Mészáros A Educação para Além Do Capital OCR
Mészáros A Educação para Além Do Capital OCR
BESITEMPS
EDITORIAL
Copyright O István Mészáros
Copyright desta edição O Boitempo Editorial, 2005, 2008
Titulo original: Education Beyond Capital
Coordenação editorial
Ivana Jinkings
Assistência editorial
Ana Paula Castellani, Ana Lotufo (2 ed.) e Livia Campos
Tradução
Isa Tavares
Revisão da tradução
Sérgio Luiz Mansur e Luis Gonzaga Fragoso SUMÁRIO
Revisão técnica
Maria Orlanda Pinassi
Capa
Maringoni e Antonio Kehl
sobre foto de Sebastião Salgado
(Terra, São Paulo, Companhia das Letras, 1997)
O Sebastião Salgado/Amazonas Images
Editoração eletrônica
Gapp Design
Produção
Marcel Iha, Paula Pires e Flávia Franchini
Apresentação
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
Prefácio, por Emir Sader 15
M55e
2.ed.
A educação para além do capital 19
Mészáros, István, 1930-
A educação para além do capital / István Mészarós ; [tradução Isa Tava- Apêndice Fa
res]. - 2.ed. - São Paulo : Boitempo, 2008. -(Mundo do trabalho)
Tradução de: Education beyond capital
Educação: o desenvolvimento contínuo
Apêndice da consciência socialista
ISBN 978-85-7559-068-3
1. Educação - Aspectos econômicos. 2. Capitalismo. 3. Democracia. 4.
Educação e Estado. 1. Título. II. Série. Obras do autor 125
08-3207. CDD: 370
CDU: 37.013.78
BOITEMPO EDITORIAL
Jinkings Editores Associados Ltda.
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APRESENTAÇÃO
terreno estrito da pedagogia, mas tem de sair às ruas, para Lukács na Universidade, porém, após o levante húngaro de
os espaços públicos, e se abrir para o mundo. outubro de 1956, com a entrada das tropas soviéticas no
Pensando na construção da ruptura com a lógica do país, exilou-se na Itália — onde lecionou na Universidade de
capital, Mészáros reflete nas páginas deste livro sobre algu- Turim —, indo posteriormente trabalhar nas universidades
mas questões de primeira ordem, tais como: Qual o papel de St. Andrews (Escócia), York (Canadá), e finalmente
da educação na construção de um outro mundo possível? em Sussex (Inglaterra), onde em 1991 recebeu o título de
Como construir uma educação cuja principal referência Professor Emérito.
seja o ser humano? Como se constitui uma educação que Autor de obra vasta e significativa, ganhador de prê-
realize as transformações políticas, econômicas, culturais mios como o Áttila József!, em 1951, e o Isaac Deutscher
e sociais necessárias? Memorial, em 1970, Mészáros é considerado um dos mais
importantes pensadores da atualidade. Sua experiência como
István Mészáros nasceu em 1930, em Budapeste, operário que teve acesso ao estudo na Hungria socialista, em
onde completou os estudos fundamentais na escola pú- meio às grandes tragédias do século XX, foi possivelmente
blica. Proveniente de uma família modesta, foi criado determinante para a compreensão da educação como forma
pela mãe, operária, e por força da necessidade tornou-se de superar os obstáculos da realidade: István — assim como
ele também — mal entrava na adolescência — trabalhador Donatella, sua companheira desde 1955 e também profes-
numa indústria de aviões de carga. Com apenas doze anos, sora na rede pública de ensino — sempre militou em defesa
o jovem István alterou seu registro de nascimento para da escola das maiorias, das periferias, aquela que oferece
alcançar a idade mínima de dezesseis anos e ser aceito possibilidades concretas de libertação para todos.
na fábrica. Passava, assim — como homem “adulto” —, a Ele alerta, porém, que o simples acesso à escola é con-
receber maior remuneração que a de sua mãe, operária dição necessária mas não suficiente para tirar das sombras
qualificada da Standard Radio Company (uma corporação do esquecimento social milhões de pessoas cuja existência
transnacional estadunidense). A diferença considerável só é reconhecida nos quadros estatísticos. E que o deslo-
entre suas remunerações semanais foi a primeira experiên- camento do processo de exclusão educacional não se dá
cia marcante e a mais tangível em seu aprendizado sobre a mais principalmente na questão do acesso à escola, mas sim
natureza dos conglomerados estrangeiros e da exploração dentro dela, por meio das instituições da educação formal.
particularmente severa das mulheres pelo capital. O que está em jogo não é apenas a modificação política
Somente após o final da Segunda Guerra, em 1945, dos processos educacionais — que praticam e agravam o
pôde se dedicar melhor aos estudos. Começou a trabalhar
como assistente de Georg Lukács no Instituto de Estética Asttila József (1905-1937), poeta húngaro por quem Mészáros nutre
da Universidade de Budapeste em 1951 e defendeu sua verdadeira paixão, e a respeito de quem publicou o livro Atila József
tese de doutorado em 1954. Mészáros seria o sucessor de e Parte moderna [Attila József e a arte moderna], em 1964.
12 A educação para além do capital Apresentação 13
apartheid social —, mas a reprodução da estrutura de valores é incontrolável e incorrigível. Seria, desse ponto de vista,
que contribui para perpetuar uma concepção de mundo absurdo esperar uma “formulação de um ideal educacio-
baseada na sociedade mercantil. nal, do ponto de vista da ordem feudal em vigor, que
Mészáros sustenta que a educação deve ser sempre considerasse a hipótese da dominação dos servos, como
continuada, permanente, ou não é educação. Defende a classe, sobre os senhores da bem estabelecida classe domi-
existência de práticas educacionais que permitam aos edu- nante”?. Naturalmente, o mesmo vale para a alternativa
cadores e alunos trabalharem as mudanças necessárias para hegemônica fundamental entre capital e trabalho. Não
a construção de uma sociedade na qual o capital não explore surpreende, portanto, que “mesmo as mais nobres utopias
mais o tempo de lazer, pois as classes dominantes impõem educacionais, anteriormente formuladas do ponto de vista
uma educação para o trabalho alienante, com o objetivo do capital, tivessem de permanecer estritamente dentro
de manter o homem dominado. Já a educação libertadora dos limites da perpetuação do domínio do capital como
teria como função transformar o trabalhador em um agente modo de reprodução social metabólica”.
político, que pensa, que age, e que usa a palavra como arma Pequeno em tamanho, 4 educação para além do capital
para transformar o mundo. Para ele, uma educação para além é um livro imenso em esperança e determinação. Nele, o
do capital deve, portanto, andar de mãos dadas com a luta filósofo marxista condena as mentalidades fatalistas que
por uma transformação radical do atual modelo econômico se conformam com a ideia de que não existe alternativa à
e político hegemônico. globalização capitalista. Em Mészáros, educar não é a mera
Estudioso da obra de Marx, Mészáros acredita que a so- transferência de conhecimentos, mas sim conscientização
ciedade só se transforma pela luta de classes. Limitar, portanto, e testemunho de vida. É construir, libertar o ser humano
uma mudança educacional radical “às margens corretivas das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo que
interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez, a história é um campo aberto de possibilidades. Esse é o
conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação sentido de se falar de uma educação para além do capital:
qualitativa. [...] É por isso que é necessário romper com a educar para além do capital implica pensar uma sociedade
lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma para além do capital.
alternativa educacional significativamente diferente”?
Usando como referência duas grandes figuras da Aos leitores que queiram conhecer melhor as opiniões
burguesia iluminista — o economista Adam Smith e o de István Mészáros sobre educação, sugiro a leitura do ca-
educador utópico Robert Owen —, o autor deste livro pítulo “A alienação e a crise da educação”, sobre as utopias
advoga que o capital é irreformável porque, pela sua
própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica,
2 Ibidem, p. 26.
2? István Mészáros, À educação para além do capital, p. 27 deste volume. “ Idem.
14 A educação para além do capital
capitalismo — a sociedade mais desigual de toda a história —, dispensável para se entender o sistema de relações capital-
para que se aceite que “todos são iguais diante da lei”, se faz -trabalho, seus limites, suas contradições, seu movimento
necessário um sistema ideológico que proclame e inculque e seu horizonte de superação.
cotidianamente esses valores na mente das pessoas. Ao pensar a educação na perspectiva da luta emanci-
No reino do capital, a educação é, ela mesma, uma patória, não poderia senão restabelecer os vínculos — tão
mercadoria. Daí a crise do sistema público de ensino, pres- esquecidos — entre educação e trabalho, como que afirmando:
sionado pelas demandas do capital e pelo esmagamento dos digam-me onde está o trabalho em um tipo de sociedade e eu
cortes de recursos dos orçamentos públicos. Talvez nada te direi onde está a educação. Em uma sociedade do capital, a
exemplifique melhor o universo instaurado pelo neolibe- educação e o trabalho se subordinam a essa dinâmica, da mes-
ralismo, em que “tudo se vende, tudo se compra”, “tudo ma forma que em uma sociedade em que se universalize o traba-
tem preço”, do que a mercantilização da educação. Uma lho — uma sociedade em que todos se tornem trabalhadores —,
sociedade que impede a emancipação só pode transformar somente aí se universalizará a educação. “A 'autoeducação de
os espaços educacionais em shopping centers, funcionais à iguais” e a “autogestão da ordem social reprodutiva” não podem
sua lógica do consumo e do lucro. ser separadas uma da outra” — nas palavras de Mészáros. Antes
O enfraquecimento da educação pública, paralelo ao cres- disso, educação significa o processo de “interiorização” das
cimento do sistema privado, deu-se ao mesmo tempo em que a condições de legitimidade do sistema que explora o trabalho
socialização se deslocou da escola para a mídia, a publicidade e como mercadoria, para induzi-los à sua aceitação passiva.
o consumo. Aprende-se a todo momento, mas o que se aprende Para ser outra coisa, para produzir insubordinação, rebeldia,
depende de onde e de como se faz esse aprendizado. García precisa redescobrir suas relações com o trabalho e com o
Márquez diz que aos sete anos teve de parar sua educação para mundo do trabalho, com o qual compartilha, entre tantas
ir à escola. Saiu da vida para entrar na escola — parodiando a coisas, a alienação.
citação de José Martí, utilizada neste livro. Para que serve o sistema educacional — mais ainda,
Seu autor, István Mészáros, filósofo no melhor quando público —, se não for para lutar contra a alienação?
sentido da palavra — aquele que nos ajuda a desvendar Para ajudar a decifrar os enigmas do mundo, sobretudo
o significado das coisas —, húngaro de nascimento, pôde o do estranhamento de um mundo produzido pelos
conviver com um dos maiores pensadores marxistas, Georg próprios homens?
Lukács. Mészáros orienta sua obra por uma demanda de Vivemos atualmente a convivência de uma massa
seu mestre: reescrever O capital de Marx — trabalho que inédita de informações disponíveis e uma incapacidade
empreendeu em seu Para além do capital", hoje leitura in- aparentemente insuperável de interpretação dos fenômenos.
Vivemos o que alguns chamam de “novo analfabetis-
| István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição mo” — porque é capaz de explicar, mas não de entender —,
(São Paulo, Boitempo, 2002). típico dos discursos econômicos. Conta-se que um presiden-
18 A educação para além do capital
Emir Sader
A aprendizagem é a nossa própria vida, desde a
juventude até a velhice, de fato quase até a morte;
ninguém passa dez horas sem nada aprender.
Paracelso
Se viene a la tierra como cera, — y el azar nos vacía en A ideia que pretendo destacar é a de que não apenas a
moldes prehechos. — Las convenciones creadas deforman última citação mas de alguma forma todas as três, durante
la existencia verdadera [...] Las redenciones han venido um período de quase cinco séculos, enfatizam a urgência de
siendo formales; — es necesario que sean esenciales [...] La
se instituir — tornando-a ao mesmo tempo irreversível — uma
libertad política no estará asegurada mientras no se asegura
radical mudança estrutural. Uma mudança que nos leve para
la libertad espiritual. [...] La escuela y el hogar son las dos
formidables cárceles del hombre.?
além do capital, no sentido genuíno e educacionalmente
viável do termo.
E a terceira epígrafe, escolhida entre as Teses sobre Feuer-
bach de Marx, põe em evidência a linha divisória que separa A incorrigível lógica do capital e seu impacto sobre
os socialistas utópicos, como Robert Owen, daqueles que no a educação
nosso tempo têm de superar os graves antagonismos estrutu-
rais de nossa sociedade. Pois esses antagonismos bloqueiam o Poucos negariam hoje que os processos educacionais e os
caminho para uma mudança absolutamente necessária, sem a processos sociais mais abrangentes de reprodução estão
qual não pode haver esperança para a própria sobrevivência da intimamente ligados. Consequentemente, uma refor-
humanidade, muito menos para a melhoria de suas condições mulação significativa da educação é inconcebível sem a
de existência. Eis o que diz Marx: correspondente transformação do quadro social no qual as
práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas
A teoria materialista de que os homens são produto das vitais e historicamente importantes funções de mudança.
circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens Mas, sem um acordo sobre esse simples fato, os caminhos
modificados são produto de circunstâncias diferentes e de dividem-se nitidamente. Pois caso não se valorize um
educação modificada, esquece que as circunstâncias são determinado modo de reprodução da sociedade como o
modificadas precisamente pelos homens e que o próprio
necessário quadro de intercâmbio social, serão admitidos,
educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente,
em nome da reforma, apenas alguns ajustes menores em
à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se
sobrepõe à sociedade (como, por exemplo, Robert Owen). todos os âmbitos, incluindo o da educação. As mudanças
A coincidência da modificação das circunstâncias e da sob tais limitações, apriorísticas e prejulgadas, são admis-
atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente síveis apenas com o único e legítimo objetivo de corrigir
compreendida como prática transformadora? algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida, de forma
que sejam mantidas intactas as determinações estruturais
fundamentais da sociedade como um todo, em conformi-
2 José Martí, “Libros”, em Obras completas (Havana, Editorial de
Ciencias Sociales, 1991), v. 18, p. 290-1.
dade com as exigências inalteráveis da lógica global de um
3 Karl Marx e Friedrich Engels, Teses sobre Feuerbach (São Paulo, determinado sistema de reprodução. Podem-se ajustar as
Alfa-Omega, 1977), p. 118-9. Grifos meus. formas pelas quais uma multiplicidade de interesses par-
26 A educação para além do capital István Mészáros 27
ticulares conflitantes se deve conformar com a regra geral de as determinações fundamentais do sistema do capital serem
preestabelecida da reprodução da sociedade, mas de forma irreformáveis. Como sabemos muito bem pela lamentável
nenhuma pode-se alterar a própria regra geral. história da estratégia reformista, que já tem mais de cem anos,
Essa lógica exclui, com uma irreversibilidade categórica, desde Edward Bernstein” e seus colaboradores — que outrora
a possibilidade de legitimar o conflito entre as forças hegemô- prometeram a transformação gradual da ordem capitalista
nicas fundamentais rivais, em uma dada ordem social, como numa ordem qualitativamente diferente, socialista —, o capital
alternativas viáveis entre si, quer no campo da produção é irreformável porque pela sua própria natureza, como totali-
material, quer no âmbito cultural/educacional. Portanto, dade reguladora sistêmica, é totalmente incorrigível. Ou bem
seria realmente um absurdo esperar uma formulação de um tem êxito em impor aos membros da sociedade, incluindo-se
ideal educacional, do ponto de vista da ordem feudal em as personificações “carinhosas” do capital, os imperativos
vigor, que considerasse a hipótese da dominação dos servos, estruturais do seu sistema como um todo, ou perde a sua
como classe, sobre os senhores da bem-estabelecida classe viabilidade como o regulador historicamente dominante do
dominante. Naturalmente, o mesmo vale para a alternativa modo bem-estabelecido de reprodução metabólica universal
hegemônica fundamental entre o capital e o trabalho. Não e social. Consequentemente, em seus parâmetros estruturais
surpreende, portanto, que mesmo as mais nobres utopias fundamentais, o capital deve permanecer sempre incontestável,
educacionais, anteriormente formuladas do ponto de vista mesmo que todos os tipos de corretivo estritamente marginais
do capital, tivessem de permanecer estritamente dentro dos sejam não só compatíveis com seus preceitos, mas também
limites da perpetuação do domínio do capital como modo benéficos, e realmente necessários a ele no interesse da so-
de reprodução social metabólica. Os interesses objetivos brevivência continuada do sistema. Limitar uma mudança
de classe tinham de prevalecer mesmo quando os subjetiva- educacional radical às margens corretivas interesseiras do
mente bem-intencionados autores dessas utopias e discursos capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou
críticos observavam claramente e criticavam as manifestações não, o objetivo de uma transformação social qualitativa. Do
desumanas dos interesses materiais dominantes. Suas posições mesmo modo, contudo, procurar margens de reforma sistêmica
críticas poderiam, no limite, apenas desejar utilizar as reformas na própria estrutura do sistema do capital é uma contradição
educacionais que propusessem para remediar os piores efeitos em termos. É por isso que é necessário romper com a lógica do
da ordem reprodutiva capitalista estabelecida sem, contudo, capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa
eliminar os seus fundamentos causais antagônicos e profun- educacional significativamente diferente.
damente enraizados.
À razão para o fracasso de todos os esforços anteriores, e
que se destinavam a instituir grandes mudanças na sociedade 4 Para uma discussão detalhada sobre a estratégia reformista de
Bernstein, ver o capítulo intitulado “O beco sem saída representa-
por meio de reformas educacionais lúcidas, reconciliadas com o
tivo de Bernstein”, no meu livro O poder da ideologia (São Paulo,
ponto de vista do capital, consistia — e ainda consiste — no fato Boitempo, 2004).
28 A educação para além do capital István Mészáros 29
Farei referência aqui a apenas duas grandes figuras da dentre oitenta partes de um botão, de tão dividida que está a
burguesia iluminista, a fim de ilustrar os limites objetivos, fabricação de tais produtos. [...] Essas são as desvantagens
intransponíveis mesmo quando ligados à melhor das inten- de um espírito comercial. As mentes dos homens ficam
ções subjetivas. A primeira é um dos maiores economistas limitadas, tornam-se incapazes de se elevar. 4 educação é
políticos de todos os tempos, Adam Smith; e a segunda, o desprezada, ou no mínimo negligenciada, e o espírito heroico
é quase totalmente extinto. Corrigir esses defeitos deveria
extraordinário reformador social e educacional utópico —
ser assunto digno de uma séria atenção.”
que também tentou pôr em prática aquilo que pregava, até
cair em bancarrota econômica — Robert Owen.
