vertigem decorre de que os olhos nos
indicam estarmos num mundo muito diferente daquele que a sinestesia muscular indica,
de um corpo em repouso numa poltrona; ao contrário, os olhos indicam que o corpo se
move, enquanto a sensação corporal é de que ele descansa.
Quando vemos um filme, nossa sensação de movimento vai depender do que os
olhos proporcionam, pois não contamos com os estímulos que receberíamos se
estivéssemos próximos da mesma cena na realidade. Disso resulta que todo o
paralelismo que as pessoas gostam de estabelecer entre o funcionamento do olho e o da
câmera é falso, principalmente a comparação da movimentação do olho com a
movimentação de câmera. Quando eu movimento meus olhos ou minha cabeça, o raio
de visão se altera. Eu estava vendo parte da porta, agora vejo a estante e, então, a mesa
de jantar e a janela. Essa movimentação não faz os objetos escorregarem perante meus
olhos, dando a impressão de que as coisas se movem. A sala permanece como antes,
imóvel. Foi somente a direção do olhar que se alterou e, por isso, eu vejo agora apenas
outra parte da sala que permanece estática. Não é assim que a coisa se dá
necessariamente no cinema. A câmera foi movida na filmagem de modo que passam a
ser mostrados porta, estante, mesa e janela num movimento sobre a tela. Visto que a
câmera não é uma parte do corpo do observador como sua cabeça ou olhos, o
observador não sabe que ela se movimentou. Ele vê coisas diversas se seguirem sobre a
tela como se estivessem em movimento. Em “Os novos senhores”, de Jaques Feyder, há
uma cena em que a câmera percorre em tempo acelerado uma parede com cartazes
pendurados. Efeito: os cartazes parecem correr na frente de uma câmera parada. A
situação filmada é muito clara e possibilita uma fácil orientação espacial, por isso o
espectador corrige sua impressão imediatamente: quando uma câmera situa-se na altura
próxima às pernas de uma pessoa e sobe em travelling até mostrar o rosto, o espectador
sabe muito bem que o personagem não foi deslizando para baixo na frente da câmera
parada. Mas, comumente, os cineastas utilizam o travelling de câmera de um modo
distinto em que as coisas não ficam tão claras, como E. A. Dupont, em “Variedades” O
público sente uma suspensão que não é reconhecível e que leva a um mal-estar
semelhante ao de um enjoo em alto mar. Esta diferença entre o movimento dos olhos e o
da câmera é agravada por causa da rigidez da área de projeção da imagem, que se
encontra delimitada por uma espécie de moldura, ao contrário da visão na qual mal nos
damos conta dos limites. Disso decorre que a movimentação de câmera coloca sempre
novos objetos no interior do quadro, que logo desaparecem, enquanto o movimento dos
olhos constrói um espaço comum sem divisões que é percorrido pelo olhar.
Temos no filme, portanto, uma certa relatividade do movimento. Como não há
sensações corporais que mostrem se a câmera está em movimento ou parada - e, quando
em movimento, a que velocidade e em que direção ela se move -, a câmera é vista como
se estivesse parada. Assim, quando algo se move na imagem, esse movimento é
interpretado, em primeiro lugar, como movimento do objeto e não como consequência
de um movimento de câmera frente a algum objeto em repouso. Isso conduz a um efeito
estranho percebido quando a direção do movimento se inverte: filmamos um carro a
partir do interior de um segundo carro que ultrapassa o primeiro, observamos na tela um
carro que parece andar para trás embora, objetivamente, ele esteja se deslocando para
frente. Há, porém, a possibilidade de indicar claramente quais movimentos são
absolutos e quais são relativos, dependendo da composição da imagem pelos objetos e
pelo entorno em que se encontram. Pode-se esclarecer, na situação anterior, que a
câmera está em um carro em movimento se a imagem mostrar parte desse carro em
contraste com a paisagem, visto que a parte do carro parecerá fixa na mesma região da
tela enquanto a paisagem se move, o que demonstra claramente que é o ponto de vista
que está se movimentando e fazendo deslizar pela tela uma paisagem que sabemos estar
em repouso.
Há também relatividade nas direções espaciais - acima, abaixo etc. É outra
consequência do que chamamos de “bordas da imagem”. A imagem de algo que desliza
para baixo na tela não é garantia de que o objeto cai porque a imagem não oferece ao
espectador as mesmas sensações gravitacionais que o orientam sobre o que sobe ou
desce no mundo. Não é perceptível se a câmera está reta ou inclinada, por isso a
imagem não pode garantir que a superfície projetada verticalmente na tela seja
realmente vertical. Isso ocorre quando uma câmera é fixada no teto sobre uma cama e
mostra a cabeça de uma pessoa deitada. É fácil ter-se a impressão de verticalidade. O
referido personagem parece estar de pé e até os travesseiros parecem estar grudados
numa parede. A tela de projeção é interpretada na verticalidade embora, pelo fato da
câmera filmar de cima, ela represente uma superfície horizontal. Esse engano só é
evitado quando há objetos no interior da imagem que possam esclarecer qual é a real
orientação e direção da realidade.
Por fim, os outros sentidos. Ninguém que assiste a um filme mudo francamente
se dá conta da falta dos ruídos que seriam ouvidos se a mesma situação se passasse na
realidade. Não sente falta dos sons dos passos quando alguém caminha na tela, do ruído
das folhagens, ou do tic-tac do relógio. A ausência desses sons (e da fala dos
personagens também, é claro!) raramente é percebida, embora ela devesse ganhar os
contornos de uma terrível catástrofe se ocorresse de verdade no mundo real: a pessoa se
consideraria imediatamente vítima de surdez. Que esse temor não se instale no cinema é
resultado óbvio de o espectador, apesar da estranheza, não se esquecer de que tudo o
que se apresenta à sua frente é somente um filme. Essa perturbação da ausência do som
isoladamente não é suficiente para impedir que se forme o ambiente de ilusão. E a
explicação para isso é o que já se esclareceu anteriormente: para construirmos uma
impressão total, não é preciso que todos os seus detalhes sejam captados pelos sentidos
naturais, sendo possível um convívio tranquilo entre ilusão parcial e todo. Essa espécie
de “incompletude” - se quisermos chamar assim o fato de haver menos informações
sensoriais em relação a uma observação qualquer se comparado às informações
sensoriais geradas a partir da percepção natural de algo na realidade - não será
prejudicial ao pleno entendimento se o pouco que for dado aos sentidos já for o
suficiente para entender o essencial daquela realidade que se quer representar. Por isso,
foi só com o surgimento do cinema sonoro que saltou aos olhos a lacuna acústica do
cinema mudo. E isso não deveria significar nada, pois a introdução do filme sonoro não
é um argumento nem contra nem a favor da possibilidade do cinema mudo.
O mesmo se dá com o cheiro. Pode haver pessoas que dizem sentir cheiro de
incenso quando assistem a uma missa católica num filme, mas esses estímulos olfativos
objetivamente não existem para ninguém.
Cheiro, sinestesia e paladar nunca são acessados diretamente pelo cinema: só
podem ocorrer sensações de cheiros, peso ou percepções táteis estimuladas
indiretamente e mediadas pelo caminho da esfera visual. Assim se ergue como uma
importante regra o fato de que seja errado filmar situações e acontecimentos que
culminem numa ação não representável opticamente. Um tiro pode ser reconhecido num
filme mudo porque o barulho do disparo pode ser desnecessário para um diretor
habilidoso. É suficiente o espectador ver o gatilho ser pressionado ou, eventualmente, a
queda do adversário. No filme “As docas de Nova York”, de Joseph von Sternberg, um
tiro é apresentado visualmente de forma criativa pelo súbito voo assustado dos pássaros.
Segundo capítulo
COMO FILMAR
A possibilidade técnica é a
mais valiosa inspiração.
A câmera é a Musa.
Bela Balázs
5
Termo criado em 1791 para designar espaços de 360 graus onde os espectadores contemplavam do
centro uma imagem representando em geral cenários de guerra, cercos, batalhas ou vistas de cidades
reproduzidos com muita exatidão e verossimilhança a partir de pinturas.
trabalho que foi feito sem a menor ambição artística ou decorativa. Eles não sabiam
nada a respeito da importância de dividir harmoniosamente a área de disposição desses
objetos para criar uma boa relação de equilíbrio ou de que os membros em um relevo
poderiam estar bem ou mal dispostos – e apesar disso um sentimento formal
inconsciente os levou a construir obras magistrais.
O pensamento consciente sobre o modo de fazer artístico é um produto cultural
extraordinariamente tardio e, até os dias de hoje, só acessível a um grupo muito seleto
de pessoas. A maioria das pessoas, o sujeito comum, ainda pensa que a arte é apenas
uma reprodução de objetos, tanto hoje como três mil anos atrás, e repara somente no
conteúdo da obra de arte, julga a obra somente pela sua semelhança com a realidade.
Para o sujeito comum, entre as gravuras coloridas de um livro de zoologia e as pinturas
de animais de Rubens ou de Delacroix há somente uma diferença terminológica, mas
nenhuma diferença fundamental.
Por isso, até hoje, a fruição da arte é confundida com o prazer que a obra de arte
proporciona. Quando uma pessoa fica em paz ao observar por um instante uma
paisagem bucólica em frente a uma Vênus de mármore, ela pensa se comportar como
um apreciador da arte. Por esta razão, até hoje a sociedade de massa é uma inimiga
anônima do desenvolvimento da arte. Ela percebe no cinema só o enredo narrativo e
volta o seu interesse somente ao conteúdo.
A representação artística não se resume somente a mostrar mais uma vez o que
já se encontra na realidade. O naturalismo oferecido nos gabinetes de bonecos de cera
produz arrepios e não fruição estética. Assim, o artista não deve camuflar ou deturpar a
artificialidade de seu meio fazendo cera se passar por pele humana. Ao contrário, uma
boa obra de arte traz à mostra as características particulares do artifício utilizado, de
forma clara e límpida. Se nos permitirmos ser um pouco esquemáticos, pode-se
comparar o trabalho de representação dos artistas com uma brincadeira: formar um
quadrado a partir de dez tiras de papel. A satisfação após resolver tal quebra-cabeça
encontra-se no feito e em observar a obra, não no sentido de admirar o quadrado em si,
uma vez que todos na vida já viram muitos quadrados, mas pelo fato de lembrar que dez
pedaços que até então tinham cada um sua forma particular constituam agora uma só e
única forma simples unificada. O que é de admirar num desenho de bico de pena feito
por van Gogh não é a paisagem rural que ele criou – já que um campo agrícola não tem
nenhuma originalidade –, mas sim o fato de que foi possível gerar uma impressão óptica
de um campo agrícola real a partir do bico de pena. Isso é algo extraordinário. Ninguém
acredita ver um campo agrícola real no desenho. Qualquer um percebe os traços
grosseiros da ponta da pena, mas é certo que uma obra de arte como essa proporciona
prazer estético.
A fruição ao contemplar o bico de pena não advém somente do fato de ter sido
obtida uma representação muito realista por meio um material diverso. O bico de pena
não foi conduzido somente com este objetivo, mas constituiu um ornamento harmônico
em si, dado que ele consegue construir uma forma com sua própria regularidade: a
distribuição das áreas pretas e brancas no espaço retangular do desenho tem um forte
equilíbrio em van Gogh; os traços se agrupam num belo padrão, destacam-se uns dos
outros, organizam-se em fileiras; as formas estão sincronizadas e não colidem confusas
umas contra as outras, sem relação, nem se enfileiram em rígidas linhas paralelas.
Geram-se assim qualidades ornamentais, nascidas do próprio meio de construção de
imagem utilizado. Os traços cumprem o papel de representação da realidade, mas
preenchem também a superfície com a construção de uma forma original e bela.
Fruição estética é o prazer de constatar o sucesso de um determinado tipo de
trabalho nestas duas frentes. Este prazer não é possível se o meio utilizado se oculta, e
somente a coisa retratada permanece visível. “Somente a ilusão revelada é arte”, disse
uma vez Max Leiberman. Mas também não basta o fato de o ilusionismo naturalista do
Panorama gerar uma cópia da realidade admirável, porque se sabe que tudo ali é pintura.
Fazer com que os meios utilizados sejam identificáveis não é a única condição da obra
de arte, porque eles podem ser utilizados também para fazer qualquer simples cópia.
Para ser arte, o trabalho deve explicitar o jogo travado entre o objeto e a representação.
As grandes obras de arte cuidam de extrair muito claramente qualidades que só são
possíveis alcançar dadas as características particulares do material utilizado, e a forma
que a obra assume deve mostrar como isso foi feito de modo claro e transparente.
Nossa hipótese é de que a obra de arte agrega um valor intangível ao objeto
representado a partir do fato de “caracterizar” o material de produção utilizado do modo
mais original possível na própria obra. Pastel e lápis, por exemplo, são materiais difíceis
de manusear neste sentido, porque o artista facilmente produz um borrão que, apesar de
poder representar o objeto a partir de cuja imagem o desenho foi produzido, não tem
marcas próprias do pastel ou do lápis em si. O mesmo ocorre na escultura com argila ou
gesso, materiais que muito facilmente formam uma massa lisa sem particularidades. E,
neste sentido, ainda mais perigoso – mesmo que não do mesmo modo – é o material do
cinema.
Enquanto os materiais dos escultores e pintores em seu estado bruto – bloco,
argila, trações de pena ou pincel – não são minimamente parecidos com a matéria das
coisas representadas, a matéria-prima do cinema é facilmente confundida com os
objetos em si. O cineasta posiciona sua câmera, gira o filme, faz a tomada, sem ter
qualquer outro trabalho, e gera uma cópia óptica dos objetos. Por isso, é imenso o risco
de que o filme e o objeto sejam confundidos um com o outro.
O cineasta necessita encontrar um modo de sublinhar as características
peculiares do material cinematográfico para fazer arte, mas deve fazê-lo de uma forma
que não descaracterize também os objetos. Pelo contrário, deve-se potencializar a
exploração dos objetos pelo filme no sentido de fortalecê-los, concentrá-los e interpretá-
los.
As condições que possibilitam fazer arte com uma câmera são justamente cada
uma das diferenças entre a imagem de cinema e a imagem do mundo, discutidas
anteriormente. Veremos a seguir uma série de exemplos de como essas características
peculiares do material cinematográfico podem ser utilizadas e como já o foram para
atingir resultados artísticos.
Toda representação artística tem, como já se mostrou, duas raízes: o instinto de
expressão/representação e o instinto de ornamentação. Por causa da semelhança entre o
material cinematográfico e aquele que é visto na observação natural das coisas, o filme
atende muito bem ao instinto de expressão/representação. A primeira sensação que o
filme “Variedades” incita vem daí: de que eram vistas em movimento sobre a tela
branca coisas semelhantes às que se apresentam na realidade, com a mesma vitalidade.
Uma locomotiva se aproximando ou o imperador em pessoa andando a cavalo numa
alameda eram imagens que elevavam os espíritos às alturas. O prazer que aqueles filmes
trouxeram é idêntico ao dos Panoramas de guerra, do trem fantasma – vindo apenas da
própria visão das coisas. Um cinema de arte só se desenvolveu gradualmente quando os
produtores, consciente ou inconscientemente, começaram a desenvolver potencialidades
próprias da câmera e utilizá-las para obter efeitos artísticos. Sua arte permanece ainda
até hoje como se estivesse guardada num compartimento secreto e indecifrável para a
maioria das pessoas. O cinema agrada um grande público, porém o prazer que traz à
maioria das pessoas, mesmo quando um filme de arte é apresentado, não tem nada a ver
com fruição estética mas se reduz à situação, ao roteiro, à ambientação.
USO ARTÍSTICO DA PROJEÇÃO DOS CORPOS NUM PLANO
Na primeira parte do capítulo 2 (pág. 25), “projeção dos corpos sólidos num
plano...” foram mostradas as peculiaridades que nascem do fato de as três dimensões
dos corpos e do espaço serem reduzidas à superfície bidimensional da cópia fotográfica
ou cinematográfica. Foi demonstrado ali que se pode construir ou não, no plano, uma
“forma característica” do objeto, dependendo do ponto de vista adotado em relação a
ele. No início do cinema, ninguém estava muito preocupado com isso. Colocava-se a
câmera no meio do set apontada para as personagens para que se pudesse filmar seus
rostos e o movimento de seus corpos. Se fosse preciso mostrar uma casa, a câmera se
posicionava diante dela, na rua, distante o suficiente para enquadrar toda sua fachada na
imagem. Só muito lentamente passou-se a recorrer aos efeitos que se poderiam extrair a
partir do controle do enquadramento.
No início do filme “Chaplin imigrante”, de 1917, um navio chacoalhando
terrivelmente é mostrado de perfil. Os passageiros estão enjoados: as mãos segurando a
boca, balançando sobre o convés. Então Chaplin entra em cena: nós o vemos de costas,
debruçado numa borda do convés, com a cabeça inclinada para fora do barco e com as
pernas tremendo em espasmos. Qualquer um percebe que o coitado paga seu tributo ao
mar por causa do mal-estar. Mas, de repente, ele dá um salto, endireita-se, apoia os pés
no convés, vira-se em nossa direção de modo ligeiro e só então percebemos que sua
postura não tinha nada a ver com enjoo: ele simplesmente se contorcia porque fazia
esforço para fisgar um peixe.
Esse efeito surpresa é obtido pela manipulação do enquadramento. A adoção de
um ponto de vista preciso da câmera oculta a verdadeira ação, e o espectador percebe a
situação do modo como o diretor quer. O objetivo de uma cena assim não é
simplesmente mostrar que uma pessoa faz isso e mais aquilo, por exemplo, que ela
pesca ou que enjoa. Trata-se de uma pessoa fazer isso e aquilo enquanto um observador
a vê a partir de um ponto de vista muito específico, sendo conduzido a tirar uma certa
conclusão por causa do que vê a partir dali. O efeito de surpresa só ocorre porque a cena
é percebida deste lugar bem determinado. Se a cena fosse filmada a partir do lado da
água, qualquer um teria percebido desde o início que Chaplin não enjoava, pescava, e
não seria levado a criar a falsa impressão que dá graça à situação. A descoberta que
fazemos no momento em que ele se vira não é construída sobre a situação pura, mas sim
sobre uma situação fílmica, já que ela só funciona porque foi utilizada uma propriedade
particular da técnica cinematográfica como meio para atingir aquele efeito.
A cena não é filmada de modo que se reconheça logo a situação, pelo contrário:
não há nenhuma pista correta que indique o que Chaplin realmente faz, e é por meio
deste artifício que surge a chance de consumar o engano. O artista burla o princípio de
mostrar a forma característica e faz justamente o contrário intencionalmente para atingir
um determinado objetivo.
O mesmo recurso foi utilizado na abertura do filme “Variedades”, de Dupont, na
apresentação do protagonista. O preso, interpretado por Emil Jannings, senta-se de
costas para a câmera, olhando na direção de um juiz que vemos de frente. Nas suas
costas largas, há um grande número de presidiário gravado no uniforme. Um motivo em
si, mesmo abstrato, é claramente exposto visualmente deste modo: “Este é somente um
entre muitos, não um indivíduo, mas apenas um número!”. E é isso o que se mostra
visualmente por meio do símbolo imagético, embora pudesse ter sido possível também
dizer a mesma coisa de um modo bem distinto. Por exemplo, em um filme mais
fantástico, o presidiário poderia ser mostrado sem a cabeça, somente com um número
sobre o pescoço (à semelhança do que já vimos inúmeras vezes em caricaturas como a
de uma toga de juiz com um sinal de parágrafo sobre a cabeça!). O inusitado na cena de
Dupont é que nenhuma deturpação da realidade foi necessária para apresentar um
sentido abstrato. Uma realidade corriqueira sem manipulação, totalmente compatível
com a situação descrita, foi filmada e, apenas pela cuidadosa escolha do ângulo de
câmera, conseguiu-se atingir o efeito desejado. Uma ocorrência específica não
desvirtuada da realidade produziu o típico, mas também o simbólico, pelo fato de sua
tomada ter sido bem escolhida e bem filmada.
As decisões tomadas na filmagem (no caso, a escolha de um determinado
enquadramento) não são tratadas como “quantités negligeables” (quantidades
desprezíveis), nem como mal necessário. Em vez disso, são utilizadas conscientemente
aproveitando as particularidades do meio para produzir um sentido especial, e, por isso,
podemos afirmar que foi atingido um efeito artístico com esta seleção: o episódio
narrativo “Conversa entre juiz e condenado” em si é uma coisa distinta da filmagem da
história citada em nosso exemplo, porque a filmagem adotou um ponto de vista único,
ou seja, escolheu, dentre uma centena de outras possibilidades de enquadramento, um
lugar ímpar, e porque podemos perceber como esta restrição do ponto de vista valorizou
o conteúdo – pois ofereceu a possibilidade artística de agregar à cena um pensamento
novo, um tipo de conteúdo especial a mais, criado a partir da produção da imagem em
si.
Não se deve confundir essa análise teórica do resultado com uma descrição
psicológica do processo criativo, ou seja, não se deve concluir, a partir desta análise,
que Dupont tenha dito a si mesmo: “Eu busco uma representação simbólica da ideia de
que o preso é um número. Qual recurso de gravação devo utilizar para encontrar isso?
Ah... seria o posicionamento de câmera... então vamos raciocinar!”. Não é assim que a
coisa funciona. O caminho trilhado por ele deve ter sido completamente diverso. Ele
pode ter visto por acaso o ator de costas e percebido que aquilo daria um bom resultado.
Aqui o caso é só analisar o trabalho pronto e entender quais foram os meios de
expressão aproveitados.
No cinema russo, que outros copiaram, encontramos planos que dão uma força
vigorosa às personagens, obtida pelo enquadramento do ator de baixo para cima - a
chamada “perspectiva de rã”. Um duro capitão de fragata capitalista ou um general são
mostrados em contra-plongée como se fossem montanhas. Ao filmar de um
determinado ângulo, o diretor se afasta da cópia mecânica do real e extrai algo positivo
a partir da filmagem: a tomada ganha um sentido. A necessidade imposta pelo meio, de
retratar, se transforma num dom quando se sabe como fazer.
Com esse posicionamento habilidoso de câmera, alcança-se o duplo efeito que é
fundamental numa obra de arte: não só mostrar o contorno característico das coisas, mas
também possibilitar a fruição a partir da apreciação da forma que se apresenta nela. A
filmagem de um gordo magnata em contra-plongée não só deforma e dirige a impressão
da realidade mostrada ao espectador, mas também oferece, quando bem feita, um jogo
de formas bonito. É incomum – ou ao menos era até alguns anos atrás – perceber
conscientemente esse tipo de elaboração. A aparência gigante do tronco em relação à
cabeça pequena no alto do corpo, resultante da relação perspectiva, a deformação dos
traços do rosto, como o nariz que se sobressai e mostra seus dois orifícios escuros sobre
o bigode e o queixo visto por baixo, tudo isso tem um forte encanto formal que nada
tem a ver com o conteúdo da imagem. O estranho e o inesperado deste ponto de vista
valem como uma interpretação – “mostrar um lado oculto de uma coisa” –, tornando o
desconhecido uma coisa identificável. No filme “Entreato”, de René Clair, há uma cena
de uma bailarina que dança sobre uma placa de vidro, filmada por baixo do vidro:
quando a bailarina pula, vemos o vestido abrir-se como pétalas de uma flor e fechar-se
novamente, tendo, no centro desta espécie rara de cálice, o jogo do movimento das
pernas. O prazer desta estranha tomada é puramente formal e sem qualquer sentido,
estabelecido somente pela admiração plástica. Se tivesse ainda um sentido, seu mérito
seria ainda maior. Um elemento erótico poderia ser agregado neste posicionamento de
câmera ou algo semelhante.
É comum ver tomadas no cinema que não têm nenhum sentido em relação ao
conteúdo, mas que somente propiciam mostrar formas belas. O diretor encontrou algum
ponto de observação bacana e o utilizou mesmo sem agregar à cena qualquer
significado. Isso ocorre tanto em filmes que são voltados à realidade quanto na ficção.
Em ficção, cada cena deveria servir à exposição do enredo, mas o diretor sente-se no
direito de soltar-se desta amarra. Ele mostra duas pessoas conversando numa tomada
frontal e, de repente, mostra as mesmas personagens vistas do alto, por cima das
cabeças. Pelo fato de não ter com isso mostrado nada diferente, este diretor trai o
próprio cinema.
No belo “Martírio de Joana d´Arc”, filme de Carl Dreyer, encontra-se uma longa
discussão entre os padres e a mártir. O que mais interessa são os diálogos. Uma situação
como esta, de debate de opiniões das personagens contradizendo umas as outras o
tempo todo, não proporciona muitas opções de composição para a câmera. A solução
mais recomendada para escapar de tal dificuldade é a de que cenas desse tipo nem
mesmo sejam usadas em filmes mudos. Carl Dreyer cometeu um erro, mas tentou
compensar a falta de estímulo visual desse tema através de uma variação das formas: a
câmera mostra-se viva, fotografa a cabeça da jovem inclinada do alto, dirige-se
inclinada aproximando-se do queixo, mostra os orifícios das narinas dos juízes, corre
rapidamente por suas testas, assalta-os pela frente quando eles lançam um
questionamento, filma-os de lado quando estabelecem uma segunda questão, constrói
retratos numa pluralidade inquietante. Mas esse jogo formal todo não cria qualquer
sentido. E justamente porque o fluxo de imagens não contribui em nada para explicar o
interrogatório, o espectador ficaria muito mais agradecido ao diretor caso fosse
submetido a um estilo menos agitado e subjetivo, que não chegasse ao ponto de o deixar
entediado, mas com o qual o diretor conseguisse potencializar o conteúdo, revestindo-o
na forma da obra. A ditadura da autonomia da forma artística, um clamor da indústria
cultural, é um abismo que ameaça muitos cineastas, em especial os franceses.
Esses enquadramentos sofisticados vistos cada vez mais nos grandes filmes dos
últimos anos, usados com finalidade tanto de produção artística quanto da elucidação de
enredos, e hoje utilizados por toda a parte, eram vistos como um erro nos primórdios da
fotografia e do cinema. Os primeiros diretores teriam se envergonhado de um
enquadramento inclinado. É muito instrutivo entender por que, antes rejeitado, é
utilizado hoje naturalmente.
O que cativava, nas primeiras filmagens, era mover sobre as telas algo idêntico
ao seu original do mundo, que o filme se comportasse exatamente como ele. Esta
orientação conduziu evidentemente o modo como o filme era gravado. O objeto era
filmado com o intuito de deixar claro seu funcionamento. Pode-se perceber que o
trabalho da câmera pretendia conservar e captar a vitalidade do objeto, visto que a ideia
de que o modo de filmar pudesse ser uma arte com valor em si, ou de que pudesse
fortalecer a mensagem transmitida pela obra, não havia nem sequer sido cogitada. A
verdade é que não se fazia ainda arte cinematográfica, mas só se gravavam imagens de
coisas. A deformação somente podia ser entendida como um erro, porque não havia nela
nenhuma intenção.
Só gradualmente – e provavelmente sem intenção consciente – surgiu a ideia de
se estabelecer uma forma da realidade filmada a partir da utilização das diferenças entre
filmagem e realidade, ou seja, pensar uma outra instância de trabalho, uma arte superior
à simples reprodução. Essa possibilidade fora até ali mantida despercebida ou então fora
simplesmente descartada, mas passou, em um determinado momento, ao contrário, a ser
alimentada conscientemente, exposta ao espectador como instrumento de inovações
formais artísticas. A gravação não se submeteria mais a um objeto filmado em si, mas a
uma ideia visual característica, ao esclarecimento dos conteúdos dos pensamentos, etc.
Depois de incorporado ao cinema, percebeu-se que um enquadramento
excêntrico produz um novo efeito além de caracterizar um objeto, que é o de agregar um
determinado sentido, de surpreender o espectador e de ressaltar características até então
ocultas do objeto, justamente ilustradas pelo modo de mostrar o objeto que se imaginava
ser totalmente conhecido. Podovkin disse, em seu admirável livro sobre cinema, que o
filme aspira de certo modo a elevar os espectadores acima do reino das concepções
comuns.
A visão serve ao homem comum em sua vida somente como meio de orientação.
Só se vê do mundo o quanto for necessário para se relacionar corretamente com ele. Ao
atender um cliente numa loja de artigos masculinos, o vendedor reparará menos na
aparência do rosto do comprador do que na gravata que ele usa (para conhecer seu
gosto) ou no padrão de preço de sua roupa (para estabelecer sua estratégia de
argumentação e venda). A mesma pessoa, num escritório onde busca uma vaga de
emprego, estará menos preocupada com a gravata do futuro empregador do que com a
sensação de aprovação ou reprovação expressa em seu rosto (para saber se está
agradando). É comum a muitos casais um não saber dizer qual cor têm os olhos do
outro. As pessoas não sabem que quadros enfeitam seu quarto, como é seu tapete, se sua
faxineira se veste bem ou é desleixada, etc. É uma exceção – em geral de pessoas
dedicadas e treinadas esteticamente – alguém de repente deixar seu olhar percorrer
despreocupado o outro para reparar nas mãos de seu interlocutor, para sentir a beleza na
forma de um telefone ou mesmo para observar o jogo de sombras sobre a calçada.
Para o entendimento de uma obra de arte, é fundamental que o observador esteja
aberto para perceber essas qualidades formais, ou seja, que se encontre num estado
alterado em relação ao funcionamento normal de sua percepção na vida, o que
evidentemente é uma situação antinatural. O que o cinema faz não é gerar um
conhecimento como, por exemplo: Ali está um policial! Na verdade ele faz dizer: Como
um policial se posiciona! Como foi caracterizado este policial! Ele foi bem produzido!
Como o ator pode se movimentar de forma a criar um personagem mais típico que
caracterize bem o policial! Como pode se dar mais dignidade a sua figura se ele for
fotografado de baixo para cima!
Há estratégias para conduzir o espectador a uma percepção assim. Se a tela
mostrar um barco a remo no lago, o público provavelmente constatará: “Ah, um barco a
remo”. E nada mais. Mas, se a câmera deslocar-se de modo que o público observe o
barco e os remadores do topo, estabelece-se uma perspectiva incomum e talvez nunca
antes vista pelo espectador. Deste modo, o interesse pelo objeto é substituído pelo
interesse pela forma. A forma de eixo que o barco assume chama a atenção do
espectador, assim como o singular fluxo dos remadores para frente e para trás -
aspectos que permaneciam despercebidos antes e se revelam, fortalecendo um lado
peculiar e rico do objeto. O observador é levado a reparar em algo novo mesmo a partir
do que já era conhecido há muito tempo e, assim, ele também é ensinado. Como ele foi
estimulado a notar se o objeto da realidade foi bem ou mal caracterizado, de modo
original ou simplório, a própria imagem do objeto serve como um treinamento cujo
resultado é o aprimoramento da capacidade de interpretação da verdade e das funções
dos objetos. O estímulo para isso foi despertado a partir da visão do inusitado no filme.
Eu vejo sobre a tela a projeção de um filme sobre o tema cavalo. Isso deveria significar
para mim não mais do que uma constatação, uma notícia de que um cavalo está ali. Se
ele é filmado de um ponto de vista diferente que mostre sua vitalidade, as qualidades
ópticas da imagem tornarão mais forte a possibilidade de transmitir a sensação de estar
ali um cavalo vigoroso – um grande animal de pelo brilhante, etc.. - ou seja, não só a
forma em si, mas também a capacidade de representação é fortalecida6.
Vale revisar em forma esquemática o que foi desenvolvido.
É característica da fotografia representar corpos sólidos a partir de um ponto de
vista congelado como superfícies bidimensionais.
Essa redução do tridimensional ao bidimensional é um recurso que pode se
tornar um instrumento do diretor, que a utiliza como meio com para os seguintes fins:
1 – Por meio dela, o objeto pode ser filmado de um modo inusitado e
surpreendente, chamando muito mais a atenção do espectador sobre o que é mostrado.
O objeto filmado ganha com isso um realismo cuja expressão de conteúdo é mais viva e
mais rica.
2 – O diretor não conduz a atenção do espectador só sobre o objeto, mas também
sobre suas qualidades formais. Surge a possibilidade de buscar pontos de vista
inusitados que oferecem ao espectador a condição de ver mais de perto e reparar: a)
como a nova forma impõe um recorte instigante do próprio objeto, algo que não era
conhecido; b) como a projeção do corpo sólido - numa superfície de contorno, linhas,
áreas em preto e branco e nítida limitação pela fronteira da moldura - serve para
construir uma bela representação do objeto. Que um ângulo só seja usado como
amostra, sem que para isso simplifique, estilize, altere ou desfigure, mas que sozinho
possa conduzir a um efeito especialmente artístico, só depende do talento de encontrar a
orientação correta e o ângulo apropriado.
3 – Chamando a atenção para facetas do objeto, o diretor faz com que o
observador perceba se o objeto foi bem caracterizado e de que modo o foi. Em outras
palavras, se ele é um bom exemplo de seu tipo (um bom modelo) e se ele se move e
reage como os objetos de sua espécie.
4 – Mas esse novo tipo de representação não serve apenas como meio de alarde e
trucagem com finalidade de tornar a imagem atraente. O objeto também pode se mostrar
a partir de um ponto de vista que assimile um saber em grau mais ou menos profundo
(“O preso como número”). Aqui também se pede um esforço especial para que o objeto
não seja deformado ou estilizado de qualquer modo, mas sim precisamente apresentado
como algo vindo da realidade capaz de criar este novo significado.
Para finalizar, mais um exemplo prático.
