Artigos Diversos
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Os novos modelos
do capitalismo
Cresce, no Brasil, a pressão por mudanças no sistema nacional de relações de trabalho, seguindo tendências
internacionais. Isso significa perda ainda maior de direitos para os trabalhadores
Claudio Dedecca*
Há um processo de mudança no cenário internacional e também no Brasil, principalmente no que concerne aos
sistemas nacionais de relações de trabalho. Há quase vinte anos, diversos países capitalistas vêm conhecendo
alterações nesses sistemas. Apesar deste longo período de mudança, continua-se acusando os sistemas
nacionais de relações de trabalho de serem pouco flexíveis e responsáveis pelos problemas de emprego.
O período de crescimento do pós-guerra, que vai de meados da década de 50 ao final dos anos 70, representa
quase duas décadas de crescimento sustentado. Ao longo destes anos, foram montados, no ocidente, sistemas
de relações de trabalho mais democráticos, que permitiram maior controle dos trabalhadores sobre o uso de
sua força de trabalho.
De meados dos anos 70 até hoje, a tendência vem sendo de desmonte progressivo daqueles sistemas. A
principal característica de mudança é a transferência do controle do uso do trabalho, do espaço público para o
privado.
Chamamos isso de processo de socialização das relações de trabalho. Trata-se de um processo que reduziu o
caráter privativo das relações de trabalho, isto é, que minimizou o espaço de construção destas relações no
interior das empresas. Cada vez mais as relações de trabalho foram sendo determinadas no espaço social pelas
negociações coletivas e pelo Estado.
Esta foi uma característica marcante do pós-guerra. A grande exceção foi o Japão, que manteve o controle das
relações de trabalho no interior das empresas, graças à repressão ao movimento sindical, que o governo
japonês impôs na primeira metade dos anos 50, garantindo a elas a construção própria das relações de trabalho.
Nos últimos 20 anos, o espaço regulação das relações de trabalho está se transferindo do social para o privado.
De maneira crescente, vai se reconstruindo o poder das empresas sobre a determinação das relações de
trabalho diretamente com seus trabalhadores, em várias situações com a presença dos sindicatos.
De maneira progressiva, verificamos que perdem importância os contratos e acordos coletivos nacionais por
setor e ganham importância os acordos por empresa, que vão se moldando às necessidades de cada uma delas.
Não são mais as empresas que se adaptam às características gerais do uso do trabalho. Ao contrário, os
contratos e acordos de trabalho estão se moldando às características específicas de cada uma das empresas.
Essa é a tendência das relações de trabalho no cenário internacional. Na grande maioria dos países, amplia-se a
importância dos contratos e acordos coletivos realizados nas empresas. Observamos, entretanto, que o maior
poder da empresa sobre os sindicatos e sobre o mercado de trabalho ocorre graças ao baixo crescimento
econômico e ao aumento do desemprego.
Os novos modelos
Atualmente, o trabalhador que consegue manter o posto está, de maneira permanente, com o revólver do
desemprego na cabeça. As empresas, face à ameaça constante do desemprego, têm um poder imenso de
pressão sobre os trabalhadores. E estes pressionam também os sindicatos para que, cada vez mais, firmem
acordos no âmbito das empresas, rompendo com o padrão de organização setorial e nacional que prevalecia
anteriormente.
Qual a característica principal destes acordos? Pode-se afirmar que há uma tendência de "japoneização" das
estruturas nacionais e das relações de trabalho. Os modelos norte-americano e japonês prevalecem. Eles
ampliam os acordos coletivos por empresa e reduzem a importância dos acordos nacionais. Alguns países,
como a Alemanha e a Suécia, fugiram mais fortemente desse processo. Mesmo assim, os acordos por empresa
cresceram de maneira substantiva em ambos os países.
O que muda com esses acordos ? Muda muito. É óbvio que a situação está cada vez mais difícil, mas qualquer
pessoa, quando vai acertar um emprego, quer saber: o que eu vou fazer? Por quanto tempo eu vou trabalhar?
Qual a minha jornada de trabalho? E quanto vou receber pela função que realizo? São as três coisas básicas.
Afinal de contas, não é trabalho escravo. Talvez até estejamos chegando próximo disso, mas ainda existe uma
certa característica geral dos contratos de trabalho que faz com que cada um de nós pergunte: o que eu vou
fazer, por quanto tempo e quanto receberei?
O padrão do pós-guerra foi permitindo que estas características básicas -- o que fazer, por quanto tempo e por
quanto -- fossem, de maneira crescente, determinadas pelos acordos coletivos setoriais e nacionais e pela ação
pública. Qual é, então, a característica nova que emerge dos novos contratos e acordos de trabalho feitos com
as empresas? A novidade está em que estes três elementos são crescentemente determinados pela
especificidade da relação construída junto à empresa.
Funções polivalentes
Não é à toa que nesses últimos anos apareça a idéia de trabalho polivalente. É uma adaptação no uso das
funções do trabalho às determinações da empresa. O banco de horas é uma adaptação do uso da jornada de
trabalho às necessidades específicas da empresa. E a participação nos lucros nada mais significa do que a
adaptação da remuneração ao padrão de cada uma das empresas. Essas mudanças aparecem mais recentemente
nos países desenvolvidos -- na Europa e nos Estados Unidos. No Japão, aparecem na primeira metade dos anos
80.
Em todos os acordos coletivos, as empresas pressionam para que os acordos se dêem por empresa, para que
sejam flexibilizadas as funções do trabalho pela polivalência, a jornada de trabalho pelo banco de horas, e a
remuneração pela participação nos lucros.
O significado disso é a internacionalização de toda forma de utilização do trabalho no interior das empresas,
ampliando a utilização privada das relações de trabalho.
A cada novo momento de ampliação do desemprego, as empresas exigem uma nova flexibilização das relações
de trabalho, no sentido de se reapropriarem do controle do uso do trabalho em detrimento da esfera pública,
dos sindicatos, da política pública do Estado.
Democratização e sindicatos
Nos momentos decisivos, particularmente na década de 60, quando o movimento sindical desenhava o
rompimento com a estrutura sindical e com a forma de estruturação das relações de trabalho prevalecentes no
país, houve uma forte repressão. Quando o mercado de trabalho era favorável à estruturação do movimento
sindical, um governo ditatorial coibiu a ação do movimento sindical, transformou o sistema de relações de
trabalho e deu maior controle do uso do trabalho para o setor privado, para as empresas.
Quando esse governo enfraquece, na segunda metade dos anos 70, também a economia entra num movimento
de crise, que joga contra a ação sindical. Os sindicatos só não foram mais fragilizados pela crise porque existia
todo um movimento de democratização do País. E a democratização favoreceu a ação sindical.
Nos anos 80, vivemos uma situação de impasse. Ao mesmo tempo em que se avança na questão política, há
pouco avanço na regulação formal das relações de trabalho. As reformas estruturais que ocorrem no mundo do
trabalho estão inscritas na Constituição de 88, que amarra questões novas a questões antigas, não resolvidas.
E, mais do que isso, um ano depois de promulgada a Constituição, tivemos a primeira eleição presidencial do
País, após o período militar. Nesse momento, definimos os acúmulos da reorganização da sociedade brasileira
nos anos 90. É uma eleição que definiu o rumo de enquadramento do Brasil às tendências internacionais. É um
enquadramento a uma economia mais aberta, mais financeirizada e que não prioriza o emprego e as questões
sociais.
O emprego industrial no Brasil, em 1998, era 50% do emprego industrial de 1989. Os salários, em 1998, eram
30% menores do que os salários de 1989. A participação da massa salarial no produto industrial estava 23%
abaixo do que era em 1989.
Isto é, em dez anos, existe um claro empobrecimento dos trabalhadores em termos de emprego, de salário, de
participação dos salários no produto industrial.
O desmonte da estrutura produtiva
É nessa conjuntura que devemos discutir a mudança do padrão de relações de trabalho no Brasil. Um padrão
em que o mercado de trabalho se deteriora em termos de emprego e de renda. Esse contexto significa um
rompimento do tecido industrial, econômico e da estrutura produtiva nacional, marcada tanto pelo desmonte
de segmentos importantes da estrutura produtiva quanto pelo processo brutal de internacio-nalização da
economia brasileira.
Nessa discussão, alguns exemplos ajudam a entender a violência da mudança. Em três anos, deixamos de
consumir o leite "em saquinho" e passamos a consumir o leite "em caixinha", em embalagem longa-vida. Por
quê? Devido às mudanças tecnológicas na produção do leite? Isso é parte da verdade.
Em primeiro lugar, o leite longa-vida permite que a usina de processamento aceite o leite com a variação de Ph
muito maior do que o produzido "em saquinho". Em segundo lugar, a empresa que distribui leite não precisa
ter uma frota de caminhões que faça entrega diária. Ela passa com o caminhão uma vez por semana, entrega o
leite e não tem que voltar para pegar a caixa.
Internacionalização da economia
Outro dado importante desse processo de substituição deve-se ao fato de que a produção de leite no Estado de
São Paulo, que era predominantemente nacional, hoje passa a ser feita principalmente por empresas
internacionais -- a Parmalat, a Nestlé e outras. A tecnologia empregada pela Parmalat e pela Nestlé não é de
leite in natura, é a tecnologia do leite longa-vida.
Esse é o motivo pelo qual houve a transformação do modo de consumir leite no País. Não foi devido à
tecnologia, mas à internacionalização do setor. Essa situação se repete em outros setores.
Ao mesmo tempo em que temos uma fragilização dos empregos e dos salários no mercado de trabalho, há um
processo de internacionalização da economia. E, esse processo de transformação obriga o setor produtivo e o
comércio nacional a constituírem uma rede produtiva, onde a empresa nacional será apenas parte de uma rede
internacional.
Nestes últimos anos, as empresas vêm demandando uma mudança no padrão de relações de trabalho no Brasil
e exigindo a flexibilização do trabalho. Mas é preciso também deixar claro que o mercado de trabalho sempre
foi flexível no país. O uso e a alocação do trabalho, bem como a definição de funções do trabalhador, sempre
foram prerrogativas das empresas. Os sindicatos nunca conseguiram intervir de maneira mais intensa nesses
processos.
À revelia da legislação existente, adotou-se o banco de horas. A flexibilização da jornada de trabalho nada
mais é do que uma adaptação, uma forma de gestão da jornada de trabalho própria a cada uma das empresas.
O governo, através de uma medida provisória, legitima a flexibilização do salário com uma regulamentação
sobre a participação nos lucros e resultados. Assim, flexibiliza a norma pública de remuneração de trabalho.
Características de mudanças que existiam no cenário internacional chegam ao Brasil num sistema de relações
de trabalho profundamente flexibilizado. É essa tendência que observamos nos últimos anos. Dessa forma,
proliferam-se os acordos por empresa.
O governo Fernando Henrique Cardoso tem uma proposta no sentido de adaptar a estrutura sindical à realidade
de mercado. Na verdade, o Estado não quer a mudança da estrutura sindical, mas sim a flexibilização dos
direitos sociais. Quais são esses direitos sociais? São aqueles inscritos no Artigo 7º da Constituição -- as férias,
a licença-maternidade, o décimo-terceiro salário, enfim todos os direitos que conhecemos bem.
De que forma o governo propõe fazer isso? Ele alega que é necessário adaptar a estrutura sindical ao novo
padrão de relações de trabalho que o mercado vem impondo, e que precisamos mudar e dar maior liberdade de
negociação aos sindicatos. Portanto, é necessário modificar o Artigo 8º da Constituição. Mas ele diz também
que para mexer no Artigo 8º e dar liberdade aos sindicatos de se estruturarem e criarem seu campo de
negociação, é preciso dar aos sindicatos o que negociar. Assim, deve-se flexibilizar os direitos sociais que
estão inscritos no Artigo 7º , isto é, que o 13º salário, o direito de férias, a licença-maternidade, passassem a
fazer parte da pauta de negociação. Dessa maneira, junto com a suposta mudança da estrutura sindical, o que
se quer, de fato, é a flexibilização dos direitos sociais no sentido de ampliar o poder das empresas de
determinar um padrão de relações de trabalho.
Essa proposta é uma adaptação às demandas das empresas para reduzir os custos num contexto de forte
competição e concorrência internacional. Isso significa que o 13º, as férias e outros direitos sobre algumas
características do contrato de trabalho serão determinados, de maneira direta, entre empresas e sindicatos. E
em que contexto? Num contexto de elevado desemprego e de grande fragilidade dos sindicatos. Qual será a
tendência? O mais provável será o estabelecimento de uma tendência de perda ainda maior de direitos por
parte dos trabalhadores.
Todos os geneticistas e biotecnólogos que vêem no determinismo genético (a crença de que tudo num organismo é prefixado pelos genes)
apenas um tigre de papel se esqueceram de combinar isso com o mais célebre e controvertido de seus pares, James Watson. Na semana em
que se comemoram os 50 anos de sua descoberta da estrutura do DNA com Francis Crick, Watson, 75, volta a chocar especialistas e não-
especialistas dizendo que a burrice é genética e que seria moralmente imperativo modificar genes para eliminá-la.
A notícia foi dada na sexta-feira passada pelo jornal britânico "The Times": em depoimento para a série de documentários de TV intitulada
"DNA", que estréia sábado na emissora Channel 4 (Reino Unido), Watson afirma que pessoas de baixa inteligência sem deficiência mental
conhecida sofreriam de uma doença hereditária tão real quanto a hemofilia.
"Se você for realmente burro, eu chamaria isso de uma doença", diz o Nobel de 1962 na série de TV, segundo reportagem de Mark Henderson
no "The Times" (www.timesonline.co.uk). "Os 10% inferiores que realmente têm uma dificuldade, mesmo na escola elementar -qual é a causa
disso? Muitas pessoas gostariam de dizer: "Bem, a pobreza, coisas assim". Provavelmente não é assim. Eu gostaria então de me livrar disso,
para ajudar os 10% inferiores."
Aperfeiçoar os filhos
Watson dá uma justificativa ética para o aperfeiçoamento genético: "Parece injusto que algumas pessoas não tenham essa oportunidade. Assim
que houver um meio de melhorar nossos filhos, ninguém poderá contê-lo. Os pais que aperfeiçoarem seus filhos... seus filhos se tornarão
aqueles que vão dominar o mundo".
Não é a primeira vez que Watson choca o público. Ele já defendeu, no passado, além das terapias genéticas convencionais (injeção de genes
"corrigidos" em pacientes com doenças metabólicas), a modificação de genes na linhagem germinativa de células humanas (gametas, como
óvulos e espermatozóides). Isso faria com que a alteração fosse herdada pelos descendentes da pessoa.
No caso da doença "burrice", se um dia se tornasse possível encontrar genes diretamente associados com ela, eles precisariam ser eliminados
nos tecidos embrionários que, no futuro, dariam origem aos gametas. Ao se tornar um adulto, essa pessoa geneticamente modificada quando
ainda era embrião geraria filhos sem aqueles genes. Se muitos seres humanos recorressem ao tratamento, a "burrice" tenderia a desaparecer
da espécie -um sonho bom demais para ser verdade.
"Honest Jim"
A ciência ainda está muito longe de conseguir esse tipo de controle sobre as aptidões e o comportamento humanos. Por ora, tais elucubrações
só confirmam a fama de desbocado de Watson, que chegou a ser alcunhado por isso de "Honest Jim" (Jim Franco -isto é, franco demais).
Nada costuma ser tão simples na genética, e Watson é, ou deveria ser, o primeiro a sabê-lo. Há dificuldades dos dois lados, tanto do genótipo
(genes que acarretariam uma característica) quanto do fenótipo (características de fato manifestadas no indivíduo).
Não só é difícil e provavelmente impossível definir um conceito operacional da doença "burrice" como, até o presente, nenhum gene pôde ser
inequivocamente associado com ela. Nem, tampouco, com seu oposto: inúmeros candidatos a genes "da" inteligência foram lançados, nas
últimas décadas, apenas para serem abatidos pela crítica de outros cientistas.
Complexidade desprezada
Pesquisas do Projeto Genoma Humano, que Watson ajudou a fundar em 1989, estão revelando uma complexidade nas relações entre dezenas
de milhares de genes e proteínas incompatível com o modelo simplificado das doenças metabólicas. Nesses casos raros, uma simples troca de
"letra" num gene pode desencadear efeitos devastadores, como a fibrose cística ou o mal de Huntington.
O esquema "um gene/uma doença" não é aplicável nem mesmo a males com mecanismos mais imediatamente bioquímicos, como o câncer.
Menos ainda podem ser usados para entender -controlar, então, nem pensar- manifestações complexas como "inteligência" ou "burrice".
"Ele está falando em alterar algo que a maioria das pessoas vê como parte da variação humana normal, e isso, acredito, está errado", disse Tom
Shakespeare, bioeticista da Universidade de Newcastle (Reino Unido), a Mark Henderson, do jornal londrino.
"O que me espanta, também, é que ele deveria pensar como um geneticista, mas não leva em consideração a complexidade de milhares de
genes e contextos particulares inter-relacionados no ambiente, que produzem o fenótipo da inteligência... Receio que ele tenha causado mais
mal do que bem, apesar de sua liderança no Projeto Genoma Humano e de sua descoberta de 1953."
Genes, garotas e autistas
No documentário, James Watson também se diz a favor da disseminação de genes "engenheirados" de beleza: "As pessoas dizem que seria
terrível se tornássemos todas as garotas bonitas. Eu acho que seria genial". Nada que não se pudesse esperar de alguém que intitula "Genes,
Garotas e Gamow" a sequência de seu não menos polêmico e autobiográfico "A Dupla Hélice", em que, ao lado de peripécias sobre o código
genético com o físico George Gamow, a obsessão e as dificuldades de Watson com o sexo oposto chegam a rivalizar com suas equivalentes na
biologia molecular.
