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Artigos Diversos

O documento discute as mudanças nas relações de trabalho no Brasil, destacando a crescente flexibilização e a transferência do controle do trabalho do espaço público para o privado, resultando em perda de direitos para os trabalhadores. A tendência de acordos coletivos por empresa, impulsionada pelo baixo crescimento econômico e desemprego, reflete uma 'japoneização' das relações de trabalho, onde as especificidades de cada empresa determinam as condições de trabalho. O texto alerta para a fragilidade do sistema de relações de trabalho no Brasil, que tem sido moldado por uma legislação antiga e pela pressão das empresas por maior controle sobre os trabalhadores.

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Artigos Diversos

O documento discute as mudanças nas relações de trabalho no Brasil, destacando a crescente flexibilização e a transferência do controle do trabalho do espaço público para o privado, resultando em perda de direitos para os trabalhadores. A tendência de acordos coletivos por empresa, impulsionada pelo baixo crescimento econômico e desemprego, reflete uma 'japoneização' das relações de trabalho, onde as especificidades de cada empresa determinam as condições de trabalho. O texto alerta para a fragilidade do sistema de relações de trabalho no Brasil, que tem sido moldado por uma legislação antiga e pela pressão das empresas por maior controle sobre os trabalhadores.

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RELAÇÕES DE TRABALHO

Os novos modelos
do capitalismo
Cresce, no Brasil, a pressão por mudanças no sistema nacional de relações de trabalho, seguindo tendências
internacionais. Isso significa perda ainda maior de direitos para os trabalhadores
Claudio Dedecca*

Há um processo de mudança no cenário internacional e também no Brasil, principalmente no que concerne aos
sistemas nacionais de relações de trabalho. Há quase vinte anos, diversos países capitalistas vêm conhecendo
alterações nesses sistemas. Apesar deste longo período de mudança, continua-se acusando os sistemas
nacionais de relações de trabalho de serem pouco flexíveis e responsáveis pelos problemas de emprego.

O período de crescimento do pós-guerra, que vai de meados da década de 50 ao final dos anos 70, representa
quase duas décadas de crescimento sustentado. Ao longo destes anos, foram montados, no ocidente, sistemas
de relações de trabalho mais democráticos, que permitiram maior controle dos trabalhadores sobre o uso de
sua força de trabalho.

O controle sobre o trabalho

De meados dos anos 70 até hoje, a tendência vem sendo de desmonte progressivo daqueles sistemas. A
principal característica de mudança é a transferência do controle do uso do trabalho, do espaço público para o
privado.

No período de crescimento do pós-guerra, a principal característica do mundo do trabalho foi a geração de


emprego, mas também a redução do poder das empresas de controlar o uso do trabalho, tendo se transferido
esse controle para o espaço social. Esse deslocamento teve duas características. Em primeiro lugar, um maior
domínio dos trabalhadores sobre as negociações coletivas, crescentemente setoriais e nacionais. Em segundo
lugar, uma ampliação da ação do Estado, no sentido de coibir o uso depreciativo da força de trabalho por parte
das empresas.

Do social para o privado

Chamamos isso de processo de socialização das relações de trabalho. Trata-se de um processo que reduziu o
caráter privativo das relações de trabalho, isto é, que minimizou o espaço de construção destas relações no
interior das empresas. Cada vez mais as relações de trabalho foram sendo determinadas no espaço social pelas
negociações coletivas e pelo Estado.

Esta foi uma característica marcante do pós-guerra. A grande exceção foi o Japão, que manteve o controle das
relações de trabalho no interior das empresas, graças à repressão ao movimento sindical, que o governo
japonês impôs na primeira metade dos anos 50, garantindo a elas a construção própria das relações de trabalho.

Nos últimos 20 anos, o espaço regulação das relações de trabalho está se transferindo do social para o privado.
De maneira crescente, vai se reconstruindo o poder das empresas sobre a determinação das relações de
trabalho diretamente com seus trabalhadores, em várias situações com a presença dos sindicatos.

Baixo crescimento e desemprego

De maneira progressiva, verificamos que perdem importância os contratos e acordos coletivos nacionais por
setor e ganham importância os acordos por empresa, que vão se moldando às necessidades de cada uma delas.
Não são mais as empresas que se adaptam às características gerais do uso do trabalho. Ao contrário, os
contratos e acordos de trabalho estão se moldando às características específicas de cada uma das empresas.

Essa é a tendência das relações de trabalho no cenário internacional. Na grande maioria dos países, amplia-se a
importância dos contratos e acordos coletivos realizados nas empresas. Observamos, entretanto, que o maior
poder da empresa sobre os sindicatos e sobre o mercado de trabalho ocorre graças ao baixo crescimento
econômico e ao aumento do desemprego.

Os novos modelos

Atualmente, o trabalhador que consegue manter o posto está, de maneira permanente, com o revólver do
desemprego na cabeça. As empresas, face à ameaça constante do desemprego, têm um poder imenso de
pressão sobre os trabalhadores. E estes pressionam também os sindicatos para que, cada vez mais, firmem
acordos no âmbito das empresas, rompendo com o padrão de organização setorial e nacional que prevalecia
anteriormente.

Qual a característica principal destes acordos? Pode-se afirmar que há uma tendência de "japoneização" das
estruturas nacionais e das relações de trabalho. Os modelos norte-americano e japonês prevalecem. Eles
ampliam os acordos coletivos por empresa e reduzem a importância dos acordos nacionais. Alguns países,
como a Alemanha e a Suécia, fugiram mais fortemente desse processo. Mesmo assim, os acordos por empresa
cresceram de maneira substantiva em ambos os países.

O que muda com esses acordos ? Muda muito. É óbvio que a situação está cada vez mais difícil, mas qualquer
pessoa, quando vai acertar um emprego, quer saber: o que eu vou fazer? Por quanto tempo eu vou trabalhar?
Qual a minha jornada de trabalho? E quanto vou receber pela função que realizo? São as três coisas básicas.
Afinal de contas, não é trabalho escravo. Talvez até estejamos chegando próximo disso, mas ainda existe uma
certa característica geral dos contratos de trabalho que faz com que cada um de nós pergunte: o que eu vou
fazer, por quanto tempo e quanto receberei?

O padrão do pós-guerra foi permitindo que estas características básicas -- o que fazer, por quanto tempo e por
quanto -- fossem, de maneira crescente, determinadas pelos acordos coletivos setoriais e nacionais e pela ação
pública. Qual é, então, a característica nova que emerge dos novos contratos e acordos de trabalho feitos com
as empresas? A novidade está em que estes três elementos são crescentemente determinados pela
especificidade da relação construída junto à empresa.

Funções polivalentes

Não é à toa que nesses últimos anos apareça a idéia de trabalho polivalente. É uma adaptação no uso das
funções do trabalho às determinações da empresa. O banco de horas é uma adaptação do uso da jornada de
trabalho às necessidades específicas da empresa. E a participação nos lucros nada mais significa do que a
adaptação da remuneração ao padrão de cada uma das empresas. Essas mudanças aparecem mais recentemente
nos países desenvolvidos -- na Europa e nos Estados Unidos. No Japão, aparecem na primeira metade dos anos
80.
Em todos os acordos coletivos, as empresas pressionam para que os acordos se dêem por empresa, para que
sejam flexibilizadas as funções do trabalho pela polivalência, a jornada de trabalho pelo banco de horas, e a
remuneração pela participação nos lucros.

O significado disso é a internacionalização de toda forma de utilização do trabalho no interior das empresas,
ampliando a utilização privada das relações de trabalho.

O cenário brasileiro: sistema frágil

A cada novo momento de ampliação do desemprego, as empresas exigem uma nova flexibilização das relações
de trabalho, no sentido de se reapropriarem do controle do uso do trabalho em detrimento da esfera pública,
dos sindicatos, da política pública do Estado.

A experiência brasileira consiste em um sistema de relações de trabalho extremamente frágil. Em grande


medida, porque houve momentos em que poderíamos ter montado um controle sindical mais efetivo sobre o
uso do trabalho, mas essa ação política foi coibida. O problema é que as nossas estruturas de relações de
trabalho foram definidas por uma legislação e um controle público do Estado, montado ainda nos anos 40.

Democratização e sindicatos

Nos momentos decisivos, particularmente na década de 60, quando o movimento sindical desenhava o
rompimento com a estrutura sindical e com a forma de estruturação das relações de trabalho prevalecentes no
país, houve uma forte repressão. Quando o mercado de trabalho era favorável à estruturação do movimento
sindical, um governo ditatorial coibiu a ação do movimento sindical, transformou o sistema de relações de
trabalho e deu maior controle do uso do trabalho para o setor privado, para as empresas.

Quando esse governo enfraquece, na segunda metade dos anos 70, também a economia entra num movimento
de crise, que joga contra a ação sindical. Os sindicatos só não foram mais fragilizados pela crise porque existia
todo um movimento de democratização do País. E a democratização favoreceu a ação sindical.

Nos anos 80, vivemos uma situação de impasse. Ao mesmo tempo em que se avança na questão política, há
pouco avanço na regulação formal das relações de trabalho. As reformas estruturais que ocorrem no mundo do
trabalho estão inscritas na Constituição de 88, que amarra questões novas a questões antigas, não resolvidas.

Empobrecimento dos trabalhadores

E, mais do que isso, um ano depois de promulgada a Constituição, tivemos a primeira eleição presidencial do
País, após o período militar. Nesse momento, definimos os acúmulos da reorganização da sociedade brasileira
nos anos 90. É uma eleição que definiu o rumo de enquadramento do Brasil às tendências internacionais. É um
enquadramento a uma economia mais aberta, mais financeirizada e que não prioriza o emprego e as questões
sociais.

O emprego industrial no Brasil, em 1998, era 50% do emprego industrial de 1989. Os salários, em 1998, eram
30% menores do que os salários de 1989. A participação da massa salarial no produto industrial estava 23%
abaixo do que era em 1989.

Isto é, em dez anos, existe um claro empobrecimento dos trabalhadores em termos de emprego, de salário, de
participação dos salários no produto industrial.
O desmonte da estrutura produtiva

É nessa conjuntura que devemos discutir a mudança do padrão de relações de trabalho no Brasil. Um padrão
em que o mercado de trabalho se deteriora em termos de emprego e de renda. Esse contexto significa um
rompimento do tecido industrial, econômico e da estrutura produtiva nacional, marcada tanto pelo desmonte
de segmentos importantes da estrutura produtiva quanto pelo processo brutal de internacio-nalização da
economia brasileira.

Nessa discussão, alguns exemplos ajudam a entender a violência da mudança. Em três anos, deixamos de
consumir o leite "em saquinho" e passamos a consumir o leite "em caixinha", em embalagem longa-vida. Por
quê? Devido às mudanças tecnológicas na produção do leite? Isso é parte da verdade.

Em primeiro lugar, o leite longa-vida permite que a usina de processamento aceite o leite com a variação de Ph
muito maior do que o produzido "em saquinho". Em segundo lugar, a empresa que distribui leite não precisa
ter uma frota de caminhões que faça entrega diária. Ela passa com o caminhão uma vez por semana, entrega o
leite e não tem que voltar para pegar a caixa.

Internacionalização da economia

Outro dado importante desse processo de substituição deve-se ao fato de que a produção de leite no Estado de
São Paulo, que era predominantemente nacional, hoje passa a ser feita principalmente por empresas
internacionais -- a Parmalat, a Nestlé e outras. A tecnologia empregada pela Parmalat e pela Nestlé não é de
leite in natura, é a tecnologia do leite longa-vida.

Esse é o motivo pelo qual houve a transformação do modo de consumir leite no País. Não foi devido à
tecnologia, mas à internacionalização do setor. Essa situação se repete em outros setores.

Ao mesmo tempo em que temos uma fragilização dos empregos e dos salários no mercado de trabalho, há um
processo de internacionalização da economia. E, esse processo de transformação obriga o setor produtivo e o
comércio nacional a constituírem uma rede produtiva, onde a empresa nacional será apenas parte de uma rede
internacional.

O governo atual e a perda de direitos

Nestes últimos anos, as empresas vêm demandando uma mudança no padrão de relações de trabalho no Brasil
e exigindo a flexibilização do trabalho. Mas é preciso também deixar claro que o mercado de trabalho sempre
foi flexível no país. O uso e a alocação do trabalho, bem como a definição de funções do trabalhador, sempre
foram prerrogativas das empresas. Os sindicatos nunca conseguiram intervir de maneira mais intensa nesses
processos.

À revelia da legislação existente, adotou-se o banco de horas. A flexibilização da jornada de trabalho nada
mais é do que uma adaptação, uma forma de gestão da jornada de trabalho própria a cada uma das empresas.

O governo, através de uma medida provisória, legitima a flexibilização do salário com uma regulamentação
sobre a participação nos lucros e resultados. Assim, flexibiliza a norma pública de remuneração de trabalho.

Flexibilização dos direitos

Características de mudanças que existiam no cenário internacional chegam ao Brasil num sistema de relações
de trabalho profundamente flexibilizado. É essa tendência que observamos nos últimos anos. Dessa forma,
proliferam-se os acordos por empresa.

O governo Fernando Henrique Cardoso tem uma proposta no sentido de adaptar a estrutura sindical à realidade
de mercado. Na verdade, o Estado não quer a mudança da estrutura sindical, mas sim a flexibilização dos
direitos sociais. Quais são esses direitos sociais? São aqueles inscritos no Artigo 7º da Constituição -- as férias,
a licença-maternidade, o décimo-terceiro salário, enfim todos os direitos que conhecemos bem.

De que forma o governo propõe fazer isso? Ele alega que é necessário adaptar a estrutura sindical ao novo
padrão de relações de trabalho que o mercado vem impondo, e que precisamos mudar e dar maior liberdade de
negociação aos sindicatos. Portanto, é necessário modificar o Artigo 8º da Constituição. Mas ele diz também
que para mexer no Artigo 8º e dar liberdade aos sindicatos de se estruturarem e criarem seu campo de
negociação, é preciso dar aos sindicatos o que negociar. Assim, deve-se flexibilizar os direitos sociais que
estão inscritos no Artigo 7º , isto é, que o 13º salário, o direito de férias, a licença-maternidade, passassem a
fazer parte da pauta de negociação. Dessa maneira, junto com a suposta mudança da estrutura sindical, o que
se quer, de fato, é a flexibilização dos direitos sociais no sentido de ampliar o poder das empresas de
determinar um padrão de relações de trabalho.

Essa proposta é uma adaptação às demandas das empresas para reduzir os custos num contexto de forte
competição e concorrência internacional. Isso significa que o 13º, as férias e outros direitos sobre algumas
características do contrato de trabalho serão determinados, de maneira direta, entre empresas e sindicatos. E
em que contexto? Num contexto de elevado desemprego e de grande fragilidade dos sindicatos. Qual será a
tendência? O mais provável será o estabelecimento de uma tendência de perda ainda maior de direitos por
parte dos trabalhadores.

* Professor livre-docente do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de


Economia do Trabalho-Cest e presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho-ABET, gestão 97/99.
É também autor dos seguintes livros: Ocupação na América Latina, tempos mais duros, co-autoria de Nadia
Castro, e também Racionalização no Capitalismo Avançado, ambos de 1999. [voltar]
04/03/2003 - 07h49
Burrice é genética, arrisca James Watson
MARCELO LEITE
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo

Todos os geneticistas e biotecnólogos que vêem no determinismo genético (a crença de que tudo num organismo é prefixado pelos genes)
apenas um tigre de papel se esqueceram de combinar isso com o mais célebre e controvertido de seus pares, James Watson. Na semana em
que se comemoram os 50 anos de sua descoberta da estrutura do DNA com Francis Crick, Watson, 75, volta a chocar especialistas e não-
especialistas dizendo que a burrice é genética e que seria moralmente imperativo modificar genes para eliminá-la.
A notícia foi dada na sexta-feira passada pelo jornal britânico "The Times": em depoimento para a série de documentários de TV intitulada
"DNA", que estréia sábado na emissora Channel 4 (Reino Unido), Watson afirma que pessoas de baixa inteligência sem deficiência mental
conhecida sofreriam de uma doença hereditária tão real quanto a hemofilia.
"Se você for realmente burro, eu chamaria isso de uma doença", diz o Nobel de 1962 na série de TV, segundo reportagem de Mark Henderson
no "The Times" (www.timesonline.co.uk). "Os 10% inferiores que realmente têm uma dificuldade, mesmo na escola elementar -qual é a causa
disso? Muitas pessoas gostariam de dizer: "Bem, a pobreza, coisas assim". Provavelmente não é assim. Eu gostaria então de me livrar disso,
para ajudar os 10% inferiores."
Aperfeiçoar os filhos
Watson dá uma justificativa ética para o aperfeiçoamento genético: "Parece injusto que algumas pessoas não tenham essa oportunidade. Assim
que houver um meio de melhorar nossos filhos, ninguém poderá contê-lo. Os pais que aperfeiçoarem seus filhos... seus filhos se tornarão
aqueles que vão dominar o mundo".
Não é a primeira vez que Watson choca o público. Ele já defendeu, no passado, além das terapias genéticas convencionais (injeção de genes
"corrigidos" em pacientes com doenças metabólicas), a modificação de genes na linhagem germinativa de células humanas (gametas, como
óvulos e espermatozóides). Isso faria com que a alteração fosse herdada pelos descendentes da pessoa.
No caso da doença "burrice", se um dia se tornasse possível encontrar genes diretamente associados com ela, eles precisariam ser eliminados
nos tecidos embrionários que, no futuro, dariam origem aos gametas. Ao se tornar um adulto, essa pessoa geneticamente modificada quando
ainda era embrião geraria filhos sem aqueles genes. Se muitos seres humanos recorressem ao tratamento, a "burrice" tenderia a desaparecer
da espécie -um sonho bom demais para ser verdade.
"Honest Jim"
A ciência ainda está muito longe de conseguir esse tipo de controle sobre as aptidões e o comportamento humanos. Por ora, tais elucubrações
só confirmam a fama de desbocado de Watson, que chegou a ser alcunhado por isso de "Honest Jim" (Jim Franco -isto é, franco demais).
Nada costuma ser tão simples na genética, e Watson é, ou deveria ser, o primeiro a sabê-lo. Há dificuldades dos dois lados, tanto do genótipo
(genes que acarretariam uma característica) quanto do fenótipo (características de fato manifestadas no indivíduo).
Não só é difícil e provavelmente impossível definir um conceito operacional da doença "burrice" como, até o presente, nenhum gene pôde ser
inequivocamente associado com ela. Nem, tampouco, com seu oposto: inúmeros candidatos a genes "da" inteligência foram lançados, nas
últimas décadas, apenas para serem abatidos pela crítica de outros cientistas.
Complexidade desprezada
Pesquisas do Projeto Genoma Humano, que Watson ajudou a fundar em 1989, estão revelando uma complexidade nas relações entre dezenas
de milhares de genes e proteínas incompatível com o modelo simplificado das doenças metabólicas. Nesses casos raros, uma simples troca de
"letra" num gene pode desencadear efeitos devastadores, como a fibrose cística ou o mal de Huntington.
O esquema "um gene/uma doença" não é aplicável nem mesmo a males com mecanismos mais imediatamente bioquímicos, como o câncer.
Menos ainda podem ser usados para entender -controlar, então, nem pensar- manifestações complexas como "inteligência" ou "burrice".
"Ele está falando em alterar algo que a maioria das pessoas vê como parte da variação humana normal, e isso, acredito, está errado", disse Tom
Shakespeare, bioeticista da Universidade de Newcastle (Reino Unido), a Mark Henderson, do jornal londrino.
"O que me espanta, também, é que ele deveria pensar como um geneticista, mas não leva em consideração a complexidade de milhares de
genes e contextos particulares inter-relacionados no ambiente, que produzem o fenótipo da inteligência... Receio que ele tenha causado mais
mal do que bem, apesar de sua liderança no Projeto Genoma Humano e de sua descoberta de 1953."
Genes, garotas e autistas
No documentário, James Watson também se diz a favor da disseminação de genes "engenheirados" de beleza: "As pessoas dizem que seria
terrível se tornássemos todas as garotas bonitas. Eu acho que seria genial". Nada que não se pudesse esperar de alguém que intitula "Genes,
Garotas e Gamow" a sequência de seu não menos polêmico e autobiográfico "A Dupla Hélice", em que, ao lado de peripécias sobre o código
genético com o físico George Gamow, a obsessão e as dificuldades de Watson com o sexo oposto chegam a rivalizar com suas equivalentes na
biologia molecular.
O "The Times" informa ainda que Watson tem um filho que sofre de uma deficiência cognitiva similar ao autismo, fato que "Honest Jim" não
costuma abordar em público, mas que teria influenciado suas opiniões.
Outro biólogo bem conhecido do público, o ensaísta Stephen Jay Gould (morto no ano passado), também tinha um filho autista, Josh, exímio
calculista de calendários, capaz de dizer em segundos em que dia da semana cai uma data qualquer. Paradoxalmente, Gould se tornou um
ferrenho adversário do determinismo genético -o que não deixa de ser uma indicação de que parece haver muito mais determinações entre
genes e cultura do que pode sonhar a biotecnologia.

Mulheres pensam e falam com o corpo


Afinal de contas, o que quer a mulher? - perguntou o Freud, segurando seu charuto fálico. Bem, a mulher
não quer nada porque ela não existe, respondeu o Lacan. Tem razão - existem as mulheres, com data,
geopolítica, classe social. E aqui na TV, janela virtual do Brasil, surgiram agora quatro mulheres falando do
que "querem" na televisão. Elas estão no canal GNT, no programa Saia Justa: Rita Lee, Fernanda Young,
Marisa Orth e Monica Waldvogel. O programa está batendo todos os recordes da TV a cabo, comemoram
Letícia Muhana, diretora da GNT, e Suzana Villas Boas, produtora-executiva do show das quatro meninas
que, aliás, é ao vivo, quase um reality show.

As razões do sucesso total? Acho que sei. O mundo masculino está cansando as pessoas; não é à toa que
Roseana bateu alto nas pesquisas, que Rita Camata é chamada para vice, que Marina Silva, a corajosa e
sensual seringueira, pode vir a ser vice de Lula. Ninguém agüenta mais aqueles sujeitos de terno, com seus
bigodes e gravatas, decidindo os destinos mais finos da nação. A visão da mulher poderá ser mais
democrática, mais tolerante, mais sutil nesta época tão dura de transição para uma democracia social - se é
que ela virá...

O que há de novo no Saia Justa é que, normalmente, se convocam as mulheres para mostrar que estão
"integradas" no mundo atual. Nesse programa, ao contrário, as mulheres estão é "estranhando" o mundo.
Essa é a diferença. As mulheres se integram no mercado, muitas imitam à perfeição os homens no trabalho,
com seus tailleurs e invisíveis bigodes, mas em geral são vistas com uma curiosidade desdenhosa pelos
machos oficiais da mídia. Saia Justa é um território livre.

Rita Lee é aquele luxo. Faz um low profile defensivo, mas nós sabemos que São Paulo não seria a mesma
cidade se ela não existisse. Sob a capa de roqueira, ela é uma mulher política, faz uma análise cultural do
País, desde os Mutantes. A escritora Fernanda Young é a pós-modernidade se expressando, uma mistura
de mãe punk com intelectual pop, ostentando uma autoparódia na cara da gente, como arma crítica. Marisa
Orth, a anti-Magda, inteligentíssima, destrói a caretice e a peruíce, tanto como atriz quanto como
personagem, e Monica Waldvogel, sensata e doce, com o crivo da razão jornalística, faz o copidesque que
orquestra um sentido para as idéias que explodem no belo cenário de Carla Caffé, sob a luz de cinema de
Rodolfo Sanchez.

Em Saia Justa, as mulheres pensam com o corpo; suas reflexões são sempre repassadas de uma
subjetividade emocionada de onde sai um pensamento não-fálico, não definitivo. Novalis escreveu que "a
mulher é o ponto de transição do corpo para a alma". Nessa imprecisão está a sua riqueza, principalmente
nestes tempos submissos a um "pensamento único".

Às vezes, escrevo sobre as mulheres no Brasil de hoje. Mas sou um pobre macho perplexo. Por isso, aqui
vão algumas perguntas às meninas do Saia Justa:

Vocês não acham que as brasileiras comuns desconhecem a liberdade sonhada pelas feministas? O que
vemos aqui é uma libertação da "mulher-objeto". Elas não estão virando "sujeitos" livres, mas querem ser
mercadorias sedutoras, como um BMW, uma Ninja Kawasaki... O "objeto" é feliz, não sofre. As mulheres
querem a felicidade das coisas. Querem ser disputadas, consumidas, como um bom eletrodoméstico.
Verdade ou mentira?

A gente viaja pelo mundo e vê que as européias ou americanas não ficam apregoando uma sexualidade
berrante pelas ruas. Por que as brasileiras se exibem tanto como gostosas, peitos de silicone, coxas
lipoaspiradas, bunda soerguida, vagina indomável, sorriso largo e debochado? Será isso prova de liberdade
ou de fragilidade? Elas têm de oferecer sua carne nua o tempo todo porque são inseguras? Elas não
prometem carinho; prometem "funcionamento". Não é por acaso que são chamadas de "avião" ou de
"máquina"...

As mulheres brasileiras são amigas ou inimigas dos homens? Por serem oprimidas, é válido que a brasileira
use uma estratégia de controle sobre os machos, a sedução pela histeria, pela fragilidade fingida, pela
dissimulação da competência? Pode a brasileira "viver sem mentir"? O que é a perua? A perua seria uma
conseqüência disso? Quais as categorias de peruas?

A perua malvada é o "outro" do machão?... E a bunda? Não merece uma reflexão? As bundas estão virando
uma utopia. Não há mais o que mostrar. Nunca as mulheres foram tão nuas no Brasil... Já mostraram o
corpo todo, as vaginas, o interior delas... Só restará, um dia, os intestinos... O que mais? A revolução
feminista no Brasil será apenas esse strip-tease geral, essa dança da garrafa?
O sexo total que nossas gostosas prometem é impossível. Os peitos de silicone estão cada vez maiores,
estão virando depósitos de leite venenoso. A libertação da mulher no Brasil de hoje é uma vingança
conservadora? Sim ou não? Ou "sei lá"? Ou não é nada disso e minhas críticas não passam do medo de um
machista metido a fino?

Será que toda essa loucura feminina, essas capas de revista, essas roupas de mau gosto em coquetéis e
Caras, esses falsos brilhantes, essas gargantilhas com nome de marido, essas "ladies" querendo ser
prostitutas e vice-versa, essas multidões de meninas lindas querendo se salvar pela passarela ou bordel,
será que tudo isso, no fim das contas, não vai adoçar uma ordem excludente e discriminatória de séculos,
por uma doce miscigenação de costumes e loucuras? Será que isso tudo não é bom?

Talvez esteja surgindo no País, com vices e danças do ventre, uma nova política através de olhos femininos.
Os homens têm destroçado tudo. Só as mulheres podem nos responder. E salvar.

Talvez.

Entrevista exclusiva de Peter Drucker:


Admirável Mundo do Conhecimento
por Peter Drucker HSM Management
março-abril 1997

Muitas pessoas sustentam que, desde os tempos de Keynes, nenhum outro pensador teve tanta
influência sobre seus contemporâneos quanto Peter Drucker. Exageros à parte, indiscutível é que
esse austríaco de 89 anos é um dos intelectuais mais importantes de nosso tempo. Não por acaso, ele
vem sendo chamado nos meios acadêmicos e gerenciais de "pai do management moderno". Ao
longo de sua vasta obra, composta de 27 livros sobre administração, uma autobiografia e dois
volumes de ficção, Drucker exibe uma capacidade singular para integrar essa rica combinação de
pensamento filosófico, político, econômico, histórico, sociológico, tecnológico e mesmo científico.

Há 38 anos, no seu livro The Landmarks of Tomorrow, o Sr. Previu a "Era do


Conhecimento". Agora que ela se tornou realidade, quais são seus principais desafios?

Há duas áreas principais nas quais precisaremos trabalhar muito para poder colher os benefícios do
conhecimento. Estaremos muito ocupados nos próximos 50 anos ou mais, antes de podermos até
mesmo colocar as perguntas certas. Há questões da produtividade do conhecimento e do trabalhador
do conhecimento. Depois, há implicações no que diz respeito à própria natureza da empresa.
Finalmente, existem enormes implicações no tocante à educação e à sociedade.

Quais são as principais implicações quanto ao gerencianento de pessoas e à administração de


uma empresa?

Em primeiro lugar, precisaremos aprender como tornar produtivo o operário do conhecimento. Já se


passaram bem mais de cem anos desde que começamos a trabalhar para tornar produtivo o
trabalhador manual. E, sobre o aumento da produtividade do operário manual que está em torno de
3% ao ano -, repousa toda a capacidade de crescimento da produção de riqueza no mundo em que
vivemos. Nós ainda nem começamos a trabalhar com a produtividade do operário do conhecimento.
Mas já sabemos que ela é muito diferente da produtividade do operário manual. No caso do
trabalhador manual, julgávamos conhecer a tarefa, e fizemos a pergunta: "Como o trabalho deveria
ser feito?' No caso do trabalho do conhecimento, a pergunta deverá ser: "Qual é a tarefa?"; o como
virá muito depois. Hoje, o grande desperdício no trabalho do conhecimento, em quase todas as
organizações, é que os operários do conhecimento têm muito pouco tempo para aplicá-lo. A
maior parte do seu tempo é empregada em coisas que não acrescentam nada à sua
produtividade, à sua contribuição.

O Sr. vem falando sobre a necessidade de mudar para a "organização baseada em


responsabilidade". Isso também faz parte da "Era do Conhecimento"?

Sim. Trata-se de uma conseqüência direta do fato de que o conhecimento está se transformando no
recurso-chave. Não existe nada que se possa caracterizar como conhecimento superior ou inferior.
Mas o conhecimento efetivamente generalizado também não existe. Para ser efetivo, o
conhecimento tem de ser especializado. Isso quer dizer que o "chefe" já não poderá saber o que seu
subordinado está ou deveria estar fazendo. Isso enfatiza a figura do operário do conhecimento.
Então, a única maneira de fazer a organização funcionar será exigir de todos os membros, do chão
da fábrica ao mais alto executivo, que cada um assuma a responsabilidade por sua contribuição, mas
também assuma a responsabilidade de ser compreendido.

O que isso significa para a estrutura e a organização?


A primeira implicação é que cada vez mais precisaremos trabalhar em equipes. Falamos muito,
atualmente, sobre "trabalho em equipe". Mas até agora não há muita realidade envolvida nessa
discussão. Uma das razões é que os executivos ainda acreditam que são os "chefes". A maioria dos
executivos ainda acredita o mesmo que se acreditava no século XIX, ou seja, que o empregado
precisa do empregador mais do que o empregador precisa do empregado - o axioma básico
subjacente a toda a teoria marxista. Pessoas da área do conhecimento precisam efetivamente do
acesso a uma organização para serem eficazes. Os estudiosos precisam da universidade. Mesmo o
maior historiador contribui apenas com uma pequeníssima parcela de conhecimento e educação. O
mais capaz dos metalúrgicos precisa ter acesso a uma organização. Individualmente, cada um
contribui apenas com fragmentos. O vendedor mais capaz precisa das tecnologias de marketing para
prever ou determinar preços, ou a embalagem, ou a distribuição física, e assim por diante. O maior
neurocirurgião do mundo será um ignorante se o problema do paciente for uma luxação do
tornozelo. Isto posto, cada vez mais trabalharemos em equipes, mas ainda assim saberemos muito
pouco sobre a maneira de formá-las, de torná-las eficientes, sobre o tipo de equipe exigido por
determinada tarefa etc. Esta é uma das nossas grandes áreas de aprendizado no momento - desconfio
que se passarão pelo menos uns vinte anos até que possamos saber quais as perguntas certas a fazer
a respeito do trabalho em equipe numa organização. Entretanto, uma coisa está clara. Todos os
trabalhadores de uma equipe terão duas responsabilidades. A primeira será direcionar sua
contribuição para os resultados a serem alcançados pela equipe. A outra será fazer com que os
demais membros do time compreendam que cada indivíduo pode e deve contribuir.

O que tudo isso significa para uma organização? Quantos níveis hierárquicos serão
necessários no futuro?