A imagem de uma situação bem cotidiana: um homem percorre uma rua. A
tomada mais comum seria que o cinegrafista tivesse filmado esse homem a seu lado ou
à sua frente. Vamos mostrá-lo, porém, visto de cima, com o que a ação é sublinhada e
chama-se a atenção para o fato de que uma fotografia de um corpo tridimensional deve
ser filmada de um determinado ponto de vista selecionado (não simplesmente registrar
passivamente o objeto). Não se vê o rosto do homem, porém somente seu chapéu, e do
alto. Mal se vê uma pequena parte do corpo (os ombros), de uma das pernas (somente o
6
O lado negativo disso é que o diretor que utiliza mal esse recurso cai no resultado inverso e
pode até mesmo comprometer a transmissão de uma mensagem, que se torna indecifrável por ser mal
transmitida ou por suas características serem desvirtuadas de modo a não produzir a impressão
pretendida.
sapato), e da outra (a parte inferior da coxa). Como imagem do objeto “homem
andando”, este quadro é o mais pobre possível. Um observador que nunca tivesse visto
um europeu ocidental andando não poderia nunca extrair nada da aparência física de um
homem a partir desta imagem. Mas o cinegrafista tem outra intenção. Ele descarta a
informação redundante do objeto e tenta instigar o espectador a extrair algo a partir da
imagem e do conhecimento que tem sobre o assunto, ou ainda, eventualmente, ensinar
algo novo por meio deste enquadramento estranho. Ele atua de modo idêntico ao de um
dramaturgo, que pressupõe que o público conhece as regras básicas de funcionamento
da alma humana. Não é preciso o autor dar aulas elementares sobre esse tema: ele
trabalha sobre a experiência comum e o conhecimento das pessoas em geral como
material de base das formas e sentidos da obra. Vejamos como analisar esta imagem a
partir dos tópicos anteriormente apresentados.
1 – Ninguém observará essa imagem sem se sentir instigado. O fotógrafo cria,
pela excepcionalidade do enquadramento, uma “imagem armadilha” como dizem os
publicitários. Enquanto a fotografia feita a partir de uma posição usual de câmera talvez
mal fosse reparada, a fotografia feita deste outro modo faz os olhos do espectador se
arregalarem e fortalece o próprio objeto: “Ah” - interpreta alguém - “vê-se ele correndo,
os braços se movimentam; o movimento para diante impregna de todo o corpo de vida”.
Temos um forte contato com esse homem.
2 – Nós não vemos somente um homem correndo, mas também o fato de que
uma imagem muito rara o representa. Então se conclui que: a) Quem já conhece sua
representação “normal” encontra um novo prazer nesta tomada: que a rápida visão do
topo do chapéu faz o papel da figura como um todo, que a bota se destaca sob a aba, que
o braço e a perna esquerdos parecem compor uma só figura. Pode-se dizer que é uma
variação do tema “homem andando” espirituosa e enriquecedora. Assim como um
desenhista nos dá a sensação de que uma pessoa conhecida ganha vida a partir de linhas
traçadas, também o cineasta oferece uma nova interpretação de um objeto conhecido
por meio de um ponto de vista inusitado; b) O corpo sólido do “homem caminhado” foi
transformado em uma imagem plana, e essa superfície organiza-se de modo a fortalecer
o inusitado: nós quase vemos a figura de uma estrela do mar. Isso porque o escuro do
corpo liga-se à sombra projetada no chão, formando uma espécie de cruz: a perna
esquerda e a bota da perna direita formam uma linha em diagonal em relação à moldura
da imagem e que se desloca do alto à direita para baixo à esquerda. o contorno de ambos
os braços constitui uma figura em S, cuja extensão principal do ângulo direito liga-se
com a direção das pernas; e aproximadamente no meio desta cruz está o chapéu
redondo. Em contraponto ao tópico “a”, em que chamamos de saber um novo
agrupamento de formas conhecidas, compreendemos agora em “b” o objeto puramente
como uma superfície preta e branca e observamos como ele se encaixa numa moldura
retangular na qual se apresenta de esboços de linhas e de superfícies.
3 – Para o ponto 3, nossa imagem não oferece um bom exemplo. Porque nada
pode ser falado de especial interesse sobre a escolha do objeto como típico. Trata-se de
um homem totalmente comum, de modo algum bem ou mal escolhido.
4 – Já se falou antes que o ângulo de filmagem escolhido tem um significado
conhecido, um sentido gerado no objeto. De modo mais penetrante do que num
enquadramento tradicional, vê-se neste exemplo como os braços impulsionam o corpo
que se dirige para frente, a caminhada torna-se muito dinâmica pelo vai e vem das
pernas esguias, bem como o chapéu que protege, cobrindo todo o ser, mostra claramente
sua função.
A projeção dos corpos sólidos no plano bidimensional da imagem não se
restringe somente ao fato de que todo o corpo deve ser mostrado a partir de um
determinado ponto de vista. Dentro deste tópico da projeção dos corpos, também
devemos tratar do fato de os distintos corpos se colocarem uns atrás dos outros, da
sobreposição, e do que os artistas num sentido aproximado chamam de uma
“composição”. As coisas, quando estão no mundo, situam-se num espaço que é possível
atravessar, observar de um lado ou de outro. Quando o espaço está representado no
filme, entretanto, a câmera coloca-se num lugar determinado pelo diretor (vamos tratar
adiante da câmera em movimento) e o que podemos ver é somente o que uma pessoa
seria capaz de ver com seus próprios olhos se permanecesse fixa e voltada para um
determinado lugar, ou seja, algumas coisas estão dispostas umas atrás das outras a partir
daquele ponto de vista: elas se colocam no caminho, umas encobrem as outras. A
impossibilidade de mobilidade do olhar é uma restrição, mas, mais uma vez, pode se
transformar num meio útil de controle da obra, visando obter resultados especiais.
Vejamos um bom exemplo:
No filme “Arsenal”, de Alexandre Room, encontra-se uma cena excepcional.
Um condenado foi levado à prisão. Ele é visto por trás, caminhando por uma longa viela
entre dois muros enormes. Numa rachadura do muro, ele encontra algo que não via
havia muitos anos: uma pequena flor que serve aqui (de modo até banal) como símbolo
da natureza e da liberdade de que há tanto tempo ele devia sentir falta. Ele pega a flor,
depois fica irritado, vira-se para trás – fica de frente para a câmera – levanta indignado
os punhos, esbraveja e se vira novamente para a direção original, seguindo seu caminho.
Então a câmera recua. A direção do plano permanece a mesma, mas a câmera salta
alguns metros para trás e se encontra agora por trás das grades, mostrando a cadeia onde
o homem estava preso até então e também que agora ele já se encontra em liberdade. A
grade fica em primeiro plano, encobrindo quase toda a imagem, mas através das barras
vê-se a mesma cena anterior: a rua de pedra com os muros como fossem dois braços
ameaçadores que saem da cadeia e se levantam em direção ao homem, tentando agarrá-
lo. Esse truque do diretor criou um efeito impressionante. E muito instrutivo.
A força da tomada explica-se pela hábil utilização da escolha na composição em
função do posicionamento de câmera. O que se vê a partir da óptica da câmera são os
elementos para entender a situação real filmada ali: havia um portão com grades de
onde partia uma rua cercada por dois muros compridos e um homem. Centenas de
enquadramentos seriam possíveis. A câmera poderia se mover de frente em direção à
cadeia, de forma que o portão gradeado estivesse ao fundo. Poderia mostrar o homem
passando pela grade aberta e acompanhá-lo, a seu lado, rumo à liberdade. A cena
poderia ser filmada do alto, fornecendo uma boa visão do conjunto geral da situação.
Esses quadros mais gerais foram preteridos na escolha do diretor. Entre o primeiro
enquadramento - em que não se veem as grades - e o segundo - feito a partir da prisão,
mas no qual a cadeia se revela mantendo a mesma composição por trás - não há nada
mais além da sobreposição pelas grades. Mas é justamente o fato desta diferença ser
mínima que dá o forte efeito desejado. Mostra, assim como no exemplo do homem
andando, que o artista escolhe muito frequentemente o enquadramento que nem sempre
é o que permite a visão mais clara, mais próxima, mais completa para expor a situação.
Já que o diretor encarrega-se da escolha do enquadramento, ele tem a
possibilidade de colocar na imagem o que quiser: ao encobrir o que não deseja mostrar
ou não deseja mostrar provisoriamente (seja o encobrindo por outro objeto ou deixando-
o de fora do campo), busca e coloca no quadro o que é importante para ele e o que
provavelmente fosse pouco relevante ser mostrado do ponto de vista da situação em si.
Ou seja, por meio do enquadramento, ele controla a composição como um meio de
expressão, estabelece ênfases, cria interpretações e pode mostrar o desimportante ou o
que encobre, sem interferir na situação em si mesma, a qual não precisa, de modo
nenhum, ser adulterada. Ele também pode mostrar coisas juntas, ou uma encobrindo em
parte a outra, tendo de escolher um enquadramento bem específico se quiser construir
um vínculo entre duas coisas que ressalte sua relação.
No enquadramento I não se podiam ver as grades, ou seja, o tema “cadeia” não
está ainda presente na imagem. O espectador vê o preso andar na estrada, livre, não
mais na cela. E, de repente, a personagem se irrita, e o objeto de sua indignação, a
prisão, é colocado em cena pelo truque muito convincente, sem que uma troca de
ambiente fosse necessária (o diretor poderia ter recorrido, por exemplo, como se vê
frequentemente, a colocar inserções de imagens da cadeia ou da cela), ou por uma
“lembrança” ou “visão” que esclarecesse tudo. Mas o motivo é mostrado a partir da
própria situação: as grades avançam de modo brilhante sobre a imagem, como se a
cadeia fosse uma personagem antagônica que entrasse em cena.
O que faz do enquadramento um grande recurso não é somente que a ideia de
cadeia tenha sido conduzida de alguma forma à cena, mas também que o modo como
isso ocorre mostra-se muito apropriado: de repente, as grossas barras de ferro da grade
cobrem boa parte da tela, da cena anterior. Elas aparecem e (aqui há a colaboração de
um outro recurso fílmico específico que será analisado adiante por motivo didático)
estas barras se tornam gigantes em comparação com o que se encontra no fundo da
imagem, ou seja, com o homem em proporção pequenina: um convincente símbolo do
violento poder da Justiça que torna o homem impotente e que sempre pode novamente
recair sobre ele.
O cineasta que transforma em um talento o processo de escolha do
enquadramento organiza o objeto conforme sua vontade: coloca em primeiro plano o
que é para ele importante, encobre o que não é e, dos objetos, tira relações. As grades e
o homem estão à mesma distância um do outro. Por outro enquadramento de câmera,
essa distância seria mostrada de modo claro, se bem que talvez não fosse de modo
nenhum possível sobrepor as grades e o homem nesse outro tipo de plano. O
enquadramento perderia a relação homem-grade que o fato de eles aparecerem juntos
possibilita criar. A grade passaria despercebida numa outra posição, ficaria com todo o
seu sentido simbólico ocultado, porque esse significado nasce justamente da
apresentação de ambos sobrepostos. Ele surge por meio do recurso de que a grade não
está na cena num primeiro momento e então, enquanto tudo o mais permanece igual, ela
entra - a melhor maneira de chamar a atenção sobre si mesma e de tornar gritante que
ela não entrou ali sem intenção. Ela entra em cena como se fosse um ator. Vê-se como o
diretor conduz a atenção do espectador, dá a ele direções, induz a extrair dos objetos
significados por meio da utilização de seu meio.
Somente nos trabalhos dos grandes cineastas encontram-se cenas que conseguem
extrair com tamanha simplicidade um sentido simbólico tão profundo. Na maioria das
vezes, o sentido apresenta-se numa camada mais superficial e às vezes não há sentido
algum. No filme “Diário de uma garota perdida”, de Pabst, o ajudante da farmácia beija
a filha do patrão. Ela está perto da porta de vidro da loja. A cena é filmada do lado de
dentro: a câmera está na loja, vê-se o casal se beijando e, atrás dele, a porta de vidro que
abre para fora. Então o enquadramento salta para outro lugar: o casal continua no
mesmo lugar, mas a câmera posicionou-se fora da farmácia e se veem os dois através da
porta de vidro. Esta alteração no enquadramento não tem nenhuma função, não
representa nada - e coisas que não significam nada não devem ocorrer num trabalho de
arte. O sentido desta sequência é superficial, é decorativo. Ver de fora através do vidro é
tão agradável aos olhos como ver de dentro. Podemos comparar esta situação com a de
um músico quando expõe seu tema em tom maior e, em seguida, em tom menor. A
vizinhança formal no caso das tonalidades tem de fazer sentido suficiente em relação à
música inteira para que se justifique, e é assim também no caso do cinema – e do teatro.
Quando as alterações não conseguem enriquecer a obra, elas são fracas do ponto de
vista estético. O enriquecimento teria ocorrido se o duplo posicionamento de câmera
tivesse agregado um novo sentido à situação. A filmagem do enquadramento II poderia
mostrar que alguém acompanhava a cena de fora, que seus olhos se voltassem em
direção à farmácia, de modo que seria por meio da mudança de posição da câmera que
se perceberia esse novo personagem - um acréscimo no conteúdo. O ponto de vista da
situação seria então transferido de dentro da farmácia para o novo personagem que vê
de fora com a ajuda do enquadramento II, e a troca de lugar assim seria plenamente
justificada por acrescentar informação. Mesmo assim, seria somente um sentido
relativamente superficial, pois serviria a uma adaptação óptica da exposição do enredo,
sem nenhuma profundidade simbólica7.
A sucessão de ambos os planos no filme de Pabst recorre somente aos tópicos a
e b do ponto 2 de nossa esquematização, mas tomadas desse tipo são insuficientes num
filme dramático uma vez que, por terem só interesse puramente decorativo e formal,
servem somente para o deleite dos olhos. Em 2 a: é bonito ver, um sobre o outro, o
vidro e o casal ou ver como o reflexo do vidro sobrepõe os rostos e a moldura da porta
serve de quadro para os rostos. Já em 2 b: o padrão estimulante que a sobreposição da
forma da porta e das formas humanas estabelece, a sobreposição das superfícies, a
variação de luz.
Esse mesmo estímulo serve naturalmente à cena da grade de Room, mas sem se
contentar ali somente com isso. A imagem é bonita, a pequena figura do homem sendo
encoberta pelas barras gigantes da grade: um feliz truque puramente óptico.
Nos dois exemplos dados até aqui, o princípio do enquadramento foi utilizado
para criar uma relação entre dois objetos a partir da disposição dos dois em perspectiva:
grade e preso em um, porta de vidro e casal no outro. Isso é obtido pela possibilidade de
se ver através de objetos como grade e vidro. Esta disposição de uma coisa na frente da
outra é muito utilizada também para esconder um objeto atrás do outro. Vejamos
exemplos de três filmes distintos.
O primeiro exemplo é muito semelhante ao que já vimos em “Imigrante” de
Chaplin (reforçando a ideia da tênue fronteira entre os recursos chamados de “visão do
corpo numa superfície plana” e “sobreposição em perspectiva de dois corpos”). Trata-se
de um curta-metragem, em que Chaplin foi abandonado pela esposa porque é um
beberrão. Ele aparece de costas para a câmera, sentado a uma mesa sobre a qual se vê
uma fotografia da mulher que o deixou, e chacoalhando os ombros, aparentemente
soluçando, chorando, sofrendo. O ator vira-se no momento seguinte na direção da
câmera e a situação sofre uma reviravolta: o motivo da agitação dos ombros é que ele
chacoalhava com as mãos um recipiente para fazer um coquetel, feliz da vida. O
enquadramento mostrava Chaplin no primeiro plano, mas de modo que as partes
visíveis do corpo dele não conseguissem esclarecer a situação real suficientemente. O
ocultamento de um corpo – Chaplin que faz uma caipirinha - por outro – as costas do
homem em agitada movimentação -, com uso da sobreposição, poderia ser visto como
uma limitação do cinema – o ocultamento também dificulta a representação da ação
dramática -, mas estamos vendo como diretores habilidosos aproveitam-se desta
“dificuldade” a qual possibilita um jogo de esconder que ganha a dimensão de criação
7
Para possibilitar, por seu intermédio, um alargamento do entendimento num todo, o enquadramento de
um filme não precisa ter sempre a mesma densidade da cena da grade em “Arsenal”. Ao contrário, é pela
oscilação do grau de profundidade que se enriquece a composição do filme.
artística. Este princípio é particularmente rico porque criou um mecanismo de
ocultamento inexistente antes do cinema, um artístico “esconder atrás”: como não é
surpreendente ver um homem de costas, achamos que a imagem deve ser suficiente para
mostrar o que ele faz, e, como ele se desespera, a composição da imagem transparece
claramente que sua esposa fugiu. Deste modo, o espectador ganha plena certeza de que
ele chora, mas o pequeno homem vira-se e revela-se feliz.
Segundo exemplo: cena do filme “A dama misteriosa”. A espiã Greta Garbo
matou um general russo no consulado. Há grande risco de que a ação seja descoberta,
porque há soldados na porta que esperam para serem recebidos pelo superior. O corpo
do general está sobre uma poltrona de braços cujo largo encosto está voltado para a
porta por onde os soldados deverão entrar. Não se consegue ver o corpo a partir dali,
mas somente o braço do morto sobre o encosto da poltrona a partir do ponto de vista da
porta. Os soldados batem insistentemente. Greta Garbo senta-se sobre o braço da
poltrona e grita: “Entrem!” Então a câmera mostra o ângulo visto a partir da porta para
que o observador veja o quarto do mesmo modo como os soldados que entram e logo se
contêm em posição de sentido. O largo encosto da poltrona deixa entrever, no suporte de
braço, a mão do general ao lado da perna de Greta Garbo sentada e com o rosto virado
para a porta e para o espectador. Os soldados cumprimentam a dama e pedem
instruções. Greta Garbo cochicha na direção do ouvido do morto, simula ouvir sua
instrução e dá a eles uma resposta. Os homens viram-se e partem... O perigo se foi!
Terceiro exemplo: em “A linha geral”, de Eisenstein, uma pobre camponesa vai à
propriedade de um homem rico para pedir emprestado um cavalo. O gordo gulag está na
cama, levanta-se em frente a ela e grita a humilhando. Eisenstein posiciona-se com a
câmera por trás, de modo que se enxerguem suas largas costas como se fossem de um
gigante (em primeiro plano). Elas se erguem e encobrem totalmente a camponesa que
parece ridiculamente pequena no fundo da cena - a imagem é toda ocupada de repente
por essas costas desproporcionais. O poder e a pompa são representados por meio do
hábil enquadramento, as costas, obstruindo a câmera, ocupam todo o espaço e a
camponesa suplicante, pequenina, mal é vista por trás. Resultado: a imagem mostra que
o poderoso oprime e encobre – a mulher praticamente já não se encontra mais ali.
Em “Arsenal”, um recurso muito parecido é utilizado, mas não dá o mesmo
resultado. Um carcereiro entra na sala do diretor para fazer uma revelação. Como a
poltrona alta é mostrada de costas, assim como no filme de Greta Garbo, não sabemos
se há alguém sentado nela. Mas o carcereiro começa a falar, portanto o diretor está e
logo sai de trás da poltrona – é a entrada do diretor em cena. É uma estratégia bastante
diferente, mas é desmotivada, sem sentido. Fica parecendo simplesmente um truque do
diretor, sem importância para o desenvolvimento do enredo, e, por este motivo, o efeito
não impressiona muito. Gera um efeito puramente decorativo, algo do tipo 2 b de nossa
tabela da página 57: ele mostra através de um jogo de esconde das formas o que é
possível fazer por meio da perspectiva, mas não cria com isso qualquer outro sentido, já
que seria indiferente que o diretor tivesse saído de trás da poltrona ou de trás de um
candelabro.
Agora um exemplo do tipo 1 (pág. 57). Assim como se pode extrair uma
impressão particularmente cheia de vitalidade de um objeto apropriado por meio de um
enquadramento excepcional, pode-se fazer o mesmo também a partir da sobreposição de
dois corpos localizados um atrás do outro no espaço. No início de “Novos senhores”, de
Jacques Feyder, é mostrado o ensaio de uma ópera. Uma cena assim já foi representada
dezenas de vezes, e, em geral, passa despercebida. Mas, desta vez, nós nos sentimos
como se estivéssemos sobre o palco, no tumulto da preparação. Para obter esse efeito: a
câmera fica no alto, junto aos refletores do palco, e filma voltada para baixo. Próximas a
ela, veem-se as silhuetas de dois funcionários, grandes, em primeiro plano. Eles se
inclinam para frente e lançam uma corda sobre o palco. Vê-se o chão do palco ao fundo,
fortemente iluminado como a superfície de água de um poço. Lá embaixo, outros
funcionários ocupam-se em estender um tapete: eles estão colocados tão ao fundo que
parecem pontos, figurinhas. A corda que cai em sua direção parece ser tão deformada
que os seus movimentos oscilatórios mal são notados. Somados, a grande profundidade,
o contraste de iluminação entre o claro do palco e o escuro dos bastidores, a corda
balançando, a diferença de tamanho entre os trabalhadores na penumbra no alto e os
outros muito iluminados no chão, tudo isso agrega um valor representativo imenso à
cena. É possível sentir a poeira e o sopro de vento fresco do ar do teatro.
Já refletimos a respeito das dificuldades que podem surgir em razão da
necessidade de adotar um certo enquadramento e, respectivamente, de encontrar o modo
de mostrar distintos corpos em uma sobreposição, um encobrindo o outro. Deve haver
um método mais adequado de se posicionar quando é preciso mostrar um grupo de
pessoas que ouve alguém. É difícil equacionar a situação oferecendo uma boa visão
dela. Quando a câmera é colocada às costas das pessoas, encobre quem fala. Pode-se
contar com o recurso de colocar a câmera por cima do grupo: a câmera se vê mais
claramente no centro da conversa e pode mostrar todos a partir dali. Um ângulo assim
encontra-se em “A noite depois da traição”, de Arthur Robison.
Uma dificuldade que ocorre dezenas de vezes num filme e que sempre se tenta
tratar de modos distintos é a de registrar o diálogo entre duas personagens. Seria bom
mostra-las atuando claramente, com o enquadramento do rosto das duas no melhor
ângulo... Mas isso não é possível infelizmente, porque, quando duas pessoas encontram-
se frente a frente, uma delas terá de ser mostrada de frente, e a outra de costas na
imagem. Pode-se recorrer a um plano com ambas de perfil, mas, na maioria das vezes,
não se consegue assim captar bem as expressões nem mostrar claramente a gesticulação
dos atores. Recorre-se a utilizar uma montagem: mostra-se o diálogo a partir de uma
troca de posicionamento de câmera - sempre com um falando e aparecendo primeiro, e
outro falando e aparecendo em seguida – e montagem é feita a partir das gravações da
mesma cena feitas diversas vezes utilizando os dois melhores enquadramentos possíveis
para cada um dos atores; ou então se arrisca mostrar um dos interlocutores de costas.
Um belo exemplo desse tipo de solução encontra-se no filme “A senhora do Amor”, de
Clarence Brown, com Greta Garbo, quando um pai fala com seu filho. Vê-se a silhueta
do pai de costas para a câmera, muito grande, próxima no primeiro plano, e, ao fundo,
sentado, bem pequeno, e sob forte iluminação, o filho, cujo rosto está voltado para o pai
e para a câmera. Não se consegue ver o rosto do mais velho, mas o que ele fala capta-se
não só por seus modos, seus gestos como também, e inclusive pelas reações percebidas
a partir do rosto do filho. Este discurso trazido indiretamente ao conhecimento do
espectador é muito enfático e vivo e então, mais uma vez, uma restrição do meio de
gravação pode ser transformada num trunfo.
No filme “Novos senhores”, de Jacques Feyder, há uma solução muito original.
Um casal está conversando. Suas cabeças estão muito próximas e então se passa para
um primeiro plano no qual metade da imagem fica encoberta pela silhueta negra da
parte de trás da cabeça do homem (a câmera fica atrás dele) e recobre metade do rosto
da mulher, já que a outra metade do seu rosto é fortemente iluminada. Por meio desta
apresentação pela metade, a situação torna-se cheia de vida e de expressão. Em outra
cena, os dois se encontram no guarda-volumes feminino do teatro. Ela está à frente do
espelho e se maquia: seu rosto aparece de frente no espelho e, ao lado, está o rosto do
homem que se ocupa com alguma coisa e olha para ela. Assim, consegue-se que o
espectador veja os dois rostos de frente, embora um esteja de frente para o outro – o que
não seria possível sem o espelho.
Leon Moussinac demonstrou, em seu instrutivo livro Panorama do Cinema (no
capítulo sobre “Variedades” de Dupont) que a variação casual de enquadramentos
inteligentes, apropriados e cheios de expressividade, é um achado tardio do cinema de
arte. Anteriormente, a câmera era deixada na frente dos atores e o diretor tentava gravar
de modo que tudo fosse claramente visto, mesmo quando corria o risco de perder algo
da espontaneidade do ator. Moussinac diz que:
O filme não foi distribuído até que de Mille retrucou seu produtor a partir da
autoridade misteriosa que exercem os grandes mestres europeus. Ele telegrafou de volta:
“Se o senhor for tão estúpido a ponto de não reconhecer o chiaroscuro de Rembrandt
quando vê este filme não precisa mais me responder”.
Foi o bastante. O lançamento proclamava o filme com o slogan: “O primeiro
filme iluminado no estilo de Rembrandt”. Foi lançado a um preço que era o dobro do
ingresso normal. E foi bem sucedido.
Essa história é muito ilustrativa de como aprendemos a ver com outros olhos.
Hoje, o grande público já está acostumado com modalidades de iluminação como a que
de Mille experimentou pela primeira vez (sem valorizá-la em si mesma como recurso
artístico). Mas, naquele tempo, a imagem cinematográfica ainda tinha de ser fiel ao
objeto, e toda alteração deste padrão de realismo era vista como uma deformação da
realidade, ou seja, um desvio do objetivo principal do filme. Um homem iluminado de
um só lado seria visto na tela como meio homem, mas, no mundo real, os homens não
são divisíveis ao meio. Conclusão: a imagem do senhor de Mille não prestava. Uma
equação simples: a fonte de luz devia ser disposta de modo que o objeto fosse
claramente reconhecido em cada parte. Não se queria nenhuma sombra perturbadora,
mas sim uma visão clara. Só mais tarde se aprendeu a utilizar a luz como meio de
expressão que devia ser colocado a serviço dos efeitos artísticos.
UTILIZAÇÃO ARTÍSTICA DA
9
Assim como há toda uma categoria de efeitos em exposições artísticas para se obter uma sensação de
realidade com a ajuda de outros tipos de materiais
LIMITAÇÃO DO CAMPO E DA DISTÂNCIA DO OBJETO
“No trabalho dos cinegrafistas, não há nenhum espaço para a arte. Eles
fotografam a ‘arte de outros artistas’. Não há o que falar a respeito de nenhuma
peculiaridade do trabalho dos atores de cinema, de nenhuma arte particular dos filmes
ou de métodos de produção da imagem pelo diretor. O que faz de específico um diretor
cinematográfico o tempo todo? Segue o curso do script, que é exatamente igual a um
roteiro feito para o teatro; só que as palavras das personagens são retiradas e
substituídas pelas possibilidades do movimento corporal sem o som e muitas vezes pela
apresentação de legendas. O diretor monta as cenas numa ordem puramente teatral; ele
organiza entradas e saídas, movimentos, transições. Com a cena assim organizada, ele
procede com a ação e o cinegrafista simplesmente registra em película
cinematográfica... a câmera permanece totalmente fixa à frente das cenas já formadas e
desenvolvidas por si próprias”.
10
O que se observa muito na teoria dos russos, mas pouco na sua prática visto que mesmo eles elegem
com cuidado imagens das quais e pode extrair rico sentido mesmo a partir do material bruto fotografado.
3 – Similaridade. “No final de ‘A Greve’, as cenas do assassinato dos
trabalhadores são intercaladas por cenas do abate de um boi no matadouro”. Esta
categoria volta-se bastante para o conteúdo. Ela é, a princípio, indiferentemente válida
se for utilizada na montagem por sobreposição ou colocando uma imagem após a outra.
(A primeira forma pode ser tida como mais eficiente!).
4 – Sincronismo. – Dois eventos mostrados sucessivamente mantêm uma
relação por ocorrerem no mesmo momento (Por exemplo, em “Burguesia”, de Schiller,
enquanto um amigo corre para casa, o outro é aprisionado. Percebe-se um paralelismo
em relação ao tempo. Somos tomados por um suspense: haverá tempo suficiente para
ele salvar o amigo?) Aqui surge um terceiro princípio a respeito do qual as três
classificações anteriores não faziam menção. Nos outros três métodos, nada havia sido
dito a respeito da continuidade temporal da montagem.
5 – Leitmotiv (tema recorrente). – “Se o autor pretende sublinhar um
pensamento fundamental do roteiro de modo especial, ele pode ser auxiliado pelo
método da repetição. A cena característica é colocada diversas vezes de forma parecida
no roteiro, como se fosse um refrão”. De novo, um problema puramente de conteúdo.
Não é um esquema muito bom de classificação... Timoschenko apresenta quinze
princípios da montagem. Vejamos:
1. A troca de lugar;
2. A troca do local da câmera;
3. Mudança de enquadramento;
4. Destaque dos detalhes;
5. Montagem analítica;
6. Flash-back;
7. Salto para o tempo futuro;
8. Acontecimentos paralelos;
9. Contraste;
10. Associação;
11. Concentração;
12. Alargamento;
13. Montagem monodramática;
14. Refrão;
15. Montagem.
Essa divisão não será aprofundada porque também possui lacunas. Trata-se de
uma simples enumeração de fatores, certamente incompleta e assistemática, alguns dos
quais não deveriam estar lado a lado, mas subordinados uns aos outros.
Vamos tentar apresentar uma outra divisão detalhada a partir dos sistemas de
Pudovkin e de Timoschenko.
OS PRINCÍPIOS DA MONTAGEM
I) Princípios de corte
a) Sincronismo
b) Antes e depois
b) Mudança de lugar
a) Similaridade
1) De forma
A) A forma do objeto (em “Os homens da Renânia do
Sul”: da barriga redonda do estudante passa-se a mostrar, com uma forma parecida, uma
montanha abaulada.);
B) A forma do movimento (do vai e vem do pêndulo
do relógio segue-se o movimento de um balanço no parque).
2) De conteúdo
11
A ligação verossímil, que aparenta ser uma montagem “correta” de um ponto de vista da naturalidade da
cena, de sua semelhança com a realidade.
A) De um objeto singular (montagem de Pudovkin:
preso feliz, riacho, pássaros nadando, criança feliz);
B) Cena como um todo (Eisenstein: os trabalhadores
são mortos, o boi é abatido.)
b) Contraste
1) Da forma
A) Da forma do objeto (um homem gordo e depois
um magrinho);
B) Da forma do movimento (depois de um
movimento rápido, outro lento);
2) De conteúdo
A) De um objeto (um desempregado faminto, uma
vitrine de doces em uma padaria).
B) Da cena como um todo (na casa dos pobres e na
casa dos ricos);
Essa exposição não pretende ser completa - e com certeza não o é. Ela deve ser
vista somente como uma estrutura que oferece uma visão panorâmica aproximada.
Pode-se acrescentar ainda algo aos enunciados no ponto IV: os trechos de filme
podem ser colados na montagem, como se observa frequentemente nas boas montagens,
de modo que eles não sejam somente adição de informações quando colocados lado a
lado, mas que acrescentem coisas distintas deles em razão da ligação estabelecida. Na
cena de Eisenstein, a simples exposição do assassinato das massas trabalhadoras,
combinada com a cena do abate bovino, gera um forte significado. O significado puro
de uma cena individual é transformado pela montagem. Se a figura de um homem muito
alto é mostrada depois da de um homem bem pequeno, o valor da altura do homem
maior, para o espectador, será muito diferente do que se ele tivesse sido mostrado só: a
altura é realçada pelo contraste. Mas é comum esta indução ir bastante além, podendo
até parecer que duas cenas em sequência constituem uma só, que quase não seja
percebida a separação entre o homem pequeno e o grande, a ponto de se pensar, em vez
desta oposição, simplesmente que o homem pequeno esticou-se. Vê-se um rosto gordo e
redondo e, logo a seguir, um estreito e longo, dando a impressão de que o primeiro rosto
afinou-se, tornou-se estreito e longo.
O mesmo tipo de fenômeno foi observado pela psicologia experimental.
Wertheimer escreveu um trabalho de pesquisa sobre “a visão do movimento”, no qual
ele coloca duas lâmpadas, separadas por poucos centímetros uma da outra, num quarto
escuro. Com a escolha correta da distância entre elas e do tempo com que irão piscar
alternadamente, dá-se a impressão ao observador de que não se trata de duas fontes de
luz separadas e próximas, mas sim uma única fonte que corre da esquerda para a direita
e retorna. Esta junção dos raios de luz, que são objetivamente separados, em uma única
percepção contínua observa-se também na montagem do cinema. Na verdade, o
fundamento que possibilita ver o movimento na imagem também parte deste princípio.
Objetivamente, as tiras de filme são constituídas por imagens estáticas e só se consegue
apresentar a impressão do movimento contínuo porque elas são projetadas uma sobre a
outra muito rapidamente e porque elas são quase perfeitamente iguais. O cinema tem
por fundamento a montagem de imagens individuais. Uma montagem despercebida.
Elevar este efeito a uma escala, por assim dizer, macroscópica, ou superior, explica os
efeitos que já foram agora discutidos. Se for mostrada uma imagem I com um rosto de
perfil e uma imagem II com o rosto de frente, surgirá para o observador a impressão de
que o rosto virou-se para frente.
Esse fenômeno já foi utilizado para obter efeitos estritamente artísticos. Há uma
famosa cena de Eisenstein que mostra um leão de pedra levantar-se e rugir. Esta cena foi
montada a partir da filmagem de três estátuas diferentes de leão. Primeira estátua: um
leão deitado. Segunda: um leão sentado. Terceira: um leão de pé que ruge e parece
irritado. É obtida, então, uma impressão muito forte, por intermédio desta montagem, de
que a pedra ganhou vida. Um efeito muito semelhante está em “Assim é a vida”, de Carl
Junghaus. Imagem I: um santo com os braços cruzados. Imagem II: um santo parecido
que eleva os braços aos céus. Efeito (com forte acento simbólico): o sagrado está vivo e
dá um sinal.