O "The Times" informa ainda que Watson tem um filho que sofre de uma deficiência cognitiva similar ao autismo, fato que "Honest Jim" não
costuma abordar em público, mas que teria influenciado suas opiniões.
Outro biólogo bem conhecido do público, o ensaísta Stephen Jay Gould (morto no ano passado), também tinha um filho autista, Josh, exímio
calculista de calendários, capaz de dizer em segundos em que dia da semana cai uma data qualquer. Paradoxalmente, Gould se tornou um
ferrenho adversário do determinismo genético -o que não deixa de ser uma indicação de que parece haver muito mais determinações entre
genes e cultura do que pode sonhar a biotecnologia.
As razões do sucesso total? Acho que sei. O mundo masculino está cansando as pessoas; não é à toa que
Roseana bateu alto nas pesquisas, que Rita Camata é chamada para vice, que Marina Silva, a corajosa e
sensual seringueira, pode vir a ser vice de Lula. Ninguém agüenta mais aqueles sujeitos de terno, com seus
bigodes e gravatas, decidindo os destinos mais finos da nação. A visão da mulher poderá ser mais
democrática, mais tolerante, mais sutil nesta época tão dura de transição para uma democracia social - se é
que ela virá...
O que há de novo no Saia Justa é que, normalmente, se convocam as mulheres para mostrar que estão
"integradas" no mundo atual. Nesse programa, ao contrário, as mulheres estão é "estranhando" o mundo.
Essa é a diferença. As mulheres se integram no mercado, muitas imitam à perfeição os homens no trabalho,
com seus tailleurs e invisíveis bigodes, mas em geral são vistas com uma curiosidade desdenhosa pelos
machos oficiais da mídia. Saia Justa é um território livre.
Rita Lee é aquele luxo. Faz um low profile defensivo, mas nós sabemos que São Paulo não seria a mesma
cidade se ela não existisse. Sob a capa de roqueira, ela é uma mulher política, faz uma análise cultural do
País, desde os Mutantes. A escritora Fernanda Young é a pós-modernidade se expressando, uma mistura
de mãe punk com intelectual pop, ostentando uma autoparódia na cara da gente, como arma crítica. Marisa
Orth, a anti-Magda, inteligentíssima, destrói a caretice e a peruíce, tanto como atriz quanto como
personagem, e Monica Waldvogel, sensata e doce, com o crivo da razão jornalística, faz o copidesque que
orquestra um sentido para as idéias que explodem no belo cenário de Carla Caffé, sob a luz de cinema de
Rodolfo Sanchez.
Em Saia Justa, as mulheres pensam com o corpo; suas reflexões são sempre repassadas de uma
subjetividade emocionada de onde sai um pensamento não-fálico, não definitivo. Novalis escreveu que "a
mulher é o ponto de transição do corpo para a alma". Nessa imprecisão está a sua riqueza, principalmente
nestes tempos submissos a um "pensamento único".
Às vezes, escrevo sobre as mulheres no Brasil de hoje. Mas sou um pobre macho perplexo. Por isso, aqui
vão algumas perguntas às meninas do Saia Justa:
Vocês não acham que as brasileiras comuns desconhecem a liberdade sonhada pelas feministas? O que
vemos aqui é uma libertação da "mulher-objeto". Elas não estão virando "sujeitos" livres, mas querem ser
mercadorias sedutoras, como um BMW, uma Ninja Kawasaki... O "objeto" é feliz, não sofre. As mulheres
querem a felicidade das coisas. Querem ser disputadas, consumidas, como um bom eletrodoméstico.
Verdade ou mentira?
A gente viaja pelo mundo e vê que as européias ou americanas não ficam apregoando uma sexualidade
berrante pelas ruas. Por que as brasileiras se exibem tanto como gostosas, peitos de silicone, coxas
lipoaspiradas, bunda soerguida, vagina indomável, sorriso largo e debochado? Será isso prova de liberdade
ou de fragilidade? Elas têm de oferecer sua carne nua o tempo todo porque são inseguras? Elas não
prometem carinho; prometem "funcionamento". Não é por acaso que são chamadas de "avião" ou de
"máquina"...
As mulheres brasileiras são amigas ou inimigas dos homens? Por serem oprimidas, é válido que a brasileira
use uma estratégia de controle sobre os machos, a sedução pela histeria, pela fragilidade fingida, pela
dissimulação da competência? Pode a brasileira "viver sem mentir"? O que é a perua? A perua seria uma
conseqüência disso? Quais as categorias de peruas?
A perua malvada é o "outro" do machão?... E a bunda? Não merece uma reflexão? As bundas estão virando
uma utopia. Não há mais o que mostrar. Nunca as mulheres foram tão nuas no Brasil... Já mostraram o
corpo todo, as vaginas, o interior delas... Só restará, um dia, os intestinos... O que mais? A revolução
feminista no Brasil será apenas esse strip-tease geral, essa dança da garrafa?
O sexo total que nossas gostosas prometem é impossível. Os peitos de silicone estão cada vez maiores,
estão virando depósitos de leite venenoso. A libertação da mulher no Brasil de hoje é uma vingança
conservadora? Sim ou não? Ou "sei lá"? Ou não é nada disso e minhas críticas não passam do medo de um
machista metido a fino?
Será que toda essa loucura feminina, essas capas de revista, essas roupas de mau gosto em coquetéis e
Caras, esses falsos brilhantes, essas gargantilhas com nome de marido, essas "ladies" querendo ser
prostitutas e vice-versa, essas multidões de meninas lindas querendo se salvar pela passarela ou bordel,
será que tudo isso, no fim das contas, não vai adoçar uma ordem excludente e discriminatória de séculos,
por uma doce miscigenação de costumes e loucuras? Será que isso tudo não é bom?
Talvez esteja surgindo no País, com vices e danças do ventre, uma nova política através de olhos femininos.
Os homens têm destroçado tudo. Só as mulheres podem nos responder. E salvar.
Talvez.
Muitas pessoas sustentam que, desde os tempos de Keynes, nenhum outro pensador teve tanta
influência sobre seus contemporâneos quanto Peter Drucker. Exageros à parte, indiscutível é que
esse austríaco de 89 anos é um dos intelectuais mais importantes de nosso tempo. Não por acaso, ele
vem sendo chamado nos meios acadêmicos e gerenciais de "pai do management moderno". Ao
longo de sua vasta obra, composta de 27 livros sobre administração, uma autobiografia e dois
volumes de ficção, Drucker exibe uma capacidade singular para integrar essa rica combinação de
pensamento filosófico, político, econômico, histórico, sociológico, tecnológico e mesmo científico.
Há duas áreas principais nas quais precisaremos trabalhar muito para poder colher os benefícios do
conhecimento. Estaremos muito ocupados nos próximos 50 anos ou mais, antes de podermos até
mesmo colocar as perguntas certas. Há questões da produtividade do conhecimento e do trabalhador
do conhecimento. Depois, há implicações no que diz respeito à própria natureza da empresa.
Finalmente, existem enormes implicações no tocante à educação e à sociedade.
Sim. Trata-se de uma conseqüência direta do fato de que o conhecimento está se transformando no
recurso-chave. Não existe nada que se possa caracterizar como conhecimento superior ou inferior.
Mas o conhecimento efetivamente generalizado também não existe. Para ser efetivo, o
conhecimento tem de ser especializado. Isso quer dizer que o "chefe" já não poderá saber o que seu
subordinado está ou deveria estar fazendo. Isso enfatiza a figura do operário do conhecimento.
Então, a única maneira de fazer a organização funcionar será exigir de todos os membros, do chão
da fábrica ao mais alto executivo, que cada um assuma a responsabilidade por sua contribuição, mas
também assuma a responsabilidade de ser compreendido.
O que tudo isso significa para uma organização? Quantos níveis hierárquicos serão
necessários no futuro?
Em que áreas o Sr. acredita que ocorrerão as maiores mudanças na estrutura econômica?
Assistiremos, certamente, a mudanças muito grandes de tecnologia. As mais importantes talvez nem
aconteçam na área da informação, mas nos campos da biologia, da medicina, da genética e assim
por diante. A tecnologia da informação por certo continuará mudando pelo menos nos próximos
vinte anos, eu diria, e num ritmo bastante acelerado. Entretanto, a meu ver, outras mudanças
provavelmente terão maiores significado e impacto.
O que primeiro me vem à mente são as mudanças do centro de gravidade da economia. Durante
quase 200 anos, o centro de gravidade foi a produção de coisas, principalmente pelo setor
manufatureiro. Nas economias desenvolvidas, como Estados Unidos, Alemanha ou Japão, o centro
de gravidade está mudando muito rapidamente para o varejo. As novas cadeias varejistas se
autofinanciam em condições muito melhores do que as que poderiam ser oferecidas pelo setor
manufatureiro. Esta pode ter sido a mudança mais importante da estrutura econômica nos últimos 30
anos. Em toda parte, o centro de gravidade do mercado está se deslocando do produtor para o
distribuidor. Este é um fato que poucos fabricantes compreendem, ou com o qual conseguem
conviver. Assistiremos a mudanças semelhantes no varejo da distribuição do conhecimento. Esta é a
maneira de um economista referir-se à educação. Já existem universidades nos Estados Unidos que
ensinam um número maior de pessoas via satélite e telecast, fora da universidade e distantes dela,
do que as que freqüentam suas aulas.
O Sr. está tentando comparar entidades bastante incomparáveis. O fato de esses dois países terem
fronteira comum não significa que sejam comparáveis - seria o mesmo que contrapor Itália e
Alemanha, apesar de ambos os países serem vizinhos. Se eu quisesse comparar a economia
argentina e determinar seu potencial de crescimento, faria a comparação com o Norte da Itália,
região de onde vieram muitos dos ancestrais dos atuais portenhos. E, no que diz respeito ao Brasil,
não creio que haja nada no mundo que se possa comparar ao Brasil. A maior fraqueza da Argentina
em todo este século tem sido sua crença no fato de que suas imensas vantagens como produtora de
alimentos fortalecem sua economia. Na realidade, hoje essa é uma de suas fraquezas. O resultado é
que os argentinos não utilizaram adequadamente seu magnífico sistema educacional - poucas
universidades no mundo podem ser comparadas à Universidade de Buenos Aires, hoje com 175
anos. De outro lado, a Argentina ainda não capitalizou o fato de que vem operando na economia
global há pelo menos 150 anos, desde que se tornou possível embarcar trigo e carne em grandes
quantidades. Quanto ao Brasil, esse país ainda não tirou partido da imensa vantagem
representada por seu enorme mercado doméstico. Se quiséssemos calcular o potencial futuro da
Argentina, eu diria que ele está na emergência de um número muito grande de pequenas e médias
empresas altamente especializadas. Já no Brasil, vejo em primeiro lugar a necessidade da
emergência de uma infra-estrutura eficiente e depois o desenvolvimento de uma economia de
serviços eficaz, para que o mercado doméstico possa se transformar no motor do desenvolvimento
econômico brasileiro
Doutor Calligaris não é um intelectual de gabinete. Nascido em Milão, em 1948, este psicanalista de 54 anos rodou
meio mundo antes de aterrissar — e se apaixonar — pelo Brasil. Viajante inveterado, Contardo Calligaris transita
com igual desenvoltura pelas idéias, que expõe em comentados artigos na Folha de S.Paulo. Também é autor dos
livros Hello Brasil! (Escuta, 1992) e Crônicas do Individualismo Cotidiano (Ática, 1996). O comportamento
humano, as relações homem /mulher, a guerra no Oriente Médio e a cândida violência brasileira são temas que ele
visita com o mesmo interesse com que morou em Londres, Genebra, Paris, Nova York e São Paulo. Nas duas
últimas, fixou residência.
A grande viagem da vida de Contardo começou aos 17, quando fugiu de casa para morar em Londres. Na capital
inglesa lavou pratos, vendeu cashmere nas ruas e distribuiu folhetos de boates de striptease. Voltou suavemente
obrigado pelo pai, mas não se sentia mais em casa na Itália. Em pouco tempo, deixava de lado os jobs que fazia
como fotojornalista e tradutor de romances policiais para estudar filosofia na Suíça e depois psicanálise na França.
O exílio sem volta incluiu viagens lisérgicas para Índia e Nepal nos anos 60, sexo livre e militância na Paris de
maio de 68 e a feroz contracultura norte-americana dos anos 70.
No meio do caminho, aprendeu cinco línguas, passou por três casamentos, desfrutou da amizade de Roland
Barthes, Jacques Lacan e Italo Calvino e sofreu a angústia de não pertencer a lugar nenhum. “Viajar deveria ser
proibido”, diz ele, surpreendentemente. “Produz uma divisão que não sara nunca.” Apenas uma das aparentes
contradições de seu pensamento inquieto — como a que juntou no mesmo sujeito o gosto pelo diálogo e a recusa
ao pacifismo. “Quando os aliados bombardeavam Milão na Segunda Guerra, meu pai, que era antifascista, pedia
que as bombas caíssem”, conta. “Acho que muitas pessoas no Iraque pedem para elas caírem.”
Em 86, depois de uma palestra em Porto Alegre, conheceu a também psicóloga Eliana dos Reis, uma gaúcha
intensa, “daquelas que têm a faca na bota”, como ele gosta de dizer. A paixão à primeira vista foi registrada em
foto. Juntaram escovas de dentes e filhos de outros casamentos. Na entrevista a seguir, colocamos o analista no
divã.
E a idéia muito difundida em revistas femininas de que, com o tempo, é normal o relacionamento esfriar e
sobrar só o “companheirismo”?
Para mim é mais uma desculpa que outra coisa. Me parece contrário a tudo o que constato, pois, com poucas
exceções, somos bichos extremamente apaixonados pela repetição. Nossa regra geral é a mesmice. Então não vejo
por que a mesmice seria broxante. Minha idéia é que o interesse sexual se perde por preguiça.
Preguiça de transar?
É preciso esforço para manter a vida sexual. O sexo é um trabalho. Não no sentido de [aponta para o relógio] “ah,
agora vou para o escritório”. Mas, se você não mantém fantasias sexuais andando na sua cabeça, num dado
momento a atividade sexual morre. Nossa sexualidade não tem nada de natural, é ligada a fantasias e só funciona
com elas. A quantidade de casais que param de transar e se queixam como se fosse “eu deveria tomar Viagra” é
imensa. Mas o primeiro Viagra é pensar em sexo.
Em outro artigo você afirma que as pessoas andam “tão preocupadas em preservar suas liberdades
individuais que acabam por preservar a sua solidão”. É verdade?
Eu acho que, em vez de fugir dos relacionamentos, seria menos custoso inventar maneiras de convivência em que a
gente pudesse pagar um pouco menos do que a solidão. A gente tem muito a inventar na maneira de um casal
conviver e negociar a individualidade um do outro. Defendo as uniões duradouras, porque são mais interessantes.
Acho que muitas separações — mas, cuidado, não todas, longe disso — são efeito de preguiças diversas. Então,
valorizo os esforços dos que tentam ficar juntos.
Ainda sobre relacionamentos, você sempre pergunta: “Qual é a melhor viagem, visitar as capitais européias
num ‘tour’ de 15 dias ou passar duas semanas numa cidade só e conhecê-la um pouco?”. O que quer dizer?
Quero dizer que a diversidade das relações é dramaticamente desinteressante. A grande maioria das pessoas vive
uma série de monogamias. São poucas as que preferem uma vida de quinze capitais em quinze dias. E a verdade é
que isso é muito pouco interessante. Porque não existe nada de mais interessante no mundo do que as pessoas. E,
se você inventa um sistema de relações que na verdade é um sistema de não-rela-ções, se priva do que há de
melhor na vida.
1. Você pode escolher entre ficar em casa ou pegar a estrada e, sem dúvida, faz e fará um pouco
dos dois. Mas, quando estiver em casa, tente não sonhar com a estrada e, quando estiver na
estrada, tente não lamentar o calor do lar. Vivemos de sonhos e de nostalgias: é necessário cuidar
para que essa alternância não nos mantenha constantemente afastados do momento presente.
2. Quando alguém pedir esmola ou ajuda, dê (na medida de seu possível) o que está sendo pedido.
Não tente moldar o desejo de quem pede, oferecendo pão e leite em vez do trocado. A humanidade
dos mais desprovidos se refugia e resiste justamente na capacidade de continuar desejando o
supérfluo.
3. Todos os pedidos podem ser recusados, mas devem ser, ao menos, reconhecidos. Portanto é
proibido recusar sem falar.
4. Trate como íntimo só quem poderia sem riscos lhe devolver a mesma cordialidade.
5. Caso você pretenda mudar o mundo, lembre-se de que, provavelmente, você não está à altura
do mundo mudado segundo seu desejo. Se pretende transformar seu parceiro ou sua parceira,
lembre-se de que você, provavelmente, não está à altura do parceiro ou parceira assim
transformados. Quem quer mudar as coisas facilmente esquece de contar-se entre os itens a serem
mudados.
6. Qual é a melhor viagem: visitar as capitais européias num “tour” de 15 dias ou passar duas
semanas numa cidade só e conhecê-la um pouco? É mais interessante manter um casamento
complicado do que multiplicar as ou os amantes. O mesmo vale para os amigos e relações em
geral.
7. Uma vez por semana, durante uma hora, sente-se numa esquina de sua cidade e contemple os
passantes. Tente imaginar a variedade das vidas, a dignidade de todas. Se você tem filhos, faça o
exercício duas vezes por semana: será de grande ajuda para aceitar que a vida deles vale a pena,
mesmo se não corresponde em nada aos seus sonhos.
8. Considere como verdade absoluta que é possível ter uma vida boa e justa sem acreditar numa
verdade absoluta.
*publicado originalmente no suplemento “Mais!”, da Folha de S.Paulo, de 13/10/2002.