Contudo, a “séria atenção” advogada por Adam Smith
Adam Smith, a despeito de seu profundo compromis-
significa realmente muito pouco, se é que tem algum sig-
so com o modo capitalista de organização da reprodução
nificado. Pois esse arguto observador das condições da
econômica e social, condenou de forma clara o impacto
Inglaterra sob o avanço triunfante do “espírito comer-
negativo do sistema sobre a classe trabalhadora. Falando
cial” não encontra outra solução a não ser uma denúncia
acerca do “espírito comercial” como a causa do problema,
moralizadora dos efeitos degradantes das forças ocultas,
ele insistia em que este
culpando os próprios trabalhadores em vez do sistema
limita as visões do homem. Na situação em que a divisão
que lhes impõe essa situação infeliz. É nesse espírito que
do trabalho é levada até à perfeição, todo homem tem
Smith escreve:
apenas uma operação simples para realizar; a isso se limita
toda a sua atenção, e poucas ideias passam pela sua cabeça, Quando o rapaz se torna adulto, não tem ideias de como pos-
com exceção daquelas que com ela têm ligação imediata. sa se divertir. Portanto, quando estiver fora de seu trabalho
Quando a mente é empregada numa diversidade de assun- é provável que se entregue à embriaguez e à intemperança.
tos, ela é de certa forma ampliada e aumentada, e devido Consequentemente, concluímos, nos locais de comércio
a isso geralmente se reconhece que um artista do campo da Inglaterra os comerciantes geralmente se encontram
tem uma variedade de pensamentos bastante superior a de nesse estado desprezível; o que recebem do trabalho de
um citadino. Aquele talvez seja simultaneamente um car- metade da semana é suficiente para seu sustento, e devido
pinteiro e um marceneiro, e sua atenção certamente deve à ignorância eles não se divertem senão na intemperança e
estar voltada para vários objetos, de diferentes tipos. Este na libertinagem.
talvez seja apenas um marceneiro; esse tipo específico de
trabalho ocupa todos os seus pensamentos, e como ele não
teve a oportunidade de comparar vários objetos sua visão
das coisas que não estejam relacionadas com seu trabalho Adam Smith, “Lectures on justice, police, revenue, and arms” (1763),
mn
jamais será tão ampla como a do artista. Deverá ser esse o em Adam Smith's moral and political philosophy, ed. por Herbert W.
caso sobretudo quando toda a atenção de uma pessoa é de- Schneider (Nova York, Hafner, 1948), p. 318-21.
dicada a uma dentre dezessete partes de um alfinete ou a uma $ Ibidem, p. 319-20.
”
30 A educação para além do capital István Mészáros 31
Assim, a exploração capitalista do “tempo dedicado ao De fato, a verdade é que todas as medidas agora propos-
lazer”, levada hoje à perfeição sob o domínio do “espírito tas são apenas uma transigência com os erros do sistema
comercial” mais atualizado, pareceria ser a solução, sem que atual. Mas considerando que esses erros agora existem
quase universalmente, e têm de ser ultrapassados apenas por
se alterasse minimamente o núcleo alienante do sistema.
meio da força da razão; e como a razão, para produzir um
Considerar que Adam Smith gostaria de ter instituído algo
efeito sobre os objetivos mais benéficos, faz avanços passo
mais elevado do que uma utilização inescrupulosa e insensível a passo, e consubstancia progressivamente verdades de alto
do “tempo de lazer” dos jovens não altera o fato de que até o significado, uma após outra, será evidente, para mentes
discurso dessa grande figura do Iluminismo escocês é comple- abertas e acuradas, que apenas com essas e outras similares
tamente incapaz de se dirigir às causas mas deve permanecer transigências pode-se esperar, racionalmente, ter-se sucesso na
aprisionado no círculo vicioso dos efeitos condenados. Os prática. Pois tais transigências apresentam a verdade e o erro
limites objetivos da lógica do capital prevalecem mesmo ao público, e, sempre que esses são exibidos em conjunto
quando nos referimos a grandes figuras que conceituam o de um modo razoável, no final das contas a verdade tem
mundo a partir do ponto de vista do capital, e mesmo quan- de prevalecer. [...] Espera-se, confiantemente, que esteja
do eles tentam expressar subjetivamente, com um espírito próximo o tempo em que o homem, por ignorância, não
mais infligirá um sofrimento desnecessário sobre o homem;
iluminado, uma preocupação humanitária genuína.
porque a maioria da humanidade se tornará esclarecida, e
O nosso segundo exemplo, Robert Owen, meio século irá discernir claramente que ao agir assim inevitavelmente
após Adam Smith, não mede palavras quando denuncia a criará sofrimento a si própria.
busca do lucro e o poder do dinheiro, insistindo em que “o
empregador vê o empregado como um mero instrumento de O que torna esse discurso extremamente problemáti-
ganho””. Contudo, na sua experiência educacional prática co, não obstante as melhores intenções do autor, é que ele
ele espera que a cura se origine do impacto da “razão” e do tem de se conformar aos debilitantes limites do capital. É
“esclarecimento”, pregando não aos “convertidos”, mas aos também por isso que a nobre experiência prática utópica
“inconvertíveis”, que não conseguem pensar o trabalho em de Owen em Lanark está condenada ao fracasso. Pois ela
quaisquer outros termos a não ser como “mero instrumento tenta conseguir o impossível: a reconciliação da concepção
de ganho”. É assim que Owen fundamenta a sua tese: de uma utopia liberal/reformista com as regras implacáveis
da ordem estruturalmente incorrigível do capital.
Devemos então continuar a obstar a instrução nacional
O discurso de Owen revela a estreita inter-relação entre
dos nossos camaradas, que, como foi mostrado, podem
a utopia liberal, a defesa de procedimentos como o “passo a
facilmente ser treinados para serem diligentes, inteligentes,
virtuosos e membros valiosos do Estado? passo”, “apenas com transigências”, e o desejo de superar os
problemas existentes “apenas por meio da força da razão”. cedo ou mais tarde fará o país mergulhar num formidável e
Contudo, uma vez que os problemas em causa são abrangen- talvez complexo estado de perigo. A finalidade direta destas
tes, correspondendo aos inalteráveis requisitos da dominação observações é incentivar a melhoria e evitar o perigo.”
estrutural e da subordinação, a contradição entre o caráter
global e abrangente dos fenômenos sociais criticados e a par- Quando os pensadores punem o “erro e a ignorância”,
cialidade e o gradualismo das soluções propostas — que em si deveriam também indicar a origem dos pecados intelectuais
são compatíveis com o ponto de vista do capital — têm de ser criticados, em vez de admiti-los como seus, base última e
substituídos de modo fictício por uma excessiva generalização irredutível à qual a questão do “por quê?” não pode e não
de alguns “deve ser” utópicos. Assim, vemos na caracterização deve ser dirigida. Do mesmo modo, também o apelo à
de Owen de “o que tem de ser feito?” uma passagem dos autoridade da “razão e do esclarecimento”, como a futura
fenômenos sociais específicos originalmente identificados e infalível solução para os problemas analisados, é uma
com precisão — por exemplo, a deplorável condição em que falaciosa esquiva à pergunta: “por que é que a razão e o
“o empregador vê o empregado como um nero instrumento esclarecimento não funcionaram no passado?”, e se isso real-
de ganho” — para a vaga e atemporal generalização do “erro” mente aconteceu, “qual é a garantia de que funcionarão no
e da “ignorância”, para concluir, de forma circular, que o futuro?”?. Certamente, Robert Owen não é de forma alguma
problema da “verdade versus erro e ignorância” (afirmado o único pensador a apontar o “erro e a ignorância” como a
como uma questão de “razão e esclarecimento”) pode ser razão explicativa fundamental dos fenômenos denunciados,
solucionado “apenas por meio da força da razão”. E, claro, a serem corrigidos de bom grado pela força todo-poderosa da
a garantia que recebemos do êxito da solução educacional “razão e do esclarecimento”. Ele partilha essa característica e
proposta por Owen é, mais uma vez, circular: a afirmação a crença positiva a ela associada — crença que está longe de
de que “no final das contas a verdade tem de prevalecer [...] ter uma fundamentação segura — com a tradição iluminista
porque a maioria da humanidade se tornará esclarecida”. liberal no seu conjunto. Isso torna a contradição subjacente
Nas raízes da generalidade vaga da concepção corretiva de ainda mais significativa e difícil de superar.
Owen, vemos que o seu gradualismo utópico é, claramente, Conseguentemente, quando nos opomos à circula-
motivado pelo medo da emergente alternativa hegemônica ridade de tais diagnósticos finais e declarações de fé, que
sócio-histórica do trabalho e pela angústia em relação a ela. insistem em que, possivelmente, não se pode ir além do
Nesse espírito, ele insiste que sob as condições em que os ponto explicativo aceito, não podemos nos satisfazer com a
trabalhadores estão condenados a viver, eles ideia, encontrada muitas vezes nas discussões filosóficas, de
que essas respostas dúbias surgem do “erro” dos pensadores
criticados, o qual, por sua vez, deve ser corrigido com um
contrairão uma rude ferocidade de caráter, a qual, se não
forem tomadas criteriosas medidas legislativas para prevenir
o seu aumento e melhorar as condições dessa classe, mais ? Ibidem, p. 124.
E
34 A educação para além do capital István Mészáros 35
“raciocínio adequado”. Agir assim equivaleria a cometer o lucro”, os quais ele deplora, não pode escapar à autoimposta
mesmo pecado do adversário. camisa de força das determinações causais do capital.
O discurso crítico de Robert Owen e a sua solução O impacto da incorrigível lógica do capital sobre a educa-
educacional nada têm a ver com um “erro lógico”. A diluição ção tem sido grande ao longo do desenvolvimento do sistema.
da sua diagnose social num ponto crucial e a circularida- Apenas as modalidades de imposição dos imperativos estru-
de das soluções vagas e atemporais oferecidas por ele são turais do capital no âmbito educacional são hoje diferentes,
descarrilamentos práticos e necessários, devidos não a uma em relação aos primeiros e sangrentos dias da “acumulação
deficiência na lógica formal do autor, mas sim à incorri- primitiva”, em sintonia com as circunstâncias históricas alte-
gibilidade da lógica perversa do capital. É este último que, radas, como veremos na próxima seção. É por isso que hoje o
categoricamente, lhe nega a possibilidade de encontrar res- sentido da mudança educacional radical não pode ser senão
postas numa genuína associação comunitária com o sujeito o rasgar da camisa de força da lógica incorrigível do sistema:
social cujo potencial “caráter de rude ferocidade” ele teme. perseguir de modo planejado e consistente uma estratégia de
É assim que ele se depara, no final, com a contradição — rompimento do controle exercido pelo capital, com todos
não lógica, mas fundamentalmente prática —, de querer os meios disponíveis, bem como com todos os meios ainda
mudar as relações desumanas estabelecidas, enquanto rejeita, a ser inventados, e que tenham o mesmo espírito.
como um perigo sério, a única e possível alternativa social
hegemônica. A contradição insolúvel reside na concepção As soluções não podem ser apenas formais: elas
que Owen tem da mudança significativa como perpetuação devem ser essenciais
do existente. A circularidade que vimos no seu raciocínio é
a consequência necessária da aceitação de um “resultado”: a Parafraseando a epígrafe de José Martí, podemos dizer que
“razão” triunfante (procedendo em segurança, “passo “as soluções não podem ser apenas formais; elas devem
a passo”), que prescreve o “erro e a ignorância” como o ser essenciais”.
problema adequadamente retificado, para o qual se supõe A educação institucionalizada, especialmente nos últi-
estar a razão eminentemente adequada a resolver. Dessa mos 150 anos, serviu — no seu todo — ao propósito de não só
forma, mesmo que inconscientemente, a relação entre o fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina
problema e sua solução está, na verdade, revertida, e com produtiva em expansão do sistema do capital, como também
isso ela redefine anistoricamente o primeiro, de maneira a gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os in-
ajustar-se à solução — capitalistamente permissível — que teresses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma
fora conceitualmente preconcebida. É isso o que acontece alternativa à gestão da sociedade, seja na forma “interna-
quando mesmo um reformista social e educacional esclare- lizada” (isto é, pelos indivíduos devidamente “educados”
cido, que honestamente tenta remediar os efeitos alienantes e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e uma
e desumanizantes do “poder do dinheiro” e da “busca do subordinação hierárquica e implacavelmente impostas. A
4
36 A educação para além do capital István Mészáros 37
própria História teve de ser totalmente adulterada, e de fato As deturpações desse tipo são a regra quando há riscos
frequente e grosseiramente falsificada para esse propósito. realmente elevados, e assim é, particularmente, quando eles
Fidel Castro, falando sobre a falsificação da história cubana são diretamente concernentes à racionalização e à legitimação
após a guerra de independência em relação ao colonialismo da ordem social estabelecida como uma “ordem natural”
espanhol, fornece um exemplo impressionante: supostamente inalterável. A história deve então ser reescrita
e propagandeada de uma forma ainda mais distorcida, não
:Qué nos dijeron en la escuela? ;Qué nos decían aquellos só nos órgãos que em larga escala formam a opinião política,
inescrupulosos libros de historia sobre los hechos? Nos desde os jornais de grande tiragem às emissoras de rádio
decían que la potencia imperialista no era la potencia im- e de televisão, mas até nas supostamente objetivas teorias
perialista, sino que, Ileno de generosidad, el gobierno de acadêmicas. Marx oferece uma caracterização devastadora de
Estados Unidos, deseoso de darnos la libertad, había inter-
como uma questão vital da história do capitalismo, conhe-
venido en aquella guerra y que, como consecuencia de eso,
éramos libres. Pero no éramos libres por cientos de miles
cida como a acumulação primitiva ou original do capital, é
de cubanos que murieron durante 30 afios en los combates,
tratada pela ciência da Economia Política. Em um vigoroso
no éramos libres por el gesto heroico de Carlos Manuel de capítulo de O capital, escreve ele:
Céspedes, el Padre de la Patria, que inició aquella lucha, que
incluso prefirió que le fusilaran al hijo antes de hacer una Essa acumulação primitiva desempenha na Economia
sola concesión; no éramos libres por el esfuerzo heroico de Política um papel análogo ao pecado original na Teolo-
tantos cubanos, no éramos libres por la predica de Martí, gia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado sobreveio
no éramos libres por el esfuerzo heroico de Máximo Gómez, à humanidade. Explica-se sua origem contando-a como
Calixto García y tantos aquellos próceres ilustres; no éramos anedota ocorrida no passado. Em tempos muito remo-
libres por la sangre derramada por las veinte y tantas heri- tos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente
das de Antonio Maceio y su caída heroica en Punta Brava; e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos
éramos libres sencillamente porque Teodoro Roosevelt dissipando tudo o que tinham e mais ainda. A lenda
desembarcó con unos cuantos rangers en Santiago de Cuba do pecado original teológico conta-nos, contudo, como
para combatir contra un ejército agotado y prácticamente o homem foi condenado a comer seu pão com o suor
vencido, o porque los acorazados americanos hundieron a de seu rosto; a história do pecado original econômico,
los “cacharros” de Cerveza frente a la bahia de Santiago de no entanto, nos revela por que há gente que não tem
Cuba. Y esas monstruosas mentiras, esas increíbles falsedades necessidade disso. Tanto faz. Assim se explica que os
eran las que se ensefiaban en nuestras escuelas.'º primeiros acumularam riquezas, e os últimos, finalmen-
te, nada tinham para vender senão a sua própria pele. E
desse pecado original data a pobreza da grande massa que
até agora, apesar de todo o seu trabalho, nada possui para
10 Fidel Castro, José Marti: el autor intelectual (Havana, Editora Política, vender senão a si mesma, e a riqueza dos poucos, que
1983), p. 162. Ver também p. 150 da mesma obra. cresce continuamente, embora há muito tenham para-
38 A educação para além do capital István Mészáros 39
do de trabalhar. Tais trivialidades infantis o Sr. Thiers, Naturalmente, nem mesmo os altamente respeitáveis
por exemplo, serve ainda, com a solene seriedade de um pensadores da classe dominante podiam adotar uma atitude
homem de Estado, em defesa da propriété, aos franceses, que divergisse do modo cruel de subjugar aqueles que de-
outrora tão espirituosos. [...] Na história real, como se
viam ser mantidos sob o mais estrito controle, no interesse
sabe, a conquista, a subjugação, o assassínio para roubar,
em suma, a violência, desempenham o papel principal.
da ordem estabelecida. Não até que a própria mudança das
Na suave Economia Política reinou desde sempre o idílio. condições de produção modificasse a necessidade de uma
[...] Na realidade, os métodos da acumulação primitiva são força de trabalho — grandemente ampliada — sob as condições
tudo, menos idílicos. [...] Os expulsos pela dissolução dos expansionistas da revolução industrial.
séquitos feudais e pela intermitente e violenta expropriação No tempo em que John Locke escreveu, havia uma
da base fundiária, esse proletariado livre como os pássaros maior procura de pessoas empregáveis lucrativamente do que
não podia ser absorvido pela manufatura nascente com no tempo de Henrique VIII, mesmo que numa quantidade
a mesma velocidade com que foi posto no mundo. Por ainda muito distante da que veio a ser demandada durante a
outro lado, os que foram bruscamente arrancados de seu revolução industrial. Portanto, a “população excedente”, em
modo costumeiro de vida não conseguiam enquadrar-se de significativa diminuição, não teve de ser fisicamente elimi-
maneira igualmente súbita na disciplina da nova condição.
nada como anteriormente. Todavia, tinha de ser tratada da
Eles se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes,
forma mais autoritária, racionalizando-se ao mesmo tempo
vagabundos, em parte por predisposição e na maioria dos
casos por força das circunstâncias. Daí ter surgido em a brutalidade e a desumanidade recomendadas em nome de
toda a Europa ocidental, no final do século XV e durante uma pretensiosa moralidade. Desse modo, nas últimas
todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a décadas do século XVII, em conformidade com o ponto
vagabundagem. Os ancestrais da atual classe trabalhadora de vista do capital da economia política da época, o grande
foram imediatamente punidos pela transformação, que ídolo do liberalismo moderno, John Locke — um latifundiá-
lhes foi imposta, em vagabundos e paupers. A legislação rio absenteísta* em Somersetshire, e também um dos mais
os tratava como criminosos “voluntários” e supunha que generosamente pagos funcionários do governo — pregava a
dependia de sua boa vontade seguir trabalhando nas antigas mesma “trivialidade infantil”, tal como descrita por Marx.
condições que não existiam. [...] Desses pobres fugitivos, Locke insistiu em que a causa para
dos quais Thomas Morus diz que os coagiu a roubar,
“foram executados 72 mil pequenos e grandes ladrões, sob
o crescimento do número dos pobres [...] nada mais é do
o reinado de Henrique VIII."
que o relaxamento da disciplina e a corrupção dos hábitos; a
virtude e a diligência são como companheiros constantes de
N Karl Marx, O capital (São Paulo, Nova Cultural, 1988), v. 1, livro * Mészáros emprega o termo “absenteísta” em relação a Locke, no
primeiro, tomo 2, capítulo XXIV, p. 251-2, 265-6. sentido de um proprietário de terras que não vivia nelas. (N.R.T.)
40 A educação para além do capital István Mészáros 41
um lado, assim como o vício e a ociosidade estão do outro. 50 anos de idade, e todos os de qualquer idade que também
Portanto, o primeiro passo no sentido de fazer os pobres mendiguem sem passes nos municípios do interior, longe
trabalhar [...] deve ser a restrição da sua libertinagem me- da orla marítima, devem ser enviados para uma casa de
diante a aplicação estrita das leis estipuladas [por Henrique correção próxima e nela mantidos em trabalhos forçados
VIII e outros] contra ela.? durante três anos.”
Recebendo anualmente uma remuneração quase as- E enquanto as leis brutais de Henrique VIII e de
tronômica, de cerca de 1.500 libras, pelos seus serviços ao Eduardo VI pretendiam cortar apenas “metade da orelha”
governo (como membro da Junta Comercial, um dos seus dos criminosos reincidentes, o nosso grande filósofo liberal
vários cargos), Locke não hesitou em louvar a perspectiva e funcionário do Estado — uma das figuras dominantes dos
de os pobres ganharem “um centavo por dia”? (a penny primórdios do Iluminismo inglês — sugeriu uma melhoria
per diem), ou seja, uma quantia aproximadamente 7x1/ vezes de tais leis ao recomendar, solenemente, o corte de ambas as
inferior a seu próprio vencimento, em apenas um dos seus orelhas, punição a ser aplicada aos réus primários'S.
cargos governamentais. Não surpreende, portanto, que “o Ao mesmo tempo, no seu Memorandum on the reform
valor dos seus bens, quando ele faleceu — quase 20.000 li- of the poor law, Locke também propôs a instituição de
bras, das quais 12.000 em dinheiro —, era comparável ao de oficinas* para os filhos ainda em tenra idade dos pobres,
um comerciante próspero em Londres”'*. Um grande feito argumentando que
para uma pessoa cuja principal fonte de renda era explorar —
confessadamente de bom grado — o Estado! Os filhos das pessoas trabalhadoras são um corriqueiro
Além disso, sendo um verdadeiro cavalheiro, com um fardo para a paróquia, e normalmente são mantidas na
volumoso patrimônio a resguardar, ele também queria con- ociosidade, de forma que geralmente também se perde o que
trolar as atividades dos pobres com uma medida perversa, a produziriam para a população até eles completarem doze
ou catorze anos de idade. Para esse problema, a solução
dos passes, propondo que
mais eficaz que somos capazes de conceber, e que portanto
humildemente propomos, é a de que, na acima mencionada
Todos os homens que mendiguem sem passes nos muni-
lei a ser decretada, seja determinado, além disso, que se
cípios litorâneos, sejam eles mutilados ou tenham mais que
5 John Locke, “Memorandum on the reform of the poor law”, cit.,
p. 380.