Sempre que reestruturamos uma organização em torno da informação, descobrimos quase


imediatamente que a maior parte dos níveis de gerência é redundante. Observamos que a maioria
dos níveis tradicionais de gerência não gerencia nada, nem ninguém. Eles funcionam como relés
para os sinais fracos que vêm do topo, bem como para os sinais igualmente fracos que partem da
base da organização. Uma organização baseada na informação é plana. Quando procuramos
executivos de alto nível, buscamos pessoas com menos de 50 anos de idade. A fim de estar
preparada e poder ser testada, uma pessoa precisa ocupar um cargo no mesmo nível por cerca de
cinco anos, se se tratar de um verdadeiro cargo, isto é, exigente em termos de desempenho. Cinco
anos é tempo suficiente para aprender e testar a pessoa na função. Pouquíssimas pessoas obtêm seu
primeiro cargo de gerente com menos de 25 anos - geralmente isso acontece perto dos 30. Isso quer
dizer que é preciso ter pessoas sendo preparadas para assumir cargos na alta administração com pelo
menos 20 anos de antecedência, o que implica a ocupação de no máximo quatro cargos. Isso nos dá
um total de três níveis abaixo da alta administração. Se houver mais níveis, as pessoas não estarão
sendo suficientemente preparadas, ou os critérios de promoção estarão baseados em favorecimentos.
Precisaremos igualmente desenvolver diversas escadas paralelas para promover e
recompensar profissionais individualmente, quando estes não puderem se tornar executivos
ou gerentes. Caso contrário, nossos funcionários mais capacitados nos abandonarão. De
maneira geral, as pessoas mais capazes em termos de conhecimento não querem ser
executivas. Elas preferem exercer seu próprio conhecimento, isto é, ser um cirurgião de primeira
linha, um engenheiro de alta qualidade, ou um especialista em marketing excepcional. No entanto,
essas pessoas esperam com razão obter recompensas e reconhecimento compatíveis com sua
contribuição. A última e mais crucial implicação é que precisaremos pensar na tarefa das pessoas
que estão no topo da pirâmide. A maioria dos executivos que conheço divide suas atividades e gasta
pouco tempo nas verdadeiras tarefas de um presidente de empresa. Portanto, poderemos esperar
assistir, nos próximos 25 anos, ao desenvolvimento de estruturas organizacionais muito diferentes.

Em que áreas o Sr. acredita que ocorrerão as maiores mudanças na estrutura econômica?
Assistiremos, certamente, a mudanças muito grandes de tecnologia. As mais importantes talvez nem
aconteçam na área da informação, mas nos campos da biologia, da medicina, da genética e assim
por diante. A tecnologia da informação por certo continuará mudando pelo menos nos próximos
vinte anos, eu diria, e num ritmo bastante acelerado. Entretanto, a meu ver, outras mudanças
provavelmente terão maiores significado e impacto.

Mencione uma delas.

O que primeiro me vem à mente são as mudanças do centro de gravidade da economia. Durante
quase 200 anos, o centro de gravidade foi a produção de coisas, principalmente pelo setor
manufatureiro. Nas economias desenvolvidas, como Estados Unidos, Alemanha ou Japão, o centro
de gravidade está mudando muito rapidamente para o varejo. As novas cadeias varejistas se
autofinanciam em condições muito melhores do que as que poderiam ser oferecidas pelo setor
manufatureiro. Esta pode ter sido a mudança mais importante da estrutura econômica nos últimos 30
anos. Em toda parte, o centro de gravidade do mercado está se deslocando do produtor para o
distribuidor. Este é um fato que poucos fabricantes compreendem, ou com o qual conseguem
conviver. Assistiremos a mudanças semelhantes no varejo da distribuição do conhecimento. Esta é a
maneira de um economista referir-se à educação. Já existem universidades nos Estados Unidos que
ensinam um número maior de pessoas via satélite e telecast, fora da universidade e distantes dela,
do que as que freqüentam suas aulas.

Vamos mudar um pouco de assunto. Como o Sr. compara as economias do Brasil e da


Argentina, e as posições ocupadas por esses dois países no mercado mundial?

O Sr. está tentando comparar entidades bastante incomparáveis. O fato de esses dois países terem
fronteira comum não significa que sejam comparáveis - seria o mesmo que contrapor Itália e
Alemanha, apesar de ambos os países serem vizinhos. Se eu quisesse comparar a economia
argentina e determinar seu potencial de crescimento, faria a comparação com o Norte da Itália,
região de onde vieram muitos dos ancestrais dos atuais portenhos. E, no que diz respeito ao Brasil,
não creio que haja nada no mundo que se possa comparar ao Brasil. A maior fraqueza da Argentina
em todo este século tem sido sua crença no fato de que suas imensas vantagens como produtora de
alimentos fortalecem sua economia. Na realidade, hoje essa é uma de suas fraquezas. O resultado é
que os argentinos não utilizaram adequadamente seu magnífico sistema educacional - poucas
universidades no mundo podem ser comparadas à Universidade de Buenos Aires, hoje com 175
anos. De outro lado, a Argentina ainda não capitalizou o fato de que vem operando na economia
global há pelo menos 150 anos, desde que se tornou possível embarcar trigo e carne em grandes
quantidades. Quanto ao Brasil, esse país ainda não tirou partido da imensa vantagem
representada por seu enorme mercado doméstico. Se quiséssemos calcular o potencial futuro da
Argentina, eu diria que ele está na emergência de um número muito grande de pequenas e médias
empresas altamente especializadas. Já no Brasil, vejo em primeiro lugar a necessidade da
emergência de uma infra-estrutura eficiente e depois o desenvolvimento de uma economia de
serviços eficaz, para que o mercado doméstico possa se transformar no motor do desenvolvimento
econômico brasileiro

Doutor Calligaris não é um intelectual de gabinete. Nascido em Milão, em 1948, este psicanalista de 54 anos rodou
meio mundo antes de aterrissar — e se apaixonar — pelo Brasil. Viajante inveterado, Contardo Calligaris transita
com igual desenvoltura pelas idéias, que expõe em comentados artigos na Folha de S.Paulo. Também é autor dos
livros Hello Brasil! (Escuta, 1992) e Crônicas do Individualismo Cotidiano (Ática, 1996). O comportamento
humano, as relações homem /mulher, a guerra no Oriente Médio e a cândida violência brasileira são temas que ele
visita com o mesmo interesse com que morou em Londres, Genebra, Paris, Nova York e São Paulo. Nas duas
últimas, fixou residência.

A grande viagem da vida de Contardo começou aos 17, quando fugiu de casa para morar em Londres. Na capital
inglesa lavou pratos, vendeu cashmere nas ruas e distribuiu folhetos de boates de striptease. Voltou suavemente
obrigado pelo pai, mas não se sentia mais em casa na Itália. Em pouco tempo, deixava de lado os jobs que fazia
como fotojornalista e tradutor de romances policiais para estudar filosofia na Suíça e depois psicanálise na França.
O exílio sem volta incluiu viagens lisérgicas para Índia e Nepal nos anos 60, sexo livre e militância na Paris de
maio de 68 e a feroz contracultura norte-americana dos anos 70.
No meio do caminho, aprendeu cinco línguas, passou por três casamentos, desfrutou da amizade de Roland
Barthes, Jacques Lacan e Italo Calvino e sofreu a angústia de não pertencer a lugar nenhum. “Viajar deveria ser
proibido”, diz ele, surpreendentemente. “Produz uma divisão que não sara nunca.” Apenas uma das aparentes
contradições de seu pensamento inquieto — como a que juntou no mesmo sujeito o gosto pelo diálogo e a recusa
ao pacifismo. “Quando os aliados bombardeavam Milão na Segunda Guerra, meu pai, que era antifascista, pedia
que as bombas caíssem”, conta. “Acho que muitas pessoas no Iraque pedem para elas caírem.”
Em 86, depois de uma palestra em Porto Alegre, conheceu a também psicóloga Eliana dos Reis, uma gaúcha
intensa, “daquelas que têm a faca na bota”, como ele gosta de dizer. A paixão à primeira vista foi registrada em
foto. Juntaram escovas de dentes e filhos de outros casamentos. Na entrevista a seguir, colocamos o analista no
divã.

Dizem que brasileiro é bom de cama. Por quê?


Quando você fala em “sexualidade do brasileiro”, está se referindo a uma curiosa confluência entre o que acontece
na vida individual e na vida dos povos. O Brasil foi o maior sistema escravagista do mundo, e a gente se pergunta
se isso acabou direito. O fato de “nós”, no caso os brasileiros, sermos sensuais, ou sexuais mesmo, tem a ver com a
permanência dessas relações de domínio escravagista — que é o domínio do corpo, o “faço com o seu corpo o que
me der na telha”. Esse sadomasoquismo talvez seja a dinâmica fundamental de qualquer excitação sexual. E uma
das razões pelas quais há uma dificuldade de se conciliar sexo e carinho.

Por que é difícil conciliar sexo e carinho?


É possível ter carinho pela pessoa com quem a gente transa e transar com a pessoa por quem sentimos carinho.
Mas em uma alternância. O sexo não é o momento do carinho. Quando as relações se tornam totalmente carinhosas
e as pessoas começam a falar como bebês, daqui a pouco somos o Mickey e a Minnie e vamos dormir com o
pijaminha da Disney. Pode ser legal, mas aí a gente vai acabar não transando mais. Por isso que um bom casal é
um casal que briga.

Um bom casal é um casal que briga?!


Eu não acho que as relações “apaziguadas” sejam as melhores. Nem que seja grande problema, num casal, de vez
em quando voarem uns pratos. É a briga que permite o sexo. Não que você precise sair brigando para depois
transar. Quero dizer que a briga serve para quebrar o nhenhenhém. Porque o sexo implica uma certa distância.

E a idéia muito difundida em revistas femininas de que, com o tempo, é normal o relacionamento esfriar e
sobrar só o “companheirismo”?
Para mim é mais uma desculpa que outra coisa. Me parece contrário a tudo o que constato, pois, com poucas
exceções, somos bichos extremamente apaixonados pela repetição. Nossa regra geral é a mesmice. Então não vejo
por que a mesmice seria broxante. Minha idéia é que o interesse sexual se perde por preguiça.

Preguiça de transar?
É preciso esforço para manter a vida sexual. O sexo é um trabalho. Não no sentido de [aponta para o relógio] “ah,
agora vou para o escritório”. Mas, se você não mantém fantasias sexuais andando na sua cabeça, num dado
momento a atividade sexual morre. Nossa sexualidade não tem nada de natural, é ligada a fantasias e só funciona
com elas. A quantidade de casais que param de transar e se queixam como se fosse “eu deveria tomar Viagra” é
imensa. Mas o primeiro Viagra é pensar em sexo.

É mais fácil viver sozinho ou a dois?


[Longa pausa] É difícil responder por causa desse “mais fácil”. Acho que cada um deve descobrir se, para ele ou
para ela, é mais agradável viver sozinho ou a dois. Qualquer escolha é legítima, o problema é que todas têm um
custo. Eu acabo de pedir um Guaraná Diet e poderia envenenar a bebida com o lamento da Coca que não pedi. A
maior lição da psicanálise é esta: qualquer desejo implica perdas.

Em outro artigo você afirma que as pessoas andam “tão preocupadas em preservar suas liberdades
individuais que acabam por preservar a sua solidão”. É verdade?
Eu acho que, em vez de fugir dos relacionamentos, seria menos custoso inventar maneiras de convivência em que a
gente pudesse pagar um pouco menos do que a solidão. A gente tem muito a inventar na maneira de um casal
conviver e negociar a individualidade um do outro. Defendo as uniões duradouras, porque são mais interessantes.
Acho que muitas separações — mas, cuidado, não todas, longe disso — são efeito de preguiças diversas. Então,
valorizo os esforços dos que tentam ficar juntos.

Ainda sobre relacionamentos, você sempre pergunta: “Qual é a melhor viagem, visitar as capitais européias
num ‘tour’ de 15 dias ou passar duas semanas numa cidade só e conhecê-la um pouco?”. O que quer dizer?
Quero dizer que a diversidade das relações é dramaticamente desinteressante. A grande maioria das pessoas vive
uma série de monogamias. São poucas as que preferem uma vida de quinze capitais em quinze dias. E a verdade é
que isso é muito pouco interessante. Porque não existe nada de mais interessante no mundo do que as pessoas. E,
se você inventa um sistema de relações que na verdade é um sistema de não-rela-ções, se priva do que há de
melhor na vida.

Mas não há um certo prazer na variedade?


Não é a variedade, mas o desconhecido que tem valor erótico. Se você está disposto a ter uma transa num canto
escuro de um parque com alguém que nunca viu, isso é uma fantasia sexual do caramba. Só não esqueça a
camisinha. Mas ser galinha e ter um flerte com uma conversa babaca a cada dois dias não tem interesse nenhum,
nem sexual, nem individual. Entendo perfeitamente uma atividade sexual de sauna, de clube de swing, mas essa do
“eu flerto, bato um papinho, dou dois beijos e passo para outra” não tem nenhuma graça.
Fidelidade é essencial num relacionamento?
[Pensa] Não tenho valores absolutos sobre isso. Mas existe a ideologia, muito cool, de que “tudo
bem, nós somos liberados, transa com quem você quiser e eu também”. Só que, na maioria dos
casos, os dois vão sofrer uma barbaridade com isso: vão ter ciúmes, morder as unhas, se odiar e
acabar numa merda. Na grandíssima maioria dos casos é uma mentira.

Existe uma apologia do não-compromisso?


É possível. O que me espanta na geração dos meus filhos, que têm entre 19 e 24 anos, é que eles
se engajam em relações importantes, que duram anos, mas só são possíveis numa espécie de
negação absoluta. É evidente que estão construindo uma vida a dois, monogâmica, mas existe uma
atuação teatral do não-compromisso, uma negação da retórica do amor. Agora, eles praticam a fala
de nenê. Nê-nê-nê! [Gargalhadas] Isso é uma praga!

Que outras diferenças você vê?


Outra coisa que noto é que eles não parecem tão interessados pelo sexo quanto a minha geração.
A liberação sexual nos anos 60 era um tema ideológico. Era uma obrigação transar em grupo,
trocar de parceiro na cama... E acho, mas pode ser só impressão, que a atividade fantasmática
sexual é pouco presente nos jovens de 20 anos agora. Isso pode até ser positivo, porque diminui as
expectativas... Mas, não sei. Acho menos divertido.
Por que as novas gerações estariam menos interessadas em sexo?
A velha idéia é de que a proibição fazia o “sal” da coisa. E uma vez que a sexualidade foi liberada...
Mas não acredito nisso. A hipótese que levanto é que a nova geração erotiza menos as relações de
domínio. E, portanto, falta o elemento que era para as gerações precedentes uma das fontes
essenciais da excitação. Quando falo “erotizar as formas de domínio”, não significa nada de
espantoso. É aquele casal que se adora e na hora da transa ele diz “toma aqui, sua puta!” e os dois
gozam freneticamente. A pergunta é: as novas gerações são capazes de inventar uma sexualidade
diferente? É possível. Mas esse déficit é visível na indústria da “mascarada sadomasoquista” e nos
filmes pornôs, em que um strip ou uma transa não interessam mais — o negócio é “a puta
violentada pelo policial”. Também há um fundo sadomasoquista no movimento gótico, no punk, nos
vampiros, na cultura da tatuagem e do piercing.

A internet atrapalha as relações humanas?


Pelo contrário. A internet é um instrumento incrível de reativação das fantasias. As pessoas se
encontram pra caramba graças a ela. Se eu tivesse como fantasia erótica transar de garrafa a 12
metros de profundidade com um buraco na minha roupa de borracha, onde ia achar alguém que
gostasse da mesma coisa? Um senhor de meia-idade, casado, cuja grande emoção sexual é se
vestir de mulher e se masturbar olhando no espelho poderia passar a vida toda convencido de que
é uma monstruosidade, um freak. A internet permitiu a milhões de pessoas assim descobrirem
que não eram as únicas.
Oito normas de conduta cotidiana para o cidadão moderno
por Contardo Calligaris*

1. Você pode escolher entre ficar em casa ou pegar a estrada e, sem dúvida, faz e fará um pouco
dos dois. Mas, quando estiver em casa, tente não sonhar com a estrada e, quando estiver na
estrada, tente não lamentar o calor do lar. Vivemos de sonhos e de nostalgias: é necessário cuidar
para que essa alternância não nos mantenha constantemente afastados do momento presente.
2. Quando alguém pedir esmola ou ajuda, dê (na medida de seu possível) o que está sendo pedido.
Não tente moldar o desejo de quem pede, oferecendo pão e leite em vez do trocado. A humanidade
dos mais desprovidos se refugia e resiste justamente na capacidade de continuar desejando o
supérfluo.
3. Todos os pedidos podem ser recusados, mas devem ser, ao menos, reconhecidos. Portanto é
proibido recusar sem falar.
4. Trate como íntimo só quem poderia sem riscos lhe devolver a mesma cordialidade.
5. Caso você pretenda mudar o mundo, lembre-se de que, provavelmente, você não está à altura
do mundo mudado segundo seu desejo. Se pretende transformar seu parceiro ou sua parceira,
lembre-se de que você, provavelmente, não está à altura do parceiro ou parceira assim
transformados. Quem quer mudar as coisas facilmente esquece de contar-se entre os itens a serem
mudados.
6. Qual é a melhor viagem: visitar as capitais européias num “tour” de 15 dias ou passar duas
semanas numa cidade só e conhecê-la um pouco? É mais interessante manter um casamento
complicado do que multiplicar as ou os amantes. O mesmo vale para os amigos e relações em
geral.
7. Uma vez por semana, durante uma hora, sente-se numa esquina de sua cidade e contemple os
passantes. Tente imaginar a variedade das vidas, a dignidade de todas. Se você tem filhos, faça o
exercício duas vezes por semana: será de grande ajuda para aceitar que a vida deles vale a pena,
mesmo se não corresponde em nada aos seus sonhos.
8. Considere como verdade absoluta que é possível ter uma vida boa e justa sem acreditar numa
verdade absoluta.
*publicado originalmente no suplemento “Mais!”, da Folha de S.Paulo, de 13/10/2002.

Tecnologia Arte
Biologia
Física
O lugar do hipertexto na aprendizagem: alguns Geral
História
Interdisciplinar
Pedagogia
princípios para a sua concepção Química
Tecnologia
Setembro/98

por Lina Morgado


Introdução
Alguns princípios para a concepção de software educativo
O hipertexto como ambiente de aprendizagem
Referências bibliográficas

Introdução

É nosso propósito analisar aqui alguns princípios educacionais fundamentais na


concepção do software educativo e, especialmente, daquele com características
hipertextuais. Na verdade, dada a crescente "banalização" do hipertexto para fins
educacionais e/ou formativos é fundamental a reflexão, durante a concepção
desses materiais, sobre os processos de aprendizagem dos indivíduos e a
diversidade/ complexidade de variáveis envolvidas no processo de ensino-
aprendizagem mediado pelo computador.

O desafio que os construtores de software enfrentam é, na perspectiva de alguns


autores (Lewis, 1992; Barker, 1995), terem que expressar adequadamente a sua
concepção da aprendizagem. Na verdade, o que é hoje conhecido sobre os
processos de aprendizagem dos indivíduos não deriva de investigação realizada
com tecnologia em geral, nem da aprendizagem apoiada no computador (apesar do
incremento recente de investigação nessa área), decorrendo sobretudo da
contribuição da psicologia do desenvolvimento e da psicologia da aprendizagem. É
nesse contexto que, enquanto construtores de software educativo, é necessário
partir para um entendimento do computador, com todas as suas novas
potencialidades, como sendo um "parceiro que providencia oportunidades de
aprendizagem".

Partindo da idéia de que o computador exerce uma influência de ordem cognitiva no


indivíduo, nomeadamente através das características da interface construída, do
software e das ferramentas, importa refletir sobre a natureza desses efeitos nos
indivíduos e nas suas atividades de aprendizagem.

Nesse contexto, e de acordo com Calvani (1990), torna-se fundamental sublinhar a


distinção entre situações de utilização espontânea e situações de utilização
orientada do software. Na sua perspectiva, existem vários tipos de efeitos:

O primeiro tipo refere-se à atividade cognitiva envolvida na familiarização simbólica


com um ambiente informático, a aprendizagem de um novo software, que implica
não só a decodificação e interpretação de um "mundo simbólico" específico, como a
sua transferência para outros. Assim, e já no plano das preocupações do construtor
de software, a tendência existente para se instituir um certo alfabeto comum ou
sustentado por vários ambientes produzirá, certamente, algum impacto nos
indivíduos, em termos cognitivos.

Um outro aspecto prende-se ao desenvolvimento de um certo "saber-fazer" por


meio de capacidades espaciais (manipulativas e perceptivas), incrementado
também com a necessidade do utilizador ter de decodificar ícones e de os utilizar
freqüentemente. Esse tipo de influência relaciona-se com a especificidade de
algumas ferramentas de certas famílias de software (processadores de texto, bases
de dados), e que, para Calvani (op. cit., p. 109), podem ser denominadas
"ferramentas cognitivas", estabelecendo um paralelismo entre "utensílios do
computador e utensílios do pensamento". Assim, quer em ambientes gráficos, quer
nos de escrita, as ações de, por exemplo, "cortar e colar" implicam, entre outras
operações, como recortar, inserir, sobrepor e duplicar, envolvidas na atividade da
escrita, na construção de uma tabela ou na reordenação de um texto, e têm
subjacentes, do ponto de vista cognitivo, operações de análise e o estabelecimento
de relações lógicas, temporais, causais e hierárquicas.

Um terceiro tipo de efeitos relaciona-se com a dimensão metacognitiva introduzida


na interação através do controle que o utilizador pode ter do seu processo de
aprendizagem pessoal, do seu êxito ou de estratégias alternativas a que recorre. É
possível apoiar o exercício desse componente na concepção do software através da
introdução de operações de retorno (backtracking), com evidente significado
metacognitivo.

Assim, no domínio da concepção de "ambientes de aprendizagem" por computador,


autores como De Corte (1991) e Landsheere (1988) advertem ser necessário ter em
consideração o vasto e diferenciado conjunto de princípios e conclusões resultantes
da investigação sobre processos de aprendizagem. A idéia

global a ressaltar é a perspectiva relativamente dominante da natureza


construtivista

da aprendizagem -- os indivíduos são sujeitos ativos na construção dos seus


próprios conhecimentos, o que implica no tipo de software que pretendemos
construir.

Alguns princípios para a concepção de software educativo

À luz do que se sabe hoje sobre processos de aprendizagem, não é possível pensar
que o aluno inicie uma aprendizagem qualquer a partir de uma "tábua rasa". Esta
processa-se por meio do estabelecimento de relações entre o novo conhecimento a
adquirir e aquele que o aluno já detém.

Por isso é importante que a concepção de software seja orientada, nesse sentido,
pelos conceitos de Ausubel (1980), os organizadores avançados.

Trata-se de enunciar, antes da introdução do novo material, um conjunto de


conceitos, referências ou definições de caráter mais geral e inclusivo que orientem
e estruturem a aprendizagem. De fato, e segundo este princípio, o novo material é
melhor aprendido se submetido a idéias já relevantes. A função desempenhada
pelos menus num programa pode ser enquadrada e caracterizada como sendo
organizadores avançados. Investigação realizada pelas equipes da Apple, e citada
por Nicol (1990), revela que até os especialistas parecem enfrentar problemas para
compreender a lógica de um menu, necessitando, assim, de uma concepção mais
cuidadosa, de forma a contribuir para uma ajuda efetiva aos utilizadores em fase de
iniciação. Estes poderão, então, organizar melhor o seu conhecimento do programa
e dos conteúdos em causa.

Nicol (op. cit.) argumenta, por outro lado, que na concepção de interfaces para
aprendizagem é cada vez mais necessário ter em conta alguns dos princípios
observados por bons professores quando preparam e conduzem os alunos para
novas aprendizagens, na perspectiva de que o conhecimento, a informação
apresentada através de um "ambiente de aprendizagem" informático, encerra em si
mesmo a função de ensinar.

Nesse contexto, é possível apontar algumas variáveis definidas, entre outros


autores, por Brophy e Evertson (1976) e Brophy e Good (1984), em resultado da
extensa observação de professores. Assim, o perfil do bom professor depende de
variáveis como a quantidade e o ritmo de ensino, a qualidade do processo de ensino
(que se correlaciona com a informação fornecida), a elaboração e a adequação de
perguntas e a reação às respostas dadas.

Ainda no âmbito da investigação realizada sobre aprendizagem, têm merecido


alguma atenção os trabalhos realizados a partir da chamada perspectiva
fenomenográfica, sobretudo os estudos de Marton e Säljö (1984) e Entwistle (1986),
sobre a aprendizagem acadêmica em contexto universitário, que introduzem o
conceito de abordagem à aprendizagem ou abordagem ao estudo. Procurando
compreender as reações diferenciadas dos estudantes àquilo que parecem ser as
mesmas circunstâncias, esse conceito define-se mais como uma característica da
interação entre o estudante e a tarefa de aprendizagem, não podendo confundir-se
com estilo de aprendizagem.

Em tarefas como leitura e redação de artigos e resolução de problemas, Marton


(1984) identificou dois tipos de abordagens à aprendizagem: uma abordagem
superficial e uma abordagem profunda. A primeira caracteriza-se por uma tendência
para a memorização do conhecimento, a reprodução da informação e o recurso a
análises isoladas relativamente a assuntos específicos. Quanto à segunda, os
estudantes procuram envolver-se ativamente na compreensão dos assuntos, são
capazes de extrair evidências de conclusões e relacionam idéias com os seus
conhecimentos prévios.

Por sua vez, Entwistle e Ramsden (1986) identificam, num outro estudo, a
abordagem estratégica, definindo-a como a preocupação do estudante na obtenção
dos melhores resultados, investindo o menor esforço possível, sem deixar de se
assegurar das condições e materiais de estudo. Assim, está atento aos
procedimentos de classificação dos professores e analisa os enunciados de exame
de anos anteriores, por exemplo. É a este propósito que Relan e Smith (1996)
afirmam a necessidade de serem feitas recomendações no sentido de enriquecer os
ambientes de aprendizagem baseados no computador com a possibilidade de se
poderem expressar diferentes estratégias.

Para além das abordagens construtivistas, ausubelianas e fenomenográficas a que


nos referimos, uma revisão sobre os princípios da aprendizagem que podem estar
subjacentes à concepção e elaboração de software educacional não ficaria completa
sem uma referência à teoria de Vygotsky, que tem merecido uma atenção particular
e a quem se tem dado grande importância e relevo, após longos anos de
esquecimento.

Um dos conceitos mais úteis e importantes de Vygotsky (1974) para esse domínio é
o da zona de desenvolvimento potencial. O autor procura explicar a distância entre
o nível de desempenho atual da criança e aquilo que ela não é capaz de fazer
sozinha, mas que pode realizar com apoio de um colega ou de um adulto. A
aprendizagem, quando ocorre, situa-se nessa zona. Pode-se afirmar que, em parte
contrariando Piaget (1977), para quem a aprendizagem deve seguir o
desenvolvimento, para Vygotsky é a aprendizagem que promove o
desenvolvimento, ao intervir e estimular exatamente a zona de desenvolvimento
potencial.

É fundamental, nessa perspectiva, o caráter da relação entre os processos em


maturação e aqueles já adquiridos, bem como a relação entre o que a criança pode
fazer independentemente e em colaboração com os outros, admitindo que ela pode
adquirir mais com ajuda ou apoio do que individualmente. A zona de
desenvolvimento potencial nos ajuda a compreender, por exemplo, que a criança
(tal como o adulto) só possui a capacidade de imitar aqueles comportamentos que
se encontram na área da sua zona de desenvolvimento potencial. Vygotsky (1977)
não entendia a aprendizagem e o desenvolvimento como um só processo, nem
como resultantes de processos independentes. Na sua perspectiva, o ensino
provoca o desenvolvimento através da zona de desenvolvimento potencial,
afirmando mesmo que "o ensino é útil quando vai à frente do desenvolvimento (...)
e impele ou acorda uma série de funções que estão em estádio de maturação que
ficam na zona de desenvolvimento potencial". Considera, por isso, que o ensino
pode ser completamente desnecessário se utilizar apenas o que já foi amadurecido
no processo de desenvolvimento e se não constituir em si uma fonte de
desenvolvimento. Esse autor defende que "a interação social é a origem e o motor
da aprendizagem e do desenvolvimento intelectual", e o seu conceito de zona de
desenvolvimento potencial também é interpretado como a defasagem entre a
resolução individual e social de uma tarefa.

Bruner (1983), por sua vez, desenvolveu um conceito que procede teoricamente
dos trabalhos de Vygotsky: nas situações de interação adulto-criança, o adulto
implementa "processos de suporte" que se estabelecem através da comunicação e
que funcionam como apoio ou "andaimação" . O conceito utilizado por Bruner
refere-se à necessidade da intervenção do adulto para apoio do aluno na realização
de uma tarefa complexa que ele, por si só, seria incapaz de completar. O controle
da tarefa é transferido gradualmente do adulto (o apoio/ "andaime") para a criança,
ou do especialista para o principiante, durante o processo de ensino. Uma vez
aprendida a competência ou capacidade em questão, pode-se então prescindir de
tal apoio.

É nessa perspectiva que Teodoro (1992) e Lewis (1992) sustentam que a


contribuição do computador para a exploração da zona de desenvolvimento
potencial pode ser entendida através da percepção desse conceito na concepção do
software, que deverá por isso apresentar diferentes graus de complexidade,
dispondo o utilizador, em cada momento, de possibilidades que estão na sua zona
de desenvolvimento potencial.

O estudo das situações de interação através e com o computador colabora também


com o surgimento de novas áreas, tais como o apoio do computador na
aprendizagem colaborativa ou no trabalho colaborativo (Kay, 1992), em que a
aprendizagem se processa como resultado do trabalho em conjunto dos indivíduos,
fisicamente distantes, mas se comunicando através de redes eletrônicas.

A investigação realizada fora do contexto da aprendizagem baseada no computador


permite afirmar que, sob certas condições, uma aprendizagem em cooperação
através da interação social tem efeitos mais duradouros do que a aprendizagem
competitiva e individual.

Em meados da década de 70, alguma atenção começa a ser dada (Perret-Clermont,


1978; Doise e Mugny, 1980) à interação do aluno com o meio social e seus possíveis
efeitos sobre a aquisição do conhecimento. Procurando compreender os
mecanismos responsáveis pelos progressos em conseqüência da resolução de uma
tarefa através da interação no grupo de pares, Perret-Clermont (1978) apresenta os
resultados sobre a investigação realizada, aqui sintetizados nos seguintes pontos:

· Com relativa freqüência, a realização coletiva de uma tarefa dá lugar a produções


mais elaboradas (e até mais corretas) do que quando produzidas individualmente.
Estas conclusões são comprovadas com tarefas de diferentes características. A
superioridade desse tipo de produção é por vezes devida ao fato de um dos
membros do grupo "impor" aos restantes uma solução mais correta.

· Em algumas circunstâncias, o trabalho coletivo nem sempre dá resultados durante


a realização da tarefa. Coll (1992, p. 115) adianta que, na perspectiva dos autores
desses trabalhos, a interação social é o "ponto de partida de uma coordenação
cognitiva cujos efeitos se manifestam posteriormente nas produções individuais".

· Conclui-se que quase sempre há progresso nas competências dos participantes


nas atividades de grupo, desde que exista um confronto de pontos de vista
(independentemente do seu grau de correção) moderadamente divergentes. Há,
contudo, duas situações em que, pelo contrário, não se observam progressos:
quando há imposição de um ponto de vista a outros, que o adotam, e quando todos
os elementos possuem a mesma perspectiva.

Perret-Clermont (1978) ressalta que a existência de diferentes pontos de vista se


traduz num conflito sociocognitivo "que mobiliza e força a reestruturações
intelectuais e com isso ao progresso intelectual".

Estudos elaborados (De Corte, 1990 e 1991) sugerem que os trabalhos em


pequenos grupos em tarefas de programação, e dirigidos pelos próprios, têm uma
correlação positiva com o desempenho acadêmico e o desenvolvimento de
capacidades cognitivas, das quais é possível fazer sobressair, por exemplo, a
verbalização de estratégias de planificação, explicação e identificação de erros.