Esse princípio possibilita que a trucagem da montagem não se constitua num
simples enfileiramento de imagens de tempos e lugares distintos disparatados, e sim que
se forneça uma unidade tão forte da ação que nem se nota se tratar de montagem, e a
aparência construída é projetada como se fosse realidade. Se forem retirados alguns
quadros de uma película contínua que mostra uma pessoa caminhando, dar-se-á a
impressão para o espectador de que o caminhante foi jogado para frente, mas o mesmo
observador não percebe facilmente que esse efeito foi obtido pela colagem de imagens,
que são contínuas. Talvez nem seja bom chamar este tipo de colagem de montagem para
destacá-lo dos métodos anteriormente apresentados. A montagem no sentido apropriado
da palavra implica em que o espectador perceba nitidamente quando são colados trechos
de filme diversos: ela serve para combinar agrupamentos da realidade em torno de uma
ação. Já o exemplo dado a pouco não serve unicamente para unir situações
descontínuas, mas altera a própria natureza da ação contínua. Pode-se querer fazer
pessoas aparecerem do nada ou desaparecerem repentinamente (Chaplin usou este
truque, e também os surrealistas franceses, como René Clair, o fizeram: um homem
sacode a varinha mágica e o público desaparece). Pode-se também produzir uma
aceleração do tempo, por exemplo, no filme “Mercado em Berlim”, de Wilfried Basse,
em que há uma cena que mostra como as tendas vão se erguendo na praza vazia. O
efeito é obtido construindo-se uma imagem a partir de tomadas feitas de meia em meia
hora e colando lado a lado aquilo que na realidade demorou para acontecer, portanto se
veem as tendas surgirem rapidamente em poucos segundos, num passe de mágica, até
que a feira mostra-se totalmente montada. Contudo, esta “montagem despercebida”
também pode ser usada para construir cenas menos antinaturais. Seria possível que um
giro repentino da cabeça, um voo ou mesmo outras situações parecidas ganharem
vitalidade com a retirada de alguns quadros da película. Assim é possível criar
movimento para coisas imóveis, como já foi exemplificado acima no caso dos leões.
O exemplo mais elementar desse tipo de “montagem despercebida” e que já vem
pronto como princípio primário da filmagem, é o fato de o projetor mostrar rapidamente
os fotogramas estáticos da ação, uns após os outros, produzindo a crença de se ver uma
imagem da ação em movimento.
Acima (pág. 41) foi comprovado como a perda da sensação de equilíbrio pela
gravidade e do uso dos músculos do corpo associada à visão determina uma diferença
entre a imagem sobre a tela, filmada por uma câmera, e a imagem do mundo, obtida
pelo olhar. Uma pessoa sabe responder em qualquer momento se seus olhos olham
horizontalmente, para cima ou para baixo. Ela sabe se os olhos e o corpo estão parados
ou em movimento, e ainda em que grau de velocidade se move). Ao contrário, o
espectador não sente qual é o posicionamento da câmera com que uma imagem de
cinema é feita e, portanto, ele assume a princípio que a câmera permaneça sempre
parada - a não ser que o conteúdo da imagem indique algo em contrário - e que ela está
posicionada na horizontal, direcionada em linha reta. Se um objeto move-se sobre a
imagem de cinema, o espectador acredita que ele objetivamente se moveu, mas não que
a câmera moveu-se em relação ao objeto que permaneceu estático. E, conforme as
coordenadas espaciais indiquem, ele sempre vai considerar que o que está no alto da
imagem é algo elevado no espaço, em vez de pensar que a câmera poderia estar
colocada numa certa inclinação.
Encontra-se o uso da “relativização do movimento” em cenas de “O Doutor
Mabuse”, quando a cabeça do malfeitor aparece sobre um fundo preto e cresce
repentinamente, pela aproximação da câmera, até ocupar a tela toda em tamanho
gigante, para demonstrar como esse homem misterioso é poderoso. Na filmagem, não
foi o rosto que se moveu na direção da câmera, e sim esta é que foi movimentada. No
filme russo “O documento de Shangai”, há imagens de uma corrida de cavalos. Elas
mostram cavalos montados por jóqueis na pista com inserts intercalados de uma
bandeira tremulando ao vento, a qual é muito interessante porque no pano está gravado
um cavalo a galope montado por um cavaleiro. A tremulação da bandeira pelo vento
parece dar vida ao desenho, porque o cavalo ocupa todo o campo (em close), não
deixando ver o que está ao redor da bandeira. Deste modo, a bandeira passa a se
assemelhar a um cavalo real em movimento, como se o desenho estivesse animado,
correndo, e a câmera corresse a seu lado, acompanhando o deslocamento - para assim o
desenho continuar sempre no centro da imagem. Um truque sutil, mas com um ótimo
resultado: a ilusão de uma ilusão. Para obter, a partir da imagem, a ilusão de que a
câmera se move acompanhando um objeto em movimento, a bandeira é filmada de um
modo muito específico. E o mais impressionante deste resultado é que ele é obtido a
partir de uma restrição do meio cinematográfico - que tem de ser sempre respeitado -,
ou seja, o espectador, na verdade, não sabe se a condição estática do objeto é real ou
somente relativa, visto que a bandeira poderia estar se movendo também. Enfim, este
resultado não é obtido a partir de um artifício de manipulação da realidade, mas sim a
partir da própria essência de algo do mundo, a ondulação de uma bandeira.
Em “Os quatro diabos”, de Murnau, há uma cena num circo: um cavalo branco
gira na arena num belo trote. A câmera segue o cavalo de modo a mantê-lo no centro da
imagem, mas como se estivesse parado porque suas patas não estão visíveis: aparece
apenas a parte superior do corpo. Tem-se a impressão de que o fundo gira, num
travelling panorâmico do picadeiro que muda o tempo todo para o espectador.
O movimento aparente da imagem, obtido por intermédio da movimentação da
câmera, foi utilizado por Pabst, na “Ópera dos três vinténs”, com muita propriedade
para ressaltar o caráter de fábula do seu filme.
Com a perda da sensação de equilíbrio gravitacional, a tomada em “perspectiva
de rã” também se torna particularmente poderosa. Se um homem é filmado de baixo
para cima, é possível perceber que a cena foi filmada com a câmera inclinada para cima.
Mas esta não é a primeira impressão da percepção da imagem: o espectador acha antes
que a imagem na tela é vertical e que é a pessoa que se encontra inclinada. Ela parece
não estar totalmente reta, e sim um pouco inclinada para trás, sua parte de baixo mais
próxima da lente e a de cima mais distante.
1 – A movimentação de câmera
Até aqui a análise concentrou-se, na maioria dos casos, na câmera fixa. Mas bem
se sabe que a câmera pode ser montada sobre um carrinho, pendurada num cabo ou
elevada e girada para dar uma vista panorâmica ou de algo da situação. Pela
aproximação da câmera, o objeto torna-se maior e, ao mesmo tempo, aparece menos o
que está ao seu redor. Há a possibilidade de se conduzir, num movimento contínuo, uma
imagem em tomada geral para um close de um detalhe, sem que seja necessária uma
montagem. Assim como o contrário também se dá, o afastamento da câmera leva à
transformação do close em um plano geral.
A movimentação de câmera é útil principalmente quando o ambiente em torno
da ação não permanece o mesmo – diferente do que se dá no teatro mas também muitas
vezes no próprio cinema. Ocorre então uma inversão, em vez de um palco por onde as
personagens passam e se deslocam, surge, por assim dizer, uma situação em que as
personagens não se alteram no transcorrer da ação, o que passa a se modificar é o seu
entorno. A câmera pode acompanhar o herói, seguir com ele por todos os cômodos de
uma casa, subir as escadas, percorrer ma rua, sendo que o personagem permaneça
sempre do mesmo modo e no mesmo tamanho na imagem, enquanto é o ambiente quem
se altera, gira numa tomada panorâmica, muda permanentemente. Isso dá ao diretor um
recurso que seria muito difícil de conseguir no teatro, a possibilidade de mostrar o
mundo como um contraponto do indivíduo, colocando o homem no centro de seu
mundo. Portanto, uma experiência muito subjetiva que surge a partir da exposição de
elementos visuais.
É possível apresentar, deste modo, experiências marcadas por uma profunda
subjetividade, ou seja, produzir facilmente, por intermédio de uma movimentação
apropriada de câmera, uma simulação da visão de “tudo o que se apresenta aos nossos
olhos”, causando no espectador as sensações de enjoo, vertigem, incômodo, a impressão
de que ele se levanta, etc.
A câmera ganhou muita mobilidade com o surgimento dos tripés com
movimento articulado que, segundo o Dr. Nicholas Kaufmann, foi desenvolvido pelo
pesquisador americano Akeley para poder obter imagens mais estáveis do voo de
pássaros e da corrida de animais. Antes, os tripés só permitiam movimentos da esquerda
para a direita ou de cima para baixo. Todos os outros movimentos eram obtidos somente
pela combinação desses dois, por meio de uma manobra muito complicada envolvendo
duas manivelas (sem falar na terceira que rodava o filme). Hoje a câmera tem uma
simples manopla com a ajuda da qual é possível controlar qualquer movimento. Os
operadores de câmera ainda utilizam, para determinadas tomadas, câmeras muito mais
leves que podem ser sustentadas diretamente com as mãos.
2 - O filme montado na direção reversa
Ainda nos encontramos muito no início no que se refere ao uso de efeitos que
não sirvam para ser utilizados como meio de representação apropriada a um filme
realista, justamente por eles criarem um tipo de imagem que entra em conflito radical
com o que costumamos ver no mundo natural. Entretanto, eles oferecem extraordinárias
possibilidades para os artistas que não se contentam em servir simplesmente como
escravos da obrigação de se produzir uma imagem semelhante à do mundo real. Tudo o
que foi mostrado até aqui, em termos de meio de expressão cinematográfica, desde a
escolha do ângulo de filmagem até a montagem, pode ser utilizado em geral para
mostrar ao espectador uma imagem parecida com a da realidade (mesmo que
artisticamente escolhida e formatada), mas também se presta a produzir trucagens que
analisaremos a partir de agora, com as quais se podem produzir leituras plásticas a partir
da realidade, apesar de gerarem imagens que não dão a menor impressão de ser algo
real. Com uma câmera giratória ocorre que o espectador ainda possa pensar: quando
estou bêbado, vejo o mundo girar desta maneira. Já quando se trata de exibir um filme
em que tudo corre ao contrário - os carros andam para trás, as pessoas caminham de
costas, por exemplo -, qualquer impressão de que se trate de um acontecimento real
desaparece. Como os cineastas ainda hoje só se permitem, na sua grande maioria,
produzir imagens que possam ser consideradas pelo público em geral como verossímeis
(ou seja, que não entrem em conflito com o que ocorre no mundo real tal qual se o
conhece), todos estes recursos, obtidos por meio de trucagens que confrontem uma
aparência naturalista, são descartados, apesar de todo seu potencial artístico e criativo.
À exceção de curtos filmes humorísticos com sátiras de assuntos cotidianos
semanais quase não se encontra a projeção em direção reversa. Os seus potenciais ainda
não foram experimentados. Pode-se imaginar que um diretor que quisesse mostrar um
homem entrando de uma maneira afetada numa sala pudesse obter um bom efeito
filmando ele saindo de costas do lugar para projetar a cena ao contrário, o que resultaria
no avanço do homem. É certo que tal efeito só seria útil poucas vezes. Mas também é
possível brincar com os efeitos da força de gravidade também. Em um filme didático de
E. Beyfuss, se não estou enganado, foi mostrada uma cena em que um artista era
erguido céu acima por um paraquedas. A certa altura, o paraquedas fechava-se, e o
homem entrava de costas num elegante salto para cima, para dentro do avião. Era
naturalmente uma projeção em reverso. Exemplos como o de cacos que se unem para
formar um jarro inteiro ou das expressões faciais invertidas existem, mas só
conseguiram provocar riso, isto é, ainda não foram capazes de demonstrar força como
um recurso a mais para os artistas. Quando se pensa nestas possibilidades, segue-se a
sensação de que ainda estamos muito no início do desenvolvimento do cinema e de que
todo este potencial poderá ser desperdiçado se, por motivos econômicos, a evolução dos
filmes mudos de arte for interrompida. Deve-se ter a certeza de que o filme de arte
(aquele que não tem a finalidade de atrair o público) será elevado, muito cedo a um
estágio em que serão produzidos trabalhos herméticos para os quais não haverá a menor
possibilidade de se obter aceitação por um grande público. Isso não quer dizer que
deixará de crescer a produção de filmes naturalistas, mas que, em paralelo, evoluirá - se
os homens de negócio do cinema o permitir – uma produção de cinema de arte a partir
do fato de existirem potencialidade do meio que podem ser utilizadas para a produção
artística, resultando numa construção ficcional tão fantástica que possibilitará ver como
simplório o mais selvagem Futurismo da pintura do pós-guerra.
3 - O tempo acelerado
Se uma sequência de fotogramas for filmada a uma velocidade mais lenta do que
será projetada, ela irá comprimir o tempo, criando a impressão de que ele foi acelerado.
Este efeito de aceleração do tempo já foi utilizado, por exemplo, para caracterizar o
ritmo dos modernos meios de transporte: os carros atiram-se pelas ruas; as pessoas
avançam e se cruzam em longas filas, que andam com espantosa agilidade e fluidez; e
as folhas das árvores agiram-se nervosas. Este truque já foi muito utilizado pelos
diretores, como fez Eisenstein, em “A linha geral”, ao apresentar a lenta morosidade de
um escritório que é acelerada, repentinamente, por um murro violento na mesa, o qual
faz tudo começar a se movimentar como um raio: os funcionários disparam pela sala, os
selos e assinaturas irrompem sobre as folhas e, num instante, todo o serviço fica pronto.
Pode-se inserir, no meio de uma cena com velocidade normal, outra em que um
homem faça uma refeição muito rapidamente; e utilizar a aceleração nesta inserção para
obter um efeito qualquer. Mas a aceleração também pode servir para outras situações. A
filmagem de “Milagre das flores”, de I. G. Farben, não mostra nada além de tomadas,
com o tempo acelerado, das plantas. Contudo, a partir deste recurso, construiu-se
certamente um dos filmes mais comovedores, fantásticos e belos que já foram
realizados porque as tomadas revelam que as plantas possuem um movimento que não
percebemos a olho nu, uma vez que ele ocorre num tempo muito lento, embora
perfeitamente visível quando o tempo acelerado é utilizado. As plantas são
repentinamente trazidas à vida e mostram movimentos impressionantes que só estamos
habituados a ver homens e animais produzirem os movimentos respiratórios das folhas,
embalados por ritmos diversos; a dança agitada das folhas ao redor da flor; o modo
quase obsceno com que a flor se abre; etc. Ver como a planta tateia temerosa, incerta,
procurando um lugar onde suas raízes possam se apoiar, ou ver um cacto que vai
definhando e deixa cair sua cabeça, expirando quase que com um suspiro, trata-se da
descoberta de um novo mundo vivo, em um ambiente onde é certo que já se sabia tratar
de vida, mas que nunca foi possível perceber até então em sua riqueza de ação. As
plantas são elevadas a um outro patamar como seres vivos porque se vê que elas
possuem os mesmos princípios dos animais, as mesmas condutas, e os mesmos desejos.
Trata-se de um caso tão bem sucedido que não se podem esperar outras
utilizações tão felizes de um tal recurso. Mas sempre é possível que sejam feitas
descobertas semelhantes a partir de outros materiais inorgânicos. Já se fizeram algumas
experiências desta espécie com projeções aceleradas da formação de cristais e de pedras
de gelo.
O recurso também pode ser aproveitado pelo artista. Os russos mostraram como
é possível inserir tomadas abstratas no meio de filmes realistas, como o brilho de raios
de luz ou a precipitação efêmera, quase imaterial, de uma chuvinha. Deste modo, estas
tomadas espirituosas podem ser aproveitadas pelo menos como elementos de
montagem. Mas por que uma flor sobre o parapeito de uma janela não pode começar a
balançar suas pétalas repentinamente no meio de um filme de ação ou abrir seus botões?
Por exemplo, Jean Renoir em “A pequena vendedora de fósforos” utiliza uma rosa
florindo com aceleração de tempo, mesmo que com isso não crie nenhum sentido.
4 - A câmera lenta
Quando a película roda na câmera mais rapidamente do que será posteriormente
projetada obtém-se um prolongamento do tempo, de modo que, para reduzir um
movimento a 20% de sua velocidade, basta expor cinco vezes mais fotogramas
registrando o acontecimento. Este recurso chamado de câmera lenta foi até agora mais
utilizado em filmes didáticos para expor os detalhes dos movimentos imperceptíveis a
olho nu em cada fase: analisar os menores detalhes da técnica de um boxeador, de um
violinista, da explosão de uma granada, do salto de um cão. A câmera lenta é muito
raramente utilizada com finalidades artísticas, apesar de ser muito rica em
possibilidades porque pode ser utilizada para mostrar uma drástica redução na
velocidade dos acontecimentos reais e, além disso, porque pode construir novos tipos de
movimento que não parecem simplesmente constituírem um movimento natural
desacelerado, mas sim algo completamente distinto, escorregadio, flutuante,
sobrenatural. Para criar a impressão de alucinação ou de algo fantasmagórico, esse tipo
de recurso é muito eficiente.
Da mesma maneira como a câmera acelerada, é preciso estudar que tipo de
resultado é possível produzir com câmera lenta quando ela reduz a velocidade de
expressões faciais de um ator e se o material resultante teria um bom uso como
ingrediente da montagem. Que aspecto assume em câmera lenta, por exemplo, um rosto
que repentinamente assume um aspecto de terror ou alegria? Mesmo com sua utilização,
seria possível construírem-se efeitos que não fossem percebidos pelo espectador como
retardamento de um movimento objetivo da realidade, mas que se apresentassem na
forma de algo visto como um “movimento totalmente original”. (Alguns diretores têm
feito experiências de uso de câmera lenta. Novamente Pudovkin foi um dos pioneiros,
no seu filme “O mundo é belo”, em que se apresenta, em câmera lenta, um sorriso de
criança que se prolonga vagarosamente num longo close-up).
Em “Entreato”, um filme surrealista, vê-se um carro fúnebre fugir do cortejo que
o segue a pé. O carro dispara pela rua e as pessoas o seguem em câmera lenta: muito
lentamente elas elevam seus pés do chão, como se estivessem atoladas nele; mexem
lentamente as cabeças; e os braços giram, como pêndulos, para frente e para trás numa
lentidão desumana. Isso gera um terrível efeito cômico no qual mal se percebe que a
imagem seja um movimento desacelerado de uma ação comum, porque se assemelha
muito mais a uma caricatura da corrida.
5 - A imagem congelada
A imagem fixa da fotografia comum não é algo, no fundo, tão diferente assim da
imagem animada do cinema como se poderia imaginar na prática, e é possível utilizar
imagens fixas de outros modos diversos além dos cartazes dos filmes ou para ilustrar as
revistas de cinema. A inserção de uma imagem fixa no meio do curso do filme resulta
num forte efeito, sobretudo porque o fluxo de tempo que é constante nas cenas acaba
por radicalizar a rigidez da imagem fixa, montada em meio a ele, de modo que a
interrupção do tempo parece ser fantasticamente petrificadora. E visto que o tempo
contagia esta imagem, a paralisação ganha um valor de movimento, ou seja, de um
movimento paralisado. Na observação de uma única fotografia, esta sensação de
paralisação quase nunca ocorre, pois a foto não e vista a partir de um ponto de vista
temporal. Mesmo o tempo que transcorre quando observamos a foto também não é visto
como intervalo de tempo, por não se relacionar com o tempo da ação mostrada pela
imagem. Uma imagem fixa no meio do filme funciona como a praga de Deus sobre a
mulher de Lot. No filme “Pessoas num domingo” (Filmstudio, 1929), surge um
fotógrafo na praia. Passamos a ver as pessoas que ele enquadra na máquina, mostrando
a parte superior do corpo, e, embora eles estejam inicialmente se movendo no filme,
repentinamente elas ficam imobilizadas como se fossem retratos. As pessoas começam
se movendo, sorrindo e, repentinamente, como num passe de mágica, são congeladas e
se mantêm sem movimento, aprisionadas por alguns segundos.
O efeito particular que se obtém com a inserção de uma imagem fixa no meio de
uma sequência não pode ser alcançado com a filmagem de um ator que interrompa, de
repente, seu movimento e permaneça como que congelado naquela posição. Primeiro,
porque há uma diferença perceptível entre esta interrupção, por meio da interpretação
artística, e aquela total rigidez de uma imagem fixa. Segundo, porque o ator só poderá
interromper o movimento em determinadas posições apropriadas, pois ninguém
conseguiria manter-se completamente parado numa posição absurda como aquela que a
fotografia consegue obter sem depender da vontade do intérprete ou das leis físicas do
movimento dos objetos fotografados.
6 - Fade-in, fade-out e dissolve
O fade-in inicia-se com a tela escura e a imagem vai aparecendo gradualmente.
O fade-out é quando a imagem está na tela e vai se escurecendo até a tela ficar escura. O
dissolve é um tipo de transição entre imagens em que a primeira imagem vai sumindo
para dar lugar à outra, que fica cada vez mais nítida.
Para evitar transições bruscas de uma imagem para outra, a transição pode ser
feita lentamente, surgindo a partir de uma tela escura, ou ir desaparecendo aos poucos
até que a tela escureça. Esse efeito pode ser construído na própria gravação por
intermédio do uso da íris, o controle da abertura da lente, que pode ser aberta ou fechada
lentamente, mas também pode ser conseguida por meio da manipulação de um negativo
filmado normalmente. O fade pode ser utilizado para representar uma experiência
subjetiva de uma pessoa, como se a imagem mostrada fosse o que a pessoa vê em
relação à ação, por exemplo, para mostrar que ela acordou ou que adormeceu. Mas é,
sobretudo, como recurso de transição entre imagens que ele é mais poderoso, visto que a
montagem direta de imagens, na maioria das vezes, é entendida como se as duas
imagens pertencessem a um mesmo intervalo de tempo e que não é fácil tornar claro se
uma cena terminou nem se a próxima imagem já se refere a um outro local. Com o uso
do fade-out, o espectador tem a impressão de que houve uma ruptura, como se uma
cortina de teatro fosse baixada e, quando surge um fade-in, espera-se que venha algo
totalmente novo.
Pelo nome de dissolve é chamada uma transição gradual entre duas imagens. Ele
não é o resultado de uma montagem direta, como entre um trecho de um filme e outro,
mas sim de uma sobreposição em que a primeira imagem vai se tornando menos visível
lentamente enquanto a segunda vai se tornando cada vez mais perceptível até cobrir
inteiramente a imagem anterior. Este efeito também pode ser obtido por meio do
controle de íris ou pela manipulação química do negativo. E também serve como o fade
para deixar claro que houve uma transição entre duas cenas, porque esta transição
gradual destrói a ilusão de se tratar de um tempo contínuo e de um espaço comum, já
que produzir, por assim dizer, uma sobreposição visual de tempos e espaços só é
possível se esses espaços e tempos forem diferentes. Nunca se poderia sobrepor algo
que constituísse um contínuo no tempo e no espaço. O dissolve mostra um contraste de
coordenadas temporais ou espaciais e não é possível extrair delas uma única cena
comum com espaço e tempo contínuos à cena anterior.
O dissolve serve muitas vezes para tornar mais vigoroso o efeito da montagem
em contraste ou similaridade (Pág. 103), porque, quanto mais natural, tranquila, ou
menos abrupta for a transição entre duas imagens, mais se torna enfática a relação entre
seus conteúdos (seja de similaridade ou de contraste). A conexão revela-se com mais
intensidade. Podem-se dissolver duas cenas a partir do princípio de similaridade, de um
modo que se construa uma zona neutra de transição abstrata, mostrando o que há de
comum entre elas, por exemplo, um balanço comum e uma imagem de pêndulo de
relógio com as oscilações de um balanço infantil.
7 - Sobreposição. Montagem simultânea.
O dissolve está a um passo apenas da exposição de mais de uma cena sobreposta
na imagem. Este efeito já era conhecido da fotografia, quando se obtém uma
sobreposição pela múltipla exposição do negativo a diferentes motivos, mas, no cinema,
resulta num efeito ainda mais poderoso. É um método eficiente de representar o caos e a
confusão. Foi usado diversas vezes em cenas de trânsito nas ruas para produzir a
sensação de burburinho bem característica da situação.
Mas também é possível obter outros efeitos a partir dela. Na cena de “Novos
Senhores”, de Feyder, apresentada no capítulo III, o conflito entre o discurso político e a
música da máquina precisava ser demonstrado. Feyder sobrepôs o close do orador que
gesticula alvoroçado na direção da pianola automática e outro close do interior da
máquina onde se vê um instrumento de percussão: uma baqueta sobe e desce percutindo
o instrumento. Dada a sobreposição, atinge-se não só o couro do instrumento, mas
também a cabeça do homem. O que era um confronto nos planos puramente do acústico
e do contexto narrativo passou a ser visto do ponto de vista estritamente óptico. E
mesmo que as duas cenas se encontrem na realidade no mesmo espaço, em virtude de
não apresentarem uma congruência espacial como closes separados e sobrepostos, elas
podem ser confrontadas abstratamente para se atingir a relação desejada, sendo
projetadas artificialmente uma sobre a outra. A palavra “artifício” evidentemente não
deixa de carregar uma certa dose de desprestígio presente no uso deste recurso por ser
antinaturalista.
Deparamo-nos muitas vezes com a agitação de uma festa representada pela
sobreposição das imagens dos convidados dançando e dos músicos tocando. Se essas
tomadas fossem montadas uma em seguida da outra, seriam interpretadas muito
certamente pelo espectador como a simples apresentação da situação: o diretor deseja
mostrar que um conjunto musical toca ali e que pessoas dançam. Mas a sobreposição é
um meio apropriado de acrescentar às cenas comuns um conteúdo extra não só com o
fim de esclarecimento dos acontecimentos, mas também de acrescentar sentimentos e
novos significados.
Este recurso, apesar de ser cômodo, soa algo artificial. Isso se percebe quando o
comparamos com os efeitos de mudança de ângulo de filmagem apresentados na Página
50 e nas seguintes. Lá se vê como são construídas relações entre objetos ou situações,
pelo enquadramento do conjunto de um certo modo ou pela cobertura parcial de um
objeto por outro, sem violentar o que está dado na realidade, porque esses objetos e
situações só precisam de um enquadramento apropriado para que a relação se estabeleça
sem qualquer interferência na disposição original das coisas em sua realidade e sem
destruir as relações espaciais originais dos lugares. Por exemplo, a sobreposição
perspectiva do prisioneiro e das grades. É preciso, primeiramente, concordar que a
sobreimpressão de duas películas para obter o mesmo efeito daria uma sensação de
corpo estranho na imagem resultante, de que o material da grade interferiria em
desacordo com o restante da imagem - o que não seria apropriado a um filme de ação de
estilo realista. Em segundo lugar, o valor artístico da cena parece ser maior quando se
acrescentam sentido e forma sem ter de manipular os materiais no set. Por isso, o
resultado é mais elegante e mais surpreendente (dois conceitos que, sobretudo para a
valorização de uma obra de arte, não são supérfluos como muitos consideram). O poder
abstrato que o cineasta constrói a partir de sua imagem, com o uso dos meios de
expressão cinematográficos, não deve surgir de fora dos meios como uma deformação,
mas é sim mais poderoso quando surge dos próprios meios, agrupando de maneira
apropriada os elementos da realidade sem interferir no material com o qual conta. Com
a sobreposição de películas, tem-se frequentemente a impressão de que o sucesso do
cineasta foi alcançado de um modo fácil demais, o que não quer dizer que só o
complicado seja mais belo do que o simples – muito pelo contrário.
À semelhança da sobreposição de fotogramas, a “montagem simultânea” pode
ser também utilizada com bons resultados. Queremos chamar por este nome a colocação
de duas cenas lado a lado no interior de um mesmo quadro. Sua primeira utilização foi
bastante questionável do ponto de vista artístico, voltada para mostrar lembranças do
passado, pensamentos. Os heróis mostravam-se pensativos e, repentinamente, surgia no
canto, no alto da imagem, numa forma arredondada, o conteúdo do que eles pensavam.
Este método é muito pobre, porque o caminho da ideia até sua forma de representação
visual é muito direto e não apresenta qualquer relação com o que acontece no mundo
real, já que as imagens não ficam surgindo da cabeça dos outros para que possamos ver.
“Um homem pensa em sua esposa” é um tema abstrato que não pode ser facilmente
mostrado visualmente sem ganhar uma concretude. Poderia se recorrer a uma situação
em que o homem contemplasse a fotografia dela, tornando a situação clara. Trata-se de
uma opção que não é minimamente original, mas é uma forma de tornar algo abstrato
concretamente visível. O recurso da montagem simultânea deveria implicar no esforço
de se encontrar na realidade uma situação concreta que tornasse compreensível aos
olhos do público o tema abstrato da cena. Duas coisas são colocadas lado a lado, de
modo a sugerir uma relação entre elas, e mostra-se assim, de uma forma visualmente
perceptível, algo a respeito do assunto, mas isso sempre se dá de modo pouco criativo e
artificial. Esta impressão ainda marca a maioria das tentativas que foram feitas com este
recurso. Quando Eisenstein, em “A linha geral”, faz aparecer a imagem de um enorme
touro sobre a imagem de vacas, fica a sensação de que a força expressiva desta cena, em
comparação com outras soluções do mesmo diretor dentro do campo do naturalismo,
seria mais banal e de que seu efeito nasce muito mais da consequência do tema em si do
que da composição visual utilizada. Embora se tenha construído uma tomada
nitidamente simbólica, é certo que o pensamento resultante depende pouco da sua
disposição e forma em relação ao restante da situação.
A montagem simultânea é muito mais impressionante quando não atribui sentido
a partir de uma simples exposição do conteúdo, mas sim de sua configuração formal.
Vertov mostrava uma mesma cena duas ou três vezes sobreposta em uma única imagem,
como a passagem de um mesmo bonde mostrada três vezes na superfície da tela, o que
resultou num tipo de desenho geométrico que não deixa de ter valor.
Nos exemplos de montagem simultânea mostrados até agora, era fácil para o
espectador percebe-las como tal, ou seja, ele podia sentir imediatamente que diversas
imagens distintas combinavam-se num conjunto. Mas é possível montar a sobreposição
de um modo a conduzir o observador à ilusão de estar frente a algo que, na realidade,
não existe. Por exemplo, através da possibilidade de mostrarem objetos duplicados,
como na cena de uma pessoa que dialoga com ela mesma. Este tipo de montagem é feito
quando duas gravações distintas são feitas separadamente e juntadas muito
apropriadamente, de modo que não se perceba resultar de uma sobreposição. Este
processo passou a ser utilizado com mais frequência nos últimos tempos para permitir
aos astros do cinema desempenharem mais de um papel. Houve uma comoção quando
Henny Porten, como uma serviçal severa, conversou com a patroa, a dama Henny
Porten. “Olha só... diziam... ela não só consegue interpretar qualquer papel como
interpreta mais de um papel ao mesmo tempo!” Paul Morgan cantou em um musical de
Hollywood um dueto consigo mesmo. A utilização artística da duplicação foi feita ainda
não só por Conrad Veidt, em “O estudante de Praga”, como no filme de Friedrich
Ermler, “O homem que perdeu a memória” (Sowkino). Neste, há uma batalha
simbólica: um soldado alemão e um russo atacam-se com baionetas, mas vem o close e
mostra que ambos têm o mesmo rosto (os dois são representados pelo mesmo ator). Eles
se reconhecem e deixam as armas de lado. Então, os generais russo e alemão ordenam
que se retomem os combates, mas os ajudantes aos quais eles dão suas ordens têm
também o mesmo rosto dos soldados. A loucura da guerra que leva o homem a lutar
contra o próprio homem porque carrega um uniforme diferente, nunca havia sido tão
bem representada. “Em todos os homens há algo em comum, um parentesco” – esta
frase abstrata é concretizada mediante a criação de uma realidade ficcional na qual esta
generalidade é mostrada visualmente de modo primoroso. Todos eles têm o mesmo
rosto e as diferenças dos uniformes se tornam fúteis e absurdas frente ao que os olhos
percebem nitidamente a partir da igualdade dos rostos.
8 – Lentes especiais
A visão múltipla a partir de um mesmo objeto pode ser obtida diretamente sem a
necessidade de montagem com o uso de lentes especiais e prismas. As possibilidades de
uso destes meios não parecem ser muito promissoras. Um mesmo rosto pode ser
fragmentado em cem pequenos rostos, pode ser deformado, mas se trata de um efeito
especial rígido que abre muitas poucas possibilidades e que rapidamente passa a ser
visto como esquemático e gasto. É isso que se vê em “Canção da Vida” de Granowsky,
quando diversas imagens iguais de taças de champanhe, bebês e caveiras ocupam a tela
para criar um simbolismo. A trucagem parece estereotipada, mecânica e facilmente
risível.
Sem montagem ou uso de lentes, Chaplin conseguiu dividir um homem em
várias imagens de modo surpreendente e engraçado na cena do labirinto dos espelhos
em seu “O Circo”
9 - Imagem fora de foco
A imagem fora de foco era encarada antigamente somente como um erro. Mas os
diretores aprenderam a utilizar muitas destas “falhas” para alcançar determinados
objetivos.
Inicialmente, de modo similar ao fade-in e ao fade-out, para deixar uma imagem
ir surgindo de ou desaparecendo em um borrão. Muitas vezes a indefinição ou a
dificuldade de entender do que se trata uma imagem lhe confere um atrativo. Não se
percebe bem o que está para ocorrer, pode-se lançar em especulações, mas, de repente, a
imagem se torna clara e mostra algo surpreendente. Em “A linha geral”, de Eisenstein, a
primeira visão que temos de uma máquina misteriosa ao redor da qual gira toda a trama,
uma centrífuga de leite, é feita a partir de um borrão fora de foco em close-up e o ajuste
lento do foco mostra-nos pela primeira vez e claramente, sua aparência, o que
desemboca num efeito muito forte. Só se percebe a princípio o brilho de luzes sobre
uma superfície – o reflexo das lâmpadas sobre o alumínio polido da máquina –, mas o
foco vai se ajustando até apresentar a centrífuga como se ela surgisse a partir de uma
nuvem12.