2 John Locke, “Memorandum on the reform of the poor law”, em '6 Idem.
R. H. Fox Bourne, The life of John Locke (Londres, King, 1876), v. 2, * “Workhouses”, no original. A tradução mais próxima de workhouse,
p. 378. considerado o inglês britânico, é “oficina”. No entanto, no inglês
Ibidem, p. 383. americano é “instituição correcional?. Certamente, Locke recomen-
4 Neal Wood, The politics of Locke' philosophy (Berkeley, University dava um trabalho compulsório para os meninos pobres, num presídio
of California Press, 1983), p. 26. especial a que seriam recolhidos. (N.R.T.)
42 A educação para além do capital István Mészáros 43
criem escolas profissionalizantes em todas as paróquias, as Deste modo, teve de se abandonar a extrema brutalidade
quais os filhos de todos, na medida das necessidades da e a violência legalmente impostas como instrumentos de
paróquia, entre quatro e treze anos de idade ... devem ser educação — não só inquestionavelmente aceitos antes, mas
obrigados a frequentar.” até ativamente promovidos por figuras do início do período
iluminista, como o próprio Locke, como acabamos.de ver.
Não sendo ele próprio um homem religioso, a principal Elas foram abandonadas não devido a considerações huma-
preocupação de Locke era combinar uma disciplina de tra- nitárias, embora tenham sido frequentemente racionalizadas
balho severa e doutrinação religiosa com uma máxima fru- em tais termos, mas porque uma gestão dura e inflexível
galidade financeira municipal e estatal. Ele argumentava que revelou-se um desperdício econômico, ou era, no mínimo,
supérflua. E isso era verdadeiro não só em relação às insti-
Outra vantagem de se levar as crianças a uma escola profis-
tuições formais de educação mas também a algumas áreas
sional é que, desta forma, elas seriam obrigadas a ir à igreja
todos os domingos, juntamente com os seus professores ou indiretamente ligadas a ideias educacionais. Tomando-se
professoras e teriam alguma compreensão da religião; ao pas- apenas um exemplo significativo, o êxito inicial da experiência
so que agora, sendo criadas, em geral, no ócio e sem rédeas, de Robert Owen deveu-se não ao humanitarismo paterna-
elas são totalmente alheias tanto à religião e à moralidade lista desse capitalista esclarecido, mas à vantagem produtiva
como o são para a diligência." relativa, de início desfrutada pelo empreendimento industrial
de sua comunidade utópica. Pois graças à redução da absur-
Obviamente, então, as medidas que tinham de ser apli- damente longa jornada de trabalho, regra geral na época, a
cadas aos “trabalhadores pobres” eram radicalmente diferentes abordagem “owenista” do trabalho levou a uma intensidade
daquelas que os “homens da razão” consideravam adequadas muito maior de realização produtiva durante a jornada
para si próprios. No final tudo se reduzia a relações de poder reduzida. Contudo, quando práticas similares foram mais
nuas e cruas, impostas com extrema brutalidade e violência nos amplamente difundidas, já que tinha de acatar as regras da
primórdios do desenvolvimento capitalista, independentemente concorrência capitalista, sua empresa tornou-se condenada
da forma como elas eram racionalizadas nos “primeiros anais da e faliu, não obstante as indubitavelmente avançadas concep-
economia política”, conforme as palavras de Marx. ções de Robert Owen em matéria educacional.
Naturalmente, as instituições de educação tiveram de As determinações gerais do capital afetam profun-
ser adaptadas no decorrer do tempo, de acordo com as de- damente cada âmbito particular com alguma influência
terminações reprodutivas em mutação do sistema do capital. na educação, e de forma nenhuma apenas as instituições
educacionais formais. Estas estão estritamente integradas
na totalidade dos processos sociais. Não podem funcionar
” John Locke, “Memorandum on the reform of the poor law”, cit.,
p. 383. adequadamente exceto se estiverem em sintonia com as de-
!8 Tbidem, p. 384-5. terminações educacionais gerais da sociedade como um todo.
44 A educação para além do capital István Mészáros 45
Aqui a questão crucial, sob o domínio do capital, é de escravidão ou servidão feudal isto é, naturalmente, um
assegurar que cada indivíduo adote como suas próprias as problema bastante diferente daquele que deve vigorar no
metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema. capitalismo, mesmo que os trabalhadores não sejam (ou
Em outras palavras, no sentido verdadeiramente amplo sejam muito pouco) educados formalmente. Todavia, ao
do termo educação, trata-se de uma questão de “internali- internalizar as onipresentes pressões externas, eles devem
zação” pelos indivíduos — tal como indicado no segundo adotar as perspectivas globais da sociedade mercantilizada
parágrafo desta seção — da legitimidade da posição que como inquestionáveis limites individuais a suas aspirações
lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamente com pessoais. Apenas a mais consciente das ações coletivas poderá
suas expectativas “adequadas” e as formas de conduta livrá-los dessa grave e paralisante situação.
“certas”, mais ou menos explicitamente estipuladas nesse Nessa perspectiva, fica bastante claro que a educação for-
terreno. Enquanto a internalização conseguir fazer o seu mal não é a força ideologicamente primária que consolida o
bom trabalho, assegurando os parâmetros reprodutivos sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por si só, fornecer
gerais do sistema do capital, a brutalidade e a violência uma alternativa emancipadora radical. Uma das funções prin-
podem ser relegadas a um segundo plano (embora de modo cipais da educação formal nas nossas sociedades é produzir
nenhum sejam permanentemente abandonadas) posto que tanta conformidade ou “consenso” quanto for capaz, a partir
são modalidades dispendiosas de imposição de valores, de dentro e por meio dos seus próprios limites institucionalizados
como de fato aconteceu no decurso do desenvolvimento e legalmente sancionados. Esperar da sociedade mercantilizada
capitalista moderno. Apenas em períodos de crise aguda uma sanção ativa — ou mesmo mera tolerância — de um man-
volta a prevalecer o arsenal de brutalidade e violência, dato que estimule as instituições de educação formal a abraçar
com o objetivo de impor valores, como o demonstraram plenamente a grande tarefa histórica do nosso tempo, ou seja,
em tempos recentes as tragédias dos muitos milhares de a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobre-
desaparecidos no Chile e na Argentina. vivência humana, seria um milagre monumental. É por isso
Às instituições formais de educação certamente são que, também no âmbito educacional, as soluções “não podem
uma parte importante do sistema global de internalização. ser formais; elas devem ser essenciais”. Em outras palavras,
Mas apenas uma parte. Quer os indivíduos participem ou eles devem abarcar a totalidade das práticas educacionais da
não — por mais ou menos tempo, mas sempre em um nú- sociedade estabelecida.
mero de anos bastante limitado — das instituições formais As soluções educacionais formais, mesmo algumas
de educação, eles devem ser induzidos a uma aceitação ativa das maiores, e mesmo quando são sacramentadas pela lei,
(ou mais ou menos resignada) dos princípios reprodutivos podem ser completamente invertidas, desde que a lógica
orientadores dominantes na própria sociedade, adequados do capital permaneça intacta como quadro de referências
a sua posição na ordem social, e de acordo com as tarefas orientador da sociedade. Na Grã-Bretanha, durante várias
reprodutivas que lhes foram atribuídas. Sob as condições décadas, os principais debates acerca da educação centraram-se
46 A educação para além do capital István Mészáros 47
na questão das comprehensive schools*, a serem instituídas tucional isolada, a lógica autoritária global do próprio
em substituição ao sistema educativo elitista, há muito es- capital. O que precisa ser confrontado e alterado fun-
tabelecido. Durante aqueles debates, o Partido Trabalhista damentalmente é todo o sistema de internalização, com
Britânico não só adotou como parte essencial do programa todas as suas dimensões, visíveis e ocultas. Romper com a
eleitoral a estratégia geral de substituir o privilegiado siste- lógica do capital na área da educação equivale, portanto,
ma anterior de aprendizagem pelas “escolas abrangentes”, a substituir as formas onipresentes e profundamente
como de fato também sistematizou legalmente essa polí- enraizadas de internalização mistificadora por uma al-
tica, depois de bem-sucedido na formação do governo, ternativa concreta abrangente.
embora não tenha, nesse momento, ousado tratar do mais A internalização é a questão para a qual nos devemos
privilegiado setor da educação, as “escolas públicas”**. voltar agora.
Hoje, contudo, o governo britânico do New Labour está
determinado a desmantelar o sistema da escola abrangente, “A aprendizagem é a nossa própria vida, desde a
não só com a renovação das antigas instituições educacio- juventude até a velhice”
nais elitistas, mas também com a instituição de uma nova
variedade de “academias” que favorecem a classe média, Na sua época, Paracelso estava absolutamente certo, e
apesar das numerosas críticas, que partem mesmo de seus não está menos certo atualmente: “A aprendizagem é a
próprios adeptos, acerca do estabelecimento de um sistema nossa própria vida, desde a juventude até a velhice, de
de “duas vias” (two-tier system), tal como está prestes a fato quase até a morte; ninguém passa dez horas sem nada
ser estabelecido e fortalecido pelo governo britânico no aprender”. A grande questão é: o que é que aprendemos
National Health Service. de uma forma ou de outra? Será que a aprendizagem con-
Assim, não se pode realmente escapar da “formidável duz à autorrealização dos indivíduos como “indivíduos
prisão” do sistema escolar estabelecido (condenado nestes socialmente ricos” humanamente (nas palavras de Marx),
termos por José Martí) reformando-o, simplesmente. ou está ela a serviço da perpetuação, consciente ou não, da
Pois o que existia antes de tais reformas será certamente ordem social alienante e definitivamente incontrolável do
restabelecido, mais cedo ou mais tarde, devido ao absoluto capital? Será o conhecimento o elemento necessário para
fracasso em desafiar, por meio de uma mudança insti- transformar em realidade o ideal da emancipação humana,
em conjunto com uma firme determinação e dedicação
* Na Grã-Bretanha, escola secundária não seletiva, para jovens com dos indivíduos para alcançar, de maneira bem-sucedida,
todos os níveis de habilidade, em contraste com as grammar schools, a autoemancipação da humanidade, apesar de todas as
escolas onde a matrícula é controlada por um processo de seleção.
adversidades, ou será, pelo contrário, a adoção pelos indi-
(N.R.T.)
** “Público”, nesse contexto, significa “privado” na Grã-Bretanha;
víduos, em particular, de modos de comportamento que
refere-se às escolas que cobram anuidades exorbitantes. (N.R.T.) apenas favorecem a concretização dos objetivos reificados
48 A educação para além do capital István Mészáros 49
do capital? Considerando esse mais amplo e mais profundo maneira mais tacanha possível, como a única forma certa e
significado da educação, que inclui de forma proeminente adequada de preservar os “padrões civilizados” dos que são
todos os momentos da nossa vida ativa, podemos concordar designados para “educar” e governar, contra a “anarquia e
com Paracelso em que muita coisa (praticamente tudo) é a subversão”. Simultaneamente, ela exclui a esmagadora
decidida, para o bem e para o mal — não apenas para nós maioria da humanidade do âmbito da ação como sujeitos, e
próprios como indivíduos mas simultaneamente também condena-os, para sempre, a serem apenas considerados como
para a humanidade —, em todas aquelas inevitáveis horas objetos (e manipulados no mesmo sentido), em nome da su-
que não podemos passar “sem aprender”. Isso porque “a posta superioridade da elite: “meritocrática”, “tecnocrática”,
aprendizagem é, verdadeiramente, a nossa própria vida”. E “empresarial”, ou o que quer que seja.
como tanta coisa é decidida dessa forma, para o bem e para Contra uma concepção tendenciosamente estreita da
o mal, o êxito depende de se tornar consciente esse processo educação e da vida intelectual, cujo objetivo obviamente é
de aprendizagem, no sentido amplo e “paracelsiano” do manter o proletariado “no seu lugar”, Gramsci argumentou,
termo, de forma a maximizar o melhor e a minimizar o pior. enfaticamente, há muito tempo, que
Apenas a mais ampla das concepções de educação
nos pode ajudar a perseguir o objetivo de uma mudança não há nenhuma atividade humana da qual se possa excluir
verdadeiramente radical, proporcionando instrumentos de qualquer intervenção intelectual — o Homo faber não pode
pressão que rompam a lógica mistificadora do capital. Essa ser separado do Homo sapiens. Além disso, fora do trabalho,
todo homem desenvolve alguma atividade intelectual; ele é,
maneira de abordar o assunto é, de fato, tanto a esperança
em outras palavras, um “filósofo”, um artista, um homem
como a garantia de um possível êxito. Em contraste, cair
com sensibilidade; ele partilha uma concepção do mundo,
na tentação dos reparos institucionais formais — “passo a tem uma linha consciente de conduta moral, e portanto
passo”, como afirma a sabedoria reformista desde tempos contribui para manter ou mudar a concepção do mundo, isto
imemoriais — significa permanecer aprisionado dentro do é, para estimular novas formas de pensamento.!?
círculo vicioso institucionalmente articulado e protegido
dessa lógica autocentrada do capital. Essa forma de encarar Como podemos observar, a posição de Gramsci é
tanto os problemas em si mesmos como as suas soluções profundamente democrática. É a única sustentável. A sua
“realistas” é cuidadosamente cultivada e propagandeada conclusão é bifacetada. Primeiro, ele insiste em que todo
nas nossas sociedades, enquanto a alternativa genuína e de ser humano contribui, de uma forma ou de outra, para a
alcance amplo e prático é desqualificada aprioristicamente
e descartada bombasticamente, qualificada como “política
de formalidades”. Essa espécie de abordagem é incuravel-
9 Antonio Gramsci, “The formation of intellectuals”, em The Modern
mente elitista mesmo quando se pretende democrática. Pois
Prince and Other Writings (Londres, Lawrence and Wishart, 1957),
define tanto a educação como a atividade intelectual, da » po 124.
50 A educação para além do capital István Mészáros 51
formação de uma concepção de mundo predominante. Em hegemônicos alternativos objetivamente irreconciliáveis, inde-
segundo lugar, ele assinala que tal contribuição pode cair nas pendentemente de quanto os indivíduos possam estar cons-
categorias contrastantes da “manutenção” e da “mudança”. cientes dos antagonismos estruturais subjacentes — num dispo-
Pode não ser apenas uma ou outra, mas ambas, simultanea- sitivo homogêneo e uniforme, que funcione como um promotor
mente. Qual das duas é mais acentuada, e em que grau, permanente da lógica do capital. Nem mesmo o aspecto da
isso obviamente dependerá da forma como as forças sociais “manutenção” pode ser considerado um constituinte passivo
conflitantes se confrontam e defendem seus interesses al- da concepção de mundo que predomina entre os indivíduos.
ternativos importantes. Em outras palavras, a dinâmica da No entanto, mesmo que de uma maneira muito diferente do
história não é uma força externa misteriosa qualquer e sim aspecto da “mudança” da visão do mundo de uma época, a
uma intervenção de uma enorme multiplicidade de seres hu- “manutenção” só é ativa e benéfica para o capital enquanto se
manos no processo histórico real, na linha da “manutenção mantém ativa. Isso significa que a “manutenção” tem (e deve
e/ou mudança” — num período relativamente estático, muito ter) sua própria base de racionalidade, independentemente de
mais de “manutenção” do que de “mudança”, ou vice-versa quão problemática for em relação à alternativa hegemônica
no momento em que houver uma grande elevação na inten- do trabalho. Isto é, ela não só deve ser produzida pelas classes
sidade de confrontos hegemônicos e antagônicos — de uma de indivíduos estruturalmente dominadas em determinado
dada concepção do mundo que, por conseguinte, atrasará momento no tempo, como também tem de ser constantemente
ou apressará a chegada de uma mudança social significativa. reproduzida por eles, sujeita (ou não) à permanência de sua base
Isso coloca em perspectiva as reivindicações elitistas de po- de racionalidade original. Quando uma maioria significativa
líticos autonomeados e educadores. Pois eles não podem mudar da população — algo próximo de setenta por cento em muitos
a seu bel-prazer a “concepção de mundo” da sua época, por países — se afasta com desdém do “processo democrático” do
mais que queiram fazê-lo, e por mais gigantesco que possa ser o ritual eleitoral, tendo lutado durante décadas, no passado,
aparelho de propaganda à sua disposição. Um processo coletivo pelo direito ao voto, isso mostra uma mudança real de atitude
inevitável, de proporções elementares, não pode ser expropria- em face da ordem dominante; pode-se dizer que é uma rachadu-
do definitivamente, mesmo pelos mais espertos e generosa- ra nas espessas camadas de gesso cuidadosamente depositadas
mente financiados agentes políticos e intelectuais. Não fosse sobre a fachada “democrática” do sistema. Contudo, de modo
por esse inconveniente “fato brutal”, posto tão em evidência nenhum isso poderia ou deveria ser interpretado como um
por Gramsci, o domínio da educação institucional formal e afastamento radical da “manutenção” da concepção de mundo
estreita poderia reinar para sempre em favor do capital. atualmente dominante.