Não poderíamos deixar de citar, na discussão dessa problemática, a crescente


investigação na concepção e desenvolvimento de software que vem possibilitar a
interação on-line entre indivíduos (a conferência por computador e as "salas de
aula" virtuais, por exemplo).

Uma outra abordagem importante e relevante para o estabelecimento de princípios


para a concepção de software educativo é a que se baseia na teoria dos Modelos
Mentais (Johnson-Laird, 1983).

Lewis (1992), no propósito de elaborar um quadro de referência sobre as novas


tecnologias na educação, adianta a noção de modelo mental como nuclear,
utilizando-a contudo num sentido mais abrangente do que os investigadores da
cognição. Norman (1987) define-a como a visão que os indivíduos têm do mundo,
de si próprios, das suas capacidades e das tarefas que devem desempenhar ou
aprender. Ao interagir com o meio, com os outros e, por exemplo, com a tecnologia,
os indivíduos constroem (internamente) modelos mentais de si próprios e dos
objetos com que estabelecem a interação. Esses modelos funcionam como um
conjunto de expectativas que organizam e estruturam a interacção com a
tecnologia contribuindo para a sua compreensão.

Ao descrever esses processos, Norman (op.cit.) observa que na interação com a


tecnologia é necessário considerar quatro aspectos diferentes: o sistema
tecnológico propriamente dito, o modelo conceptual do sistema tecnológico, o
modelo mental que o utilizador elabora em relação ao sistema tecnológico e a
conceptualização que o investigador tem desse modelo mental do utilizador (trata-
se do modelo de um modelo).

Esse autor realizou uma extensa investigação sobre as interações dos indivíduos em
tarefas que implicavam o uso tecnológico (computadores, processadores de texto,
câmaras de vídeo, etc.), tendo concluído que as noções que os indivíduos tinham
das características e capacidades do mediador com quem estavam em interação
eram "surpreendentemente poucas, imprecisas, cheias de inconsistências e falhas".
Além disso, sentiam-se freqüentemente inseguros do conhecimento que possuíam,
mesmo quando era correto, e seus modelos mentais incluíam conhecimentos ou
crenças que eram avaliados como de "validade duvidosa".

Parte desses conhecimentos caracterizaram-se como supersticiosos, ou seja, regras


que "parecem funcionar" mesmo quando não fazem sentido. Essas dúvidas e
superstições orientam o comportamento e implicam cuidados extras quando se
efetuam operações, especialmente se o indivíduo tem experiência com outros
sistemas semelhantes, que, entretanto, possuem um conjunto diferente de
princípios a operar.

Norman distingue, ainda, nesse contexto, a conceptualização ou modelo conceptual


de um determinado sistema do modelo mental que um utilizador pode ter de um
sistema, sendo necessária uma investigação adequada. Eles distinguem-se pelo fato
de o primeiro se constituir como instrumento de compreensão dos sistemas físicos,
enquanto o modelo mental se refere aos indivíduos e àquilo que os orienta na sua
utilização.

Pode-se, assim, afirmar que quando um sistema é concebido, baseia-se num


modelo conceptual, e é este que deve orientar a interface com o sistema, de modo
que a imagem do sistema, ou imagem que o utilizador percebe do sistema, seja
consistente, inteligível e coesa. Esse modelo conceptual deve obedecer a três
critérios: ser fácil de aprender, ser funcional e ser fácil de usar. É nesse sentido que
Norman chama a nossa atenção para o fato de se verificar, com freqüência, não
existir qualquer correspondência entre o modelo de concepção do sistema que
orienta o construtor, a imagem do sistema que é apresentada ao utilizador, os
conteúdos que serão ensinados ao utilizador e o modelo mental deste, adiantando a
esse propósito: "como construtores é nosso dever desenvolver sistemas e materiais
de ensino que ajudem os utilizadores a desenvolver modelos mentais mais
coerentes e adequados" (Norman, op. cit., p. 244).

O hipertexto como ambiente de aprendizagem

Com o desenvolvimento e implantação do hipertexto, importa refletir sobre se se


tratará apenas de mais uma tecnologia que possibilita um outro modo de acesso à
informação, ao conhecimento, ou se existem de fato vantagens reais em termos de
aprendizagem com esses sistemas.

A literatura da especialidade nos dá uma visão contraditória em relação a esta


questão, consoante parte de uma perspectiva mais tecnológica ou mais
educacional. Contudo, a idéia principal que parece sobressair de qualquer dos
pontos de vista é que o hipertexto possibilita a criação de ambientes em que o
utilizador experimenta um certo grau de autonomia enquanto navega na
informação, o que contribui sem dúvida para que se expressem estratégias
individuais de aprendizagem, sendo o sujeito responsável pelo seu próprio processo
de aprendizagem.

Há controvérsias entre os vários autores, dividindo-se as perspectivas entre os que


consideram o hipertexto um sistema de aprendizagem, em que algum tipo de
aprendizagem ocorre da utilização de um sistema de apresentação da informação
(Mayes et al., 1990a; Duchastel, 1990), e aqueles que o definem como sistema de
ensino, ligado portanto a contextos educacionais formais e a tarefas orientadas
para objetivos (Whalley, 1990).

Dentro do primeiro grupo, existem ainda perspectivas diferenciadas: os que


definem o hipertexto como ambiente de aprendizagem pela descoberta (Jacobs,
1992), de aprendizagem associativa (Duchastel, 1990), ou de exploração (Mayes et
al., 1990b). É fundamental aprofundar a natureza dessa aprendizagem em função
das especificidades e dos problemas desses sistemas.

Jacobs (1992) considera que em um ambiente caracterizado pela existência de uma


rede de conhecimentos interligados, que possibilite o movimento através desse
espaço de informação conceptual, o utilizador aprenderá, sem dúvida, também de
modo acidental enquanto explora esse espaço, aprendendo pela descoberta e
experiência pessoal. O fato de navegar e pesquisar (browsing) seguindo a intuição
trará sempre maiores benefícios do que estando limitado às características do
ensino programado.

No entanto, para Duchastel (1990), a utilização do hipertexto em contextos de


aprendizagem formal é problemática, dada a diferença estrutural e conceptual
entre eles. É sobretudo no campo da aprendizagem informal, e principalmente por
meio de fatores de ordem motivacional, que ele oferece vantagens. A sua
perspectiva relaciona-se também com uma outra variável, ou seja, as
características intrínsecas dos sistemas de hipertexto possibilitam ter uma idéia do
tipo de aprendizagem que se processa. Defende, por isso, que o hipertexto não é
adequado a tarefas com um elevado grau de estruturação, adaptando-se
preferencialmente a uma aprendizagem associativa. Estabelece, assim, um
paralelismo entre a navegação em hipertexto e as tarefas de aprendizagem nos
tempos livres (leisure learning), explicando esse aspecto através da motivação
intrínseca, que define como effin factor, ou seja, "o esforço que o aprendente está
disposto a investir numa atividade ou no acesso a um recurso em relação ao seu
interesse intrínseco de momento no tópico" (Duchastel, op.cit., p. 138).

Mayes et al. (1990a) preferem caracterizar o tipo de aprendizagem que se dá


através de um hipertexto como implícita ou acidental, em oposição à aprendizagem
explícita, à semelhança dos processos de "osmose", tal como grande parte da
aprendizagem que se processa por meio do computador. Romiszowski (1990)
demonstrou que, tornando-a mais explícita (por exemplo, através de questões-
chave que direcionem a procura da informação), se incrementa a aprendizagem
relacionada com esses pontos-chave, reduzindo o tempo e os problemas de
navegação e aumentando os níveis de satisfação com a interação.

Na análise do tipo de aprendizagem desenvolvida em contextos hipertextuais,


vários autores preferem defini-la como aprendizagem exploratória, enquanto outros
privilegiam a aprendizagem pela descoberta. Embora à primeira vista pareçam
aprendizagens do mesmo tipo, é necessário explicitar melhor as suas fronteiras.
Sobretudo no caso da aprendizagem pela descoberta, existe alguma tendência para
aplicar o termo sempre que se está perante uma situação em que o aluno "efetua a
descoberta de alguma coisa" de modo autônomo, o que em alguns casos é pouco
rigoroso e não corresponde ao conceito subjacente.

Há dados de investigação que conduzem a pensar que os utilizadores de hipertexto


exploram a informação até descobrirem um nó de informação com interesse, o que
não significa exatamente o mesmo que descobrir o conteúdo da informação que se
encontra nesse nó específico. Nessa perspectiva, parece que o utilizador usa a
aprendizagem por recepção para absorver o conteúdo.

Apesar de tudo isso, pensa-se que o processo de exploração de um hiperdocumento


sempre trará ganhos àquele que o realiza, em termos de aquisição de
conhecimento, podendo até considerar-se que estes serão maiores do que se o
utilizador efetuasse uma leitura linear. Contudo, não é possível afirmar que a
exploração garante a descoberta.

Para Romiszowski (1990), só se processa uma autêntica aprendizagem pela


descoberta se existirem ligações entre o conhecimento prévio e a aprendizagem
que pode ser realizada individualmente pelos alunos.

Defendendo a utilização do hipertexto como ambiente de aprendizagem, Kibby et


al. (1992) apresentam argumentos dos quais realçamos aqueles que se articulam
com a natureza dos aspectos aqui abordados. Assim, segundo eles, se a filosofia
subjacente ao hipertexto (a idéia de Bush) se apóia no modelo das estruturas
associativas do pensamento humano, estabelecendo um paralelo com o modo de
organização da informação no hipertexto, então é natural que por meio dele ocorra
aprendizagem. Por outro lado, não existindo limites no acesso à informação em
qualquer momento, o sujeito vai elaborando associações.

Outro argumento postula que é pelas escolhas ativas do aluno que este desenvolve
suas próprias estratégias de aquisição e de estruturação do conhecimento de nível
elevado, controlando, desse modo, o seu processo de aprendizagem.
Esses autores fazem uma análise interessante das potencialidades do hipertexto
como ambiente de aprendizagem, colocando-se na perspectiva do aluno e
considerando determinante a questão do espaço. Ao circular, o aluno se deparará
com duas estruturas paralelas: o hiperespaço, referente ao domínio do hipertexto
(nós e ligações), e o espaço conceptual, referente ao domínio do conhecimento
propriamente dito, cuja informação se materializa no conjunto de nós e ligações e
em todas as possibilidades de associação da informação. Definem, por isso, como
de maior complexidade o espaço conceptual, que envolve mais ligações do que as
explicitamente representadas.

Compreende-se, então, que a utilização do espaço enquanto metáfora possa


funcionar como um procedimento eficaz de organização da informação, atribuindo-
se-lhe mesmo grande parte do sucesso obtido na manipulação direta. Dos dados
empíricos obtidos em torno dessa questão torna-se possível delimitar o potencial do
uso da codificação espacial: se é usada para a realização de mapas, então aquele
se restringe à navegação; se constitui uma variável para a estruturação dos
conteúdos, então parece ser crucial na aprendizagem. Neste último caso,
assinalam-se diferenças individuais quanto à adequação da representação espacial
das estruturas do hipertexto para exploração do espaço conceptual.

Podemos afirmar, contudo, que existe algum consenso em torno da idéia de que
ocorre qualquer tipo de aprendizagem na exploração/navegação de um hipertexto,
sobretudo se existirem mecanismos de apoio. Assim, autores como Mayes et al.
(1990, p. 122) vão mais longe afirmando que "uma exploração de uma rede de nós
e ligações completamente livre comportará deficiências ao nível da aprendizagem",
adiantando ainda que "instrumentos e outras características do hipertexto devem
ser concebidos explicitamente para apoiar e facilitar a aprendizagem per se."

De acordo com Kibby et al. (1992), os mecanismos de navegação têm apenas a


função de ajudar a localizar a informação no domínio do hiperespaço, e não apoiá-la
no espaço conceptual (ou seja, fornecendo informação acerca dos conteúdos). À
medida que os alunos vão ficando mais proficientes, concentram-se mais na
interface intelectual e interagem no espaço conceptual, enquanto os principiantes
investem mais na aprendizagem da navegação e menos nos conteúdos.

Voltando a Mayes et al. (1990a), estes procuraram avaliar o que os alunos faziam, o
que pensavam e o que aprendiam com esses sistemas. Realizaram um estudo em
que observaram grupos formados por duplas em interação com um hipertexto,
recorrendo a uma metodologia de interação construtiva, que exigia a tomada de
decisões em conjunto quanto aos procedimentos a adotar e, portanto, um diálogo
intrínseco à tarefa. Concluíram que a exploração ativa no hiperespaço não é, de
forma alguma, um processo semelhante a uma exploração conceptual, verificando
que, em certos casos, os sujeitos se envolvem de tal modo na aprendizagem dos
conteúdos apresentados que se "esquecem" de fazer a aprendizagem da utilização
dos mecanismos de exploração.

O que parece verificar-se, sobretudo nos primeiros contatos com o hipertexto, é que
os sujeitos ou aprendem a navegar no hipertexto ou se centram nos conteúdos, não
o fazendo simultaneamente. Um outro aspecto evidenciado foi a tendência para
"regressar" a um estádio inicial da exploração do hipertexto à medida que vão se
desligando da aprendizagem da navegação e focando sua atenção no domínio da
aprendizagem. Os autores puderam concluir que se observa, apesar de tudo, um
aumento da utilização flexível do hipertexto.

Nesse sentido, os sistemas devem ser concebidos para apoiar a aprendizagem,


providenciando mecanismos de representação do espaço conceptual diferentes das
ligações e nós do hiperespaço, e instrumentos para o aluno construir, modificar e
interagir com o seu próprio mapa conceptual, por exemplo. Deverá existir a
possibilidade de as ligações entre os nós serem visíveis, e aquelas que forem sendo
percorridas estarem assinaladas, apoiando assim a aprendizagem.

Dessa forma, Oliveira e Costa Pereira (1990) preconizam a assistência e orientação


explícita a pedido do aluno sobre, por exemplo, zonas de conteúdos relevantes em
relação à sua localização, mas ainda inexploradas, e outros dispositivos como
questionário ao aluno sobre suas intenções e propostas alternativas, etc.,
considerando, ainda, que as soluções existentes são insuficientes e limitadas, sendo
necessária maior investigação sobre a matéria.

Vários trabalhos concluem que, para que se processe a aprendizagem, são


determinantes os seguintes fatores cognitivos: controle, complexidade e desafio,
sendo comum a perspectiva que enuncia que os maiores problemas do hipertexto
são aqueles que contribuem para dificultar e até bloquear eventuais processos de
aprendizagem.

Se o aluno se perde em conseqüência da confusão cognitiva, pode interpretar isso


como perda de controle no hiperespaço, já que não sabe que ação empreender em
seguida (Kibby, 1990). A idéia da perda versus ganho de controle que o aluno
experimenta no hipertexto torna-se muito interessante nesse contexto. Quando o
utilizador navega de um nó para outro há uma perda de controle porque ele
desconhece a relevância do nó de destino no momento em que ativa a ligação.
Parece que o processo de aprendizagem envolve o desafio de inferir ou antecipar o
conteúdo do nó de destino à luz do conteúdo dos nós já visitados. Se o conteúdo do
nó de destino é incorporado com sucesso na crescente conceptualização do domínio
do conhecimento, então o aluno se sentirá no controle. Caso contrário, uma ligação
que resulta confusa, especialmente quando o fato se repete, pode conduzir à idéia
de perda de controle, pois o utilizador não tem indicadores para selecionar uma
nova ligação. Apesar de esta problemática merecer investigação mais aprofundada,
os hipertextos dispõem de mecanismos que facilitam o controle, como o mecanismo
de retorno e os caminhos.

Por outro lado, o fato de o aluno se encontrar perdido ou desorientado "pode ser
visto como desejável ou mesmo como uma parte necessária no processo de
estruturação" (Mayes et al., 1990, p. 125) e, sob certas condições, a desorientação
no espaço conceptual pode considerar-se um pré-requisito necessário para
aprofundar a aprendizagem, constituindo até, no caso de alunos mais
experimentados, um desafio, retirando-se dela alguma vantagem.

Outro aspecto que pode ser referenciado como determinante do grau (e tipo) de
aprendizagem que o sistema permite é o modo de estruturação da informação
(Jonassen e Grabinger, 1990), ou seja, o modelo de informação e a interface
intelectual. O primeiro está relacionado com a rede de ligações entre os elementos
da informação e o segundo refere-se ao modo como a rede de relações pode ser
representada para o utilizador, de modo a facilitar a navegação e minimizar a
desorientação cognitiva associada à variedade de perspectivas acerca de um
tópico.

Como já afirmamos, alguns trabalhos destacam o fato de que qualquer ambiente


deve permitir diferentes estratégias de aprendizagem, não só para se adequar ao
maior número possível de indivíduos (que terão necessariamente estratégias
diferentes), mas também porque as estratégias utilizadas por cada indivíduo variam
de acordo com a familiaridade com o conteúdo, a estrutura dos conteúdos e a
motivação, entre outros.

Orientados por essas premissas, Stanton e Stammers (1990) compararam a


performance de diferentes sujeitos numa condição não-linear e numa condição
linear, tendo obtido resultados superiores em relação ao primeiro caso.
Compararam também os caminhos que os sujeitos usaram para chegar à
informação com o modo como efetivamente o tinham realizado, e identificaram três
estratégias de aprendizagem: 1.ª) estratégia top-down ("eu vi primeiro as coisas
mais importantes"); 2.ª) estratégia bottom-up ("progredi da informação mais básica
para a mais complexa"); e 3.ª) estratégia seqüencial ("fui numa seqüência contrária
aos ponteiros do relógio, a partir do écran panorâmico").

Os sujeitos top-down tendem a preencher com a experiência um modelo mental


cuja estrutura preexiste à interação, sendo por outro lado capazes de estruturar o
ambiente não-linear. Foram mais lentos na abordagem inicial, mas à medida que
avançavam tornavam-se bastante mais rápidos que os outros grupos, utilizando
estratégias de aprendizagem mais complexas. Exploravam ainda menos módulos
porque faziam mais inferências. Por sua vez, os sujeitos do grupo bottom-up
constroem um modelo mental através da experiência direta ("fazendo"), seguindo
uma estratégia mais seqüencial. Já no caso dos sujeitos do grupo seqüencial, estes
apoiaram-se no écran panorâmico como base para estruturar a sua navegação, o
que pode ser visto como um meio de implementar uma certa estruturação. Há
algumas semelhanças com a estratégia bottom-up, apesar de se assinalarem
diferenças nos estilos cognitivos.

Na seqüência desse estudo, Stanton e Stammers apontaram as seguintes


vantagens no ambiente de hipertexto: permitir diferentes níveis de conhecimento
prévio; encorajar a exploração; permitir a visualização de subtarefas como parte de
tarefas mais globais; adaptar informação aos estilos individuais de aprendizagem.

De tudo o que foi exposto resulta claro que nos encontramos num vasto domínio em
que muitas questões ficam por debater. Importa porém afirmar que recai sobre os
construtores destes novos materiais educacionais, seja com objetivos explícitos de
aprendizagem ou não, uma grande responsabilidade. Se, como alguns concluem, a
generalização do hipertexto e da hipermídia vier abrir um novo capítulo na nossa
vida cotidiana, é crucial a investigação nesse domínio, de modo a poderem ser
concebidos e desenvolvidos documentos (e outros "objetos") de acordo com uma
"gramática" adequada.

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Biografia

Lina Morgado é licenciada em Psicologia Educacional e Mestre em Comunicação


Educacional Multimídia. É assistente da Universidade Aberta, em Portugal, onde
leciona na área das Ciências da Educação. Em termos de investigação, desenvolveu
trabalhos no campo do software educativo e das novas ferramentas de
comunicação e informação no campo da aprendizagem. Prepara atualmente o seu
doutoramento na área das Tecnologias da Comunicação e Informação.

PASSO A PASSO PARA CHEGAR À VAGA


16/09/2001

Autor:
Editoria: CADERNO ESPECIAL 4 Página: 8
Edição: São Paulo Sep 16, 2001
Arte: QUADRO: PASSO A PASSO PARA CHEGAR À VAGA
Observações: EMPREGOS ESPECIAL - ESTÁGIOS E TRAINEES
Assuntos Principais: TRABALHO; ESTÁGIO; PROCEDIMENTO; OPORTUNIDADE

PASSO A PASSO PARA CHEGAR À VAGA


. Primeiro passo: encontrar a oportunidade
Há várias maneiras de procurar estágio ou trainee, veja algumas:
Agentes de integração
São órgãos que fazem a intermediação entre o candidato a estágio e as empresas com oferta de vagas. Essas
instituições não podem cobrar taxas do estagiário
- Aprendiz (www.aprendiz.org.br)
- Câmara Americana (www.amcham.com.br)
- Central de Estágios (www.gelre.com.br)
- CIEE _Centro de Integração Empresa-Escola_ (www.ciee.org.br)
- Ética (www.etica-estagios.com.br)
- Fundap _Fundação do Desenvolvimento Administrativo_ (www.fundap.sp.gov.br)
- Fundação Mudes _vagas do Rio_ (www.mudes.org.br)
- Nube _Núcleo Brasileiro de Estágios_ (www.nube.com.br)

Anúncios em jornais
Os classificados reúnem oportunidades em grandes empresas e vagas em companhias de pequeno porte, mas nem
sempre o nome do empregador é divulgado

Sites das empresas


Se você tem interesse em trabalhar numa companhia específica, pode ir direto à sua página na internet e buscar
informações sobre programas de estágio/trainee. Geralmente há um link remetendo a oportunidades, como
"Trabalhe conosco". Navegar pelo site também é uma chance de conhecer melhor a organização

Colégios e universidades
Algumas empresas divulgam as vagas diretamente nos colégios ou nas universidades. Isso pode acontecer através
de murais, palestras ou feiras de recrutamento

Bancos de currículo virtual


Nesses sites estudantes e profissionais divulgam o currículo na rede para que empresas com vagas abertas façam a
pesquisa. Fique atento, pois alguns cobram pelo serviço, que varia de site para site
- Across Recursos Humanos (www.acrossrh.com.br)
- Canal de Empregos (www.empregos.com.br)
- Canal Executivo Júnior (www.uol.com.br/canalexecutivo/junior.htm)
- Companhia de Talentos (www.ciadetalentos.com.br)
- Empregos.net (www.empregos.net)
- Foco Talentos (www.grupofoco.com.br)
- Grupo Catho (www.catho.com.br)
- Job Online (www.jobonline.com.br)
- Manager (www.manager.com.br)
- Neurônio (www.neuronio.com.br)
- Passarelli Talentos (www.passarelliconsultores.com.br/talentos)
. Segundo passo: o currículo
Ele é seu cartão de visitas profissional e deve conter informações que demonstrem seu conhecimento com textos
objetivos. Divida os dados em tópicos, como: "Dados pessoais", "Objetivo", "Formação", "Experiência
profissional", "Idiomas" e "Informações complementares"
Dicas
- Experiência: o selecionador sabe que esse não é seu ponto forte. Direcione o tópico para atividades que possam
ser vistas como um diferencial, como ter atuado em ONGs, empresas juniores, diretórios acadêmicos ou
organização de eventos culturais
- Currículo on-line: é preciso ser ainda mais conciso e incluir palavras-chave (como "criação" e "exterior"), para
passar pela peneira das consultas feitas pelos selecionadores
- Tome cuidado com a estética, mas não exagere na criatividade. Evite papéis com cores fortes e letras coloridas,
por exemplo

. Terceiro passo: testes


Depois de o currículo ter sido selecionado, o candidato deve se preparar para a fase dos testes. Alguns programas
(principalmente de trainee) têm muitas avaliações, e o processo seletivo pode durar mais de um mês
- Conhecimentos gerais
São avaliados o nível de cultura geral
*Como se preparar: o candidato tem de se manter atualizado, seja por meio de jornal, rádio, revistas, TV ou
internet
- Psicológico
Há diversas avaliações para evidenciar traços da personalidade dos candidatos e comparar com o perfil da empresa
*Como se preparar: procurar desenvolver algumas características que o mercado busca, como iniciativa, pode
ajudar
- Dinâmica de grupo
Nesse teste , geralmente jogos, são avaliados o comportamento dos candidatos em atividades de grupo
*Como se preparar: pensando bem antes de falar, mas sempre agindo de forma natural
- Situacionais
São simulações de situações críticas ou polêmicas que avaliam o conhecimento técnico e o perfil do profissional
*Como se preparar: não há apenas uma resposta certa; a empresa procura quem se sobressaia por meio de
argumentação
- Entrevista
Costuma ser a etapa final da seleção, feita com o futuro chefe
*Como se preparar: é natural ficar ansioso. Mostre seu interesse em conseguir a vaga e procure agir com bom
senso: não fique calado, mas também não fale exageradamente

. Quarto passo: legislação


Há várias diferenças entre os programas de estágio e trainee. Começando pelo treinamento, passando pelo nível de
responsabilidade e pelo tempo de formação. A distinção mais clara está na lei: os estagiários, que não têm vínculos
empregatícios, são regidos por uma lei especial. Já os trainees são funcionários da empresa, registrados pela CLT
(Consolidação das Leis do Trabalho), com os mesmos direitos do trabalhador comum
Direitos do estagiário*
- Todos os alunos matriculados em cursos de nível superior, médio, técnico profissionalizante e supletivo podem
fazer estágio
- As atividades devem ter relação direta com a área de formação
- O estagiário pode (ou não) receber uma bolsa-auxílio. O valor depende de cada empresa
- Estágio não é emprego, por isso não cria vínculo trabalhista entre as partes. Assim, o único benefício que as
companhias são obrigadas a fornecer é o seguro contra acidentes pessoais
- O estudante pode firmar com a empresa um termo de compromisso em que fiquem claros todos os detalhes do
trabalho. A instituição de ensino deve estar ciente e também assinar esse "contrato de estágio"
- O estágio é regulado pela lei nº 6.494/77, regulamentada pelo decreto nº 87.497/82
Fonte: consultores, agentes de integração e legislação

QUESTIONÁRIO INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

02/09/2001

Autor: JOHN MCCARTHY


Editoria: MAIS! Página: 12-13
Edição: Nacional Sep 2, 2001
Legenda Foto: Marvin Minsky, um dos fundadores do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT
Crédito Foto: Peter Menzel/"Robo Sapiens" (MIT Press)
Observações: TRADUÇÃO: VICTOR AIELLO TSU; PÉ BIOGRÁFICO; ENTREVISTA
Assuntos Principais: LABORATÓRIO; INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL; MIT /INSTITUTO DE
TECNOLOGIA DE MASSACHUSETTS/; MARVIN MINSKY

O inventor do termo esclarece as principais dúvidas sobre o conceito

QUESTIONÁRIO INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL


por John McCarthy
O que é inteligência artificial?
É a ciência e a engenharia aplicadas à elaboração de máquinas inteligentes, em especial programas de computador
inteligentes. Ela é relacionada ao trabalho semelhante de utilizar computadores para compreender a inteligência
humana, mas a inteligência artificial não precisa se restringir a métodos biologicamente observáveis.

Sim, mas o que é inteligência ?


Inteligência é a parte computacional da habilidade de atingir metas no mundo. Inteligências de graus e tipos
variados ocorrem em pessoas, em vários animais e em algumas máquinas.

Será que não existe uma definição sólida de inteligência que não precise ser relacionada à inteligência
humana?
Ainda não. O problema é que nós ainda não podemos caracterizar de forma geral que tipos de procedimento
computacional nós queremos chamar de inteligentes. Entendemos alguns mecanismos da inteligência , e não
outros.

É a inteligência uma coisa única, de forma que alguém possa perguntar se uma máquina é ou não é inteligente?
Não. A inteligência envolve mecanismos, e a pesquisa em inteligência artificial descobriu como fazer os
computadores desempenharem alguns deles, não outros. Se executar um trabalho requer apenas mecanismos que
são bem compreendidos hoje, computadores podem ter desempenhos impressionantes em tal trabalho. Tais
programas devem ser considerados "algo inteligentes".

A inteligência artificial não serve para simular inteligência humana?


Às vezes, mas não sempre, nem na maioria das vezes. Por um lado, podemos aprender algo sobre como fazer
máquinas solucionarem problemas ao observarmos outras pessoas ou ao observarmos os nossos próprios métodos
de resolução de problemas. Por outro lado, a maior parte do trabalho em inteligência artificial envolve o estudo
de problemas que o mundo apresenta à inteligência em vez de estudar pessoas ou animais. Pesquisadores em
inteligência artificial são livres para usar métodos que não são seguidos por pessoas ou que envolvam muito mais
cálculos do que uma pessoa pode fazer.

E quanto a comparações entre inteligência humana e inteligência de computador?


Arthur R. Jensen, um pesquisador de ponta em inteligência humana, sugere "como hipótese heurística" que
todos os seres humanos normais têm os mesmos mecanismos intelectuais e que as diferenças em inteligência
são relacionadas a "condições bioquímicas e fisiológicas quantitativas". Eu as entendo como velocidade, memória
a curto prazo e habilidade de formar memórias a longo prazo precisas e recuperáveis. Estando Jensen certo ou não
com relação à inteligência humana, a situação hoje em inteligência artificial é oposta.
Programas de computador têm bastante velocidade e memória, mas suas habilidades correspondem aos
mecanismos intelectuais que os programadores compreendem bem o suficiente para colocar nos programas.
Algumas habilidades que crianças não desenvolvem até que sejam adolescentes podem estar nesses programas,
enquanto algumas habilidades de crianças de dois anos de idade não estão. O problema se agrava pelo fato de as
ciências cognitivas ainda não terem tido sucesso em determinar exatamente quais são as habilidades humanas.
Muito provavelmente a organização dos mecanismos intelectuais para a inteligência artificial pode ser
vantajosamente diferente daquela em pessoas.
Sempre que pessoas desempenham alguma tarefa melhor que computadores ou computadores fazem uso de cálculo
excessivo para desempenhá-la tão bem quanto pessoas fica demonstrado que aos programadores falta a
compreensão dos mecanismos intelectuais requeridos para desempenhá-la eficientemente.

Quando começou a pesquisa em inteligência artificial?


Após a Segunda Guerra Mundial, um número de pessoas começou a trabalhar independentemente em máquinas
inteligentes. O matemático inglês Alan Turing pode ter sido o primeiro. Ele deu uma palestra a respeito em 1947.
Ele também pode ter sido o primeiro a decidir que inteligência artificial seria mais bem pesquisada na
programação de computadores do que na construção de máquinas. No final da década de 50, havia muitos
pesquisadores em inteligência artificial, e a maioria deles baseava o trabalho em programar computadores.

A inteligência artificial almeja colocar a mente humana dentro do computador?


Alguns pesquisadores dizem ter esse objetivo, mas talvez estejam usando a frase metaforicamente. A mente
humana possui diversas peculiaridades, e não tenho certeza de que alguém pense seriamente em imitar todas elas.

O que é o teste de Turing?


O artigo de Turing de 1950, "Computing Machinery and Intelligence", discutiu as condições para considerar uma
máquina inteligente. Ele argumentou que, se a máquina tivesse êxito em fingir ser humana para um observador
perspicaz, então certamente deveria ser considerada inteligente. Esse teste satisfaz à maioria das pessoas, mas
não a todos os filósofos. O observador poderia interagir com a máquina e com outro ser humano via teletipo (para
evitar a necessidade de a máquina imitar a aparência ou a voz de uma pessoa), a pessoa tentaria persuadir o
observador de que a máquina é humana, e a máquina tentaria enganar o observador.

A inteligência artificial almeja obter inteligência do mesmo nível que a humana?


Sim. O esforço último é fazer programas de computador que possam solucionar problemas e atingir metas no
mundo tão bem quanto seres humanos. Entretanto muitas pessoas envolvidas em áreas particulares de pesquisa são
muito menos ambiciosas.

A que distância a inteligência artificial está de atingir inteligência de mesmo nível que a humana? Quando
isso acontecerá?
Algumas pessoas acreditam que inteligência como a humana pode ser atingida ao ser escrito um grande número
de programas do tipo que estão sendo escritos hoje e ao montar uma vasta base de fatos do conhecimento nas
linguagens hoje utilizadas para expressar conhecimento.
Entretanto a maioria dos pesquisadores em inteligência artificial crê na necessidade de novas idéias
fundamentais, portanto não é possível prever quando esse nível de inteligência será atingido.

Os computadores são o tipo ideal de máquina a ser tornada inteligente?