Tecnologia Arte
Biologia
Física
O lugar do hipertexto na aprendizagem: alguns Geral
História
Interdisciplinar
Pedagogia
princípios para a sua concepção Química
Tecnologia
Setembro/98
Introdução
À luz do que se sabe hoje sobre processos de aprendizagem, não é possível pensar
que o aluno inicie uma aprendizagem qualquer a partir de uma "tábua rasa". Esta
processa-se por meio do estabelecimento de relações entre o novo conhecimento a
adquirir e aquele que o aluno já detém.
Por isso é importante que a concepção de software seja orientada, nesse sentido,
pelos conceitos de Ausubel (1980), os organizadores avançados.
Nicol (op. cit.) argumenta, por outro lado, que na concepção de interfaces para
aprendizagem é cada vez mais necessário ter em conta alguns dos princípios
observados por bons professores quando preparam e conduzem os alunos para
novas aprendizagens, na perspectiva de que o conhecimento, a informação
apresentada através de um "ambiente de aprendizagem" informático, encerra em si
mesmo a função de ensinar.
Por sua vez, Entwistle e Ramsden (1986) identificam, num outro estudo, a
abordagem estratégica, definindo-a como a preocupação do estudante na obtenção
dos melhores resultados, investindo o menor esforço possível, sem deixar de se
assegurar das condições e materiais de estudo. Assim, está atento aos
procedimentos de classificação dos professores e analisa os enunciados de exame
de anos anteriores, por exemplo. É a este propósito que Relan e Smith (1996)
afirmam a necessidade de serem feitas recomendações no sentido de enriquecer os
ambientes de aprendizagem baseados no computador com a possibilidade de se
poderem expressar diferentes estratégias.
Um dos conceitos mais úteis e importantes de Vygotsky (1974) para esse domínio é
o da zona de desenvolvimento potencial. O autor procura explicar a distância entre
o nível de desempenho atual da criança e aquilo que ela não é capaz de fazer
sozinha, mas que pode realizar com apoio de um colega ou de um adulto. A
aprendizagem, quando ocorre, situa-se nessa zona. Pode-se afirmar que, em parte
contrariando Piaget (1977), para quem a aprendizagem deve seguir o
desenvolvimento, para Vygotsky é a aprendizagem que promove o
desenvolvimento, ao intervir e estimular exatamente a zona de desenvolvimento
potencial.
Bruner (1983), por sua vez, desenvolveu um conceito que procede teoricamente
dos trabalhos de Vygotsky: nas situações de interação adulto-criança, o adulto
implementa "processos de suporte" que se estabelecem através da comunicação e
que funcionam como apoio ou "andaimação" . O conceito utilizado por Bruner
refere-se à necessidade da intervenção do adulto para apoio do aluno na realização
de uma tarefa complexa que ele, por si só, seria incapaz de completar. O controle
da tarefa é transferido gradualmente do adulto (o apoio/ "andaime") para a criança,
ou do especialista para o principiante, durante o processo de ensino. Uma vez
aprendida a competência ou capacidade em questão, pode-se então prescindir de
tal apoio.
Esse autor realizou uma extensa investigação sobre as interações dos indivíduos em
tarefas que implicavam o uso tecnológico (computadores, processadores de texto,
câmaras de vídeo, etc.), tendo concluído que as noções que os indivíduos tinham
das características e capacidades do mediador com quem estavam em interação
eram "surpreendentemente poucas, imprecisas, cheias de inconsistências e falhas".
Além disso, sentiam-se freqüentemente inseguros do conhecimento que possuíam,
mesmo quando era correto, e seus modelos mentais incluíam conhecimentos ou
crenças que eram avaliados como de "validade duvidosa".
Outro argumento postula que é pelas escolhas ativas do aluno que este desenvolve
suas próprias estratégias de aquisição e de estruturação do conhecimento de nível
elevado, controlando, desse modo, o seu processo de aprendizagem.
Esses autores fazem uma análise interessante das potencialidades do hipertexto
como ambiente de aprendizagem, colocando-se na perspectiva do aluno e
considerando determinante a questão do espaço. Ao circular, o aluno se deparará
com duas estruturas paralelas: o hiperespaço, referente ao domínio do hipertexto
(nós e ligações), e o espaço conceptual, referente ao domínio do conhecimento
propriamente dito, cuja informação se materializa no conjunto de nós e ligações e
em todas as possibilidades de associação da informação. Definem, por isso, como
de maior complexidade o espaço conceptual, que envolve mais ligações do que as
explicitamente representadas.
Podemos afirmar, contudo, que existe algum consenso em torno da idéia de que
ocorre qualquer tipo de aprendizagem na exploração/navegação de um hipertexto,
sobretudo se existirem mecanismos de apoio. Assim, autores como Mayes et al.
(1990, p. 122) vão mais longe afirmando que "uma exploração de uma rede de nós
e ligações completamente livre comportará deficiências ao nível da aprendizagem",
adiantando ainda que "instrumentos e outras características do hipertexto devem
ser concebidos explicitamente para apoiar e facilitar a aprendizagem per se."
Voltando a Mayes et al. (1990a), estes procuraram avaliar o que os alunos faziam, o
que pensavam e o que aprendiam com esses sistemas. Realizaram um estudo em
que observaram grupos formados por duplas em interação com um hipertexto,
recorrendo a uma metodologia de interação construtiva, que exigia a tomada de
decisões em conjunto quanto aos procedimentos a adotar e, portanto, um diálogo
intrínseco à tarefa. Concluíram que a exploração ativa no hiperespaço não é, de
forma alguma, um processo semelhante a uma exploração conceptual, verificando
que, em certos casos, os sujeitos se envolvem de tal modo na aprendizagem dos
conteúdos apresentados que se "esquecem" de fazer a aprendizagem da utilização
dos mecanismos de exploração.
O que parece verificar-se, sobretudo nos primeiros contatos com o hipertexto, é que
os sujeitos ou aprendem a navegar no hipertexto ou se centram nos conteúdos, não
o fazendo simultaneamente. Um outro aspecto evidenciado foi a tendência para
"regressar" a um estádio inicial da exploração do hipertexto à medida que vão se
desligando da aprendizagem da navegação e focando sua atenção no domínio da
aprendizagem. Os autores puderam concluir que se observa, apesar de tudo, um
aumento da utilização flexível do hipertexto.
Por outro lado, o fato de o aluno se encontrar perdido ou desorientado "pode ser
visto como desejável ou mesmo como uma parte necessária no processo de
estruturação" (Mayes et al., 1990, p. 125) e, sob certas condições, a desorientação
no espaço conceptual pode considerar-se um pré-requisito necessário para
aprofundar a aprendizagem, constituindo até, no caso de alunos mais
experimentados, um desafio, retirando-se dela alguma vantagem.
Outro aspecto que pode ser referenciado como determinante do grau (e tipo) de
aprendizagem que o sistema permite é o modo de estruturação da informação
(Jonassen e Grabinger, 1990), ou seja, o modelo de informação e a interface
intelectual. O primeiro está relacionado com a rede de ligações entre os elementos
da informação e o segundo refere-se ao modo como a rede de relações pode ser
representada para o utilizador, de modo a facilitar a navegação e minimizar a
desorientação cognitiva associada à variedade de perspectivas acerca de um
tópico.
De tudo o que foi exposto resulta claro que nos encontramos num vasto domínio em
que muitas questões ficam por debater. Importa porém afirmar que recai sobre os
construtores destes novos materiais educacionais, seja com objetivos explícitos de
aprendizagem ou não, uma grande responsabilidade. Se, como alguns concluem, a
generalização do hipertexto e da hipermídia vier abrir um novo capítulo na nossa
vida cotidiana, é crucial a investigação nesse domínio, de modo a poderem ser
concebidos e desenvolvidos documentos (e outros "objetos") de acordo com uma
"gramática" adequada.
Referências bibliográficas
BROPHY, J. e GOOD, T. Looking in classrooms. New York, Harper & Row Publ. Inc.,
1984.
MAYES, T.; KIBBY, M. e ANDERSON, A. "Learning about learning from hypertext". In:
JONASSEN, D. e MANDL, H. (Eds.). Designing hypermedia for learning. Berlim,
Springer-Verlag, 1990(b). p. 227-250. (NATO ASI Series)
NICOL, A. "Interfaces for learning -- What do good teacher know that we don't". In:
LAUREL, B. (Ed.). The art of computer interface design. USA, Addison-Wesley
Publishing Company, Inc., 1990. p. 113-122.
Biografia
Autor:
Editoria: CADERNO ESPECIAL 4 Página: 8
Edição: São Paulo Sep 16, 2001
Arte: QUADRO: PASSO A PASSO PARA CHEGAR À VAGA
Observações: EMPREGOS ESPECIAL - ESTÁGIOS E TRAINEES
Assuntos Principais: TRABALHO; ESTÁGIO; PROCEDIMENTO; OPORTUNIDADE
Anúncios em jornais
Os classificados reúnem oportunidades em grandes empresas e vagas em companhias de pequeno porte, mas nem
sempre o nome do empregador é divulgado
Colégios e universidades
Algumas empresas divulgam as vagas diretamente nos colégios ou nas universidades. Isso pode acontecer através
de murais, palestras ou feiras de recrutamento
02/09/2001
Será que não existe uma definição sólida de inteligência que não precise ser relacionada à inteligência
humana?
Ainda não. O problema é que nós ainda não podemos caracterizar de forma geral que tipos de procedimento
computacional nós queremos chamar de inteligentes. Entendemos alguns mecanismos da inteligência , e não
outros.
É a inteligência uma coisa única, de forma que alguém possa perguntar se uma máquina é ou não é inteligente?
Não. A inteligência envolve mecanismos, e a pesquisa em inteligência artificial descobriu como fazer os
computadores desempenharem alguns deles, não outros. Se executar um trabalho requer apenas mecanismos que
são bem compreendidos hoje, computadores podem ter desempenhos impressionantes em tal trabalho. Tais
programas devem ser considerados "algo inteligentes".
A que distância a inteligência artificial está de atingir inteligência de mesmo nível que a humana? Quando
isso acontecerá?
Algumas pessoas acreditam que inteligência como a humana pode ser atingida ao ser escrito um grande número
de programas do tipo que estão sendo escritos hoje e ao montar uma vasta base de fatos do conhecimento nas
linguagens hoje utilizadas para expressar conhecimento.
Entretanto a maioria dos pesquisadores em inteligência artificial crê na necessidade de novas idéias
fundamentais, portanto não é possível prever quando esse nível de inteligência será atingido.
E quanto a fazer uma "máquina criança" que pudesse se desenvolver lendo e aprendendo com a experiência?
Essa idéia foi proposta muitas vezes desde os anos 40. Eventualmente será posta em prática. Entretanto programas
de inteligência artificial ainda não atingiram o estágio de serem capazes de aprender muito do que uma criança
aprende por experiência física. Tampouco os programas atuais compreendem linguagem bem o suficiente para
aprender algo por meio de leitura.
Poderia um sistema de inteligência artificial obter um nível cada vez mais alto de inteligência ,
retroalimentando-se sem auxílio, apenas por pensar sobre inteligência artificial?
Penso que sim, mas ainda não estamos em um nível de inteligência artificial em que esse processo possa
começar.
E quanto ao xadrez?
Alexander Kronrod, um pesquisador em inteligência artificial russo, disse: "Xadrez é a drosófila da
inteligência artificial". Ele fazia analogia com o uso que os geneticistas fazem dessa mosca de frutas para estudar
herança genética. Jogar xadrez requer certos mecanismos intelectuais, e não outros. Programas de xadrez agora
jogam no mesmo nível de grandes mestres, mas o fazem com mecanismos intelectuais limitados se comparados a
um enxadrista humano, substituindo compreensão por grande quantidade de cálculo. Uma vez que tenhamos um
melhor entendimento desses mecanismos, poderemos criar programas de xadrez de nível humano que façam muito
menos cálculos que os programas atuais.
Infelizmente os aspectos competitivos e comerciais de fazer computadores que joguem xadrez foram priorizados,
em vez do uso do xadrez como um domínio científico. É como se os geneticistas após 1910 tivessem organizado
corridas de drosófilas e concentrado seus esforços na criação e aprimoramento de moscas para vencer essas
corridas.
John McCarthy é professor emérito de ciência da computação da Universidade Stanford (EUA). Cunhou o termo "
inteligência artificial" em 1956. O texto acima é uma versão reduzida do questionário. A versão completa pode
ser obtida em www-formal.stanford.edu/jmc/whatisai/whatisai.html
EDITORIAIS
28/08/2001
Autor:
Editoria: PRIMEIRA PÁGINA Página: A1
Edição: Nacional Aug 28, 2001
Vinheta/Chapéu: OPINIÃO
O que torna você quem você é? REVISTA TIME 11/5/2003
O que é mais forte -a natureza ou a formação? A ciência mais recente diz que os genes e sua experiência interagem durante
toda a sua vida
Felizmente, não há necessidade de tranqüilizar a população com tais cálculos sofisticados. As pessoas não choraram diante
da notícia humilhante de que nosso genoma tem apenas o dobro do tamanho do genoma de um verme. Nada foi apoiado
naquele número de 100 mil, que foi apenas um palpite ruim. Mas o projeto genoma humano -e as décadas de pesquisa que
o precederam- forçaram um entendimento muito mais sutil de como os genes funcionam. No princípio, os cientistas
detalharam como os genes codificam as várias proteínas que compõem as células em nossos corpos. A descoberta mais
sofisticada e eventualmente mais satisfatória -a de que a expressão genética pode ser modificada pela experiência- foi
gradualmente emergindo desde os anos 80. Apenas agora os cientistas estão despertando para a idéia grande e geral que
ela implica: a de que a própria formação (aprendizado) consiste de nada mais do que a ativação e desativação de genes.
Quanto mais levantamos o véu do genoma, mais vulneráveis os genes parecem ser à experiência.
Para apreciar o que aconteceu, você terá que abandonar as antigas noções e abrir sua mente. Você terá que entrar em
mundo no qual seus genes não são marionetistas puxando os fios de seu comportamento, mas marionetes à mercê de seu
comportamento, no qual o instinto não é o oposto do aprendizado, influências ambientais são geralmente menos reversíveis
do que as genéticas, e a natureza é aberta ao aprendizado.
O medo de cobras, por exemplo, é a fobia humana mais comum, e faz um bom
sentido evolucionário ele ser instintivo. Aprender a temer as cobras do modo difícil seria perigoso. Mas experiências com
macacos revelam que o medo deles de cobras (e provavelmente o nosso) ainda precisa ser adquirido com a observação da
reação de medo de outro indivíduo em relação a uma cobra. O resultado é que é fácil ensinar os macacos a temerem
cobras, mas muito difícil ensiná-los a temerem flores. O que nós herdamos não é o medo de cobras, mas uma predisposição
a aprender a temer cobras -uma natureza para um certo tipo de aprendizado.
Foi o excêntrico matemático primo de Charles Darwin, Francis Galton, quem em 1874 acendeu a controvérsia natureza-
formação em sua atual forma e cunhou a frase (pegando emprestado a aliteração "nature-nurture" de Shakespeare, que a
pegou de um diretor de escola elisabetano chamado Richard Mulcaster). Galton afirmou que as personalidades humanas
eram inatas, não moldadas pela experiência. Ao mesmo tempo, o filósofo William James argumentou que os seres humanos
tinham mais instintos que os animais, e não menos.
Nas primeiras décadas do século 20, a natureza predominou sobre a formação em muitas áreas. Mas no rastro da Primeira
Guerra Mundial, três homens reconquistaram as ciências sociais para o lado da formação: John B. Watson, que mostrou
como o reflexo condicionado, descoberto por Ivan Pavlov, podia explicar o aprendizado humano; Sigmund Freud, que
buscou explicar a influência dos pais e das primeiras experiências sobre as mentes jovens; e Franz Boas, que argumentou
que a origem das diferenças étnicas se encontrava na história, experiência e circunstâncias, e não na fisiologia e na
psicologia.
Os genes Hox, como todos os genes, são ativados ou desativados em diferentes partes do corpo em momentos diferentes.
Desta forma, os genes podem ter efeitos diferentes sutis, dependendo de onde, quando e como forem ativados. As chaves
que controlam este processo -filamentos da cadeia de DNA dos genes- são conhecidas como promotoras.
Pequenas mudanças no promotor podem ter efeitos profundos na expressão de um gene Hox. Por exemplo, ratos com
pescoços curtos e corpos longos; galinhas com pescoços longos e corpos curtos. Se você contar as vértebras no pescoço e
tórax dos ratos e galinhas, você verá que um rato tem sete vértebras no pescoço e 13 no tórax, uma galinha 14 e 7
respectivamente. A fonte desta diferença se encontra em um promotor ligado ao HoxC8, um gene Hox que ajuda a formar o
tórax do corpo. O promotor é um parágrafo de DNA composto de 200 letras, e nas duas espécies ele difere apenas em um
punhado de letras. O efeito é a alteração da expressão do gene HoxC8 no desenvolvimento do embrião da galinha. Isto
significa que a galinha gera vértebras torácicas em
uma parte diferente do corpo do que o rato. Na jibóia, o HoxC8 é expresso
diretamente da cabeça e prossegue sendo expresso por grande parte do corpo.
Assim as jibóias são um longo tórax; elas têm costelas por todo o corpo.
Por um certo lado, isto é um pouco deprimente. Isto significa que até que os cientistas saibam com encontrar os genes
promotores no vasto texto do genoma, eles não saberão a receita para diferenciar um chimpanzé de uma pessoa. Mas por
outro lado é animador, pois nos recorda mais fortemente do que nunca uma verdade simples que geralmente é esquecida:
corpos não são feitos, eles crescem. O genoma não é uma planta para a construção de um corpo. É uma receita para
preparo de um corpo. Você poderia dizer que o embrião da galinha é preparado em escabeche por menos tempo no molho
HoxC8 do que o embrião do rato. Da mesma forma, o desenvolvimento de certo comportamento humano leva um certo
tempo e ocorre em certa ordem, assim como o preparo de um suflê perfeito requer não apenas os ingredientes certos, mas
também a quantidade certa de cozimento e a ordem certa de eventos.