Por maior que seja, nenhuma manipulação vinda de cima Naturalmente, as condições são muito mais favoráveis à
pode transformar o imensamente complexo processo de mode- atitude de “mudança” e à emergência de uma concepção alter-
lagem da visão geral do mundo de nossos tempos — constituída nativa do mundo, em meio a uma crise revolucionária, descrita
por incontáveis concepções particulares na base de interesses por Lenin como o tempo “em que as classes dominantes já
52 A educação para além do capital István Mészáros 53
não podem governar à maneira antiga, e as classes subalternas do capital no âmbito da educação é absolutamente inconcebível
já não querem viver à maneira antiga”. Esses são momentos sem isso. E, mais importante, essa relação pode e deve ser expressa
absolutamente extraordinários na história, e não podem ser também de uma forma concreta. Pois através de uma mudança
prolongados como se poderia desejar, como o demonstraram radical no modo de internalização agora opressivo, que sustenta
no passado os fracassos das estratégias voluntaristas?”. Portanto, a concepção dominante do mundo, o domínio do capital pode
seja em relação à “manutenção”, seja em relação à “mudança” ser e será quebrado.
de uma dada concepção do mundo, a questão fundamental é Nunca é demais salientar a importância estratégica da
a necessidade de modificar, de uma forma duradoura, o modo concepção mais ampla de educação, expressa na frase: “a
de internalização historicamente prevalecente. Romper a lógica aprendizagem é a nossa própria vida”. Pois muito do nosso
processo contínuo de aprendizagem se situa, felizmente, fora
2 “A dificuldade é que o “momento” da política radical é limitado das instituições educacionais formais. Felizmente, porque
estritamente pela natureza da crise em questão e pelas determinações esses processos não podem ser manipulados e controlados
temporais de seu desdobramento. A brecha aberta em tempos de crise de imediato pela estrutura educacional formal legalmente
não pode ser deixada assim para sempre, e as medidas adotadas para salvaguardada e sancionada. Eles comportam tudo, desde o
fechá-la, desde os primeiros passos em diante, têm sua própria lógica
e impacto cumulativo nas intervenções subsequentes. Além disso,
surgimento de nossas respostas críticas em relação ao ambiente
tanto a estrutura socioeconômica existente quanto seu correspondente material mais ou menos carente em nossa primeira infância,
conjunto de instituições políticas tendem a agir contra as iniciativas do nosso primeiro encontro com a poesia e a arte, passando
radicais através da sua própria inércia, tão logo tenha passado o pior por nossas diversas experiências de trabalho, sujeitas a um
momento da crise e assim se tornando possível contemplar novamente escrutínio racional, feito por nós mesmos e pelas pessoas com
“a linha de menor resistência”. [...] Por mais paradoxal que possa soar,
quem as partilhamos e, claro, até o nosso envolvimento, de
somente uma autodeterminação radical da política pode prolongar
o momento da política radical. Se não se deseja que este “momento” muitas diferentes maneiras e ao longo da vida, em conflitos
seja dissipado sob o peso da pressão econômica imediata, tem de ser e confrontos, inclusive as disputas morais, políticas e sociais
encontrada uma maneira para estender sua influência para muito além dos nossos dias. Apenas uma pequena parte disso tudo está
do pico da própria crise (quando a política radical tende a afirmar diretamente ligada à educação formal. Contudo, os processos
sua efetividade como uma lei). E, desde que a duração temporal da
acima descritos têm uma enorme importância, não só nos
crise como tal não pode ser prolongada à vontade — nem poderia ser,
desde que uma política voluntarista, com seu “estado de emergência” nossos primeiros anos de formação, como durante a nossa
artificialmente manipulado, só poderia tentar fazê-lo em seu próprio vida, quando tanto deve ser reavaliado e trazido a uma uni-
risco, através do despojamento das massas, em vez de assegurar dade coerente, orgânica e viável, sem a qual não poderíamos
o seu sustento —, a solução só pode surgir de uma bem-sucedida adquirir uma personalidade, e nos fragmentaríamos em
conversão de um “tempo transitório” a um “espaço permanente”
pedaços sem valor, deficientes mesmo a serviço de objetivos
por meio da reestruturação dos poderes de tomada de decisão”
(IL. Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição, sociopolíticos autoritários. O pesadelo em 7984, de Orwell,
São Paulo, Boitempo, 2002, p. 1077-8). não é realizável precisamente porque a esmagadora maioria
54 Aeducação para além do capital István Mészáros 55
das nossas experiências constitutivas permanece — e perma- por eso el sentido de toda obra humana
necerá sempre — fora do âmbito do controle e da coerção zumba en nosotros
institucionais formais. Certamente, muitas escolas podem como el violón profundo:
causar um grande estrago, merecendo portanto, totalmente,
as severas críticas de Martí, que as chamou de “formidáveis Essas linhas foram escritas há setenta anos, em 1933,
prisões”. Mas nem mesmo os piores grilhões têm como quando Hitler conquistou o poder na Alemanha. Mas elas
predominar uniformemente. Os jovens podem encontrar falam hoje a todos nós com maior intensidade do que em
alimento intelectual, moral e artístico noutros lugares. qualquer época anterior. Elas nos convidam a “ouvir as leis
Pessoalmente, fui muito afortunado por, aos oito anos de atenta e fielmente” e a proclamá-las sonora e claramente por
idade, contar com um professor notável. Não na escola, toda parte. Porque hoje está em jogo nada menos do que
mas quase por acaso. Ele tem sido meu companheiro desde a própria sobrevivência da humanidade. Nenhuma prática
então, todos os dias. Seu nome é Áttila József: um gigante não educacional formal pode extinguir a duradoura validade
da literatura mundial. Aqueles que leram a epígrafe do meu e o poder de tais influências.
livro, Para além do capital*, já conhecem o seu nome. Mas Sim, “a aprendizagem é a nossa própria vida”, como
permitam-me citar, em espanhol, algumas linhas de outro Paracelso afirmou há cinco séculos, e também muitos outros
dos seus grandes poemas, escolhido para epígrafe do meu que seguiram seu caminho, mas que talvez nunca tenham
livro O desafio e o fardo do tempo histórico**. sequer ouvido seu nome. Mas para tornar essa verdade algo
óbvio, como deveria ser, temos de reivindicar uma educação
Ni Dios ni la mente, sino plena para toda a vida, para que seja possível colocar em
el carbón, el hierro y el petróleo, perspectiva a sua parte formal, a fim de instituir, também
la materia real nos ha creado aí, uma reforma radical. Isso não pode ser feito sem desa-
echândonos hirvientes y violentos fiar as formas atualmente dominantes de internalização,
en los moldes de esta fortemente consolidadas a favor do capital pelo próprio
sociedad horrible, sistema educacional formal. De fato, da maneira como estão
para afincarnos, por la humanidad, as coisas hoje, a principal função da educação formal é agir
en el eterno suelo.
como um cão de guarda ex-officio e autoritário para induzir
Tras los sacerdotes, los soldatos y los burgueses, um conformismo generalizado em determinados modos de
al fin nos hemos vuelto fieles internalização, de forma a subordiná-los às exigências da
oidores de las leyes: ordem estabelecida. O fato de a educação formal não poder
* São Paulo, Boitempo, 2002. (N. E.) 2? Atila József, A/ borde de la cindad (A város peremén), traduzido para
** São Paulo, Boitempo, 2007. (N. E.) - o espanhol por Fayad Jamís.
56 A educação para além do capital István Mészáros 57
ter êxito na criação de uma conformidade universal não altera bito educacional formal. A “contraconsciência” adquiriu
o fato de, no seu todo, ela estar orientada para aquele fim. assim um significado positivo. Relativamente ao passado,
Os professores e alunos que se rebelam contra tal desígnio Constantino assinalou que
fazem-no com a munição que adquiriram tanto dos seus
companheiros rebeldes, dentro do domínio formal, quanto a desde seu início, a colonização espanhola operava mais através
partir da área mais ampla da experiência educacional “desde da religião do que pela força, afetando portanto, profunda-
a juventude até a velhice”. mente, a consciência. [...] A modelagem de consciências no
Necessitamos, então, urgentemente, de uma atividade interesse do controle colonial seria repetida noutro plano pelos
americanos, que após uma década de dura repressão operavam
de “contrainternalização”, coerente e sustentada, que não
de modo similar através da consciência, usando dessa vez a
se esgote na negação — não importando quão necessário
educação e outras instituições culturais.”
isso seja como uma fase nesse empreendimento — e que
defina seus objetivos fundamentais, como a criação de uma E ele [Constantino] deixou claro que a constituição de
alternativa abrangente concretamente sustentável ao que já uma contraconsciência descolonizada envolvia diretamente
existe. Há cerca de trinta anos, editei e apresentei um vo-
as massas populares no empreendimento crítico. Eis como
lume de ensaios do notável historiador e pensador político ele definia a “filosofia de libertação” que advogava:
filipino Renato Constantino. Na época, ele era mantido
sob as mais rígidas restrições autoritárias do regime cliente Em si, ela é algo em desenvolvimento, dependendo do
dos Estados Unidos, encabeçado pelo “general” Marcos. A aumento da conscientização. [...] Não é contemplativa, é
certa altura, ele conseguiu passar-me a mensagem de que ativa e dinâmica e abrange a situação objetiva, assim como
gostaria que o volume se intitulasse Neo-Colonial Identity a reação subjetiva das pessoas envolvidas. Não pode ser uma
and Counter-Consciousness [A identidade neocolonial e a tarefa de um grupo selecionado, mesmo que esse grupo se
contraconsciência]?2, nome com que de fato o livro mais veja motivado pelos melhores interesses do povo. Precisa da
tarde apareceu. Totalmente ciente do impacto escraviza- participação da “espinha dorsal da nação ”?*
dor da internalização da consciência colonial no seu país,
Constantino tentou sempre dar ênfase à tarefa histórica de Em outras palavras, a abordagem educacional defendida
produzir um sistema de educação alternativo e duradouro, por ele tinha de adotar a totalidade das práticas político-
completamente à disposição do povo, muito além do âm- -educacional-culturais, na mais ampla concepção do que seja
uma transformação emancipadora. É desse modo que uma
contraconsciência, estrategicamente concebida como alter-
2 Renato Constantino, Neo-colonial identity and counter-counsciousness:
essays on cultural decolonization (Londres, The Merlin Press, 1978).
Nos Estados Unidos, publicado por M. E. Sharpe, Nova York, White 2 Ibidem, p. 20-1.
Plains, 1978. * Ibidem, p. 23.
58 Aeducação para além do capital István Mészáros 59
nativa necessária à internalização dominada colonialmente, lógica do capital, de imposição de conformidade, e em vez disso
poderia realizar sua grandiosa missão educativa. mover-se em direção a um intercâmbio ativo e efetivo com
De fato, o papel dos educadores e sua correspondente res- práticas educacionais mais abrangentes. Eles (os princípios)
ponsabilidade não poderiam ser maiores. Pois, como José Martí precisam muito um do outro. Sem um progressivo e cons-
deixou claro, a busca da cultura, no verdadeiro sentido do ter- ciente intercâmbio com processos de educação abrangentes
mo, envolve o mais alto risco, por ser inseparável do objetivo como “a nossa própria vida”, a educação formal não pode
fundamental da libertação. Ele insistia que “ser cultos es el realizar as suas muito necessárias aspirações emancipadoras.
único modo de ser libres”. E resumia de uma bela maneira a Se, entretanto, os elementos progressistas da educação
razão de ser da própria educação: “Educar es depositar en cada formal forem bem-sucedidos em redefinir a sua tarefa num
hombre toda la obra humana que le ha antecedido; es hacer a espírito orientado em direção à perspectiva de uma alterna-
cada hombre resumen del mundo viviente hasta el día en que tiva hegemônica à ordem existente, eles poderão dar uma
vive...”2, Isso é quase impossível dentro dos estreitos limites contribuição vital para romper a lógica do capital, não só
da educação formal, tal como ela está constituída em nossa no seu próprio e mais limitado domínio como também na
época, sob todo tipo de severas restrições. O próprio Martí sociedade como um todo.
percebeu que todo o processo de educar deveria ser refeito sob
todos os aspectos, do começo até um fim sempre em aberto,
de modo a transformar a “formidável prisão” num lugar de A educação como “transcendência positiva
emancipação e de realização genuína. Foi por isso que ele, da autoalienação do trabalho”
por sua conta, também escreveu e publicou, em 1889, um
Vivemos sob condições de uma desumanizante alienação e de
periódico mensal para os jovens, La Edad de Oro*.
uma subversão fetichista do real estado de coisas dentro da cons-
Esse é o espírito em que todas as dimensões da educação
ciência (muitas vezes também caracterizada como “reificação”)
podem ser reunidas. Dessa forma, os princípios orientadores
porque o capital não pode exercer suas funções sociais metabólicas
da educação formal devem ser desatados do seu tegumento da
de ampla reprodução de nenhum outro modo. Mudar essas con-
dições exige uma intervenção consciente em todos os domínios
? Citado em Jorge Lezcano Pérez, Introdução a José Martí: 150 Ani- e em todos os níveis da nossa existência individual e social. É
versario (Brasília, Casa Editora da Embaixada de Cuba no Brasil, por isso que, segundo Marx, os seres humanos devem mudar
2003), p. 8. “completamente as condições da sua existência industrial e
26 A intenção de Martí era que esse fosse um projeto progressivo; não
política, e, consequentemente, toda a sua maneira de ser".
foi por sua culpa que apenas quatro números pudessem ser publica-
dos, por falta de apoio financeiro. Os quatro números estão agora
reproduzidos no volume 18 das Obras completas de José Martí, cit.,
p. 299-503. É impossível ler hoje a preocupação expressa nestas ” Karl Marx, The poverty of philosophy (Londres, Lawrence and Wishart,
páginas sem ficar profundamente comovido. Ss. d.), Pp. 123.
60 A educação para além do capital István Mészáros 61
Marx também enfatizou o fato de que — se estivermos à “racionalidade” de regressar às “práticas testadas” do status
procura do ponto arquimediano a partir do qual as contradi- quo ante, que certamente sobreviverão nas dimensões não
ções mistificadoras da nossa ordem social podem ser tornadas reestruturadas da ordem anterior.
tanto inteligíveis como superáveis — encontramos na raiz de É aqui que a educação — no sentido mais abrangente do
todas as variedades de alienação a historicamente revelada a/ze- termo, tal como foi examinado anteriormente — desempenha
nação do trabalho: um processo de autoalienação escravizante. um importante papel. Inevitavelmente, os primeiros passos de
Mas, precisamente porque estamos preocupados com um uma grande transformação social na nossa época envolvem
processo histórico, imposto não por uma ação exterior mítica a necessidade de manter sob controle o estado político
de predestinação metafísica (caracterizada como o inevitável hostil que se opõe, e pela sua própria natureza deve se opor, a
“dilema humano”?), tampouco por uma “natureza huma- qualquer ideia de uma reestruturação mais ampla da socie-
na” imutável — modo como muitas vezes esse problema é dade. Nesse sentido, a negação radical de toda a estrutura de
tendenciosamente descrito — mas pelo próprio trabalho, é comando político do sistema estabelecido deve afirmar-se,
possível superar a alienação com uma reestruturação radical na sua inevitável negatividade predominante, na fase inicial
das nossas condições de existência há muito estabelecidas e, da transformação a que se vise. Mas, mesmo nessa fase, e na
por conseguinte, de “toda a nossa maneira de ser”. verdade antes da conquista do poder político, a negação ne-
Consequentemente, a necessária intervenção consciente cessária só é adequada para o papel assumido se for orientada
no processo histórico, orientada pela adoção da tarefa de efetivamente pelo alvo global da transformação social visada,
superar a alienação por meio de um novo metabolismo como uma bússola para toda a caminhada. Portanto, desde o
reprodutivo social dos “produtores livremente associados”, início o papel da educação é de importância vital para romper
esse tipo de ação estrategicamente sustentada não pode ser com a internalização predominante nas escolhas políticas
apenas uma questão de negação, não importa quão radical. circunscritas à “legitimação constitucional democrática” do
Pois, na visão de Marx, todas as formas de negação per- Estado capitalista que defende seus próprios interesses. Pois
manecem condicionadas pelo objeto da sua negação. E, de também essa “contrainternalização” (ou contraconsciência)
fato, é pior do que isso. Como a amarga experiência his- exige a antecipação de uma visão geral, concreta e abrangen-
tórica nos demonstrou amplamente também no passado te, de uma forma radicalmente diferente de gerir as funções
recente, a inércia condicionadora do objeto negado tende a globais de decisão da sociedade, que vai muito além da ex-
acrescer poder com o passar do tempo, impondo primeiro propriação, há muito estabelecida, do poder de tomar todas
a busca de “uma linha de menor resistência” e subse- as decisões fundamentais, assim como das suas imposições
quentemente — com uma cada vez maior intensidade — a sem cerimônia aos indivíduos, por meio de políticas como
uma forma de alienação por excelência na ordem existente.
Contudo, a tarefa histórica que temos de enfrentar é
28 “Estamos condenados ao vale das lágrimas”, numa versão; e, na outra,
“estamos condenados à angústia da liberdade”.
incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo.
62 A educação para além do capital István Mészáros 63
O conceito para além do capital é inerentemente concreto. variações “pós-modernas”, a rejeição apriorística das chama-
Ele tem em vista a realização de uma ordem social meta- das grandes narratives em nome de petits récits idealizados
bólica que sustente concretamente a si própria, sem nenhuma arbitrariamente — é na realidade apenas uma forma pecu-
referência autojustificativa para os males do capitalismo. Deve liar de rejeitar, sem uma análise adequada, a possibilidade
ser assim porque a negação direta das várias manifestações de de se ter qualquer sistema rival, e uma forma igualmente
alienação é ainda condicional naquilo que ela nega, e portanto apriorística de eternizar o sistema capitalista. O objeto real
permanece vulnerável em virtude dessa condicionalidade. da argumentação reformista é, de forma especialmente
A estratégia reformista de defesa do capitalismo é de mistificadora, o sistema dominante como tal, e não as partes,
fato baseada na tentativa de postular uma mudança gradual quer do sistema rejeitado quer do defendido, não obstante
na sociedade através da qual se removem defeitos específicos, o alegado zelo reformista explicitamente declarado pelos
de forma a minar a base sobre a qual as reivindicações de proponentes da “mudança gradual”??. O inevitável fracasso
um sistema alternativo possam ser articuladas. Isso é factível em revelar a verdadeira preocupação do reformismo decorre
somente numa teoria tendenciosamente fictícia, uma vez da sua incapacidade de sustentar a validade atemporal da or-
que as soluções preconizadas, as “reformas”, na prática são dem política e socioeconômica estabelecida. É, na realidade,
estruturalmente irrealizáveis dentro da estrutura estabelecida totalmente inconcebível sustentar a validade atemporal da
de sociedade. Dessa forma torna-se claro que o objeto real do ordem política socioeconomicamente estabelecida. Na rea-
reformismo não é de forma alguma aquele que ele reivindica lidade, é completamente inconcebível sustentar a validade
para si próprio: a verdadeira solução para os inegáveis defeitos atemporal e a permanência de qualquer coisa criada histori-
específicos, mesmo que sua magnitude seja deliberadamente camente. É isso que torna inevitável, em todas as variedades
minimizada, e mesmo que o modo planejado para lidar com sociopolíticas do reformismo, tentar desviar a atenção das
eles seja reconhecidamente (mas de forma a isentar a própria
responsabilidade) muito lento. O único termo que de fato
tem um sentido objetivo nesse discurso é “gradual”, e mes- 2º A polêmica de Bernstein contra Marx é absolutamente caricatural. Em
mo este é abusivamente expandido dentro de uma estratégia vez de travar uma discussão teórica adequada com Marx, Bernstein
global, o que não pode ocorrer. Pois os defeitos específicos prefere seguir outro caminho, lançando-lhe um insulto gratuito, ao
condenar, sem nenhum fundamento, a “armação dialética” de Marx —
do capitalismo não podem sequer ser observados superficial-
e de Hegel. Como se a transformação dos graves problemas do
mente, quanto mais ser realmente resolvidos sem que se faça raciocínio dialético num insulto desqualificante pudesse, por si
referência ao sistema como um todo, que necessariamente os só, solucionar as importantes questões políticas e sociais em jogo.
produz e constantemente os reproduz. O leitor interessado pode encontrar uma discussão razoavelmente
À recusa reformista em abordar as contradições do sis- detalhada dessa controvérsia no capítulo 8 de O poder da ideologia
(cit.). A expressão “grandes narrativas” na pós-modernidade é usada
tema existente, em nome de uma presumida legitimidade de
analogamente ao insulto desqualificador de Bernstein contra a con-
lidar apenas com as manifestações particulares — ou, nas suas denada “armação dialética”.