A falta de foco serve ainda para criar uma visão subjetiva de um campo visual
embaçado, como quando se quer mostrar como um bêbado ou um drogado está vendo as
coisas. E, do mesmo modo, ela pode ser usada, assim como o close, para focalizar
detalhes de um objeto, deixando o restante da imagem fora de foco, como se se tratasse
de algo que estivesse muito distante. Já que a câmera mostra apenas uma certa
profundidade de campo no foco, é possível alterar o foco do primeiro plano para o
fundo, ou vice-versa, para criar uma espécie de diálogo que leva a atenção do
espectador para o plano mais próximo em que se encontra um homem, por exemplo,
para o plano mais distante em que se coloca outra personagem, de modo que o diretor
possa controlar o olhar do espectador ora para uma ora para outra personagem.
10 - Imagem refletida
Por fim é possível mostrar a realidade por meio de seu reflexo em materiais que
sirvam como espelho, o que se torna muito interessante quando feito de modo que o
observador não percebe estar vendo uma imagem indireta da situação. Esse recurso
12
Efeito semelhante também foi usado por Wilfried Basses na primeira cena de “A óptica I, 4” com uma
imagem de uma propaganda em um luminoso.
pode ser obtido numa filmagem do reflexo de uma personagem em um espelho d´água,
por exemplo, já que o espectador não terá como saber se a câmera foi montada numa
posição tal que o reflexo mostre-se como uma pessoa em pé, ou seja, diretamente
voltada para a personagem na realidade (por se tratar de filme preto e branco será mais
difícil perceber alguma diferença de tonalidade do reflexo e, por causa do achatamento
da profundidade, característico da imagem cinematográfica, não se perceberá a
diferença entre a profundidade do espaço real e a planura do espelho onde a imagem
reflete). O espectador acreditará ver uma tomada real da situação e, de repente, a água
pode ser agitada de modo que o reflexo se desmanche até sumir por completo, tornando-
se irreconhecível. É fácil encontrar materiais que possibilitam esse tipo de composição
de modo bem original. E esse efeito pode ser usado, mesmo que não houvesse água
nenhuma em cena, como um recurso para apresentar a ideia abstrata de que uma pessoa
real, de carne e osso, desfaz-se como uma caricatura trêmula - ou também como uma
alucinação (uso feito por Granowsky em “Canção da Vida”).
Outra possibilidade é fotografar um objeto refletido num espelho. O espectador
acredita ver, novamente, uma imagem direta - filmada diretamente a partir do objeto -,
segue a ação, e, de repente, surge uma pedra que estilhaça o espelho, destruindo aquilo
que o observador pensava ser o mundo real e criando um choque óptico muito forte.
Também é possível usar espelhos que deformem, um efeito que pode ser ainda
muito mais poderoso do que o de uma sala de espelhos num parque de diversões ou
num labirinto, ou mesmo o de uma taça de café niquelada, caso ela consiga refletir algo
sem que o espectador perceba se tratar de uma imagem refletida, mas uma deformação
de algo real.
Conduzimos essa sistematização sobre o que a câmera registra, seja qual for o
objeto mostrado, o tipo de situação, o tipo de decoração e cenário, ou como o ator foi
maquiado, mostrando as possibilidades ilimitadas que os recursos de filmagem em si
possuem para formatar e representar a realidade. O cineasta escolhe uma determinada
situação que ele pretende filmar: ele pode deixar fora do campo gravado, a partir deste
local, alguns objetos; pode encobri-los ou mesmo colocar outros em evidência (e sem
precisar recorrer a qualquer interferência direta no ambiente e na disposição do que está
contido naquele pedaço de realidade). Ele pode aumentar ou diminuir o tamanho de
algo, pode mostrar o pequeno em tamanho maior do que o grande e o grande em
tamanho menor do que o pequeno. Pode organizar, no tempo e no espaço, coisas umas
em paralelo às outras, atrás umas das outras ou montá-las intercaladamente. Pode
destacar o que é importante, por mais pequenino que seja, e pode representar um todo
por meio de alguma parte ou particularidade dele. Pode mostrar em pé o que está
deitado ou mostrar deitado o que está em pé. Pode mover o que está parado na tela ou
mostrar fixo o que está em movimento. Ao descartar parte dos sentidos da percepção, dá
um novo e importante papel ao que está sendo mostrado, de modo que pode até mesmo
fazer o que está presente representar o que não está ali. O cinema faz o mudo falar e
representa assim o sentido do som. Ele não mostra o mundo objetivamente como é, mas
como se apresenta na subjetividade. Ele cria novas realidades onde as coisas podem se
duplicar, inverter seus movimentos e resultados de ações, deformar movimentos,
desacelerá-los ou acelerá-los. Um reino de magia no qual a força da gravidade não dita
normas, e poderes secretos movem coisas inanimadas. Coisas quebradas unem-se
novamente num todo. Constroem-se pontes que ligam simbolicamente situações e
objetos que nunca estiveram próximos na realidade. Ele interfere na estrutura da
realidade para transformar corpos e espaços físicos concretos em fantasmas sem corpos.
Ele estanca o fluxo do mundo e das coisas, transforma estas em pedras, e então dá vida
às pedras que se movimentam na tela. Constrói, a partir do espaço do mundo sem forma
e sem limites, uma imagem bela, com forma e recheada de conteúdo, tão subjetiva e tão
rica como meio quanto a pintura.
Estando isso claro, não é sem espanto que se ouve o que diz um autor tão
inteligente e famoso como Thomas Mann (no texto “Sobre o cinema”). Ele chama o
cinema de “imagens da vida”, recurso a partir do qual é impossível produzir arte e que
seria um equívoco “analisá-lo utilizando critérios da esfera artística”. Cinema é, para
ele, “um material por meio do qual não se consegue conduzir a nada de original,
valoroso, emocionante”. “Ele não é arte, é vida e realidade e os efeitos de suas projeções
de movimento sem som são sensacionalmente rudes se comparadas com os efeitos
espiritualizados da arte. São os mesmo efeitos que a vida e a realidade exercem sobre
qualquer um, suavizados pelo conforto do ambiente e pelo conhecimento prévio de que
se trata de um local de atuação, enriquecido e ambientado com música”. Diz ainda: “A
arte é uma esfera neutra em que se diz o que se quer. É um mundo do espírito mantido
sempre elevado, um mundo dos estilos, da escrita à mão, dos formatos personalizados,
muito objetivo e mundo de entendimento (‘Porque ela vem do entendimento’, como
disse Goethe) – o mais significativo, elegante, puro e belo é que sua comoção emerge de
um meio estranho, resulta da esperança de poder combinar coisas distintas bem.”
O percurso da nossa investigação tentou mostrar quanto é possível, por meio do
cinema, criar espiritualidade, mesmo que ele não se utilize da fala que muitos acreditam
possuir o monopólio da elevação do espírito. Já é tempo de abandonar este pensamento
de que o cinema é realidade sem forma, uma simples imagem da vida, matéria-prima e
reprodução mecânica da realidade que se contraporia radicalmente à arte. Justamente
com a ajuda dos critérios apresentados por Thomas Mann, percebe-se que o cinema é
uma arte, porque nele se apresenta uma ordem tal de fartura de recursos para mostrar a
matéria-prima da realidade, dando-lhe forma, estilo e transformação, como se fosse uma
espécie de estilo de escrita pessoal capaz de dar plasticidade e de oferecer distintos
graus de informação a partir de sua composição.
As restrições ao cinema presentes do pensamento de Thomas Mann podem dar
conta das cenas rápidas românticas dos filmes que, ao acaso, ele assistiu. São cenas que
se podem ver todos os dias no cinema porque constituem realmente uma maioria. Mas
falar sobre o que o cinema é, certamente, não é o mesmo que dizer como ele pode ser. E,
assim como se poderia dizer ser difícil extrair algo de valioso das operetas de Lehar e
Kalman a partir do que se pudesse defender a favor de que elas têm algo a ver com a
arte da música, toda a produção fabril da nossa indústria cultural, evidentemente,
poderia ser utilizada como prova contrária à inclusão do cinema no campo artístico.
É preciso dizer que a maioria dos diretores de cinema não faz uso dos recursos
que foram aqui apresentados de modo original. Eles não produzem obras de arte, mas
simplesmente contam histórias populares com a técnica. Tanto eles quanto os estúdios e
o público de massa estão todos mais interessados na trama, e não na forma. Mas há
exemplos suficientes a favor da tese de que se poderia trabalhar melhor. Não há um
número excepcional de obras de arte cinematográficas bem feitas, coerentes e
perfeitamente finalizadas. Contudo, a favor do cinema ainda se pode argumentar que se
trata de uma arte nova e que muito ainda está para ser experimentado de suas
possibilidades expressivas – embora já haja filmes suficientes que, em determinadas
cenas, em certas tomadas, em certas interpretações de determinadores atores,
demonstram o que o cinema poderia vir a ser e também que ele permanece como
potência inexplorada. Mas não é proibido, sobretudo se tratando de arte, prender-se ao
pouco que é bom em vez de se perder no muito que há de ruim.
Terceiro capítulo
IV – O que filmar
Thomas Mann
Conteúdo e forma
Até agora, tratamos dos recursos de câmera com os quais podemos contar - ou
poderíamos contar - em uma produção cinematográfica, mas não falamos nada ainda a
respeito daquilo que é filmado pela câmera. Esta oposição entre como e o quê não deve
ser confundida com a oposição entre forma e conteúdo. A operação com este par de
conceitos é perigosa porque raramente é dado o devido destaque para o fato de que
forma e conteúdo não são distintos em termos de qualidade, mas apenas em termos de
quantidade. São graus de uma mesma escala, em que cada situação coloca-se
arbitrariamente de modo relativo. Pode-se chamar a mesma situação ora de forma, ora
de conteúdo, dependendo do aspecto que for priorizado. A história do diretor geral B
que se apaixona pela sua secretária, senhorita C, pode ser chamada de conteúdo do
filme. Mas é também forma quando se pensa nela como a dramatização de uma ideia
abstrata: embate entre rico e pobre, luta entre diferentes classes, relações humanas, etc.
Uma cena que apresenta como o diretor da empresa manteve a secretária no escritório
depois do expediente pode ser chamada de forma do filme (a história de amor entre o
diretor e a secretária). Mas ela pode ser chamada de conteúdo se considerarmos como
forma o modo pelo qual esta cena foi filmada: a secretária veste o casaco, cobre a
máquina de escrever, o diretor a vê e a chama, etc.
Numa abordagem preliminar, seria plausível formular que: o quê é filmado, é a
matéria-prima, o conteúdo. O como é filmado, é a forma. Mas percebe-se logo como
esta vinculação é superficial e perigosa, pois é possível também chamar a escolha de
filmar este o quê, com total propriedade, de um trabalho de forma. Se alguém vai
buscar o material para representar uma ideia (a luta das convenções contra o amor) ou
no tempo presente, ou no passado histórico, isso já é também uma escolha de forma. E,
montar uma cena de rua a partir das imagens do tumulto dos carros, dos pedestres, dos
prédios ou dos guardas de trânsito (com isso criando uma caracterização a partir de
detalhes), tudo isso refere-se ao o quê. Mas a questão da escolha do material não deixa
de ser, em parte, uma questão formal. A estratégia de dizer que tudo o quê é filmado é
conteúdo não seria uma simples questão terminológica, mas sim um procedimento
perigoso porque pode facilmente levar a considerar como matéria-prima algo que, na
realidade, já é resultado de um processo de construção por meio de artifícios. A fruição
artística é a apreciação de um processo criativo e a verificação de hipóteses que
consigam avaliar, a partir das imagens, quanto este processo criativo conseguiu ser
levado adiante. Por isso, a pior consequência de classificarmos o cinema como puro
conteúdo, que não faz nada além de reproduzir mecanicamente a realidade, é chegar à
conclusão de que o cinema não é mesmo arte porque ele não trabalha com questões de
forma.
Por outro lado, uma diferenciação simplista a partir dos conceitos de forma e
conteúdo, além de ser uma estratégia reducionista, rouba todo o valor daquilo que passa
a ser chamado pejorativamente de “forma pura”, ou de “simples técnica”. A forma passa
a ser considerada algo exterior à obra, um trabalho braçal, para o qual o público não
deve voltar sua atenção – um assunto restrito aos estúdios dos produtores. Se o pintor
utiliza em seu quadro azul e vermelho, se o músico usa um instrumento de vara ou de
sopro, se o diretor usa a câmera em movimento ou a câmera parada, tudo isso seria pura
forma, simples técnica, e “nós não temos nada com isso”. Esta é a opinião de muitos
que só avaliam a história retratada na obra de arte (a trama, o enredo) para extrair a
partir dela seu entendimento artístico. A fruição artística vem, para essas inúmeras
pessoas, da história, logo há o mesmo grau de interesse entre uma história apresentada
pelo artista e outra que simplesmente ocorra de igual maneira na realidade. Existindo
uma história envolvente, como uma mulher nua, todo o restante é simples forma.
Esclarecida a impropriedade desse aparente antagonismo absoluto entre forma e
conteúdo, percebe-se claramente como é limitadíssimo o que se pode retirar de qualquer
matéria-prima pura, não modificada, e como é muito mais fácil valorizar uma situação a
partir da manipulação da forma. Isto é notado desde um exemplo de manipulação muito
primitiva, como a escolha do tema, até intervenções em níveis mais sutis ou mesmo em
graus mais sofisticados. O resultado de ver deste modo o cinema é encará-lo como uma
espécie de escrita a partir das coisas, na qual a diferença entre forma e conteúdo torna-se
relativa, mas que oferece um dos recursos mais importantes para o entendimento da sua
arte. O que já era considerado dado previamente - chamado pejorativamente de “a
simples matéria-prima” ou “o assunto”, aquilo que já tem forma na própria realidade,
adquire um novo status, cheio de possibilidades de elaboração artística, mesmo que tudo
aquilo que se refere à pergunta como, de caráter mais técnico, seja posto de lado,
deixado como assunto exclusivo dos produtores, e que só se preste atenção ao resultado
final. O que é chamado comumente de “observação do resultado” é, na realidade,
ignorar a forma artística para apreciar uma obra de modo somente superficial a partir
exclusivamente do assunto.
Trata-se então de investigar a câmera como instrumento, mas sem descuidar do
fato de o que ela capta não ser simplesmente recebido de um modo qualquer como uma
matéria-prima animada. Ao contrário, deve-se atentar para o fato de que essa matéria-
prima já foi “elevada à forma artística” com os recursos anteriormente descritos e
também com o muito que já pode ter sido feito mesmo antes que a câmera começasse a
funcionar.
O material passível de ser filmado é evidentemente sempre algo visível, a face
da superfície de todas as coisas do mundo: pessoas, animais, plantas, trabalhos humanos
e natureza. Mas não é qualquer realidade que serve para ser filmada. É preciso que o
objeto tenha um significado. Pode-se filmar para entreter ou para informar. É instrutivo
saber como as pernas de uma estrela-do-mar se movimentam ou como é feita uma
operação de apendicite. A estrela-do-mar e a operação podem ser mostradas em
imagens, reveladas ao observador com representações típicas dos temas “estrela-do-
mar” - e “cirurgia de apêndice”. O público sairá instruído tanto sobre o modo quanto
sobre a própria natureza destes acontecimentos: o indivíduo reconhecerá um tipo de
atividade13.
À semelhança dos filmes educacionais, o filme de arte interessa-se pelas
histórias de determinadas pessoas porque essas histórias possuem algo de generalidade,
algo que representa todas ou muitas pessoas em geral. No trato do dia-a-dia há muito
poucas atividades com um interesse tão especial assim. Preocupamo-nos com o destino
de nossos parentes, de um amigo, de um ministro..., mas na obra de arte trata-se sempre
de um destino individual exemplar. O que é apresentado numa situação exposta pela
obra de arte capta o interesse do público, porque a obra caracteriza um tema que o
espectador conhece. “Quando a arte se reveste de material corriqueiro”, diz Nietzsche,
“ela é reconhecida da melhor maneira como arte”. Certamente, pode-se dizer das mais
famosas obras de arte da história que elas manipulam coisas que todo homem conhece -
ciúmes, amor infantil, vingança, fidelidade, traição - e que, justamente nestas obras-
primas, o assunto em geral é muito pouco particularizado. Portanto, serve para
esclarecer este assunto um enunciado muito simples, como: um homem amava uma
mulher que não podia ter e, por isso, se suicida. O artista também pode se utilizar de um
caso atípico como uma experiência peculiar de uma pessoa de conduta anormal, mas a
fruição artística só ocorrerá se for feita uma descrição tal que remeta a algo que seja
conhecido do público que, porém, demonstre-se em contraste com esta variação do
13
Esses casos têm de fazer parte do tipo geral para poderem ser reconhecidos por seu intermédio já que
nenhuma informação a mais será oferecida – mesmo que seja algo excepcional ou pertença a casos mais
raros. As pernas da estrela-do-mar interessam porque é assim que as estrelas-do-mar se movem. Os
irmãos siameses interessam porque representam um caso raro
homem comum de que a pessoa utilizada encontra-se desvirtuada. (Assim como, por
exemplo, a observação científica de um corpo doente é um método interessante para
mostrar como funciona um corpo saudável).
A arte não tem a função de ensinar como as coisas ocorrem ou de contar
histórias. O assunto oferece somente a forma visual que a reveste de modo geral. Quem
lê um romance de Hamsun pode enriquecer seus conhecimentos a respeito da vida dos
peixes das ilhas Lofot, na Noruega, mas não foi com esta finalidade que o romance foi
escrito, uma vez que Hamsun não é um professor de geografia. Ghirlandajo não queria
dar aulas de interiores arquitetônicos do Quatroccento, nem Rembrandt, a respeito das
vestes dos judeus do gueto de Amsterdã. Portanto eles usam essas coisas como conteúdo
ou como forma (como se queira chamar) em suas obras. Seu trabalho artístico consistiu
em apresentar coisas ou situações - fictícias ou imaginárias - como arte, construída a
partir dos recursos de determinados materiais de expressão, que se passam por, ou
parecem caracterizar, estes temas a partir do que é exposto visualmente. Para se
construir uma obra de arte visual não só a imagem é importante, mas também – e
sobretudo - o modo de enriquecimento do material utilizado que dá, por assim dizer, o
tom com ajuda do qual será conduzida a obra.
É importante aqui acrescentar ainda algo: o artista não escolhe seus temas em
função das restrições que a maioria do público faz sobre o que representa ou não um
tipo geral conhecido, buscando, pois, evitar que seu trabalho não agrade apenas a um
público restrito, ou seja, premeditando que novos tratamentos de forma podem ser
recebidos de maneira mais simpática na exposição de temas velhos já conhecidos.
Embora esta informação não seja verdade, pode-se chamar de uma frequente
coincidência que isso ocorra muitas vezes assim. Existe mesmo uma crença ingênua de
que um grande artista nunca criou, em qualquer sentido mais profundo, voltado para um
público. Para o público, trabalhariam somente autores de operetas como Courths-Mahler
e Franz Lehár. No entanto, não se pode esquecer que um grande artista também vive no
meio de uma maioria - como todas as outras pessoas vivem no meio de grupos em
sociedade -, sendo, portanto, um ser social e, como tal, associado em alguma medida ao
grau de permissividade, de reconhecimento e de tolerância de sua coletividade. Seu
trabalho deve certamente ter uma aparência diferente da que teria caso o artista estivesse
no deserto, mas o impulso criativo nunca se origina realmente do desejo de agradar
outras pessoas – e que elas gostem do trabalho –, de impor ou de servir. Os marxistas
demonstraram que, em todo trabalho de arte, colocam-se elementos de origem social e
econômica e pensam ter assim descoberto, ou, ainda mais, desmascarado, a origem da
arte. Eles estão a quilômetros de distância do entendimento da arte em geral. O impulso
criativo vem muito mais a partir do objeto representado: o artista vivencia algo, vê algo,
sente um comichão nos dedos, fica inquieto e, então, cria. O artista não pode enxergar
quanto será possível avançar no entendimento de sua obra. Para ele, já é bastante,
suficiente, vestir sua experiência com as roupas do meio de expressão de modo que
exponha seu talento. Talvez seja um acaso, ou talvez haja um bom motivo para que
aquele objeto que o artista construiu cheio de valor para a maioria não seja rico em
nuances individuais, de extraordinária raridade, mas sim erguido a partir da mais
comum e antiga experiência de todos os homens. Do mesmo modo, não é verdade que o
artista tem uma experiência do mundo mais intensa do que os outros seres humanos com
quem vive. É muito mais plausível a hipótese de que o senso de observação e as
experiências intensas são mais comuns se o artista já tiver passado por elas antes de elas
serem postas em forma de arte. As vivências do artista não são diferentes das dos não
artistas em termos quantitativos, mas somente em termos qualitativos. Nem toda
experiência causa impressão a ele como artista, ao contrário, lhe sugere como poderia
ser expressa com seu material de produção (cores, palavras, filme). Ele vive as
experiências como algo formalizável e, talvez, até mesmo como formas. Ele diz: “Pode-
se utilizar isso para fazer um filme!”, “Isso é uma cena de filme”. “Os homens comuns,
se não se importarem com o esforço, podem escrever o que veem, eles veem e sentem
tudo o que seria digno de escrever, e a única diferença entre o inculto e o erudito
constitui-se muitas vezes apenas no tipo de percepção ou na arte de se conduzir o seu
próprio livro”. (Lichtenberg).
Sem que o artista queira ter reconhecimento de seu público com isso, ocorre, na
maioria das vezes, que seu trabalho tenha por base um capital de saberes, de coisas
conhecidas por todos. Thomas Mann diz: “O poeta descobre inicialmente descrente e
depois com eufórica alegria que sua solidão e falta de relacionamento eram uma ilusão,
uma ilusão romântica, se preferir. Ele descobre que serviu como escritura ou como boca.
Que ele falou por muitos ao falar por si, enquanto acreditava falar por si somente”. O
quanto este capital é levado adiante, o que se pode ou não considerar como sendo de
conhecimento geral, isso não tem resposta, porque tal resposta passa pelas
individualidades - e isso é da maior importância, por tornar clara a razão de qualquer
conversa a respeito de a arte ser tão reativa aos valores absolutos. O que um considera
da maior relevância é tido como estranho para outro, o que um vivenciou pode não ser
conhecido por outro – e veja que se trata de coisas que não estão quase nada
relacionadas diretamente ao valor estético das obras de arte, mas sim a respeito do que
são ou não suposições em relação ao mundo para cada um. O que um percebe, a partir
do destino de Hamlet, como uma doença que nenhum homem saudável poderia
compartilhar, outro enxerga como o reflexo da essência da alma humana, coisa que não
tem nada a ver com a saúde do corpo. O que um acredita representar uma paisagem
retratada fielmente pelo pintor registrando a mesma iluminação e grupo cromático
mostrados na realidade, outro classifica como um quadro ruim porque o pintor não foi
capaz de reproduzir “corretamente” a realidade, ou ainda outro sustenta que esta
variação seja simplesmente um novo modo de mostrar a paisagem, que nunca antes fora
utilizado, sendo um resultado fértil do trabalho de evolução da arte. Se a base a partir da
qual o valor da obra de arte deve tomar seus parâmetros já é tão instável, não se deve
ficar admirado que tão pouca unidade exista, por fim, no julgamento do público.
Essa pluralidade de “conhecimentos prévios” que a interpretação individual de
uma obra de arte faz aflorar, não se estende somente sobre coisas profundas e difíceis de
compreender, como a natureza humana, mas também sobre muitas coisas do mundo
exterior – e esses elementos externos não são irrelevantes. É mostrado num filme, por
exemplo, um homem com uma camisa preta o qual de repente ergue o braço direito
solenemente, de modo que um espectador perceba ser um fascista fazendo a saudação
romana, mas que um outro espectador, talvez, reconheça a saudação nazista por causa
da roupa. Pode-se pensar que o diretor pressupôs este conhecimento ou que ele tivesse
construído as cenas do filme com ajuda da imagem do homem de preto erguendo o
braço, cenas estas que só entende aquele que conheça a aparência de um fascista e cuja
elegância e interesse podem sumir se for preciso esclarecer do que se trata com
antecedência: este homem de preto que vocês veem ali... E isso acontece do mesmo
modo que a graça de uma piada se perde se for preciso explicá-la! 14 A Torre Eiffel, a
Estátua da Liberdade ou as pirâmides do Egito são conhecimentos ópticos que o diretor
pode considerar compartilhados por todo homem, no mundo inteiro, assim como o
Panteão, a bandeira do Japão, o jardim suíço do Papa, a fotografia de Lênin e a nota de
um dólar. Para o diretor de cinema, este reservatório de conceitos ópticos absolutos é
14
Arnheim também faz uma piada com um trocadilho entre homem de preto e homem negro.
um verdadeiro tesouro e lhe torna possível a ele dizer muitas coisas imediatamente
somente na forma de imagem.
No filme americano “O homem da multidão”, há um ato que se passa num
vagão-dormitório. Estas cenas são comprometidas e pouco inteligíveis porque o carro-
dormitório tem uma outra disposição na Europa. Naturalmente seria possível mostrar no
filme qual é o modo de organização do vagão-dormitório americano, mas este trabalho
não foi feito pelo diretor. Ele tomou o ambiente por cenário da ação dramática, já que
servia muito bem a seus propósitos na situação, e supôs que o público americano
entenderia muito bem a situação em razão de sua experiência neste ambiente. A falta
deste conhecimento para o europeu faz com que – como decorrência natural – ele não
consiga nem avaliar estas cenas esteticamente, nem entender aproximadamente o que se
passa ali. Nos filmes japoneses, observa-se outro tipo de cumprimento para dar boas-
vindas que, para o ocidental, parece com uma despedida – o que pode prejudicar o
entendimento e a eficácia da cena de um filme japonês.
Mas essas dificuldades não se restringem evidentemente somente aos filmes. Em
toda arte existem fronteiras individuais e nacionais, e pode-se dizer que elas não
prejudicam de modo algum a difusão das boas obras de arte.
A exposição
A câmera só pode registrar situações concretas, físicas, sendo muito mais difícil
ao diretor do que para o escritor conseguir representar uma história dramática, porque,
em vez de ter de passar toda essa série de suposições importantes para o entendimento
do que se passa somente a partir da imagem, este pode apresentá-las com explicações
abstratas no corpo do texto sem a menor dificuldade e sem correr o risco de uma falsa
interpretação. Já o cineasta, mesmo quando trabalha com apoio do diálogo sonoro, é
colocado frente à dificuldade de revestir o curso de sua história de tal forma que as
informações importantes possam ser extraídas a partir da própria imagem. Uma frase
tão simples como: “ela mora absolutamente só na sua casinha” é extraordinariamente
difícil de representar num filme já que ela não se refere a uma situação permanente a
qual, só com muita dificuldade, pode ser transmitida por meio de uma cena que a
caracterize.
As características individuais das personagens em casa, que podem ser
apresentadas com uma dúzia de palavras pelo escritor, devem ou ser apresentadas
visualmente pela aparência dos atores, ou esclarecidas pelo desenvolvimento narrativo.
A última opção é a mais correta, pelo menos para quem não quer trabalhar com os
estereótipos enrijecidos dos filmes baratos nos quais sempre é claro, desde o primeiro
momento, que a mocinha loura é inocente, que a morena é a criminosa e que o senhor
de bigodes não tem boas intenções.
Um filme é conduzido em geral, como uma peça de teatro, mediante as coisas, o
que torna muito reduzidas as possibilidades de esclarecer ao público aquilo que é
importante ser pressuposto. Um meio de exposição tão incômodo como o monólogo
narrativo de Ricardo III é praticamente inviável de representar no cinema, em particular
num filme mudo. O trabalho de exposição é muito mais difícil para o cinema do que
para a dramaturgia, a qual conta com recursos tal qual uma narrativa no palco. Decorre
daí que a exposição é construída da maneira mais pobre pela média dos autores de
scripts e que, mesmo quando dá bons resultados por deixar claras as premissas para
entender a narrativa de um modo original, isso ocorre quase sempre sem o som.
Assim o filme também informa quando dá noções gerais do lugar onde se passa
a situação da narrativa por recursos simples, como o início de uma cena pela tomada
geral da cidade onde a história se desenvolve. O filme de Piel Jutzis, “Mamãe Krausen
rumo à felicidade”, começa com a tomada de uma fileira de prédios em Berlim. Essa
imagem fixa-se em uma janela aberta. Vê-se, dentro do quarto, que duas pessoas
dançam, e a câmera as aproxima deles até enquadrá-las num close dentro do quarto
apresentando, assim, aos olhos do espectador os dois protagonistas da trama e a casa
onde a narrativa se desenrola. Esta forma de narrar, mostrando primeiro uma visão
panorâmica para só então conduzir ao acontecimento, modifica o método usual de
exposição dos textos narrativos.
Em geral tanto o escritor quanto o autor do cinema recomendam se iniciar uma
exposição em vez de se apresentar a situação de forma abstrata como que num
inventário de itens. Isso porque é certo que o leitor percebe melhor se um determinado
sujeito é mau não só quando a personagem é apresentada em uma situação que
caracterize sua personalidade, mas também por intermédio de suas falas. Procedendo
assim, o diretor age melhor do que se fosse somente dito: “ele tinha um mau caráter”.
Apesar disso, é possível encontrar, mesmo nas páginas dos melhores exemplares de
prosa, esse método de exposição equivocado, fato que serve aqui para mostrar que o
material de expressão do cineasta, ao contrário do material do poeta, interfere de modo
muito mais enérgico na forma de exposição, sendo muito mais difícil e incômodo te-lo
sob controle.
Nos filmes ruins ou medianos, é comum que só se entenda claramente o sentido
do enredo depois da leitura de seu prospecto. Ele apresenta na forma verbal o tema do
filme como matéria-prima, como conceito, sem forma visual, mas, a partir dele, não há
erros de interpretação. O texto diz: “Ela renuncia por ter grandeza na alma...”, e então
alguém percebe: “Ah! Este é o motivo por que ela foi de repente para o quarto!” Para a
maioria dos filmes - e em especial para aqueles de valor mediano -, o enredo principal
não encontra nenhuma relação com quaisquer características particulares do material
artístico no qual ele ganha forma. Portanto, o argumento nada mais é que uma matéria-
prima invisível da ação, que também poderia muito bem ser usada para escrever uma
poesia15. E assim se passa com tudo o que possa vir a ser formulado neste tipo de
linguagem mental que nós utilizamos o tempo todo. Isso quer dizer que, no cérebro do
autor, surge a situação inicialmente numa forma das mais abstratas: “Um criminoso”,
“Ela compreende...”, “Depois de diversas tentativas...”, “Ele não sabe mais o que
fazer...”, etc. Então, passa-se destas ideias para uma imagem, uma ação. Nossas ideias
cotidianas, e até mesmo nossa linguagem cotidiana, são utilizadas para organizar as
coisas do mundo em torno de conceitos que as tratam não como coisas individuais, mas
como casos particulares de categorias porque é assim que se coloca o mundo: uma
ordem importante para podermos nos comportar corretamente nele. Assim se consegue
construir uma designação válida de coisas particulares com ideias gerais. Nossos
pensamentos e palavras podem, deste modo, representar sem serem visíveis. Portanto,
quem não é artista plástico nato, ou seja, quem não vê diretamente formas puras na
natureza como um material de expressão, pensa e compreende o que conhece a partir
desta forma abstrata de pensamento. Vem daí a inadequação plástica da obra de arte
ruim, sua inadequação em relação ao material de expressão específico. É também isso o
que explica a existência de cineastas medianos que mostram a ideia por meio de sua
simples história, a partir do que se explica por que é possível extrair de uma boa ideia
um filme ruim, que não tenha nada a ver com o cinema em si. É possível, entretanto,
atingir bons resultados como ocorreu com determinados diretores que enriqueceram a
exposição imagética a ponto de ligá-la fortemente às concepções mais profundas do
15
É por isso que se pode utilizar, em geral, um romance para fazer um filme e, dificilmente, um filme
para fazer um bom romance, embora na prática isso seja feito muitas vezes!
tema retratado e que fazem caminhar bem ao lado de uma boa forma de depressão a sua
essência. (Por exemplo, Chaplin).
Há um filme com Irene Rich que começa com uma legenda: “Berenice Miller
era casada com um homem que se juntou a ela não por amor, mas por dinheiro”. Então
se vê a imagem de Berenice. Segue outro texto: “Depois que seu marido morreu, ela
percebe que não deve continuar a jogar fora sua juventude”. Outra imagem: Berenice
sentada num banco ao lado de um jovem que conversa com ela. Ninguém questiona se a
situação foi apresentada neste início de filme muito claramente, mas é difícil imaginar
cenas que se aproveitem tão pouco dos recursos cinematográficos e que sejam mais
pobres do que este tipo de exposição. A apresentação do tema no sentido da ideia não
conta com nenhuma imagem minimamente criativa que ajude a elucidar algo num filme
assim. Mal podemos gravar o rosto dos personagens apresentados. Diz-se
frequentemente que um tipo de filme assim não é “cinematográfico”, mas sim
“literário”, com o que se pretende defender que o roteiro pode ser muito amador, por ser
parte de uma obra exemplar em termos de qualidade literária, já consagrada e
reconhecida, e que deve apresentá-la simplesmente como se fosse o próprio romance.
Esta visão é muito difundida, mas evidentemente equivocada. A culpa por um filme ser
ruim não decorre do tipo de literatura utilizado como base para fazê-lo, mas da
necessidade de se recorrer à exposição de conceitos abstratos, para tornar o pensamento
inteligível, espalhados por diversas passagens em que só a imagem não seria suficiente
para entender a trama.
No filme “Senhora do amor”, duas personagens importantes foram apresentadas
de uma maneira muito pouco cinematográfica. Há, inicialmente, um diálogo entre dois
irmãos que se entregam a uma vida selvagem e então vem uma legenda: “Só se entende
esses dois irmãos quando se conhece quem são seus amigos. Senhor X, que aprova suas
condutas”. Entra então a imagem de um senhor que olha algo através de um binóculo.