Computadores podem ser programados de forma a simular qualquer tipo de máquina.
Muitos pesquisadores inventaram máquinas que não eram computadores, esperando que elas fossem inteligentes
em maneiras diferentes daquelas que os programas de computador podem ser. Todavia eles normalmente
simularam suas máquinas inventadas em um computador e duvidaram de que valesse a pena construir a nova
máquina. Por terem sido gastos bilhões de dólares em fazer os computadores cada vez mais rápidos, outro tipo de
máquina teria de ser muito rápida para ter um desempenho melhor do que o programa de computador simulando
essa máquina.

Os computadores são rápidos o suficiente para serem inteligentes?


Algumas pessoas acham que são necessários computadores muito mais rápidos, além de novas idéias. Minha
opinião é a de que os computadores de 30 anos atrás já teriam sido rápidos o suficiente se nós tivéssemos sabido
como programá-los. É claro que, bem à parte das ambições dos pesquisadores em inteligência artificial, os
computadores serão cada vez mais velozes.

E quanto a máquinas paralelas?


Máquinas com muitos processadores são muito mais velozes do que podem ser as com um único processador.
Paralelismo em si não apresenta vantagens, e máquinas paralelas são pouco práticas para programar. Quando a
velocidade extrema é necessária, essa falta de praticidade deve ser enfrentada.

E quanto a fazer uma "máquina criança" que pudesse se desenvolver lendo e aprendendo com a experiência?
Essa idéia foi proposta muitas vezes desde os anos 40. Eventualmente será posta em prática. Entretanto programas
de inteligência artificial ainda não atingiram o estágio de serem capazes de aprender muito do que uma criança
aprende por experiência física. Tampouco os programas atuais compreendem linguagem bem o suficiente para
aprender algo por meio de leitura.

Poderia um sistema de inteligência artificial obter um nível cada vez mais alto de inteligência ,
retroalimentando-se sem auxílio, apenas por pensar sobre inteligência artificial?
Penso que sim, mas ainda não estamos em um nível de inteligência artificial em que esse processo possa
começar.

E quanto ao xadrez?
Alexander Kronrod, um pesquisador em inteligência artificial russo, disse: "Xadrez é a drosófila da
inteligência artificial". Ele fazia analogia com o uso que os geneticistas fazem dessa mosca de frutas para estudar
herança genética. Jogar xadrez requer certos mecanismos intelectuais, e não outros. Programas de xadrez agora
jogam no mesmo nível de grandes mestres, mas o fazem com mecanismos intelectuais limitados se comparados a
um enxadrista humano, substituindo compreensão por grande quantidade de cálculo. Uma vez que tenhamos um
melhor entendimento desses mecanismos, poderemos criar programas de xadrez de nível humano que façam muito
menos cálculos que os programas atuais.
Infelizmente os aspectos competitivos e comerciais de fazer computadores que joguem xadrez foram priorizados,
em vez do uso do xadrez como um domínio científico. É como se os geneticistas após 1910 tivessem organizado
corridas de drosófilas e concentrado seus esforços na criação e aprimoramento de moscas para vencer essas
corridas.

John McCarthy é professor emérito de ciência da computação da Universidade Stanford (EUA). Cunhou o termo "
inteligência artificial" em 1956. O texto acima é uma versão reduzida do questionário. A versão completa pode
ser obtida em www-formal.stanford.edu/jmc/whatisai/whatisai.html

Tradução de Victor Aiello Tsu.

EDITORIAIS

28/08/2001

Autor:
Editoria: PRIMEIRA PÁGINA Página: A1
Edição: Nacional Aug 28, 2001
Vinheta/Chapéu: OPINIÃO
O que torna você quem você é? REVISTA TIME 11/5/2003
O que é mais forte -a natureza ou a formação? A ciência mais recente diz que os genes e sua experiência interagem durante
toda a sua vida

Por Matt Ridley

O debate perene sobre a natureza e a formação -qual é a mais potente


formadora da essência humana?- é constantemente renovado. Ele foi reaceso
novamente no London Observer de 11 de fevereiro de 2001. Sua manchete dizia: "Revelado: o segredo do comportamento
humano. Ambiente, e não os genes, moldam nossos atos". A fonte da história era Graig Venter, o homem de negócios dos
genes que fundou uma empresa privada para a leitura da seqüência completa do genoma humano em concorrência com um
consórcio internacional financiado por impostos e caridades. Tal seqüência -um filamento de 3 bilhões de letras, composto
em um alfabeto de quatro letras, contendo a receita completa para a formação e funcionamento do corpo humano -seria
publicada no dia seguinte (a concorrência terminou em um empate arranjado). A primeira análise do genoma revelou que era
composto por apenas 30 mil genes, e não os 100 mil que muitos estimavam até poucos meses antes.

Os detalhes já circulavam entre os jornalistas sob embargo. Mas Venter,


falando para um repórter em uma conferência de biotecnologia na França em 9 de fevereiro, efetivamente rompeu o
embargo. "Nós simplesmente não temos genes suficientes para esta idéia de determinismo biológico ser correta", disse
Venter ao Observer. "A maravilhosa diversidade da espécie humana não está formatada em nosso código genético. Nossos
ambientes são fundamentais".

Na verdade, o número de genes humanos não mudou nada. Os comentários de


Venter escondiam duas falsas conclusões colossais: a de que menos genes
implicavam em maiores influências ambientais e que 30 mil genes não eram
suficientes para explicar a natureza humana, enquanto 100 mil seriam
suficientes. Como um cientista me disse poucas semanas depois, apenas 33
genes, cada um vindo em duas variedades (ativado ou desativado), seriam
suficientes para tornar único cada ser humano do mundo. Há mais de 10
bilhões de combinações possíveis em 33 jogadas de cara ou coroa, de forma
que 30 mil não parece um número pequeno. Além disso, se menos genes
significassem mais livre arbítrio, a mosca-da-fruta seria mais livre do que nós, as bactérias ainda mais livres e os vírus os
John Stuart Mill da
biologia.

Felizmente, não há necessidade de tranqüilizar a população com tais cálculos sofisticados. As pessoas não choraram diante
da notícia humilhante de que nosso genoma tem apenas o dobro do tamanho do genoma de um verme. Nada foi apoiado
naquele número de 100 mil, que foi apenas um palpite ruim. Mas o projeto genoma humano -e as décadas de pesquisa que
o precederam- forçaram um entendimento muito mais sutil de como os genes funcionam. No princípio, os cientistas
detalharam como os genes codificam as várias proteínas que compõem as células em nossos corpos. A descoberta mais
sofisticada e eventualmente mais satisfatória -a de que a expressão genética pode ser modificada pela experiência- foi
gradualmente emergindo desde os anos 80. Apenas agora os cientistas estão despertando para a idéia grande e geral que
ela implica: a de que a própria formação (aprendizado) consiste de nada mais do que a ativação e desativação de genes.
Quanto mais levantamos o véu do genoma, mais vulneráveis os genes parecem ser à experiência.

Isto não é um tipo de acordo intermediário piegas. Isto é uma nova


compreensão dos blocos de construção fundamentais da vida com base na
descoberta de que os genes não são coisas imutáveis entregues por nossos
pais, como as tábuas da lei de Moisés, mas sim que são participantes ativos em nossas vidas, projetados para reagirem de
acordo com tudo o que acontece conosco desde o momento de nossa concepção.

No momento, esta nova percepção tem se fortalecido entre os cientistas,


mudando a forma como pensam em tudo, desde a forma como os corpos se
desenvolvem no útero, como novas espécies surgem e até sobre a
inevitabilidade do homossexualismo em algumas pessoas. (Mais sobre isto
adiante). Mas eventualmente, à medida que a população em geral se tornar
mais consciente desta visão interdependente, mudanças também poderão ocorrer em áreas tão diversas como educação,
medicina, direito e religião. Pessoas que realizam dietas poderão aprender precisamente que combinação de gorduras,
carboidratos e proteínas tem o maior efeito sobre suas cinturas individuais. Os teólogos poderão desenvolver toda uma nova
teoria sobre o livre arbítrio baseada na observação de que o aprendizado expande nossa capacidade de escolher nosso
próprio caminho. Assim como na observação de Copérnico de que a Terra orbita o Sol há 500 anos, não há como dizer o
quão longe as repercussões deste novo paradigma científico poderão se estender.

Para apreciar o que aconteceu, você terá que abandonar as antigas noções e abrir sua mente. Você terá que entrar em
mundo no qual seus genes não são marionetistas puxando os fios de seu comportamento, mas marionetes à mercê de seu
comportamento, no qual o instinto não é o oposto do aprendizado, influências ambientais são geralmente menos reversíveis
do que as genéticas, e a natureza é aberta ao aprendizado.

O medo de cobras, por exemplo, é a fobia humana mais comum, e faz um bom
sentido evolucionário ele ser instintivo. Aprender a temer as cobras do modo difícil seria perigoso. Mas experiências com
macacos revelam que o medo deles de cobras (e provavelmente o nosso) ainda precisa ser adquirido com a observação da
reação de medo de outro indivíduo em relação a uma cobra. O resultado é que é fácil ensinar os macacos a temerem
cobras, mas muito difícil ensiná-los a temerem flores. O que nós herdamos não é o medo de cobras, mas uma predisposição
a aprender a temer cobras -uma natureza para um certo tipo de aprendizado.

Antes de mergulharmos em algumas das outras descobertas científicas que


transformaram amplamente o debate, ajuda compreender o quão profundamente
entrincheirado em nossa história intelectual se tornou a falsa dicotomia
natureza versus formação. Se a natureza humana é inata ou adquirida é um
enigma discutido por Platão e Aristóteles. Filósofos empiristas como John
Locke e David Hume argumentaram que a mente humana era formada pela
experiência; nativistas como Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant defendiam a existência de algo como uma natureza
humana imutável.

Foi o excêntrico matemático primo de Charles Darwin, Francis Galton, quem em 1874 acendeu a controvérsia natureza-
formação em sua atual forma e cunhou a frase (pegando emprestado a aliteração "nature-nurture" de Shakespeare, que a
pegou de um diretor de escola elisabetano chamado Richard Mulcaster). Galton afirmou que as personalidades humanas
eram inatas, não moldadas pela experiência. Ao mesmo tempo, o filósofo William James argumentou que os seres humanos
tinham mais instintos que os animais, e não menos.

Nas primeiras décadas do século 20, a natureza predominou sobre a formação em muitas áreas. Mas no rastro da Primeira
Guerra Mundial, três homens reconquistaram as ciências sociais para o lado da formação: John B. Watson, que mostrou
como o reflexo condicionado, descoberto por Ivan Pavlov, podia explicar o aprendizado humano; Sigmund Freud, que
buscou explicar a influência dos pais e das primeiras experiências sobre as mentes jovens; e Franz Boas, que argumentou
que a origem das diferenças étnicas se encontrava na história, experiência e circunstâncias, e não na fisiologia e na
psicologia.

A insistência de Galton nas explicações inatas das habilidades humanas o


levou a advogar a eugenia, um termo cunhado por ele. A eugenia foi
entusiasticamente adotada pelos nazistas para justificar sua campanha de
assassinato em massa contra os deficientes e judeus. Maculada por esta
associação, a idéia do comportamento inato recuou por grande parte dos anos intermediários do século. Mas em 1958 dois
homens começaram a contra-atacar em nome da natureza. Noam Chomsky, em sua revisão do livro do behaviorista B.F.
Skinner, argumentou que era impossível aprender a linguagem humana apenas por tentativa e erro; os seres humanos
deviam vir equipados com alguma capacidade gramatical inata. Harry Harlow realizou uma experiência simples que
mostrava que um bebê macaco preferia uma imitação de mãe feita de tecido macio do que a uma mãe dura e de estrutura
metálica, apesar da mãe de metal fornecer todo o seu leite; algumas preferências eram inatas.

Avançamos para os anos 80 e uma das maiores surpresas recebidas pelos


cientistas foi a abertura dos genomas animais: os geneticistas da mosca
encontram um pequeno grupo de genes chamados genes Hox, que pareciam
estabelecer o plano do corpo da mosca durante seu estágio inicial de
desenvolvimento -dizendo mais ou menos onde colocar a cabeça, pernas, asas e assim por diante. Mas então colegas que
estudavam ratos encontraram os mesmos genes Hox, na mesma ordem, realizando a mesma função no mundo do Mickey -
dizendo ao rato onde colocar suas várias partes. E quando os cientistas olharam o nosso genoma, eles também
encontraram os genes Hox.

Os genes Hox, como todos os genes, são ativados ou desativados em diferentes partes do corpo em momentos diferentes.
Desta forma, os genes podem ter efeitos diferentes sutis, dependendo de onde, quando e como forem ativados. As chaves
que controlam este processo -filamentos da cadeia de DNA dos genes- são conhecidas como promotoras.

Pequenas mudanças no promotor podem ter efeitos profundos na expressão de um gene Hox. Por exemplo, ratos com
pescoços curtos e corpos longos; galinhas com pescoços longos e corpos curtos. Se você contar as vértebras no pescoço e
tórax dos ratos e galinhas, você verá que um rato tem sete vértebras no pescoço e 13 no tórax, uma galinha 14 e 7
respectivamente. A fonte desta diferença se encontra em um promotor ligado ao HoxC8, um gene Hox que ajuda a formar o
tórax do corpo. O promotor é um parágrafo de DNA composto de 200 letras, e nas duas espécies ele difere apenas em um
punhado de letras. O efeito é a alteração da expressão do gene HoxC8 no desenvolvimento do embrião da galinha. Isto
significa que a galinha gera vértebras torácicas em
uma parte diferente do corpo do que o rato. Na jibóia, o HoxC8 é expresso
diretamente da cabeça e prossegue sendo expresso por grande parte do corpo.
Assim as jibóias são um longo tórax; elas têm costelas por todo o corpo.

Para realizar grandes mudanças no plano do corpo dos animais, não há


necessidade de inventar novos genes, assim como não há necessidade de
inventar novas palavras para escrever um romance original (a menos que seu nome seja Joyce). Tudo o que você precisa
fazer é ativar e desativar os mesmos em padrões diferentes. De repente, aqui está um mecanismo para
criação de mudanças evolutivas a partir de pequenas diferenças genéticas.
Meramente ajustando a seqüência de um promotor ou acrescentando uma nova,
você pode alterar a expressão de um gene.

Por um certo lado, isto é um pouco deprimente. Isto significa que até que os cientistas saibam com encontrar os genes
promotores no vasto texto do genoma, eles não saberão a receita para diferenciar um chimpanzé de uma pessoa. Mas por
outro lado é animador, pois nos recorda mais fortemente do que nunca uma verdade simples que geralmente é esquecida:
corpos não são feitos, eles crescem. O genoma não é uma planta para a construção de um corpo. É uma receita para
preparo de um corpo. Você poderia dizer que o embrião da galinha é preparado em escabeche por menos tempo no molho
HoxC8 do que o embrião do rato. Da mesma forma, o desenvolvimento de certo comportamento humano leva um certo
tempo e ocorre em certa ordem, assim como o preparo de um suflê perfeito requer não apenas os ingredientes certos, mas
também a quantidade certa de cozimento e a ordem certa de eventos.

Como esta nova visão dos genes altera nossa compreensão da natureza humana?
Dê uma olhada em quatro exemplos.

Linguagem

Os seres humanos diferem dos chimpanzés por possuírem uma linguagem


gramatical complexa. Mas a linguagem não surge plenamente formada no
cérebro; ela deve ser aprendida por meio de outros seres humanos que falam a língua. Esta capacidade de aprender está
redigida no cérebro humano por genes que abrem e fecham uma janela fundamental durante a qual o aprendizado ocorre.
Um destes genes, o FoxP2, foi descoberto recentemente no cromossomo humano 7 por Anthony Monaco e seus colegas do
Wellcome Trust Centre for Human Genetics em Oxford. Mas apenas ter o gene FoxP2 não é suficiente. Se uma criança não
for exposta à linguagem falada durante o período crítico de aprendizado, ele ou ela sempre terão dificuldade com a língua.

Amor

Algumas espécies de roedores, como o arganaz-do-campo, formam longos laços entre os companheiros, assim como os
seres humanos. Outros, como o arganaz montanhês, mantém apenas ligações transitórias, assim como os chimpanzés. A
diferença, segundo Tom Insel e Larry Young da Universidade Emory em Atlanta, está no promotor dos genes receptor de
oxitocina e vasopressina. A inserção de um pedaço extra de texto de DNA, geralmente com um tamanho de cerca de 460
letras, no promotor torna o animal mais propenso a manter monogamia com seu companheiro. O texto extra não cria amor,
mas talvez crie a possibilidade de se apaixonar após a experiência certa.

Comportamento anti-social

Tem sido sugerido com freqüência que maus-tratos na infância podem criar um adulto anti-social. Uma nova pesquisa de
Terrie Moffitt da Kings College de Londres com um grupo de 442 homens neozelandeses, que foram acompanhados desde
o nascimento, sugere que isto é valido apenas para uma minoria genética. Novamente, a diferença está em um promotor
que altera a atividade de um gene. Aqueles com alta atividade dos genes de monoamino oxidase A são virtualmente imunes
aos efeitos dos maus-tratos. Aqueles com genes menos ativos se mostraram muito mais anti-sociais quando maltratados,
mas menos anti-sociais -ou não- quando não foram maltratados. Os homens maltratados, com genes menos ativos, foram
responsáveis por quatro vezes sua parcela de estupros, roubos e assaltos. Em outras palavras, maus-tratos não são
suficientes; é preciso também ter o gene menos ativo. E também não basta ter o gene menos ativo; também é preciso ser
maltratado.

Homossexualidade

Ray Blanchard da Universidade de Toronto descobriu que homens gays


apresentam uma probabilidade maior do que lésbicas e homens heterossexuais de ter irmãos mais velhos (mas não irmãs
mais velhas). Ele então confirmou esta observação em 14 amostras de muitos lugares. Algo sobre ocupar um útero que
conteve outros meninos ocasionalmente resulta em redução do peso do bebê, placenta maior e maior probabilidade de
homossexualidade. Este algo, suspeita Blanchard, é uma reação imunológica na mãe, provocada pelo primeiro feto
masculino, que se torna mais forte a cada gravidez de bebê do sexo masculino. Talvez a resposta imunológica afete a
expressão de genes chaves durante o desenvolvimento do cérebro de forma a estimular a atração do menino por seu
próprio sexo. Tal explicação não seria verdadeira para todos os homens gays, mas pode fornecer pistas importantes para as
origens tanto da homossexualidade quanto da heterossexualidade.

Sem dúvida, descobertas científicas anteriores apontaram para a importância deste tipo de inter-relação entre
hereditariedade e ambiente. O exemplo mais marcante é o condicionamento pavloviano. Quando Pavlov anunciou sua
famosa experiência há um século completado neste ano, ele aparentemente descobriu como o cérebro poderia ser alterado
para adquirir novo conhecimento do mundo -no caso dos seus cães, conhecimento de que um sino anunciava a chegada da
comida. Mas agora nós sabemos como o cérebro muda: pela expressão em tempo real de 17 genes, conhecidos como
genes Creb. Eles precisam ser ativados e desativados para alterar as conexões entre as células nervosas no cérebro e
assim estabelecer uma nova memória de longa duração. Estes genes estão à mercê de nosso comportamento, não o
contrário. A memória está nos genes no sentido de que ela usa os genes, não no sentido de que você herda memórias.

Segundo esta nova visão, os genes permitem à mente humana aprender, lembrar, imitar, desenvolver linguagem, absorver
cultura e expressar instintos. Os genes não são marionetistas ou plantas de projeto, nem são apenas os transportadores da
hereditariedade. Eles estão ativos durante a vida; eles são ativados e desativados; eles respondem ao ambiente. Eles
podem dirigir a construção do corpo e do cérebro no útero, mas então quase que imediatamente, em resposta à experiência,
eles passam a desmontar e reconstruir o que fizeram. Eles são tanto a causa quanto a conseqüência de nossas ações.

Será que esta nova visão dos genes nos permitirá deixar para trás a
discussão natureza-formação, ou estamos condenados a reinventá-la a cada
nova geração? Diferente do que aconteceu em eras anteriores, a ciência está explicando em grande detalhe precisamente
como os genes e seu ambiente -seja o útero, a sala de aula ou a cultura popular- interagem. Assim talvez possa cessar o
balanço do pêndulo em uma dicotomia agora provada falsa.

Mas pode fazer parte de nossa natureza buscar histórias simples, de causa e efeito, e não pensar em termos de causalidade
circular, na qual os efeitos se tornam suas próprias causas. Talvez a idéia da natureza via formação, como as idéias da
mecânica quântica e da relatividade, sejam contra-intuitivas demais para as mentes humanas. Talvez a necessidade de nos
vermos em termos de natureza versus formação, como nossa capacidade instintiva de temer cobras, possa estar codificada
em nossos genes.

*Matt Ridley é um zoólogo formado em Oxford e escritor de ciência cujo mais recente livro é "Nature via Nurture"
(HarperCollins)

Tradução: George El Khouri Andolfato

REVISTA TIME 11/5/2003


Recheando rugas com plástico, silicone líquido e pele de cadáver humano

Unmesh Kher

Lisa Weissman tem um problema: Rugas dos dois lados da boca, onde não se pode aplicar Botox. Ela sabe que não, porque
já usou Botox para esticar a testa. Botox é toxina de botulismo diluída e aplicada em injeções. Como outras milhares de
mulheres que usaram Botox e ficaram satisfeitas com seus resultados, Weissman está buscando novas formas de usar uma
seringa para apagar outros sinais da idade em seu rosto.

Por isso encontramos a agente imobiliária, de 45 anos e mãe de três filhos, em uma cadeira cirúrgica no elegante consultório
de Rhoda Narins, em Manhattan. Narins é professora da Universidade de Nova York e presidente da Sociedade Americana
de Cirurgia Dermatológica. Ela está segurando uma injeção com fina agulha hipodérmica, repleta com uma mistura
esbranquiçada. Depois de passar um desinfetante cor de ferrugem em volta da boca de Weissman, a médica tirou seus
sapatos de salto alto para ter melhor ângulo de trabalho. Quinze minutos depois, talvez duas dúzias de injeções mais tarde,
as rugas quase desapareceram. A região em torno dos lábios de Weissman está avermelhada, mas nada que uma
maquiagem não esconda. As rugas, por outro lado, ficarão escondidas durante meses.

A mistura que foi injetada na pele de Weissman era de colágeno humano, disponível nas marcas CosmoDerm e
CosmoPlast. Não é, entretanto, a substância mais exótica a ser injetada nos rostos das mulheres hoje em dia. O mercado
americano tem mais de meia dúzia de "enchimentos dérmicos" -poções de bruxa injetáveis, que incluem colágeno bovino,
silicone líquido, micro-glóbulos de plástico, osso sintético e pele de cadáver humano triturada.

"Botox funciona tão bem em testas e pés-de-galinha que acabou gerando o desejo por enchimentos para a parte inferior do
rosto", disse Kimberly Butterwick, cirurgiã dermatológica em La Jolla, Califórnia. Pode parecer o cúmulo da vaidade, em
tempos de guerra, desemprego e corte nos seguros de saúde, atacar as rugas. Apesar disso, a procura por esses
procedimentos nos EUA cresceu 33% neste ano, comparado com 2001, pouco antes do Botox ser aprovado para uso
cosmético pelo departamento que regula alimentos e drogas, o FDA.

O princípio é simples. Botox funciona paralisando os músculos faciais que ajudam a formar as rugas. Os enchimentos
recheiam as rugas na camada interna da pele, chamada derme. A maior parte deles faz isso fornecendo colágeno. Com a
idade, os danos provocados pelo sol e pela poluição transformam o colágeno -a estrutura protéica que mantém a pele firme-
em geléia. Ao mesmo tempo, a derme começa a perder sua umidade e fica ressecada, murcha e incapaz de manter a
superfície esticada. "Os enchimentos dão jovialidade ao rosto, porque acrescentam o volume que o tempo rouba", explica
Fredric Brandt, cirurgião dermatológico que atende em Miami e Nova York.

Colágeno bovino há muito é usado dessa forma, para esticar rugas. No entanto, algumas pessoas reagem mal à proteína
bovina. Por isso, requer-se exames de alergia seis semanas antes do procedimento. CosmoDerm e CosmoPlast, aprovados
para uso cosmético pelo FDA em março, não requerem testes, porque são extraídos de células humanas cultivadas em
laboratório. O tratamento, que custa no mínimo US$ 575 (cerca de R$ 1.725), dependendo de quantas aplicações forem
necessárias, pode causar certa irritação, mas é seguro e seus resultados duram até seis meses.

O ácido hialurônico tem maior aprovação entre os dermatologistas e é um componente natural da pele. No corpo, o ácido
hialurônico se liga à água, lubrificando as articulações e mantendo a pele plena e suave. A versão sintética, que é vendida
em mais de 60 países como Restylane, raramente causa reações alérgicas e seus efeitos duram de seis meses a um ano. O
FDA deve aprová-lo para venda nos EUA. Tratamentos provavelmente custarão a partir de US$ 550 cada (cerca de R$
1.650).

Talvez Cymetra seja a substância mais assustadora atualmente em uso para esticar rugas -é um gel feito de pele de
cadáveres humanos. O produtor alega que Cymetra leva o próprio maquinário da pele a preencher suas rugas. Alguns
cirurgiões também estão experimentando Radiance, versão sintética do mineral que compõe nossos ossos. Ele está sendo
usado pelos médicos para preencher rugas particularmente profundas, apesar de não ter sido aprovado para este fim
específico. Depois, tem o Artefill, uma mistura de colágeno bovino e minúsculas contas de acrílico, que por enquanto só foi
aprovado por um comitê consultor do FDA. Uma vez injetado, o colágeno bovino é quebrado, mas as contas estimulam a
pele a secretar seu próprio colágeno. Sua vantagem é que o resultado dura anos. A desvantagem é que, algumas vezes, as
bolinhas aparecem pela pele fina, especialmente se forem injetadas em excesso. Dermatologistas também se preocupam
que alguns pacientes venham a desenvolver nódulos duros, conhecidos como granulomas, em torno das contas. Os
médicos ressaltam que a aplicação de Artefill deve ser feita somente por técnicos altamente qualificados.

Isso serve para todos enchimentos: A escolha do médico é tão importante quanto a da substância que usa. "A qualidade do
resultado, com qualquer material, vai depender da pessoa que o estiver injetando", diz Brandt. "Colágeno colocado no lugar
errado pode acentuar as rugas". Por outro lado, dermatologistas ressaltam que um bom técnico pode transformar o rosto de
uma pessoa no intervalo do almoço.

Nem todo mundo vê com tanto otimismo o novo interesse pelos enchimentos de rugas. Clark Taylor de Missoula, Montana,
presidente da Academia Americana de Cirurgia Cosmética, teme que os enchimentos possam rapidamente tornar-se um
custo recorrente. Os procedimentos podem custar de US$ 700 (aproximadamente R$ 2.100) a US$ 900 (cerca de R$ 2.700)
e duram somente meio ano. Uma cirurgia plástica para esticar o rosto, por sua vez, custa entre US$ 4.000
(aproximadamente R$ 12.000) e US$ 6.000 (cerca de R$ 18.000), mas geralmente dura de 10 a 15 anos, antes de requerer
retoques. Taylor teme que as mulheres fiquem viciadas em sua dose de colágeno semestral. "O que devíamos questionar
com mais freqüência", diz ele, "é se não estamos criando viciados em enchimentos".

O argumento pode ser bom, mas provavelmente não vai tirar o sono de cirurgiões e do grande número de clientes que
correm aos seus consultórios. Quando perguntada o que faria para parecer jovem, uma mulher de 50 e poucos anos, na sala
de espera de Narins, respondeu prontamente, "O que for necessário -desde que não faça mal à saúde".