64 A educação para além do capital István Mészáros 65
determinações sistêmicas — que no final das contas definem Tendo em vista o fato de que o processo de reestrutura-
o caráter de todas as questões vitais — para discussões mais ção radical deve ser orientado pela estratégia de uma reforma
ou menos aleatórias sobre efeitos específicos enquanto se concreta e abrangente de todo o sistema no qual se encontram
deixa a sua incorrigível base causal não só incontestavelmente os indivíduos, o desafio que deve ser enfrentado não tem
permanente como também omissa. paralelos na história. Pois o cumprimento dessa nova tarefa
Tudo isso permanece escondido pela própria natureza histórica envolve simultaneamente a mudança qualitativa das
do discurso reformista. E precisamente por causa do caráter condições objetivas de reprodução da sociedade, no sentido
mistificador de tal discurso, cujos elementos fundamentais de reconquistar o controle total do próprio capital — e não
muitas vezes permanecem escondidos até para os seus prin- simplesmente das personificações do capital que afirmam os
cipais ideólogos, não tem nenhuma importância para os fiéis imperativos do sistema como capitalistas dedicados — e a trans-
desse credo que num determinado momento da história — formação progressiva da consciência em resposta às condições
como com a chegada do New Labour na Grã-Bretanha necessariamente cambiantes. Portanto, o papel da educação é
e seus partidos irmãos à Alemanha, à França, à Itália e a soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e
outros países — a própria ideia de qualquer reforma social adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução,
significativa seja completamente abandonada. Contudo, as como para a automudança consciente dos indivíduos chamados
reivindicações de um pretenso “avanço” (que não levam a a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radi-
nenhum lugar realmente diferente) são dissimuladamente calmente diferente. É isso que se quer dizer com a concebida
reafirmadas. Assim, mesmo as antigas diferenças entre os “sociedade de produtores livremente associados”. Portanto,
principais partidos são convenientemente obliteradas no não é surpreendente que na concepção marxista a “efetiva
agora dominante sistema, de estilo americano, de “dois transcendência da autoalienação do trabalho” seja caracterizada
partidos” (um partido), não importando quantos “subparti- como uma tarefa inevitavelmente educacional.
dos” possamos ainda encontrar em determinados países. O A esse respeito, dois conceitos principais devem ser postos
que permanece constante é a defesa mais ou menos oculta em primeiro plano: a universalização da educação e a universa-
das atuais determinações sistêmicas da ordem existente. O lização do trabalho como atividade humana autorrealizadora.
pernicioso axioma que assevera “não haver alternativa” — De fato, nenhuma das duas é viável sem a outra. Tampouco é
referindo-se não apenas a determinadas instituições políticas possível pensar na sua estreita inter-relação como um proble-
mas à ordem social estabelecida em geral — é tão aceitável para ma para um futuro muito distante. Ele surge “aqui e agora”,
a ex-primeira-ministra do Partido Conservador britânico, e é relevante para todos os níveis e graus de desenvolvimento
Margaret Thatcher (que o tutelou e popularizou), como para socioeconômico. Encontramos um significativo exemplo
o chamado New Labour do atual primeiro-ministro Tony disso num discurso de Fidel Castro em 1983, relativo aos
Blair, assim como para muitos outros no espectro político problemas que Cuba teve de enfrentar ao aceitar o impera-
parlamentar mundial. tivo da universalização da educação, apesar das dificuldades
66 A educação para além do capital István Mészáros 67
aparentemente proibitivas não só em termos econômicos, também demonstraram que não há motivo para esperar a
mas também em conseguir os professores necessários. Foi chegada de um “período favorável”, num futuro indefinido.
assim que ele resumiu o problema: Um avanço pelas sendas de uma abordagem à educação e
à aprendizagem qualitativamente diferente pode e deve co-
A la vez habíamos Ilegado ya a una situación en que el estudio meçar “aqui e agora”, tal como indicado antes, se quisermos
se universalizaba. Y para universalizar el estudio en un país efetivar as mudanças necessárias no momento oportuno.
subdesarrollado y no petrolero — digamos —, desde el punto
Não pode haver uma solução efetiva para a autoa-
de vista económico, era necesario universalizar el trabajo.
lienação do trabalho sem que se promova, consciencio-
Pero aunque fuésemos petroleros, habría sido altamente
conveniente universalizar el trabajo, altamente formativo
samente, a universalização conjunta do trabalho e da
en todos los sentidos, y altamente revolucionario. Que por educação. Contudo, não poderia existir uma possibili-
algo estas ideas fueron planteadas hace mucho tiempo por dade real para isso no passado, devido à subordinação
Marx y por Martí.º estrutural-hierárquica e à dominação do trabalho. Nem
mesmo quando alguns grandes pensadores tentaram
As extraordinárias realizações educacionais em Cuba, conceituar esses problemas dentro de um espírito mais
desde a eliminação rápida e total do analfabetismo até os progressista. Paracelso, um modelo para o Fausto de
mais elevados níveis de pesquisa científica criativa”!- num Goethe, tentou universalizar o trabalho e a aprendizagem
país que tinha de lutar não só contra as enormes limitações da seguinte forma:
econômicas do subdesenvolvimento como também contra
o sério impacto de 45 anos de bloqueio hostil —, somente embora, no que se refere a seu corpo, o homem tenha
são compreensíveis dentro desse quadro. Essas conquistas sido criado por inteiro, ele não foi criado assim no que
se refere à sua “arte”. Todas as artes lhe foram dadas, mas
não numa forma imediatamente reconhecível; ele deve
%0 Fidel Castro, José Martí: el autor intelectual, cit., p. 224.
descobri-las pela aprendizagem. [...] A maneira adequa-
31 Até o governo hostil dos Estados Unidos teve de reconhecer essa
da reside no trabalho e na ação, em fazer e produzir; o
proeza de um modo capenga: concedeu a uma empresa farmacêutica
homem perverso nada faz, mas fala muito. Não devemos
americana na Califórnia o direito de concluir um acordo comercial
multimilionário com Cuba, em julho de 2004, para a distribuição julgar um homem pelas suas palavras, mas pelo seu cora-
de uma droga anticancerígena capaz de salvar vidas, suspendendo ção. O coração fala através de palavras apenas quando elas
assim, por causa disso, uma de suas regras do selvagem bloqueio. são confirmadas pelas ações. [...] Ninguém vê o que está
Obviamente, mesmo assim, o governo dos Estados Unidos manteve nele escondido, mas somente o que o seu trabalho revela.
a sua hostilidade ao negar o direito de transferir em “dinheiro vivo” Portanto, o homem deveria trabalhar continuamente para
os fundos envolvidos, obrigando, em vez disso, a sua própria empresa descobrir o que Deus lhe deu.”
a negociar algum tipo de acordo de “troca” (barter), fornecendo
produtos agrícolas ou industriais americanos em troca da pioneira
medicina cubana. 32 Paracelso, Selected Writings, cit., p. 176-7, 183, 189.
68 A educação para além do capital István Mészáros 69
De fato, Paracelso afirmava que o trabalho (Arbeit) devia ser Na concepção de educação há muito dominante, os
o princípio geral ordenador da sociedade. Ele chegou mesmo governantes e os governados, assim como os educacional-
ao ponto de defender a expropriação da fortuna dos ricos mente privilegiados (sejam esses indivíduos empregados
ociosos, de forma a compeli-los a ter uma vida produtiva?. como educadores ou como administradores no controle
Como podemos ver, a ideia de universalizar o trabalho das instituições educacionais) e aqueles que têm de ser
e a educação, em sua indissociabilidade, é muito antiga em educados, aparecem em compartimentos separados, qua-
nossa história. É portanto muito significativo que essa ideia se estanques. Um bom exemplo dessa visão é expresso no
tenha sobrevivido apenas como uma ideia bastante frus- verbete “educação” da renomada Encyclopaedia Britannica.
trada, dado que sua realização pressupõe necessariamente E diz o seguinte:
a igualdade substancial de todos os seres humanos. O grave
fato de a desumanizante jornada de trabalho dos indivíduos A ação do Estado moderno não pode se limitar à educação
representar também a maior parte do seu tempo de vida teve elementar. O princípio da “carreira aberta ao talento” não
é mais um tema para uma teoria humanitária abstrata, uma
de ser desumanamente ignorado. As funções controladoras
aspiração fantástica de sonhadores revolucionários; para as
da reprodução metabólica social tiveram de ser separadas e grandes comunidades industriais do mundo moderno, é
postas em oposição à esmagadora maioria da humanidade, convincente como necessidade prática, imposta pela feroz
à qual se destinou a execução de tarefas subalternas num concorrência internacional que prevalece nas artes e nas
determinado sistema político e socioeconômico. No mesmo atividades da vida. A nação que não quiser fracassar na luta
espírito, não só o controle do trabalho estruturalmente su- pelo êxito comercial, com tudo o que isso implica para a vida
bordinado, mas também a dimensão do controle da educa- nacional e para a civilização, deve cuidar que suas indústrias
ção tinham de ser mantidos num compartimento separado, sejam supridas com uma oferta constante de trabalhadores
sob o domínio da personificação do capital na nossa época. adequadamente dotados, tanto em termos de inteligência
É impossível mudar a relação de subordinação e dominação geral como de treinamento técnico. Também no terreno
político, a crescente democratização das instituições torna
estrutural sem a percepção da verdadeira — substantiva e
necessário que o estadista prudente trate de proporcionar
não apenas igualdade formal (que é sempre profundamente
uma vasta difusão de conhecimentos e o cultivo de um alto
afetada, se não completamente anulada, pela dimensão padrão de inteligência na população, especialmente nos gran-
substantiva real) — igualdade. É por isso que, apenas dentro des Estados imperiais, os quais confiam as mais significativas
da perspectiva de ir para além do capital, o desafio de uni- questões do mundo político ao julgamento pela voz popular.
versalizar o trabalho e a educação, em sua indissolubilidade,
surgirá na agenda histórica.
33 Ver Paracelso, Leben und Lebensiweisheit in Selbstzeugnissen (Leipzig, % Vero artigo sobre “Educação” na 13º edição (1926) da Encyclopaedia
Reclam, 1956), p. 134. “Britannica.
70 A educação para além do capital István Mészáros 71
Mesmo nos seus próprios termos de referência, esse tão estupido e fleumático que mais se assemelhe, no seu quadro
artigo acadêmico — sem dúvida impressionante em sua mental, a um boi. [...] O operário que é mais adequado para o
investigação histórica — é bastante deficiente devido a carregamento de lingotes é incapaz de entender a real ciência
razões ideológicas claramente identificáveis. Pois exagera que regula a execução desse trabalho. Ele é tão estúpido, que a
enormemente os efeitos benéficos sobre a educação da palavra “percentagem” não tem qualquer significado para ele
classe trabalhadora advindos da “concorrência internacional
feroz” de capitais nacionais. Um instigante livro de Harry De fato, muito científico! Quanto à proposição segun-
Braverman, Trabalho e capital monopolista: a degradação do a qual “uma vasta difusão de conhecimento e o cultivo
do trabalho no século XX, faz uma avaliação incompara- de um alto padrão de inteligência” é o objetivo adotado de
velmente melhor das forças alienantes e brutalizantes que bom grado pelo moderno Estado capitalista — especialmente
incidem sobre o trabalhador na moderna empresa capita- para os grandes estados imperiais que confiam os assuntos
lista. Elas projetam uma luz negativa e penetrante sobre a mais importantes da política mundial ao julgamento pela voz
deturpação da “luta pelo sucesso empresarial”, acerca do popular — ela é bastante ridícula e obviamente de caráter
qual a Encyclopaedia Britannica postula um impacto “ci- demasiadamente apologético para ser considerada, mesmo
vilizador”, quando muitas vezes, na realidade, o resultado por um momento, como um argumento sério a favor das
necessário é diametralmente oposto. E mesmo em referência causas com que se reivindica a melhoria da educação, de ins-
às próprias empresas industriais, a chamada “administração piração democrática, e politicamente lúcidas, sob condições
científica” de Frederic Winslow Taylor revela o segredo de de domínio do capital sobre a sociedade.
quão elevados devem ser os requisitos educacionais/intelec- A educação para além do capital visa a uma ordem social
tuais nas empresas capitalistas para que elas conduzam uma qualitativamente diferente. Agora não só é factível lançar-se
operação bem-sucedida, competitivamente. F. W. Taylor, pelo caminho que nos conduz a essa ordem como o é tam-
o fundador desse sistema de controle de gestão autoritário, bém necessário e urgente. Pois as incorrigíveis determinações
assim escreveu, com um indisfarçável cinismo: destrutivas da ordem existente tornam imperativo contrapor
aos irreconciliáveis antagonismos estruturais do sistema do
Um dos primeiros requisitos para que um homem seja apto a capital uma alternativa concreta e sustentável para a regulação
lidar com ferro fundido como ocupação regular é que ele seja da reprodução metabólica social, se quisermos garantir as
% [Rio de Janeiro, Zahar, 1977.] Num documentário televisivo sobre a % FW. Taylor, Scientific management (Nova York, Harper & Row,
linha de montagem de automóveis em Detroit, perguntava-se
8 a um 1947), p. 29 [ed. bras.: Princípios de administração científica, São
grupo de trabalhadores quanto tempo eles demoravam para aprender Paulo, Atlas, 1990]. A esse respeito, ver capítulos 2 e 3 de O poder da
a sua tarefa. Eles olhavam uns para os outros e começavam a rir, res- ideologia (cit.), especialmente as seções 2.1: “Expansão do pós-guerra
pondendo com um indisfarçável desprezo: “oito minutos; é só isso!”. - e 'pós-ideologia”, e 3.1: “A ideologia administrativa e o Estado”.
72 A educação para além do capital István Mészáros 73
condições elementares da sobrevivência humana. O papel através da liberdade substantiva e da igualdade, numa or-
da educação, orientado pela única perspectiva efetivamente dem social reprodutiva conscienciosamente regulada pelos
viável de ir para além do capital, é absolutamente crucial indivíduos associados. É também inseparável dos valores
para esse propósito. escolhidos pelos próprios indivíduos sociais, de acordo com
A sustentabilidade equivale ao controle consciente do: suas reais necessidades, em vez de lhes serem impostos — sob
processo de reprodução metabólica social por parte de produ- forma de apetites totalmente artificiais, pelos imperativos
tores livremente associados, em contraste com a insustentável reificados da acumulação lucrativa do capital, como é o caso
e estruturalmente estabelecida característica de adversários” e hoje. Nenhum desses objetivos emancipadores é concebível
a destrutibilidade fundamental da ordem reprodutiva do ca- sem a intervenção mais ativa da educação, entendida na sua
pital. É inconcebível que se introduza esse controle consciente orientação concreta, no sentido de uma ordem social que vá
dos processos sociais — uma forma de controle, que por acaso para além dos limites do capital.
também é a única forma factível de autocontrole: o requisito Vivemos numa ordem social na qual mesmo os requi-
necessário para os produtores serem associados livremente— sem sitos mínimos para a satisfação humana são insensivelmente
ativar plenamente os recursos da educação no sentido mais negados à esmagadora maioria da humanidade, enquanto os
amplo do termo. índices de desperdício assumiram proporções escandalosas,
O grave e insuperável defeito do sistema do capital em conformidade com a mudança da reivindicada destrui-
consiste na alienação de mediações de segunda ordem que ção produtiva, do capitalismo no passado, para a realidade,
ele precisa impor a todos os seres humanos, incluindo-se hoje predominante, da produção destrutiva. As gritantes
as personificações do capital. De fato, o sistema do capital desigualdades sociais, atualmente em evidência, e ainda mais
não conseguiria sobreviver durante uma semana sem as suas pronunciadas no seu desenvolvimento revelador, são bem
mediações de segunda ordem: principalmente o Estado, a ilustradas pelos seguintes números:
relação de troca orientada para o mercado, e o trabalho,
em sua subordinação estrutural ao capital. Elas (as media- Segundo as Nações Unidas, no seu Relatório sobre o Desenvolvi-
ções) são necessariamente interpostas entre indivíduos e mento Humano, o 1% mais rico do mundo aufere tanta renda
indivíduos, assim como entre indivíduos e suas aspirações, quanto os 57% mais pobres. A proporção, no que se refere aos
rendimentos, entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres
virando essas de “cabeça para baixo” e “pelo avesso”, de
no mundo aumentou de 30 para 1 em 1960, para 60 para 1
forma a conseguir subordiná-los a imperativos fetichistas do
em 1990 e para 74 para 1 em 1999, e estima-se que atinja os
sistema do capital. Em outras palavras, essas mediações de se- 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 bilhões de pessoas
gunda ordem impõem à humanidade uma forma alienada de viviam com menos de dois dólares por dia, 840 milhões esta-
mediação. A alternativa concreta a essa forma de controlar vam subnutridos, 2,4 bilhões não tinham acesso a nenhuma
a reprodução metabólica social só pode ser a automediação, forma aprimorada de serviço de saneamento, e uma em cada
na sua inseparabilidade do autocontrole e da autorrealização seis crianças em idade de frequentar a escola primária não estava
74 A educação para além do capital István Mészáros 75
na escola. Estima-se que cerca de 50% da força de trabalho não de acordo com os requisitos em mudança dos quais eles são
agrícola esteja desempregada ou subempregada.” agentes ativos. À educação, nesse sentido, é verdadeiramente
uma educação continuada. Não pode ser “vocacional? (o que
O que está em jogo aqui não é simplesmente a defi- em nossas sociedades significa o confinamento das pessoas
ciência contingente dos recursos econômicos disponíveis, a envolvidas a funções utilitaristas estreitamente predeterminadas,
ser superada mais cedo ou mais tarde, como já foi desneces- privadas de qualquer poder decisório), tampouco “geral” (que
sariamente prometido, e sim a inevitável deficiência estrutural deve ensinar aos indivíduos, de forma paternalista, as “habilidades
de um sistema que opera através dos seus círculos viciosos de do pensamento”). Essas noções são arrogantes presunções de uma
desperdício e de escassez. É impossível romper esse círculo concepção baseada numa totalmente insustentável separação das
vicioso sem uma intervenção efetiva na educação, capaz, dimensões prática e estratégica. Portanto, a “educação continua-
simultaneamente, de estabelecer prioridades e de definir as da”, como constituinte necessário dos princípios reguladores de
reais necessidades, mediante plena e livre deliberação dos uma sociedade para além do capital, é inseparável da prática
indivíduos envolvidos. Sem que isso ocorra, a escassez pode significativa da autogestão. Ela é parte integral desta última,
ser — e será — reproduzida numa escala sempre crescente, como representação no início da fase de formação na vida dos
em conjunto com uma geração de necessidades artificiais indivíduos, e, por outro lado, no sentido de permitir um efe-
absolutamente devastadora, como tem ocorrido atualmente, tivo feedback dos indivíduos educacionalmente enriquecidos,
a serviço da insanamente orientada autoexpansão do capital com suas necessidades mudando corretamente e redefinidas
e de uma contraproducente acumulação. de modo equitativo, para a determinação global dos princípios
Uma concepção oposta e efetivamente articulada numa orientadores e objetivos da sociedade.
educação para além do capital não pode ser confinada a um Nosso dilema histórico é definido pela crise estrutural do
limitado número de anos na vida dos indivíduos mas, devido sistema do capital global. Está na moda falar, com total auto-
a suas funções radicalmente mudadas, abarca-os a todos. A complacência, sobre o grande êxito da globalização capitalista.
“autoeducação de iguais” e a “autogestão da ordem social repro- Um livro recentemente publicado e propagandeado de modo
dutiva” não podem ser separadas uma da outra. À autogestão — devotado tem como título: Why globalization works**. Con-
pelos produtores livremente associados — das funções vitais tudo, o autor, que é o principal comentarista econômico do
do processo metabólico social é um empreendimento progres- Financial Times de Londres, esquece-se de fazer a pergunta
sivo — e inevitavelmente em mudança. O mesmo vale para as realmente importante: Ela funciona para quem? Se é que fun-
práticas educacionais que habilitem o indivíduo a realizar essas ciona. Certamente funciona, por enquanto (mas não tão bem),
funções na medida em que sejam redefinidas por eles próprios, para os tomadores de decisão do capital transnacional, e não
” Mingi Li, “After Neoliberalism: Empire, Social Democracy, or %8 Ver Martin Wolf, Why globalization works (New Haven, Yale Uni-
Socialism?”, Monthly Review, janeiro 2004, p. 21. versity Press, 2004).