Outra legenda: “E o senhor Y, que condena seus comportamentos”. Imagem: um
segundo senhor olhando através de binóculos. Quando se veem estas cenas, acredita-se
que ambos observam, com seus binóculos, o estilo de vida dos irmãos, sendo que um
procura elogiá-los e o outro, criticá-los. Mas não é nada disso! Os dois senhores estão
numa corrida de cavalos e olham as coisas em geral por meio do binóculo. O motivo
principal pelo qual esses dois senhores entram na história não é esclarecido pelas
imagens e, portanto, a exposição permanece bruta, sem ser trabalhada em termos de
imagens. Elas funcionam como simples apêndices ilustrativos dos textos, tão pobres
quanto seria possível, mostrando simplesmente o lugar onde os dois se encontravam
naquele instante, num momento em que a situação apresentada tinha um outro conteúdo
completamente diferente e fora de contexto.
Vamos contrapor a esse exemplo o de uma boa apresentação. A exposição do
tema no prospecto do filme “Novos Senhores”, de Jacques Feyder, diz o seguinte: “A
dançarina Suzanne Varrier, da ópera de Paris, está apaixonada pelo deputado e conde de
Montoire-Grandré”. Isso é o que há de mais importante e vem em primeiro lugar
quando se quer elucidar o enredo com palavras. No filme, não há nenhuma legenda que
conduza o início da trama. A coisa se dá assim: é apresentado um ensaio de balé na
ópera, onde uma das meninas bailarinas aponta de modo desajeitado para Suzanne! No
palco, onde o ensaio se passa, um técnico monta a iluminação, desviando o foco de luz
até focalizar Suzanne. Este homem será, mais tarde, o pivô de um conflito do casal
Suzanne e Conde Montoire. O funcionário entra em cena antes mesmo do conde.
Estabelece um anúncio visual representando antecipadamente o que ainda nem se
imagina que poderá acontecer. Depois, Suzanne vai para o camarim. É seu aniversário.
Um grande arranjo de flores repousa sobre a mesa. E um cartão: “Conde Montoire”. Ela
se veste, passa pela porta e procura um táxi, mas então percebe que há um carro na
frente do teatro e que espera por ela, um grande e imponente automóvel novo, com as
letras iniciais de seu nome na placa e um chofer que a cumprimenta. Ela entra no carro
e... Nova surpresa! Há mais um cartão: “presente de aniversário do Conde Montoire”.
Em “Senhora do Amor”, os dois homens são apresentados igualmente em uma
situação totalmente adversa de uma que representasse, de algum modo, sua função no
enredo; já em “Novos Senhores”, o conde é apresentado no princípio indiretamente, mas
assim mesmo com diversas de suas características particulares, como ser namorado da
dançarina, como ser galanteador que dá presentes caros, e rico protetor. Assim, seu
papel fica totalmente elucidado num instante, sem uso de palavras. Por meio exclusivo
da exposição indireta, é obtido um efeito muito forte, primeiro, por ocorrer antes mesmo
que o conde tenha entrado em cena e, segundo, porque coisas como o arranjo de flores e
o automóvel são usadas como meio de representação de características da personagem
que se extrai da própria situação, sem deformá-la minimamente, quase que
exclusivamente por meio de uma concentração estilística. A figura do conde em breve
entrará em cena, confirmando o que já foi apresentado.
Os estados mentais
16
Essa especulação não depõe em nada contra o cinema mudo. Ao contrário, explicita cada vez mais que
a interpretação do ator não é a principal fonte de recursos para conduzir a trama no cinema. O
desenvolvimento do cinema depende da aceitação de que o ator deve ser liberado de sua função
meramente convencional sem o que só serão atingidos bons resultados mas nunca soluções geniais.
decisiva e elas são mostradas novamente em close, mas, como se seguissem a um
comando ríspido, param imediatamente de mastigar – e expressam, deste modo,
tamanha surpresa como se não conseguissem praticamente respirar. Esse tipo de
surpresa também poderia ser expressado por meio da mímica, mas todos devem
concordar que é muito mais interessante o modo como ele foi representado nesta cena.
Não se trata, portanto, de olhos arregalados que se contorçam nem de respirações
aceleradas exageradas que já se viram centenas de vezes nos filmes mudos e que já não
causam mais ao público nenhuma surpresa nem impacto quando se veem novamente e
que transmitem a ideia: “Ora, alguém se espantou!” Esta forma indireta de
representação é muito mais inovadora, o que ajuda em que se tenha um efeito muito
mais forte e eficiente, fortalecendo também o sentimento transmitido por sua imagem.
Mas este tipo de representação não causa impacto somente por ser mais novo: ele
também age num nível mais elevado. Isso porque o vínculo entre o acontecimento
exterior e a emoção interna não é somente conceitual e abstrato, mas é construído a
partir da estrutura interna de um refletido como estrutura visual no outro. Quando as
moças param de mastigar, não se fica sabendo ou não se percebe que elas estão
espantadas somente porque se sabe, a partir da própria experiência de cada um, como as
pessoas que se espantam ficam internamente alteradas. Ao contrário, esta sensação que
conhecemos é replicada no movimento rítmico e constante de mastigar, que é de repente
interrompido, reproduzindo exatamente aquela espécie de falta de ar que sentimos numa
tal situação, e tem a mesma estrutura do sentimento interno. Se fôssemos descrever o
sentimento interno do acompanhamento sossegado das garotas em relação à exposição
dos fatos no júri, poderíamos enxergar sua mastigação sossegada e o espanto, sua
repentina interrupção – enxergamos nas duas situações um paralelismo formal. Esta
essência interna é transposta para uma forma óptica.
Surge, portanto, uma situação exterior que consegue representar um estado de
ânimo subjetivo. Quando, em “Mulher na Lua”, Willy Fritsch corta com uma tesoura o
botão de uma flor que estava num vaso ao lado de sua mesa enquanto fala ao telefone,
consegue mostrar melhor do que se fizesse qualquer cara contorcida como ele está
nervoso. Isso é extraordinariamente cinematográfico (num nível até mesmo
primitivamente cinematográfico) porque é ação, ação visual. Em “Novos Senhores”, de
Feyder, é mostrado um velho conde que conta a sua amiga, a pequena bailarina, que o
até então ministro Gaillac teve de ir para o exterior. Gaillac é o amor secreto de
Suzanne, que se emociona muito com a notícia, mas que tem de se comportar como se
nada houvesse acontecido porque ela não pode deixar que seus sentimentos sejam
percebidos. O que acontece? Suzanne e o conde estão num café. Enquanto ela olha para
ele, ele lhe conta a história. Ela não demonstra nada em seu rosto e diz delicadamente:
“Nossa!”. Mas, ao mesmo tempo, sua mão torna-se trêmula e ela derruba café na xícara.
O que se passa com Suzanne quando ela fica sabendo da má sorte de Gaillac não é
praticamente notado por meio de alguma expressão facial, mas a cena já carrega esta
informação em si mesma e sabemos que ela teria de manter sua reação sob controle. Em
lugar desta solução, um diretor menos habilidoso que não soubesse como a explicitar
“cinematograficamente” poderia ter recorrido a mostrar a atriz representar sua comoçãol
contorcendo o rosto, se agitando, girando as pupilas dos olhos..., tudo isso direcionado
somente ao espectador de modo que o conde não notasse nada. Jackes Feyder, ao
contrário, expõe uma pequena ação que é totalmente verossímil, mantendo a desfaçatez
de Suzanne, mas expondo ao mesmo tempo seu estado emocional alterado que contrasta
com a dissimulação a partir de uma imagem que revela sem violentar a realidade.
Nestes pequenos exemplos, entende-se muito bem o que é um bom trabalho de cinema.
Pode-se encontrar esse recurso também numa famosa cena de amor de Greta
Garbo, a cena do cigarro em “A Carne e o Diabo”. Ela conheceu o jovem oficial John
Gilbert em uma festa onde dançam dentro das mais respeitosas convenções sociais: duas
pessoas totalmente desinteressadas uma na outra poderiam fazer exatamente o mesmo, e
não se presenciou ainda nada que pudesse prenunciar o que poderia ocorrer... Eles vão
então ao jardim, a moça coloca um cigarro na boca e o homem oferece um fósforo
aceso, mas, em vez de usar o fogo para acender o cigarro, a moça guarda o cigarro
novamente e usa a chama para iluminar seus rostos para que se admirem. A ruptura
abrupta do ritual social oferece, com muito mais intensidade do que qualquer mímica, a
representação dos sentimentos. Ela prenuncia: algo diferente vai acontecer.
A representação do estado de ânimo, que é um monopólio dos atores no teatro,
também pode ser representada no cinema por coisas inanimadas assim como pela ação
do ator. Uma janela quebrada pode ser tão eficaz como uma boca trêmula; e um monte
de bitucas de cigarro, tão representativo como dedos tamborilando. Assim fica claro,
mais uma vez, que o homem passa a ser, no cinema, mais um elemento na ordenação
das coisas do mundo. Tanto quanto a representação corporal das personagens, a
apresentação das coisas também pode expressar sentimentos humanos e ações.
Realidade e necessidade
Esquematização
Não é possível extrair uma fórmula generalizante do valor dos filmes com base
no fato de eles terem sido feitos a partir de uma ideia abstrata representada por sua
trama, ou de terem sido construídos a partir dos detalhes das imagens individuais até
que fosse surgindo uma unidade na sua totalidade. Essa separação estanque dependeria
da possibilidade de determinar muito nitidamente a separação entre uma e outra
estratégia, sendo que quase nunca elas se encontram em qualquer filme numa roupagem
que seja tão pura assim em relação a qualquer um desses dois tipos. O autor pensa em
algo: “Eu quero apresentar o comportamento de um jovem rico que renuncia a seus bens
por idealismo e tenta viver como um proletário, mas que então vive uma desilusão!”.
Mas, ao mesmo tempo, isso surge para o autor como uma situação bem específica
como: o herói vê na estação de trem uma criança suja, dirige-se até ela e generosamente
e lhe oferece bombons; já a mãe da criança caminha até ela, pega a criança, joga os
bombons fora e adverte – “Você não deve aceitar nada de estranhos. Nunca se sabe o
que eles querem!”.
Uma cena assim é como se tivesse sido desenvolvida num ateliê. Ela ainda
precisa ser decupada e pode ir para um storyboard. E estas cenas individuais conduzem
a narrativa de modo que o autor frequentemente seja levado a acrescentar nelas algo da
trama geral, como: por que o herói carregava bombons? Na verdade, são os confeitos
que ele pretendia dar a sua noiva, mas eles se separaram. A estação de trem também
deve ser justificada. E assim, de um modo muito pouco sistemático - por assim dizer de
baixo para cima e de cima para baixo -, sempre surgem novos impulsos que constroem
um bom filme. Assim entendemos aquilo que Goethe disse a Schiller: “E assim, quando
ocorre de o plano da obra conseguir colocar ao mesmo tempo os acontecimentos e a
narrativa juntos, se obtém uma tal vantagem que ela nunca pode ser desprezada”. Filmes
ruins são apresentados muito frequentemente num modo muito sistemático e mecânico.
Isso já pode vir de uma separação, desde sua origem, muito inconveniente e pouco
salutar entre a trama e o storyboard, que na prática é muito comum e sobre a qual ainda
falaremos.
Conduzir o filme ao mesmo tempo para baixo e para cima, ou seja, unificar tema
e cenas individuais, é muito conveniente porque, deste modo, o resultado são imagens
muito vivas. Uma condução muito sistemática - como é a regra prática da indústria
cinematográfica - em que primeiro a história é escrita em forma de roteiro e depois
passada, na forma de temas abstratos, para as cenas concretas acaba resultando, na
maioria dos casos, em imagens muito pouco originais. Os profissionais de cinema já
vivem hoje uma tamanha rotina que eles podem transferir mecanicamente qualquer
tema de um roteiro para uma decupagem. Há centenas de casos precedentes de como
representar um suicídio num filme (tiro de revólver, atirar-se no trilho do trem, tomar
veneno ou pular da ponte para dentro do rio). Há ainda um depositório de situações -
amorosas, roubos de cofres, vida de estudantes – que são representadas da mesma
maneira.
É claro que uma tal prática é totalmente inconcebível, artisticamente falando,
porque o filme só poderia contar com a organização de formas já dadas para fazer uma
ação viva. Os padrões formais esquematizados orientam a narração, sim, mas o fazem
de modo pouco interessante e, por isso, deixam o público que gosta de arte
decepcionado. Um sentimento extraordinário e instigante característico da boa arte não
pode nunca ser alcançado desta maneira.
Essa esquematização pode começar desde um nível muito elementar. Até mesmo
a história pode ser fabricada em uma espécie de linha de montagem. Conhecemos muito
bem filmes sobre o Reno ou sobre Heidelberg, filmes policiais, de guerra, de estudantes,
de caubóis, filmes sobre bairros orientais da Rússia czarista, todos eles feitos em série,
embora, neste nível, a esquematização seja muito pouco perigosa em relação ao cunho
artístico da obra. Só basta assistir a “Heidelberg antiga”, de Lubitsch, ou aos filmes de
crime de Sternberg e de Bancroft para comprovar. “Submundo”, “Polícia” e “As docas
de Nova York” são exemplos capazes de mostrar que temas batidos também podem ser
assunto para versões muito boas. Quando um gênio como Lubitsch trabalha, o coração
bate mais forte e chega a quase sair da boca por causa da trama de Karl Heinzen e
Käthi, ou mesmo a partir de um tema banal, como o de Chaplin em “Mulher de Paris”.
O problema da escolha do tema foi exagerado pelos intelectuais. Nós não
tratamos aqui nem de modos de ver o mundo, nem de questões políticas, mas falamos
de questões artísticas. Cum grano salis17, pode-se dizer que a arte repousa sobre os
detalhes, mesmo que isso não diga respeito somente ao cinema. Claro que a descrição
do ambiente deformada em filmes medíocres é irritante. Há muita política e pouca arte
nessas histórias de terríveis cidades em miniatura, ilusórias, com uma elegância de
fachada cuja existência real permanece um sonho distante. Mas o exemplo de Jacques
Feyder, com “Novos Senhores”, mostra que mesmo a partir de um tema com forte
tendência à rejeição, pode ser feita uma obra de arte. A história da arte é repleta de
exemplos assim.
Pudemos acompanhar nos últimos anos um desenvolvimento interessante no
cinema alemão. Como reação contra o mundo encantado e distante da realidade de
muitos filmes medíocres, houve um desenvolvimento no sentido de representar o
mundo exterior, que se encontra próximo do público, com temas realistas como a vida
do proletariado, dos pequenos funcionários públicos, das vendedoras, etc. O avanço foi
difícil porque esses filmes não são valorizados. As pessoas veem os tipos - como os de
Ziller -, os interiores de casas esfumaçadas e a miséria dos bares do mesmo modo
desinteressado como veem os tenentes Husardos e os castelos luxuosos, porque há
muito mais vitalidade na mais singela comédia americana feita por alguém como
Lubitsch do que em dezenas de filmes sobre a pobreza, que mostrem de modo fidedigno
mas com pouco talento a vida “como ela é”.
A questão do tema acaba se tornando no fundo um problema político.
Artisticamente falando, ele é muito pouco interessante. Assim, por exemplo, não é
verdade que há temas que se passam em tempos mais apropriados ao romance, ao teatro
ou ao cinema porque combinam mais com o meio. O que combina ou não com o meio,
no entendimento do público de arte, é uma questão, sobretudo, de qualidade sobretudo.
A ação de Lear é mais emocionante do que um acontecimento que se refira aos túmulos
de soldados de 1914 porque o poeta que escreveu sobre a guerra não é tão genial quanto
Shakespeare, e não por causa do tema. Mesmo as situações mais atuais, próprias e
individuais de nosso tempo, podem ser representadas de uma forma muito mais viva
pelos heróis dos geniais contos de fadas do que por personagens sem graça de um
presente sem nuances. O que é relevante em relação ao tempo numa obra de arte se
encontra muito além da simples época em que se passa a trama.
É também um erro atribuir a elevada qualidade do cinema russo ao fato de ele
usar como temas episódios oriundos da sua revolução. Cada vez fica mais claro que é
justamente esta amarra doutrinária aos temas revolucionários o que ofuscou até aqui nos
17
Expressão latina equivalente a “com certa parcimônia”
filmes russos, mesmo nos melhores, a veracidade, a unidade e o vigor. A revolução
ajudou a arte do cinema em um outro aspecto muito diferente: os estúdios russos
puderam produzir sem se preocupar com os custos e com o gosto do público. E assim
cada diretor russo pode desenvolver seu talento livre das dificuldades que, em todos os
outros cantos do mundo, atrapalharam o desenvolvimento do cinema, porque os
diretores dos outros países tiveram de enfrentar todas esses outros obstáculos também.
Que nada disso se origine no tema não significa que o autor e o diretor possam
descuidar de sua escolha. Ao contrário, logo surgem problemas se o diretor não
canalizar toda sua sensibilidade artística diretamente para desenvolver o tema do filme.
Os filmes americanos “Homem da Multidão”, “Chicago”, “A garota sem fé”, “Rivais” e
“Os quatro diabos” mostraram de forma semelhante uma situação de um sujeito na
grande cidade, o qual passa pelos problemas da luta pela sobrevivência, do terror da
guerra e da miséria da vida circense. Mas não é preciso ser muito esperto para perceber
que esses temas foram escolhidos pelos autores por darem uma margem muito grande
de apresentação de aventuras sensacionais. Isso determina o valor geral desses filmes,
mas eles tiveram de ser trabalhados com muita habilidade em cada um de seus detalhes.
Acabamos nos distanciando muito de nosso assunto. A questão volta a ser a
padronização dos temas dos filmes e há ainda o que falar sobre isso, como o fato de
surgir, como resultado desta homogeneização, uma indústria do cinema que em geral
raras vezes apresenta uma grande novidade para o próprio cinema.
O arquiteto Walter Gropius expressou a ideia de que se poderia produzir uma
construção civil em série de moradias de modo que todas elas se parecessem diferentes
umas em relação às outras na aparência, mas que fossem construídas a partir dos
mesmos elementos padronizados – elementos que poderiam ser fabricados em série. É
justamente a partir deste princípio que a indústria cinematográfica produz filmes como
mercadorias. Os elementos são sempre os mesmos e são trabalhados sempre da mesma
maneira, mas eles são combinados de modos diversos e, assim, podem ser produzidos
novos filmes sempre a partir dos mesmos materiais. Desfaçatez, segredos, resgates no
último momento, disputas em torno de uma mulher, falsas desconfianças, disputa por
herança, perseguições... Não seria difícil construir uma tabela em que cada situação de
um filme pudesse ser desmembrada e com a ajuda da qual, a exemplo de uma tabela
periódica da química, fosse possível encontrar as lacunas e preenchê-las com as
situações que ainda faltam ser exploradas.
Os autores de roteiros parecem estar completamente fora do nosso mundo. A
matéria-prima a partir da qual eles trabalham para criar suas ideias não é retirada da
realidade, mas sim de outros filmes que tenham obtido algum sucesso a partir de uma
determinada história.
A situação que surge desse quadro é da maior periculosidade quando se aplica
não só para a escolha da história como também para a compreensão tanto da forma de
produzir as imagens quanto dos posicionamentos de câmera. O inesgotável parque de
tipos humanos passa a se reduzir a alguns poucos tipos, a arte passa a ser normalizada a
partir de situações determinadas e caracterizada por certos detalhes, os mesmos recursos
artificiais passam a se repetir sempre, os mesmos elementos são utilizados nas mesmas
funções, as mesmas decorações para os mesmos ambientes, e para as mesmas paisagens.
Surgem o velho barão, a gorda cozinheira, o detetive elegante, a camareira
maquiada, o cocheiro obeso, a esposa sofredora, o inventor genial, a sogra
desengonçada, o garoto magro, o dentista espirituoso, o advogado sempre ao telefone, a
pobre criada, o marido ciumento, a mãe idosa, o guarda florestal preguiçoso, a filha do
dono do pensionato, o cavaleiro protetor, o bandido acrobático, o amigo imaturo, o
papagaio barulhento, o pastor fiel.
Some-se a isso, o relógio que marca as horas, a placa com o nome na porta da
casa, o revólver escondido, o buraco da fechadura, as pernas que se trançam, o chapéu
masculino, a notícia de uma morte estampada num jornal, o monóculo caindo, uma taça
de champagne se quebrando, o smoking fora de hora, a primeira frisa do teatro, o
cinzeiro com guimbas de cigarro, a fotografia de uma mulher distante, a visão de um
cavalo, o escorrer de uma lágrima, o dinheiro rasgado sobre o tapete, as estátuas nas
salas de tesouros, as ondas circulares na água, o tremular das franjas da toalha de mesa,
o espelho retrovisor do chofer de táxi, as bolhas de sabão nas costas, o declive da
paisagem à beira da estrada, a manipulação do aparelho de telégrafo, o cartão de visita
com a coroa real, a luz da lanterna, o cheque de um milhão de dólares, a falta de dentes
na boca da zeladora, os dedos sobre o piano, as nuvens encobrindo a lua...
E o mais surpreendente é que todas essas passagens cinematográficas foram
concebidas um dia por cineastas talentosos. Mas ocorre que seu uso imitado – e por um
número insuportável de vezes - acabou com todo o seu frescor. Quem representou pela
primeira vez um beijo de forma indireta, mostrando somente as pernas do casal, seus
movimentos, sua excitação, seu toque, desenvolveu um recurso cinematográfico quase
mágico. Mas, quando se veem estas pernas sempre a se trançar em todos os beijos de
um filme qualquer, elas perdem sua boa qualidade como forma de representação muito
rapidamente.
A produção de filmes comuns nunca permanece estacionada num mesmo estágio
de desenvolvimento do meio de expressão cinematográfico. Estes filmes aparecem
sempre na retaguarda dos desenvolvimentos de ponta, de modo que aquilo ainda hoje
considerado um grande efeito artístico tornar-se-á em dois anos uma prática comum. O
uso de close-up e a utilização de objetos num determinado contexto, foram criados por
cineastas talentosos e depois rotineiramente foram copiados. Assim, nos últimos anos já
se encontra nos filmes mais comuns uma montagem ativa e o uso da colocação de
câmera no estilo russo. E segue uma evolução vagarosa no nível da produção em geral e
no padrão de utilização dos recursos cinematográficos. O problema é que o novo é
transformado em banalidade quando passa a ser comum e facilmente aceito.
Não se deve admirar o curto tempo de duração do valor de uma inovação no
cinema. É verdade que se trata de algo distinto do que nos acostumamos a ver nas artes,
em que o novo não desvaloriza o antigo. Seria um disparate avaliar que uma pintura
impressionista seja melhor do que uma do treccento italiano já que utiliza um tipo de
perspectiva muito mais elaborado. Mas é importante notar que há, sim, um
desenvolvimento da técnica impressionista desde Manet até Cézanne. No interior de um
determinado estilo artístico, há evolução e incompletudes que são elaboradas até que se
atinja seu completo desenvolvimento. Há um desenvolvimento do romance psicológico,
da harmonia polifônica, da dança de balé, do estilo da construção, etc., e, no interior de
tal desenvolvimento, o novo desvaloriza em certa medida o estágio anterior.
É o que se passa no cinema que, apesar de sua juventude, já desenvolveu pelo
menos duas importantes formas estilísticas claramente distintas. Assim, não faz sentido
considerar um filme russo melhor do que uma comédia de Chaplin por causa da
utilização consciente do controle e da movimentação de câmera e da montagem. Na
comédia norte-americana, também há, na verdade, uma montagem e um tipo de
enquadramento. As cenas eram mais longas, há menos cortes e eles ocorrem somente
quando se altera o lugar onde se desenvolve a nova ação ou quando um close é
apresentado. Esses closes são usados de um modo muito primitivo, como uma lente de
aumento, e não são utilizados como meio de expressão. A câmera era vista somente
como um equipamento de gravação, ela era colocada bem no centro da ação e movida o
mínimo possível. Os filmes cômicos pertencem evidentemente a um período anterior ao
desenvolvimento do movimento de câmera e da montagem. E, por este motivo, no
estágio atual de desenvolvimento do cinema eles não são de modo algum nem
preservados nem valorizados. Isso porque eles padecem internamente de uma limitação,
o que resultou num estilo totalmente rígido, quase engessado, e que não possibilita
praticamente a utilização da montagem e não permite também mudanças de
enquadramento, as quais quase não são utilizadas.
Já pensando no grupo dos filmes que se utilizaram de técnicas de enquadramento
e de montagem, encontramos tanto filmes comuns quanto esquematizados. Estes
últimos não conseguiram elevar o nível da produção a partir do uso dos novos recursos
de expressão, nem extrair deles um resultado melhor. O que era para ser instigante e
cheio de vida tornou-se seco e vazio.
Isso ocorre porque se desenvolveu o que se poderia chamar de “ateliê
industrial”. Desde a primeira concepção da ideia até o direcionamento dos holofotes,
tudo segue uma regra absoluta. Esta regulamentação pode não parecer estranha quando
se trata da fabricação de automóveis. No que se refere à arte, porém, a estandardização é
uma piada de péssimo gosto. Além de cobrar um mínimo esforço intelectual, ela cobra
uma fabricação muito rápida e pouco trabalhosa. Consegue desta maneira, como jamais
havia sido possível até então, fazer do artista que sempre foi taxado de improdutivo -
financeiramente falando - uma espécie de artesão que, num sentido mais técnico, tem de
trabalhar como um operário, mão-de-obra industrial.
19
Termo que faz referência ao teatro barroco, em que deuses surgidos como que por milagre no palco,
interferiam na trama para impor uma solução inesperada para um drama complexo, aparentemente sem
saída.
São situações agudas que analisamos, mas que não se imagine que escolhemos
intencionalmente casos de especial maldade. Ao contrário, se qualquer um não tem nada
melhor para fazer à noite e então se dirige sem conhecer a programação, para a sala de
cinema de oitenta centavos de marco mais próxima da sua casa, em nove de dez filmes
que sejam vistos ao acaso poderá constatar situações que combinam com a análise que
desenvolvemos.
O que isso significa? Que os filmes que se destinam à grande massa de público
revelam a imagem característica de mundo do espectador: os ricos e nobres são
inimigos e devem se dar mal, mas nem tanto porque seus privilégios sejam imerecidos,
e sim porque nós não participamos também destes privilégios. Nós desejamos também
as vantagens, a riqueza, a moleza e a libertação do trabalho cotidiano. Nós enxergamos
nossa própria pobreza e desconforto com os olhos do inimigo, nós nos culpamos e
buscamos encobrir nossos pontos fracos com cenários coloridos, porque não somos no
fundo conscientes, mas sim crentes e devotos. Nossos desejos são muito mais fortes do
que nossa razão, sentimo-nos totalmente satisfeitos quando uma coisa que desejamos
ver acontecer se realiza na representação cinematográfica e não nos preocupamos
minimamente se esta realização foi obtida por meio de acontecimentos manipuláveis e
simbólicos: nós ficamos, por exemplo, felizes quando a igualdade entre ricos e pobres é
obtida por meio de uma cena de amor e nos damos por satisfeitos, sem senso crítico,
com a alegria resultante do efeito de bom comportamento.
Nós acreditamos, de longa data, que há um deus amoroso no céu. Não lançamos
críticas racionais – ou reparos - contra as outras pessoas, mas sim censuras morais, cujas
regras são extraídas de um código de comportamento estúpido. Traição ou
desentendimentos familiares não são para nós casos infelizes que se dão quando
pessoas, cujas personalidades não combinam, estão juntas porque a natureza as
conduziu a um erro de percurso. Trata-se muito mais de crimes condenáveis que devem
levar a uma condenação eterna, perdão ou arrependimento. Pessoas que se entregam a
essas condutas devem, se não quiserem nos aborrecer, ser lançados para fora da
convivência com o mundo burguês tradicional; não podem permanecer em nosso círculo
social, mas devem ser tratadas como criminosos, vigaristas, ou cortesãos. Um homem
com uma loja de atacados o qual se deixa uma vez desviar numa má conduta, mas que
recua num arrependimento sincero, pode seguir sua vida de senhor respeitável - o
mesmo se dá com mulheres e crianças.
Que tipo é assim retratado? É o alienado. E, por isso, mostra-se uma situação tão
perigosa que os milhões que gostam dos filmes de ficção, secretamente e sem se
aperceberem disso, são levados à alienação. Um dos aspectos mais importantes disso é
que a maioria do público pertence ao proletariado, mas, no subconsciente da alma dos
proletários - justamente onde a clareza da razão tem menos penetração -, reside uma
grande quantidade de ideologia burguesa, como não poderia deixar de ser por uma razão
histórica: a razão, antecedendo os sentimentos em algumas dezenas de anos, já tem
consciência de classe, e os sentimentos ainda se afundam na visão moralista e na visão
de mundo do passado burguês. Esta névoa no inconsciente encobre uma tradição
centenária que até hoje é zelosamente alimentada na escola, na Igreja e pelo Estado.
Mas ela é felizmente, para muitas pessoas, somente deixada no porão, sendo que, no
andar de cima onde entra o ar puro da razão, há senso crítico e bons impulsos
revolucionários. Estas pessoas não alimentam a sensação de descobrirem em si um lado
mau quando se sentam livremente no cinema para ver “O conde e a florista”. Isso
porque elas sabem contrabalancear esse tipo de filme que valoriza a existência de um
lado perigoso da sua alma, o qual, por ser encoberto num canto, escondido, é difícil de
ser combatido. Assim, recomenda-se que ele deve ser eliminado num combate cujo
trabalho, de todo modo, é mais intenso porque escola, Igreja e Estado também estão
envolvidos.
Conteúdo e invenção
Dizem frequentemente que os filmes não teriam nenhum conteúdo elevado, nem
mesmo poderiam tê-lo porque a linguagem verbal desempenha neles uma função muito
reduzida.
É sempre um perigo lidar com o termo conteúdo elevado, erudito. Aqui também
se dá assim. Se for entendido por conteúdo elevado a exposição de pensamentos
formulados de maneira abstrata, o filme não pode nem servir para apresentá-los, mas
esse tipo de conteúdo mais abstrato tem um papel limitado até mesmo na literatura, a
arte da palavra por excelência. Muitas vezes a própria literatura utiliza as palavras para
descrever atividades concretas: é mostrado, por meio de palavras, o que as pessoas em
ação fazem ou pensam; o ambiente é descrito; e, quando as pessoas conversam, sua fala
trata em geral de coisas muito pouco abstratas. Sabe-se que não é a pior literatura aquela
que usa a palavra para a descrição e não para construir uma reflexão abstrata.
Na visão de Wilhelm Schäfer: “Como a fala e suas imagens (as imagens criadas
pelos poetas com a palavra) também é o instrumento do pensador, ela deve naturalmente
ser usada de outro modo pelo poeta, que a eleva a uma nova categoria especial e
criativa.” Essa outra utilização está relacionada a que a fala poética não se reporta ao
poder do pensamento abstrato, mas ao da visualização, com a qual ela – a fala libertada
das relações do entendimento lógico – apresenta imagens pintadas com palavras em vez
de cores. Se o pensador diz cavalo e cachorro, deve falar o poeta de um animal do
campo castanho e de um focinho negro, porque ele precisa, para construir sua imagem
poética, de elementos mais precisos.
Não há, em relação a isso, nenhuma grande oposição entre a arte da palavra e a
do filme. A literatura usa palavras e o filme usa imagens. Em ambas, as ideias
orientadoras não são dadas em abstrato, mas sim revestidas de situações concretas.
Muitos filmes primorosos comprovam que não é vedada ao cinema uma
abordagem mais densa. “A corrida do ouro”, de Chaplin, este filme belo e profundo,
serve bem de exemplo. Todos devem se lembrar da cena em que Chaplin é um
garimpeiro morrendo de fome o qual cozinha suas botinas e se alimenta delas. Muito
educado e com modos refinados à mesa, ele destrincha aquele alimento inusitado. Ele
levanta a parte de cima da bota, de forma que a sola com os pregos aparentes fique
parecendo uma espinha de peixe - do qual alguém retira delicadamente as partes de
carne. Ele chupa os pregos como alguém que retira carne dos ossos de um frango,
enrola os cadarços como alguém que come espaguetes.
Nesse cenário, agrava-se o contraste entre o rico e o pobre de uma maneira
radical e original, simbolizado pelo encontro de opostos dados visualmente. Esse tipo de
contraste pode ser criado facilmente no cinema, como o foi, centenas de vezes, ao
mostrar a alimentação rala de um pobre ao lado da suntuosidade da refeição de um rico.
Este segundo tipo de solução não é possível a partir do uso de abstrações, porque se
torna sem qualquer originalidade, fraca do ponto de vista artístico e sem conseguir
combinar harmoniosamente as coisas.
Se a cena de Chaplin mostrasse simplesmente um homem faminto que devora
uma bota cozida, ela não passaria de uma simples caricatura da pobreza. A elegância e a
força argumentativa da cena vêm justamente de a representação da pobreza ser colocada
em contraste com os modos da riqueza. Contraste este criado do modo mais original e
sem mediação de uma espécie de síntese óptica entre a alimentação precária e com o
cerimonial da alimentação do rico.
Roteiro e direção
Quarto capítulo
O filme sonoro
A palavra
A novela de rádio
A forma mais radical em que aparece uma destas duas técnicas de palco de que
falamos há pouco se materializa na novela de rádio. Mais intensamente do que no teatro,
aqui, efetivamente se constrói o verdadeiro reinado da palavra porque qualquer
corporeidade da ação e do local de atuação deve ser construída no grau que se desejar
unicamente a partir do poder da própria palavra, sem qualquer outra concorrência, já
que os olhos não contam com imagens que venham a se sobrepor ao que as palavras nos
sugerem. O rádio potencializa integralmente o caminho de sugestão óptica da palavra
por causa do seu caráter de transmissão à distância. Seria assim possível especular que o
teatro sofreu uma forte concorrência do cinema falado e transmitiu o patrimônio da arte
dramática para a novela de rádio como uma reação às novas técnicas, tese que
demonstra muito enfaticamente - e ao extremo - que a palavra como realidade natural se
encaminhou para a esfera do cinema falado e que, por outro lado, a hegemonia da
palavra artística se conformaria mais ao drama radiofônico. Pode acontecer
hipoteticamente que a televisão, ou seja, a fusão entre cinema e rádio, também não
prejudique o drama radiofônico. E ainda aventar a hipótese de que um uso muito restrito
da palavra no rádio seja recebido pelas massas sem muito entusiasmo.