Tradução: Deborah Weinberg

Uma mudança necessária


Embora desde o reconhecimento da profissão a psicologia do trabalho tenha dado passos significativos em seu desenvolvimento técnico, ainda há
preponderância de uma prática voltada para a administração de recursos
Superar o papel que o psicólogo desempenhou até agora nas organizações, sem perder o conhecimento acumulado ao longo do tempo. Esse é o desafio que os
profissionais que vêm se reunindo na Comissão de Psicologia e Trabalho do CRP-06 estão se propondo a assumir. “Se considerarmos as demandas dos
profissionais do trabalho que chegam ao Centro de Orientação, podemos afirmar que a psicologia ainda está presa a uma prática tradicional em recursos
humanos. Uma atuação de vanguarda, voltada para as relações de trabalho e para o desenvolvimento de ações que interfiram nesse processo, ainda pode ser
contada nos dedos”, disse a conselheira do CRP-06 Ana Maria R. de Carvalho, professora da área de Psicologia do Trabalho da Unesp de Assis.
O que o Conselho constatou com a realização das reuniões da comissão foi que, embora desde o reconhecimento da profissão a psicologia do trabalho tenha
dado passos significativos em seu desenvolvimento técnico, ainda há preponderância de uma prática voltada para o modelo administrativo, para a administração
de recursos. Nas discussões da comissão considera- se que é necessária uma mudança na concepção e no enfoque da atuação profissional para que a
psicologia assuma seu verdadeiro lugar no mundo do trabalho. De acordo com o conselheiro do CRP Luiz Humberto Sivieri, professor de Psicologia
Organizacional e do Trabalho da Universidade de Mogi das Cruzes e da PUC-SP, um dos setores que mais conseguiram avançar em termos de atuação foi o que
lida com a saúde do trabalhador. “As primeiras discussões surgiram nos anos 80, avançando daquela concepção tradicionalista de adaptação do indivíduo às
exigências das organizações para estudar o trabalho e o fator humano na organização do processo de trabalho. Foi uma mudança importante, apesar de ter
surgido ainda muito voltada para a abordagem clínica. Agora, precisamos dar continuidade, aprofundando estudos sobre nosso objeto, desenvolvendo o olhar
psicológico sobre a organização do processo de trabalho e as diversas implicações que isso tem para o homem do ponto de vista da psicologia. Precisamos
verificar como esse processo intervém na psique humana, na questão da construção do homem, na questão da alienação, e como pode agir sobre a saúde.”
Não é tarefa fácil, não só porque o Brasil não tem tradição desse tipo de discussão, mas principalmente porque as organizações e, em muitos casos, os próprios
psicólogos oferecem resistências a mudanças. De acordo com a conselheira da Associação Paulista de Administração de Recursos Humanos, Noely de Carvalho
David, sócia de uma consultoria de recursos humanos, “na realidade, a psicologia enquanto ciência não tem espaço dentro da organização. As empresas querem
um psicólogo com visão gerencial, que tenha condição de estar coordenando uma equipe de RH com especialidades as mais diversas. Não vejo ainda
conscientização ou sensibilização das organizações para outro papel profissional do psicólogo. E diria que uma porcentagem pouco expressiva de profissionais
tem essa consciência”.
Esse tipo de expectativa que as organizações colocam sobre o profissional da psicologia não é recente e aponta para um dos grandes problemas com os quais o
psicólogo do trabalho vem deparando: ao se engajar na organização, aos poucos ele abandona a psicologia como objeto para desenvolver uma carreira
gerencial. “A psicologia torna-se um recurso a mais que o capacita para o gerenciamento”, explica Ana Maria, lembrando o fato de que o papel tradicional do
psicólogo dentro das empresas vem sendo gradativamente exercido também por profissionais de outras áreas de conhecimento. “Nós temos psicólogos fazendo
seleção de pessoal, pela necessidade de se trabalhar com teste psicológico e isso ser exclusivo da psicologia. Mas, na área de RH como um todo, já existem
outros profissionais trabalhando com igual competência.”
De acordo com a opinião de Ana Maria, muitas vezes os psicólogos cometem erros de avaliação ao pensar em sua situação profissional e acabam por entrar
numa disputa com outros profissionais por mercado de trabalho. Ainda na opinião da psicóloga, de pouco adianta criar embates por mais espaço no mercado
profissional. Em vez disso, é necessário compreender a dinâmica do mercado para que o profissional possa se posicionar de maneira correta, eficaz e produtiva.
“Na verdade, o que acontece é que este tipo de trajetória que a psicologia vem seguindo reflete o fato de ela ter se limitado a ocupar uma posição que, embora
tenha sido sua porta de entrada no mundo do trabalho, já poderia ter sido superada em favor de práticas mais consistentes e realmente mais ligadas ao seu
objeto de estudo.”
Também para Sivieri a grande questão que se coloca hoje para o psicólogo é superar as antigas concepções, segundo as quais a função da psicologia é buscar
a adaptação do homem àquilo que lhe é exigido por um determinado sistema de relações, para propor novas formas de organização do trabalho à sociedade.
“Essa é a função do psicólogo. Ou vamos trabalhar com nosso estereótipo”, defende. De acordo com essa concepção, se, por definição, saúde é a qualidade de
bemestar para o homem, é preciso verificar como a organização do trabalho afeta esse estado de bem-estar do ponto de vista psicológico. “Isso vai nos exigir
outros conhecimentos, mas é o que temos que estar trabalhando. Acho que essa é a grande diferença entre a prática atual e o que é realmente uma psicologia
do trabalho.” …
É preciso propor
Luiz Humberto Sivieri, no entanto, chama atenção para a diferença entre o psicólogo utilizar a psicologia como um conhecimento a mais quando passa a exercer
outros tipos de atividade e a aquisição de novos conhecimentos para a qualificação da prática da psicologia. “Na minha concepção essa é uma área
eminentemente de pesquisa, de análise, ela não é tecnicista do ponto de vista da simples utilização de recursos da psicologia. E vai exigir outros conhecimentos
que não só os da psicologia, para que nossa ciência possa se tornar mais eficaz e mais forte. Então vai ser preciso entender um pouco sobre economia,
engenharia de produção, saúde etc.”
Ou seja, é preciso mudar a configuração do profissional. O psicólogo técnico- burocrata deve ser substituído pelo psicólogo generalista. E, conseqüentemente,
explica Sivieri: “Se nós, de certa forma, na psicologia industrial fomos eminentemente reativos, na psicologia organizacional fomos mais analistas, reflexivos,
distantes, agora vamos ter de ser propositivos. Não adianta só analisar, é preciso propor. Ou seja, é preciso que saibamos dizer que o trabalho não pode ser feito
de determinada forma, mas pode ser feito de outra e por quê. Na realidade nós temos que intervir no processo das relações, em busca da preservação de
condições de trabalho para as pessoas. Ou seja, devemos atuar pela humanização do trabalho”.
Mesmo que, como diz Ana Maria, esse tipo de experiência ainda possa ser contado nos dedos, no entanto, já existem iniciativas bem-sucedidas e que
demonstram os esforços de alguns setores da psicologia em busca de um novo espaço de atuação no mundo do trabalho. Um bom exemplo é a experiência que
vem sendo desenvolvida no Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores do Ramo de Transportes (Sindicato dos Condutores de São Paulo) pelas psicólogas
Silvana Gonçalves Forgerini e Cláudia Rejane de Lima. “Estamos partindo do pressuposto de que, além dos riscos ambientais que causam de fato doença, o
sofrimento mental vem muito mais do modelo de organização do trabalho, autoritário e centralizador. E no setor de transportes tudo é muito rígido porque são
muitas instâncias decisórias. Além do sistema de transporte, há a gerenciadora de transporte, a organização do sistema de transporte da cidade. As empresas
têm que se enquadrar nessas regras do sistema. E tem as regras da própria empresa”, define Cláudia.
A idéia é promover a reflexão para que os trabalhadores percebam as determinações sociais do processo de adoecimento e como é que o modelo de
organização do trabalho interfere na saúde para, a partir daí, buscar saídas, estratégias de defesa em nível coletivo e individual. Para operacionalizar suas
atividades, conta Silvana, foi elaborado um plano de trabalho em que são realizadas reuniões com os trabalhadores, por procura espontânea e discutidas as
condições que os levaram ao estado de sofrimento mental. “Propomos que eles levantem as questões que sejam passíveis de mudança e as que não são
passíveis de mudança. Para aquelas que não há mudança imediata possível, discutimos maneiras de lidar com os conflitos.”
Mas o resultado do trabalho das psicólogas também é encaminhado para a diretoria do sindicato para subsidiar a elaboração de pautas de reivindicação nos
momentos de negociação com os patrões. Citando os programas de qualidade total no trabalho, tão em voga ultimamente, Cláudia exemplifica de que maneira a
questão pode ser tratada: “É uma via de mão única. Exigem um padrão de qualidade, mas não levam em conta os limites das pessoas, físicos, psíquicos, as
condições gerais de trabalho. Acredito que nesses programas de qualidade, e nos programas de participação nos lucros que estão vinculando à qualidade, é o
momento de negociar condições de trabalho. Não dá para aceitar, por exemplo, a redução do absenteísmo. Eles definem um índice. Para atingir esse índice, nós
vamos ter que, enquanto sindicato, negociar as condições. Não dá para simplesmente impor um ritmo de trabalho a partir de um conjunto de metas sem
condições objetivas para atingi- lo de forma adequada”.
Também a comissão que vem se reunindo no CRP já começa a colher os primeiros resultados de seu trabalho. Uma das estratégias que vem utilizando é a
busca de parcerias, através das subsedes, para poder estar ampliando a discussão. Em Taubaté, por exemplo, a comissão gestora conseguiu realizar vários
eventos em conjunto com a Universidade, Sindicatos de Trabalhadores e com o Centro de Referência de Saúde do Trabalhador, que foram a base para a criação
de um grupo de discussão. Em Assis também já foi realizado um evento em parceria com a Unesp, em que, além das discussões sobre os problemas do mundo
do trabalho, também foram discutidas as questões que hoje se colocam devido à exclusão de um grande contingente de trabalhadores do mercado profissional,
ou seja, também se discutiu o mundo do “não trabalho” e conseqüências do alto índice de desemprego por que o país vem passando. “É preciso que o psicólogo
se insira também nessa questão. Que tipo de conseqüências o impedimento ao trabalho pode provocar para o ser humano?”, indaga Ana Maria.
Essas e outras questões que vêm sendo levantadas ao longo das discussões dizem respeito às exigências de definição com que o psicólogo do trabalho depara
em seu dia-a-dia e que exigem resposta objetiva para que se posicione frente à sua escolha profissional. No mundo do trabalho não há espaço para subterfúgios.
O conflito social colocase a cada minuto e muito dificilmente o profissional pode se limitar a ficar na posição intermediária. Obrigatoriamente ele tem que tomar
uma posição concreta de realização. Nesse sentido, segundo Sivieri, o grande dilema que antecede qualquer ação do psicólogo do trabalho pode ser resumido
da seguinte maneira: “O lucro é um meio para gerar bens para a humanidade, ou os bens promovidos e colocados à disposição da humanidade são para a
obtenção de lucro?”.
Dessa forma, conclui Ana Maria, “gostaríamos de ver aumentando dia a dia o trabalho do psicólogo na promoção, na discussão, na alteração, no planejamento
de processos de trabalho que trouxessem menos prejuízo ao trabalhador. Formas de processo de trabalho que trouxessem ao trabalhador uma inserção mais
verdadeira como um ser integral no trabalho, que ele tivesse uma compreensão maior do trabalho como um todo. Para tanto precisamos manter como pano de
fundo um objetivo maior, que é a alteração das relações de trabalho. Na área da psicologia do trabalho não podemos ter uma ação pontual, solta e perdida. E,
nesse momento, não há como a psicologia do trabalho ignorar a necessidade de que sua atuação seja voltada para uma profunda alteração nas condições
políticas e sociais”.

Psicologia dá equilíbrio à organização


Lado empírico da profissão dá lugar à atuação mais estratégica
A atuação do psicólogo mudou muito dentro da organização. Aos poucos ele vem ganhando mais espaço, ultrapassando os limites da sua formação e atuando mais estrategicamente. Foi,
sobretudo, uma mudança na postura dos psicólogos que levou as organizações a enxergá-los dessa outra forma. A busca pelo desenvolvimento, procurando conhecer o negócio e ocupar
seu espaço são atitudes que têm agregado muito as organizações.
O quadro, entretanto, ainda não é muito otimista. Há muito para comemorar, mas há muito para se fazer. Um grande problema é a formação destes profissionais, pois a maioria das
faculdades não privilegia a área organizacional. "Quem chega da faculdade para atuar na empresa chega muito cru", relata Ana Cecília da Silva, coordenadora de RH & Serviços da TNT
Brasil, que se forma este ano em Psicologia, apesar dos oito anos de experiência na área. "Até porque ele sai com uma visão dentro da faculdade e quando chega na organização é
totalmente diferente do que ele aprendeu; eu, por exemplo, tive algumas dinâmicas que usei há quatro anos atrás e que hoje eu não uso mais, então há com certeza uma discrepância",
explica.
Para Angélica Moura, gerente de RH do Grupo 7Comm, formado por empresas de tecnologia, o psicólogo era visto na organização como um "tirador de pedidos". "O profissional recebia uma
requisição do tipo: 'quero uma Cláudia Schiffer' e tinha que entregar uma 'Cláudia Cardinale' e se não atendesse com a qualidade desejada, RH não prestava", compara. "Hoje não, ele tira
pedido, mas faz acontecer, porque acompanha e também discute a estratégia da organização, por exemplo, eu visitei um cliente e discuti a estratégia da empresa que estava mudando um
projeto, e no segmento de consultoria de informática é muito comum o RH trabalhar em conjunto com o cliente para avaliar suas necessidades, então acho que as coisas estão atreladas, as
pessoas e negócios", avalia.
Isabel Cristina Arias, diretora de RH da agência de propaganda NewcommBates, conta que durante muito tempo o papel do psicólogo era realizar simplesmente o processo de seleção e
treinamento, este entendido como um treinamento de massa, ou seja, privilegiando a área técnica, treinar a pessoa para apertar o parafuso mais rapidamente, para aprender a datilografar,
ou seja, desenvolvimento de habilidades. "Na área de seleção, o psicólogo realizava um teste psicológico, reprovava o candidato, mas não podia dizer o porquê, pois era um dado
confidencial", relata. "Eu me lembro de ter feito na faculdade um teste de personalidade, e o resultado deu imbecil", ironiza. "É exatamente por isso, que se questiona muito a aplicabilidade
destes testes nos processos seletivos", completa.
Na visão de Márcia Drysdale, gerente de Recursos Humanos da Rhodia, esses instrumentos antigos de seleção, testes e entrevistas psicológicas, eram ferramentas que davam aos
psicólogos autoridade para aplicá-las, e no final, algumas informações ficavam restritas a eles. "Hoje, ele não é mais uma pessoa onipotente, tem sido exigido que ele utilize ferramentas que
possam compartilhar com os outros, difundindo a informação", acrescenta. É nesse sentido, que a seleção por competência vem ganhando cada vez mais espaço, já que qualquer líder ou
gestor que for selecionar saberá tomar uma decisão com base nessa técnica objetiva.
Angélica acredita que o uso indiscriminado dos testes psicológicos acabaram "queimando" um bom instrumento de avaliação. "A visão que foi passada para as pessoas de que o teste
reprovava fez com que ele caísse em descrédito", analisa. "As pessoas não gostam, ficaram até traumatizadas, e hoje existem outros instrumentos, como o teste interativo que está todo
mundo usando, além da entrevista interativa", completa.
Com estas mudanças, o psicólogo tem cada vez mais disputado espaço com outros profissionais. "Eu não tenho mais a crença de que é imprescindível para RH ter um psicólogo", considera
Márcia. "Nos dias de hoje, a complexidade na gestão de pessoas é tão grande que a questão não é ser ou não ser psicólogo, mas em ter algumas características, algumas preocupações,
saber entender as necessidades, sobretudo, ter uma preocupação com o aspecto das pessoas", completa. Algumas questões dependem da sensibilidade, não do cargo ou da formação.
Os novos profissionais que ingressam nas organizações, entram com muita vontade de superar as limitações da área de seleção, atuando em várias frentes. "Eu não posso aceitar o fato de
fazer simplesmente o que está no meu contrato de trabalho, eu tenho que inovar, buscar novas e melhores formas de fazer a mesma e outras coisas", entusiasma-se Helen Meschine Costa,
psicóloga formada há dois anos pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e analista de RH da Mosane Consultoria. "RH pode fazer, por exemplo, um trabalho de motivação, de
avaliação de desempenho, além, é claro, de procurar se aproximar das outras áreas, porque ninguém faz nada sozinho", acredita.
Faculdades se defendem
Apesar das críticas dos profissionais que atuam na psicologia organizacional de que as faculdades privilegiam a clínica, os acadêmicos afirmam que as universidades têm procurado atualizar
seus currículos para atender às demandas do mercado.
Alexandre Zeminian, professor titular da cadeira de Psicologia Organizacional da Universidade de Guarulhos (UnG), informa que em 1982 foi feita uma pesquisa que media as pessoas que
freqüentavam as cadeiras escolares, e um dado que ele considera assustador era a diferença entre eficiência e eficácia. "Essa pesquisa provava qualquer profissional que era formado pelas
cadeiras escolares e não pela prática, eram formados para serem meramente eficientes, ou seja, fazer as coisas conforme a regra normal, enquanto que a prática obrigava o profissional a
trabalhar com resultados, criatividade, inovação", atesta. "Eu não aprovo hoje qualquer profissional de qualquer área que não tenha uma boa formação, mas só a formação eu digo que é
pouco, até porque a faculdade ainda está um pouco aquém da exigência do mercado, apesar de ter evoluído nos últimos cinco anos", reconhece.
Ele conta que a UnG fez uma revisão total em seu currículo do curso de Psicologia há cerca de quatro anos e a cadeira de Organizacional foi ampliada. "Essa reformulação foi necessária
porque a universidade fez uma pesquisa em 2000 que apontou a UnG como primeira colocada no que diz respeito ao nível de empregabilidade do ex-aluno em Psicologia na área
organizacional", revela.
Outra universidade reconhecida pela colocação de ex-alunos no mercado organizacional é a São Marcos. A coordenadora do curso de Psicologia, Lucia Ghiringhello, afirma que a faculdade
também começou a reformular seu currículo. "Queremos mudar de uma visão menos tecnicista e formar um psicólogo mais comprometido com a sociedade na qual ele vive", diz.
Entre as mudanças propostas para o currículo da Universidade São Marcos estão a ampliação das pesquisas e reforçar aspectos ligados à Psicologia Social. "A idéia é mostrar ao psicólogo
que as respostas não estão prontas, ele vai ter que buscar essas respostas, no mínimo numa pesquisa bibliográfica ou numa que ele mesmo realize, e a prática deve estar associada a uma
pesquisa", propõe. "Na verdade, desejamos que o profissional que vamos formar possa procurar reformulações para o próprio trabalho, que seja uma pessoa critica", argumenta.
Outra entidade também criticada pelos profissionais da área organizacional é o Conselho Regional de Psicologia (CRP). Para Angélica Moura, da 7Comm, o Conselho funciona como se
fosse o departamento de seleção antigo, "tirador de pedidos". "Na área clínica, talvez ele tenha um empenho maior, mas na área organizacional eu não vi nada", critica. "O CRP poderia ter
um banco de dados do psicólogo, pesquisa de cargos e salários na área de serviços", sugere. Ela acredita que o Conselho deveria se modernizar para atender todas as ramificações da
Psicologia.
Os psicólogos organizacionais criticam sua entidade, pois se sentem desamparados quanto ao desenvolvimento de pesquisas e estudos sobre a realidade empresarial. Segundo eles, o CRP
tem preferência pela área clínica, mesmo porque é lá que está atuando a maioria dos profissionais formados. "Acho que também tem uma idéia de que quem está empresa é mercenário, se
vendeu", protesta Isabel Arias, da NewcommBates. "Mas estes profissionais trabalham com o coletivo e podem realmente provocar mudanças", rebate.
Para ela, o Conselho de Psicologia ficou à margem dessa evolução. "Eu não me sinto amparada pelo CRP, inclusive não pago há muitos anos, eu prefiro pagar o sindicato dos publicitários,
porque sinto que de alguma forma eu estou mais assessorada do que no CRP", critica e acrescenta, "inclusive eu nunca fiz um curso interessante da minha área no CRP, é por isso que nós
procuramos as entidades, os grupos informais, para se atualizar e trocar com outros profissionais".
Para Marilda Castelar, diretora do Conselho Regional de Psicologia da 6.ª Região (São Paulo), historicamente, o psicólogo organizacional tem sido visto pelos seus pares como aquele que
se posiciona a favor da manutenção e melhoria do modo de produção capitalista. "A adoção deste discurso ideológico é reforçada pelo próprio psicólogo organizacional, à medida que o
mesmo acredita e defende que esta é a única garantia de sua permanência no mercado de trabalho, bem como de sua subsistência", analisa.
"Certamente o medo da exclusão profissional, aliada à falta de crítica e reflexão, tem levado impulsivamente os psicólogos organizacionais a adotar como base para atuação profissional as
teorias administrativas, que nada acrescentam e apenas comprovam seu despreparo técnico e teórico, para atuar com as mais diversas contradições que originam o sofrimento psíquico e as
doenças ocupacionais no mundo do trabalho", critica.
Na visão de Marilda, a psicologia organizacional e do trabalho, muitas vezes identificada com a área de Recursos Humanos, encontra-se num momento de questionamentos, em busca do
resgate da atuação do psicólogo neste campo. "A constante perda de espaço do psicólogo nas organizações, juntamente com a aproximação cada vez maior destes profissionais com
referenciais oriundos de áreas distintas, como administração de empresas e engenharia, aponta a necessidade de redefinir não só o papel do psicólogo, mas também que base irá sustentar
seu olhar sobre os discursos presentes nestas organizações", sentencia.
Necessidade de mudança
Extrapolar os limites da sua formação e buscar entender o foco e a linguagem do negócio são pontos fundamentais para o psicólogo ganhar mais espaço na organização. Para isso, o
profissional precisa melhorar dois pontos deficitários: os números e a linguagem do negócio. "Uma coisa que eu tenho tentado aprender e é uma grande área de oportunidade para o
psicólogo e para qualquer outro profissional da área de humanas é aprender a lidar e a mostrar mais números e indicadores", acredita Márcia Drysdale, da Rhodia. É a antiga crise entre as
áreas de Humanas e Exatas que não conseguem falar a mesma língua e se entender. Quando as duas linguagens se juntam, as questões ganham uma perspectiva mais ampla e agregam
muito mais a organização.
Apesar dessa evolução, há ainda alguns tabus a serem quebrados. Muitas empresas ainda relacionam o psicólogo com a doença ou como um profissional que vai proteger, no sentido
pejorativo, os colaboradores. "Não somos um custo a mais, não estamos associados a alguma doença, e muito pelo contrário, podemos trazer dinheiro, porque se a pessoa trabalha feliz,
menos estressada, isso vai melhorar muito a produtividade", defende Isabel Arias, da NewcommBates.
Para o professor Alexandre Zeminian, da UnG, o psicólogo precisa mudar a concepção do seu segmento. "Eu vejo alguns profissionais da Psicologia muito preocupados com o psicologismo,
ou seja, com as coisinhas das pessoas, muito específicos a um ou outro funcionário, a um ou outro candidato ou a um ou outro ser humano", critica. "É preciso pensar um pouco maior,
pensar na coletividade, porque percebemos alguns profissionais bastante preocupados em resolver apenas e tão somente o aqui e o agora, e esse é o termo que se usa para o psicologismo,
ou seja, ficar muito em cima do efeito e não da causa", completa.

Cenários e situações da formação em saúde no Brasil

Antenor Amâncio Filho *

Sumário - O artigo situa e problematiza a formação de pessoal de nível médio para a saúde no cenário brasileiro, frente às diretrizes estratégicas do Sistema Único de Saúde; apresenta uma
análise quantitativa sobre a força de trabalho em saúde (nível técnico e auxiliar) e busca demonstrar e estabelecer interfaces entre as áreas da educação e da saúde. A relação entre
trabalho, educação e saúde atua como fio condutor e mediador que interliga os conteúdos e os enfoques da temática a que se propõe o artigo.

*Antenor Amâncio Filho é pesquisador da Escola Politécnica de Saúde/Fiocruz e doutor em Educação pela UFRJ.

Na atual conjuntura, em que se destacam iniciativas no sentido de fortalecer a concepção neoliberal de Estado, vem se generalizando a crença de que a esfera pública representa algo
contraproducente e secundário. Gradativamente, vai se desenhando para as instituições públicas um perfil de algoz, o conjunto delas sendo considerado como um dos principais fatores
limitantes do desenvolvimento do país, sob insistente retórica quanto ao seu obsoletismo e ausência de modernidade.
Esta vem sendo a base do discurso neoliberal que se estabeleceu desde a década de 70, decorrência de violenta crise econômica de alcance mundial, cuja intensidade marca, no Brasil, os
primeiros anos da década de 90. Procurando expor uma situação de crise que seria fortuita e de aspecto conjuntural, causada por uma demasiada interferência do Estado, especialmente no
tocante ao aumento dos gastos sociais e não, como explicita Frigotto (1995), "um elemento constituinte, estrutural, do movimento cíclico da acumulação capitalista"2. Movimento que se
expande na medida em que a internacionalização da economia compele os países a uma revisão de suas políticas nacionais, para que estas não colidam com as regras que se firmam no
plano mundial.
Nesse percurso, que intenciona impingir ao Estado características de inoperância e ineficiência, nas instituições públicas da saúde e da educação transparece, ao longo do tempo, um
continuado e persistente esvaziamento das ações do Estado. Do ponto de vista geral essas instituições apresentam, hoje, um quadro desalentador, posto que vêm sendo submetidas a
seguidos impactos de leis, de programas e de projetos referenciados em discursos "descolados" da realidade para a qual são formulados. Essa inadequação entre a teoria e a prática e o
sentido imediatista depositado em pretendidos resultados, imprimiram graves seqüelas aos já precários sistemas existentes, ocasionando um agravamento do quadro devido à
descontinuidade, fragmentação e desarticulação das ações propostas.
Historicamente não tem sido, formalmente, atribuição da área de saúde a formação de seu pessoal técnico de nível médio, sendo a aprovação e o reconhecimento das habilitações, nas
formas legais vigentes, atribuições do sistema de educação. A saúde possui, como alternativa, a preparação de seus quadros médios (seja pela via do ensino supletivo, seja através de
reciclagens e treinamentos informais), na medida em que são absorvidos pelos serviços. Em outros termos: de um modo geral, a educação vem formando profissionais para atuar na saúde
sem considerar as carências e necessidades do setor saúde e este, por sua vez e também de modo geral, procura criar condições para suprir as deficiências técnicas dos profissionais que
incorpora.
Esta situação configura um descompasso: de um lado, a rede de saúde operando com restrições e tentando ações emergenciais de capacitação de pessoal; de outro, a rede de ensino,
possuidora de competência exclusiva para auferir habilitações regulamentadas por lei, acumulando incontáveis dificuldades para cumprir a atribuição de formar o profissional de saúde.
Não desconhecemos que a carência de pessoal habilitado de que se ressente a saúde não permitiria abandonar, de imediato, alternativas já existentes de profissionalização implementadas
por órgãos ligados à prestação de serviços de saúde. Elas permanecem necessárias (e, em alguns casos, até mesmo desejáveis, como nas especificidades exigidas para o manuseio e a
manutenção de equipamentos hospitalares). Contudo, também entendemos que, na saúde, iniciar a preparação do trabalhador após seu ingresso na força de trabalho deve ser algo pensado
como uma medida circunstancial, emergencial e recuperadora, cuja razão de ser decorre da insuficiência e precariedade do sistema de ensino em formar/preparar quadros habilitados para o
exercício da profissão nesse campo antes de sua inserção no mundo do trabalho.
Esse panorama, no qual os denominados "aparelho formador" (educação) e "aparelho absorvedor" (saúde) desenvolvem ações desconexas, torna obrigatório, para os profissionais das duas
áreas, refletir sobre propostas educacionais que almejem romper com uma situação historicamente falha, sinalizando para a construção e a implementação de mecanismos que, resultantes
de uma parceria inter-institucional entre a educação e a saúde, proporcionem condições para formar esses profissionais de nível médio. Um processo que englobe crescimento intelectual e
profissional do indivíduo, propiciando-lhe o desenvolvimento de suas capacidades com autonomia de pensamento e prática crítica e criativa e legitimando-o, via o sistema de educação, para
o exercício profissional. O presente artigo guarda a pretensão de contribuir para esse tipo de reflexão.

Política de saúde e recursos humanos

Política de saúde não é um conceito que se resume à política oficial desenvolvida pelos aparelhos do Estado. Existem políticas de saúde formuladas por grupos de interesse, por
corporações, por grupos sociais marginalizados ou excluídos dos sistemas de cuidados de saúde que se organizam nos movimentos populares visando a reformulações no sistema de saúde
em vigor. Como explicita Cordeiro:
É preciso entender a política de saúde (ou as políticas de saúde) como um processo de contradições e de relações entre grupos que disputam o poder de forma distinta, no sentido de impor
ou de implementar seu projeto de saúde ou seu projeto de sociedade.3
Nos últimos 20 anos, as políticas de saúde traduziram um modelo de assistência à saúde marcado por uma intervenção estatal de caráter privatista (ao privilegiar a contratação, com
recursos públicos, de instituições hospitalares do setor privado para a prestação de serviços médicos), e excludente:
Por guardar as características do modelo de seguro que condiciona o direito à assistência à contribuição prévia, excluindo do acesso milhões de brasileiros não vinculados ao mercado formal
de trabalho, não contribuintes da Previdência Social.4
A estruturação do modelo (orientado por uma visão de expansão do atendimento hospitalar, em particular a área hospitalar privada) permitiu ampliar uma forma de organização que se
constituiu em um grande complexo médico-industrial, mediante o crescimento do mercado de consumo de medicamentos e de equipamentos médicos, a partir da ação do Estado
empreendida via Previdência Social, além de acrescer, a esse complexo, o seguro-saúde:
Uma espécie de presença do capital financeiro "organizando" o setor saúde privado, intrometendo-se no setor público e esvaziando o projeto de organização pública do sistema de saúde.5
O que ocorreu no Brasil foi um processo intenso de privatização da saúde, mediante o qual o sistema criou um sentido da lucratividade do trabalho de prestação de cuidados de saúde. Além
de ser uma forma de restabelecer a capacidade de trabalho do indivíduo (visto como um "recurso" do capital), também se tornou um processo específico de transformação e de acumulação
capitalista, consubstanciado e estruturado na forma de empresas médicas.
Dessa maneira, o sistema de saúde constituído sob a política do regime militar pós-64 teve como uma de suas características transformar-se em importante locus de acumulação de capital,
gerando distorções e efeitos discricionários, ao priorizar suas ações no sentido de favorecer a determinada e privilegiada parcela da população, "em detrimento de uma grande massa de
despossuídos de saúde, de educação, de moradia, de transportes, de mínimas e básicas condições de cidadania."6
O esgotamento de um regime autoritário e burocrático, calcado na tradição centralista de atribuir ao Estado o papel principal de planejar o desenvolvimento econômico (e influir na sua
execução), dotado de condições e instrumentos para intervir, de modo arbitrário, nos diferentes campos que compõem o entorno social, inaugurou uma etapa de transição na direção da
democracia.
É nesse contexto de transição e sob a conquista, por parte da sociedade, de canais de participação, que à iniqüidade do sistema de saúde é contraposto um movimento social integrado por
intelectuais, profissionais da saúde, pesquisadores, sindicatos, grupos associativos de base e lideranças políticas. Punha-se em andamento a elaboração de um projeto de sistema de saúde
de contorno democrático e eficaz que, ao mesmo tempo, deveria integrar e somar no processo mais amplo de luta contra as condições de deterioração dos níveis de vida da população.
O momento condizia e alimentava esse movimento, posto que o modelo privatista de saúde aportava à década de 80 enfrentando vicissitudes decorrentes de sua própria irracionalidade
técnica e econômica frente às crescentes demandas sociais, em especial por mostrar-se retrógrado em termos de organização empresarial capitalista, porque dependente das
disponibilidades orçamentárias e financeiras de um Estado que, naquele momento, sucumbia em profunda crise social e econômica.
A conjuntura, portanto, favorecia o surgimento de movimentos de oposição ao regime vigente e, dentre eles, o denominado "movimento da reforma sanitária"7 que, gestado no interior do
setor saúde, passou a ocupar cada vez mais espaços no cenário político-institucional, formulando e defendendo propostas baseadas no entendimento da saúde enquanto direito social
universal a ser garantido pelo Estado.
Nessa perspectiva, a proposta firmava-se em três pontos: a) o primeiro dizia respeito ao conceito de saúde, relacionando-o às condições concretas de existência do homem na sociedade,
buscando superar a polaridade existente entre as dimensões biológica e social. Tal conceito remetia ao equacionamento das políticas econômicas e sociais, sinalizando que a reforma
proposta não se limitava a ser um projeto exclusivo do setor saúde, mas estendia-se a toda a sociedade e ao conjunto das ações governamentais. Implicava, portanto, na implementação de
políticas sociais mais justas e equânimes, objetivando a diminuição dos riscos de o indivíduo adoecer ou sofrer agravos à sua integridade física e mental; b) o segundo, de natureza
eminentemente política, correspondia à explicitação e reconhecimento de igual direito de acesso de todas as pessoas às ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, assim como
o dever do Estado de assegurar esse direito de cidadania e, c) o terceiro, de natureza estratégica e caminho necessário para a redemocratização do setor, assinalava o reordenamento do
sistema de prestação de serviços de saúde, o qual deveria responder às proposições da reforma sanitária, seja como executor de ações específicas, seja como responsável pela saúde da
população perante a sociedade e frente às demais políticas públicas setoriais.
Essa reorganizacão do sistema corresponde ao projeto do Sistema Único de Saúde (SUS), assentado sobre os seguintes princípios essenciais: a) universalidade - acesso da totalidade da
população a condições e serviços de saúde, sem discriminação de segmentos socioeconômicos ou culturais; b) integralidade - as ações de saúde, coletivas e individuais, consideradas e
praticadas sob um enfoque integral, o que significa romper com a concepção (dominante) que dicotomiza a "saúde pública" (que teria caráter de prevenção) e a "medicina curativa" (que teria
caráter de assistência médica e hospitalar) e, c) resolubilidade - assegurar o efetivo equacionamento dos problemas apresentados e observados individual e coletivamente, sob o
compromisso de qualidade no atendimento.
Com esse horizonte, o Sistema Único de Saúde deveria pautar-se tendo como diretrizes, unidade de doutrina e de lógica administrativa em todo o território nacional; descentralização
(deslocamento) do poder na direção dos municípios, aceita a concepção de que, quanto mais próximas do local de sua efetivação, tanto mais relevantes e legítimas são as decisões;
racionalidade técnico-administrativa, com a adequação entre a estrutura de necessidades e a de serviços, equipamentos e demais recursos, estabelecendo uma rede única, regionalizada e
hierarquizada por níveis de atenção, correspondentes à concentração tecnológica existente em cada um dos níveis e, por fim, participação da população organizada no processo de definição
e de controle da execução das ações de saúde nos níveis federal, estadual e municipal.
Elaboradas no contexto de um processo de transição política e derivadas de um projeto mais amplo de democratização, fortalecimento e modernização das instituições públicas, as
propostas foram consolidadas no Relatório Final da 8a Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986:
Conformando o projeto de Reforma Sanitária Brasileira que teve como eixos: a instituição da saúde como direito de cidadania e dever do Estado: a compreensão da determinação social do
processo saúde-enfermidade, através do conceito ampliado de saúde; e a reorganização do sistema de atenção com a criação do Sistema Único de Saúde.8
Apesar do arcabouço jurídico-legal definido em Capítulo específico da Constituição Federal de 19889, a implementação do Sistema Único de Saúde vem se deparando com sérios e graves
entraves e dificuldades estruturais, historicamente produzidos. Nesse processo, identificam-se pelo menos três aspectos que se interligam e devem ser enfrentados com a urgência
necessária, pois retêm a capacidade de conferir ou não qualidade à rede de assistência à saúde, conforme mencionado por Rodrigues Neto10: organização física da rede de serviços de
forma regionalizada e hierarquizada; adequação e qualificação tecnológica dos serviços de saúde e formação, atualização e reciclagem dos profissionais do setor.
Em relação ao último aspecto, é fato que a ampliação quantitativa e o aprimoramento da qualidade do pessoal responsável pelas ações de saúde têm sido tema constante nos diferentes
fóruns em que se debatem possibilidades e viabilidade de estruturar e operacionalizar um sistema de saúde que, sem discriminação, venha a proporcionar acesso e cobertura eficiente ao
conjunto da população.11
A situação se agrava na medida em que se observa, no setor, a existência de um grande contingente de pessoas, responsáveis por atividades de nível médio, exercendo suas atribuições
sem embasamento teórico e qualificação profissional prévia. A decisão no sentido de alterar e reverter esse quadro resulta em considerar essa força de trabalho como prioridade estratégica
na consecução da proposta, tomando-a como elemento propulsor e viabilizador da mudança, em razão das atividades a ela delegadas e afetas.
Grosso modo, o que ainda hoje se constata é que a demanda no mercado de trabalho não ocorre por egressos de cursos profissionalizantes o que, na prática, significa que a necessidade de
mão-de-obra na prestação de serviços impôs um quadro em que postos de trabalho que deveriam ser preenchidos por pessoal devidamente habilitado, são em grande parte ocupados por
leigos, não detentores de habilitação específica para exercer atividades próprias da saúde.
Portanto, para atender às exigências requeridas pelo Sistema de Saúde, é preciso tanto dar respostas às reivindicações do atual trabalhador da saúde (entre as quais se incluem a
preparação profissional, melhores condições salariais e de trabalho, legitimação da atividade profissional), como também reforçar e ampliar as condições para aumentar, qualitativa e
quantitativamente, as possibilidades do sistema de ensino de caráter regular no que toca a formar novos e competentes quadros técnicos para a rede de saúde. Nesse trajeto, é necessário
ter presente a urgência e o grau de importância que o advento do Sistema Único de Saúde enfatiza e reforça no tocante à formação de pessoal para ocupar posições nos segundo, terceiro,
quarto escalões da hierarquia funcional, pois é sobre esse contingente que recai enorme parcela de responsabilidade na sustentação e consolidação do sistema.
Desse modo, a formação de pessoal de nível médio para a saúde deve consistir em um processo em que não estejam dissociadas a técnica e a política. É preciso ter em mente que se atua
frente a determinadas circunstâncias, no interior de um espaço ainda ocupado por um sistema de saúde arcaico porém vivo o bastante para opor resistências e movimentar-se no sentido
oposto ao da mudança. É um enfrentamento que exige filosofia e princípios comuns que articulem os setores da saúde e da educação, objetivando um trabalho conjunto na formação desses
profissionais.