76 A educação para além do capital István Mészáros 77
para a esmagadora maioria da humanidade, que tem de sofrer social emancipadora e progressiva em curso. Ou ambas têm
as consequências. E nenhuma integração jurisdicional advoga- êxito e se sustentam, ou fracassam juntas. Cabe a nós todos —
da pelo autor — isto é, em linguagem direta, o maior controle todos, porque sabemos muito bem que “os educadores
direto sobre um deplorável “grande número de Estados” por também têm de ser educados” — mantê-las de pé, e não
parte de umas poucas potências imperialistas, especialmente a deixá-las cair. As apostas são elevadas demais para que se
maior delas — vai conseguir remediar a situação. Na realidade, admita a hipótese de fracasso.
a globalização do capital não funciona nem pode funcionar. Nesse empreendimento, as tarefas imediatas e as suas
Pois não consegue superar as contradições irreconciliáveis e estruturas estratégicas globais não podem ser separadas ou
os antagonismos que se manifestam na crise estrutural global opostas umas às outras. O êxito estratégico é impensável
do sistema. A própria globalização capitalista é uma manifes- sem a realização das tarefas imediatas. Na verdade, a própria
tação contraditória dessa crise, tentando subverter a relação estrutura estratégica é a síntese global de inúmeras tarefas
causalefeito, na vã tentativa de curar alguns efeitos negativos imediatas, sempre renovadas e expandidas, e desafios. Mas
mediante outros efeitos ilusoriamente desejáveis, porque é es- a solução destes só é possível se a abordagem do imediato
truturalmente incapaz de se dirigir às suas causas. for orientada pela sintetização da estrutura estratégica. Os
A nossa época de crise estrutural global do capital é passos mediadores em direção ao futuro — no sentido da
também uma época histórica de transição de uma ordem única forma viável de automediação — só podem começar
social existente para outra, qualitativamente diferente. Es- do imediato, mas iluminados pelo espaço que ela pode, le-
sas são as duas características fundamentais que definem o gitimamente, ocupar dentro da estratégia global orientada
espaço histórico e social dentro do qual os grandes desafios pelo futuro que se vislumbra.
para romper a lógica do capital, e ao mesmo tempo tam-
bém para elaborar planos estratégicos para uma educação
que vá além do capital, devem se juntar. Portanto, a nossa
tarefa educacional é, simultaneamente, a tarefa de uma
transformação social, ampla e emancipadora. Nenhuma das
duas pode ser posta à frente da outra. Elas são inseparáveis.
À transformação social emancipadora radical requerida é
inconcebível sem uma concreta e ativa contribuição da
educação no seu sentido amplo, tal como foi descrito neste
texto. E vice-versa: a educação não pode funcionar suspensa no
ar. Ela pode e deve ser articulada adequadamente e redefinida
constantemente no seu inter-relacionamento dialético com
as condições cambiantes e as necessidades da transformação
EDUCAÇÃO:
O DESENVOLVIMENTO CONTÍNUO
DA CONSCIÊNCIA SOCIALISTA*
1
O papel da educação não poderia ser maior na tarefa de asse-
gurar uma transformação socialista plenamente sustentável.
A concepção de educação aqui referida — considerada não
como um período estritamente limitado da vida dos indiví-
duos, mas como o desenvolvimento contínuo da consciência
socialista na sociedade como um todo — assinala um afas-
tamento radical das práticas educacionais dominantes sob
o capitalismo avançado. É compreendida como a extensão
historicamente válida e a transformação radical dos grandes
ideais educacionais defendidos no passado mais remoto. Pois
esses ideais educacionais tiveram de ser não apenas minados
com o passar do tempo, mas ao final, completamente extin-
tos sob o impacto da alienação que avança cada vez mais e
da sujeição do desenvolvimento cultural em sua integridade
aos interesses cada vez mais restritivos da expansão do capital
e da maximização do lucro.
Não apenas Paracelso no século XVI, mas também Goe- avançado” pôde seguramente ordenar seus negócios de
the e Schiller! no fim do século XVIII e nas primeiras décadas modo a limitar o período de educação institucionalizada
do século XIX ainda acreditavam em um ideal educacional em uns poucos anos economicamente convenientes da vida
que poderia orientar e enriquecer humanamente os indivíduos dos indivíduos e mesmo fazê-lo de maneira discriminadora/
ao longo de toda a sua vida. Ao contrário, a segunda metade elitista. As determinações estruturais objetivas da “norma-
do século XIX foi já marcada pelo triunfo do utilitarismo e o lidade” da vida cotidiana capitalista realizaram com êxito o
século XX capitulou sem reservas também no campo educa- restante, a “educação” contínua das pessoas no espírito de
cional às concepções mais estreitas de “racionalidade instru- tomar como dado o ethos social dominante, internalizando
mental”. Quanto mais “avançada” a sociedade capitalista, mais “consensualmente”, com isso, a proclamada inalterabilidade
unilateralmente centrada na produção de riqueza reificada da ordem natural estabelecida. Eis porque mesmo os melho-
como um fim em si mesma e na exploração das instituições res ideais da educação moral de Kant e da educação estética
educacionais em todos os níveis, desde as escolas preparatórias de Schiller — que tinham a intenção de ser, para seus autores,
até as universidades — também na forma da “privatização” os antídotos necessários e possíveis da progressiva tendência
promovida com suposto zelo ideológico pelo Estado — para de alienação desumanizadora, contraposta pelos indivíduos
a perpetuação da sociedade de mercadorias. moralmente preocupados em sua vida pessoal à tendência
Não é surpreendente, pois, que o desenvolvimento criticada — foram condenados a permanecer para sempre no
tenha caminhado de mãos dadas com a doutrinação da es- reino das utopias educacionais irrealizáveis. Eles não poderiam
magadora maioria das pessoas com os valores da ordem social equiparar-se sob nenhum aspecto à realidade prosaica das
do capital como a ordem natural inalterável, racionalizada forças que impuseram com sucesso a todo custo o imperativo
e justificada pelos ideólogos mais sofisticados do sistema autoexpansivo fundamentalmente destrutivo do capital. Pois
em nome da “objetividade científica” e da “neutralidade de a tendência socioeconômica da alienação que tudo traga foi
valor”. As condições reais da vida cotidiana foram plenamen- suficientemente poderosa para extinguir sem deixar rastro,
te dominadas pelo ethos capitalista, sujeitando os indivídu- até mesmo os ideais mais nobres da época do Iluminismo.
os — como uma questão de determinação estruturalmente Nesse sentido, podemos ver que, embora o período
assegurada — ao imperativo de ajustar suas aspirações de de educação institucionalizada seja limitado sob o capita-
maneira conforme, ainda que não pudessem fugir à áspera lismo a relativamente poucos anos da vida dos indivíduos,
situação da escravidão assalariada. Assim, o “capitalismo a dominação ideológica da sociedade prevalece por toda a
sua vida, ainda que em muitos contextos essa dominação
não tenha de assumir preferências doutrinárias explícitas
! Vero capítulo 8 (“A educação para além do capital”) de O desafio e de valor. E isso torna ainda mais pernicioso o problema do
o fardo do tempo histórico (São Paulo, Boitempo, 2007) e o capítulo
domínio ideológico do capital sobre a sociedade como um
10 (CA alienação e a crise da educação”) de A teoria da alienação em
Marx (São Paulo, Boitempo, 2006), p. 263-82.
todo e, por certo, ao mesmo tempo sobre seus indivíduos
82 A educação para além do capital István Mészáros 83
convenientemente isolados. Quer os indivíduos particulares Uma vez que o significado real de educação, digno de seu
tenham ou não consciência disso, não podem sequer encon- preceito, é fazer os indivíduos viverem positivamente à altura
trar a mínima gota de “fundamento neutro de valor” em sua dos desafios das condições sociais historicamente em transfor-
sociedade, muito embora a explícita doutrinação ideológica mação — das quais são também os produtores mesmo sob as
lhes garanta de forma enganosa o oposto, pretendendo — e circunstâncias mais difíceis — todo sistema de educação orien-
convidando os indivíduos a se identificarem “autonoma- tado à preservação acrítica da ordem estabelecida a todo custo
mente” com essa pretensão — que eles sejam plenamente só pode ser compatível com os mais pervertidos ideais e valores
soberanos em sua escolha dos valores em geral, assim como educacionais. Eis porque, diferentemente da época do Ilumi-
se afirma que eles são consumidores soberanos das mercado- nismo, na fase ascendente das transformações capitalistas,
rias produzidas capitalisticamente, adquiridas com base nas que podia ainda produzir utopias educacionais nobres, como
escolhas soberanas nos supermercados controlados de modo as concepções de Kant e Schiller anteriormente referidas, a
cada vez mais monopolista. T'udo isso é uma parte integrante fase decadente da história do capital, que culmina na apologia
da educação capitalista pela qual os indivíduos particulares da destruição ilimitada levada a cabo pelo desenvolvimento
são diariamente e por toda parte embebidos nos valores da monopolista e imperialista no século XX e sua extensão no
sociedade de mercadorias, como algo lógico e natural. século XXI, teve de trazer consigo uma crise educacional an-
Assim, a sociedade capitalista resguarda com vigor não tes inconcebível, ao lado do culto mais agressivo e cínico do
apenas seu sistema de educação contínua, mas simultanea- contravalor. Este último inclui em nosso tempo as pretensões
mente também de doutrinação permanente, mesmo quando de supremacia racista, a horrenda presunção do “direito moral
a doutrinação que impregna tudo não parece ser o que é, de usar armas nucleares por prevenção e antecipação”, mesmo
por ser tratada pela ideologia vigente “consensualmente contra países que jamais tiveram armas nucleares, e a justi-
internalizada” como o sistema de crença positivo comparti- ficação mais hipócrita do imperialismo liberal supostamente
lhado de maneira legítima pela “sociedade livre” estabelecida mais “humano”, ainda que inevitavelmente destrutivo. Diz-se
e totalmente não objetável. Ademais, o que torna as coisas que esse novo imperialismo é correto e apropriado para nossas
ainda piores é que a educação contínua do sistema do capital condições pós-modernas: uma teoria vestida, em sua busca por
tem como cerne a asserção de que a própria ordem social respeitabilidade intelectual, com o esquematismo grotesco da
estabelecida não precisa de nenhuma mudança significati- pré-modernidade, modernidade, pós-modernidade, depois do
va. Precisa apenas de uma “regulação mais exata” em suas colapso ignominioso do imperialismo. Eis a concepção que
margens, que se deve alcançar pela metodologia idealizada vemos defender-se hoje, com toda a seriedade, pelos man-
do “pouco a pouco”. Por conseguinte, o significado mais darins indicados e realizadores políticos do próprio capital,
profundo da educação contínua da ordem estabelecida é a projetada como a estratégia necessária a ser imposta sobre os
imposição arbitrária da crença na absoluta inalterabilidade “Estados fracassados” peremptoriamente decretados como tal
de suas determinações estruturais fundamentais. e sobre o chamado “Eixo do Mal”.
84 Aeducação para além do capital István Mészáros 85
Essas ideias têm o intuito de ser princípios e valores emergente e do impacto negativo de algumas tendências já
orientadores estratégicos apropriados às nossas condições visíveis sobre o desenvolvimento pessoal dos indivíduos. Eles
históricas. São designadas para estabelecer os parâmetros o fizeram em nítido contraste com os ideólogos mais recentes
gerais no interior dos quais.os indivíduos devem agora do capital, que se recusam a ver qualquer coisa errada em
ser educados, de modo a possibilitar que os Estados ca- sua estimada sociedade.
pitalistas dominantes vençam a “luta ideológica” — um As maiores personagens do Iluminismo burguês eram
conceito repentinamente propagandeado em termos posi- favoráveis ao pleno desenvolvimento humanamente rea-
tivos com grande frequência, em agudo contraste com os lizador dos indivíduos particulares. Mas queriam ver sua
mitos felizes e liberais do “fim da ideologia” e do “fim da efetivação no interior da estrutura da sociedade capitalista
história” pregados e generosamente promovidos há pouco liberta de seus traços “prosaicos” ameaçadores e seus corolá-
tempo — sinônima da “guerra contra o terror”. Assim, é rios humanamente empobrecedores, incluindo o “deboche
difícil até mesmo imaginar uma degradação mais completa moral? contra o qual Adam Smith elevou sua eloquente
dos ideais educacionais, comparada ao passado mais dis- voz. Entretanto, enxergando o mundo do ponto de vista
tante do capital, do que hoje confrontamos ativamente. do capital, não puderam divisar a mudança radical exigida
E tudo isso é promovido em nosso tempo, com todos na ordem social como um todo para fazer prevalecer seus
os meios à disposição do sistema, em nome da “democracia e próprios ideais. Pois o ponto de vista do capital adotado por
liberdade”: palavras que condimentam em abundância os eles tornava impossível entrever a incompatibilidade estrutu-
discursos de presidentes e primeiros-ministros. Nada po- ral entre seus próprios ideais educacionais — aplicados aos
deria dispor com mais clareza a natureza pervertida da falsa indivíduos projetados, moral e esteticamente louváveis, de
consciência capitalista, plenamente complementada pela suas contraimagens utópicas — e a ordem social triunfante-
doutrinação ubíqua exercida de modo mais ou menos es- mente emergente.
pontâneo sobre os indivíduos em sua vida cotidiana, pela Não é possível destacar com suficiente intensidade o
sociedade de mercadorias. caráter vital do conceito de mudança na teoria educacional.
Pois ele estabelece obrigatoriamente o horizonte e a viabili-
z dade última (ou não) de todo o sistema de educação. Nesse
sentido, sob as condições históricas vigentes, a mudança
À concepção socialista da educação é qualitativamente diferente
visada pelas grandes personagens burguesas iluministas tinha
mesmo dos ideais educacionais mais nobres da burguesia ilus-
de permanecer caracteristicamente assimétrica. Pois, embora
trada, formulados na fase ascendente do desenvolvimento
fosse suficientemente radical em relação à denunciada ordem
capitalista. Pois essas concepções sofriam inevitavelmente os
feudal da sociedade dominante no antigo regime, com relação
limites impostos sobre seus criadores pelo fato de se identifi-
ao futuro, a concepção de mudança que eles defendiam só
carem com o ponto de vista do capital, ainda que assumissem
poderia se estender ao desenvolvimento educacional pessoal
uma postura crítica diante dos excessos da nova ordem
86 A educação para além do capital István Mészáros 87
dos indivíduos particulares, como um meio ilusório de se termos de referência: isto é, pela força historicamente susten-
contrapor às tendências sócio-históricas negativas. tável de uma alternativa estrutural coerente. Mas isso exigiria,
O enfrentamento crítico das determinações estruturais é claro, a adoção de uma perspectiva social radicalmente
da ordem social do capital — que necessariamente afetava, e diferente pelos pensadores em questão. Um ponto de vista
deve sempre afetar do modo mais significativo, o desenvol- capaz de avaliar de forma realista as limitações inescapáveis
vimento dos indivíduos — tinha de permanecer muito além da potencialidade reformadora do capital contra suas próprias
do seu alcance. Os corretivos às tendências denunciadas de determinações causais estruturais. Não é surpreendente, pois,
desenvolvimento podiam ser entrevistos por eles apenas em que a aceitação do ponto de vista do capital como o horizonte
termos individualistas. Quer dizer, de um modo que, no geral de sua própria visão tenha restringido as medidas reti-
final das contas, mantinha intacta a conformação estrutural ficadoras plausíveis dos grandes pensadores do Iluminismo à
e os crescentes antagonismos da ordem capitalista vitorio- defesa de contramedidas incorrigivelmente utópicas, mesmo
samente emergente. Eis porque os “antídotos” propostos, na fase ascendente ainda relativamente flexível da progressão
mesmo na variedade mais consistentemente elaborada da histórica do sistema do capital. Isto é, antes da época em que
educação estética dos indivíduos, tinham de permanecer as determinações de classe antagônicas da sociedade de mer-
como contraimagens utópicas irrealizáveis. Pois é impossível cadorias plenamente desenvolvida se tornassem petrificadas
mandar parar os efeitos negativos de uma poderosa tendência na forma de uma estrutura social irreformável, cada vez mais
social na formação dos indivíduos sem identificar — e im- reificada e alienada.
pugnar efetivamente nos termos sociais apropriados — suas É aí que podemos ver claramente o contraste entre os
determinações causais que os produziram e prosseguiram ideais e práticas educacionais do passado e as concepções
inexoravelmente reproduzindo. apropriadas aos desafios históricos que temos de enfren-
Assim, a adoção do ponto de vista do capital como a tar no curso de uma transformação socialista sustentável.
premissa social insuperável de seu horizonte crítico limitou até Jamais se pode formular o preceito da educação socialista
mesmo as maiores personagens da burguesia em ascensão a nos termos de alguns ideais utópicos estabelecidos diante
projetar a luta dos indivíduos particulares, e antes isolados, dos indivíduos aos quais eles devem supostamente se
contra os efeitos e consequências negativos das forças sociais conformar, em uma esperança bastante ingênua de con-
que os representantes do Iluminismo queriam reformar por trariar e superar os problemas de sua vida social — como
meio da educação pessoal idealmente adequada dos indiví- indivíduos mais ou menos isolados, porém “moralmente
duos. Uma luta que jamais poderia ser levada a bom termo, conscientes” — por meio da força de um tem de ser moral
tanto porque não se pode vencer uma força social poderosa abstrato ilusoriamente estipulado. Isso nunca funcionou
pela ação fragmentada de zndivíduos isolados, como porque as no passado e nunca poderia funcionar no futuro, não obs-
determinações estruturais causais da ordem criticada devem ser tante a óbvia necessidade de satisfazer os desafios muito
rivalizadas e impugnadas no domínio causal, em seus próprios reais que surgem constantemente das condições históricas
88 A educação para além do capital István Mészáros 89
alteradas e dos constrangimentos objetivos da situação Por conseguinte, o preceito ideal e o papel prático da
das pessoas envolvidas, como membros de sua sociedade. educação no curso da transformação socialista consistem
Seria extremamente autoderrotista conceber a educação em sua intervenção efetiva continuada no processo social
socialista como um antídoto individualista aos defeitos em andamento por meio da atividade dos indivíduos
da vida social, por mais desejável e louvável que o tem de sociais, conscientes dos desafios que têm de confrontar
ser moral abstrato proposto possa parecer à primeira vista. como indivíduos sociais, de acordo com os valores exigidos
O fracasso total das “exortações stakhanovistas” para trans- e elaborados por eles para cumprir seus desafios. Isso é
formar a ética do trabalho na sociedade soviética é uma inconcebível sem o desenvolvimento de sua consciência
boa ilustração do problema em jogo. Um fracasso em moral. Mas a moralidade em questão não é uma imposição
virtude da ignorância dissoluta das determinações causais sobre os indivíduos particulares a partir de fora, muito
nas raízes da vigente ética do trabalho da força de trabalho menos de cima, em nome de um discurso moral desta-
relutante sob as condições dadas, que emergem da exclusão cado e abstrato de tem de ser, como a inscrição cinzelada
autoritária dos trabalhadores do processo de decisão. no mármore em muitas igrejas inglesas: “Teme teu Deus
O sucesso da educação socialista é plausível porque a sua e obedece teu Rei!?. Tampouco é o equivalente secular
perspectiva de avaliação — ao contrário das limitações estru- a esses comandos externos pseudo-religiosos impostos
turais inerentes à adoção do ponto de vista do capital no pas- sobre os indivíduos em todas as sociedades governadas
sado — não tem de desviá-la dos problemas reais da sociedade pelos imperativos do capital. Ao contrário, a moralidade
determinados de maneira causal (que demandam retificações da educação socialista se preocupa com a mudança social
sociais apropriadas) e voltá-la a um apelo moral abstrato/in- de longo alcance racionalmente concebida e recomendada.
dividualista que somente poderia produzir projeções utópicas Seus preceitos se articulam com base na avaliação concreta
irrealizáveis. As causas sociais devem e podem ser enfrentadas das tarefas escolhidas e da parte exigida pelos indivíduos
na estrutura educacional socialista em um nível adequado: em sua determinação consciente de realizá-las. É desse
como causas historicamente originadas e determinações es- modo que a educação socialista pode definir-se como o
truturais claramente identificáveis, bem como desafiáveis. E desenvolvimento contínuo da consciência socialista que não
precisamente porque o desafio de enfrentar as demandas, por se separa e interage contiguamente com a transformação
mais dolorosas que sejam, da mudança social significativa histórica geral em andamento em qualquer momento
não é um conceito inibidor nessa abordagem, mas, antes, dado. Em outras palavras, as características definidoras da
uma ideia positiva inseparável de uma visão ilimitada do educação socialista emergem e interagem profundamente
futuro conscientemente conformado; as forças educacionais com todos os princípios orientadores relevantes do desen-
exigidas podem ser ativadas com êxito para a realização dos volvimento socialista.
objetivos e valores adotados do desenvolvimento socialista
da sociedade visado por seus membros.