Como esta nova visão dos genes altera nossa compreensão da natureza humana?
Dê uma olhada em quatro exemplos.
Linguagem
Amor
Algumas espécies de roedores, como o arganaz-do-campo, formam longos laços entre os companheiros, assim como os
seres humanos. Outros, como o arganaz montanhês, mantém apenas ligações transitórias, assim como os chimpanzés. A
diferença, segundo Tom Insel e Larry Young da Universidade Emory em Atlanta, está no promotor dos genes receptor de
oxitocina e vasopressina. A inserção de um pedaço extra de texto de DNA, geralmente com um tamanho de cerca de 460
letras, no promotor torna o animal mais propenso a manter monogamia com seu companheiro. O texto extra não cria amor,
mas talvez crie a possibilidade de se apaixonar após a experiência certa.
Comportamento anti-social
Tem sido sugerido com freqüência que maus-tratos na infância podem criar um adulto anti-social. Uma nova pesquisa de
Terrie Moffitt da Kings College de Londres com um grupo de 442 homens neozelandeses, que foram acompanhados desde
o nascimento, sugere que isto é valido apenas para uma minoria genética. Novamente, a diferença está em um promotor
que altera a atividade de um gene. Aqueles com alta atividade dos genes de monoamino oxidase A são virtualmente imunes
aos efeitos dos maus-tratos. Aqueles com genes menos ativos se mostraram muito mais anti-sociais quando maltratados,
mas menos anti-sociais -ou não- quando não foram maltratados. Os homens maltratados, com genes menos ativos, foram
responsáveis por quatro vezes sua parcela de estupros, roubos e assaltos. Em outras palavras, maus-tratos não são
suficientes; é preciso também ter o gene menos ativo. E também não basta ter o gene menos ativo; também é preciso ser
maltratado.
Homossexualidade
Sem dúvida, descobertas científicas anteriores apontaram para a importância deste tipo de inter-relação entre
hereditariedade e ambiente. O exemplo mais marcante é o condicionamento pavloviano. Quando Pavlov anunciou sua
famosa experiência há um século completado neste ano, ele aparentemente descobriu como o cérebro poderia ser alterado
para adquirir novo conhecimento do mundo -no caso dos seus cães, conhecimento de que um sino anunciava a chegada da
comida. Mas agora nós sabemos como o cérebro muda: pela expressão em tempo real de 17 genes, conhecidos como
genes Creb. Eles precisam ser ativados e desativados para alterar as conexões entre as células nervosas no cérebro e
assim estabelecer uma nova memória de longa duração. Estes genes estão à mercê de nosso comportamento, não o
contrário. A memória está nos genes no sentido de que ela usa os genes, não no sentido de que você herda memórias.
Segundo esta nova visão, os genes permitem à mente humana aprender, lembrar, imitar, desenvolver linguagem, absorver
cultura e expressar instintos. Os genes não são marionetistas ou plantas de projeto, nem são apenas os transportadores da
hereditariedade. Eles estão ativos durante a vida; eles são ativados e desativados; eles respondem ao ambiente. Eles
podem dirigir a construção do corpo e do cérebro no útero, mas então quase que imediatamente, em resposta à experiência,
eles passam a desmontar e reconstruir o que fizeram. Eles são tanto a causa quanto a conseqüência de nossas ações.
Será que esta nova visão dos genes nos permitirá deixar para trás a
discussão natureza-formação, ou estamos condenados a reinventá-la a cada
nova geração? Diferente do que aconteceu em eras anteriores, a ciência está explicando em grande detalhe precisamente
como os genes e seu ambiente -seja o útero, a sala de aula ou a cultura popular- interagem. Assim talvez possa cessar o
balanço do pêndulo em uma dicotomia agora provada falsa.
Mas pode fazer parte de nossa natureza buscar histórias simples, de causa e efeito, e não pensar em termos de causalidade
circular, na qual os efeitos se tornam suas próprias causas. Talvez a idéia da natureza via formação, como as idéias da
mecânica quântica e da relatividade, sejam contra-intuitivas demais para as mentes humanas. Talvez a necessidade de nos
vermos em termos de natureza versus formação, como nossa capacidade instintiva de temer cobras, possa estar codificada
em nossos genes.
*Matt Ridley é um zoólogo formado em Oxford e escritor de ciência cujo mais recente livro é "Nature via Nurture"
(HarperCollins)
Unmesh Kher
Lisa Weissman tem um problema: Rugas dos dois lados da boca, onde não se pode aplicar Botox. Ela sabe que não, porque
já usou Botox para esticar a testa. Botox é toxina de botulismo diluída e aplicada em injeções. Como outras milhares de
mulheres que usaram Botox e ficaram satisfeitas com seus resultados, Weissman está buscando novas formas de usar uma
seringa para apagar outros sinais da idade em seu rosto.
Por isso encontramos a agente imobiliária, de 45 anos e mãe de três filhos, em uma cadeira cirúrgica no elegante consultório
de Rhoda Narins, em Manhattan. Narins é professora da Universidade de Nova York e presidente da Sociedade Americana
de Cirurgia Dermatológica. Ela está segurando uma injeção com fina agulha hipodérmica, repleta com uma mistura
esbranquiçada. Depois de passar um desinfetante cor de ferrugem em volta da boca de Weissman, a médica tirou seus
sapatos de salto alto para ter melhor ângulo de trabalho. Quinze minutos depois, talvez duas dúzias de injeções mais tarde,
as rugas quase desapareceram. A região em torno dos lábios de Weissman está avermelhada, mas nada que uma
maquiagem não esconda. As rugas, por outro lado, ficarão escondidas durante meses.
A mistura que foi injetada na pele de Weissman era de colágeno humano, disponível nas marcas CosmoDerm e
CosmoPlast. Não é, entretanto, a substância mais exótica a ser injetada nos rostos das mulheres hoje em dia. O mercado
americano tem mais de meia dúzia de "enchimentos dérmicos" -poções de bruxa injetáveis, que incluem colágeno bovino,
silicone líquido, micro-glóbulos de plástico, osso sintético e pele de cadáver humano triturada.
"Botox funciona tão bem em testas e pés-de-galinha que acabou gerando o desejo por enchimentos para a parte inferior do
rosto", disse Kimberly Butterwick, cirurgiã dermatológica em La Jolla, Califórnia. Pode parecer o cúmulo da vaidade, em
tempos de guerra, desemprego e corte nos seguros de saúde, atacar as rugas. Apesar disso, a procura por esses
procedimentos nos EUA cresceu 33% neste ano, comparado com 2001, pouco antes do Botox ser aprovado para uso
cosmético pelo departamento que regula alimentos e drogas, o FDA.
O princípio é simples. Botox funciona paralisando os músculos faciais que ajudam a formar as rugas. Os enchimentos
recheiam as rugas na camada interna da pele, chamada derme. A maior parte deles faz isso fornecendo colágeno. Com a
idade, os danos provocados pelo sol e pela poluição transformam o colágeno -a estrutura protéica que mantém a pele firme-
em geléia. Ao mesmo tempo, a derme começa a perder sua umidade e fica ressecada, murcha e incapaz de manter a
superfície esticada. "Os enchimentos dão jovialidade ao rosto, porque acrescentam o volume que o tempo rouba", explica
Fredric Brandt, cirurgião dermatológico que atende em Miami e Nova York.
Colágeno bovino há muito é usado dessa forma, para esticar rugas. No entanto, algumas pessoas reagem mal à proteína
bovina. Por isso, requer-se exames de alergia seis semanas antes do procedimento. CosmoDerm e CosmoPlast, aprovados
para uso cosmético pelo FDA em março, não requerem testes, porque são extraídos de células humanas cultivadas em
laboratório. O tratamento, que custa no mínimo US$ 575 (cerca de R$ 1.725), dependendo de quantas aplicações forem
necessárias, pode causar certa irritação, mas é seguro e seus resultados duram até seis meses.
O ácido hialurônico tem maior aprovação entre os dermatologistas e é um componente natural da pele. No corpo, o ácido
hialurônico se liga à água, lubrificando as articulações e mantendo a pele plena e suave. A versão sintética, que é vendida
em mais de 60 países como Restylane, raramente causa reações alérgicas e seus efeitos duram de seis meses a um ano. O
FDA deve aprová-lo para venda nos EUA. Tratamentos provavelmente custarão a partir de US$ 550 cada (cerca de R$
1.650).
Talvez Cymetra seja a substância mais assustadora atualmente em uso para esticar rugas -é um gel feito de pele de
cadáveres humanos. O produtor alega que Cymetra leva o próprio maquinário da pele a preencher suas rugas. Alguns
cirurgiões também estão experimentando Radiance, versão sintética do mineral que compõe nossos ossos. Ele está sendo
usado pelos médicos para preencher rugas particularmente profundas, apesar de não ter sido aprovado para este fim
específico. Depois, tem o Artefill, uma mistura de colágeno bovino e minúsculas contas de acrílico, que por enquanto só foi
aprovado por um comitê consultor do FDA. Uma vez injetado, o colágeno bovino é quebrado, mas as contas estimulam a
pele a secretar seu próprio colágeno. Sua vantagem é que o resultado dura anos. A desvantagem é que, algumas vezes, as
bolinhas aparecem pela pele fina, especialmente se forem injetadas em excesso. Dermatologistas também se preocupam
que alguns pacientes venham a desenvolver nódulos duros, conhecidos como granulomas, em torno das contas. Os
médicos ressaltam que a aplicação de Artefill deve ser feita somente por técnicos altamente qualificados.
Isso serve para todos enchimentos: A escolha do médico é tão importante quanto a da substância que usa. "A qualidade do
resultado, com qualquer material, vai depender da pessoa que o estiver injetando", diz Brandt. "Colágeno colocado no lugar
errado pode acentuar as rugas". Por outro lado, dermatologistas ressaltam que um bom técnico pode transformar o rosto de
uma pessoa no intervalo do almoço.
Nem todo mundo vê com tanto otimismo o novo interesse pelos enchimentos de rugas. Clark Taylor de Missoula, Montana,
presidente da Academia Americana de Cirurgia Cosmética, teme que os enchimentos possam rapidamente tornar-se um
custo recorrente. Os procedimentos podem custar de US$ 700 (aproximadamente R$ 2.100) a US$ 900 (cerca de R$ 2.700)
e duram somente meio ano. Uma cirurgia plástica para esticar o rosto, por sua vez, custa entre US$ 4.000
(aproximadamente R$ 12.000) e US$ 6.000 (cerca de R$ 18.000), mas geralmente dura de 10 a 15 anos, antes de requerer
retoques. Taylor teme que as mulheres fiquem viciadas em sua dose de colágeno semestral. "O que devíamos questionar
com mais freqüência", diz ele, "é se não estamos criando viciados em enchimentos".
O argumento pode ser bom, mas provavelmente não vai tirar o sono de cirurgiões e do grande número de clientes que
correm aos seus consultórios. Quando perguntada o que faria para parecer jovem, uma mulher de 50 e poucos anos, na sala
de espera de Narins, respondeu prontamente, "O que for necessário -desde que não faça mal à saúde".
Sumário - O artigo situa e problematiza a formação de pessoal de nível médio para a saúde no cenário brasileiro, frente às diretrizes estratégicas do Sistema Único de Saúde; apresenta uma
análise quantitativa sobre a força de trabalho em saúde (nível técnico e auxiliar) e busca demonstrar e estabelecer interfaces entre as áreas da educação e da saúde. A relação entre
trabalho, educação e saúde atua como fio condutor e mediador que interliga os conteúdos e os enfoques da temática a que se propõe o artigo.
*Antenor Amâncio Filho é pesquisador da Escola Politécnica de Saúde/Fiocruz e doutor em Educação pela UFRJ.
Na atual conjuntura, em que se destacam iniciativas no sentido de fortalecer a concepção neoliberal de Estado, vem se generalizando a crença de que a esfera pública representa algo
contraproducente e secundário. Gradativamente, vai se desenhando para as instituições públicas um perfil de algoz, o conjunto delas sendo considerado como um dos principais fatores
limitantes do desenvolvimento do país, sob insistente retórica quanto ao seu obsoletismo e ausência de modernidade.
Esta vem sendo a base do discurso neoliberal que se estabeleceu desde a década de 70, decorrência de violenta crise econômica de alcance mundial, cuja intensidade marca, no Brasil, os
primeiros anos da década de 90. Procurando expor uma situação de crise que seria fortuita e de aspecto conjuntural, causada por uma demasiada interferência do Estado, especialmente no
tocante ao aumento dos gastos sociais e não, como explicita Frigotto (1995), "um elemento constituinte, estrutural, do movimento cíclico da acumulação capitalista"2. Movimento que se
expande na medida em que a internacionalização da economia compele os países a uma revisão de suas políticas nacionais, para que estas não colidam com as regras que se firmam no
plano mundial.
Nesse percurso, que intenciona impingir ao Estado características de inoperância e ineficiência, nas instituições públicas da saúde e da educação transparece, ao longo do tempo, um
continuado e persistente esvaziamento das ações do Estado. Do ponto de vista geral essas instituições apresentam, hoje, um quadro desalentador, posto que vêm sendo submetidas a
seguidos impactos de leis, de programas e de projetos referenciados em discursos "descolados" da realidade para a qual são formulados. Essa inadequação entre a teoria e a prática e o
sentido imediatista depositado em pretendidos resultados, imprimiram graves seqüelas aos já precários sistemas existentes, ocasionando um agravamento do quadro devido à
descontinuidade, fragmentação e desarticulação das ações propostas.
Historicamente não tem sido, formalmente, atribuição da área de saúde a formação de seu pessoal técnico de nível médio, sendo a aprovação e o reconhecimento das habilitações, nas
formas legais vigentes, atribuições do sistema de educação. A saúde possui, como alternativa, a preparação de seus quadros médios (seja pela via do ensino supletivo, seja através de
reciclagens e treinamentos informais), na medida em que são absorvidos pelos serviços. Em outros termos: de um modo geral, a educação vem formando profissionais para atuar na saúde
sem considerar as carências e necessidades do setor saúde e este, por sua vez e também de modo geral, procura criar condições para suprir as deficiências técnicas dos profissionais que
incorpora.
Esta situação configura um descompasso: de um lado, a rede de saúde operando com restrições e tentando ações emergenciais de capacitação de pessoal; de outro, a rede de ensino,
possuidora de competência exclusiva para auferir habilitações regulamentadas por lei, acumulando incontáveis dificuldades para cumprir a atribuição de formar o profissional de saúde.
Não desconhecemos que a carência de pessoal habilitado de que se ressente a saúde não permitiria abandonar, de imediato, alternativas já existentes de profissionalização implementadas
por órgãos ligados à prestação de serviços de saúde. Elas permanecem necessárias (e, em alguns casos, até mesmo desejáveis, como nas especificidades exigidas para o manuseio e a
manutenção de equipamentos hospitalares). Contudo, também entendemos que, na saúde, iniciar a preparação do trabalhador após seu ingresso na força de trabalho deve ser algo pensado
como uma medida circunstancial, emergencial e recuperadora, cuja razão de ser decorre da insuficiência e precariedade do sistema de ensino em formar/preparar quadros habilitados para o
exercício da profissão nesse campo antes de sua inserção no mundo do trabalho.
Esse panorama, no qual os denominados "aparelho formador" (educação) e "aparelho absorvedor" (saúde) desenvolvem ações desconexas, torna obrigatório, para os profissionais das duas
áreas, refletir sobre propostas educacionais que almejem romper com uma situação historicamente falha, sinalizando para a construção e a implementação de mecanismos que, resultantes
de uma parceria inter-institucional entre a educação e a saúde, proporcionem condições para formar esses profissionais de nível médio. Um processo que englobe crescimento intelectual e
profissional do indivíduo, propiciando-lhe o desenvolvimento de suas capacidades com autonomia de pensamento e prática crítica e criativa e legitimando-o, via o sistema de educação, para
o exercício profissional. O presente artigo guarda a pretensão de contribuir para esse tipo de reflexão.
Política de saúde não é um conceito que se resume à política oficial desenvolvida pelos aparelhos do Estado. Existem políticas de saúde formuladas por grupos de interesse, por
corporações, por grupos sociais marginalizados ou excluídos dos sistemas de cuidados de saúde que se organizam nos movimentos populares visando a reformulações no sistema de saúde
em vigor. Como explicita Cordeiro:
É preciso entender a política de saúde (ou as políticas de saúde) como um processo de contradições e de relações entre grupos que disputam o poder de forma distinta, no sentido de impor
ou de implementar seu projeto de saúde ou seu projeto de sociedade.3
Nos últimos 20 anos, as políticas de saúde traduziram um modelo de assistência à saúde marcado por uma intervenção estatal de caráter privatista (ao privilegiar a contratação, com
recursos públicos, de instituições hospitalares do setor privado para a prestação de serviços médicos), e excludente:
Por guardar as características do modelo de seguro que condiciona o direito à assistência à contribuição prévia, excluindo do acesso milhões de brasileiros não vinculados ao mercado formal
de trabalho, não contribuintes da Previdência Social.4
A estruturação do modelo (orientado por uma visão de expansão do atendimento hospitalar, em particular a área hospitalar privada) permitiu ampliar uma forma de organização que se
constituiu em um grande complexo médico-industrial, mediante o crescimento do mercado de consumo de medicamentos e de equipamentos médicos, a partir da ação do Estado
empreendida via Previdência Social, além de acrescer, a esse complexo, o seguro-saúde:
Uma espécie de presença do capital financeiro "organizando" o setor saúde privado, intrometendo-se no setor público e esvaziando o projeto de organização pública do sistema de saúde.5
O que ocorreu no Brasil foi um processo intenso de privatização da saúde, mediante o qual o sistema criou um sentido da lucratividade do trabalho de prestação de cuidados de saúde. Além
de ser uma forma de restabelecer a capacidade de trabalho do indivíduo (visto como um "recurso" do capital), também se tornou um processo específico de transformação e de acumulação
capitalista, consubstanciado e estruturado na forma de empresas médicas.