Educação e saúde - convergências e interseções

O caráter centralizador e autoritário imposto pelo período militar (1964-1985) imprimiu, também na educação, graves seqüelas, ocasionando um refluxo nos debates sobre a questão
educacional. Discussões que antes envolviam amplos setores da sociedade cederam lugar ao discurso de especialistas e foram reduzidas ao conflito de interesses daqueles mais
diretamente interessados: pais, professores, Ministério e Secretarias de Educação, editores de livros e de material didático.
Entendemos que, entre os fatores que contribuíram para essa posição até certo ponto reducionista do problema, pode ser incluída a rápida expansão do sistema de ensino superior verificada
no período, atraindo para si os melhores talentos e as principais atenções, fazendo amortecer o debate sobre o ensino fundamental e básico. Acresce a isto a difusão, na década de 70, da
idéia de que a educação pouco poderia influir nas transformações das condições de vida ou nas relações de poder da sociedade, cabendo aos sistemas educacionais apenas reproduzir as
estruturas de dominação existentes na sociedade.
À época, estudos e afirmações desse tipo e teor não geraram, no meio dos educadores, questionamentos mais rigorosos quanto ao papel e a importância atribuídos à educação no contexto
social. No dizer de Saviani:
Se tais estudos tiveram o mérito de pôr em evidência o comprometimento da educação com os interesses dominantes, também é certo que contribuíram para disseminar entre os educadores
um clima de pessimismo e desânimo.12
Esse panorama começou a ser alterado no bojo do movimento nacional na direção de mudanças no país, que ganhou impulso pela insistência das forças políticas empenhadas na luta pela
conquista das liberdades democráticas mediante o retorno à prática da participação eleitoral. Esse esforço começou a adquirir maior consistência e a ser recompensado a partir dos
resultados das eleições municipais de l977 e estaduais de l982, que abriram caminho para uma ampla mobilização da sociedade para eleger, pela via direta, o Presidente da República.
Pode-se dizer que o movimento pelas "diretas já" representou o marco de confluência dos movimentos (políticos, sociais, culturais, sindicais) que emergiam de uma sociedade que requeria o
restabelecimento pleno do Estado de direito.
Como na saúde, a reação mais articulada na educação teve início a partir do final dos anos 70 e início dos 80, ainda que em menor escala e dimensão, posto não haver alcançado obter a
adesão e ressonância social que caracterizou o movimento sanitário. Na educação,
foi no cruzamento entre o movimento sindical dos professores, de um lado, e a difusão da crítica acadêmica, de outro, que surgiu a proposta de ampliação do espaço de debates que se
travaram nos últimos dois anos da década de 70.13
A partir de então, o movimento se organizou, ganhando amplitude. A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) e o Centro de Estudos Educação e
Sociedade (CEDES), organismos criados em 1978 ("ambos revelavam na sua própria criação a resistência à política educacional dos governos militares")14 e a Associação Nacional de
Educação (ANDE), surgida em 1979, articularam-se e passaram a promover as Conferências Brasileiras de Educação (CBEs), eventos que se mostraram eficazes enquanto importantes
espaços para a emergência de propostas e de aprofundamento dos debates sobre os rumos e os desafios da educação frente ao contexto social e político existente.
Ainda recorrendo a Cunha: "apesar da importância de muitos simpósios e painéis, é possível afirmar com segurança que o produto de maior efeito sociopolítico de todas as Conferências foi
a Carta de Goiânia, aprovada pela plenária de encerramento da IV CBE" (sob o tema "A educação e a constituinte"), realizada em 1986 15. Grande parte dos dispositivos distinguidos na
carta foi incorporada à proposta que o Fórum Nacional da Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito (organizado pelos professores da Universidade de Brasília)
encaminhou ao Congresso Constituinte na forma de emenda constitucional, destacando-se nela as principais e polêmicas posições registradas na Carta de Goiânia: educação escolar como
direito de todos e dever do Estado; gratuita e laica nos estabelecimentos públicos e destinação dos recursos públicos exclusivamente para o ensino público, pontos esses que centralizaram
as discussões e alimentaram os embates entre as forças chamadas de progressistas e as conservadoras.
A luta empreendida pelas duas áreas - saúde e educação - para resgatar e ampliar direitos de cidadania, transparece na Constituição Federal de 1988, promulgada em um momento de
intensas articulações políticas e pressão da sociedade através de movimentos sociais organizados. O campo dos direitos sociais ("a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados" - Artigo 6º)16 assume caráter prioritário, revelando significativo avanço em relação aos textos
constitucionais anteriores.
No caso da saúde ("direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso único e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" - Artigo 196)17 e da educação ("direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" - Artigo 200)18, há uma clara
afinidade no discurso e nas garantias que contemplam ambos os setores, as quais apontam para o caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa e a necessária
participação da comunidade para a reformulação, implantação e desenvolvimento dos dois sistemas. No que se refere à saúde, a Constituição é taxativa ao estabelecer que "as ações e
serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único" (Artigo 198)19, organizado mediante diretrizes de descentralização, atendimento
integral e participação da comunidade. Para a educação (menos contundente, é verdade) rege que "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de
colaboração, seus sistemas de ensino." (Artigo 211)20
Conseqüência, talvez, de maior capacidade de aglutinação de forças em torno de um objetivo em dado momento político ou, ainda, decorrência de um processo de amadurecimento mais
agudo quanto à própria realidade e de uma maior clareza e vontade política de intervir sobre essa mesma realidade, fato é que o movimento no sentido da mudança ocorreu com maior
agilidade e intensidade na saúde. Exemplo disto é a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8080/90)21- essencial para a operacionalização do Sistema Único de Saúde - aprovada pelo Congresso
Nacional já em 1990, enquanto que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (definidora e orientadora do cumprimento das disposições constitucionais nessa área) em 1996,
substancialmente alterada em sua concepção original, teve sua tramitação concluída na esfera parlamentar.
Fleury, ao elencar o que denomina de "características centrais do modo como se organiza o sistema de saúde"22 (conformado em subsistemas muitas vezes independentes), possibilita que
se estabeleça um paralelo que identifica semelhanças entre as duas esferas, compondo um quadro das condições sob as quais os dois sistemas operam:

"a) multiplicidade de instituições com ações desordenadas;


b) superposição e irracionalidade na distribuição da rede de serviços;
c) seletividade e exclusão da população mais pobre, com concentração da rede nas áreas urbanas mais ricas;
d) centralização e burocratização da administração dos serviços;
e) programação verticalizada;
f) ausência de controle da produção de insumos; ao contrário, a produção passa a determinar o modelo de atenção;
g) não valorização dos profissionais;
h) não participação da comunidade."

Uma tal organização tem como conseqüências, entre outras, elevado nível de insatisfação por parte dos usuários, baixo nível de compromisso dos profissionais que atuam no sistema,
inadequação dos serviços oferecidos em relação a demandas prevalentes, baixa resolubilidade e não socialização do saber.
Para a transformação desse panorama comum, a descentralização (enquanto movimento social e político de ruptura) se coloca como estratégia necessária para ambas as áreas. E, na forma
de implementar o processo, destaca-se um importante ponto de concordância: a saúde considera a atenção primária como o instrumento principal de ação, a partir do qual se pretende a
mudança de todo o sistema de saúde; a educação, por sua vez, propugna o acesso universal à educação básica, no sentido de construir uma plataforma de sustentação e de mobilização
para avançar na conquista dos níveis mais complexos de ensino.
Claro, também, que proposição de tamanha abrangência não ocorre de modo consensual ou sem percalços, pois as forças que detêm (e defendem) a manutenção do poder centralizado
opõem vigorosa resistência à instalação de um processo que representa diluição desse poder. Forças que se alinham em um discurso de descentralização de tarefas, onde não se alteram
estruturas, permanecem centralizadas normatizações e recursos financeiros, garante-se a posse e o exercício do poder e cria-se, para a sociedade, a ilusão de propostas transformadoras
que, na realidade, escamoteiam o objetivo de impor e manter. A descentralização deve ser preservada e defendida enquanto deslocamento de poder decisório, representando ela uma
conquista constitucional e um instrumento fundamental para a consecução de mudanças nos sistemas educacional e sanitário.
Por sua vez os avanços tecnológicos que se processam nas sociedades contemporâneas e que promovem a substituição da divisão taylorista de tarefas por atividades integradas, em equipe
ou individualmente (a crescente substituição da produção mecanizada pela tecnificada, numa transição em que a automação, via aplicação da microeletrônica, deflagra novos processos que
repercutem sobre o trabalho humano) exige do trabalhador uma visão global do processo de trabalho em que se encontra inserido, bem como maior capacidade de resolução de problemas.
Esses novos requerimentos do processo produtivo fazem necessário que o trabalhador possua requisitos intelectuais que envolvem o conhecimento sobre a origem, a produção e a mudança
do mundo físico e da vida social, o domínio da linguagem - para organizar e expressar o próprio pensamento e compreender as expressões dos outros - e o domínio de noções de
grandezas, números e quantidades que sirvam de base ao desenvolvimento do raciocínio abstrato, lógico, formal e matemático, tornando-se capaz de construir conhecimento e de interagir
como sujeito crítico na sociedade.
No desafio à formulação de uma política educacional, alguns consensos podem ser destacados: a) a educação, juntamente com a ciência e a tecnologia, emerge na pauta das macropolíticas
do Estado como importante fator para a preparação dos profissionais requeridos pelos novos padrões de desenvolvimento; b) a educação é parte indispensável no elenco de medidas para
tornar as sociedades mais igualitárias, solidárias e integradas; c) a aquisição de conhecimentos básicos e a formação de habilidades cognitivas são condições primordiais para que toda
pessoa consiga, de modo produtivo, conviver com a quantidade e a velocidade das informações, sendo capaz de processar e selecionar as que considerar relevantes e, d) o conhecimento, a
informação e uma visão abrangente dos valores são substratos para o exercício da cidadania em sociedades plurais, cambiantes e cada vez mais complexas, nas quais a hegemonia do
Estado, dos partidos políticos ou de um setor social específico tende a ser substituída por equilíbrios instáveis, que envolvem permanente negociação para o estabelecimento de
consensos.23
Entendemos que um dos caminhos para suplantar o elenco de diferenciadas exigências que se interpõem para o profissional de nível médio da saúde seria a construção de um processo que
integre trabalho e educação, definido este "enquanto um princípio metodológico [a partir do qual] todo o campo educacional poderia ser redesenhado".24 Sob esse enfoque, a formação
politécnica poderia constituir-se em uma das questões educacionais possíveis para impulsionar e articular a reorganização da práxis educacional, procurando definir e estabelecer conceitos
para uma educação politécnica frente à realidade brasileira.
Uma das mediações para que se viabilize a articulação trabalho/educação/saúde poderia residir na constituição e disseminação de instâncias (que poderiam ser denominadas de áreas de
conhecimento ou de núcleos temáticos), as quais se constituiriam em espaços privilegiados para o debate e o aprofundamento de questões pertinentes, no caso, à formação de pessoal de
nível médio para a saúde. Um locus propício à socialização e sistematização de saberes, onde o embate de interesses e de visões diferenciadas poderia resultar na elaboração de propostas
pedagógicas e de conteúdos que configurem um currículo (ou currículos) que contemple a dinâmica do processo de trabalho em saúde. O conhecimento assim acumulado e sistematizado
(conjugando teoria e prática), serviria como argamassa para a sustentação de um real e conseqüente processo educacional na saúde.

Força de trabalho de nível médio em saúde

O início do processo de industrialização inaugurado no Brasil na década de 50, teve por conseqüência um rápido movimento de urbanização da sociedade e significativo crescimento do setor
terciário. Registra-se que "entre 1950 e 1980 o setor terciário aumenta sua participação de 26,4 para 44% do total das pessoas ocupadas".25
Nesse mesmo período, o incremento da força de trabalho em saúde obedeceu a lógicas diversas, geradas por políticas econômicas e sociais excludentes. Na esfera pública, a unificação do
aparato estatal de seguridade social, mediante a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e, posteriormente, do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência
Social (INAMPS), favoreceu a capitalização da prática médica.26
A serviço de uma política imposta sob um regime de exceção, as décadas de 70 e 80 foram marcadas por significativo crescimento da capacidade instalada do setor hospitalar privado
conveniado com o INAMPS, havendo vigorosa absorção de profissionais pelo mercado, com destaque para as categorias polares de médico e de atendente. A incorporação de atendentes
(categoria vinculada à enfermagem e caracterizada pela baixa escolaridade e falta de qualificação profissional), representa um dos sérios problemas existentes na saúde, pois é esse
contingente que, apesar de seu despreparo, responde, na maioria das vezes, pela assistência direta ao doente. O trato com o doente exige determinadas habilidades técnicas e cognitivas
dificilmente alcançadas em programas de treinamento em serviço, comumente esporádicos e superficiais, ofertados a esse pessoal como tentativa de reduzir os riscos a que ficam expostos
os doentes.
Existe, sem dúvida, uma relação direta entre a qualificação do trabalhador em saúde e a qualidade da assistência prestada ao doente. É possível, por exemplo, relacionar os altos índices de
infecção hospitalar com a falta de preparo do pessoal envolvido no cotidiano da assistência hospitalar, conforme observado por Castro et alii:
O contato com o paciente é realizado na maioria dos hospitais brasileiros por atendentes e outros auxiliares /.../. Empregadas domésticas, apenas alfabetizadas, são freqüentemente
colocadas em posição de considerável responsabilidade, sem qualquer treinamento, o que talvez explique parte da prevalência de doenças iatrogências, como a infecção hospitalar.27
Análises existentes atribuem o aumento da força de trabalho sem qualificação formal ao crescimento do setor hospitalar privado, uma vez que "a lógica do setor privado foi sempre rebaixar
os salários dos profissionais na utilização dos atendentes e o descaso pelos profissionais qualificados de nível médio."28 Contudo, no decorrer da década de 80 e apesar de uma política
direcionada para o fortalecimento do setor público, verificou-se a mesma tendência de privilegiar a incorporação, a essa força de trabalho, de pessoas sem a devida qualificação profissional.
Associam-se a esse fenômeno não apenas a redução de custos mas também a característica da contratação como mecanismo de clientelismo político.
A observação de dados numéricos sobre essa força de trabalho 29 permite melhor visualizar a dimensão e as dificuldades a serem enfrentadas para equacionar (e buscar superar) a
problemática situação desse contingente, no que tange à sua formação profissional. A realidade desenhada em números revela que as iniciativas e esforços que vêm sendo empreendidos
para ampliar a profissionalização e dar legitimidade a esse trabalhador estão muito aquém do que poderia e deveria ser realizado, caso houvesse uma firme vontade e decisão política.
Para facilitar a apreciação, as categorias profissionais de nível técnico e auxiliar30 foram alocadas pelas cinco regiões geográficas em que se divide o país, feito um recorte, no universo dos
trabalhadores, dos possuidores e dos não possuidores de certificação (diploma) e distribuídos os postos de trabalho por tipo de instituição (pública e privada).
O total de técnicos com diploma no período estudado somam 68.965, distribuídos homogeneamente entre as instituições públicas e privadas (Figura 1). Os trabalhadores de nível técnico
sem diploma são em menor número do que aqueles detentores de documento legal, concentrando-se em maior quantidade no setor privado (Figura 2).
As categorias auxiliares, além de representarem um contingente maior que o de técnicos, concentram maior número de pessoas sem a devida formação necessária (e conseqüente
certificado), totalizando 215.192 trabalhadores.
Em relação à categoria de auxiliar, a Figura 3 mostra que o setor público concentra maior participação desses trabalhadores com certificado, se comparado ao setor privado. Já no
contingente de trabalhadores não possuidores de certificado a distribuição é equivalente entre os dois setores de prestação de serviços (Figura 4).
Dentre os trabalhadores de nível auxiliar que não possuem certificado para exercerem a profissão, cumpre destacar a categoria de atendente, vinculada à enfermagem, em virtude da sua
participação no mercado de trabalho ser bastante expressiva, como demonstrado na Figura 5.
A maciça participação dos atendentes na assistência direta ao doente trouxe para a corporação de enfermagem a preocupação em exercer algum controle sobre o ingresso de trabalhadores
sem qualificação profissional em sua força de trabalho. Movimento nesse sentido culminou com a edição da Lei 7.498/8631 (regulamentada pelo Decreto 94.406)32, estabelecendo ser
privativo do enfermeiro, técnico de enfermagem, auxiliar de enfermagem e parteira o exercício de atividades no campo da enfermagem, devendo o profissional, para tanto, estar inscrito no
Conselho Regional de Enfermagem da respectiva região33.
A determinação legal, definindo e delimitando as categorias profissionais da enfermagem, teve como uma de suas principais razões motivadoras obrigar à formação/qualificação do
atendente, tornando reconhecido e legitimado o seu trabalho e reduzindo os riscos para o doente.
No que tange à distribuição da força de trabalho de nível médio em saúde por regiões geográficas, a maior parcela concentra-se na Região Sudeste, em especial os técnicos e auxiliares que
possuem certificação.
Nas outras Regiões, os trabalhadores de nível técnico que não possuem certificado encontram-se mais concentrados nas instituições públicas, se comparadas com as entidades privadas.
Por outro lado, a maior participação dessas mesmas categorias, na Região Sudeste (Figuras 6 e 7), ocorre nas instituições de caráter privado.
Se considerado o tipo de vínculo institucional (público ou privado), não são encontradas diferenças significativas quanto ao quantitativo das categorias auxiliares que possuem certificado,
mantendo-se o padrão de maior concentração na Região Sudeste, se cotejada esta com o somatório das outras Regiões do país (Figura 8).
É digno de nota observar a existência de expressiva participação de profissionais auxiliares, sem certificado, em instituições públicas nas demais Regiões do país, enquanto que na Região
Sudeste são as instituições privadas que possuem maior percentual dessas categorias nessa situação. (Figura 9)
A intenção, aqui, é a de demonstrar, em termos macro, a gravidade dos problemas existentes na força de trabalho de nível médio em saúde no país. O presente artigo não visa a feitura de
análises localizadas dessa problemática, mas reconhecemos e temos plena consciência da importância e necessidade de tal tipo de diagnóstico, com o objetivo de melhor definir e
implementar políticas de formação/qualificação desse contingente profissional. Para tanto, seria preciso levar em conta uma série de variáveis para buscar explicar o fenômeno com rigor e
acuidade, como por exemplo, a distribuição das instituições de saúde (públicas e privadas) por Estado e Região, correlacionando-as com dados sobre densidade populacional, doenças
prevalentes, capacidade e habilitações de saúde ofertadas pelas redes de ensino. Seria meritório, também, investigar a evolução histórica dessa força de trabalho sob as diversas políticas
públicas de saúde.
A incorporação de tecnologias, por sua vez, tem introduzido algumas modificações na composição dessa força. A relação entre tecnologia e processo de trabalho em saúde não ocorre como
em outros ramos de atividade, nos quais é comum associar incorporação de tecnologia com liberação de força de trabalho. Na saúde, porém, podem ser identificadas duas resultantes do
progresso técnico: nos meios diagnósticos e terapêuticos e nos atos cirúrgicos e no atendimento ambulatorial.
No primeiro caso, o que se observa é que o progresso técnico tem atuado no sentido convencional de economizar força de trabalho. Por exemplo: nos laboratórios de análises clínicas, a
utilização de processos computadorizados permite a leitura, a classificação e a análise das amostras de sangue, reduzindo os postos de trabalho de laboratoristas. Situação análoga vem
ocorrendo no setor de imagem, onde modernos equipamentos de raios-x têm suprimido mão-de-obra, tanto na operação do equipamento como na revelação do filme.
No trabalho desenvolvido pelo médico, seja no ato cirúrgico, seja no ambulatório, não se repete o mesmo fenômeno: os novos equipamentos utilizados para tornar mais precisos certos
diagnósticos (caso de tomógrafos computadorizados) não excluem o médico e ainda obrigam o surgimento de um novo tipo de profissional para operar esses equipamentos.34
A análise da força de trabalho de nível médio em saúde, assim como a do processo de trabalho em saúde que incorpora e utiliza cada vez mais novas tecnologias, repercute na conformação
e nas exigências da formação do pessoal de nível médio, o que remete ao questionamento sobre a validade e pertinência das atuais habilitações dispostas para o setor.

Sobre a formação de pessoal de nível médio para a saúde

Ainda hoje, no Brasil, o campo da formação profissional é pródigo em iniciativas e intenções. A história da educação brasileira revela que tais iniciativas e intenções apenas demonstram (ou
são resultado) a carência de mecanismos que estabeleçam uma consistente política educacional na esfera da profissionalização. Tradicionalmente, o sistema de ensino conserva e preserva,
de modo tenaz e como princípio incorporado, a dicotomia entre a chamada educação geral e a específica, entre pensar e fazer, entre parte comum e diversificada, mantendo-se a tendência
de um ensino que alimenta a divisão social do conhecimento e que vem subsidiando "políticas" que, sistematicamente, privilegiam as classes economicamente mais favorecidas.
A falta de um posicionamento mais claro em relação ao nível de escolaridade em que se processa a profissionalização (o segundo grau), tem sido preocupação de diversos pensadores.
Saviani, por exemplo, explicita que:
O segundo grau tem ficado espremido entre o primeiro e o terceiro. E parece-me que há um movimento pendular nas discussões sobre esse grau de ensino: ora ele é concebido como
ensino propedêutico, preparatório ao ensino superior, o que supõe uma continuidade e, nesse sentido, o segundo grau aproxima-se do modelo do primeiro grau; ora é pensado como ensino
profissionalizante, recebendo uma função terminal, o que o aproxima do ensino superior, ao qual caberia a formação profissional. Nos dois casos, o que fica patente é uma falta de clareza
sobre o papel do segundo grau. Esse é o nó que precisa ser desfeito.35
Apesar da preocupação em superar esse dilema vir se manifestando de modo insistente no discurso educacional brasileiro (especialmente nos últimos anos, quando se retoma o debate
sobre a politecnia)36, verdade é que persiste a distância entre o que se propõe e o que efetivamente se realiza no cotidiano da escola, que possui a marca da contradição entre o discurso e
a prática, como se fossem esferas excludentes e não partes fundamentais e integrantes de um mesmo e comum processo. Desse modo, "os vínculos existentes entre o conhecimento que se
produz no embate teoria-prática - e que portanto tem o concreto como suporte às construções teóricas - e a orientação que se pode imprimir à experiência pelo confronto prática- teoria - e
que, por conseguinte, tem um lastro teórico que subsidia a ação concreta", tornam-se importantes fatores para se trabalhar a definição de um projeto educacional que não tenha por base o
saber fragmentado.37
O presente artigo não intenciona proceder à análise de inúmeras iniciativas e diferenciadas propostas educacionais ocorridas ao longo do tempo e que possuem em comum a expectativa de
um reordenamento do ensino de segundo grau. Porém é pertinente mencionar que as ações empreendidas com esse sentido não lograram impedir (ou romper) o "movimento pendular"
característico desse nível de escolaridade. Movimento que reflete um modelo de sociedade que se produz e reproduz calcado na desigualdade e na exclusão e que, de modo direto ou
subjetivo, cultiva a permanência da relação entre dominados e dominantes.
No que tange à formação de pessoal para atuar na área da saúde, a situação se configura bastante contundente e especialmente preocupante, mormente se pensadas as peculiaridades e
especificidades que caracterizam a complexa natureza do trabalho em saúde. A luta pela preservação e manutenção da existência humana, sob o permanente convívio e confronto com o
risco da morte,
exige conhecimento específico, disciplina, responsabilidade, atenção e acima de tudo grande capacidade de conviver com o stress, o sofrimento, a dor, a vontade de resolver problemas
alheios /.../ o que impõe, diferentemente de outros ramos da economia, um significativo envolvimento emocional e ético com a pessoa que busca assistência médica.38
Apesar da adoção de novas e diferentes medidas para melhoria do atendimento à população (incluindo maior participação de outras categorias profissionais na assistência, como
enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, reduzindo a polaridade entre as categorias do médico e do atendente), o problema da formação do contingente de nível médio
prossegue, ainda, como um óbice a ser superado. O fato mais se agrava na medida em que os avanços tecnológicos - que vêm promovendo profundas alterações na própria natureza do
trabalho - têm ocorrido de modo cada vez mais acelerado fazendo com que, nos países subdesenvolvidos, se estabeleça um hiato entre o que se desenvolve de mais moderno em termos de
tecnologias aplicadas à saúde e à realidade social e sanitária de grande parcela da população, que sobrevive em condições de carências extremas.
Essa contrastante convivência entre o "moderno" e o "arcaico" gera sérias contradições e complexos desafios para o estabelecimento de uma política de pessoal para o setor, pois tem-se a
urgência de traçar estratégias que, simultaneamente, permitam capacitar/atualizar a força de trabalho que responde pelas atividades de rotina normalmente demandadas pela prestação de
serviços (assistência), formar pessoas com domínio técnico para operar as crescentes inovações tecnológicas, dando conta, ainda, das novas categorias profissionais emergidas da
complexificação do sistema ocupacional. Isto porque as implicações das novas tecnologias sobre o mercado de trabalho são também qualitativas: elas criam uma nova maneira de produzir e
fazem com que certas profissões se tornem obsoletas e surjam novos profissionais, com exigências de formação distintas das atuais.
Nessa conjuntura (e buscando desfazer o "movimento pendular" a que se refere Saviani),39 o profissional de nível médio da saúde deveria comportar um perfil diferente do atual que, em
linhas gerais, conjugaria:
Posse de escolaridade básica, capacidade de adaptação a novas situações, compreensão global de um conjunto de tarefas e suas funções conexas, o que demanda capacidade de
abstração e de seleção, trato e interpretações de informações.40
Some-se a esse conjunto conhecimento e capacidade para pensar e agir politicamente, objetivando uma sociedade transformada.
O movimento no sentido de uma formação do pessoal de nível médio para a saúde, diferente da atual, deve estimular esforços para reduzir a histórica distância que existe entre os setores
da educação e da saúde, buscando-se estreita e conseqüente articulação entre o setor que forma (representado pelo Ministério da Educação e Secretarias Estaduais e Municipais de
Educação) e o setor prestador de serviços de saúde (representado pelo Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde).
A articulação das duas esferas, interagindo vinculadas sob o propósito claro, definido em comum, de estabelecer quais habilitações devam ter a oferta priorizada (tendo em vista prognósticos
de necessidades futuras e condições de absorção de pessoal pela rede de saúde), representa a possibilidade de interromper uma cadeia que situa a educação e a saúde como esferas
excludentes entre si. O desafio, pois, que se coloca, é o da capacidade de se estruturarem propostas e estratégias compartilhadas por esses dois campos, ambos tendo como objeto a
amplitude da trajetória e do devir humano.
Em uma sociedade estratificada e hierarquizada como a nossa, a aplicabilidade tanto do conceito de saúde expresso pela 8ª Conferência Nacional de Saúde como da noção de saúde como
direito advindo de conquista social, esbarram em sérias limitações e obstáculos. Especialmente se considerado que as desigualdades regionais existentes refletem condições estruturais
limitantes ao pleno desenvolvimento de uma organização de serviços socialmente adequados, e compatíveis com o perfil epidemiológico da população.
A formação de pessoal de nível médio da saúde deve, pois, fundamentar-se em uma visão crítica do contexto social, não dissociando o domínio da técnica do pensar e do agir político. O
propósito de pensar um novo direcionamento nos meios e modos de formar esse pessoal implica o cometimento de ações que aliem, de modo solidário, educação e saúde, na construção de
um processo que permita ao indivíduo conjugar, em sua formação, competência técnica, clareza e vontade política e compromisso social.
Nesse entendimento, cabe à educação posição de destaque, pois ela é um permanente expressar de cultura, uma contínua construção de conhecimentos, um constante criar de hábitos. Em
virtude de suas múltiplas interfaces, que lhe conferem um caráter diversificado e dinâmico, a educação não pode ser reduzida a uma expressão de cunho meramente instrumental. Suas
fortes e profundas inter-relações com o conjunto das práticas sociais obrigam a que as atividades de ensino contenham características precursoras, possibilitando ao educando a posse e o
exercício da visão de conjunto, do entorno social no qual se insere e, a quem educa, a capacidade e a responsabilidade para apreender as múltiplas dimensões e contradições que envolvem
a formação do indivíduo.
O papel da educação na formação de pessoal de nível médio para a saúde, compreendidas e apreendidas as especificidades do setor, é de especial importância no momento atual, quando
a permanência e o êxito do Sistema Único de Saúde dependem, fundamentalmente, da adesão e participação de profissionais com características e conhecimentos diferentes dos que hoje
compõem a força de trabalho dessa área.
Os problemas que envolvem os dois setores - educação e saúde - possuem raízes estruturais comuns e, ainda que operem com lógicas diferentes, visam ambos, em síntese, à constante
melhoria da qualidade do viver humano. É preciso ter presente, sempre, que apesar de periódicas tentativas no sentido de desacreditá-los (seja mediante imposições legais, restringindo ou
fragmentando suas ações, seja pela redução drástica na destinação de recursos financeiros), ambos vêm-se constituindo, historicamente, em áreas de resistência e de defesa de questões
que afetam direitos individuais e garantias de cidadania a que o Estado se obriga a prover.
Pensar saúde e educação, no Brasil, significa refletir sobre a evolução histórica de uma sociedade desigual. Não comporta mais pensar os dois setores como partes isoladas de um todo ou
de uma maneira abstrata, desvinculando-os de um contexto econômico, político e social que integram e do qual são resultantes. Questões que afetam as duas áreas podem e devem ser
compartilhadas, buscando-se, para tanto, mecanismos que proporcionem a construção de uma relação mais estreita, eficiente e eficaz entre ambas, na perspectiva de uma sociedade mais
justa, fraterna e solidária.