90 Aeducação para além do capital István Mészáros 91
lítica e socioeconômica do capital — que alegam conhecer Só é possível assumir a responsabilidade social não
tudo melhor ex officio. como o tem de ser moralista e abstrato do discurso filosófico
Assim, nada poderia ser mais justificado do que a tradicional, que defende algum “ideal” externo “a que os
instituição da ordem hegemônica alternativa. A estrutura indivíduos devem se conformar”, mas como a força real que
educacional dessa ordem é tanto individual quanto social, e se integra à situação histórica e social efetiva, com base na
de maneira inseparável. O destinatário da educação socialista concepção da própria educação como um órgão social estra-
não pode ser simplesmente o indivíduo apartado, como no tegicamente vital, isto é, como a prática social inseparável
modelo dos ideais educacionais tradicionais. Pois, como já do desenvolvimento contínuo da consciência socialista. E isso,
indicado, no passado, os preceitos e princípios educacionais por sua vez, só é plausível pela postura radicalmente diferente
defendidos eram via de regra detalhados na forma de apelos com relação à mudança no interior da estrutura da ordem
diretos à consciência dos indivíduos particulares, normalmente hegemônica alternativa.
concebidos em termos de exortações morais. Ao contrário, Nada pode ser aprioristicamente eximido de mudança
a educação socialista se destina aos indivíduos sociais, e na nova ordem, em nítido contraste com a estrutura socio-
não aos indivíduos isolados. Em outras palavras, concerne metabólica do capital, em que a crítica às determinações
aos indivíduos cuja autodefinição como indivíduos — em estruturais significativas da sociedade é decretada ilegítima
contraste com o discurso genérico abstrato da filosofia tra- e essas são, portanto, protegidas com todos os meios dis-
dicional sobre a individualidade isolada autorreferenciada — poníveis ao sistema, inclusive os mais violentos. Alterar as
não pode sequer ser imaginada sem a relação mais estreita condições historicamente dadas, de acordo com a dinâmica
com seu meio social real e com a situação histórica especí- do desenvolvimento social em andamento, não é apenas
fica claramente identificável de que seus desafios humanos aceitável, mas também de importância vital na ordem he-
inescapavelmente emergem. Pois é precisamente a sua situa- gemônica alternativa. Deixar de fazê-lo não somente iria
ção histórica e social concreta que os convida a formular os contra o ethos socialista professado, como também privaria
valores pelos quais seu compromisso ativo com determinadas a sociedade de seu potencial positivo de desenvolvimento,
formas de ação pode levar a cabo a realização de sua parte como a história do século XX tragicamente demonstrou.
apropriada adotada de maneira consciente — que, por con- O papel da educação socialista é muito importante nes-
seguinte, os define como indivíduos sociais autônomos e se sentido. Sua determinação interna simultaneamente social
responsáveis — na grande transformação contínua. Eis como e individual lhe confere um papel histórico único, com base
a educação praticamente efetiva dos indivíduos sociais se na reciprocidade pela qual ela pode exercer sua influência e
torna sinônima do significado mais profundo de educação produzir um grande impacto sobre o desenvolvimento social
como autoeducação. As referências de Marx ao “indivíduo em sua integridade. A educação socialista só pode cumprir
social rico” têm o intuito de indicar esse tipo de autodefinição seu preceito se for articulada a uma intervenção consciente
como a estrutura viável da educação. e efetiva no processo de transformação social.
96 A educação para além do capital István Mészáros 97
A reciprocidade mencionada é altamente relevante nesse (e evidencia ao mesmo tempo o próprio significado desse
sentido porque, por um lado, os indivíduos sociais podem termo definidor) — não poderia ser maior. Pois as exigências
contribuir de maneira ativa para a realização das tarefas e de um desenvolvimento historicamente viável, no espírito
desafios dados, e com isso para a significativa transformação dos importantes princípios orientadores da transformação
de sua sociedade, e, ao mesmo tempo, por outro lado, são socialista, tornam-se reais por meio da contribuição mais ativa
conformados de um modo significativamente internalizável, da educação para o processo. Nenhuma delas poderia cumprir
no curso das mudanças alcançadas. Com efeito, eles mesmos sua função social requerida sem a educação.
são também legitimamente conformados por sua própria
consciência positiva do significado dos desenvolvimentos em 5
progresso, percebendo corretamente sua parte ativa neles.
Como um caso representativo, podemos perceber muito
Esse tipo de internalização consensual genuína dos contínuos
claramente a importância seminal da educação — explicitada
desenvolvimentos pelos indivíduos sociais assinala um
na forma da reciprocidade mutuamente benéfica entre os
afastamento radical com relação à doutrina inteiramente
indivíduos particulares e sua sociedade — na relação com a
apologética do consentimento tácito que predominou na
mudança fundamental necessária para transformar as práti-
teoria política da ordem estabelecida desde John Locke,
cas econômicas ora dominantes em um tipo qualitativamente
seu fundador. diferente. A diferença concerne diretamente ao domínio
O envolvimento ativo dos indivíduos nas mudanças so-
da reprodução material vital cuja saúde é essencial para a
cietárias pode ser identificado como interação social no melhor
viabilidade até mesmo das práticas culturais mais mediadas.
sentido do termo. Uma interação social plena de significado,
Pois o imperativo do tempo do capital predominante no
fundada na reciprocidade mutuamente benéfica entre os indiví-
processo de reprodução material afeta diretamente não
duos sociais e sua sociedade. A emergência e o fortalecimento
apenas as relações estruturais de exploração da sociedade
dessa reciprocidade mutualmente benéfica estariam completa-
de classes como um todo, mas impõe ao mesmo tempo
mente fora de questão se alguma autoridade designasse que os
seus efeitos negativos e humanamente empobrecedores
vários aspectos da ordem hegemônica alternativa, incluindo
sobre cada aspecto da atividade material e intelectual no
suas determinações estruturais mais importantes, devessem
tempo de vida dos indivíduos particulares. Por conseguinte,
permanecer além do alcance dos indivíduos sociais. Sua “au-
a necessidade de emancipação humana, em que a educação
tonomia” nesse caso equivaleria a nada, como de fato significa
socialista desempenha um papel crucial, representa a esse
nada no caso das postuladas “escolhas soberanas” feitas pelos
respeito um desafio fundamental.
indivíduos na sociedade de mercadorias. Assim, a relevância
As práticas reprodutivas da sociedade capitalista são
da educação socialista, como o desenvolvimento contínuo da
caracterizadas pela contabilidade do tempo desumanizadora
consciência socialista — nesse sentido vital de reciprocidade,
que obriga os indivíduos trabalhadores — em contraste com
que define os indivíduos particulares como indivíduos sociais
as “personificações do capital”, que são os mais complacentes
98 A educação para além do capital István Mészáros 99
impositores do imperativo do tempo alienante do sistema — Obviamente, a ideia de uma alteração dessa magnitude
a se submeterem à tirania do tempo de trabalho necessário. carrega consigo implicações de longo alcance. Pois, no mo-
Desse modo, como denunciou Marx, os indivíduos traba- mento exato em que focamos nossa atenção na necessidade
lhadores — potencialmente os indivíduos sociais ricos, em da mudança qualitativa envolvida na adoção do tempo
suas palavras — sofrem as consequências alienantes ao longo disponível como a contabilidade do tempo praticamente
de toda a sua vida porque sofrem “sua degradação a mero efetiva, capaz de substituir o tempo de trabalho necessário,
trabalhador, sua subsunção no trabalho”. Ademais, essa torna-se amplamente evidente que é inconcebível instituir
dependência estrutural e a correspondente degradação não na sociedade uma alteração tão fundamental sem a plena
é de maneira alguma o final da história. Sob determinadas ativação da força da educação socialista.
circunstâncias, especialmente sob as condições de grandes Em primeiro lugar, porque a instituição do tempo
crises socioeconômicas, os trabalhadores têm também de disponível como o novo princípio orientador e opera-
sofrer a perversidade do desemprego, a mazela cinicamente cional do processo de reprodução societária exige uma
camuflada e hipocritamente justificada da “Aexibilidade do adesão consciente a ele. Isso se opõe totalmente à tirania
trabalho” e a selvajaria da difundida precarização. Todas essas do tempo de trabalho necessário que domina a sociedade
condições emergem da mesma determinação operacional do na forma da compulsão econômica geral, regulada não pela
processo de trabalho capitalista. Devem-se à desumanidade apreensão consciente — nem mesmo pelo “planejamento”
irredimível da contabilidade do tempo do capital e à coação estritamente parcial aplicável às unidades econômicas
do imperativo do tempo inalterável do sistema. particulares introduzidas como uma reflexão tardia pelas
A alternativa hegemônica do trabalho é a instituição de “personificações do capital” no processo de trabalho — mas
uma contabilidade do tempo radicalmente diversa, sinônima pela contradição antagônica entre capital e trabalho e pela
das exigências humanamente enriquecedoras da contabilidade força post festum do mercado. Os trabalhadores não têm
socialista. Apenas sobre essa base é possível entrever as práticas de ser educados para a tarefa de participar da estrutura
produtivas em pleno desenvolvimento dos indivíduos sociais operacional do tempo de trabalho necessário. Eles simples-
ricos. Isso só é plausível por meio de uma substituição radical mente não podem escapar de seus imperativos, uma vez
da tirania historicamente predominante do tempo de trabalho que estes lhes são diretamente impostos, com a absolutez
necessário pela adoção consciente e o uso criativo do tempo de um “destino social”, correspondente à sua subordinação
disponível como princípio orientador da reprodução societária. estruturalmente assegurada na ordem social estabelecida.
Eis porque essa estrutura recebeu de Marx a sagaz deno-
minação de “a condição inconsciente da humanidade”.
3 Karl Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie (Marx- Como tal, a inconsciência ubiquamente predominante no
-Engels-Werke, Berlim, Dietz Verlag, 1983, v. 42), p. 604.
processo capitalista de trabalho, por conta de sua cega
4 Ver, no capítulo 5 de O desafio e o fardo do tempo histórico (cit), a
discussão de importantes temas relacionados. contabilidade do tempo — por mais idealizada que seja —
100 Aeducação para além do capital István Mészáros 101
significa também zncontrolabilidade, com suas implicações capital, por maior que seja o seu número, como trabalha-
fundamentalmente destrutivas. dores isolados — mas sim do Zrabalho dos indivíduos sociais
A segunda razão, igualmente importante, é que o sujeito conscientemente combinados como a condição universal da vida
social capaz de regular o processo de trabalho com base no na ordem hegemônica alternativa. Esse é o único sujeito social
tempo disponível só pode ser a força conscientemente combinada plausível que pode regular de maneira consciente o processo de
da multiplicidade de indivíduos sociais: os “produtores livre- reprodução societária com base no tempo disponível. Ou, para
mente associados”, como são habitualmente denominados. expressar de um modo diverso a mesma correlação dialética,
Novamente, podemos ver aqui um contraste notável com somente pela adoção consciente do tempo disponível como
o “sujeito” que regula o processo de reprodução societária o princípio operacional orientador e praticamente efetivo de
com base no tempo de trabalho necessário. Pois o tempo de nossa vida é possível entrever o desenvolvimento de um sujeito
trabalho necessário não é apenas estreitamente determinista, social capaz de controlar de forma apropriada a produção e
mas também terminantemente 7mpessoal, no sentido de que a reprodução societária da ordem hegemônica alternativa.
a força reguladora da produção e reprodução societária não é O sujeito em questão, como antes mencionado, é
em absoluto um sujeito propriamente dito, mas os 7mperati- simultaneamente social e individual. Esse indivíduo social
vos estruturais do sistema do capital em geral. Mesmo os mais é impensável sem os processos educacionais — e autoeduca-
complacentes impositores do imperativo do tempo do sistema cionais — pelos quais se podem satisfazer as exigências cria-
estabelecido não podem senão obedecê-los, com maior ou tivas da nova ordem sociometabólica. Como a sociedade
menor êxito. Se não obtêm êxito em sua exigida conformi- se encontra hoje, a adoção do tempo disponível em todos os
dade com os imperativos fetichistas, serão logo expulsos da lugares como um princípio operacional vital da produção
estrutura do sistema pela falência de suas empresas. Em vista é apenas uma potencialidade abstrata. O futuro depende
do fato de que, não obstante as mistificações fetichistas do de nossa capacidade (ou incapacidade) de transformar essa
sistema do capital, seu sujeito produtor real é o trabalhador, potencialidade abstrata em realidade criativa concreta.
o capitalista como suposto sujeito controlador — que é, na Nem é preciso dizer que a tirania do tempo de tra-
verdade, firmemente controlado pelos imperativos estruturais balho necessário é uma imposição aos trabalhadores, que
necessariamente predominantes da ordem estabelecida — só devem sempre permanecer uma força de trabalho relutante
pode ser um pseudo-sujeito usurpador. Consequentemente, no interior da estrutura do sistema do capital. Além disso,
apenas o sujeito efetivamente produtor, o trabalho como a imposição do tempo de trabalho necessário é também
tal, pode adquirir a única consciência reguladora plausível e desperdiçadora em seus próprios termos de referência, no
produtivamente viável sob as condições históricas do nosso sentido de que sua operação pressupõe o estabelecimento
tempo. É óbvio que não estamos falando aqui da categoria de uma estrutura de comando estritamente hierárquica de
sociológica empirista dos trabalhadores particulares como que algumas partes são extremamente problemáticas ou,
trabalhadores isolados — que confrontam a força social do de fato, completamente parasitárias, mesmo com relação às
102 A educação para além do capital István Mészáros 103
suas supostas funções econômicas. Comparadas a isso, as van- entre os indivíduos e sua sociedade se torna real. Nada pode
tagens de se levar a cabo a produção e a reprodução societária ser imposto aqui de antemão (como uma norma preesta-
com base no tempo disponível, dedicado à realização dos belecida) ou como finalidade restritiva. Vemos no processo
objetivos conscientemente escolhidos pelos indivíduos sociais reprodutivo positivamente ilimitado da ordem hegemônica
autorregulados, são inegáveis. Pois os “produtores livremente alternativa a manifestação de uma interação genuína. Por
associados” dispõem de recursos incomparavelmente mais intermédio da educação socialista, a força produtiva dos
ricos do que aquilo que jamais se poderia arrancar da força indivíduos se estende e acentua, simultaneamente ampliando
de trabalho relutante sob a imposição dos imperativos estru- e tornando mais emancipadora a força reprodutiva geral de
turais do tempo de trabalho necessário do capital. sua sociedade como um todo. Esse é o único significado
Cumpre também enfatizar aqui que a educação — como o historicamente sustentável de ampliação da riqueza social,
desenvolvimento progressivo da consciência socialista integrante em contraste com o culto fetichista da expansão do capital
à vida dos indivíduos sociais em sua estreita interação com seu fundamentalmente destrutiva em nosso mundo finito, que
ambiente social historicamente em transformação — é uma força é inseparável do desperdício fatal do sistema do capital.
vital identificável também pelo grande impacto da educação A dominação do valor de uso pelo valor de troca, e a
sobre a mudança na reprodução material. Esse impacto emerge consequente negação sistemática impiedosa da necessidade
diretamente da substituição operacional do tempo de trabalho humana em nossa ordem global, só pode ser retificada com
necessário pelo tempo disponível autonomamente determina- base em uma mudança radical do princípio orientador
do, definida na disposição de sua sociedade pelos indivíduos socialista do tempo disponível conscientemente adotado
trabalhadores. É evidente que apenas os indivíduos sociais e exercido pelos próprios indivíduos sociais. Sua educação
como indivíduos podem conscientemente determinar por como autoeducação orientada ao valor, inseparável do desen-
e para si mesmos, a natureza (isto é, a dimensão qualitati- volvimento contínuo de sua consciência socialista em sua
va) e o montante de seu próprio tempo disponível do qual as reciprocidade dialética com as tarefas e desafios históricos
realizações criativas de sua sociedade podem emergir com que têm de enfrentar, os faz crescer tanto em suas forças
êxito. Tudo isso concerne tanto ao número de horas como produtivas como em sua humanidade. É isso que lhes pro-
à intensidade do trabalho dedicados por eles à tarefa produ- porciona o fundamento necessário para a autossatisfação
tiva relevante. Nenhuma autoridade destacada pode decidir criativa como sujeitos autônomos que podem obter sentido
ou impor-lhes essas exigências, ao contrário da dominação de (e, ao mesmo tempo, dar sentido a) sua própria vida
anteriormente inevitável do tempo de trabalho necessário. como indivíduos sociais particulares, plenamente cientes de
A única força capaz de contribuir positivamente para sua parte — e responsabilidade — em assegurar o desenvolvi-
o novo processo de transformação é a própria educação, mento positivo historicamente sustentável de sua sociedade.
cumprindo com isso seu papel de órgão social, como acima E é evidente que isso confere seu significado verdadeiro na
mencionado, pelo qual a reciprocidade mutuamente benéfica expressão “indivíduo social rico”.
104 A educação para além do capital István Mészáros 105
consensual praticada de forma consciente é extremamente Em todas essas questões, estamos preocupados com
importante. Nas palavras de Fidel Castro: a necessidade vital de uma mudança estrutural radical e
oniabrangente de nossa ordem sociorreprodutiva, que não
Na medida em que tivermos êxito em educar profunda- se pode alcançar pelas determinações materiais cegas que
mente nosso povo no espírito do internacionalismo e da tiveram de predominar no desenvolvimento histórico pas-
solidariedade, tornando-o consciente dos problemas de nosso
sado. Além disso, os grandes problemas e dificuldades de
mundo hoje, no mesmo grau seremos capazes de confiar
nossas próprias condições históricas são ainda intensificadas
que nosso povo cumprirá suas obrigações internacionais.