Ainda pode-se reparar que não é tão fácil assim encenar dramas escritos para o
palco numa novela de rádio. O que já é uma obra completa no livro, sem os ingredientes
de palco, não se mostra completa no rádio. Falta ao livro uma porção de ingredientes,
como intérpretes, e os tipos de fala das personagens, lugares da ação, número de
participantes, ou seja, inúmeros elementos, desde gestos e ações representados por falas,
que não se podem simplesmente ler, mas interpretar. Devem ser escritos dramas
específicos para novelas de rádio, os quais justamente se aproveitem destas lacunas
abertas pelo rádio como potencialidades de criação artística e que desenvolvam uma
ação dramática diretamente a partir do diálogo das personagens, em vez dos elementos
ópticos ou da observação da direção. O quanto essa construção das relações num
programa de rádio é peculiar, desde os seus mais elementares fundamentos, fica claro
quando, por exemplo, pensamos que o ouvinte, no início de uma cena, está totalmente
desorientado, ou seja, não sabe quem fala, para quem se dirige e onde se encontra.
Coloca-se então a necessidade de uma técnica de exposição própria, assim como há uma
própria ao cinema e outra ao teatro, que se opõe a tais por contar, por assim dizer, com
um nada, um buraco negro visual de onde a ação deve brotar tornando-se inteligível e
imagética – o que lembra em alguma medida o tipo de exposição próprio do romance
literário. Se a partir das novelas de rádio será ou não descoberta uma tal arte de
dramatização sonora tão sofisticada, é difícil dizer. Mas há grande chance de que ela não
surja.
Nós tratamos aqui da rádio porque ela pode oferecer uma oportunidade de isolar
o fator acústico do cinema sonoro. Assim, como já destacamos, não se quer dizer com
isso que o cinema sonoro seja o resultado de uma simples sobreposição da novela de
rádio com o cinema mudo, que somente fosse necessário somar as técnicas artísticas
dessas duas outras modalidades anteriores para obter um bom filme sonoro. Mas ainda
assim, da mesma maneira como muito do que descrevemos da arte de câmera do cinema
mudo se preserva no que tange ao cinema sonoro, onde essas técnicas poderão ser
utilizadas numa nova conjuntura e até poderão se transformar - visto que há muitos
aspectos semelhantes entre os dois tipos de cinema, e também porque os efeitos do
cinema mudo que agregam valor àquela arte são de utilidade até mesmo didática para o
entendimento tanto do cinema falado como das modificações que ele promove –,
também o entendimento isolado da parte acústica será útil. O cinema mudo e a novela
de rádio são pai e mãe do cinema sonoro. Estando claro que o filho não é uma simples
soma das características dos genitores.
Com a novela de rádio, a radicalidade da valorização da palavra, ainda comedida
no teatro, pode atingir o mais alto grau. Os olhos não apresentam nela nenhum papel, o
mínimo que fosse, e mesmo a audição não abre muitas oportunidades além de ouvir o
diálogo do autor. Como os ruídos aqui, assim como qualquer elemento óptico,
significam uma concorrência silenciosa com a palavra, só é possível seu uso de uma
forma comedida.
Além dessa, é possível ainda uma outra forma bastante distinta de arte
radiofônica que somente se inicia por ora, distinta da atual por utilizar como material
artístico toda espécie de sons em geral que se encontram na realidade, ou seja, do
mesmo modo como o cinema mudo serve-se de todo tipo de coisas em geral como valor
visual. Este tipo de arte sonora instaura, assim como na arte visual, uma nova
organização do material criativo. Gemidos e sirenes de fábricas, sons de água correndo
e tiros de revólver, canto de pássaros e roncos – e também a palavra falada – constituem
uma coleção de ruídos sobre ruídos. Se não forem expostos com rigoroso controle da
sua harmonia, eles se amontoam de modo desarticulado, como simples coleções de
barulhos. Todavia, se organizarem-se numa forma de arte, pode-se dispô-los ordenados,
de modo que construam uma unidade de fala e sons, de maneira que até mesmo a parte
falada perderia sua independência e qualidade se não estivesse em conjunto com seus
complementos sonoros. O fundamental aqui é que a palavra em si, neste caso, não
precisa ser utilizada de um modo distinto do da fala em uma simples leitura de texto no
rádio. Se a dramatização do texto tende a uma estilização, ao antinaturalismo da
declamação, visto que a fala dos diálogos fora dos ambientes sonoros deve construir
uma estilização por si só, num drama acompanhado de efeitos sonoros se conta com um
arsenal de ruídos reais que podem se somar ao velho diálogo – integrando palavras e
ruídos de um modo tão natural que eles podem ser muito menos interpretados do que
quando o diálogo é estilizado por motivos de transmissão de uma ideia artística. Aquele
tipo de peça mais tradicional acaba apresentando sons tão afetados como as
declamações de versos alexandrinos e toda espécie de sons antinaturais.
O drama sonoro, de qualquer maneira, até agora não é mais do que uma
possibilidade hipotética e o que nos interessava nele era justamente demonstrar que o
mesmo seria possível teoricamente. Somente a prática poderá mostrar se o universo dos
ruídos é rico o suficiente para se unir à palavra a fim de construir um meio de
constituição de obras de arte valiosas. O problema é que não se pode concluir, a partir
do fato de o visual isoladamente ter sido suficiente (no cinema mudo) para construir
uma verdadeira coleção de obras-primas, que o mundo do acústico isoladamente
também alcançará o mesmo resultado. O visual e o acústico são universos muito
diferenciados.
Ondas de luz e ondas sonoras dão informações para as pessoas a respeito da
constituição das coisas em nosso mundo: como essas coisas “são” e o que elas “fazem”
num determinado momento. Desta maneira, nós obtemos, sem necessidade de um
contato físico táctil com as coisas, conhecimento a respeito delas no espaço real, e,
muitas vezes, essa informação é mais detalhada e melhor do que se tivéssemos um
contato tátil direto com cada uma delas. É o que simplesmente chamamos de ver e de
ouvir.
Acontece que somente uma pequena parte das coisas que estão ao nosso redor
oferece, com sua simples apresentação, ruídos que podemos ouvir. Algumas o fazem
sem parar, mas a maior parte não. O mar esbraveja sem parar, o cão late vez ou outra e
uma mesa nunca produz sons. Já, muito pelo contrário, com o auxílio da luz, nós
podemos permanentemente obter informações visuais de qualquer coisa deste mundo. A
luz oferece um universo de imagens completo e muito mais rico do que os sons. A luz
nos oferece o “ser” das coisas; o som, na maioria das vezes, é algo que “acontece junto
com elas”. A luz nos mostra a “coisa em si”; o som nos dá algo (seja permanente ou
ocasional) exterior à coisa. É verdade que não se pode levar essa afirmação ao pé da
letra porque a luz não nos oferece mais do que se pode saber a respeito da superfície das
coisas modificadas pelas ondas luminosas. (não vamos nos preocupar com objetos que
possuem luz própria). Essas superfícies aparentes alteram-se dependendo da direção e
da relação com o foco de luz. Mas, mesmo assim, nós obtemos muita informação a
respeito dessa superfície: sua localização no espaço, sua extensão, seus limites e
também informações de sua cor e do tipo de material. E esta reação da superfície das
coisas sob a iluminação novamente nos oferece muitos elementos a respeito do “ser”
daquela determinada coisa: quase toda alteração relevante ocorrida com a coisa vai
corresponder a uma alteração equivalente em sua superfície. Nós incorremos em alguma
imprecisão quando dizemos que a luz nos mostra a “coisa em si”. Porém, a informação
que podemos obter por intermédio do som, já que ele também pode nos oferecer muitas
explicações sobre relações permanentes ou momentâneas com as coisas, são
incomparavelmente mais ralas, particulares e indiretas.
Por isso, uma arte acústica tem à sua disposição um material mais pobre do que
uma arte visual. Dado que é um material, é possível produzir a partir dele, mas não no
mesmo grau de profundidade e amplitude. É possível comparar em certa medida com o
que ocorre com a fotografia, meio que possibilita uma reprodução mecânica e que já
produziu muitas belas obras, mas que não trouxe tantos melhoramentos e avanços a
ponto de não conseguirmos diferenciar muito radicalmente o trabalho dos melhores
fotógrafos em relação ao dos fotógrafos amadores - um violento contraste em relação ao
que estamos acostumados quando se trata das outras artes.
Agora, nós precisamos analisar como este material sonoro pode constituir uma
unidade artística juntamente com a imagem no cinema sonoro.
Sons e ruídos estão dispostos no espaço, mas não da mesma maneira como
aquilo que é visível coloca-se no espaço, ou seja, ouve-se (em geral) o que soa no
espaço, mas o som não se situa numa única posição. Perdem-se, por isso, todas as
possibilidades que a adoção de um ponto de vista visual permite, como já vimos na
análise da imagem. (Béla Balázs foi o primeiro a destacar este ponto). O modo de
“mirar” o som não causa qualquer alteração no aspecto formal de um som
(diferentemente do que ocorre com a imagem, em que a mudança do ponto de vista
transforma a aparência do objeto sem ter de fazer qualquer modificação objetiva no
objeto em si que é filmado), mas é possível em todo caso sobrepor sons num espaço
comum, no interior do qual eles podem soar juntos: o longínquo soar de trovões com o
canto próximo. Mas ainda há mais do que isso. Uma indicação em relação à origem do
som também pode ser dada: perto e longe são tornados audíveis por meio de uma
relatividade dos volumes do som, e não pela disposição das fontes sonoras no espaço.
Também não há nada parecido com os efeitos de colocação dos objetos uns ao lado dos
outros ou uns atrás dos outros conforme analisamos em relação às imagens, recurso que
nos oferece, no caso da imagem, grandes potenciais criativos. Os ruídos que soam
conjuntamente se apresentam muito mais como fenômenos independentes, e não
estruturais, uma simples soma de sons existentes. Esta pureza quantitativa sempre
presente faz com que poucos sons sejam passíveis de ser ouvidos ao mesmo tempo.
Bela Balázs escreveu em seu texto que:
“Na tomada sonora não há (será que só por enquanto?) ponto de vista. Um som
pode tocar do alto ou de baixo, de perto ou de longe. Do mesmo modo, ele estará
presente no espaço. Ele não altera sua forma, sua “fisionomia”, em razão de estarmos
voltados para ele numa certa perspectiva. Não é possível filmar um mesmo som que
venha de um mesmo lugar com três câmeras mostrando três enquadramentos diversos,
diferentemente do que se pode fazer quando adotamos planos diferentes para filmar
qualquer objeto visualmente. O som não pode mudar de características por meio de uma
abordagem subjetiva do diretor – ele vai se manter o mesmo som. E somente assim seria
possível dar início a uma arte do som no cinema. Pois é a partir dessas possibilidades
subjetivas que tem início qualquer arte em geral. Os enquadramentos de câmera deixam
claro que o cinema mudo não é uma mera reprodução mecânica, mas sim uma arte
muito original. O modo como o ator fala no estúdio e o modo como o sonoplasta
apresenta os sons pretendem ser uma grande arte. Mas arte de estúdio. Por isso, o
cinema sonoro se limita a ser uma simples reprodução de efeitos de sonoplastia de
estúdio”.
As consequências do que Balázs afirma em seu muito esclarecedor argumento
não abrangeriam somente o cinema sonoro, mas também qualquer representação sonora,
o que já aponta para o fato de que o autor não deve estar totalmente correto. Seu
pensamento é muito pessimista. Se ele estivesse correto, seria plausível não emitir mais
nenhuma opinião a respeito do filme sonoro. Mas o próprio Balázs não se deixou
convencer por seu próprio argumento, motivo por que ele continuou refletindo sobre o
cinema sonoro. E isso é possível porque o fato de não poder enquadrar o som a partir de
um ponto de vista não destruiu todas as outras potencialidades artísticas do som, mas
apenas algumas daquelas que estão disponíveis no elenco dos recursos disponíveis para
o visual, como a escolha da perspectiva de filmagem e a sobreposição de objetos em
cena. O corte do som é possível, possibilitando distintos sons sejam utilizados. Deste
modo, já é possível construir um mundo sonoro à semelhança do que ocorre com o
visual. Assim como se pode construir uma relação entre os objetos a partir do uso da
perspectiva da câmera, aproximando coisas que no espaço físico real estão muito
distanciadas, também é possível criar relações sonoras sobrepondo ruídos simultâneos.
E à semelhança da manipulação do tamanho relativo dos objetos na tela que oferece
uma boa oportunidade de construção de um mundo subjetivo (sem ter de deturpar o
mundo em si), as escolhas acústicas também podem ser manipuladas por meio da
escolha dos locais de colocação dos microfones e do volume dos sons captados, que de
modo mais ou menos significativo podem indicar a que distância as fontes do som se
encontram do centro da ação.
Ocorre que até agora essas possibilidade de manipulação dos recursos acústicos
foram exploradas só primitivamente. No entanto, até mesmo por isso, essas
possibilidades são um tema rico para o aprendizado, já que seu uso é muito amplo e
contém poucas restrições. Para filmar determinados objetos visíveis, de modo que se
crie uma forte relação entre eles com ajuda da manipulação da perspectiva e sem
adulterar ou modificar sua configuração no espaço real, só é preciso agrupá-los num
enquadramento escolhido a partir do posicionamento da câmera. O motivo físico para
tal é que as ondas luminosas se propagam do objeto visível até o local do observador
pelo caminho reto mais curto21. E é por isso – o que se pode deduzir até mesmo
geometricamente – que sempre há um ponto de observação a partir do qual um objeto
encobre o outro próximo pela manipulação do ponto de vista. É claro por que isso
acontece, mas, em relação ao som, não é assim que a coisa funciona. Nossos ouvidos
podem ouvir sons de quaisquer direções e uma fonte sonora não faz sombra para a
outra. Daí decorre que tudo o que soa ao mesmo tempo no círculo do horizonte audível
também é percebido simultaneamente (enquanto do ponto de vista da visão só podemos
perceber aquilo que está na direção em que olhamos, uma vez que não temos olhos nas
costas, por exemplo). Ocorre que não é o fato de dois sons virem da mesma direção que
fará um encobrir o outro: eles chegam aos nossos ouvidos sobrepostos quando soam
conjuntamente. Tudo sobrepõe tudo na audição. O campo acústico sofre maior
dificuldade para criar esse tipo de relação (como encobrir, uma pela outra, duas ou mais
fontes sonoras) e, por este motivo, é mais pobre do ponto de vista artístico.
Um plano bem-sucedido obtém uma ideia para que nós o exploremos como se
ele recortasse a realidade. É deste modo que a formação da imagem torna-se
sensivelmente mais poderosa e consegue ser criativa. A simples sobreposição temporal
oferecida pelos sons cria uma condição incomparavelmente inferior, difícil de manipular
e que não possibilita um maior controle sobre o espectador, no sentido de impor a ele o
entendimento de uma determinada ideia. Por isso, até agora, muito pouco se conseguiu
fazer com a sobreposição de sons que se comparasse ao que foi possível fazer com a
filmagem de um objeto na frente de outro, de uma atravessando a outra ou ao lado da
outra, manipulando as três dimensões do espaço tridimensional que são passíveis de
controle pela imagem cinematográfica.
Decorre dessa mesma incapacidade de encobrir, que, em um outro aspecto, o
sonoro seja até mesmo mais rico em possibilidades do que é o óptico, mesmo quando
este recorre de algum modo a objetos translúcidos, transparentes. O uso da transparência
visual é um fator que também pode ser trabalhado com ajuda da escolha do ponto de
vista da câmera. Se colocarmos dois objetos um na frente do outro, um encobrirá o
outro na maior parte das vezes, mas pode ocorrer que o que se situa à frente seja
translúcido. O problema é que são poucos os proveitos que se pode tirar dessa
transparência: no caso de uma transparência total, como a de um vidro, não há qualquer
alteração que o vidro cause ao objeto posterior. No caso do som, é possível somar
incontáveis camadas de transparência sonora. Se são poucos os corpos que permitem a
luz atravessar, quase todo barulho pode passar através de muitas coisas e se modifica ao
atravessa-las. Assim, podemos ouvir mesmo através de grossas paredes, como no
exemplo de “Sob os Tetos de Paris”, em que sempre o mesmo refrão da canção é
interpretado, mas o modo como percebemos o som depende da sua propagação: ouve-se
de um modo na rua, de outro por dentro dos quartos, através das janelas ou a partir do
bar (o mesmo recurso foi utilizado em “Canção Popular”, de Lulu Pick). E não é só isso,
porque o meio pelo qual o som passa modifica a sonoridade também dependendo de
onde ele é refletido. Ele soa de modo distinto numa sala pequena ou em uma grande,
diferente em um lugar aberto ou fechado de onde um som pode ser sentido de modos
distintos: a partir das diferentes possibilidades da variação da emissão do som e da
alteração indireta sobre ele por intermédio do espaço acústico. Estes dois recursos são
muito importantes tanto para uma arte sonora pura de rádio como para o cinema sonoro.
21
Se não fosse assim, não poderíamos construir imagens a partir das informações luminosas por mais
sofisticados que fosse nosso aparelho visual, porque o ato de ver depende de que cada ponto da retina
receba somente a luz enviada por um determinado ponto visível
A simples variação do posicionamento entre a fonte sonora e o microfone já é
um útil meio de controle da forma sonora, como já pudemos analisar em relação
análoga ao que ocorre com o posicionamento óptico da câmera. Assim como lá é
possível destacar distintos aspectos subjetivos das coisas a partir do plano geral ou do
close, também podemos aqui registrar os sons de muito longe - de modo que as falas se
assemelhem simplesmente a um burburinho sem sentido - ou de perto - de modo que
nos relacionamos com a fala de um modo mais íntimo, ouvindo um simples sussurro,
um gemido ou até mesmo uma respiração. Pela primeira vez (nos moldes do gramofone)
é possível ouvir a voz dos cantores em sua altura natural, já que no teatro sempre foi
necessário, ao contrário, falar alto para ser ouvido, mesmo quando se tratava de tentar
representar um sussurro.
À semelhança da câmera, o som também aqui não precisa se prender à
“continuidade do tempo e do espaço”. No campo acústico, é possível juntar situações
que se encontram na realidade distantes uma da outra no espaço ou no tempo (ou que
sejam imaginadas como se estivessem distantes uma da outra) sem nenhuma
intermediação, simplesmente por meio da montagem. É importante, para o
desenvolvimento da rádio, que se abandone a prática tradicional de simplesmente
colocar os atores à frente do microfone. É possível levar além seu potencial gravando
sons com o mesmo cuidado com que se filmam as cenas em tiras de filmes para serem
utilizadas a partir de cortes precisos. É este trecho sonoro gravado e editado que deve
ser transmitido e ouvido.
Esse tipo de montagem de situações disparatadas no tempo e no espaço serviria
como meio de possibilitar a criação de formas do mesmo modo como as que pudemos
descrever a partir da montagem óptica. Podemos encontrar assim os mesmos princípios
de montagem, equivalentes aos da montagem cinematográfica: paralelismo e contraste,
por exemplo. Walter Ruttmann, que se ocupou deste tipo de experimentação, anotou na
“partitura” de seu trabalho, “Fim de Semana”, que deveriam ser usados sons como: “o
órgão da igreja por cima da imagem do instrumento”, “sons de sinos badalando com
imagens de sinos”. E isso é paralelismo dos sons e contraste das duas sequências, um
dos mais básicos princípios da montagem.
É importante perceber que a montagem acústica apresenta dificuldades que não
ocorrem na montagem visual. Não é possível interromper abruptamente um som do
mesmo modo como é possível fazer com imagens. Essa interrupção do som causa um
efeito tão chocante quanto o da interrupção da projeção cinematográfica quando o filme
se rompe. A montagem visual convencional não causa qualquer sensação de ruptura
abrupta, porque a sucessão de imagens distintas, umas depois das outras, não se
assemelha ao choque que seria não mostrar nada depois de cada imagem. A interrupção
de um som implica a colocação de um silêncio depois dele, o que causa uma quebra
abrupta. A dificuldade está em que não estamos acostumados a ouvir um silêncio
absoluto depois de um som (seria muito desagradável se nossos ouvidos tivessem de se
comportar assim), mas sim ouvimos sons se sucederem uns aos outros sobre um fundo
sonoro mais baixo e contínuo. Esse fundo não é algo estranho, pois compõe o ambiente
sonoro. Entretanto, se o som mais alto cessa e, logo a seguir, não se ouve absolutamente
nada, somente um vazio, como que uma paralisação do mundo, sentimos algo muito
estranho. Há duas possibilidades oferecidas pela montagem para superar isso. Ou se
colam fundos sonoros aos pedaços do filme que não têm som próprio, ou se regulam as
sonoridades de tal modo que formem uma espécie de altura constante do som, que
impeça a percepção da colagem dos trechos.
Mas é justamente do uso dessa “camuflagem” que nasce uma outra dificuldade.
A montagem não pode truncar o fluxo da ação, mas, por outro lado, as rupturas
intencionais devem ser necessariamente percebidas muito nitidamente. O ouvinte deve
saber que o lugar de atuação mudou tanto visualmente quanto no aspecto sonoro. Se a
sucessão na montagem for muito plana, isso não será notado e o ouvinte pensará que a
ação ainda se desenrola no mesmo local. Na prática do rádio, é muito comum que a
transição entre ações distintas seja demarcada por meio de um sinal sonoro ou por um
sinal musical. No filme sonoro, essa dificuldade não é tão séria, já que a montagem
sonora sempre contará em paralelo com o apoio do visual, mas essas transições exigem
cuidado. Muitas vezes, uma transição somente visual pode ser interpretada pelo público
como um novo enquadramento de um mesmo espaço. É que a simples mudança de
ponto de vista mantém a sonoridade igual e, se o espectador não perceber um corte
também na sonoridade, ele pode acreditar se tratar ainda do mesmo ambiente que sofreu
um deslocamento do ponto de vista a partir de uma nova posição de câmera, mesmo que
não seja essa a intenção do diretor. Este é o mesmo caso de uma mudança de cena
visualmente parecida com a anterior, que poderia causar dificuldade de entendimento no
cinema mudo. No filme “M – Vampiro de Dusseldorf,” de Fritz Lang, por exemplo, são
mostradas imagens de dois locais distintos: os criminosos conversam num, as
autoridades policiais no outro. Num momento, vemos e ouvimos o que uns falam, em
seguida vemos e ouvimos o que dizem os outros. O filme mudo teria muita dificuldade
em mostrar que se trata de dois ambientes distintos. Já do ponto de vista sonoro, Lang
apresenta as falas sem diferenciar os ambientes, já que nenhuma fronteira acústica foi
demarcada. Por isso é muito forte a impressão de que ambos os grupos se encontram em
pontos distintos de um mesmo espaço visual e sonoro.
Na página 127, apresentamos um resumo dos meios criativos da câmera. Vamos
utilizá-lo como esboço para um resumo análogo dos recursos sonoros. Assim
poderemos ter uma lista de princípios que, de qualquer maneira, também se aplicarão de
modo mais complexo no cinema sonoro.
Para uma arte sonora, não é possível utilizar os itens 1, 4, 5, e 9 da tabela
relacionada com os recursos visuais. O audível nunca serve para desenhar corpos (1), de
modo que, no que há para o bom ou para o ruim, a forma esquemática ou forma
característica de um corpo nunca poderá ser tratada a partir do som. Também no que se
refere à divisão entre luz e sombra (4), não há nenhum paralelo no campo sonoro, assim
como o som não se submete a qualquer redução como a característica do cinema preto e
branco de tornar tons de cinza a cor (o que é audível soa no alto-falante como soa na
realidade do mundo, inalterado). Uma limitação do quadro visível pela moldura (5)
também não se aplica ao som, porque o microfone, à semelhança dos ouvidos, não se
limita a ouvir somente o que se encontra em determinada direção, mas é capaz de ouvir
tudo o que chega ao espaço onde se encontra, não podendo, da mesma maneira, recortar
um pedaço do espaço acústico deixando o resto de fora. Por fim, não há nenhuma
semelhança entre o som e a projeção plana da imagem dos corpos na imagem de cinema
(9) porque o som se distribui por todo o espaço.
Por outro lado, é possível manipular a distância entre a fonte sonora e o
microfone, aproximando e fazendo o som mais alto, afastando, e deixando som baixo no
fundo, colocando o que é importante em destaque e encobrindo o que não é, à
semelhança do controle da perspectiva e da sobreposição no visual. É possível fazer um
som engolir o outro e, deste modo, encobrir uma fonte sonora: o rangido de vagões de
trem, o som de chibatadas, os gritos de um cocheiro encobrem, mesmo que ainda seja
possível ouvir ao fundo, o choro brando de uma criança. É semelhante a quando algo
que se encontrava encoberto pela perspectiva, de repente, deixa-se mostrar porque as
coisas se movimentaram. Sobre a apresentação de relações pela exposição simultânea,
já foi falado antes. Dissemos que as relações das fontes sonoras são muito frágeis e não
conseguem construir ideias porque sua sobreposição cria um efeito muito mais tênue. O
motivo é que os sons que tocam simultaneamente não constroem uma relação tão forte
quanto os objetos que são vistos lado a lado, estabelecendo uma relação possível de
variação.
O componente ornamental também pode ser musical, criando relações com
harmonias ou melodias. Assim como se pode colocar uma música após a outra, também
é possível montar efeitos sonoros belos e característicos com ou sem acompanhamento
musical. O filme sonoro já explorou – e as novelas de rádio também podem fazer o
mesmo se forem elaboradas de verdade, e não simples junções de quaisquer materiais
sonoros aleatórios – muitos efeitos sonoros elaborados e muitas possibilidades de
relações entre sons peculiares, que tanto os ruídos como as vozes da realidade podem
oferecer. Nesta composição, o princípio do disfarce da montagem desempenha um papel
mais importante no campo sonoro do que no visual. Do mesmo modo que a colocação
em sequência de um rosto de perfil e de um close frontal do mesmo rosto representam
uma rotação do rosto, a colocação de dois sons distintos, um após o outro, também
representa frequentemente um novo contexto. Foi o que fizeram Dziga Vertov em
“Entusiasmo” e Granowsky em “Canção da Vida” ao utilizar distintos sons de máquinas
combinadas com uma melodia, para transformá-la.
Como aspecto parecido com a manipulação do tamanho dos objetos na tela, no
que se refere ao som, só é possível pensar na alteração subjetiva do volume por meio da
regulagem dos microfones. O bater de um pequeno relógio pode encobrir todos os
demais elementos sonoros de uma cena se o sentido da narrativa assim o solicitar. O
volume pode ser regulado de modo que cada som fique na altura certa: ouvir o chirriar
dos grilos não muito baixo, ou os tiros de um canhão não tão altos. Também é possível
criar distintas relações entre os ruídos, como o é com os objetos visíveis. Assim como
na imagem foi possível criar uma equivalência da forma arredondada da barriga do
estudante enquadrada ao lado das montanhas (s. 94), o sussurro de um pássaro pode ser
sobreposto ao barulho do motor de um avião por meio de uma regulagem dos volumes
sonoros.
Para a montagem acústica, valem os mesmos princípios da montagem óptica. É
possível – conforme já tratamos na montagem das imagens – montar sons que
provenham de distintas situações de espaço e tempo uma pós a outra. É possível fazer
montagens simbólicas, por exemplo, o ruído de uma queda d´água, uma gaita tocando e
o som de sinos: conclusão... é dia de folga. Máquinas industriais reduzindo sua
velocidade até parar, canto de pássaros, começa-se a ouvir músicas: caiu a tarde. É
possível controlar, com mais facilidade do que na montagem óptica como serão
sobrepostos ou se sucederão os trechos montados, o ritmo das sequências (montagem de
trechos curtos ou longos). Porém não é possível, como na montagem óptica, caracterizar
um espaço sonoro mostrando cada um de seus sons isoladamente como a caracterização
de um mosaico porque, como já se falou, não é possível recortar partes do espaço
sonoro sem promover uma violência contra a natureza num universo auditivo.
Por meio da movimentação dos microfones, é possível dar a impressão de que as
fontes sonoras se movimentam. Uma personagem que fala parada pode dar a impressão
de se mover caso o microfone se movimente em relação a ela. Assim a movimentação
do microfone passando por distintos universos sonoros pode representar a experiência
subjetiva de uma personagem que caminha. Correr, parar, levantar e vacilar podem ser
representados por meio da movimentação do microfone, bem como é possível
representá-los por meio da movimentação de câmera.
A supressão do elemento visual (como na rádio) resulta no fortalecimento do
valor da sonoridade do mesmo modo como a supressão do som no cinema mudo
fortaleceu o da imagem. Como todo ouvinte de rádio bem sabe, ouve-se melhor o que
alguém diz quando não se pode vê-lo.
O uso da projeção de sons de trás para frente, com velocidade reduzida ou
acelerada, é percebida como algo muito estranho. Granowsky trabalhou com trilhas
sonoras previamente montadas de trás para frente, por exemplo, para interromper
imediatamente e naturalmente um ruído. Num gongo, o som é inserido abruptamente e
continua soando lentamente. Se a cena for projetada de trás para frente, esse som irá
crescendo até chegar a um nada de repente, da forma mais abrupta possível. É algo tão
radical assim que ocorre também se a trilha sonora for suprimida. A música e a voz
humanas podem ser utilizadas tocando ao contrário para construir um certo sentido, por
exemplo, de uma fala de dizeres sem sentido.
É impossível prever todos os efeitos possíveis de produzir a partir do
estiramento do som por meio da desaceleração da fita ou da compressão causada pela
sua aceleração. Como soaria um sorriso diminuído dez vezes em sua velocidade ou um
ditado popular a tempo de galope com a fita acelerada? E deve-se considerar ainda que
a própria qualidade do timbre se altera. A desaceleração faz o timbre mais grave; a
aceleração, mais agudo e mais alto.
O princípio da sobreposição dupla de imagens não tem sentido em relação ao
rádio, mas naturalmente pode ser utilizado no cinema sonoro. Em “Nos encontramos em
Hollywood”, Paul Morgan faz um dueto consigo mesmo. Já a distorção pode ser usada
em ambos. Há cenas em que ela representa o som distorcido dos antigos gramofones
então recém-inventados.
23
Basta lembrar como é incômodo forçar a vista para perceber o que tanto um como o outro olho
enxergam diferente, desconstruindo a unidade que a visão normal nos oferece, situação em que parecem
estar descoladas uma imagem da outra, e como é forte a inclinação a que seja feita alguma coisa para
ambas possam estar unidas novamente
maioria das pessoas, percebidos separados o tempo todo no cinema e permanecessem
assim, os cinemas sonoros estariam sempre vazios, dado o tamanho desconforto que tal
sensação causa aos nossos sentidos - o que não poderia ser tolerado por muito tempo
pelo público.
Mas o que acontece é justamente a fusão: a sonoridade dá espacialidade à
imagem e é capaz de transformá-la num espaço com profundidade como o da realidade.
Ligado a isso, surge um perigo muito grande do ponto de vista estético. O que a
descoberta de um mecanismo de projeção estereoscópico representaria num extremo, já
estaria sendo alcançado em alguma medida por meio do cinema sonoro.
A imagem de cinema, tornando-se mais fortemente tridimensional, roubaria da
moldura do quadro cinematográfico seu caráter de estabelecimento de limites precisos.
A moldura do campo cinematográfico seria percebida como muito mais casual, um
recorte modificável, uma espécie de buraco vazado retangular através do qual seria
possível espirar um pedaço amplo de espaço que estaria por trás. Aquilo que
respectivamente estava dentro do campo da imagem ganhava o caráter de uma
composição intencional justamente por estar projetado na superfície plana da imagem. A
moldura da imagem de cinema não era um obstáculo que impedia a liberdade de olhar,
pelo contrário, ela possibilitava a construção de um recorte por meio do qual era
possível o diretor controlar a atenção do público, compondo um sentido ao dispor de
uma maneira específica, um grupo determinado de figuras no interior do retângulo
formado sobre a superfície da tela. Com a transformação da imagem de cinema em
tridimensional, as coisas não se situariam mais na superfície da tela, e sim em seu
interior, em sua profundidade, deixando de manifestar uma relação óptica dos elementos
na superfície e transformando o papel da tela no mesmo de um simples caixote onde as
coisas estariam dispostas meio ao acaso como obstáculos para que víssemos o que está
por trás, e não como elementos de uma construção de formas criativas com inúmeras
possibilidades de composição. A disposição arranjada decorativa de objetos sobre a
superfície preta e branca também só funciona bem, e de maneira totalmente controlada e
consciente, se a moldura do quadro bidimensional for claramente limitada, coisa que
não acontece com a imagem tridimensional.
Ainda se perde, com isso, o controle absoluto que o posicionamento de câmera
proporcionava. Se o ator for filmado de costas numa imagem bidimensional, sua
posição estaria solidamente estabilizada; já em uma imagem tridimensional, ele poderia
ser visto de modos um pouco distintos dependendo do ponto de vista do espectador:
tem-se a impressão de que o ator poderia se virar no momento seguinte e que só se por
um mero acaso isso não acontece. Para deixar mais claro de que efeito psicológico se
está tratando aqui, basta olhar para uma fotografia estereoscópica que mostre um
homem em pé e se perceberá claramente a impressão de que ele está congelado
artificialmente, condenado pelo mecanismo técnico a uma espécie de imobilismo
mágico. Esse tipo de sensação de congelamento não aflora frente a uma fotografia
normal porque sua superfície plana é tão diferente da realidade que ninguém sente que a
ausência de movimentação seja uma deficiência, já na imagem estereoscópica, a ilusão
de espacialidade e corporeidade é tão forte e próxima da sensação de estar defronte ao
real que a ausência de movimento parece muito antinatural. É por isso que, num filme
com forte sugestão de tridimensionalidade, a localização de uma pessoa não parece ser
obrigatória, mas casual. Assim, o enquadramento perde sua característica (de ser esse e
não qualquer outro), o que retira das mãos do cineasta este até então muito forte recurso
de direção artística.