Dessa maneira, o sistema de saúde constituído sob a política do regime militar pós-64 teve como uma de suas características transformar-se em importante locus de acumulação de capital,
gerando distorções e efeitos discricionários, ao priorizar suas ações no sentido de favorecer a determinada e privilegiada parcela da população, "em detrimento de uma grande massa de
despossuídos de saúde, de educação, de moradia, de transportes, de mínimas e básicas condições de cidadania."6
O esgotamento de um regime autoritário e burocrático, calcado na tradição centralista de atribuir ao Estado o papel principal de planejar o desenvolvimento econômico (e influir na sua
execução), dotado de condições e instrumentos para intervir, de modo arbitrário, nos diferentes campos que compõem o entorno social, inaugurou uma etapa de transição na direção da
democracia.
É nesse contexto de transição e sob a conquista, por parte da sociedade, de canais de participação, que à iniqüidade do sistema de saúde é contraposto um movimento social integrado por
intelectuais, profissionais da saúde, pesquisadores, sindicatos, grupos associativos de base e lideranças políticas. Punha-se em andamento a elaboração de um projeto de sistema de saúde
de contorno democrático e eficaz que, ao mesmo tempo, deveria integrar e somar no processo mais amplo de luta contra as condições de deterioração dos níveis de vida da população.
O momento condizia e alimentava esse movimento, posto que o modelo privatista de saúde aportava à década de 80 enfrentando vicissitudes decorrentes de sua própria irracionalidade
técnica e econômica frente às crescentes demandas sociais, em especial por mostrar-se retrógrado em termos de organização empresarial capitalista, porque dependente das
disponibilidades orçamentárias e financeiras de um Estado que, naquele momento, sucumbia em profunda crise social e econômica.
A conjuntura, portanto, favorecia o surgimento de movimentos de oposição ao regime vigente e, dentre eles, o denominado "movimento da reforma sanitária"7 que, gestado no interior do
setor saúde, passou a ocupar cada vez mais espaços no cenário político-institucional, formulando e defendendo propostas baseadas no entendimento da saúde enquanto direito social
universal a ser garantido pelo Estado.
Nessa perspectiva, a proposta firmava-se em três pontos: a) o primeiro dizia respeito ao conceito de saúde, relacionando-o às condições concretas de existência do homem na sociedade,
buscando superar a polaridade existente entre as dimensões biológica e social. Tal conceito remetia ao equacionamento das políticas econômicas e sociais, sinalizando que a reforma
proposta não se limitava a ser um projeto exclusivo do setor saúde, mas estendia-se a toda a sociedade e ao conjunto das ações governamentais. Implicava, portanto, na implementação de
políticas sociais mais justas e equânimes, objetivando a diminuição dos riscos de o indivíduo adoecer ou sofrer agravos à sua integridade física e mental; b) o segundo, de natureza
eminentemente política, correspondia à explicitação e reconhecimento de igual direito de acesso de todas as pessoas às ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, assim como
o dever do Estado de assegurar esse direito de cidadania e, c) o terceiro, de natureza estratégica e caminho necessário para a redemocratização do setor, assinalava o reordenamento do
sistema de prestação de serviços de saúde, o qual deveria responder às proposições da reforma sanitária, seja como executor de ações específicas, seja como responsável pela saúde da
população perante a sociedade e frente às demais políticas públicas setoriais.
Essa reorganizacão do sistema corresponde ao projeto do Sistema Único de Saúde (SUS), assentado sobre os seguintes princípios essenciais: a) universalidade - acesso da totalidade da
população a condições e serviços de saúde, sem discriminação de segmentos socioeconômicos ou culturais; b) integralidade - as ações de saúde, coletivas e individuais, consideradas e
praticadas sob um enfoque integral, o que significa romper com a concepção (dominante) que dicotomiza a "saúde pública" (que teria caráter de prevenção) e a "medicina curativa" (que teria
caráter de assistência médica e hospitalar) e, c) resolubilidade - assegurar o efetivo equacionamento dos problemas apresentados e observados individual e coletivamente, sob o
compromisso de qualidade no atendimento.
Com esse horizonte, o Sistema Único de Saúde deveria pautar-se tendo como diretrizes, unidade de doutrina e de lógica administrativa em todo o território nacional; descentralização
(deslocamento) do poder na direção dos municípios, aceita a concepção de que, quanto mais próximas do local de sua efetivação, tanto mais relevantes e legítimas são as decisões;
racionalidade técnico-administrativa, com a adequação entre a estrutura de necessidades e a de serviços, equipamentos e demais recursos, estabelecendo uma rede única, regionalizada e
hierarquizada por níveis de atenção, correspondentes à concentração tecnológica existente em cada um dos níveis e, por fim, participação da população organizada no processo de definição
e de controle da execução das ações de saúde nos níveis federal, estadual e municipal.
Elaboradas no contexto de um processo de transição política e derivadas de um projeto mais amplo de democratização, fortalecimento e modernização das instituições públicas, as
propostas foram consolidadas no Relatório Final da 8a Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986:
Conformando o projeto de Reforma Sanitária Brasileira que teve como eixos: a instituição da saúde como direito de cidadania e dever do Estado: a compreensão da determinação social do
processo saúde-enfermidade, através do conceito ampliado de saúde; e a reorganização do sistema de atenção com a criação do Sistema Único de Saúde.8
Apesar do arcabouço jurídico-legal definido em Capítulo específico da Constituição Federal de 19889, a implementação do Sistema Único de Saúde vem se deparando com sérios e graves
entraves e dificuldades estruturais, historicamente produzidos. Nesse processo, identificam-se pelo menos três aspectos que se interligam e devem ser enfrentados com a urgência
necessária, pois retêm a capacidade de conferir ou não qualidade à rede de assistência à saúde, conforme mencionado por Rodrigues Neto10: organização física da rede de serviços de
forma regionalizada e hierarquizada; adequação e qualificação tecnológica dos serviços de saúde e formação, atualização e reciclagem dos profissionais do setor.
Em relação ao último aspecto, é fato que a ampliação quantitativa e o aprimoramento da qualidade do pessoal responsável pelas ações de saúde têm sido tema constante nos diferentes
fóruns em que se debatem possibilidades e viabilidade de estruturar e operacionalizar um sistema de saúde que, sem discriminação, venha a proporcionar acesso e cobertura eficiente ao
conjunto da população.11
A situação se agrava na medida em que se observa, no setor, a existência de um grande contingente de pessoas, responsáveis por atividades de nível médio, exercendo suas atribuições
sem embasamento teórico e qualificação profissional prévia. A decisão no sentido de alterar e reverter esse quadro resulta em considerar essa força de trabalho como prioridade estratégica
na consecução da proposta, tomando-a como elemento propulsor e viabilizador da mudança, em razão das atividades a ela delegadas e afetas.
Grosso modo, o que ainda hoje se constata é que a demanda no mercado de trabalho não ocorre por egressos de cursos profissionalizantes o que, na prática, significa que a necessidade de
mão-de-obra na prestação de serviços impôs um quadro em que postos de trabalho que deveriam ser preenchidos por pessoal devidamente habilitado, são em grande parte ocupados por
leigos, não detentores de habilitação específica para exercer atividades próprias da saúde.
Portanto, para atender às exigências requeridas pelo Sistema de Saúde, é preciso tanto dar respostas às reivindicações do atual trabalhador da saúde (entre as quais se incluem a
preparação profissional, melhores condições salariais e de trabalho, legitimação da atividade profissional), como também reforçar e ampliar as condições para aumentar, qualitativa e
quantitativamente, as possibilidades do sistema de ensino de caráter regular no que toca a formar novos e competentes quadros técnicos para a rede de saúde. Nesse trajeto, é necessário
ter presente a urgência e o grau de importância que o advento do Sistema Único de Saúde enfatiza e reforça no tocante à formação de pessoal para ocupar posições nos segundo, terceiro,
quarto escalões da hierarquia funcional, pois é sobre esse contingente que recai enorme parcela de responsabilidade na sustentação e consolidação do sistema.
Desse modo, a formação de pessoal de nível médio para a saúde deve consistir em um processo em que não estejam dissociadas a técnica e a política. É preciso ter em mente que se atua
frente a determinadas circunstâncias, no interior de um espaço ainda ocupado por um sistema de saúde arcaico porém vivo o bastante para opor resistências e movimentar-se no sentido
oposto ao da mudança. É um enfrentamento que exige filosofia e princípios comuns que articulem os setores da saúde e da educação, objetivando um trabalho conjunto na formação desses
profissionais.
O caráter centralizador e autoritário imposto pelo período militar (1964-1985) imprimiu, também na educação, graves seqüelas, ocasionando um refluxo nos debates sobre a questão
educacional. Discussões que antes envolviam amplos setores da sociedade cederam lugar ao discurso de especialistas e foram reduzidas ao conflito de interesses daqueles mais
diretamente interessados: pais, professores, Ministério e Secretarias de Educação, editores de livros e de material didático.
Entendemos que, entre os fatores que contribuíram para essa posição até certo ponto reducionista do problema, pode ser incluída a rápida expansão do sistema de ensino superior verificada
no período, atraindo para si os melhores talentos e as principais atenções, fazendo amortecer o debate sobre o ensino fundamental e básico. Acresce a isto a difusão, na década de 70, da
idéia de que a educação pouco poderia influir nas transformações das condições de vida ou nas relações de poder da sociedade, cabendo aos sistemas educacionais apenas reproduzir as
estruturas de dominação existentes na sociedade.
À época, estudos e afirmações desse tipo e teor não geraram, no meio dos educadores, questionamentos mais rigorosos quanto ao papel e a importância atribuídos à educação no contexto
social. No dizer de Saviani:
Se tais estudos tiveram o mérito de pôr em evidência o comprometimento da educação com os interesses dominantes, também é certo que contribuíram para disseminar entre os educadores
um clima de pessimismo e desânimo.12
Esse panorama começou a ser alterado no bojo do movimento nacional na direção de mudanças no país, que ganhou impulso pela insistência das forças políticas empenhadas na luta pela
conquista das liberdades democráticas mediante o retorno à prática da participação eleitoral. Esse esforço começou a adquirir maior consistência e a ser recompensado a partir dos
resultados das eleições municipais de l977 e estaduais de l982, que abriram caminho para uma ampla mobilização da sociedade para eleger, pela via direta, o Presidente da República.
Pode-se dizer que o movimento pelas "diretas já" representou o marco de confluência dos movimentos (políticos, sociais, culturais, sindicais) que emergiam de uma sociedade que requeria o
restabelecimento pleno do Estado de direito.
Como na saúde, a reação mais articulada na educação teve início a partir do final dos anos 70 e início dos 80, ainda que em menor escala e dimensão, posto não haver alcançado obter a
adesão e ressonância social que caracterizou o movimento sanitário. Na educação,
foi no cruzamento entre o movimento sindical dos professores, de um lado, e a difusão da crítica acadêmica, de outro, que surgiu a proposta de ampliação do espaço de debates que se
travaram nos últimos dois anos da década de 70.13
A partir de então, o movimento se organizou, ganhando amplitude. A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) e o Centro de Estudos Educação e
Sociedade (CEDES), organismos criados em 1978 ("ambos revelavam na sua própria criação a resistência à política educacional dos governos militares")14 e a Associação Nacional de
Educação (ANDE), surgida em 1979, articularam-se e passaram a promover as Conferências Brasileiras de Educação (CBEs), eventos que se mostraram eficazes enquanto importantes
espaços para a emergência de propostas e de aprofundamento dos debates sobre os rumos e os desafios da educação frente ao contexto social e político existente.
Ainda recorrendo a Cunha: "apesar da importância de muitos simpósios e painéis, é possível afirmar com segurança que o produto de maior efeito sociopolítico de todas as Conferências foi
a Carta de Goiânia, aprovada pela plenária de encerramento da IV CBE" (sob o tema "A educação e a constituinte"), realizada em 1986 15. Grande parte dos dispositivos distinguidos na
carta foi incorporada à proposta que o Fórum Nacional da Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito (organizado pelos professores da Universidade de Brasília)
encaminhou ao Congresso Constituinte na forma de emenda constitucional, destacando-se nela as principais e polêmicas posições registradas na Carta de Goiânia: educação escolar como
direito de todos e dever do Estado; gratuita e laica nos estabelecimentos públicos e destinação dos recursos públicos exclusivamente para o ensino público, pontos esses que centralizaram
as discussões e alimentaram os embates entre as forças chamadas de progressistas e as conservadoras.
A luta empreendida pelas duas áreas - saúde e educação - para resgatar e ampliar direitos de cidadania, transparece na Constituição Federal de 1988, promulgada em um momento de
intensas articulações políticas e pressão da sociedade através de movimentos sociais organizados. O campo dos direitos sociais ("a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados" - Artigo 6º)16 assume caráter prioritário, revelando significativo avanço em relação aos textos
constitucionais anteriores.
No caso da saúde ("direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso único e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" - Artigo 196)17 e da educação ("direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" - Artigo 200)18, há uma clara
afinidade no discurso e nas garantias que contemplam ambos os setores, as quais apontam para o caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa e a necessária
participação da comunidade para a reformulação, implantação e desenvolvimento dos dois sistemas. No que se refere à saúde, a Constituição é taxativa ao estabelecer que "as ações e
serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único" (Artigo 198)19, organizado mediante diretrizes de descentralização, atendimento
integral e participação da comunidade. Para a educação (menos contundente, é verdade) rege que "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de
colaboração, seus sistemas de ensino." (Artigo 211)20
Conseqüência, talvez, de maior capacidade de aglutinação de forças em torno de um objetivo em dado momento político ou, ainda, decorrência de um processo de amadurecimento mais
agudo quanto à própria realidade e de uma maior clareza e vontade política de intervir sobre essa mesma realidade, fato é que o movimento no sentido da mudança ocorreu com maior
agilidade e intensidade na saúde. Exemplo disto é a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8080/90)21- essencial para a operacionalização do Sistema Único de Saúde - aprovada pelo Congresso
Nacional já em 1990, enquanto que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (definidora e orientadora do cumprimento das disposições constitucionais nessa área) em 1996,
substancialmente alterada em sua concepção original, teve sua tramitação concluída na esfera parlamentar.
Fleury, ao elencar o que denomina de "características centrais do modo como se organiza o sistema de saúde"22 (conformado em subsistemas muitas vezes independentes), possibilita que
se estabeleça um paralelo que identifica semelhanças entre as duas esferas, compondo um quadro das condições sob as quais os dois sistemas operam:
Uma tal organização tem como conseqüências, entre outras, elevado nível de insatisfação por parte dos usuários, baixo nível de compromisso dos profissionais que atuam no sistema,
inadequação dos serviços oferecidos em relação a demandas prevalentes, baixa resolubilidade e não socialização do saber.
Para a transformação desse panorama comum, a descentralização (enquanto movimento social e político de ruptura) se coloca como estratégia necessária para ambas as áreas. E, na forma
de implementar o processo, destaca-se um importante ponto de concordância: a saúde considera a atenção primária como o instrumento principal de ação, a partir do qual se pretende a
mudança de todo o sistema de saúde; a educação, por sua vez, propugna o acesso universal à educação básica, no sentido de construir uma plataforma de sustentação e de mobilização
para avançar na conquista dos níveis mais complexos de ensino.
Claro, também, que proposição de tamanha abrangência não ocorre de modo consensual ou sem percalços, pois as forças que detêm (e defendem) a manutenção do poder centralizado
opõem vigorosa resistência à instalação de um processo que representa diluição desse poder. Forças que se alinham em um discurso de descentralização de tarefas, onde não se alteram
estruturas, permanecem centralizadas normatizações e recursos financeiros, garante-se a posse e o exercício do poder e cria-se, para a sociedade, a ilusão de propostas transformadoras
que, na realidade, escamoteiam o objetivo de impor e manter. A descentralização deve ser preservada e defendida enquanto deslocamento de poder decisório, representando ela uma
conquista constitucional e um instrumento fundamental para a consecução de mudanças nos sistemas educacional e sanitário.
Por sua vez os avanços tecnológicos que se processam nas sociedades contemporâneas e que promovem a substituição da divisão taylorista de tarefas por atividades integradas, em equipe
ou individualmente (a crescente substituição da produção mecanizada pela tecnificada, numa transição em que a automação, via aplicação da microeletrônica, deflagra novos processos que
repercutem sobre o trabalho humano) exige do trabalhador uma visão global do processo de trabalho em que se encontra inserido, bem como maior capacidade de resolução de problemas.
Esses novos requerimentos do processo produtivo fazem necessário que o trabalhador possua requisitos intelectuais que envolvem o conhecimento sobre a origem, a produção e a mudança
do mundo físico e da vida social, o domínio da linguagem - para organizar e expressar o próprio pensamento e compreender as expressões dos outros - e o domínio de noções de
grandezas, números e quantidades que sirvam de base ao desenvolvimento do raciocínio abstrato, lógico, formal e matemático, tornando-se capaz de construir conhecimento e de interagir
como sujeito crítico na sociedade.