NOTAS

1 Artigo elaborado a partir do conteúdo do Capítulo 2 da tese de doutorado intitulada "Educação politécnica na saúde: um desafio na construção do possível", apresentada pelo autor à
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2 FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1995. p. 62.
3 CORDEIRO, Hésio. O conceito de necessidade de saúde e as políticas sanitárias. In: AMÂNCIO FILHO, Antenor; MOREIRA, M. Cecília, G. Barbosa (org.). Saúde, trabalho e formação
profissional. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1997. p. 27- 28.
4 GIOVANELLA, L. FLEURY, Sônia. Universalidade da atenção à saúde: acesso como categoria de análise. In: EIBENSCHUTZ, Catalina (org.). Política de Saúde: o público e o privado. Rio
de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1996. p. 179-180.
5 CORDEIRO, Hésio. op.cit.,
6 FLEURY, Sônia M. Descentralização dos serviços de saúde: dimensões analíticas. Brasília: Universidade de Brasília. l992. p. 27, 37. Cadernos da IX Conferência Nacional de Saúde.
7 Sobre o processo desenvolvido no setor saúde, a partir da década de 70, que deu origem e consolidou esse movimento, consultar, entre outros, a Revista Espaço Para a Saúde, Ano 1,
Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva. Curitiba, mar. 1989; TEIXEIRA, S.M. Fleury (coor.). Antecedentes da Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: Fiocruz/Escola Nacional de Saúde Pública,
1988. Textos de Apoio.: GERSCHMAN, Silvia. A democracia inconclusa: um estudo da reforma sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1995; ESCOREL, Sarah. Reforma Sanitária:
um processo de reforma democrática do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Fiocruz/ Escola Nacional de Saúde Pública, 1992. Monografia de mestrado. (mimeo.).
8 GIOVANELLA, L. FLEURY, Sônia. op. cit.
9 BRASIL. Constituição, 1988. República Federativa do Brasil. Brasília: Congresso Nacional. 1988.
10 RODRIGUES NETO, E. Os caminhos do Sistema Único de Saúde no Brasil: algumas considerações e propostas. Brasília: NESP/FS/UnB/CSP., l990. p. 43. (mimeo).
11 Ver "A questão dos Recursos Humanos nas Conferências Nacionais de Saúde (1941-1992). Cadernos RH Saúde, Ano 1, v.1, nº 1. Brasília, Ministério da Saúde, 1993, que retrata meio
século de um movimento constante de lutas, de avanços e recuos, de conquistas e de perdas, de divergências e de consensos para que os recursos humanos em saúde sejam assumidos e
reconhecidos como a "pedra angular" do sistema de saúde.
12 SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. São Paulo: Cortez, 1988. p. 33-34.
13 CUNHA, Luiz Antônio. Educação, Estado e democracia no Brasil. São Paulo: Cortez, 1995. p. 92-93, 96.
14 Id. ibid.
15 Id. ibid.
16 BRASIL. op. cit. Art. 6.
17 Id. ibid. Art. 196.
18 Id. ibid. Art. 200.
19 Id. ibid. Art. 198.
20 Id. ibid. Art. 211.
21 BRASIL Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços
correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União [da República Federativa do Brasil], Brasília, de 19 set., 1990. p. 18055. col. 1.
22 FLEURY, Sônia M. op. cit.
23 MELLO, G.N. Políticas públicas de educação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 12, l991. p. 30.
24 RODRIGUES, José dos Santos. A educação politécnica no Brasil: concepção em construção (1984-1992). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1993. Dissertação de Mestrado. p.
28.
25 MÉDICI, André Cezar. A força de trabalho em saúde no Brasil nos anos 70: percalços e tendências. Rio de Janeiro: ENSP/ABRASCO, 1987. Textos de Apoio. Planejamento I: Recursos
humanos em saúde. p. 41-45.
26 A esse respeito, ver CORDEIRO, Hésio A Empresas médicas. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
27 CASTRO, C. M. et. alii. A mão invisível nos serviços de saúde: será que ela cura? Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v.1, n. 4, 1985. p. 40.
28 MÉDICI, André Cezar. op. cit.
29 A análise aqui apresentada teve como base informações provenientes da Pesquisa Assistência Médico Sanitária no Brasil, obtidas junto ao Núcleo de Estudos de Recursos Humanos em
Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. A Pesquisa de Assistência Médico Sanitária - AMS é desenvolvida pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(FIBGE) desde 1975. É um levantamento anual que investiga todos os estabelecimentos de saúde do país, excetuando-se os consultórios particulares. Em 1993 a AMS coletou informações
de cerca de cinqüenta mil estabelecimentos de saúde públicos e privados, com e sem internação, que estiveram em atividade durante o ano de 1992.
30 Técnico de Enfermagem, Técnico de Laboratório, Técnico de Higiene Dental (THD), Técnico em Reabilitação, Técnico em Radiologia, Técnico em Hematologia, Técnico de Manutenção
de Equipamentos Hospitalares e Outros (não classificado/não informado) e Auxiliar de Enfermagem, Auxiliar de Laboratório, Auxiliar de Consultório Dentário (ACD), Auxiliar em Reabilitação,
Atendente, Parteira, Outros (não classificado/não informado).
31 BRASIL. Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem e dá outras providências. Diário Oficial da União [da República Federativa do
Brasil], Brasília, 26 jun., 1986 p. 9273. col 3.
32 Id. Decreto 94.406, de 08 de junho de 1987. Regulamenta a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o exercício da enfermagem e dá outras providências. Diário Oficial da
União [da República Federativa do Brasil], Brasília, 09 jun., 1987. p. 8853. col. 1.
33 Sobre o processo de profissionalização da Enfermagem ver ALMEIDA, J.L.T. de. A Qualificação do Atendente no Processo de Profissionalização da Enfermagem. Rio de Janeiro: UERJ/
Instituto de Medicina Social, 1993. Série Estudos em Saúde Coletiva.
34 MÉDICI, André Cezar. Saúde e crise da modernidade: caminhos, fronteiras e horizontes. Saúde e sociedade, São Paulo, v.1, n. 2, 1992. p. 72.
35 SAVIANI, Dermeval. O nó do ensino de segundo grau. Revista Bimestre. Brasília, out. 1986. p. 23.
36 Sobre o assunto, ver RODRIGUES, J. dos Santos. A educação politécnica no Brasil: concepção em construção. Niterói: UFF/ Fac. de Educação., 1993. Dissertação de mestrado.
37 BURNHAM, T. Fres. Vazio de significado político-epistemológico na escola pública. In: CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO., 6. Anais... São Paulo, 1991. p. (mimeo.)
38 MACHADO, Maria Helena. Trabalhadores da saúde: um bem público. Saúde em Debate, Londrina, nº 48, set. 1995. p. 54.
39 SAVIANI, Dermeval. op. cit.,
40 MACHADO, Lucília R. S. Mudanças tecnológicas e a educação da classe trabalhadora. In: CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. 6. Anais... São Paulo, l991. p. 14. (mimeo.)

ico e cruel, Klaus Barbie sentia prazer em executar as ordens de seus superiores facínoras

Klaus Barbie, o açougueiro de Lyon, capturou Jean


Moulin, o principal chefe da Resistência Francesa,
mandou milhares de judeus para os campos de
concentração e, depois da guerra, colaborou com a
ditadura boliviana. Sádico e cruel, o oficial de
Adolph Hitler executava com muito empenho as
ordens de seus superiores
Rémi Kuffer, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris
935, Klaus Barbie ingressou na SS, atingindo em
o tempo um posto de comando na tropa de Hitler.
ovembro de 1942, foi enviado a Lyon para
r a Gestapo na cidade francesa.

e sua chegada a Lyon, no fim de 1942, e sua fuga precipitada diante dos exércitos aliados no verão de 1944, foi ele o
dor. Vinte meses de batidas, de perseguições, de armadilhas. O prazer de perceber a angústia em lábios que tremem,
oelhos vacilantes. Pois ele, o Obersturmführer das SS, número 272284, espécime eminente da raça dos senhores, não
a Deus nem o diabo. Fanfarrão, era visto percorrendo com freqüência as ruas de Lyon acompanhado de três ou quatro
ens, não mais.
a época, ainda não era chamado de o carrasco de Lyon - um achado do pós-guerra. Mas o Obersturmführer Klaus
ie já tinha um considerável currículo como caçador. Clandestinos ligados a redes de resistência francesas ou
nicas, maquis, judeus - inclusive crianças, como em Izieu. Centenas de deportações raciais ou não, assassinatos,
ras, execuções. E o fino do fino, a captura dos chefes da Resistência - entre eles Jean Moulin, reunidos para designar
vo chefe do exército secreto - em Caluire, no dia 21 de junho de 1943.
al, sádico, desprovido de escrúpulos: assim era Klaus Barbie. Um puro produto do fanatismo ideológico nazista, com
desfile de racismo, de desprezo pelos seres inferiores.
protegem o nazista
ada de Barbie em Lyon foi agradável. Depois da derrota do III Reich começam os dias penosos em que o caçador se
aça, e o oficial das SS passa a se esquivar. Promovido a Hauptsturmführer (capitão) em novembro, o ex-chefe do Amt
o KdS de Lyon retornou a uma Alemanha que, sob as bombas dos aliados, não pára de se encolher.

ie figura como criminoso de guerra no Central Registry of Wanted War Criminals and Security Suspects, o Crowcass,
rquivo organizado pelos aliados. Na lista dos agentes alemães que atuaram na França, criada pela polícia do exército
ês, ele aparece com o nome de "Barbier".
é preciso ter cuidado, pois uma guerra pode esconder outra, e a Segunda Guerra Mundial dá lugar à Guerra-Fria. Em
de 1947, Barbie é recrutado em Munique por uma unidade especial do Counter Intelligence Corps americano. Os
ivos do CIC não eram a perseguição de criminosos de guerra, atributo de outro ramo da organização, mas a luta
a a espionagem soviética na zona de ocupação americana, a infiltração no KPD, o partido comunista alemão, e a
nção de informações sobre o aliado francês - alvo de desconfianças.
o ex-chefe do Amt de Lyon relatado a seus superiores americanos o martírio de Jean Moulin, o representante pessoal
eneral de Gaulle na França ocupada, e de seus camaradas de Caluire? É pouco provável. Mas por que não mencionar
perações que efetuou em maio de 1944? Com as informações de um agente duplo, o franco-alemão Lucian Wilhelm
responsável pelo aparelho clandestino da Internacional Comunista e simultaneamente informante da Gestapo de
asburgo, Barbie desarticulou o estado-maior da resistência militar comunista da zona sul da cidade em apenas três

a de 40 dirigentes, dezenas de franco-atiradores e de combatentes caíram na armadilha nazista apenas um mês antes
esembarque na Normandia: um exemplo eloqüente de eficiência, apropriado para ser exposto a seus interlocutores - e
patrões - americanos.
na Bolívia

omeço de 1951, depois de cinco anos de bons e leais serviços, Klaus Barbie e sua família seguem a linha dos ratos,
sucessão de etapas que conduz antigos nazistas para a América do Sul. É na Bolívia que ele se instala, um país de 3
ões de habitantes, onde os imigrantes alemães são tradicionalmente numerosos. Naturalizado boliviano em outubro de
, sob o falso sobrenome de Altmann, começa a engordar seu patrimônio. Acolhe com fleuma a visita oficial do general
aulle em setembro de 1963. Por que deveria inquietar-se, já que o presidente francês, em seus projetos de
roximação com a Alemanha Federal, já libertou seus dois ex-chefes, os generais Oberg e Knochen? Dois meses mais
, o exército francês, tendo localizado Barbie em La Paz, solicita que o Sdece, os serviços especiais franceses, se
em do caso, mas o pedido não dá resultados.
1966, o ex-agente das SS número 272284 começa a lidar com armamento naval. Com o apoio do general-presidente
entos, ele cria a Transmaritima Boliviana, uma sociedade da qual possui 49% das ações (os 51% restantes pertencem
stado).

boração com a ditadura boliviana


lizado pelos serviços franceses, Barbie também é encontrado pelos
icanos. A CIA chegou a cogitar propor-lhe uma nova colaboração antes
esistir da oferta, depois de uma queixa feita por um senador influente,
b Javits, alertado por um de seus eleitores. Pior para a CIA que, inquieta
ausa do crescimento das idéias castristas na América do Sul, procura
mantes na região. Ela localiza Che Guevara na Bolívia, onde o
ucionário argentino tenta implantar uma oposição armada ao regime de
entos. Pouco depois, a polícia boliviana captura um jovem militante de
ma-esquerda, Régis Debray, teórico do foco guerrilheiro. Com a ajuda
IA, os militares bolivianos cercam Che Guevara que, ferido, será
utado sem processo a 9 de outubro de 1967

complicação surge dois anos mais tarde: informado da presença de Barbie pelo cônsul da França em La Paz, o
aixador e o ex-chefe da Resistência do maquis de Glières, Joseph Lambroschini, reconhece sua impotência.
ociando com as autoridades bolivianas para obter a libertação de Régis Debray, condenado a 30 anos de prisão, os
matas franceses não estão em condições de exigir a extradição de Barbie simultaneamente. Libertado, Debray volta a
em 1970. No ano seguinte, o ex-oficial nazista recolhe contribuições na região de Cochabamba, onde tem vários
cios.
rrasco de Lyon trabalha para o general Hugo Banzer, um militar de extrema direita decidido a derrubar o governo de
erda do general Torres. A missão foi cumprida em junho de 1971. Como recompensa pelos bons e leais serviços, os
os de Banzer nomeiam Barbie tenente-coronel honorário dos serviços secretos. Onipresente, o ex-oficial das SS
ém serve de intermediário com a Alemanha para a compra de armas.

e e Serge Klarsfeld, os caçadores de nazistas seguem seu rastro. Em janeiro de 1972, Beate vai ao Peru, onde Barbie
a férias, e depois chega à Bolívia. Sua iniciativa permite tornar público o caso. No dia 1.o de fevereiro, a França pede
radição. Evidentemente, La Paz não se empenha em agir rapidamente.
s Debray reaparece a esta altura dos acontecimentos. Ele se tornara conselheiro do presidente socialista chileno
ador Allende, e toma a iniciativa de entrar em contato com Klarsfeld durante uma visita a Paris. Um projeto ambicioso
e do encontro dos dois, num café de Saint-Germain-des-Prés: oficiais ligados à oposição de esquerda ao regime de
er e guerrilheiros bolivianos raptariam Barbie, que seria levado ao Chile, de onde seguiria por barco à França.
giado político no Chile, Gustavo Sánchez, ex-chefe da polícia de Cochabamba, também de passagem pela França, se
ao complô que apóia o ex-presidente Torres, agora refugiado no Uruguai, onde será assassinado pouco tempo depois
o passaporte de um amigo, Serge Klarsfeld vai ao Chile no fim de dezembro de 1972. Leva 5 mil dólares para
prar um carro destinado a levar Klaus Barbie clandestinamente. Klarsfeld e Debray vão até a fronteira, onde encontram
hez e outros bolivianos, entre eles dois oficiais.
meses seguintes, dois acontecimentos inesperados mudam infelizmente o quadro. Primeiro, um acidente com o carro
prado graças aos 5 mil dólares de Klarsfeld; em seguida, a prisão momentânea de Barbie, em 2 de março de 1973, por
a de dívidas não pagas e do exame do pedido de extradição feito pela França. Conforme o previsto, no dia 5 de julho
te suprema da Bolívia recusa o pedido de extradição: Herr Altmann não pode ser extraditado para a França, pois não
enhum tratado neste sentido entre os dois países. Mas Barbie só sai de sua cela na prisão de San Pedro no dia 25 de
bro, um mês e meio depois do golpe contra Allende no Chile, o que torna impossível a realização do plano de Debray e
Klarsfeld.
ão perpétua
o desfecho da história foi apenas adiado. O casal de caçadores de nazistas logo consegue infiltrar uma amiga alemã -
identidade se recusam até hoje a revelar - nos círculos freqüentados por Barbie. Sempre protegido pelas autoridades
anas, Barbie esconde cada vez menos seu passado nazista. Mas em julho de 1978, seu amigo, o general Banzer,
ncia e foge. Golpes de Estado (o ex-SS desempenha, às vezes, papel importante, como em julho de 1980), demissões
das, manifestações. No começo de 1982, os EUA, cansados das ditaduras militares latino-americanas, impõem o
no ao poder do democrata Hernán Siles Zuazo, cujo secretário de Estado da Informação, e logo chefe da polícia do
cito, é Gustavo Sánchez, velho cúmplice de Debray e dos Klarsfeld. Debray se tornou conselheiro do presidente
rrand.

o apoio dos Klarsfeld, o ex-companheiro do Che exuma o dossiê de Barbie. Tudo se acelera. Privado de sua
onalidade boliviana por causa de falsas declarações de identidade quando de sua entrada no país, o carrasco de Lyon
so. É necessário entregá-lo à França, onde cometeu uma boa parte de seus crimes? Ou à Alemanha, seu país de
m, que o reclama para julgá-lo?
ois de hesitações e ofertas comerciais e econômicas, Sánchez e os bolivianos escolhem a França. No dia 4 de
eiro de 1983, às 21 horas, oficialmente extraditado para o único país que aceita acolhê-lo, Barbie deixa algemado a
o de San Pedro. No aeroporto, aviadores franceses e agentes da DGSE se ocupam dele. No dia seguinte, às 22h25,
amburão leva o carrasco de Lyon para a prisão de Montluc, lugar de suas sinistras façanhas, 40 anos antes. Na sexta-
dia 3 de julho de 1987, Klaus Barbie é condenado pelo tribunal de Lyon à prisão perpétua por crimes contra a
anidade. Em 1991, no dia 25 de setembro, o ex-oficial nazista morre na prisão, vítima de câncer.
PEDRO PAULO ROCHA

A Saga do Insensato

o que existe é imaculado e é santo!


m toda miséria o mesmo pranto
todo coração há um grito igual.
semeou d'almas o universo todo.
que vive, ri e canta e chora...
foi feito com o mesmo lodo,
cado com a mesma auroral!"

ia de que a insanidade era rara entre os povos primitivos e que tende a aumentar na proporção em qu
esso civilizatório se desenvolve, apareceu inicialmente no século XIX. Importantes psiquiatras daquela
nderam a idéia de que há uma relação íntima entre civilização e saúde mental. A noção do "bom selva
osta por Rousseau, filósofo francês do século XVIII, era pre-dominante.
turalista alemão, Alexander von Humbold, em sua viagem pelo interior América, se surpreendeu com
ncia de doentes mentais entre os selvagens. Um médico, responsável pelas reservas dos Cherokees, r
entre os 20 mil índios, nunca havia visto ou mesmo ouvido casos de insanidade. O capitão Wilkes, com
xpedição Exploratória Americana, também relatou que, durante a sua viagem pelos mares do sul, não
ntrou nenhum caso de loucura entre os povos daquela região.
udo, curiosamente, os autores, não fizeram qualquer referência às suas limitações lingüísticas e à dific
ntender os valores e costumes dos po-vos estudados. Os pesquisadores deste período não dominavam
pacientes e ainda menos seus valores culturais. Assim, se manifestavam a respei-to dos comportamen
eis, externos, dos povos observados, sem ouvi-los e conhecer seus sofrimentos subjetivos. Além disto,
ondições precárias de atendimento psiquiátrico, apenas os casos mais graves, predominantemente de
ssividade, recebiam atenção.
nte o curso do século XIX, simultaneamente com o colonialismo, os co-lonizadores começaram a desc
ças mentais que atingiam povos primiti-vos, como Amok, entre os nativos de Java; Koro, entre os chin
ath, na Si-beria; Piblokto entre os esquimós, etc. Nesta época surgiu também o interesse do alguns psi
peus em demonstrar que doenças clássicas conhecidas, como a esquizofrenia, eram universais e não a
adas, geograficamente, à Europa. O grande psiquiatra alemão Emil Kraepelin foi um dos primeiros a fa
tidas viagens ao Oriente e a examinar pacientes mentais entre os povos primi-tivos, inclusive na ilha d
decorrência, a idéia de ausência de doenças mentais entre os povos primitivos não se sustentou.
ato, os distúrbios mentais acompanham o homem desde os seus pri-mórdios. Histórias antigas relatam
lsos homicidas do rei Saul, ou a insen-satez de Nabucodonosor, que "comia grama como os bois e dei
va-lho das nuvens molhasse o seu corpo até que crescesse o cabelo como as pe-nas da águia e suas un
o as garras dos pássaros". Arqueólogos encontra-ram crânios trepanados, em locais tão dispersos com
ilo, no Egito, e as sepulturas dos Incas, no Peru, que denotam a tentativa das antigas civilizações de d
ebro humano. No entretanto, só há relativamente pouco tempo a humanidade começou a se libertar d
da carga de superstições e pre-conceitos.
orte, em muitos povos e durante séculos, foi a solução natural. A elimi-nação dos incapacitados era um
mônia mística, que obedecia a um ritual, na antiga Grécia. As mães espartanas lançavam seus filhos in
oentes num abismo sagrado, onde os Deuses os acolheriam. Entre os indígenas era habitual a mãe afo
s deficientes no rio mais próximos à aldeia. Entre os esqui-mós, os deficientes e os anciãos eram aban
planícies geladas, para servir de alimento aos lobos ou aos ursos polares.
a de quatro séculos antes de Cristo, o médico grego Hipócritas, (460 a 370 AC), considerado o pai da m
urou livrar o estudo as doenças mentais do posicionamento místico e filosófico, colocando-o no contex
nças em geral. No terceiro século depois de Cristo, Galen, um grego, também responsabilizou o cérebr
rência de distúrbios psíquicos. Foram porém tentativas isoladas, pois a conceituação da doença menta
forma de possessão, perdurou por muitos séculos.
monologia considerava que Satanás podia se apoderar do corpo de uma pessoa e exercer sobre ela to
role. Com a hegemonia do catolicismo, na Europa, a possessão passou a ser interpretada como uma o
a e a Deus. A teologia reconhecia dois tipos de possessão. No primeiro tipo, a supos-ta vítima era poss
ra a sua vontade, como um castigo divino pelos peca-dos cometidos. No outro, a pessoa teria feito um
ntário com o diabo. Es-ses eram os bruxos. Além do diabo, que também era denominado Satã, Lúcifer
o, como Príncipe das Trevas ou simplesmente demônio, os cristãos me-dievais acreditavam haver gran
ero de maus espíritos, que auxiliavam o Di-abo, em sua obra do mal.
1484 o Papa Innocêncio VIII redigiu uma bula papal, na qual advertia o clero, exigindo "que não se deix
a sobre pedra, na caça aos bruxos". O livro Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), escrito por do
ges domini-canos, em 1486, por determinação daquele Papa, e reimpresso 14 vezes, apre-sentava det
rição dos processos para se reconhecer os feitiços. Muitas das características descritas são as mesmas
mas de inúmeras doenças mentais, hoje conhecidas e catalogadas. Os infelizes, assim identificados, e
rados até a morte, disto não escapando nem crianças ou anciões. "Entre 1450 e 1750, mais de 100 m
oas, a maioria mulheres, foram julgadas por tribu-nais eclesiásticos, em diferentes partes da Europa, p
sta prática de ma-gia maléfica e adoração do Diabo". Milhares de desgraçados, pereceram sob as mai
ras, em nome de Deus e da Religião.
gamento era consequência de uma acusação formal. Caso houvesse alguma dúvida, o tribunal apelari
que fornecesse alguma prova. O modo mais comum era o ordálio, ao qual o acusado tinha que se sub
provar sua inocência. Consistia em testes, como carregar um ferro em brasa, a certa distância e, se n
ado, ter miraculosamente curada a carne quei-mada, ou ainda ser jogado em um reservatório de água
iderado inocente somente se afundasse. A alternativa era a desumana tortura, descrita em muitos doc
poca.
ais famoso crítico da caça às bruxas, foi Weyer, médico do humanista duque de Cleves. Nos seus livros
ou mostrar que as mulheres ignorantes que confessavam a prática de bruxaria tinham delírios. Usando
ecimen-tos médicos, alegava que o suposto malefícia das bruxas podiam ser explicados por causas na
cas e que, na verdade, eram doentes mentais. Por lhe faltar uma teoria filosófica e teológica abrangen
oderes do Diabo, os tratados de Weyer foram incapazes de resistir aos ataques que lhe foram atirados
ção foi rejeitada pelo poder eclesiástico que preferia acreditar que a bru-xaria era real e que as bruxas
riam ser duramente julgadas e castigadas, para a salvação de suas almas.
ocasião do século XVII a caça às bruxas se estendeu também às colô-nias do Novo Mundo. Salém, em
achussets, tornou-se o famigerado centro de perseguição. Centenas de pessoas foram presas, 19 enfo
esmaga-da até a morte. Deutch (1949) transcreve as declarações de uma empregada de uma família
on, prestadas no processo aberto contra ela, em 1688, "por ter enfeitiçado os filhos do seu patrão".
ndo lhe foi perguntado pelos Juizes, se alguém a havia ajudado, ela respondeu que isto era certo, mas
lhou no ar, como se estivesse a-lheia a tudo, e acrescentou que agora ele foi embora" (pg. 34).
entemente a mulher sofria de alucinações. Um comportamento como esse, que vem a ser um sintoma
izofrenia, no século XVII foi conside-rado como prova definitiva de possessão demoníaca.
nte a Renascença, a idéia de que os doentes mentais fossem possuí-dos pelos demônios, começou a s
donada. Johan Weyer foi o primeiro mé-dico a se interessar pelos distúrbios mentais, sendo considera
ns como o fundador da psiquiatria. O primeiro livro abordando problemas mentais, "A Ana-tomia da Me
ublicado em 1621. Thomaz Willis, um grande anatomista da época, pregava como receita de recupera
as condenadas" a tera-pia da intimidação e espancamentos. "Por esse método a mente reprimida é pe
rder a turbulência, tornando-se meiga e pacífica". Benjamin Rush, um médico que trabalhou nos EUA,
éculo XVIII, defendia a idéia de que o distúrbio mental seria consequência de excesso de sangue no cé
trata-mento preferido consistia em retirar enorme quantidade de sangue da "pessoa im-becil", num vo
ava até 7 litros, em curto período de poucos meses. Rush acreditava ainda que muitos "loucos" poder
dos por um grande susto.
1547 Henrique VII inaugurou o manicômio Santa Maria de Bethlehen, em Londres. Os doentes passava
nados, presos e acorrentados. Era costume daqueles que podiam pagar, livrarem-se dos seus doentes
arcando-os em navio, a "Nau dos Insensatos", do qual não podiam sair e no qual navega-vam pelo rest
s! O doente mental não era somente tratado como um ser sub-humano, mas exposto, também, como
nante diversão. Foi moda, du-rante o século XVIII, na Inglaterra, a nobreza visitar o manicômio de Bed
os internos acorrentados, expostos à curiosidade pública, como se fossem a-nimais de um Zoológico.
lemanha Nazista, como na França de Vichy, prevaleceu a visão de que os doentes mentais deveriam s
midos. Na França os médicos simplesmen-te deixavam que os pacientes dos hospitais psiquiátricos m
me. O Dr. Max Lafont, no livro "O Extermínio Suave", descreve a forma como 2 mil dos 2.890 internad
ital Vinatier, em Brion, vieram a falecer de inanição: "Os pacientes chegavam a comer os próprio dedo
iam a casca das árvores, suas fezes, bebiam a urina. Viviam como animais, dormindo sobre a palha, e
ente sem calefação", o que é insuportável, no frio inverno europeu. Extermínio suave? Na Alemanha a
uilação coletiva, em nome da eugenia, era realizada em câmara de gás, numa mortandade em massa,
um escapava. Monstruosidade que lançou um estigma, sobre a eugenia, que perdura até os dias de h
omente no início do século XIX, que o padecimento dos pacientes mentais despertou a atenção de alg
madores. Em 1793, logo após a revo-lução francesa, o médico Philippe Pinel ousou tirar as algemas do
nos do hospital de Bicêtre, em Paris, do qual era diretor, o que causou grande inquietação na populaçã
r daquela época é que os médicos começaram a definir e catalogar as perturbações mentais.
ns casos se tornaram famoso e, pela originalidade, ficaram registrados na história, como foi o do jovem
ntrado, na manhã de 26 de maio de 1828, numa praça de Nuremberg, na Alemanha. Ele não sabia fal
eguia andar e portava uma carta. Chamava-se Kaspar Hauser, tinha 16 anos, e durante toda a sua vid
rentado em uma masmorra do castelo, alimentado através de uma portinhola, totalmente isolado do c
ano. Sete anos depois foi miste-riosamente assassinado, ganhando uma lápide com a inscrição: "Um e
o tempo, nascimento ignorado, morte misteriosa". Sua nebulosa origem pro-vocou o aparecimento de
de lendas, que inspiraram romances, peças teatrais e até um filme do cineasta Werner Herzog.
bém merece ser citado o assassinato de uma mulher, na Irlanda, que deixou sua marca na história:
orças do mal e o esforço para frustar suas manifestações malévolas, são a mesma coisa. Noventa e oi
s, em Tipperany, nas encostas de uma colina irlandesa, um homem e seus amigos, ao todo um grupo d
oas, queimaram até a morte sua mulher e enterraram o que restou do corpo num pântano vizinho. Ge
entende muito do assunto, acreditou que se trava de um caso suspeito de feitiçaria. Mas não. Os mem
e grupo dos treze haviam se convencido de que a mulher não era mais a verdadeira mu-lher, mas um m
quê? Um homem que conhecia bem o lugar e os há-bitos da terra esclareceu-me. A mulher era sonâmb
a gente simples do campo, o sonambulismo é uma coisa muito estranha".
dos modos de reconhecer e expulsar um mutante, e assim permitir a volta da pessoas verdadeira, cujo
ocupando, é amarrar o mutante numa corda e fazê-lo balançar sobre uma grande fogueira, repetindo
s a pergunta: "Em nome de Deus, você é mesmo fulano de tal? No caso, a infeliz mulher se chamava B
ry."
pelin, em 1883, definiu a dementia precoce. Sancte de Sanctis, em 1906, descreveu as formas infantis
minou dementia precocíssima. Eugene Bleuler, um psiquiatra suíço, em 1911, usou pela primeira vez
inolo-gia "autismo", que vem do grego "autos", e significa "si mesmo", e foi usada para descrever o fe
auto introspecção", apresentado por certos pacientes psiquiátricos.
tismo foi abordado, pela primeira vez, de uma forma sistemática, em 1943, por Léo Kanner, diretor da
siquiatria infantil do Hospital John Hopkins, na revista The Nervous Child. Ele usou a designação "distúr
tico de contato afetivo", para classificar um grupo de onze crianças com distúrbios, que não se enquad
nenhuma das categorias então conhecidas. Aplicou o termo "autismo" porque a criança se retraia e se
porém só é verda-deiro quando ela tem pouca idade. A medida que cresce, torna-se mais sociável.
ndo observação de Kanner, que provoca até hoje muita polêmica, os pais dessas crianças eram descr
oas intelectualizadas, frias, for-mais, racionais e objetivas. Ele ratificou tais observações em relatório d
ado na comparação das famílias de 55 crianças autistas com as famílias de outros pacientes e, poster
1954, com relação a 100 crianças.
critérios de "autismo infantil precoce" ou "Síndrome de Kanner", como ficou conhecida, eram porém m
itivos e se aplicavam somente a um grupo muito reduzido de crianças que apresentavam uma sintoma
definida, que ele relacionou, que é realmente muito raro. A atual conceituação de autismo se tornou b
ica, e se aplica segundo critérios ainda não muito bem deli-mitados e que podem variar.
uem aponte Victor, "o menino selvagem de Aveyron", com cerca de 12 anos, encontrado vagando n
ues, em 1801, como o primeiro caso reporta-do de autismo. O seu comportamento, segundo o Dr. J.M.
bastante a-normal, ao que ele supunha, devido ao abandono. Conforme descrição feita nas "Memoires
ndava na ponta dos pés, cheirava tudo que se lhe apre-sentava e era ausente a linguagem, na comun
ue me parece, ele fora simplesmente abandonado, porque uma criança autista é extremamente depen
sobreviveria, sob tais condições. Faltar-lhe-ia um raciocínio lógico, pa-ra superar situações adversas ou
vem a ser uma das características desse mal.
ato curioso é que, no início do século, na França, há relatos de crianças que corresponderiam à descriç
er, e eram chamadas de "crianças fada" - aquelas que teriam sido trocadas por fadas. Nos contos de f
da existe o changeling, designação que era dada ao transmutado, um substituto fisicamente idêntico,
deixado no lugar da criança raptada por fadas ou gnomos. A criança, que não seria afetiva, grita, é ag
ola. O interessante é que se tratava sempre de meninos.
e os contos narrados pelos irmãos Grimm, o denominado "Terceiro Conto dos Duendes" conta a estória
hselbalg, bebê substituto, que ti-nha uma cabeça enorme, olhar fixo e só queria comer e beber. A mãe
a vizinha que a aconselhou a levar o changeling à cozinha, colocá-lo perto do fogo e pôr água para fer
ro de duas cascas de ovo. A mulher assim o fez. Imediatamente o pequeno Klotz exclamou:
, que tenho a idade da Floresta de Wester, nunca havia visto alguém cozi-nhar em casca de ovo, e se
gou, então, uma multidão de duendes trazendo a verdadeira criança e levando o changeling com eles.
Observações sobre a Loucura", publicado em 1809, por John Haslam, na Inglaterra, há a descrição do
, um menino de sete anos que havia tido sarampo e uma discreta varíola, nos primeiros meses de vida
rito como hiperativo, tinha insônia, falta de controle esfincteriano, só começou a andar com dois anos
ar aos quatro. Mantinha-se afastado das outras crian-ças, com as quais não brincava, apresentava eco
dada e era agressivo. Era um possível caso de autismo.
e, na literatura, muitas descrições que corresponderiam aos sintomas de autismo. Entre outros Barnab
harles Dickens (1841). Joseph Con-rad, em Tales of Orient (1898) relata: "Esta criança, como as outras
a sorria, não esticava os braços para ela (sua mãe), não falava, nunca tinha um olhar de reconhecime
grandes olhos negros que só olhavam fixa-mente para tudo que brilhava, porém não conseguia segui
ol que se afastava lentamente, ao deslizar no solo ...". Johannes Keneppelhour, na Holanda, em "Truke
a", descreve uma menina com características nitidamente autís-ticas.
rimeiros estudos efetuados por Bettelheim, Mahler e Szurek, nos E.U.A., Melaine Klein, na Inglaterra, e
o, na França, concluíam pela psicogenia do autismo, responsabilizando as relações patogênicas com a
desencadeamento do problema. Lauretta Bender e um grupo de psiquiatras acreditavam que tratava
de esquizofrenia precoce.
1943, vários cientistas e psiquiatras passaram a se interessar por es-ta intrigante síndrome. A partir d
m apresentas várias obras tentando explicar e até tratar este severo distúrbio do comportamento. Na A
n Clancy e John Rendle Short, da Universidade de Queensland, relacionaram os 14 sintomas estatistica
frequentes, para facilitar o diagnóstico do autismo, que tiveram grande aceitação e são adotados até
re os inúmeros espe-cialista, destacaram-se, no cenário mundial, Rimland, Lorna Wing, Ferster, Edwar
A), Lovaas, Ornitz, Michael Rutter, Eric Schopler e, no Brasil, Gauderer, Fación, Swchwartzman, Rosem
argos, F.B. Assumpção e outros que, com seus trabalhos em língua portuguesa, nos estão dando uma
ribui-ção para a abordagem deste problema.
ngo de todos os tempos, a história das doenças mentais foi sempre uma tenebrosa história de cruelda
nsciência e desumanidade! Faz ainda muito pouco tempo que despertamos de tão inconcebível pesade
ar de to-dos os pesares, diante de tão tétrico quadro, poder-se-ia concluir que, comparati-vamente, a
o era tão desesperadora e havíamos avançado bastante. Contudo, nessa nossa visão pretensiosa, talv
mos encarados pelas gera-ções futuras, como igualmente retrógrados e ignorantes.
mos ainda tateando, no estudo do autismo, que se iniciou muito recen-temente. Data de pouco mais d
. Mal se começou a desvendar-lhe os im-precisos contornos. Durante várias décadas, por influência do
analistas, se acreditava na psicogenia do autismo. Muito do interesse despertado por essa sín-drome, s
ssociações fundadas por pais, a partir da década de 60. Desde então vários centros, dedicados à pesqu
mo, vêm sendo criados em diversos países. Foram pais, inclusive, que levantaram fundos, com doaçõ
ator Silvester Stallone. A partir de então o enfoque psicanalítico foi ca-indo em descrédito, face às con
cientistas daqueles Centros e da UCLA, o que hoje se estende pela maioria dos países desenvolvidos. M
sil, ainda teríamos que nos defrontar muito com os defensores de crenças bizarras, que insistiam em c
exto familiar pelo problema
Artigo 1
REFLEXÕES SOBRE O AUTISMO NO ÂMBITO DA PSICOPATOLOGIA INFANTIL
M. Graça Messias