Do mesmo modo, perde-se a capacidade de manipulação do tamanho dos objetos
na tela (algo filmado de longe parece pequeno e quando filmado de perto, grande). Por
causa da maior sensação de profundidade, a deformação perspectiva perde sua força e
passa a ser percebida simplesmente como um resultado da distância espacial. A
regularidade de tamanho (fenômeno natural de regulagem perceptiva psicológica por
meio do qual nossos olhos compensam a aparência relativa do tamanho deformada pela
proximidade ou distância do objeto que aprendemos a reconhecer a partir da nossa
experiência objetiva) volta a desempenhar sua função com eficácia numa imagem
tridimensional, portanto a deformação simbólica intencional com objetos simbólicos a
qual era possível manipular pela perda da noção de regularidade de tamanho, na
imagem tridimensional, torna-se impossível de se manipular.
Por fim, a montagem. Conforme já aprendemos com a análise do filme mudo, a
montagem só é possível por causa da essência imaterial e irreal da imagem de cinema
em função da qual a colagem de distintas imagens em sequência não aparenta ser uma
sucessão antinatural de mudanças aos pulos no espaço real, e sim uma coleção de
imagens à semelhança das de um álbum fotográfico. Se a imagem, entretanto, for
marcadamente tridimensional, a montagem torna-se uma intervenção abrupta e violenta
no espaço real. A montagem de imagens tridimensionais construiria uma sequência tão
estranha como a que temos ao olhar para as gavetas verticais que se sucedem, levando
diferentes pessoas num estranho tipo de elevador antigo que não tem porta, que sobe de
um lado e desce de outro continuamente. Ainda pior: a tridimensionalidade destrói outro
efeito, aquele que não deixava a montagem parecer uma sucessão de pulos num espaço.
A jocosa leveza da sucessão de temas que centenas de imagens poderiam criar está, a
partir de então, perdida – em três dimensões, a imagem ganha corpo, bebe sangue,
assemelha-se aos objetos da natureza e se distancia da arte. O corte passa a ser
percebido como uma violenta interrupção, ou destruição das relações entre as coisas,
como um disparatado jogo cego de objetos saltitando desordenadamente no espaço.
Tudo isso vai acontecer se a imagem de cinema ganhar tridimensionalidade.
Mas ainda é muito cedo para dizer o quanto o som poderá fazer avançar essa
sensação de tridimensionalidade na tela plana. Às vezes, tal sensação coloca-se
fortemente; outras vezes, mal é notada. De qualquer modo, a impressão de
tridimensionalidade que a sonoridade dos atuais aparelhos de reprodução de som
consegue produzir é muito limitada – será isso só por agora? A evolução dos
equipamentos conseguirá produzir um fortalecimento do sentido de espacialidade na
tela? As técnicas de reprodução do gramofone ou do rádio cuja sonoridade hoje mantém
uma muito pequena diferença são suficientes para percebermos o tipo e o tamanho do
lugar onde os sons por eles transmitidos foram produzidos? Será que isso vai se
transformar? Talvez em dez anos a sensação de espacialidade do som seja tão forte que
já seja possível identificar de que lugar os sons vêm tão nitidamente como se
pudéssemos enxergá-los. No entanto, mesmo um tipo de sonoridade tão completa
poderia realmente dar tridimensionalidade à imagem cinematográfica? Ou isso não está
relacionado somente aos equipamentos? Não seriam nossos sentidos muito grosseiros
para permitir tal grau de precisão na identificação espacial do som? Deste modo seria,
então, impossível a qualquer tipo de equipamento, por mais preciso e sofisticado que
fosse acusticamente, criar uma impressão óptica tridimensional. Ou será que a fraqueza
de sensação tridimensional do filme sonoro vem do fato de que o estúdio, na maioria
das vezes, produz um espaço sonoro alterado já que, por exemplo, mesmo uma sala que
nós vemos na imagem produzida num estúdio, na maior parte das vezes, não é uma sala
completa, não tem teto, não tem paredes de tijolos, mas sim é produzida com um par de
materiais de cenografia como tecidos e tábuas coladas, ou seja, não se trata de uma
construção de verdade, mas de um cômodo solto no espaço livre. Os instrumentos de
captação do som “fotografam” um espaço muito diferente do que a câmera registra
visualmente. E, se esse for o motivo pelo qual o cinema obtém uma espacialidade muito
ruim, como será possível contornar esta má formação? Mais importante, como já
pudemos analisar anteriormente, se o fortalecimento da sensação de espacialidade seria
um grande obstáculo para o artista no cinema, é preciso tentar contornar a situação? Por
outro lado, o aprimoramento dos aparelhos de captação sonora não serviria para
melhorar e tornar menos imperfeita a discrepância entre o espaço sonoro e o espaço
visual que tão comumente encontramos nos filmes feitos atualmente? E que papel
desempenha a variável de que o som não parte precisamente do local de onde deveria
vir se estivéssemos observando um espaço real, mas de ele vir sempre do mesmo ponto
fixo onde se localiza o alto-falante? Percebe-se que ainda há muito que aprender. Os
técnicos têm agora a palavra.
Similaridade e contraste
No mundo real, uma situação sonora corresponde a uma situação visual em que
a sonoridade se produz. Há evidentemente exceções, pois, quando vemos um gramofone
movimentando com oscilações o braço do instrumento levando a agulha para cima e
para baixo, ou mesmo as vibrações da membrana do alto-falante, não há nenhuma
semelhança entre esta imagem e a imagem dos instrumentos que produziram aquela
interpretação musical que ouvimos. Esta associação forma uma espécie de contraste
entre o som e a monotonia da rotação do disco. Já o movimento de um pêndulo de
relógio equivale exatamente ao tic-tac sonoro que emite em seu ritmo regrado de
oscilações. Por isso, uma dessas informações é desnecessária. É suficiente, para
perceber a situação, ver apenas o relógio ou somente ouvir seu ruído. Destes exemplos
pode-se extrair um princípio do cinema sonoro, segundo o qual a informação visual e a
sonora não deveriam cumprir a mesma função, mas deveriam dividir o trabalho: o som
deve trazer algo distinto do que a imagem mostra para juntos construírem uma única
sensação. Este é o princípio da contrapontística no cinema sonoro. Ele é o avesso da
similaridade, que ocorre quando, por exemplo, vemos e ouvimos o relógio ao mesmo
tempo.
Com a enunciação desse princípio não se pretende dizer que toda similaridade
deve ser banida rigorosamente do cinema. Isso seria um exagero e também uma posição
segregacionista se adotada a todo instante. E também não se deve entender
equivocadamente deste princípio que sempre os casos de similaridade se resumem
àqueles em que é possível ver a fonte sonora junto com o som. A exposição desta fonte
sonora pode entrar em contraste com o próprio som, como pudemos ver no próprio caso
do gramofone. Este princípio, portanto, não deve ser tomado muito ao pé da letra, mas
sim deve ser analisado em sua aplicação a situações específicas: o som é dispensável e
substituível quando ele não acrescenta nada ao que já estaria sendo notado na imagem.
O mesmo também vale evidentemente para a imagem em relação ao som.
É muito instrutivo analisar casos em que o som e a imagem de uma situação real
não são similares, mas justamente lançam-se um contra o outro e se perturbam. Hans
Erdmann, sobre uma cena de um informativo semanal jornalístico sobre a “Entrada das
bandas do esquadrão oceânico em Colônia”, escreveu:
“Uma banda militar em marcha vai crescendo na tela até seus participantes
ocuparem a imagem toda, enquanto a sonoridade cresce muito mais lentamente. Pouco
depois, o volume chega ao ponto mais elevado, quando, de repente, o grupamento passa
e sua imagem simplesmente desaparece, com o que já se vê uma segunda banda ao
longe que se aproxima, mas da qual ainda não se pode ouvir som nenhum”. A imagem
se torna, a partir de então, incompreensível porque o primeiro grupo já saiu do campo
visual apesar de não ter se distanciado do aparelho que continua a captar o som
ensurdecedor. A disposição espacial da cena é muito clara: uma banda em marcha que
vai crescendo visualmente na tela até que sai totalmente da imagem, desaparece,
revelando uma segunda banda ao longe por trás. Esta sequência de imagens não é
fundamentada em nenhum objetivo: o posicionamento da câmera e seu enquadramento
são muito naturais, mas mesmo assim pode acontecer de que o microfone, que não faz
nada além de registrar a sonoridade exatamente do modo como a situação a oferece,
possa destruir a construção subjetiva da cena e também eliminar totalmente seu sentido.
Como o crescendo do som ultrapassa o crescendo da imagem, criando um desencontro,
aquele destrói a limitação natural da cena que a moldura do campo visual estabelecia
como ponto alto da situação e também como ponto final da passagem da banda. Faz isso
completamente por acaso, e passa a ser, com isso, um imenso obstáculo em si mesmo
para a exposição visual da situação, até mesmo para que se entenda a duração real da
passagem. É do encobrimento do que se vê que o registro visual recorta, constituindo
um mecanismo pelo qual supera a mera função de registro e réplica da imagem do
mundo. A câmera ganha esse poder por determinar o enquadramento a partir do qual se
podem construir situações inusitadas. Mais do que abalar este recurso, o próprio
entendimento da banda que está próxima é perturbado pelo fato de que passamos a
enxergar agora uma segunda banda que se encontra longe, imagem que é
permanentemente perturbada pelo barulho muito alto. Percebe-se assim como podem
surgir armadilhas perigosas para a representação cinematográfica. Imagem e som
oferecem juntos grande chance de se perturbarem em vez de colaborarem para construir
uma única impressão conjunta.”
Apesar do que acabamos de falar, a tese de que a similaridade da informação do
som e da imagem é uma vantagem continua sendo o argumento teórico preferido dos
defensores do cinema sonoro, a saber, a ideia de que a simples inclusão do som fortalece
a imagem. Isso se dá ou porque não se conseguiu encontrar uma justificativa melhor, ou
porque assim é possível ver com bons olhos mesmo os filmes muito ruins, justificando-
os com o simples argumento de que a inclusão do som já é em si uma vantagem. Assim,
pode-se fugir das cobranças da construção de uma contrapontística entre som e imagem,
o que é uma arte muito mais difícil e muito mais sofisticada. Independente disso, é
possível encontrar alguns bons momentos de trabalhos de contraponto entre sonoro e
visual até mesmo em filmes de menos valor.
Logo que se tenta desenvolver o contraponto, ergue-se uma grande dificuldade.
É muito fácil separar o som do relógio de sua imagem, bastando para tanto desviar a
câmera, de modo que ela não registre visualmente a imagem do relógio. Já o contrário é
muito difícil. Como mostrar o relógio e suprimir o seu som? Este dilema nasce
naturalmente das características de propagação físicas: enquanto as ondas de luz
avançam em linha reta, de forma que é possível controlar o que a câmera filma num
ambiente qualquer direcionando sua lente sem ter de deixar o local, as ondas sonoras se
dissipam por todo o espaço em geral. Só há dois meios de suprimir o som: ou deixando
o local onde ele soa, ou encobrindo o som com um outro mais alto. A terceira
possibilidade - simplesmente cortar o som do filme - resulta na impressão de falha
técnica ou falta de habilidade.
Era muito comum proceder assim nos primeiros filmes sonoros, pois somente
eram apresentados os sons tidos como importantes. As personagens andavam numa sala,
mas não se ouviam seus passos nem a porta bater ao se fechar, então, de repente, ouvia-
se um tiro de revólver. René Clair recomendava esse tipo de prática com uma
justificativa sofisticada:
“O que fez o cinema sonoro ser insuportável em seus primórdios foi a ausência
da seletividade. Porque se é possível escolher as cores, as notas musicais, as palavras e/
ou as imagens, não é possível escolher os sons. Não há qualquer beleza em ouvir o bater
das portas, nem a respiração das personagens. Nem beleza ao ouvir todas as palavras
quando as bocas se movimentam. Faltava seletividade.”
Krakauer diz em uma crítica que:
“Em uma cena com uma trilha sonora musical ao fundo, via-se o herói bater
numa porta. Mas não só se vê a situação, como também ouve-se a batida. Uma
brincadeirinha que representa uma grande falha estética: porque, se fosse para ouvir
algo, todos os outros sons que compõem a cena também deveriam ser ouvidos. O toque
na porta seria, entretanto, justificado se ele agregasse algum sentido à cena. De outro
modo, ele é perda de tempo. O mesmo vale para as palavras que se espalham
isoladamente”.
Esse tipo de seletividade, em todo o caso, é totalmente impossível, traga o som
algum significado ou não. Ele representaria uma violência imensa contra o modo como
percebemos a realidade. É muito diferente do que o filme faz a partir das imagens,
porque este cria formas sem destruir o mundo real. O filme interfere por meio da
escolha dos enquadramentos especiais, ou recortes da imagem, ou seja, somente
recorrendo a artifícios passíveis de construções a partir de certas escolhas os quais
estabelecem relações entre o espectado4 e o mundo, mas nunca violentando a realidade
em si. O tipo de seletividade em torno do qual os autores falaram não é da mesma
família nem do corte da imagem, nem da limitação intencional dos objetos filmados no
tmepo, no espaço ou na escolha de um determinado pedaço do set de gravação como um
todo. Esta seletividade aproxima-se muito mais de algo como recortar em pedaços os
fotogramas e colar de forma diferente cada uma de suas partes. Um tipo de montagem
que nem se chamaria montagem, visto que destrói o sentido de realidade da situação
filmada. Este tipo de colagem não é a representação de um pedaço de uma realidade
intacta, mas sim a destruição da própria realidade como objeto figurativo de
representação.
No caso de se usar esporadicamente sons num filme, os trechos não sonorizados
darão a impressão de que o mundo sonoro foi suprimido, e não de que ele simplesmente
não está ali (a impressão que prevalece no cinema mudo), o que bate de frente contra a
sensação de realidade.
Já que não é possível montar os sons assim, é impossível evitar a presença de
ruídos desnecessários no filme. Mas é fundamental tentar retirar ao máximo do filme
todas as redundâncias entre som e imagem, para deixar assim presentes, na maior
medida possível, somente sons que agreguem sentido informativo ao filme, do mesmo
modo como fazem as imagens. Elas devem ser agrupadas e filmadas de modo a não
serem descartáveis ou desnecessárias. Só quando tudo o que é mostrado for relevante,
poderemos falar de um bom filme. Se o que é relevante se dilui entre o que é
descartável, o espectador não saberá mais quando deve tentar extrair sentido de algo e
quando não precisa.
Esse trabalho já é suficientemente difícil de se realizar, mesmo quando se
consideram isoladamente as imagens. O cinema não é como o palco, onde as coisas
podem ser dispostas sem que o vazio existente entre elas pareça ser antinatural,
constrastando com o caráter de exposição da realidade que faz parte do filme. Somente
diretores de cinema geniais conseguiram produzir obras em que tudo o que é mostrado
visualmente no filme é importante. Com a inserção do som, a situação é muito mais
complicada. Um dos motivos é porque determinados enquadramentos deverão ser
evitados para não serem redundantes em relação a coisas que já se podem perceber em
razão do som que emitem, ou seja, haverá coisas e situações que não devem ser
mostradas na imagem porque já pudemos percebê-las pelo som, e sua exposição visual
seria totalmente dispensável. E isso implica em mais restrições para a imagem. Trata-se
de um grande paradoxo. O principal trabalho dos produtores de cinema sonoro será
ocultar da imagem as coisas que soam. O som só pode se tornar um meio artístico
eficiente se ele for conduzido conscientemente e não soar descontrolado numa
exagerada abundância caóptica. Para evitar esta exuberância dos sons, sem ter de
agredir a própria realidade, as cenas do filme sonoro já devem estar muito bem
estudadas no roteiro, de modo que sejam registrados os sons que serão utilizados. Esta
será uma arte refinada que se torna muito importante para os produtores
cinematográficos.
Mas essa situação não deve ser vista como uma lástima, ao contrário, deve ser
motivo de comemoração. Já vimos que é justamente a partir das limitações que se
colocam para a técnica que esta deixa de ser mera reprodução mecânica da realidade,
sendo capaz de formalizar o que se pretende transmitir, a fonte de onde se originam os
valores artísticos cinematográficos. No cinema mudo, a lacuna de ausência do som era
preenchida por registros visuais que ofereciam soluções particularmente criativas. Essa
possibilidade perde-se com o cinema sonoro. Mas, em seu lugar, surge uma outra
lacuna: já não se trata de não poder contar com o som, mas sim de impedir que ele seja
desnecessário.
Foram principalmente os russos que se posicionaram fortemente contrários ao
princípio de similaridade do cinema sonoro, e suas reflexões sobre os temas
cinematográficos mostram-se, mais uma vez, muito esclarecedoras.
“Na maioria das produções cinematográficas, o som serve somente como
acompanhamento da imagem. Se continuar assim, o cinema sonoro nunca será uma
expressão autônoma. Sua raiz ficará devendo ou ao teatro, ou ao próprio cinema mudo,
complementado por música, voz e sons.”
Isso foi dito por Andriewsky, o produtor de Meschrapom. E, de modo parecido,
expressou-se Pudovkin, o diretor de “A Mãe” e de “O Fim de São Petersburgo”:
“O sucesso do filme sonoro é certo, mas eu digo que os métodos pelos quais ele
tem sido produzido são ruins e não estão à altura de suas potencialidades. Vejam o
exemplo dos filmes americanos, que são tecnicamente bem feitos e contam com boas
tramas, mas que são conduzidos basicamente pela atuação dramática. A fala foi até
agora aproveitada porque se trata, afinal, de filme sonoro, mas ela parece – na minha
visão – ser utilizada como um simples ornamento, um enfeite tímido que muito bem
poderia ser descartado”.
“Não é de forma alguma necessário expor por meio de palavras uma situação
que é já muito evidente, por exemplo, quando um homem beija uma mulher, e nem é
com uma frase como “eu te amo” que ela se esclarece ou ganha mais vida. Só posso
mesmo pensar em um verdadeiro sentido e em possibilidades de utilização do som
muito distintas desta para um cinema sonoro de qualidade”.
Nessas opiniões, fica patente que nem toda imagem de uma personagem falando
precisa ser uma redundância indesejada da informação. Muito frequentemente a
expressão facial possibilita um enriquecimento deste sentido que a fala e a interpretação
da voz apresentam. E, desta maneira, nem sempre o conteúdo da palavra se transforma
numa simples redundância do sentido que já se poderia ver na imagem, sem necessidade
dela. Mesmo assim, é muito grande o perigo de que som e imagem formem uma simples
redundância. A partir da arte que o ator apresenta na imagem do cinema sonoro, é
possível reconhecer muito claramente o trabalho de um grande diretor.
A contrapontística deve ser desenvolvida no cinema sonoro, mas isso não
significa que o tema da imagem e o tema do som devam sempre criar um contraste.
Muitas vezes, eles podem fazê-lo e alcançar sucesso. Podemos enumerar uma série de
exemplos desse tipo. Durante a missa na prisão, em “Homens atrás das grades”, de
Paulo Fejos, vemos os prisioneiros receberem armas por trás dos bancos de oração com
o que preparam uma rebelião, enquanto ouvimos o religioso dizer do púlpito: “Não
matarás”. Podemos, além disso, ver um Buda impassível, sorrindo, acenando monótono
a cabeça enquanto ouvem-se os gritos: “Socorro, socorro” (em “A casa amarela do
Kung Fu”, de Karl Gruene). Ou também: ouve-se uma voz discursando à mesa
extremamente acalorada enquanto se veem os rostos estúpidos dos ouvintes mastigando
(Granovsky, “A canção da vida”). Há mesmo a cena do julgamento de um assassinato
em “Inquérito”, de Siokmak: o acusado diz “Eu sou inocente, não fui eu”, e o close
mostra o rosto impassível do promotor voltado para a mesa com as provas do crime. E
finalmente: vemos uma imagem, totalmente morta e sem movimento, dos porões de
uma penitenciária e ouvimos como os presos fora de nossa visão se entendem aos gritos
mesmo através das celas (“Homens atrás das grades”). Neste último exemplo, a
monotonia da exposição visual contrasta com a agitação sonora. Naturalmente há
também o contrário: um som contínuo das conversas sem forma dos presos deitados,
enquanto a câmera percorre os corredores mostrando sempre outros presos, os diversos
tipos diferentes que estão ali. Em todos estes casos, há um forte contraste entre visual e
sonoro, embora ambos sem dúvida retratem a mesma situação e não tenham de recorrer
a que sejam mostradas situações distintas artificialmente combinadas24.
Muito frequentemente, entretanto, som e imagem representam uma mesma
sintonia e, nestes casos, torna-se especialmente claro o que se entende por
contrapontística. É possível combinar um raiar do sol com o cantar dos passarinhos,
uma criança em pé na janela com roncos, o barulho do relógio com os ruídos da rua.
Estes são exemplos simples do que o cineasta pode explorar para obter efeitos muito
ricos a partir da imagem e dos sons, cujos efeitos distintos convergem na criação
unificada de um só efeito. Estas relações não devem ser corriqueiras nem podem ser
derivadas de simbologias já desgastadas pelo uso, como o canto do rouxinol na cena de
amor no parque (basta lembrar as cenas de paródia conscientes e inconscientes na
“Marcha nupcial”, de Stroheim) ou o cantar do galo ao amanhecer. Ao contrário, o
talento dos grandes cineastas revela-se em criar novas composições instigantes sem as
quais as combinações valem só como artifício e logro. Em “Canção da vida” de
Granovsky, um jovem fala ao telefone com um médico porque sua mulher sofre no
parto. Ouvimos o jovem perguntar assustado e o doutor responder calmo e frio,
enquanto vemos, como contrapartida visual do diálogo, as mãos ora de um, ora do
outro: o jovem aperta com força e dedos trêmulos um cigarro, já a mão gorda do médico
amassa lentamente a ponta de outro cigarro no cinzeiro. Em “O vampiro de
Dusseldorf”, de Fritz Lang, ouve-se a mãe chamar pelo nome da filha que não voltou
para casa. Não se vê a mãe, e sim as escadarias do prédio totalmente vazias em
perspectiva. O motivo da imagem e do som deriva da situação, como se perceberá a
seguir, e, por isso, é surpreendente. Essas relações entre imagem e som podem ser de
um tipo muito irracional, como em “Sob os tetos de Paris”, de René Clair, em que uma
24
Também há a possibilidade de contraste sonoro: ouvimos as manifestações de uma passeata política na
rua de um quarto, onde o aparelho de som toca uma ópera. E também o contraste no visual: um casal
elegante sai de uma casa de dança e encontra na esquina um ex-combatente de guerra aleijado que tenta
vender flores.
estocada com uma faca é acompanhada pelos rangidos e pelo apito de um trem. Neste
exemplo, as coisas não figuram em suas funções naturais, mas estão ali unicamente
como uma pura afinidade na construção de sentido contido na combinação entre som e
imagem, que é, muitas vezes, especialmente bem-sucedida. Assim como o
acompanhamento musical de um filme do Mickey Mouse é uma analogia construída a
partir do desenvolvimento da trama visual, é possível, como o exemplo acima
demonstra, também se desenvolver o som a partir da situação dramática em si mesma.
À semelhança do cinema mudo, é possível surgir um motivo surpresa a partir de
uma situação geral que parecia ser totalmente conhecida, mas que na verdade sofre, em
certo ponto, uma transformação (como Buster Keaton que esperava no escritório pela
garota por quem se apaixonou colocado fora do enquadramento da câmera). Só que isso
também pode ocorrer com uso do som: ele passa a ser o elemento que transforma uma
dada situação visual ou que a esclarece. Uma pessoa senta-se numa poltrona e mergulha
com os olhos baixos na leitura de um jornal que passa a cobrir a tela, mas, logo a seguir,
ouve-se seu ronco. Ou o contrário: ouvem-se sons vindos de alguém encoberto pela
escuridão, a personagem saca sua arma, anda devagar, acende a luz e, então, vê que se
tratava de um simples gato que produziu o som.
O que serve como valor contrapontístico no interior de uma imagem vale
igualmente para a montagem em sequência de imagens. São os mesmos princípios que
já havíamos esclarecido na análise do filme mudo. Por exemplo, a montagem com
similaridade, que vimos lá, em que se sucedem objetos parecidos na forma e
contrastantes no conteúdo, no caso do cinema sonoro, tanto pode ser uma montagem
visual como uma sonora, além de que se pode variar entre a imagem com contraste
sonoro ou o som com contraste visual. Similaridade sonora: numa cena de “Protegido
dos Deuses”: a música da orquestra da casa de ópera é levemente misturada com o som
distante da plataforma de trem. Este efeito é parecido com o que vimos a pouco da peça
sonora de Ruttmann, só que aqui o contraste do conteúdo que a semelhança formal
contrapontística elucida ainda é acentuado pela imagem que mostra, num primeiro
momento, a ópera e em seguida a plataforma. Há também o contrário, semelhança da
imagem: o mesmo trompete que figurava inicialmente, em meio a um conjunto
orquestral, aparece logo a seguir tocando numa banda de jazz. Ou a montagem de duas
tomadas do mesmo político em fases distintas de sua biografia: 1914, no espírito dos
tempos de guerra; em 1919, um internacionalista. Nestes exemplos, o contraste sonoro
se contrapõe à similaridade visual.
Assincronismo
25
Um curioso exemplo de como um uso errado do som pode ser insuportável está em “O Vampiro de
Dussedorf”: quando um homem está em um ruidoso café, está desatento ao murmúrio – e ouvimos a trilha
sonora baixa; quando ele coloca a mão em concha sobre a orelha – a música começa a tocar muito alta.
inferior. Talvez seja bom lembrar os filmes mudos mais antigos, em que, muitas vezes,
um sonho ou um pensamento eram mostrados em um destaque, num canto superior da
imagem, como num pequeno medalhão no interior do qual o pensamento ou sonho
aparecia e se desenvolvia. O problema é que este recurso é muito primitivo porque o
artista ainda não havia entendido naquela época uma outra forma de mostrar duas coisas
ao mesmo tempo (o estado interior de sonho e o exterior da situação da personagem)
por meio de um enquadramento excepcional que fosse capaz de transmitir ambos por
meio de uma única imagem. A ideia de som do trem também parece ser muito primitiva
– e do mesmo modo. O trabalho de criação formal parece que não está ali completo. A
situação em que a mulher se encontra e a situação que ocupa seu pensamento (o trem
vai partir em breve) são lançadas como mera matéria fílmica desunidas uma do outra.
Uma é igualmente independente da outra, no cinema mudo antigo quando as imagens
diferentes eram coladas num mesmo fotograma, no atual quando imagem e som são
dispostos sem uma forte relação formal, são juntados numa caótica pseudo-unidade.
A combinação da voz do chefe de polícia com a imagem do trabalho da
comissão que apura a morte é solta, primitiva e pouco atrativa ou emocionante. É só
compará-la com o exemplo da cena do tráfico de armas por baixo dos bancos durante a
missa para perceber que ali os motivos visual e sonoro contrastam violentamente, mas
se complementam ao mesmo tempo, fazendo parte de uma única situação. É só por meio
do conteúdo unificado em um sentido realista das coisas díspares que se atinge um
ponto tão alto, estimulante, como já começa a se alcançar em alguns bons filmes
sonoros.
Aquelas combinações dadas como exemplos de assincronismo tanto em
comédias como nos filmes simbólicos possuem bom valor estético. É uma excelente
ideia ver o ritmo das máquinas associado ao ritmo da caminhada, a colagem da imagem
do guindaste com a voz humana, já que, nestes casos, é construída uma unidade criativa
entre coisas que na realidade são totalmente diferentes. Já sabemos, por meio da análise
do cinema mudo, que o contraste de coisas que podem ter uma relação de similaridade
formal pode levar a resultados muito bons. A simples exposição conjunta de coisas que
pertencem somente a um pensamento abstrato, mas que não fazem o menor sentido
fisicamente dispostas lado a lado (como no exemplo de Pudovkin), é um produto muito
cerebral, cujo intelectualismo é inimigo da verdadeira arte. É de valor muito
questionável, por exemplo, a “ilustração” do texto da música em “Canção da Vida”:
junto com a frase “O oceano é grande” vê-se uma fotografia do mar, e assim, palavra
por palavra, o texto é interpretado pelas imagens que não têm nada a ver umas com as
outras e não fazem qualquer sentido nem mesmo em relação ao texto, visto que se
referem somente a um contexto físico real enquanto a palavra aponta para sentidos
abstratos. Esse exemplo mostra como a tentativa de transpor para imagem uma
linguagem abstrata oferece um resultado fraco e descarnado.
A seguir iremos estudar o papel da música de fundo, que não deixa de pertencer
também à prática do assincronismo no cinema sonoro.
Filme e música
Essa espécie de salada de frutas musical deixou de ser possível realizar, mesmo
em cinemas pequenos, porque a música de acompanhamento já não era mais produzida
na sala de cinema e sim pelo próprio cineasta, muitas vezes, uma composição exclusiva
produzida especialmente para determinado filme. Havia músicos que sabiam compor
uma música despretensiosa com ritmo e clima adequados e que, apesar disso, não
deixavam de construir valores puramente musicais. Este esforço não é um desperdício
no cinema sonoro tanto quanto era no cinema mudo, porque passou a existir uma
possibilidade de colaboração entre o diretor e o músico durante o processo de filmagem.
Ela não era possível de se abrir no mesmo grau quando o filme já estava pronto e era
musicado posteriormente, mas se mostra como um novo caminho de criação musical
quando a música é concebida para revestir uma cena que ainda será produzida.
Sobretudo, ela serve como um recurso de apoio. Quando o alto-falante fica mudo,
quando o diretor não coloca ruídos e um anjo atravessa o quarto, o músico pode entrar
em cena. Pode-se dizer que esta produção musical na prática resulta em menos
incômodo e limitações do que se pode prever em teoria. Não há uma sensação de
interrupção abrupta quando os ruídos e as vozes somem para dar lugar a uma música de
fundo. Embora, com isso, não se esteja dizendo nada a respeito do valor artístico da
produção.
Em alguns filmes sonoros a música foi muito bem elaborada. E há um futuro
muito promissor provavelmente para a combinação de sons e música, a ligação acústica
entre fontes que não se pode dizer com certeza se pertencem a sons captados da
natureza ou se são produzidos com instrumentos. Na trilha sonora de “Canção da vida”,
de Granowsky, ouvimos uma melodia forte e lenta cuja sonoridade liga-se em paralelo
aos cortes das imagens. Assim, a montagem ganha uma força que era, sim, o objetivo do
diretor, mas que muito dificilmente seria alcançada somente através da exploração do
recurso visual. No filme de Wilhelm-Thiele, “O baile”, o riso sarcástico da criadagem
encaixa-se no refrão da canção do musical. São tentativas de se conseguir uma relação
mais estreita entre a música e o cinema sonoro, para que a música não seja sempre um
simples apêndice, de modo que tente se construir com ela parte integrante da forma
artística do meio.
Para concluir, vamos responder brevemente uma última pergunta que não tem
interesse exclusivamente teórico: o cinema sonoro é um tipo particular de arte com
regras próprias?
Será sempre uma afirmação corrente que o cinema sonoro deveria ser produzido
de um modo muito diferente do cinema mudo porque ele é uma nova arte sui generis.
Isso é verdadeiro, e ao mesmo tempo falso. Verdadeiro na medida em que um filme
sonoro deve ser feito de um modo distinto do cinema mudo, e falso no sentido de que o
cinema mudo e o sonoro seriam duas artes distintas com regras diferentes. Há só uma
arte do cinema e suas regras se aplicam tanto aos filmes sonoros quanto aos filmes
mudos. Elas valem também para uma arte puramente sonora, já que esta arte do som é
uma parte do cinema sonoro, o que, numa primeira observação, pode parecer novidade e
também algo esquisito.
Talvez o único a reconhecer até agora isso tenha sido o roteirista francês J.
Laudau em uma entrevista radiofônica em que disse:
“O som e a palavra se ampliaram, sem querer, para além do teatro”.
“Um pouco tardiamente se iniciou uma pesquisa sobre as regras particulares dos
filmes sonoros e falados. E muito pouco sucesso foi obtido, enquanto isso, com as
terríveis filmagens de peças de teatro. Aos poucos fica mais estabelecida a convicção de
que não existem regras sonoras independentes válidas exclusivamente para o cinema
sonoro ou falado”.
“O único conjunto de regras exclusivas do talento artístico cinematográfico é
justamente aquele que foi estabelecido depois de trinta anos de experiência com o
cinema mudo.”
“As regras do cinema mudo são a essência da arte cinematográfica em si.”
O que é esse traço característico da arte do cinema que se aplica ao filme mudo,
ao filme sonoro e até mesmo às artes puramente sonoras? A utilização artística dos
aparelhos de gravação acústica e óptica. Esses equipamentos também podem ser
utilizados sem o aproveitamento das possibilidades que lhes são específicas, por
exemplo, na fixação ou na transmissão de uma musica ou de uma recitação por meio de
discos e rádio, a reprodução de uma pintura por fotografia, o filme totalmente falado
(filmagem de imagens e som da peça teatral) – tudo isso se serve das novidades
tecnológicas sem, todavia, explorar suas condições materiais específicas de produção
artística. O filme faz isso em primeiro lugar, a saber, nos domínios ótico, sonoro, e
audiovisual.
A diferença entre isso e o verdadeiro cinema é que este explora a possibilidade
de esboçar todo um mundo de riquezas visuais e acústicas muito semelhantes à
realidade. Mas não para por aí. Este mundo serve para ele como material para produção
de formas específicas. A diferença entre o cinema e o pintor é que aquele não precisa
lutar para construir uma realidade, utilizando-se de esforços e refinamentos técnicos,
porque ele já recebe do equipamento este mundo pronto. Ao contrário da pintura, a
natureza é para ele o material que está mais próximo (se é que não podemos dizer ser a
natureza o único material dele). Já que não mostra os objetos em si, trazendo-os ou
construindo-os como faz o teatro, mas trabalhando com imagens deles, que são simples
cópias da realidade, o cinema pode ligar situações espaço-temporais diversas de modo
totalmente confortável e pode tecer relações entre elas (montagem). Já que o cinema não
está limitado a ter de mostrar o que é visto a uma distância sempre fixa em relação ao
observador (e o que é ouvido também), ele pode se aproveitar conscientemente desta
mobilidade para apresentar o que é visto ou ouvido a distâncias arbitrárias, escolhidas
para que as pessoas percebam as coisas tão próximas na tela quanto ele queira fazer. Por
meio destas escolhas de distâncias e agrupamentos dos objetos que são filmados pelo
ângulo apropriado, o cinema exerce conscientemente sua construção formal.