No desafio à formulação de uma política educacional, alguns consensos podem ser destacados: a) a educação, juntamente com a ciência e a tecnologia, emerge na pauta das macropolíticas
do Estado como importante fator para a preparação dos profissionais requeridos pelos novos padrões de desenvolvimento; b) a educação é parte indispensável no elenco de medidas para
tornar as sociedades mais igualitárias, solidárias e integradas; c) a aquisição de conhecimentos básicos e a formação de habilidades cognitivas são condições primordiais para que toda
pessoa consiga, de modo produtivo, conviver com a quantidade e a velocidade das informações, sendo capaz de processar e selecionar as que considerar relevantes e, d) o conhecimento, a
informação e uma visão abrangente dos valores são substratos para o exercício da cidadania em sociedades plurais, cambiantes e cada vez mais complexas, nas quais a hegemonia do
Estado, dos partidos políticos ou de um setor social específico tende a ser substituída por equilíbrios instáveis, que envolvem permanente negociação para o estabelecimento de
consensos.23
Entendemos que um dos caminhos para suplantar o elenco de diferenciadas exigências que se interpõem para o profissional de nível médio da saúde seria a construção de um processo que
integre trabalho e educação, definido este "enquanto um princípio metodológico [a partir do qual] todo o campo educacional poderia ser redesenhado".24 Sob esse enfoque, a formação
politécnica poderia constituir-se em uma das questões educacionais possíveis para impulsionar e articular a reorganização da práxis educacional, procurando definir e estabelecer conceitos
para uma educação politécnica frente à realidade brasileira.
Uma das mediações para que se viabilize a articulação trabalho/educação/saúde poderia residir na constituição e disseminação de instâncias (que poderiam ser denominadas de áreas de
conhecimento ou de núcleos temáticos), as quais se constituiriam em espaços privilegiados para o debate e o aprofundamento de questões pertinentes, no caso, à formação de pessoal de
nível médio para a saúde. Um locus propício à socialização e sistematização de saberes, onde o embate de interesses e de visões diferenciadas poderia resultar na elaboração de propostas
pedagógicas e de conteúdos que configurem um currículo (ou currículos) que contemple a dinâmica do processo de trabalho em saúde. O conhecimento assim acumulado e sistematizado
(conjugando teoria e prática), serviria como argamassa para a sustentação de um real e conseqüente processo educacional na saúde.
O início do processo de industrialização inaugurado no Brasil na década de 50, teve por conseqüência um rápido movimento de urbanização da sociedade e significativo crescimento do setor
terciário. Registra-se que "entre 1950 e 1980 o setor terciário aumenta sua participação de 26,4 para 44% do total das pessoas ocupadas".25
Nesse mesmo período, o incremento da força de trabalho em saúde obedeceu a lógicas diversas, geradas por políticas econômicas e sociais excludentes. Na esfera pública, a unificação do
aparato estatal de seguridade social, mediante a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e, posteriormente, do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência
Social (INAMPS), favoreceu a capitalização da prática médica.26
A serviço de uma política imposta sob um regime de exceção, as décadas de 70 e 80 foram marcadas por significativo crescimento da capacidade instalada do setor hospitalar privado
conveniado com o INAMPS, havendo vigorosa absorção de profissionais pelo mercado, com destaque para as categorias polares de médico e de atendente. A incorporação de atendentes
(categoria vinculada à enfermagem e caracterizada pela baixa escolaridade e falta de qualificação profissional), representa um dos sérios problemas existentes na saúde, pois é esse
contingente que, apesar de seu despreparo, responde, na maioria das vezes, pela assistência direta ao doente. O trato com o doente exige determinadas habilidades técnicas e cognitivas
dificilmente alcançadas em programas de treinamento em serviço, comumente esporádicos e superficiais, ofertados a esse pessoal como tentativa de reduzir os riscos a que ficam expostos
os doentes.
Existe, sem dúvida, uma relação direta entre a qualificação do trabalhador em saúde e a qualidade da assistência prestada ao doente. É possível, por exemplo, relacionar os altos índices de
infecção hospitalar com a falta de preparo do pessoal envolvido no cotidiano da assistência hospitalar, conforme observado por Castro et alii:
O contato com o paciente é realizado na maioria dos hospitais brasileiros por atendentes e outros auxiliares /.../. Empregadas domésticas, apenas alfabetizadas, são freqüentemente
colocadas em posição de considerável responsabilidade, sem qualquer treinamento, o que talvez explique parte da prevalência de doenças iatrogências, como a infecção hospitalar.27
Análises existentes atribuem o aumento da força de trabalho sem qualificação formal ao crescimento do setor hospitalar privado, uma vez que "a lógica do setor privado foi sempre rebaixar
os salários dos profissionais na utilização dos atendentes e o descaso pelos profissionais qualificados de nível médio."28 Contudo, no decorrer da década de 80 e apesar de uma política
direcionada para o fortalecimento do setor público, verificou-se a mesma tendência de privilegiar a incorporação, a essa força de trabalho, de pessoas sem a devida qualificação profissional.
Associam-se a esse fenômeno não apenas a redução de custos mas também a característica da contratação como mecanismo de clientelismo político.
A observação de dados numéricos sobre essa força de trabalho 29 permite melhor visualizar a dimensão e as dificuldades a serem enfrentadas para equacionar (e buscar superar) a
problemática situação desse contingente, no que tange à sua formação profissional. A realidade desenhada em números revela que as iniciativas e esforços que vêm sendo empreendidos
para ampliar a profissionalização e dar legitimidade a esse trabalhador estão muito aquém do que poderia e deveria ser realizado, caso houvesse uma firme vontade e decisão política.
Para facilitar a apreciação, as categorias profissionais de nível técnico e auxiliar30 foram alocadas pelas cinco regiões geográficas em que se divide o país, feito um recorte, no universo dos
trabalhadores, dos possuidores e dos não possuidores de certificação (diploma) e distribuídos os postos de trabalho por tipo de instituição (pública e privada).
O total de técnicos com diploma no período estudado somam 68.965, distribuídos homogeneamente entre as instituições públicas e privadas (Figura 1). Os trabalhadores de nível técnico
sem diploma são em menor número do que aqueles detentores de documento legal, concentrando-se em maior quantidade no setor privado (Figura 2).
As categorias auxiliares, além de representarem um contingente maior que o de técnicos, concentram maior número de pessoas sem a devida formação necessária (e conseqüente
certificado), totalizando 215.192 trabalhadores.
Em relação à categoria de auxiliar, a Figura 3 mostra que o setor público concentra maior participação desses trabalhadores com certificado, se comparado ao setor privado. Já no
contingente de trabalhadores não possuidores de certificado a distribuição é equivalente entre os dois setores de prestação de serviços (Figura 4).
Dentre os trabalhadores de nível auxiliar que não possuem certificado para exercerem a profissão, cumpre destacar a categoria de atendente, vinculada à enfermagem, em virtude da sua
participação no mercado de trabalho ser bastante expressiva, como demonstrado na Figura 5.
A maciça participação dos atendentes na assistência direta ao doente trouxe para a corporação de enfermagem a preocupação em exercer algum controle sobre o ingresso de trabalhadores
sem qualificação profissional em sua força de trabalho. Movimento nesse sentido culminou com a edição da Lei 7.498/8631 (regulamentada pelo Decreto 94.406)32, estabelecendo ser
privativo do enfermeiro, técnico de enfermagem, auxiliar de enfermagem e parteira o exercício de atividades no campo da enfermagem, devendo o profissional, para tanto, estar inscrito no
Conselho Regional de Enfermagem da respectiva região33.
A determinação legal, definindo e delimitando as categorias profissionais da enfermagem, teve como uma de suas principais razões motivadoras obrigar à formação/qualificação do
atendente, tornando reconhecido e legitimado o seu trabalho e reduzindo os riscos para o doente.
No que tange à distribuição da força de trabalho de nível médio em saúde por regiões geográficas, a maior parcela concentra-se na Região Sudeste, em especial os técnicos e auxiliares que
possuem certificação.
Nas outras Regiões, os trabalhadores de nível técnico que não possuem certificado encontram-se mais concentrados nas instituições públicas, se comparadas com as entidades privadas.
Por outro lado, a maior participação dessas mesmas categorias, na Região Sudeste (Figuras 6 e 7), ocorre nas instituições de caráter privado.
Se considerado o tipo de vínculo institucional (público ou privado), não são encontradas diferenças significativas quanto ao quantitativo das categorias auxiliares que possuem certificado,
mantendo-se o padrão de maior concentração na Região Sudeste, se cotejada esta com o somatório das outras Regiões do país (Figura 8).
É digno de nota observar a existência de expressiva participação de profissionais auxiliares, sem certificado, em instituições públicas nas demais Regiões do país, enquanto que na Região
Sudeste são as instituições privadas que possuem maior percentual dessas categorias nessa situação. (Figura 9)
A intenção, aqui, é a de demonstrar, em termos macro, a gravidade dos problemas existentes na força de trabalho de nível médio em saúde no país. O presente artigo não visa a feitura de
análises localizadas dessa problemática, mas reconhecemos e temos plena consciência da importância e necessidade de tal tipo de diagnóstico, com o objetivo de melhor definir e
implementar políticas de formação/qualificação desse contingente profissional. Para tanto, seria preciso levar em conta uma série de variáveis para buscar explicar o fenômeno com rigor e
acuidade, como por exemplo, a distribuição das instituições de saúde (públicas e privadas) por Estado e Região, correlacionando-as com dados sobre densidade populacional, doenças
prevalentes, capacidade e habilitações de saúde ofertadas pelas redes de ensino. Seria meritório, também, investigar a evolução histórica dessa força de trabalho sob as diversas políticas
públicas de saúde.
A incorporação de tecnologias, por sua vez, tem introduzido algumas modificações na composição dessa força. A relação entre tecnologia e processo de trabalho em saúde não ocorre como
em outros ramos de atividade, nos quais é comum associar incorporação de tecnologia com liberação de força de trabalho. Na saúde, porém, podem ser identificadas duas resultantes do
progresso técnico: nos meios diagnósticos e terapêuticos e nos atos cirúrgicos e no atendimento ambulatorial.
No primeiro caso, o que se observa é que o progresso técnico tem atuado no sentido convencional de economizar força de trabalho. Por exemplo: nos laboratórios de análises clínicas, a
utilização de processos computadorizados permite a leitura, a classificação e a análise das amostras de sangue, reduzindo os postos de trabalho de laboratoristas. Situação análoga vem
ocorrendo no setor de imagem, onde modernos equipamentos de raios-x têm suprimido mão-de-obra, tanto na operação do equipamento como na revelação do filme.
No trabalho desenvolvido pelo médico, seja no ato cirúrgico, seja no ambulatório, não se repete o mesmo fenômeno: os novos equipamentos utilizados para tornar mais precisos certos
diagnósticos (caso de tomógrafos computadorizados) não excluem o médico e ainda obrigam o surgimento de um novo tipo de profissional para operar esses equipamentos.34
A análise da força de trabalho de nível médio em saúde, assim como a do processo de trabalho em saúde que incorpora e utiliza cada vez mais novas tecnologias, repercute na conformação
e nas exigências da formação do pessoal de nível médio, o que remete ao questionamento sobre a validade e pertinência das atuais habilitações dispostas para o setor.
Ainda hoje, no Brasil, o campo da formação profissional é pródigo em iniciativas e intenções. A história da educação brasileira revela que tais iniciativas e intenções apenas demonstram (ou
são resultado) a carência de mecanismos que estabeleçam uma consistente política educacional na esfera da profissionalização. Tradicionalmente, o sistema de ensino conserva e preserva,
de modo tenaz e como princípio incorporado, a dicotomia entre a chamada educação geral e a específica, entre pensar e fazer, entre parte comum e diversificada, mantendo-se a tendência
de um ensino que alimenta a divisão social do conhecimento e que vem subsidiando "políticas" que, sistematicamente, privilegiam as classes economicamente mais favorecidas.
A falta de um posicionamento mais claro em relação ao nível de escolaridade em que se processa a profissionalização (o segundo grau), tem sido preocupação de diversos pensadores.
Saviani, por exemplo, explicita que:
O segundo grau tem ficado espremido entre o primeiro e o terceiro. E parece-me que há um movimento pendular nas discussões sobre esse grau de ensino: ora ele é concebido como
ensino propedêutico, preparatório ao ensino superior, o que supõe uma continuidade e, nesse sentido, o segundo grau aproxima-se do modelo do primeiro grau; ora é pensado como ensino
profissionalizante, recebendo uma função terminal, o que o aproxima do ensino superior, ao qual caberia a formação profissional. Nos dois casos, o que fica patente é uma falta de clareza
sobre o papel do segundo grau. Esse é o nó que precisa ser desfeito.35
Apesar da preocupação em superar esse dilema vir se manifestando de modo insistente no discurso educacional brasileiro (especialmente nos últimos anos, quando se retoma o debate
sobre a politecnia)36, verdade é que persiste a distância entre o que se propõe e o que efetivamente se realiza no cotidiano da escola, que possui a marca da contradição entre o discurso e
a prática, como se fossem esferas excludentes e não partes fundamentais e integrantes de um mesmo e comum processo. Desse modo, "os vínculos existentes entre o conhecimento que se
produz no embate teoria-prática - e que portanto tem o concreto como suporte às construções teóricas - e a orientação que se pode imprimir à experiência pelo confronto prática- teoria - e
que, por conseguinte, tem um lastro teórico que subsidia a ação concreta", tornam-se importantes fatores para se trabalhar a definição de um projeto educacional que não tenha por base o
saber fragmentado.37
O presente artigo não intenciona proceder à análise de inúmeras iniciativas e diferenciadas propostas educacionais ocorridas ao longo do tempo e que possuem em comum a expectativa de
um reordenamento do ensino de segundo grau. Porém é pertinente mencionar que as ações empreendidas com esse sentido não lograram impedir (ou romper) o "movimento pendular"
característico desse nível de escolaridade. Movimento que reflete um modelo de sociedade que se produz e reproduz calcado na desigualdade e na exclusão e que, de modo direto ou
subjetivo, cultiva a permanência da relação entre dominados e dominantes.
No que tange à formação de pessoal para atuar na área da saúde, a situação se configura bastante contundente e especialmente preocupante, mormente se pensadas as peculiaridades e
especificidades que caracterizam a complexa natureza do trabalho em saúde. A luta pela preservação e manutenção da existência humana, sob o permanente convívio e confronto com o
risco da morte,
exige conhecimento específico, disciplina, responsabilidade, atenção e acima de tudo grande capacidade de conviver com o stress, o sofrimento, a dor, a vontade de resolver problemas
alheios /.../ o que impõe, diferentemente de outros ramos da economia, um significativo envolvimento emocional e ético com a pessoa que busca assistência médica.38
Apesar da adoção de novas e diferentes medidas para melhoria do atendimento à população (incluindo maior participação de outras categorias profissionais na assistência, como
enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, reduzindo a polaridade entre as categorias do médico e do atendente), o problema da formação do contingente de nível médio
prossegue, ainda, como um óbice a ser superado. O fato mais se agrava na medida em que os avanços tecnológicos - que vêm promovendo profundas alterações na própria natureza do
trabalho - têm ocorrido de modo cada vez mais acelerado fazendo com que, nos países subdesenvolvidos, se estabeleça um hiato entre o que se desenvolve de mais moderno em termos de
tecnologias aplicadas à saúde e à realidade social e sanitária de grande parcela da população, que sobrevive em condições de carências extremas.
Essa contrastante convivência entre o "moderno" e o "arcaico" gera sérias contradições e complexos desafios para o estabelecimento de uma política de pessoal para o setor, pois tem-se a
urgência de traçar estratégias que, simultaneamente, permitam capacitar/atualizar a força de trabalho que responde pelas atividades de rotina normalmente demandadas pela prestação de
serviços (assistência), formar pessoas com domínio técnico para operar as crescentes inovações tecnológicas, dando conta, ainda, das novas categorias profissionais emergidas da
complexificação do sistema ocupacional. Isto porque as implicações das novas tecnologias sobre o mercado de trabalho são também qualitativas: elas criam uma nova maneira de produzir e
fazem com que certas profissões se tornem obsoletas e surjam novos profissionais, com exigências de formação distintas das atuais.
Nessa conjuntura (e buscando desfazer o "movimento pendular" a que se refere Saviani),39 o profissional de nível médio da saúde deveria comportar um perfil diferente do atual que, em
linhas gerais, conjugaria:
Posse de escolaridade básica, capacidade de adaptação a novas situações, compreensão global de um conjunto de tarefas e suas funções conexas, o que demanda capacidade de
abstração e de seleção, trato e interpretações de informações.40
Some-se a esse conjunto conhecimento e capacidade para pensar e agir politicamente, objetivando uma sociedade transformada.
O movimento no sentido de uma formação do pessoal de nível médio para a saúde, diferente da atual, deve estimular esforços para reduzir a histórica distância que existe entre os setores
da educação e da saúde, buscando-se estreita e conseqüente articulação entre o setor que forma (representado pelo Ministério da Educação e Secretarias Estaduais e Municipais de
Educação) e o setor prestador de serviços de saúde (representado pelo Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde).
A articulação das duas esferas, interagindo vinculadas sob o propósito claro, definido em comum, de estabelecer quais habilitações devam ter a oferta priorizada (tendo em vista prognósticos
de necessidades futuras e condições de absorção de pessoal pela rede de saúde), representa a possibilidade de interromper uma cadeia que situa a educação e a saúde como esferas
excludentes entre si. O desafio, pois, que se coloca, é o da capacidade de se estruturarem propostas e estratégias compartilhadas por esses dois campos, ambos tendo como objeto a
amplitude da trajetória e do devir humano.
Em uma sociedade estratificada e hierarquizada como a nossa, a aplicabilidade tanto do conceito de saúde expresso pela 8ª Conferência Nacional de Saúde como da noção de saúde como
direito advindo de conquista social, esbarram em sérias limitações e obstáculos. Especialmente se considerado que as desigualdades regionais existentes refletem condições estruturais
limitantes ao pleno desenvolvimento de uma organização de serviços socialmente adequados, e compatíveis com o perfil epidemiológico da população.