O presente artigo pretende expor uma sinopse da tese de Mestrado, realizada na Faculdade de Psicologia e de Ciências da
Educação da Universidade de Coimbra-Portugal. A referida tese reflete desde a evolução da noção de psicose na criança e do
autismo infantil até as alternativas terapêuticas, valorizando, a partir do estudo exploratório, a relação precoce e suas
eventuais perturbações, e, sob o aspecto estrutural, com base num estudo de caso, a compreensão acerca das qualidades
psíquicas que se (des)organizam nas estruturas autísticas.
Compreender o termo autismo requer um percurso histórico, envolvendo a confluência desta visão panorâmica com os
aspectos psicopatológicos da síndrome.
Na psiquiatria do século passado, a doença mental era considerada estritamente de origem neurológica e somática. De um
processo mórbido localizado no cérebro, evoluía para uma deficiência psíquica que envolvia a memória, a percepção e a atenção.
Esta consideração determinava, a partir das descrições sobre a "idiotia" (Pinel) e de "demência" (assinalado o termo precoce por
Morel e Kraepelin, e de precocíssima por Sancte Sanctis), que as crianças, portadoras deste quadro demencial eram cometidas
por perturbações orgânicas degenerativas.
A primeira observação relacionada às descrições vigentes neste período trata-se de uma criança denominada o "Selvagem de
Aveyron". Os seus comportamentos denotavam características de um quadro autístico, tais como: comportamentos
estereotipados, indiferença às afeições das pessoas, necessidade de manter o ambiente sem modificações, ausência de
linguagem, utilização da mão do adulto como de uma ferramenta, entre outros comportamentos que dificultavam a comunicação
e o relacionamento interpessoal.
Será, no início do século XX, quando Bleuler, abrindo as portas à noção de esquizofrenia, revela tendências psicopatológicas
de determinados pacientes que se isolavam do meio ambiente, atribuindo o termo autismo como sendo uma defesa contra um
mundo que se mostra hostil ao doente. A partir dessa concepção (e depois estudada por Potter e Lutz, que evocaram a
necessidade de critérios diagnósticos que considerassem os aspectos peculiares do desenvolvimento na infância) atinge-se a
classificação de psicose infantil, compreendida como um grupo de distúrbios que evoluíam quer cronicamente quer por surtos.
Ainda que os interesses sobre a concepção orgânica fosse considerada sobre os quadros mórbidos encontrados, destacando
as inadaptações como originárias de uma deterioração cerebral, ela deixa de ser compreendida como uma condição sine qua non
dos distúrbios na infância a fim de serem eleitos como critérios primordiais a alteração do pensamento, das emoções e da
relação com o mundo externo.
Com o início dessa proposta dinâmica, a noção de autismo ganha maior sentido, sendo iniciada pelo pioneiro Leo Kanner, na
década de 40, como uma síndrome a que denominou Autismo Infantil Precoce. Caracterizado por sua sintomatologia e
manifestações precoces, o autismo é compreendido como um distúrbio do contato afetivo que surge por volta dos trinta meses
de idade, cuja as perturbações são identificadas pelo isolamento, pela necessidade de imutabilidade e por comportamentos
estereotipados.
Quase ao mesmo tempo, o psiquiatra vienense Asperger, apresenta quadros clínicos determinados pela perturbação do
contato, porém manifestados por volta dos 4/5 anos de idade. Asperger denominou por Síndrome de Asperger ou Psicopatia
Autística.
Tendo como base o estudo acerca do funcionamento psíquico e da estrutura psicopatológica, é desenvolvido uma leitura
dinâmica do autismo. Entre muitos autores que contribuíram, podemos destacar Melanie Klein, que permitiu o estudo do
desenvolvimento e conflitos psíquicos, inclusive a adoção do jogo no tratamento com as crianças. Encontramos Ana Freud, que
defendeu a ação educativa no tratamento; Spitz, elaborador dos organizadores mentais do desenvolvimento infantil, observando
também sobre a carência afetiva, cujas as crianças eram acometidas por um marasmo que interrompia o seu desenvolvimento,
como se desligassem da realidade externa. Deparamos com Bowlby, quem enfatizou estudos sobre os distúrbios ocasionados
pela separação precoce materna. Bion, destacando o papel materno como sendo fundamental no desenvolvimento da criança.
Importante autora como M. Mahler, quem elegeu os conceitos de simbiose e de separação-individuação no trabalho relacionado
à psicose infantil. F. Tustin e D. Meltzer, renomados autores que descreveram sobre a existência de tipos de autismo patológico
e seus estágios, compreendendo esta síndrome numa perspectiva desenvolvimental.
De uma maneira geral, vamos nos servir de uma longa trajetória até aos dias de hoje, a fim de aproximarmos, cada vez mais,
do conhecimento sobre o autismo.
PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES SINTOMÁTICAS E DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Sem dúvida, a prática clínica permitiu um avanço à compreensão do autismo para além do sentido etimológico. 1 Apontando
também para os aspectos da personalidade, os sinais e sintomas evocadores do autismo testificam transtornos precoces no
decorrer do primeiro ou segundo semestre, evidenciando o quadro mais completo no segundo/terceiro ano de vida. De acordo
com o nosso estudo, as manifestações podem ser divididas em sete grupos principais; contudo, nenhum destes sinais podem ser
indicativos do autismo infantil sendo considerados sozinho e transitório. Será a sua persistência no tempo e a existência de um
certo número de sinais associados que demonstrará fortes indícios da síndrome.
Sinais e Sintomas na Relação
De aparência normal ao nascimento, a criança autista reage de maneira inconstante: às vezes chorosa e apática, outras vezes
inquieta e desperta. Consta a ausência do sorriso e dos movimentos antecipatórios, hipotonia, bloqueio do olhar, isto é, ao ser
captado torna-se evasivo e furtivo. Mostra-se indiferente às pessoas, revelando-se intolerante às frustrações, que conjugam,
sem motivo aparente, com comportamentos exuberantes de risos e agitação motora, bem como , diante de uma intrusão do
meio ambiente, crises de cólera e angústia mediadas por auto e/ou hetero-agressividades.
Distúrbios Funcionais
De maneira muito precoce, o sono é perturbado. Constata-se tanto insônia agitada, com excitação motora, ou pelo contrário,
insônia calma, na qual a criança permanece na cama, imóvel, com os olhos abertos.
Os distúrbios alimentares também estão presentes. São caracterizados pela sua precocidade, desde a ausência da procura do
mamilo até as dificuldades (ou recusa) de ingestão de alimentos sólidos.
Do ponto de vista das condutas esfincterianas, observa-se que as crianças autistas geralmente são encopréticas e/ou
enuréticas, mostrando-se resistentes a submeterem-se a aprendizagem relativa a higiene.
Perturbações do Comportamento
os distúrbios psicomotores se revelam com evidência. Na ausência de qualquer lesão neurológica, as crianças autistas
conservam determinados comportamentos tônico-posturais como sendo um modo arcaico de comunicação. Estas crianças
apresentam estereotipias motoras (flapping), mantêm a cabeça inclinada, marcha sobre as pontas dos pés, movimentos de
rodopio, balanceamento do tronco, conduta de "farejamento" (ato de cheirar tanto os objetos quanto as pessoas), de
movimentos de toques bruscos nos objetos.
Perturbações da Imagem do Corpo
A imagem corporal parece não existir. A maneira como a criança autista apreende o corpo e seus movimentos, parece não
estabelecer a integração da psique com o soma. Ao corpo não é atribuído qualidades de comunicação consigo própria e com o
ambiente. A imagem refletida no espelho pode significar algo que se movimenta, mas não assume gestos de interação e de
noção de individualidade. Diante do espelho, a criança autista é indiferente à própria imagem, como se o corpo fosse pensado
(percebido) como um espaço sensorial onde ela está "aprisionada", mas que não constitui-se como uma unidade.
Perturbações da Linguagem
As perturbações da linguagem caracteriza-se por anomalias específicas. Apresentam gritos monocórdios monótonos, não
dirigidos socialmente. A linguagem pode constituir-se num mutismo primário (intermitente ou entrecortado por solilóquio) ou de
mutismo secundário que integra geralmente num contexto de negativismo.
Quando a linguagem é existente, denota-se distúrbios em seus aspectos léxicos e sintáticos. As crianças referem-se a si
mesmas na terceira pessoa do singular ou pelo nome próprio. Destituída de trocas, destaca-se habitualmente a ecolalia. Em
outros casos, o discurso da criança parece incompreensível, caracterizados por alterações de fonação (modulação e timbre),
ritmo (fluência acelerada ou diminuída) e entoação (utilizada através de inflexão melódica).
Perturbações Lúdicas
Ao lado do isolamento autístico revela-se a necessidade de imutabilidade e da obsessividade com os próprios movimentos e
ruídos.
Parecendo abandonar a imaginação e a criatividade, refugiam-se em jogos solitários, monótonos e estereotipados, porém sem
valor funcional e simbólico.
Perturbações dos Estímulos Sensoriais
No que diz respeito às experiências perceptivas, se evidenciam respostas excessivas, diminuídas ou imprevisíveis aos
estímulos sensoriais. Algumas crianças manifestam hipersensibilidade, sendo demasiadas sensíveis e aguçados os sentidos do
tato, paladar, audição e visão. Até mesmo os estímulos considerados normais do ambiente provocam uma sobrecarga
insuportável. Outras crianças, porém, apresentam uma hiposensibilidade, cujo o sistema sensorial mostra-se insuficiente para
levar ao cérebro a quantidade necessária de informação, ou seja, as crianças parecem receber uma carga insuficientes de
mensagens no cérebro.
As particularidades desta característica soma-se à manifestação, em muitos casos, de insensibilidade à dor, que, se por um
lado podemos pensar sobre um processo de alienação de emoções e da possibilidade de ausência de noção do interior do corpo,
por outro lado, é sensato questionarmos sobre a possibilidade da inoperância do hemisfério cerebral.
O diagnóstico diferencial é de suma importância. Sobre o mesmo aspecto de comportamentos pode surgir quadros complexos
onde vários comportamentos autistas se misturam. Os quadros comportamentais são variados, sendo essencial uma exploração
minuciosa a fim de permitir um diagnóstico preciso.
Com base na descrição semiológica citada, distinguimos o autismo dos seguintes quadros:
Esquizofrenia
 a manifestação é mais tardia (por volta dos doze anos);
 o desenvolvimento dessa criança segue um curso incerto: embora a saúde seja precária (sendo comum
apresentarem dificuldades respiratórias, metabólicas e digestivas) a criança tem período de desenvolvimento
relativamente normal para depois surgir sintomas mais complexos, como alucinações;
 o contato dessas crianças com o outro é patologicamente invasivo, e quando seguradas no colo, o corpo
se molda ao de quem a segura, como se fosse uma "massa";
 enquanto a criança autista evita olhar as pessoas, a criança esquizofrênica quando focaliza os nossos
olhares parece transpassá-los;
 indica confusão no pensamento, cuja as perturbações revestem-se de alucinações auditivas e visuais,
enquanto a criança autista denota inibição do pensamento;
 a coordenação motora mostra-se precária, com movimentos descoordenados;
 mostra-se ansiosa em relação ao ambiente, ao contrário da criança autista que demonstra desinteresse;
 a capacidade cognitiva parece variar, mostrando-se deficitário após um período de normalidade;
 nota-se uma alta incidência de doença mental na família;
 na criança esquizofrênica o desenvolvimento regride, enquanto na criança autista o desenvolvimento
psicológico parece cessar;
Deficiência Mental
A deficiência mental caracteriza-se por dificuldades específicas no domínio da inteligência, isto é, denota a existência de
défice intelectual caracterizado: pensamento lento e concreto, incapacidade de abstração, de análises, de previsão dos atos,
etc.
Na criança autista pode sobrevir a deficiência mental, mas é uma entidade distinta. Estas crianças podem apresentar
capacidades visuo-espaciais, manipulatórias e de memória, enquanto as com deficiência mostram-se incapazes.
Surdez e Cegueira Congênitas
Sabemos que a surdez pode ser confundida com o diagnóstico do autismo mediante a dificuldade de comunicação, bem como
a ausência de respostas aos sons. Porém, se por um lado as crianças com surdez quando aprendem a se comunicarem, perdem
as características autistas, como o isolamento e as estereotipias, por outro, as crianças autistas são capazes de se voltarem ao
menor ruído mas serem indiferentes aos ruídos de maior intensidade.
Quanto as crianças com cegueira, elas apresentam relações sociais normais, interessando-se pelo ambiente, e quando não
apresentam comprometimentos cerebrais associados e nem ausência de estimulação, elas se desenvolvem sem problemas.
Síndrome de Rett
Trata-se de uma síndrome degenerativa, de etiologia desconhecida que atinge o sexo feminino. Essas crianças apresentam
comportamentos autísticos, mas há uma perda rápida das aquisições motoras e de linguagem, sobrevindo convulsões e períodos
de apnéia.
Síndrome de Asperger ou Psicopatia Autística
É caracterizada pela dificuldade de interação, de linguagem e presença de condutas estereotipadas, porém os sintomas
aparecem após o terceiro ano de vida.
Síndrome de West
Aparece entre o terceiro e o nono mês de vida, cuja a etiologia parece associar-se a uma lesão cerebral, em que os sintomas
se traduzem por espasmos, com quadros de indiferença e atraso no desenvolvimento psicomotor.
EPIDEMIOLOGIA, EVOLUÇÃO E PROGNÓSTICO
Apesar da vasta literatura referente ao autismo infantil há mais de 60 anos, as condições estatísticas a respeito desta
síndrome ainda permanece insólita. Isso deve, possivelmente, ao fato de que essas crianças devem permanecer dispersas e em
várias instituições ocultas, como também de serem consideradas como retardadas mentais e desajustadas. Entretanto, ainda
que devidamente diagnosticados, muitos casos são tratados longe de seus lares, tornando incompleto o estudo epidemiológico.
Apesar destas implicações desfavoráveis, é possível estimar a incidência e predominância da síndrome num valor significativo
de investigação. Numa população geral, estima-se que em 10.000 nascimentos, 4 crianças são autistas. Embora a falta de
referências nos impossibilita saber da viabilidade desta indicação, é revelado que a predominância do autismo refere-se ao sexo
masculino, sendo encontrado uma relação de 4 meninos para 1 menina. A explicação para esse fato permanece imponderável,
havendo especulações genéticas mas nada comprovatórias. Entretanto, com base na literatura e em nossos estudos (Messias,
1995), verifica-se que o quadro clínico é muito mais grave nas meninas, constatando uma porcentagem elevada de associação a
uma disfunção orgânica e de deficiência mental aparente.
Outros aspectos importantes do estudo epidemiológico alude que o aparecimento da síndrome independe da composição do
meio sócio-cultural. Também não há relação quanto a distribuição geográfica particular, surgindo tanto na zona rural quanto
urbana.
No que se refere às características familiares, parece que não há na de crianças autistas maior quantidade de transtornos
mentais que no resto da população. Isso eqüivaleria mencionar que os pais dessas crianças não são nem mais nem menos
patológicos que a média da população.
Considerações também relevantes aplicam-se à posição na fratria. O risco do autismo entre irmãos é de 188 vezes maior na
fratria das crianças atingidas pela síndrome do que na população geral.
De acordo com alguns estudos franceses (nomeadamente os de Geissman, 1982), destacou-se a predominância da síndrome
nos primogênitos (48%), seguida dos caçulas (40%). Em nossos estudos (Messias, 19995), encontramos a prevalência doa
autismo nos filhos caçulas (44,8%), e, muito próximo, ocupam os primogênitos (41%), enquanto 13,8% eram intermediários.
Entretanto, curiosamente verificamos a existência preponderante de morbidade (como por exemplo, comportamentos
excessivamente bizarros, isolamento, evitamento do olhar, etc) nas crianças que ocupavam a fratria de caçula.
De conformidade com a complexidade do quadro clínico do autismo infantil, a evolução e o prognóstico se revelam graves em
decorrência da precocidade das manifestações de sinais e sintomas, da existência do nível intelectual 2 inferior a 50, do atraso
significativo da linguagem ou da sua ausência até a idade de 5 anos. Com o decorrer dos anos, sobretudo quando não existe
tratamento adequado ou este não intervêm satisfatoriamente, o quadro pode evoluir para um estado demencial profundo,
permanecendo as características iniciais, podendo desenvolver crises convulsivas na adolescência, mesmo não sendo
constatado danos neurológicos.
Mas há de considerarmos que as crianças que apresentam capacidades normais ou acima de 70, tendem a apresentar uma
adaptação favorável e quando adquirem a linguagem permanecem com anomalias fonéticas e sintáticas. Podem possuir um
vocabulário erudito, mas o diálogo é extremamente pesado e excessivamente formal. Porém, é raro as que consegue atingir
autonomia, predominando o contigente psicótico. No adulto com autismo permanece em evidência as deficiências em relação a
socialização, comunicação e imaginação.
De uma maneira geral, é complexo predizermos a evolução e o prognóstico do autismo, uma vez considerando não somente a
(des)organização do quadro autístico sob um aspecto dinâmico e estrutural, mas quanto a multiplicidade das suposições
etiológicas. Mas, seja como for, apesar do processo de prognóstico e evolutivo apontarem para um índice desfavorável em
relativa à cura, propriamente dita, é de suma importância percebermos a necessidade do diagnóstico realizado precocemente,
bem como as intervenções psico-terapêuticas com a criança autista e com a família. Desse modo, compreendemos que a cura do
autismo está na prevenção, reunindo, assim, melhores condições de uma clínica favorecedora.
INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS E PSICOTERAPÊUTICAS
Apesar das incertezas sobre a atribuição de uma causa em detrimento da outra, existem efeitos terapêuticos que resultam na
melhora da criança autista.
No tratamento farmacológico, a prescrição dos neurolépticos ou antipsicóticos são os mais freqüentes, como também são os
mais discutidos quanto a sua eficácia, sobretudo nos casos de ansiedade e hiperatividade. Uma das considerações que se deve
observar é quanto a sedação, uma vez que pode provocar letargia e diminuir a atividade motora e a atenção. A prudência na
administração das doses e na duração deste tipo de tratamento é fundamental, a fim de possibilitar um melhor processo de
aprendizagem. Contudo, não devemos considerar esta intervenção como um tratamento único e sim como um meio de apoio no
combate dos sintomas (como por exemplo, auto e hetero-agressividade, imutabilidade, estereotipias) de forma eficaz e sem
agressão aos processos psíquicos, físicos, sociais e educacionais da criança.
A perspectiva clínica e pedagógica comportamental tem como objetivo a modificação do comportamento, cumprindo o valor
da aprendizagem de respostas consideradas socialmente adequadas, como por exemplo, as atividades da vida diária (A.V.D.).
Entre outras intervenções, mencionamos a terapia do abraço desenvolvida pela psiquiatra M. Welch pressupondo que o
autismo é provocado pelo défice do processo de vinculação mãe-bebê. Nesse sentido, a mãe deve abraçar o seu filho autista
mesmo que este se esforce para evitar o contato. Perante este procedimento, é extremamente importante avaliar cada caso,
tendo em conta a hipersensibilidade da criança autista relativa ao toque corporal
Em contrapartida, a terapia sensorial busca, com precauções, integrar os estímulos sensoriais a partir da própria
disponibilidade e reações da criança. O objetivo também é propiciar à criança sensações tranquilizadoras, promovendo a
aprendizagem e através de atividades variadas (como a balneoterapia, massagem) eliminar comportamentos bizarros.
Por intermédio da musicoterapia atingimos um ponto crucial no tratamento com a criança autista; a comunicação. A aplicação
do som significa a presença de movimento e é vivenciado ou experienciado de maneira a inserir no mundo externo ao mesmo
tempo que o interno é tocado pelas sensações que a música propicia. Sucede que, a musicoterapia aumenta o papel ativador e
comunicacional, possibilitando a retirada da criança do seu isolamento autístico. É um recurso de aproximação, pois o
enquadramento não-verbal permite a estas crianças estabelecerem canais de comunicação sem se sentirem ameaçadas.
Ainda neste espaço da intervenção, a nossa atenção também se volta à pratica psicoterápica, tanto com as crianças autistas
quanto com os s eus pais. Do conjunto de traços psicopatológicos, como a perturbação do contato afetivo e a inaptidão para o
estabelecimento relacional apropriado com o meio circundante, o "psiquismo autista" necessita de tratamento que vise atenuar
a angústia intolerável. Podemos expor, nesse sentido, as técnicas que visam a organização de uma "neo-relação" e as
interpretativas. A primeira têm como fundamento reconstruir o espaço relacional, beneficiando progressivamente o contato com
a realidade. Considerando as "partes sadias" da personalidade, a reconstrução do mundo autista parte da transformação dos
elementos significativos do comportamento em comunicação; ou seja, é possível, a partir de vias primitivas (como água, areia,
atividades ritmadas e musicais) estabelecer uma comunicação infraverbal (em oposição a uma verbalização autista e delirante)
com a criança autista cujo o propósito reparador consiste na disponibilidade e tolerância que propicie à criança a organização de
uma nova relação com mundo externo.
Desse modo, a "neo-relação" torna-se reestruturadora, permitindo aproximarmos do estado de espírito, como já dizia
J>Chazaud: "A psicoterapia é o tratamento do espírito e pelo espírito". Assim, essa aproximação nos permitirá perceber a
criança (e tudo que dela provém) como uma unidade de significados, buscando sempre uma reorganização psíquica.
Por conseguinte, quando falamos no âmbito da interpretação no tratamento, é lícito valorizarmos o significado das
experiências da criança, de maneira a distinguí-las uma das outras, até o momento em que ela sinta-se capaz de realizar por si
mesma. O psicoterapeuta, quando interpreta, confia à criança um "aparelho mental" de que ela utilizará até que consiga
desenvolver o seu próprio aparelho, e, desse modo, transformar as respostas psicomotoras e estereotipadas em estados
mentalizáveis, conferindo significados e (re)elaboração.
Ao lado da ótica reparadora e interpretativa, ganha sentido no tratamento com as crianças autistas a ação sobre a família. Se
as entrevistas periódicas e reuniões de pais são primordiais para o tratamento, defendemos que o apoio , muitas vezes
psicoterápicos, à família não pode ser dissociado do conjunto de intervenções, de modo a permitir-lhes um espaço de
(re)elaboração das suas relações com o filho autista.
DISFUNÇÕES INTERATIVAS PRECOCES E DESENVOLVIMENTO AUTÍSTICO
Sabemos que o processo vinculativo entre a mãe e o feto é (com)partilhado através das experiências sensório-motoras e da
atividade fantasmática e emocional da mãe. Este vínculo se perpetua com o nascimento, de maneira a organizar ou a
desorganizar a dimensão psíquica e afetiva da díade mãe-bebê. Então, o bebê exprime suas ações e reações, e
consequentemente, orienta as da mãe, que, por sua vez, retorna ao filho. Ora, se essa reciprocidade se propaga e intervém na
construção da relação (constituindo a dimensão psíquica e afetiva de ambos), é genuíno considerarmos que os sinais e sintomas
psicopatológicos quando subsiste na relação, podem ser caracterizados por mensagens contraditórias e por respostas
insuficientes, podendo gerar conflitos que perturbam a função materna, por um lado, e distúrbios no desenvolvimento
psicológico do bebê, por outro.
Sob este prisma e da psicopatologia clínica da psicose e do autismo infantil, encontramos proporções significativas que
viabilizaram a noção de existência de perturbações identificadas em diferentes modalidades evolutivas (desde o diálogo tônico-
postural até ao contato físico e das vocalizações) que diminuíam a qualidade de estimulação e trocas na relação.
Com base em nosso estudo exploratório (Messias, 1995), cujo o objetivo foi o de investigar a ocorrência e os possíveis níveis
significativos de relação entre os antecedentes maternais e as manifestações de distúrbios precoces nas crianças autistas, foi
possível inferirmos que o surgimento do autismo infantil parece ser precedido por disfunções interativas precoces. À mãe,
carece identificações gratificantes de um bebê que se revela apático, irrefutável, indiferente, cujo os comportamentos são
indicadores do quadro de autismo em evolução. Ao bebê, falta-lhe a disponibilidade psíquica e emocional materna em
corresponder às necessidades de segurança e proteção.
De fato, ao salientarmos, no nosso estudo, fatores e sinais perturbantes durante a gravidez, parto e no contato pós-parto,
correlacionando-os às manifestações precoces do comportamento autista, encontramos índices significativos, como a presença
de depressão e ansiedade, que mostraram-se como intervenientes no processo de vinculação.
Tendo em conta essa evocação, ganha sentido que a (des)organização deficiente ou insuficiente do vínculo mãe-bebê pode
predispor a sinais e transtornos autistas precoces: o evitamento do olhar, o isolamento, dificuldades na amamentação, ausência
do sorriso, entre outros já citados na semiologia. Assume, neste sentido, a consideração de que os sinais e sintomas no autismo
estão, intimamente ligados, à perturbação na dinâmica da relação precoce, comportando riscos psicopatológicos de uma
evolução autística.
Somado a essas explorações como meio (e jamais o fim!) de questionamentos, somos surpreendidos quando, através da
clínica do autismo, deparamos com um universo repleto de significados. Apreendemos (e aprendemos) que, apesar da realidade
psíquica destas crianças se mostrarem imersas numa intensa angústia e intolerância à frustração, é possível concebermos como
uma forma particular de proteção psíquica. No entanto, quando o excessivo sofrimento mental não é contido suficientemente
(mediante a falência de um objeto interno), pode-se organizar uma "deterioração psíquica". Esta, compreendida como uma
suspensão do desenvolvimento mental e emocional, converge o estado autista em uma dimensão mental de "terror e
desespero", ameaçado pela "morte psíquica". É rompido, então, a relação com a realidade externa, não permitindo ao psiquismo
desenvolver o pensamento. Cria-se um "espaço branco", blindado pelo não-pensamento e reforçado pelo sentimento de vazio e
crônico de perda-de-si-mesmo.
Assim sendo, e do ponto de vista psicopatológico, a estrutura mental constituir-se-á por um conjunto de mecanismos a
funcionar morbidamente. O "ser autista", inclinado sobre-si-mesmo em suas estereotipias e autêntico isolamento, impõe ao
psiquismo uma "solidão mental", de difícil acesso, denunciando uma realidade interna caótica, presa a uma depressão
psicotizante que interrompe o desenvolvimento. O "eu" torna-se um sobrevivente do "tu", frágil e mantido por mecanismos que
têm por finalidade o afastamento da realidade externa e da dor mental.
Entretanto, é curiosos, que na proporção em que impera um self fragmentado, reforçado pela ausência de fronteiras entre o
eu e o não-eu, emerge capacidades para a transformação do estado psíquico.
No relato da história clínica de Maria3 é revelado não somente os transtornos do abandono que traumaticamente foi vivido, de
maneira a comprometer um mundo psíquico impregnado de angústia (sobretudo à separação), mas permitiu também
testemunhar a busca (dentro de Maria) de uma condição para (re)construir o seu estado mental. De forma peculiar, no decurso
do tratamento, a susceptibilidade de transtornos autistas foi dando lugar a uma "neo-relação" e a experimentação da
diferenciação entre si e o meio ambiente.
Será, a partir da nossa disponibilidade - psíquica e emocional - que a criança autista e psicótica despertará a sua capacidade
para expressar suas emoções (tal como os bebês, elas não são como massa amorfas) e, mediante o espaço mental que possamos
"emprestar-lhes", também possam elas reorganizarem - na relação - o seu universo contido de afetos por serem pensados.
Referência Bibliográfica:
Messias, M. Graça. Reflexões sobre o Autismo no âmbito da Psicopatologia Infantil. Dissertação de Mestrado em Psicologia
Clínica do Desenvolvimento, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Portugal, 1995.

Artigo 1
REFLEXÕES SOBRE O AUTISMO NO ÂMBITO DA PSICOPATOLOGIA INFANTIL
M. Graça Messias

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