Recursos como montagem ou enquadramento são comuns tanto ao cinema mudo
como ao cinema sonoro ou ainda às gravações sonoras. As limitações específicas que
cada um desses gêneros impõe são de um tipo mais superficial. Eles não deixam de
fazer parte, por causa dessas especificidades, de uma única arte do cinema que trabalha
com regras unificadas e particulares.
A diferença mais importante entre o cinema mudo e o cinema sonoro é mais
facilmente compreendida quando os comparamos a um trecho musical em que distintos
instrumentos são utilizados. Uma música composta para solo de piano pode ser tocada
também por piano e violino. O trecho vai se manter em essência o mesmo, embora a
função do piano tenha se alterado profundamente. Pode-se pensar numa situação em que
o violino simplesmente acompanhe as notas da melodia do piano, que serão duplicadas
pelo outro instrumento, de modo que o piano já apresenta independente do violino,
sozinho, a totalidade do trabalho, e o violino serve somente como um eco, ou um
apêndice (é o que acontece quando um filme mudo recebe uma adição de efeitos
sonoros exteriores e irrelevantes). Mas esta não é a essência de um dueto (no caso do
cinema, não é cinematograficamente sonora). Se o trecho musical fosse efetivamente
reelaborado de modo a ficar mais apropriado ao dueto, a parte isolada do piano já não
seria mais autônoma, nem faria sentido isolada. O piano dividiria o trabalho com o
violino. Só então se formaria efetivamente uma dupla. Violino e piano não fariam o
mesmo percurso ao mesmo tempo – evitando com isso que um atrapalhe a atenção que
se tem no outro, ou até mesmo que um dos dois seja totalmente supérfluo – mas sim se
complementariam na construção de um trabalho único comum.
Na transposição de uma peça solo para uma versão com dois instrumentos, o
caráter da música em si pode permanecer o mesmo. A diferença é que, por exemplo, o
contraponto que no primeiro caso era feito pelo próprio piano passa a ser dividido pelo
piano e pelo violino. Quem só teve a experiência de escrever para instrumento solo e
quer compor duetos deve ter clareza de que já não pode mais cuidar somente de um
deles como o responsável pelo trabalho completo, como fazia até então, porque, neste
caso, o outro instrumento ficará à míngua. Portanto, esta pessoa precisa aprender a
compor para dueto, mas não precisa, com isso, aprender novas regras de composição
musical.
É justamente esta a situação da transposição do cinema mudo para o cinema
sonoro: é preciso aprender a aplicar as antigas regras de composição ao novo material
que foi disponibilizado. E este reaprendizado é naturalmente mais difícil do que seria
aprender algo totalmente novo.
Para finalizar, vamos refletir a respeito da questão introduzida pelo drama
radiofônico e pelo cinema sonoro, que é o problema da perda desta espécie de idioma de
abrangência internacional que é a imagem sem som. É conhecida a dificuldade que a
indústria cinematográfica enfrentou com o surgimento do cinema sonoro para conservar
sua abrangência internacional. O interesse por essa questão da possibilidade de agradar
a diversos povos não se deve a uma questão ideológica, mas remete a um interesse
puramente mercadológico. Já se tentaram os meios mais arriscados e os mais
abomináveis testes para produzir versões rodadas em distintos idiomas que, mesmo sem
considerar qualquer pretensão de valor artístico, só apresentaram desvantagens. Em
primeiro lugar, elas encarecem sensivelmente os custos de produção, já que cada cena
precisa ser gravada muitas vezes mais – e em alguns casos até mesmo com atores em
papéis distintos dos da primeira versão – sendo o encarecimento sempre um fardo
pesado para a produção cinematográfica. Mais importante ainda é o fato de que a
produção cinematográfica das distintas nações tem de diminuir a produção de filmes
mais ligados à sua própria cultura. Não há dúvida de que um filme americano não tem
mais a mesma marca cultural do país, mesmo que tenha um roteiro americano, um
diretor americano e seja filmado em um estúdio americano, se tiver de rodar com um
ator principal francês que fala na sua própria língua nativa. A objeção mais forte contra
as versões é de que nenhum ator consegue se sair bem numa representação em que
tenha de falar numa língua diferente da sua língua materna. Se um ator alemão
representa em um filme alemão rodado em Berlin, ou em uma versão alemã de um filme
francês feito em Paris, ou ainda em um russo, rodado em Moscou, seu trabalho será
sempre dirigido aos alemães. Basta refletir sobre o prejuízo que isso causaria se, em
lugar do nosso repertório e de nossa admiração pelos atores americanos, eles nos fossem
totalmente desconhecidos porque, em vez de Chaplin, só teríamos visto atuando em seu
lugar Siegfried Arno; em lugar do mexicano radicado em Hollywood Ramon Novarro,
tivéssemos assistido sempre como seu intérprete Franz Lederer; e, em vez de Gloria
Swanson, Henny Porten.
Traria muita esperança o fato de as versões terem um fim rápido e que
voltássemos a assistir como até então os filmes originais. Como será, entretanto,
solucionado o problema da língua? Este problema não se restringe ao cinema, apesar de
ser no seu âmbito que a discussão passou a ser maior. O rádio, o telefone e a expansão
dos correios e das viagens internacionais fizeram com que os povos entrassem num
contato muito mais próximo uns dos outros. Assim se intensificaram os esforços
políticos para criar um internacionalismo contra o qual o nacionalismo se opõe. Os
primeiros são desenvolvimentistas e, portanto, representam os avanços; os outros são
conservadores e permanecem desesperançosos. As fronteiras terrestres, que desde o
surgimento dos aviões transformaram-se num estranho anacronismo, não podem se
tornar por muito tempo mais empecilho para que as pessoas entrem em contato cada vez
mais com línguas estrangeiras. Canções americanas tocam nos alto-falantes, passa um
filme francês no cinema, os correios trazem uma carta em sueco e, em algumas horas, é
possível ir de carro ou de avião para a Itália. Em breve, esse contato maior com o
restante do mundo também será acessível às grandes massas – e que acontecerá então?
Elas terão de aprender as outras línguas. Que isso não seja algo impossível, pode-se
constatar em países como a Suíça, onde vemos muitos falarem alemão, francês e
italiano, independente de terem maior ou menor grau de instrução ou de serem mais ou
menos inteligentes. Talvez muitos não falem assim tão bem e sem limitações, mas em
medida suficiente. O domínio de diversas línguas se transformará em breve num bem
comum como já o é ler e escrever. Como conseqüência disso, as próprias línguas
poderão também ficar mais parecidas. A maioria delas já contém muitas semelhanças, e
isso também será um grande passo no sentido da obtenção de paz no mundo.
Pensamos que: o problema da língua não se restringe ao campo do cinema
sonoro, mas está ligado ao desenvolvimento geral de nossa vida moderna, e uma
solução universal para ele deve ser encontrada. O que, apesar disso, a indústria
cinematográfica fará até que este fato seja solucionado ainda pode nos causar espanto.
Quinto capítulo
O filme completo
O filme completo
Posfácio
Luzes e sombras nas páginas do livro “Filme como arte” de Rudolf Arnheim
26
Duas obras mais recentes desfazem alguns desses equívocos. KLEINMAN, Kent; e DUZER, Leslie
(eds.). Rudolf Arnheim: revealing vision. Ann Arbour: Un. Michigan Press, 1997. HIGGINS, Scott
(ed.). Arnheim for film and media studies. Nova York: Taylor e Francis, 2011.
social-democratas dentro do próprio país. A tiragem do jornal era pequena (10 a 15 mil
exemplares por semana), mas era um veículo influente, lido pelos mais importantes
expoentes de esquerda e pelo público formador de opinião.
Na redação da Weltbühne predominavam jornalistas de origem judaica. Os
próprios editores combatiam essa associação ao judaísmo de esquerda, mas toda a
Alemanha fora da redação tinha a convicção de que o jornal era uma folha de esquerda
feita por judeus. Esse aspecto já aponta para o segundo elemento importante que se
pode extrair da análise de Arnheim no período de jornalista. A Weltbühne era de
esquerda, mas sempre se distanciou dos partidos políticos, sendo, em muitas
oportunidades, crítica feroz tanto dos comunistas como dos social-democratas alemães
(que constituíam os dois principais polos de esquerda na época). O editor Ossietsky
cunhou o termo “escrita de sabre” para definir o estilo picante de texto que o jornal
adotava, um caráter sempre cortante e crítico que marcava o jornalismo feito ali. No que
se relaciona à direita, em especial aos monarquistas pós-primeira-guerra que migraram
em massa para as hordas nazistas, o embate fora sempre violento, desde 1918, e teria
conseqüências trágicas para os redatores do jornal depois que Hitler assumiu o poder em
1933. Um dos últimos artigos de Arnheim foi sobre um poeta nacionalista Gottfried
Benn, em quem Arnheim via a inclinação ao irracionalismo nazi como oposição ao
Iluminismo. O título do artigo “Die Flucht zu den Schachtelhalmen” pode ser traduzido
em algo como “Fuga para o pasto”, já que a palavra no título remete a um tipo de grama
antigamente utilizado para alimentação de animais. Ao mesmo tempo em que se
despedia do jornalismo sugerindo aos nazistas que fossem literalmente pastar, em 1933,
Arnheim foge para a Itália e, em 1938, para a Inglaterra, dando seu último salto em
busca de segurança em 1940, quando migra para os Estados Unidos. Uma das vítimas
desta perseguição foi sua obra. Cinema como arte (Film als Kunst), lançado em 1932
em Berlim, foi perseguido, queimado e sobreviveu em raros exemplares escondidos em
bibliotecas de intelectuais isolados. O segundo livro concluído por Arnheim em 1933,
Rádio e a arte sonora só veio a público por meio de uma tradução para o inglês em
1936. E só foi publicado no original alemão em 1979.
A questão social
Em 1957, Arnheim lançou uma versão do livro nos Estados Unidos em que
suprimiu parte do original, criando “uma grande diferença entre Film als Kunst de
1932 e sua adaptação para o inglês, Film as art, de 1957.... [Mesmo amputada]... “a
última edição, foi quase exclusivamente a fonte do nosso entendimento da visão do
cinema de Arnheim no mundo Anglo-americano, apesar de incorporar somente uma
pequena porção da edição original e trazer como apêndice quatro artigos que Arnheim
escreveu posteriormente nos anos 30 após deixar a Alemanha27”.
A visão de que Arnheim não teria uma preocupação social em sua obra, mas
somente formalista ou formativista, no sentido de estar preocupado com a percepção
visual e o modo como as artes constroem com seus meios uma percepção aumentada
deriva justamente, segundo Rentschler, de que “se partiu da edição de 1957 da
Univerdidade da Califórna de Film as art, onde realmente não há nenhuma sombra da
presença do jovem jornalista e certamente de nenhuma de suas inflexões históricas ou
ideológicas28”. O analista da obra de Arnheim lança perguntas sem poder respondê-las.
Seria possível identificar aí uma repressão à crítica social? O próprio Arnheim justifica
27
RENTSCHLER, Eric. “Rudolf Arnheim´s erarly passagem bewtween social and aesthetic film
criticism” In: HIGGINS, Scoth (Ed.). Op. cit.,pág 62.
28
Idem, pág. 63.
as omissões em nome do avanço tecnológico do cinema, o que se justificaria mais
amplamente em relação ao som, à tela grande, à cor. Mas por que isso deveria resultar
na retirada da crítica ideológica? Será que a retirada resulta de uma maturidade teórica
que o distanciou das questões ideológicas? Ou será que a passagem pelo período de
McCarthy nos Estados Unidos e suas suspeitas sempre progressivas contra emigrantes
judeus da Alemanha com passado esquerdista ainda desempenharam um papel decisivo?
Rentschker diz que são puras especulações. Mas são muitos os elementos que indicam
um expurgo do pensamento crítico da versão americana do livro.
Observando como um todo o que foi suprimido, acreditamos na possibilidade do
expurgo ser ideológico. Se considerarmos apenas a justificativa dada por Arnheim na
época, de suprimir o capítulo sobre o nascimento do cinema sonoro porque a discussão
se tornara obsoleta, dado o avanço do filme sonoro, achamos que seria muito mais
coerente ter suprimido não este capítulo, mas o último “O filme completo”, onde
efetivamente se identifica uma espécie de mensagem de saudosismo para que os
defensores da arte se unam em torno de um projeto de resistência que visasse dar
sobrevida ao cinema muito já então agonizante. O capítulo suprimido, ao contrário, é
uma lição impecável a respeito de técnicas que mostram os problemas do som e como
ele deve ser utilizado no cinema. Como o som amplia a noção de profundidade. Os
problemas de ter de editar o som.
Em 1978, já distanciado das maiores turbulências da Guerra Fria, Arnheim
prefaciou a versão alemã que era novamente relançada quase 50 anos depois de aborto
prematuro do original integral. O autor parece feliz ao dizer no prefácio que “a nova
versão alemã torna o texto original acessível novamente.29” Percebe-se o carinho com
que ele se refere ao seu original. Diz que ao folhear o velho exemplar da primeira
edição da Rowohlt que ainda guardava, sentiu o aroma do modo leve de escrever
característico da Weltbühne, que se adaptava melhor ao seu estilo do que o alemão
sisudo universitário dos acadêmicos.
“Apesar de eu ter pouco antes me doutorado com os psicólogos da
Gestalt, Max Wertheimer e Wolfgang Köhler, no Instituto de Psicologia da
Universidade de Berlim com uma dissertação experimental sobre teoria da
percepção, a redação diária me atraia mais naqueles anos de juventude do que o
jargão dos laboratórios e dos textos especializados, o que me levou a permanecer
na Weltbühne entre 1928 e 1933 com Carl von Ossietzky e Kurt Tucholsky,
como redator da seção cultural e free-lance fixo. Foi a influência da Weltbühne
também que me chamou a atenção para o valor ideológico e político do cinema,
visto que já tinha clareza de que a análise formal dos meios de expressão não era
algo irrelevante – como ainda hoje se diz a torto e direito de modo certamente
ingênuo – mas sim que cada análise ideológica devia gravitar em torno da forma
de expressão.30”
Quando avançamos na leitura de um capítulo suprimido em grande medida
intitulado “O que é filmado”, vemos em cada crítica de filme passagens que ilustram o
rigor crítico político da análise de Arnheim.
“Os filmes que se destinam à grande massa de público de todo o mundo
revelam a imagem característica de mundo do espectador: os ricos e nobres são
inimigos e devem se dar mal, mas nem tanto porque seus privilégios sejam
imerecidos e sim porque nós não participamos também dos privilégios. Nós
desejamos também as vantagens, a riqueza, a moleza e a libertação do trabalho
29
ARNHEIM, Rudolf. Cinema como arte: as técnicas da linguagem audiovisual. Trad. Marco Bonetti.
Muiraquitã/Multifoco: Niterói/Rio de Janeiro, 2011 (no prelo), pág. 3.
30
Idem, ibidem.
cotidiano. Nós enxergamos nossa própria pobreza e desconforto com os olhos do
inimigo, nós culpamos a nós mesmos, e buscamos encobrir nossos pontos fracos
com cenários coloridos, porque não somos no fundo conscientes, mas sim
crentes e devotos... Nós acreditamos de longa data que há um deus amoroso no
céu. Não reparamos e lançamos contra as outras pessoas críticas racionais, mas
censuras morais, cujas regras são extraídas de um código de comportamento
estúpido. Traição, desentendimentos familiares não são para nós casos infelizes
que se dão quando pessoas cujas personalidades não combinam estão juntas
porque a natureza as conduziu a um erro de percurso. Se tratam muito mais de
crimes condenáveis que devem levar a uma condenação eterna, perdão ou
arrependimento. Pessoas que se entregam a essas condutas devem, se não
quiserem nos aborrecer, ser lançadas para fora da convivência com o mundo
burguês tradicional, não podem permanecer em nosso círculo social, mas devem
ser tratadas como criminosos, vigaristas, ou cortesãos. Um homem com uma loja
de atacados que se deixa uma vez desviar numa má conduta, mas que recua num
arrependimento sincero, pode seguir sua vida de senhor respeitável, o mesmo se
dá com mulheres e crianças. Que tipo é assim retratado? É o alienado.31”
Para Arnheim, é muito claro por que as histórias dos filmes são alienantes e não
mantém o mínimo contato com a realidade cruel do mundo.
“Isso acontece não só porque 90% da produção cinematográfica estão nas
mãos de pessoas que têm interesse na manutenção da ordem social que é
favorável a elas, pessoas que têm interesse de desviar as energias revolucionárias
e deixá-las lançarem-se contra um pára-choques. Seria impossível levar uma
produção cinematográfica para milhões de pessoas se o cinema não atendesse ao
gosto delas. A produção de filmes flerta com aquilo com que as pessoas estão
mais habituadas. Se ela é inimiga da arte e do desenvolvimento é porque ela
oferece o tipo de produto engordurado e que alimenta o ódio à arte e à
transformação em cada uma destas pessoas.32”
Como exemplo de roteiro ideológico, Arnheim cita que “Joe Dallmann escreveu
um roteiro leve que agrada o gosto do grande público. Um velho general está numa
situação financeira desastrosa de modo que cai em boa hora o pedido de casamento de
um joalheiro para sua filha. Um dia antes do casamento o joalheiro toma conhecimento
de que sua noiva ama outro homem. Isso faz com que no dia das núpcias, conclua que a
união não é possível, desista da noiva e rompa com a relação”. Irritado, Arnheim diz
que, para concluir com chave de ouro a comunhão deste mundo cor-de-rosa fraterno, o
joalheiro dá um cheque de presente ao casal, que além de poder materializar sua
vontade de estar junto ainda poderá usufruir das benesses do dinheiro. Um filme assim,
diz Arnheim, menospreza a inteligência do ser humano, mas, mais do que isso, age no
inconsciente gerando uma imaturidade emocional de satisfação com o mundo que é
conformista e conveniente para quem detém os poderes instituídos sejam políticos ou
econômicos.
Boa parte da crítica social na obra de Arnheim está colocada no quarto capítulo
do livro original, trecho que foi reduzido das 40 páginas da edição alemã para pouco
mais de 10 páginas nas demais versões. A supressão pelo autor na edição americana de
1957 de todos os momentos em que a crítica ideológica se apresenta de modo mais
contundente explicita uma atitude de Arnheim que se mostra muito compreensível
31
Idem, ibidem.
32
Idem. Ibidem.
dentro do contexto histórico em que buscamos colocar acima a vida do autor. Mas é
importante o resgate teórico do conteúdo de seu texto original mesmo depois de sua
morte para recolocar seu pensamento num local mais preciso no que se refere à tradição
crítica à qual ele também parece estar filiado.
A metodologia de Arnheim
A tese teórica central de Cinema como arte é que qualquer arte é uma forma de
expressão autônoma que se utiliza de meios materiais particulares para representar algo.
Mas sua função não é somente representar algo à sua exata semelhança, pois um bolo de
chocolate é feito de modo a ficar idêntico a outro, mas não é uma obra de arte. O papel
da arte não é duplicar algo que existe no mundo. Em mais um trecho omitido na versão
americana do livro, Arnheim explica que o naturalismo nos gabinetes de bonecos de
cera produz arrepios e não fruição estética.
“O artista não deve camuflar ou deturpar a artificialidade de seu meio de
expressão fazendo passar cera por pele humana; ao contrário, uma boa obra de
arte traz à vista as características particulares do meio utilizado de forma clara e
límpida. Se nos permitirmos ser um pouco esquemáticos, pode-se comparar o
trabalho de representação dos artistas com uma brincadeira: formar um quadrado
a partir de dez tiras de papel. A satisfação após resolver tal quebra-cabeça
encontra-se no feito e em observar a obra, mas não no sentido de admirar o
quadrado em si – que todos na vida já viram um quadrado – mas sim pelo fato de
lembrar que dez pedaços que até então tinham cada um sua forma particular
constituam agora uma só e única forma simples unidos. O que é de admirar num
desenho a bico de pena de van Gogh não é a paisagem rural que ele fixou – já
que um campo agrícola não é nada extraordinariamente incomum – mas sim que
é fantástico o fato de se poder criar a impressão óptica de um campo real a partir
de um bico de pena. Ninguém acredita ver um campo agrícola real no desenho;
qualquer um percebe os traços grosseiros da ponta da pena – mas é certo que
uma obra de arte como essa proporciona prazer estético.33”
A razão principal de Arnheim frisar esta diferença entre as coisas e seus duplos e
as coisas e suas representações a partir de outros materiais é que, no caso do cinema, o
material se apresenta num certo sentido escondido, porque o que vemos na tela parece
ser a forma das coisas em si. Mas na verdade, não é. É preciso tomar cuidado e
descobrir qual é a essência do material de expressão cinematográfico. A arte deriva,
segundo o autor, de duas raízes, uma que é a vontade do ser humano de se expressar, e
outra que é sua busca por beleza e regularidade e equilíbrio de formas. A utilização da
arte como instrumento de representação mais fiel do mundo, apesar de ter sido tantas
vezes louvada, é somente uma tendência minoritária na história da arte, a arte figurativa.
E o perigo do cinema é que seu material de produção, a película, a câmera, têm forte
tendência para o naturalismo.
A principal estratégia metodológica de Arnheim já no início de seu livro é o de
isolar o que seria justamente o material do cinema. Para descobrir o que ele é em si,
Arnheim parte de uma situação psicológica de percepção muito simples. Quando nos
colocamos em frente a um objeto da realidade, percebemos por meio da visão uma
“imagem do mundo”. Quando nos colocamos em frente ao mesmo objeto da realidade
filmado por uma câmera cinematográfica e projetado na tela, percebemos por meio da
visão uma “imagem de cinema”. Há diferenças entre a imagem do mundo e a imagem
33
Idem, ibidem.
de cinema? Quais são essas diferenças? A resposta a esta pergunta é o primeiro capítulo
do livro de Arnheim.
Para Arnheim, as diferenças primordiais são seis: 1) na imagem de cinema, a
forma como os objetos sólidos são projetados na superfície plana da tela é distinta da
maneira como eles são projetados no plano da retina porque naquela não há como
mudar o ponto de vista de observação; 2) a paralaxe, ou seja, a distância entre os dois
olhos no rosto, é capaz de oferecer imagens um pouco distintas ao cérebro que consegue
a partir desta diferença criar a noção de profundidade tridimensional, coisa que a
imagem única do cinema não consegue; 3) na imagem de cinema até então não havia
recursos capazes de captar as cores dos objetos, enquanto os olhos enxergam cor, e isso
é um dos elementos que faz com que o papel da iluminação no cinema seja muito mais
importante do que nas situações naturais; 4) as bordas da imagem do cinema impedem o
olho ver além do campo filmado, e o tamanho de um objeto na tela vai depender da
distância com que a câmera estiver dele quando for filmado (o close-up, o plano geral),
enquanto, no mundo, o cérebro compensa as deformações da perspectiva por meio dos
instrumentos psicológicos conhecidos como “regularidade de tamanho” e “regularidade
de forma” (estudados pela Gestalt), além do que os olhos, cabeça e corpo estão em
permanente movimento, “vendo” não só o que está à frente dos olhos, mas também o
que agora está atrás, mas que se sabe estar ali porque já foi visto há pouco; 5) há total
possibilidade de quebra da continuidade de tempo e espaço no cinema (por meio da
montagem de tiras de filme descontínuas) enquanto no mundo real essa quebra do
tempo ou do espaço não é possível; e 6) no cinema estão ausentes todos os demais
outros sentidos que funcionam como apoio à visão, como o sentido gravitacional que
nos indica quando estamos olhando inclinados para cima ou para baixo e que o cinema
não nos oferece.
Essas seis diferenças comprovam a enorme distância existente entre olhar
simplesmente para algo e olhar para algo que é projetado a partir da matéria do filme.
Quanto mais proveito um cineasta souber tirar dessas diferenças, explicitando cada uma
delas ou mesmo criando efeitos surpreendentes a partir da exploração criativa de cada
uma delas, mais ele estará ingressando no universo de uma arte do cinema. O que em
geral é visto por técnicos ou críticos menos dotados como uma falha, o fato do cinema
não conseguir produzir uma réplica fiel do mundo tal como o vemos é, para Arnheim,
condição si ne qua non para que o cinema possa se transformar numa arte.
O autor demonstra a partir do segundo capítulo de seu livro como alguns dos
maiores nomes da história do cinema, Chaplin, Sternberg, Feyder, Eisenstein, Pudovkin
foram artistas neste sentido. Vai desfilando as passagens de grandes cenas em que cada
um desses autores soube se utilizar de algumas daquelas seis características para criar
algo que seria impossível fora do universo da arte do cinema.
O eixo central metodológico do pensamento de Arnheim é uma rocha, e é isso
que faz seu pensamento sobreviver a esses quase cem anos. Mas há algum reparo a
fazer. Não se trata de questionar a força do que ele comprovou, qual seria a matéria do
cinema. O primeiro capítulo do livro é um clássico. Mas sim em discordar da conclusão
a que ele chegou naquele tempo a partir de sua análise. Podemos resumi-la assim: se a
arte do cinema nasce da exploração deste hiato entre a imagem do mundo e a imagem
de cinema, quanto mais a imagem do cinema se aproximar da imagem do mundo, menor
será seu campo criativo. É deste posicionamento que nasce a classificação de Arnheim
como conservador, contrário a avanços técnicos como cinema sonoro, cor no cinema,
projeção tridimensional. No capítulo dedicado ao cinema total, o próprio Arnheim
acabou caindo nesta armadilha em alguma medida, apesar de ter revisto com o passar do
tempo uma visão mais ortodoxa neste sentido. Acreditamos que o acréscimo de som, cor
e até mesmo tridimensionalidade só são capazes de insinuar uma aproximação do
cinema em relação ao real num nível muito básico de análise formal. Só o fato do
cinema sempre poder quebrar tempo e espaço por intermédio da montagem já seria
argumento suficiente para distanciar imagem de cinema da imagem do mundo tanto
quanto o chão da lua. Portanto não haveria qualquer necessidade de crítica virulenta
contra os avanços técnicos do cinema, de um ponto de vista formal e estético. A única
justificativa para a resistência a esse avanço só pode ser explicado por intermédio do
uso nefasto que a indústria cultural fez do avanço técnico para destruir toda uma arte do
cinema anterior a essas inovações. E acreditamos que é nesse lugar de defensor da arte
do cinema dos anos 20 que Arnheim deveria ser colocado. Como foi justamente na
discussão sobre a sonorização do cinema que esse debate se instalou, o fato do capítulo
sobre o cinema sonoro ter sido suprimido da obra enquanto o capítulo sobre o cinema
total era mantido resumido gerou, a nosso ver, esse desvio, de enquadrar Arnheim como
um inimigo das inovações tecnológicas. Ela não foi. Posicionou-se contrário, isto sim,
ao fato de que uma união de um cartel de distribuição de filmes formado pelos
produtores, distribuidores e representantes da indústria elétrica que fornecia os
gravadores de som matou do dia para a noite o cinema mudo e obrigou autores como
Chaplin ou Buster Keaton a migrarem para uma arte na qual não tinham a princípio
nenhum interesse, conforme fica mais evidente a partir da leitura do capítulo que foi
suprimido do livro.
A palavra
36
Idem.
37
Idem.
Uma obra de arte técnica puramente sonora poderia ser transmitida pelo rádio.
Dada a lacuna que a total ausência de imagem cria no rádio, haveria a melhor condição
possível para a existência de um verdadeiro império absoluto da palavra na criação
ficcional radiofônica. Os adventos do rádio e da televisão estariam empurrando teatro,
literatura e cinema para novas configurações e papéis. O rádio herdando o reinado
absoluto da palavra até então mais forte no teatro, e abrindo um espaço rico para a
televisão. O cinema buscando um espaço alternativo do que o teatro já oferecia de
visual, e o cinema mudo do ponto de vista de uma arte das imagens em movimento.
Arnheim passa então a estabelecer alguns modelos do que se poderia realizar de
mais positivo com a nova configuração. Primeiro, um “cinema totalmente falado”, uma
obra de origem literária que possibilitaria levar o que hoje só consegue se disseminar em
teatros de grandes cidades para obras possíveis de serem levadas a qualquer cantão
mundo afora.
Depois, um cinema sonoro em que a imagem e o som não se atrapalhassem ou
competissem, poderia servir de apoio para a composição de uma grande forma híbrida
de percepção capaz de levar além as potencialidades da imagem sozinha ou do som sem
imagens a lugares ainda não alcançados.
No término do capítulo sobre cinema sonoro, Arnheim apresenta uma metáfora
que explicita como ele trata do problema do cinema sonoro. Na verdade, ele acredita
que não existe uma arte do cinema sonoro, outra do cinema mudo e uma terceira da arte
de elaboração do som (ruídos, falas e músicas), mas somente uma única arte do cinema
que envolveria essas três “possibilidades”. A diferença entre mudo, sonoro e arte do som
seria somente uma diferença de nível mais superficial que se estabelece dependendo de
quais códigos simbólicos se encontram mobilizados num determinado instante – só
imagem, imagem com som, só som - em função de razões históricas – a ausência de
recursos técnicos que possibilitem se aproveitar do código audiovisual como um tudo –
ou mesmo por opção estética – a ideia de que a exploração do cinema mudo, por
exemplo, ou até mesmo das novelas de rádio poderia ser uma opção do artista.
Mas, independente desta opção ou restrição histórica, quando se investiga quais
são as características peculiares de uma arte do cinema, no fundo se encontraria um
resultado só, a essência da arte do cinema é o uso de equipamentos de registro de
imagem e de som. Qualquer uso de equipamentos já se revelaria então como a essência
da arte do cinema? Não. Os equipamentos de reprodução de imagem e som podem ser
utilizados com uma finalidade distinta da que Arnheim chama de arte do cinema, por
exemplo, quando simplesmente servem para reproduzir do modo mais fiel possível uma
interpretação teatral, ou quando a película é utilizada para captar a imagem de uma
pintura, ou quando o gravador registra uma interpretação musical. Em sua função de
mero registro, os equipamentos cinematográficos não exerceriam sua função estética
cinematográfica. Para se elevar a esse grau de arte, quem utiliza os equipamentos de
registro deve se apropriar da essência da linguagem cinematográfica que tem dois
campos principais, um, do controle de movimentação da câmera, com base no qual o
cineasta opta por filmar um objeto de mais perto ou de mais longe, controlando assim o
tamanho de disposição do objeto na tela e o recorte que realiza em relação ao que será
ou não mostrado na tela, e também o agrupamento de objetos que serão colocados ali
lado a lado ou um atrás do outro criando novas relações visuais; outro, os recursos da
montagem, ou seja, a exploração do fato de que o filme trabalha com um duplo
desencarnado da realidade como matéria prima, o qual pode ser livremente disposto
numa sequência criada pelo cineasta, sem ter de se prender ao contínuo espaço-temporal
que é imposto pelas coisas existentes na realidade.
A metáfora utilizada por Arnheim para explicitar como concebe o melhor uso
dos três gêneros do cinema – cinema mudo, cinema sonoro e áudio sem imagem –
Arnheim fala que áudio e imagem são uma espécie de dueto instrumental – o cinema
mudo é um piano, o áudio puro é um violino, e o cinema sonoro é o dueto. Quem já
trabalhou com composição musical sabe que na produção de um dueto com qualidade
não basta colocar o violino para duplicar a linha melódica do piano, é preciso que o
trecho apresentado pelo piano sozinho não seja completo, que ele dependa do
contraponto do violino para que a música transmita seu pleno sentido e que os dois
instrumentos se justifiquem. Caso contrário, o trabalho do violino seria redundante e
desnecessário. Mas não é pelo fato de começar a compor para duetos que o músico terá
de reaprender novas regras musicais. Ele só terá de levar em conta que cada instrumento
terá seu papel distinto na nova composição. Da mesma maneira, o cinema não tem
regras exclusivas do gênero mudo, do sonoro ou do áudio isolado. As regras
cinematográficas que se aplicam aos três gêneros, assim como as regras de composição
musical para instrumento solo ou dueto, formam um único e mesmo conjunto.
Este é efetivamente o lugar onde acreditamos que Arnheim deveria figurar.
Autores como James Andrew o classificam como um inimigo da técnica do cinema
completo. “(Arnheim)... se opõe a desenvolvimentos tecnológicos como cor, fotografia
tridimensional, som e tela panorâmica, que reduzem o impacto do cinema ao levá-lo
cada vez mais em direção à experiência natural.” (ANDREW, 2002, p 37). Por tudo que
se mostrou acima, discordamos desta visão. Ele foi um analista rigoroso que
demonstrou qual caminho deveria ser seguido quando essas inovações tecnológicas
forem efetivamente alcançadas (depois de quase cem anos, ainda nos perguntamos se
teremos mesmo algum dia tecnologias de transmissão 3D eficientes). Deveremos nos
perguntar mais uma vez se há diferenças entre este novo equipamento e a visão do
mundo para enxergar qual será a nova matéria do cinema em sua versão tecnológica
mais atualizada para criar, a partir das limitações que sempre existirão em alguma
medida, uma brecha a partir da qual a técnica deixa de ser mero instrumento de
reprodução mecânica da realidade, para se tornar algo capaz de dar forma ao que se
pretende transmitir, a fonte de onde se originam os valores estéticos cinematográficos.
No cinema mudo, a lacuna de ausência do som era preenchida por registros visuais que
ofereciam soluções particularmente criativas. Essa possibilidade se perde com o cinema
sonoro. Mas em seu lugar surge uma outra lacuna que é o fato de som e imagem não
deverem se repetir, mas poderem agregar valores a um todo terceiro: já não se trata mais
de não poder contar com o som, mas sim de impedir que ele seja um ornamento
desnecessário. Em qualquer tecnologia ainda mais poderosa de representação que
porventura seja ainda descoberta, se trata de descobrir essas brechas para transformar
cinema em arte.
Bibliografia