A formação de pessoal de nível médio da saúde deve, pois, fundamentar-se em uma visão crítica do contexto social, não dissociando o domínio da técnica do pensar e do agir político. O
propósito de pensar um novo direcionamento nos meios e modos de formar esse pessoal implica o cometimento de ações que aliem, de modo solidário, educação e saúde, na construção de
um processo que permita ao indivíduo conjugar, em sua formação, competência técnica, clareza e vontade política e compromisso social.
Nesse entendimento, cabe à educação posição de destaque, pois ela é um permanente expressar de cultura, uma contínua construção de conhecimentos, um constante criar de hábitos. Em
virtude de suas múltiplas interfaces, que lhe conferem um caráter diversificado e dinâmico, a educação não pode ser reduzida a uma expressão de cunho meramente instrumental. Suas
fortes e profundas inter-relações com o conjunto das práticas sociais obrigam a que as atividades de ensino contenham características precursoras, possibilitando ao educando a posse e o
exercício da visão de conjunto, do entorno social no qual se insere e, a quem educa, a capacidade e a responsabilidade para apreender as múltiplas dimensões e contradições que envolvem
a formação do indivíduo.
O papel da educação na formação de pessoal de nível médio para a saúde, compreendidas e apreendidas as especificidades do setor, é de especial importância no momento atual, quando
a permanência e o êxito do Sistema Único de Saúde dependem, fundamentalmente, da adesão e participação de profissionais com características e conhecimentos diferentes dos que hoje
compõem a força de trabalho dessa área.
Os problemas que envolvem os dois setores - educação e saúde - possuem raízes estruturais comuns e, ainda que operem com lógicas diferentes, visam ambos, em síntese, à constante
melhoria da qualidade do viver humano. É preciso ter presente, sempre, que apesar de periódicas tentativas no sentido de desacreditá-los (seja mediante imposições legais, restringindo ou
fragmentando suas ações, seja pela redução drástica na destinação de recursos financeiros), ambos vêm-se constituindo, historicamente, em áreas de resistência e de defesa de questões
que afetam direitos individuais e garantias de cidadania a que o Estado se obriga a prover.
Pensar saúde e educação, no Brasil, significa refletir sobre a evolução histórica de uma sociedade desigual. Não comporta mais pensar os dois setores como partes isoladas de um todo ou
de uma maneira abstrata, desvinculando-os de um contexto econômico, político e social que integram e do qual são resultantes. Questões que afetam as duas áreas podem e devem ser
compartilhadas, buscando-se, para tanto, mecanismos que proporcionem a construção de uma relação mais estreita, eficiente e eficaz entre ambas, na perspectiva de uma sociedade mais
justa, fraterna e solidária.
NOTAS
1 Artigo elaborado a partir do conteúdo do Capítulo 2 da tese de doutorado intitulada "Educação politécnica na saúde: um desafio na construção do possível", apresentada pelo autor à
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2 FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1995. p. 62.
3 CORDEIRO, Hésio. O conceito de necessidade de saúde e as políticas sanitárias. In: AMÂNCIO FILHO, Antenor; MOREIRA, M. Cecília, G. Barbosa (org.). Saúde, trabalho e formação
profissional. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1997. p. 27- 28.
4 GIOVANELLA, L. FLEURY, Sônia. Universalidade da atenção à saúde: acesso como categoria de análise. In: EIBENSCHUTZ, Catalina (org.). Política de Saúde: o público e o privado. Rio
de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1996. p. 179-180.
5 CORDEIRO, Hésio. op.cit.,
6 FLEURY, Sônia M. Descentralização dos serviços de saúde: dimensões analíticas. Brasília: Universidade de Brasília. l992. p. 27, 37. Cadernos da IX Conferência Nacional de Saúde.
7 Sobre o processo desenvolvido no setor saúde, a partir da década de 70, que deu origem e consolidou esse movimento, consultar, entre outros, a Revista Espaço Para a Saúde, Ano 1,
Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva. Curitiba, mar. 1989; TEIXEIRA, S.M. Fleury (coor.). Antecedentes da Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: Fiocruz/Escola Nacional de Saúde Pública,
1988. Textos de Apoio.: GERSCHMAN, Silvia. A democracia inconclusa: um estudo da reforma sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1995; ESCOREL, Sarah. Reforma Sanitária:
um processo de reforma democrática do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Fiocruz/ Escola Nacional de Saúde Pública, 1992. Monografia de mestrado. (mimeo.).
8 GIOVANELLA, L. FLEURY, Sônia. op. cit.
9 BRASIL. Constituição, 1988. República Federativa do Brasil. Brasília: Congresso Nacional. 1988.
10 RODRIGUES NETO, E. Os caminhos do Sistema Único de Saúde no Brasil: algumas considerações e propostas. Brasília: NESP/FS/UnB/CSP., l990. p. 43. (mimeo).
11 Ver "A questão dos Recursos Humanos nas Conferências Nacionais de Saúde (1941-1992). Cadernos RH Saúde, Ano 1, v.1, nº 1. Brasília, Ministério da Saúde, 1993, que retrata meio
século de um movimento constante de lutas, de avanços e recuos, de conquistas e de perdas, de divergências e de consensos para que os recursos humanos em saúde sejam assumidos e
reconhecidos como a "pedra angular" do sistema de saúde.
12 SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. São Paulo: Cortez, 1988. p. 33-34.
13 CUNHA, Luiz Antônio. Educação, Estado e democracia no Brasil. São Paulo: Cortez, 1995. p. 92-93, 96.
14 Id. ibid.
15 Id. ibid.
16 BRASIL. op. cit. Art. 6.
17 Id. ibid. Art. 196.
18 Id. ibid. Art. 200.
19 Id. ibid. Art. 198.
20 Id. ibid. Art. 211.
21 BRASIL Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços
correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União [da República Federativa do Brasil], Brasília, de 19 set., 1990. p. 18055. col. 1.
22 FLEURY, Sônia M. op. cit.
23 MELLO, G.N. Políticas públicas de educação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 12, l991. p. 30.
24 RODRIGUES, José dos Santos. A educação politécnica no Brasil: concepção em construção (1984-1992). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1993. Dissertação de Mestrado. p.
28.
25 MÉDICI, André Cezar. A força de trabalho em saúde no Brasil nos anos 70: percalços e tendências. Rio de Janeiro: ENSP/ABRASCO, 1987. Textos de Apoio. Planejamento I: Recursos
humanos em saúde. p. 41-45.
26 A esse respeito, ver CORDEIRO, Hésio A Empresas médicas. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
27 CASTRO, C. M. et. alii. A mão invisível nos serviços de saúde: será que ela cura? Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v.1, n. 4, 1985. p. 40.
28 MÉDICI, André Cezar. op. cit.
29 A análise aqui apresentada teve como base informações provenientes da Pesquisa Assistência Médico Sanitária no Brasil, obtidas junto ao Núcleo de Estudos de Recursos Humanos em
Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. A Pesquisa de Assistência Médico Sanitária - AMS é desenvolvida pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(FIBGE) desde 1975. É um levantamento anual que investiga todos os estabelecimentos de saúde do país, excetuando-se os consultórios particulares. Em 1993 a AMS coletou informações
de cerca de cinqüenta mil estabelecimentos de saúde públicos e privados, com e sem internação, que estiveram em atividade durante o ano de 1992.
30 Técnico de Enfermagem, Técnico de Laboratório, Técnico de Higiene Dental (THD), Técnico em Reabilitação, Técnico em Radiologia, Técnico em Hematologia, Técnico de Manutenção
de Equipamentos Hospitalares e Outros (não classificado/não informado) e Auxiliar de Enfermagem, Auxiliar de Laboratório, Auxiliar de Consultório Dentário (ACD), Auxiliar em Reabilitação,
Atendente, Parteira, Outros (não classificado/não informado).
31 BRASIL. Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem e dá outras providências. Diário Oficial da União [da República Federativa do
Brasil], Brasília, 26 jun., 1986 p. 9273. col 3.
32 Id. Decreto 94.406, de 08 de junho de 1987. Regulamenta a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o exercício da enfermagem e dá outras providências. Diário Oficial da
União [da República Federativa do Brasil], Brasília, 09 jun., 1987. p. 8853. col. 1.
33 Sobre o processo de profissionalização da Enfermagem ver ALMEIDA, J.L.T. de. A Qualificação do Atendente no Processo de Profissionalização da Enfermagem. Rio de Janeiro: UERJ/
Instituto de Medicina Social, 1993. Série Estudos em Saúde Coletiva.
34 MÉDICI, André Cezar. Saúde e crise da modernidade: caminhos, fronteiras e horizontes. Saúde e sociedade, São Paulo, v.1, n. 2, 1992. p. 72.
35 SAVIANI, Dermeval. O nó do ensino de segundo grau. Revista Bimestre. Brasília, out. 1986. p. 23.
36 Sobre o assunto, ver RODRIGUES, J. dos Santos. A educação politécnica no Brasil: concepção em construção. Niterói: UFF/ Fac. de Educação., 1993. Dissertação de mestrado.
37 BURNHAM, T. Fres. Vazio de significado político-epistemológico na escola pública. In: CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO., 6. Anais... São Paulo, 1991. p. (mimeo.)
38 MACHADO, Maria Helena. Trabalhadores da saúde: um bem público. Saúde em Debate, Londrina, nº 48, set. 1995. p. 54.
39 SAVIANI, Dermeval. op. cit.,
40 MACHADO, Lucília R. S. Mudanças tecnológicas e a educação da classe trabalhadora. In: CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. 6. Anais... São Paulo, l991. p. 14. (mimeo.)
ico e cruel, Klaus Barbie sentia prazer em executar as ordens de seus superiores facínoras
e sua chegada a Lyon, no fim de 1942, e sua fuga precipitada diante dos exércitos aliados no verão de 1944, foi ele o
dor. Vinte meses de batidas, de perseguições, de armadilhas. O prazer de perceber a angústia em lábios que tremem,
oelhos vacilantes. Pois ele, o Obersturmführer das SS, número 272284, espécime eminente da raça dos senhores, não
a Deus nem o diabo. Fanfarrão, era visto percorrendo com freqüência as ruas de Lyon acompanhado de três ou quatro
ens, não mais.
a época, ainda não era chamado de o carrasco de Lyon - um achado do pós-guerra. Mas o Obersturmführer Klaus
ie já tinha um considerável currículo como caçador. Clandestinos ligados a redes de resistência francesas ou
nicas, maquis, judeus - inclusive crianças, como em Izieu. Centenas de deportações raciais ou não, assassinatos,
ras, execuções. E o fino do fino, a captura dos chefes da Resistência - entre eles Jean Moulin, reunidos para designar
vo chefe do exército secreto - em Caluire, no dia 21 de junho de 1943.
al, sádico, desprovido de escrúpulos: assim era Klaus Barbie. Um puro produto do fanatismo ideológico nazista, com
desfile de racismo, de desprezo pelos seres inferiores.
protegem o nazista
ada de Barbie em Lyon foi agradável. Depois da derrota do III Reich começam os dias penosos em que o caçador se
aça, e o oficial das SS passa a se esquivar. Promovido a Hauptsturmführer (capitão) em novembro, o ex-chefe do Amt
o KdS de Lyon retornou a uma Alemanha que, sob as bombas dos aliados, não pára de se encolher.
ie figura como criminoso de guerra no Central Registry of Wanted War Criminals and Security Suspects, o Crowcass,
rquivo organizado pelos aliados. Na lista dos agentes alemães que atuaram na França, criada pela polícia do exército
ês, ele aparece com o nome de "Barbier".
é preciso ter cuidado, pois uma guerra pode esconder outra, e a Segunda Guerra Mundial dá lugar à Guerra-Fria. Em
de 1947, Barbie é recrutado em Munique por uma unidade especial do Counter Intelligence Corps americano. Os
ivos do CIC não eram a perseguição de criminosos de guerra, atributo de outro ramo da organização, mas a luta
a a espionagem soviética na zona de ocupação americana, a infiltração no KPD, o partido comunista alemão, e a
nção de informações sobre o aliado francês - alvo de desconfianças.
o ex-chefe do Amt de Lyon relatado a seus superiores americanos o martírio de Jean Moulin, o representante pessoal
eneral de Gaulle na França ocupada, e de seus camaradas de Caluire? É pouco provável. Mas por que não mencionar
perações que efetuou em maio de 1944? Com as informações de um agente duplo, o franco-alemão Lucian Wilhelm
responsável pelo aparelho clandestino da Internacional Comunista e simultaneamente informante da Gestapo de
asburgo, Barbie desarticulou o estado-maior da resistência militar comunista da zona sul da cidade em apenas três
a de 40 dirigentes, dezenas de franco-atiradores e de combatentes caíram na armadilha nazista apenas um mês antes
esembarque na Normandia: um exemplo eloqüente de eficiência, apropriado para ser exposto a seus interlocutores - e
patrões - americanos.
na Bolívia
omeço de 1951, depois de cinco anos de bons e leais serviços, Klaus Barbie e sua família seguem a linha dos ratos,
sucessão de etapas que conduz antigos nazistas para a América do Sul. É na Bolívia que ele se instala, um país de 3
ões de habitantes, onde os imigrantes alemães são tradicionalmente numerosos. Naturalizado boliviano em outubro de
, sob o falso sobrenome de Altmann, começa a engordar seu patrimônio. Acolhe com fleuma a visita oficial do general
aulle em setembro de 1963. Por que deveria inquietar-se, já que o presidente francês, em seus projetos de
roximação com a Alemanha Federal, já libertou seus dois ex-chefes, os generais Oberg e Knochen? Dois meses mais
, o exército francês, tendo localizado Barbie em La Paz, solicita que o Sdece, os serviços especiais franceses, se
em do caso, mas o pedido não dá resultados.
1966, o ex-agente das SS número 272284 começa a lidar com armamento naval. Com o apoio do general-presidente
entos, ele cria a Transmaritima Boliviana, uma sociedade da qual possui 49% das ações (os 51% restantes pertencem
stado).
complicação surge dois anos mais tarde: informado da presença de Barbie pelo cônsul da França em La Paz, o
aixador e o ex-chefe da Resistência do maquis de Glières, Joseph Lambroschini, reconhece sua impotência.
ociando com as autoridades bolivianas para obter a libertação de Régis Debray, condenado a 30 anos de prisão, os
matas franceses não estão em condições de exigir a extradição de Barbie simultaneamente. Libertado, Debray volta a
em 1970. No ano seguinte, o ex-oficial nazista recolhe contribuições na região de Cochabamba, onde tem vários
cios.
rrasco de Lyon trabalha para o general Hugo Banzer, um militar de extrema direita decidido a derrubar o governo de
erda do general Torres. A missão foi cumprida em junho de 1971. Como recompensa pelos bons e leais serviços, os
os de Banzer nomeiam Barbie tenente-coronel honorário dos serviços secretos. Onipresente, o ex-oficial das SS
ém serve de intermediário com a Alemanha para a compra de armas.
e e Serge Klarsfeld, os caçadores de nazistas seguem seu rastro. Em janeiro de 1972, Beate vai ao Peru, onde Barbie
a férias, e depois chega à Bolívia. Sua iniciativa permite tornar público o caso. No dia 1.o de fevereiro, a França pede
radição. Evidentemente, La Paz não se empenha em agir rapidamente.
s Debray reaparece a esta altura dos acontecimentos. Ele se tornara conselheiro do presidente socialista chileno
ador Allende, e toma a iniciativa de entrar em contato com Klarsfeld durante uma visita a Paris. Um projeto ambicioso
e do encontro dos dois, num café de Saint-Germain-des-Prés: oficiais ligados à oposição de esquerda ao regime de
er e guerrilheiros bolivianos raptariam Barbie, que seria levado ao Chile, de onde seguiria por barco à França.
giado político no Chile, Gustavo Sánchez, ex-chefe da polícia de Cochabamba, também de passagem pela França, se
ao complô que apóia o ex-presidente Torres, agora refugiado no Uruguai, onde será assassinado pouco tempo depois
o passaporte de um amigo, Serge Klarsfeld vai ao Chile no fim de dezembro de 1972. Leva 5 mil dólares para
prar um carro destinado a levar Klaus Barbie clandestinamente. Klarsfeld e Debray vão até a fronteira, onde encontram
hez e outros bolivianos, entre eles dois oficiais.
meses seguintes, dois acontecimentos inesperados mudam infelizmente o quadro. Primeiro, um acidente com o carro
prado graças aos 5 mil dólares de Klarsfeld; em seguida, a prisão momentânea de Barbie, em 2 de março de 1973, por
a de dívidas não pagas e do exame do pedido de extradição feito pela França. Conforme o previsto, no dia 5 de julho
te suprema da Bolívia recusa o pedido de extradição: Herr Altmann não pode ser extraditado para a França, pois não
enhum tratado neste sentido entre os dois países. Mas Barbie só sai de sua cela na prisão de San Pedro no dia 25 de
bro, um mês e meio depois do golpe contra Allende no Chile, o que torna impossível a realização do plano de Debray e
Klarsfeld.