É impossível falar de solidariedade entre os membros de um e agravadas pela inegável urgência do tempo jamais experi-
povo se a solidariedade não for criada simultaneamente entre mentada em épocas históricas anteriores.
os povos. Se fracassarmos nisso, correremos o risco de cair Nesse sentido, é suficiente apontar duas diferenças
no egotismo nacional literalmente vitais que colocam em acentuado relevo a
urgência do tempo em nossa própria época. Em primei-
Nesse sentido, o legado altamente negativo e divisor ro lugar, o poder de destruição antes inimaginável que
do passado ainda pesa muito na consciência dos povos, con- se encontra hoje à disposição da humanidade, pelo qual se
tribuindo ativamente para a constante erupção de conflitos pode alcançar facilmente o completo extermínio da espécie
e confrontos destrutivos em diferentes partes do mundo humana por meio de uma variedade de meios militares. Isso
hoje. É inconcebível desprendemo-nos dessas contradições é gravemente acirrado pelo fato de que testemunhamos, no
e antagonismos sem a força criativa da educação autonoma- último século, tanto a escala como a intensidade sempre
mente exercida pelos indivíduos sociais, como o desenvol- crescentes de conflagrações militares efetivas, incluindo
vimento contínuo da consciência socialista. Pois somente duas guerras mundiais extremamente destrutivas. Ademais,
essa educação pode capacitar-lhes a uma apreensão clara nos últimos anos da caótica “nova ordem mundial”, as
da natureza e relevância das questões em jogo e inspirá-los pretensões mais cínicas e absurdas foram — e ainda são —
ao mesmo tempo a assumir plena responsabilidade por sua empregadas para iniciar guerras genocidas, ameaçando-nos
própria parte positiva no processo de trazer ao controle as ao mesmo tempo até mesmo com o uso “moralmente jus-
tendências destrutivas de nossa ordem social globalmente tificado” de armas nucleares em projetadas guerras futuras
entrelaçada — e em nosso tempo histórico inevitavelmente “preventivas e antecipadas”. E a segunda condição grave-
nacional e internacional. mente ameaçadora é que a natureza destrutiva do controle
sociometabólico do capital em nosso tempo — manifesta
pela predominância cada vez maior da produção destrutiva,
* Discurso em Katowice, Polônia, em 7 de junho de 1972. Citado em em contraste com a mitologia capitalista tradicionalmente
Carlos Tablada Pérez, Economia, etica e política nel pensiero di Che autojustificadora da destruição produtiva — encontra-se no
Guevara (Milão, Il Papiro, 1996), p. 165.
processo de devastação do ambiente natural, arriscando
108 A educação para além do capital István Mészáros 109
com isso diretamente as condições elementares da própria O controle sociometabólico do capital é absolutamente
existência humana neste planeta. incompatível com qualquer ideia de mudança estrutural-
Por si sós, essas condições já acentuam energicamente mente significativa, apesar de todas as evidências de sua
tanto a urgência dramática do tempo em nossa própria urgência. Ao contrário, a ordem hegemônica alternativa do
época histórica, como a impossibilidade de encontrar solu- trabalho social não pode sob nenhum aspecto funcionar
ções viáveis aos graves problemas envolvidos sem confron- sem abraçar positivamente — e conscientemente — as forças
tarmos conscientemente os perigos e nos comprometermos dinâmicas da mudança em todos os níveis da vida individual
com a única busca racionalmente plausível — e cooperativa e social, incluindo as determinações estruturalmente vitais
no sentido mais profundo do termo — por soluções. Assim, da reprodução material e cultural da sociedade. Isso só se
em virtude da magnitude sem precedentes das tarefas em pode realizar, em uma base societária contínua e abrangente,
jogo e da urgência historicamente única de nosso tempo pela necessária realização do planejamento digno do nome,
que demanda sua solução duradoura, o papel atribuído ao conscientemente designado e levado à fruição de maneira
desenvolvimento contínuo da consciência socialista é abso- autônoma, pelos próprios indivíduos sociais.
lutamente fundamental. Nesse sentido, a mudança é plausível na ordem hege-
A necessidade de uma mudança estrutural radical e mônica alternativa não como um passo ou passos particulares
abrangente na ordem sociometabólica estabelecida carrega adotados com o pretexto da finalidade ou do fechamento
consigo a exigência da redefinição qualitativa das determi- (há sempre algum novo desafio gerado e, de fato, bem-
nações sistêmicas da sociedade como a perspectiva geral de -vindo no curso da transformação socialista), mas somente
transformação. Ajustes parciais e melhorias marginais na pelo desenvolvimento contínuo — nunca definitivamente
ordem sociorreprodutiva existente não são suficientes para completado — da consciência socialista. Assim, o modo he-
cumprir o desafio. Pois poderiam apenas reproduzir em uma gemônico alternativo de controle sociometabólico se define
escala ampliada — e, de fato, com o passar de nosso tempo tanto em termos do impacto duradouro de seus princípios
histórico opressivamente restrito, necessariamente também orientadores livremente adotados e importantes do ponto
agravada — os perigos identificáveis de forma clara tanto no de vista operacional — que transformam em realidade a
domínio da destruição econômica e militar, como no plano força da consciência individual e social — como por meio
ecológico. É por isso que somente a instituição e a consoli- da capacidade efetiva de produção material e reprodução
dação da alternativa hegemônica ao controle sociometabólico societária oniabrangente. De fato, esta última não poderia
do capital pode oferecer uma saída para as contradições e em absoluto proceder sem sua constante interação com os
antagonismos de nosso tempo. projetos e desígnios conscientemente formulados pelos seres
Conforme vimos acima, o que distingue as alternativas humanos em sua situação sócio-histórica em transformação,
hegemônicas concorrentes da maneira mais notável é sua em estreita conjunção com suas determinações de valor
postura radicalmente diferente com relação à mudança. e com o compromisso consciente de cumprir os desafios
110 Aeducação para além do capital István Mészáros 111
À orientação educacional dos indivíduos — incluindo poral a permanecer trancada no mais estreito horizonte
suas aspirações materiais e valores sociais — segue o mes- temporal da imediaticidade.
mo caminho, diretamente dominada pelos problemas da A educação socialista, ao contrário, não pode cum-
imediaticidade capitalista. Sua consciência temporal, no prir seu preceito histórico sem dar o devido peso aos
que concerne ao “futuro”, se restringe ao tempo presente objetivos transformadores abrangentes essencialmente
constantemente renovado de sua luta com o poder fetichis- importantes vinculados a seu horizonte temporal apro-
ticamente limitador da imediaticidade de sua vida cotidiana: priado. Por certo, isso não significa que os objetivos mais
uma luta que não pode em absoluto vencer sob a vigência do fundamentais da mudança estrutural devam ou possam
tempo de trabalho necessário do capital. O caráter local e a ser deixados para um futuro distante, por conta da
imediaticidade devem, portanto, prevalecer em toda parte. O perspectiva inevitavelmente de longo prazo de sua plena
conceito de mudança estrutural geral material e socialmente realização. Ao contrário, é uma característica proeminen-
plausível, sem mencionar seu caráter desejável e legítimo, deve te dos problemas que devem ser confrontados no curso
permanecer, nos termos do sistema educacional dominante, da transformação socialista que as tarefas imediatas não
como absoluto tabu. possam ser separadas e convenientemente isoladas dos
Os cultos convenientes, do ponto de vista capitalis- desafios de longo prazo e mais abrangentes, muito menos
ta, do local e do imediato predominam e devem caminhar opostas de maneira autojustificada — como no passado — a
inseparavelmente juntos. Ássim, nas concepções que se eles. Os próprios problemas são tão estreitamente entrela-
conformam ao ponto de vista da “ordem natural” auto- çados, em virtude do caráter histórico único da mudança
mitologizadora supostamente permanente do capital, a estrutural oniabrangente exigida, que a ação referente
ausente dinâmica dos objetivos e ideais transformadores até mesmo aos mais distantes objetivos transformadores
abrangentes, que teriam de entrever em alguma conjuntura plenamente realizáveis — como, por exemplo, a instituição
futura a necessidade — ou ao menos a possibilidade — da igualdade substantiva em todos os lugares, no sentido
de mudança sócio-histórica fundamental, não pode mais pleno do termo — não pode ser deixada para alguma
tornar-se inteligível sem que se mantenha em mente o data futura remota. O caminho que conduz à realização
horizonte temporal inevitavelmente truncado dos indivíduos completa da igualdade substantiva deve ser tomado hoje, se
controlados de maneira fetichista em sua vida diária. Há falamos a sério sobre a efetivação bem-sucedida da atividade
aqui uma perversa reciprocidade que produz um círculo inflexível necessária para a instituição e consolidação de
vicioso na relação dos dois. O horizonte temporal trunca- uma mudança material e cultural tão radical.
do dos indivíduos exclui a possibilidade de estabelecerem É um traço historicamente único da defesa socialista
para si mesmos objetivos transformadores abrangentes e da mudança estrutural qualitativa que a consciência — e a
vice-versa, a ausência de determinações transformadoras autoconsciência — dos indivíduos deva enfocar a natureza
abrangentes em sua visão condena sua consciência tem- inclusiva/oniabrangente da requerida transformação social e
114 A educação para além do capital István Mészáros 115
de sua própria parte nela, como integrante aos objetivos gerais histórico real como indivíduos sociais particulares capazes de
em questão, em lugar de ser passível de compartimentação obter sentido da, e dar sentido a, sua própria vida — à criação
no âmbito privado de alguma individualidade isolada mais de uma ordem sociometabólica qualitativamente diferente,
ou menos fictícia. Desse modo, também o horizonte tem- bem como historicamente sustentável.
poral dos indivíduos sociais particulares é inseparável do Nessa transformação radical, está em jogo nada menos
tempo histórico abrangente — não importa em quão longo do que a necessidade literalmente vital da criação de uma
prazo — de toda a sua sociedade dinamicamente em desen- nova sociedade viável. Uma transformação cujo sucesso
volvimento. Assim, pela primeira vez no curso da história é inconcebível sem assegurar conscientemente o desígnio
humana espera-se que os indivíduos se tornem realmente racional — historicamente inevitável — dos parâmetros gerais
conscientes de sua parte no desenvolvimento humano com da nova ordem de maneira contínua e sem a autoconsciência
relação tanto a seus objetivos transformadores abrangentes po- dos indivíduos sociais como criadores e recriadores desse
sitivamente plausíveis quanto à escala temporal de seu próprio desígnio geral através das gerações. E, evidentemente, é
envolvimento real e contribuição específica ao processo de razoável que a criação e a renovação apropriada do desígnio
mudança de suas sociedades. geral exigido sejam inconcebíveis sem a autoconsciência e
Nesse sentido, a consciência e a autoconsciência dos as determinações de valor autônomas dos indivíduos sociais
indivíduos particulares quanto a seu papel como indivíduos capazes e desejosos de se identificarem com a transformação
sociais responsáveis — sua consciência clara de sua contribui- historicamente progressiva de sua sociedade.
ção específica imediata, mas escolhida de forma autônoma, O papel da educação, propriamente definido como
à transformação oniabrangente contínua — é uma parte o desenvolvimento contínuo da consciência socialista, é
integrante e essencial de todo êxito possível. Pois eles não sem dúvida um componente crucial desse grande processo
podem alcançar propriamente nem mesmo seus objetivos transformador.
relativamente limitados sem perceber e avaliar de maneira
autoconsciente a relevância de sua atividade particular na 8
estrutura transformadora mais ampla — que desse modo eles
mesmos constituem e conformam de modo autônomo —, Dada a urgência sem precedentes de nosso tempo histórico,
como integrante ao tempo histórico circundante criado o socialismo no século XXI não pode evitar enfrentar os
continuamente por uma sucessão de gerações, inclusive desafios dramáticos que emergem desses imperativos.
a deles. Somente nessa perspectiva eles podem se tornar Em um sentido geral, já apareciam na época em que
plenamente cientes da importância vital de seu próprio tempo Marx vivia, ainda que naqueles dias a destruição total da
disponível, como “produtores livremente associados”. Essa é humanidade — na ausência dos meios e modalidades militares
a única maneira pela qual podem autonomamente dedicar para realizar com facilidade essa destruição, em estreita con-
seu tempo disponível — que é simultaneamente seu zempo junção com a crise estrutural inevitável do sistema do capital,
116 A educação para além do capital István Mészáros 117
como em nosso tempo se experimenta em toda parte — não ideia de uma mudança societária fundamental e com a força
fosse ainda uma realidade globalmente ameaçadora. material que poderia fazer a diferença, era preciso satisfazer
O próprio Marx tentava apaixonadamente explorar algumas condições de importância vital, sem as quais a ideia
os meios para realizar as mudanças transformadoras onia- defendida da “teoria que penetra nas massas” equivaleria a
brangentes necessárias para se contrapor em uma base nada mais que um lema moralista vazio, como frequente-
historicamente sustentável à progressiva tendência destru- mente foi o caso no discurso sectário/elitista. Assim, Marx
tiva do sistema do capital. Ele estava plenamente ciente concluiu suas reflexões sobre o assunto salientando firme-
do fato de que sem a dedicação consciente das pessoas à mente que “a teoria só se realiza num povo na medida em
realização da tarefa histórica monumental de instituir uma que é a realização das suas necessidades".
ordem sociometabólica radicalmente diferente e viável de Não é necessário dizer que a teoria não pode alcançar o
reprodução não poderia haver êxito. A força intelectual povo em questão somente por livros, nem tampouco se vol-
persuasiva da apreensão teórica, por mais bem fundamen- tando simplesmente, mesmo com a melhor das intenções, a
tada que fosse, não era por si só suficiente. O modo como uma multidão aleatória de indivíduos. O pensamento radical
formulou esse problema, com grande senso de realidade, não pode ser bem-sucedido em seu preceito de mudar a cons-
foi o reconhecimento de que “não basta que o pensamento ciência social sem uma articilação organizacional adequada.
procure realizar-se; a realidade deve igualmente compelir Uma organização coerente — para proporcionar a estrutura
ao pensamento”. historicamente em desenvolvimento de intercâmbio entre
Ele sabia bem que a força material progressivamente as necessidades das pessoas e as ideias estratégicas de sua
destrutiva do capital, na fase decadente do desenvolvimento realização — é essencial para o sucesso do empreendimento
do sistema, tinha de ser emparelhada e positivamente superada transformador. Não é, portanto, de modo nenhum surpreen-
pela força material da alternativa hegemônica historicamente dente que Marx e Engels, seu companheiro mais próximo,
viável. Assim, destacando a maneira como o trabalho teórico como jovens intelectuais revolucionários tenham aderido
podia aspirar ser significativo, ele acrescentou à sentença acima ao movimento social mais radical de seu tempo e tenham
citada: “mas a teoria converte-se em força material quando sido responsáveis por escrever o Manifesto Comunista, que
penetra nas massas”?. Naturalmente, não é qualquer teoria defendia a necessária intervenção organizada inflexível no
que poderia fazê-lo. Uma vez que se tratava de constituir progressivo processo histórico global.
uma relação apropriada entre teoria comprometida com a Foi também essencial ter uma ideia clara da orientação
estratégica da consciência em desenvolvimento, isto é, seu
foco necessário sem o qual poderia desviar-se da realização
8 Karl Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução”, em
Crítica da filosofia do direito de Hegel (São Paulo, Boitempo, 2006),
p. 152.
2? Ibidem, p. 151. 'º Ibidem, p. 152. Grifos meus.
118 A educação para além do capital István Mészáros 119
de sua tarefa histórica. É por isso que Marx continuou sa- Tanto para a criação em massa dessa consciência comunista
lientando que a defendida consciência comunista só seria ca- quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma
transformação massiva dos homens, o que só se pode rea-
paz de cumprir seu preceito histórico se fosse “a consciência
lizar por um movimento prático, por uma revolução; que
da necessidade de uma revolução radical”.
a revolução, portanto, é necessária não apenas porque a
Ademais, uma consideração igualmente importante classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra
concernia à questão da amplitude em que essa consciência forma, mas também porque somente com uma revolução
comunista deveria difundir-se na sociedade, para que exista a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de
uma chance de subjugar seu adversário, juntamente com toda a antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova
a questão conseguinte das condições ainda ausentes de sua fundação da sociedade.
difusão sob as circunstâncias vigentes, dado o longo condi-
cionamento histórico das pessoas envolvidas que agia contra Essas considerações permanecem válidas para o presente
a adoção em larga escala da consciência comunista. Pois as e para o futuro. O vanguardismo sectário jamais poderia
tentações fundamentalmente autoderrotistas do vanguar- estar à altura da magnitude da tarefa histórica que envolve
dismo elitista não tiveram sua origem em tempos recentes. a constituição de um movimento de massa revolucionário
Eram já proeminentes muito antes do tempo de Marx. Isso capaz de superar com êxito seu adversário e, ao mesmo
se aplicava não apenas à ignorância da questão de como tempo, “livrar-se” da sujeira paralisadora de séculos, de
os educadores são educados?” — presumindo algum tipo de modo a tornar-se adequado para fundar uma nova sociedade.
“direito nato” ou superioridade ex officio aos “educadores” Eis porque Marx contrastava a necessidade de consciência
autodesignados —, mas em termos mais gerais: ao problema comunista de massa com o “ideal abstrato ao qual as pessoas
vital da decisão que exclui as grandes massas do povo. Ão deveriam se conformar”. Quer os defensores de tais aborda-
lado disso, tais concepções elitistas foram sempre condena- gens estejam cientes disso ou não, o vanguardismo sectário
das à futilidade e ao fracasso, porque sem a mobilização das sempre foi — e jamais poderia ser outra coisa — precisamente
grandes massas do povo não pode haver esperança de sucesso a tentativa de impor sobre as grandes massas do povo o
contra a disparidade esmagadoramente favorável ao capital ideal abstrato deplorado por Marx, ao passo que descartava
sob as condições históricas vigentes. | de maneira arrogante, ou ao menos ingênua, a alternativa
Em oposição a todas as deturpações elitistas concebí- válida da consciência comunista de massa como “populismo”
veis do desafio, das quais vimos inúmeras incorporações no ou alguma coisa do gênero. E o “ideal abstrato” externa-
passado, Marx enfatizou da maneira mais clara que mente imposto pelo vanguardismo sectário não poderia ser
considerado menos prejudicial apenas porque alguns de seus
dedicados defensores estariam pessoalmente dispostos a se da educação concebida como a autoeducação radical dos
indivíduos sociais, no curso de sua “alteração que só pode
conformarem a ele.
Paradoxalmente, em alguns períodos do século XX, ter lugar em um movimento prático, em uma revolução”,
“a realidade estava compelindo ao pensamento”, para em- somente nesse processo podem os indivíduos sociais tornar-
-se simultaneamente educadores e educados. Essa é a única
pregar a expressão de Marx, mas o “pensamento” — como
maneira concebível de superar a dicotomia conservadora de
deveria incorporar-se em estratégias sociais e políticas viáveis
todas as concepções elitistas que dividem a sociedade em
da requerida transformação radical, juntamente com suas
seletos “educadores” misteriosamente superiores e o resto
articulações organizacionais correspondentes — não estava
da sociedade consignada à sua posição permanentemente
à altura do desafio. Com o intuito de descartar a possibi-
subordinada de “educados”, como realçado por Marx. A
lidade de não se conseguir tirar vantagem das condições
esse respeito, devemos constantemente nos lembrar de que
favoráveis que surgem em meio à crise estrutural cada vez
a defendida “alteração do povo para se tornar adequado para
mais aprofundada do capital, cumpre recordar duas questões
fundar uma nova sociedade” só é plausível pelo desenvolvi-
de importância seminal. Com relação a ambas, o papel da
mento da “consciência comunista de massa”, que abarca a
educação — como o desenvolvimento tão necessário da cons-
maioria esmagadora da sociedade.
ciência socialista, sem a qual mesmo a grave crise estrutural
Esse desenvolvimento tem lugar em uma sociedade de
da ordem sociometabólica do capital está muito longe de
transição, com suas características dadas que não se pode
ser suficiente para ativar o processo de “fundação de uma
nova sociedade” — é supremo. ilusoriamente desconsiderar para ajustá-la a algum postulado
futuro idealizado. Os expedientes mediadores efetivamente
A primeira refere-se à necessária transição da ordem
disponíveis — as mediações? práticas identificáveis entre o
vigente à sociedade historicamente sustentável do futuro.
sociometabólica ora pro- presente e o futuro sustentável — são os únicos modos e meios
Como vimos antes, a ordem
pelos quais os princípios orientadores gerais da transformação
fundamente resguardada do capital se caracteriza pela
socialista podem tornar-se forças operadoras e acentuar de
dominação do contravalor— isto é, pela conotação positiva
maneira crescente as potencialidades e realizações positivas
perniciosamente conferida ao desperdício e à destruição —
percebidas, bem como reduzir o poder dos componentes
que carrega consigo a degradação da “educação” ao con-
negativos herdados. Para o êxito desse processo, é preciso
dicionamento conformista das pessoas que devem “inter-
confiar na dialética prática de mudança e continuidade,
nalizar” as exigências destrutivas suicidas do sistema do
capital, no espírito adequado à manutenção e ampliação
do contravalor. Nesse sentido, o movimento direcionado
à nova ordem sociometabólica, na sociedade de transição, 3 Em termos filosóficos, a categoria de mediação adquire uma impor-
tância particularmente grande no período histórico de transição à
é inseparável da necessidade de superar o ethos social her-
apa