ão perpétua
o desfecho da história foi apenas adiado. O casal de caçadores de nazistas logo consegue infiltrar uma amiga alemã -
identidade se recusam até hoje a revelar - nos círculos freqüentados por Barbie. Sempre protegido pelas autoridades
anas, Barbie esconde cada vez menos seu passado nazista. Mas em julho de 1978, seu amigo, o general Banzer,
ncia e foge. Golpes de Estado (o ex-SS desempenha, às vezes, papel importante, como em julho de 1980), demissões
das, manifestações. No começo de 1982, os EUA, cansados das ditaduras militares latino-americanas, impõem o
no ao poder do democrata Hernán Siles Zuazo, cujo secretário de Estado da Informação, e logo chefe da polícia do
cito, é Gustavo Sánchez, velho cúmplice de Debray e dos Klarsfeld. Debray se tornou conselheiro do presidente
rrand.
o apoio dos Klarsfeld, o ex-companheiro do Che exuma o dossiê de Barbie. Tudo se acelera. Privado de sua
onalidade boliviana por causa de falsas declarações de identidade quando de sua entrada no país, o carrasco de Lyon
so. É necessário entregá-lo à França, onde cometeu uma boa parte de seus crimes? Ou à Alemanha, seu país de
m, que o reclama para julgá-lo?
ois de hesitações e ofertas comerciais e econômicas, Sánchez e os bolivianos escolhem a França. No dia 4 de
eiro de 1983, às 21 horas, oficialmente extraditado para o único país que aceita acolhê-lo, Barbie deixa algemado a
o de San Pedro. No aeroporto, aviadores franceses e agentes da DGSE se ocupam dele. No dia seguinte, às 22h25,
amburão leva o carrasco de Lyon para a prisão de Montluc, lugar de suas sinistras façanhas, 40 anos antes. Na sexta-
dia 3 de julho de 1987, Klaus Barbie é condenado pelo tribunal de Lyon à prisão perpétua por crimes contra a
anidade. Em 1991, no dia 25 de setembro, o ex-oficial nazista morre na prisão, vítima de câncer.
PEDRO PAULO ROCHA
A Saga do Insensato
ia de que a insanidade era rara entre os povos primitivos e que tende a aumentar na proporção em qu
esso civilizatório se desenvolve, apareceu inicialmente no século XIX. Importantes psiquiatras daquela
nderam a idéia de que há uma relação íntima entre civilização e saúde mental. A noção do "bom selva
osta por Rousseau, filósofo francês do século XVIII, era pre-dominante.
turalista alemão, Alexander von Humbold, em sua viagem pelo interior América, se surpreendeu com
ncia de doentes mentais entre os selvagens. Um médico, responsável pelas reservas dos Cherokees, r
entre os 20 mil índios, nunca havia visto ou mesmo ouvido casos de insanidade. O capitão Wilkes, com
xpedição Exploratória Americana, também relatou que, durante a sua viagem pelos mares do sul, não
ntrou nenhum caso de loucura entre os povos daquela região.
udo, curiosamente, os autores, não fizeram qualquer referência às suas limitações lingüísticas e à dific
ntender os valores e costumes dos po-vos estudados. Os pesquisadores deste período não dominavam
pacientes e ainda menos seus valores culturais. Assim, se manifestavam a respei-to dos comportamen
eis, externos, dos povos observados, sem ouvi-los e conhecer seus sofrimentos subjetivos. Além disto,
ondições precárias de atendimento psiquiátrico, apenas os casos mais graves, predominantemente de
ssividade, recebiam atenção.
nte o curso do século XIX, simultaneamente com o colonialismo, os co-lonizadores começaram a desc
ças mentais que atingiam povos primiti-vos, como Amok, entre os nativos de Java; Koro, entre os chin
ath, na Si-beria; Piblokto entre os esquimós, etc. Nesta época surgiu também o interesse do alguns psi
peus em demonstrar que doenças clássicas conhecidas, como a esquizofrenia, eram universais e não a
adas, geograficamente, à Europa. O grande psiquiatra alemão Emil Kraepelin foi um dos primeiros a fa
tidas viagens ao Oriente e a examinar pacientes mentais entre os povos primi-tivos, inclusive na ilha d
decorrência, a idéia de ausência de doenças mentais entre os povos primitivos não se sustentou.
ato, os distúrbios mentais acompanham o homem desde os seus pri-mórdios. Histórias antigas relatam
lsos homicidas do rei Saul, ou a insen-satez de Nabucodonosor, que "comia grama como os bois e dei
va-lho das nuvens molhasse o seu corpo até que crescesse o cabelo como as pe-nas da águia e suas un
o as garras dos pássaros". Arqueólogos encontra-ram crânios trepanados, em locais tão dispersos com
ilo, no Egito, e as sepulturas dos Incas, no Peru, que denotam a tentativa das antigas civilizações de d
ebro humano. No entretanto, só há relativamente pouco tempo a humanidade começou a se libertar d
da carga de superstições e pre-conceitos.
orte, em muitos povos e durante séculos, foi a solução natural. A elimi-nação dos incapacitados era um
mônia mística, que obedecia a um ritual, na antiga Grécia. As mães espartanas lançavam seus filhos in
oentes num abismo sagrado, onde os Deuses os acolheriam. Entre os indígenas era habitual a mãe afo
s deficientes no rio mais próximos à aldeia. Entre os esqui-mós, os deficientes e os anciãos eram aban
planícies geladas, para servir de alimento aos lobos ou aos ursos polares.
a de quatro séculos antes de Cristo, o médico grego Hipócritas, (460 a 370 AC), considerado o pai da m
urou livrar o estudo as doenças mentais do posicionamento místico e filosófico, colocando-o no contex
nças em geral. No terceiro século depois de Cristo, Galen, um grego, também responsabilizou o cérebr
rência de distúrbios psíquicos. Foram porém tentativas isoladas, pois a conceituação da doença menta
forma de possessão, perdurou por muitos séculos.
monologia considerava que Satanás podia se apoderar do corpo de uma pessoa e exercer sobre ela to
role. Com a hegemonia do catolicismo, na Europa, a possessão passou a ser interpretada como uma o
a e a Deus. A teologia reconhecia dois tipos de possessão. No primeiro tipo, a supos-ta vítima era poss
ra a sua vontade, como um castigo divino pelos peca-dos cometidos. No outro, a pessoa teria feito um
ntário com o diabo. Es-ses eram os bruxos. Além do diabo, que também era denominado Satã, Lúcifer
o, como Príncipe das Trevas ou simplesmente demônio, os cristãos me-dievais acreditavam haver gran
ero de maus espíritos, que auxiliavam o Di-abo, em sua obra do mal.
1484 o Papa Innocêncio VIII redigiu uma bula papal, na qual advertia o clero, exigindo "que não se deix
a sobre pedra, na caça aos bruxos". O livro Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), escrito por do
ges domini-canos, em 1486, por determinação daquele Papa, e reimpresso 14 vezes, apre-sentava det
rição dos processos para se reconhecer os feitiços. Muitas das características descritas são as mesmas
mas de inúmeras doenças mentais, hoje conhecidas e catalogadas. Os infelizes, assim identificados, e
rados até a morte, disto não escapando nem crianças ou anciões. "Entre 1450 e 1750, mais de 100 m
oas, a maioria mulheres, foram julgadas por tribu-nais eclesiásticos, em diferentes partes da Europa, p
sta prática de ma-gia maléfica e adoração do Diabo". Milhares de desgraçados, pereceram sob as mai
ras, em nome de Deus e da Religião.
gamento era consequência de uma acusação formal. Caso houvesse alguma dúvida, o tribunal apelari
que fornecesse alguma prova. O modo mais comum era o ordálio, ao qual o acusado tinha que se sub
provar sua inocência. Consistia em testes, como carregar um ferro em brasa, a certa distância e, se n
ado, ter miraculosamente curada a carne quei-mada, ou ainda ser jogado em um reservatório de água
iderado inocente somente se afundasse. A alternativa era a desumana tortura, descrita em muitos doc
poca.
ais famoso crítico da caça às bruxas, foi Weyer, médico do humanista duque de Cleves. Nos seus livros
ou mostrar que as mulheres ignorantes que confessavam a prática de bruxaria tinham delírios. Usando
ecimen-tos médicos, alegava que o suposto malefícia das bruxas podiam ser explicados por causas na
cas e que, na verdade, eram doentes mentais. Por lhe faltar uma teoria filosófica e teológica abrangen
oderes do Diabo, os tratados de Weyer foram incapazes de resistir aos ataques que lhe foram atirados
ção foi rejeitada pelo poder eclesiástico que preferia acreditar que a bru-xaria era real e que as bruxas
riam ser duramente julgadas e castigadas, para a salvação de suas almas.
ocasião do século XVII a caça às bruxas se estendeu também às colô-nias do Novo Mundo. Salém, em
achussets, tornou-se o famigerado centro de perseguição. Centenas de pessoas foram presas, 19 enfo
esmaga-da até a morte. Deutch (1949) transcreve as declarações de uma empregada de uma família
on, prestadas no processo aberto contra ela, em 1688, "por ter enfeitiçado os filhos do seu patrão".
ndo lhe foi perguntado pelos Juizes, se alguém a havia ajudado, ela respondeu que isto era certo, mas
lhou no ar, como se estivesse a-lheia a tudo, e acrescentou que agora ele foi embora" (pg. 34).
entemente a mulher sofria de alucinações. Um comportamento como esse, que vem a ser um sintoma
izofrenia, no século XVII foi conside-rado como prova definitiva de possessão demoníaca.
nte a Renascença, a idéia de que os doentes mentais fossem possuí-dos pelos demônios, começou a s
donada. Johan Weyer foi o primeiro mé-dico a se interessar pelos distúrbios mentais, sendo considera
ns como o fundador da psiquiatria. O primeiro livro abordando problemas mentais, "A Ana-tomia da Me
ublicado em 1621. Thomaz Willis, um grande anatomista da época, pregava como receita de recupera
as condenadas" a tera-pia da intimidação e espancamentos. "Por esse método a mente reprimida é pe
rder a turbulência, tornando-se meiga e pacífica". Benjamin Rush, um médico que trabalhou nos EUA,
éculo XVIII, defendia a idéia de que o distúrbio mental seria consequência de excesso de sangue no cé
trata-mento preferido consistia em retirar enorme quantidade de sangue da "pessoa im-becil", num vo
ava até 7 litros, em curto período de poucos meses. Rush acreditava ainda que muitos "loucos" poder
dos por um grande susto.
1547 Henrique VII inaugurou o manicômio Santa Maria de Bethlehen, em Londres. Os doentes passava
nados, presos e acorrentados. Era costume daqueles que podiam pagar, livrarem-se dos seus doentes
arcando-os em navio, a "Nau dos Insensatos", do qual não podiam sair e no qual navega-vam pelo rest
s! O doente mental não era somente tratado como um ser sub-humano, mas exposto, também, como
nante diversão. Foi moda, du-rante o século XVIII, na Inglaterra, a nobreza visitar o manicômio de Bed
os internos acorrentados, expostos à curiosidade pública, como se fossem a-nimais de um Zoológico.
lemanha Nazista, como na França de Vichy, prevaleceu a visão de que os doentes mentais deveriam s
midos. Na França os médicos simplesmen-te deixavam que os pacientes dos hospitais psiquiátricos m
me. O Dr. Max Lafont, no livro "O Extermínio Suave", descreve a forma como 2 mil dos 2.890 internad
ital Vinatier, em Brion, vieram a falecer de inanição: "Os pacientes chegavam a comer os próprio dedo
iam a casca das árvores, suas fezes, bebiam a urina. Viviam como animais, dormindo sobre a palha, e
ente sem calefação", o que é insuportável, no frio inverno europeu. Extermínio suave? Na Alemanha a
uilação coletiva, em nome da eugenia, era realizada em câmara de gás, numa mortandade em massa,
um escapava. Monstruosidade que lançou um estigma, sobre a eugenia, que perdura até os dias de h
omente no início do século XIX, que o padecimento dos pacientes mentais despertou a atenção de alg
madores. Em 1793, logo após a revo-lução francesa, o médico Philippe Pinel ousou tirar as algemas do
nos do hospital de Bicêtre, em Paris, do qual era diretor, o que causou grande inquietação na populaçã
r daquela época é que os médicos começaram a definir e catalogar as perturbações mentais.
ns casos se tornaram famoso e, pela originalidade, ficaram registrados na história, como foi o do jovem
ntrado, na manhã de 26 de maio de 1828, numa praça de Nuremberg, na Alemanha. Ele não sabia fal
eguia andar e portava uma carta. Chamava-se Kaspar Hauser, tinha 16 anos, e durante toda a sua vid
rentado em uma masmorra do castelo, alimentado através de uma portinhola, totalmente isolado do c
ano. Sete anos depois foi miste-riosamente assassinado, ganhando uma lápide com a inscrição: "Um e
o tempo, nascimento ignorado, morte misteriosa". Sua nebulosa origem pro-vocou o aparecimento de
de lendas, que inspiraram romances, peças teatrais e até um filme do cineasta Werner Herzog.
bém merece ser citado o assassinato de uma mulher, na Irlanda, que deixou sua marca na história:
orças do mal e o esforço para frustar suas manifestações malévolas, são a mesma coisa. Noventa e oi
s, em Tipperany, nas encostas de uma colina irlandesa, um homem e seus amigos, ao todo um grupo d
oas, queimaram até a morte sua mulher e enterraram o que restou do corpo num pântano vizinho. Ge
entende muito do assunto, acreditou que se trava de um caso suspeito de feitiçaria. Mas não. Os mem
e grupo dos treze haviam se convencido de que a mulher não era mais a verdadeira mu-lher, mas um m
quê? Um homem que conhecia bem o lugar e os há-bitos da terra esclareceu-me. A mulher era sonâmb
a gente simples do campo, o sonambulismo é uma coisa muito estranha".
dos modos de reconhecer e expulsar um mutante, e assim permitir a volta da pessoas verdadeira, cujo
ocupando, é amarrar o mutante numa corda e fazê-lo balançar sobre uma grande fogueira, repetindo
s a pergunta: "Em nome de Deus, você é mesmo fulano de tal? No caso, a infeliz mulher se chamava B
ry."
pelin, em 1883, definiu a dementia precoce. Sancte de Sanctis, em 1906, descreveu as formas infantis
minou dementia precocíssima. Eugene Bleuler, um psiquiatra suíço, em 1911, usou pela primeira vez
inolo-gia "autismo", que vem do grego "autos", e significa "si mesmo", e foi usada para descrever o fe
auto introspecção", apresentado por certos pacientes psiquiátricos.
tismo foi abordado, pela primeira vez, de uma forma sistemática, em 1943, por Léo Kanner, diretor da
siquiatria infantil do Hospital John Hopkins, na revista The Nervous Child. Ele usou a designação "distúr
tico de contato afetivo", para classificar um grupo de onze crianças com distúrbios, que não se enquad
nenhuma das categorias então conhecidas. Aplicou o termo "autismo" porque a criança se retraia e se
porém só é verda-deiro quando ela tem pouca idade. A medida que cresce, torna-se mais sociável.
ndo observação de Kanner, que provoca até hoje muita polêmica, os pais dessas crianças eram descr
oas intelectualizadas, frias, for-mais, racionais e objetivas. Ele ratificou tais observações em relatório d
ado na comparação das famílias de 55 crianças autistas com as famílias de outros pacientes e, poster
1954, com relação a 100 crianças.
critérios de "autismo infantil precoce" ou "Síndrome de Kanner", como ficou conhecida, eram porém m
itivos e se aplicavam somente a um grupo muito reduzido de crianças que apresentavam uma sintoma
definida, que ele relacionou, que é realmente muito raro. A atual conceituação de autismo se tornou b
ica, e se aplica segundo critérios ainda não muito bem deli-mitados e que podem variar.
uem aponte Victor, "o menino selvagem de Aveyron", com cerca de 12 anos, encontrado vagando n
ues, em 1801, como o primeiro caso reporta-do de autismo. O seu comportamento, segundo o Dr. J.M.
bastante a-normal, ao que ele supunha, devido ao abandono. Conforme descrição feita nas "Memoires
ndava na ponta dos pés, cheirava tudo que se lhe apre-sentava e era ausente a linguagem, na comun
ue me parece, ele fora simplesmente abandonado, porque uma criança autista é extremamente depen
sobreviveria, sob tais condições. Faltar-lhe-ia um raciocínio lógico, pa-ra superar situações adversas ou
vem a ser uma das características desse mal.
ato curioso é que, no início do século, na França, há relatos de crianças que corresponderiam à descriç
er, e eram chamadas de "crianças fada" - aquelas que teriam sido trocadas por fadas. Nos contos de f
da existe o changeling, designação que era dada ao transmutado, um substituto fisicamente idêntico,
deixado no lugar da criança raptada por fadas ou gnomos. A criança, que não seria afetiva, grita, é ag
ola. O interessante é que se tratava sempre de meninos.
e os contos narrados pelos irmãos Grimm, o denominado "Terceiro Conto dos Duendes" conta a estória
hselbalg, bebê substituto, que ti-nha uma cabeça enorme, olhar fixo e só queria comer e beber. A mãe
a vizinha que a aconselhou a levar o changeling à cozinha, colocá-lo perto do fogo e pôr água para fer
ro de duas cascas de ovo. A mulher assim o fez. Imediatamente o pequeno Klotz exclamou:
, que tenho a idade da Floresta de Wester, nunca havia visto alguém cozi-nhar em casca de ovo, e se
gou, então, uma multidão de duendes trazendo a verdadeira criança e levando o changeling com eles.
Observações sobre a Loucura", publicado em 1809, por John Haslam, na Inglaterra, há a descrição do
, um menino de sete anos que havia tido sarampo e uma discreta varíola, nos primeiros meses de vida
rito como hiperativo, tinha insônia, falta de controle esfincteriano, só começou a andar com dois anos
ar aos quatro. Mantinha-se afastado das outras crian-ças, com as quais não brincava, apresentava eco
dada e era agressivo. Era um possível caso de autismo.
e, na literatura, muitas descrições que corresponderiam aos sintomas de autismo. Entre outros Barnab
harles Dickens (1841). Joseph Con-rad, em Tales of Orient (1898) relata: "Esta criança, como as outras
a sorria, não esticava os braços para ela (sua mãe), não falava, nunca tinha um olhar de reconhecime
grandes olhos negros que só olhavam fixa-mente para tudo que brilhava, porém não conseguia segui
ol que se afastava lentamente, ao deslizar no solo ...". Johannes Keneppelhour, na Holanda, em "Truke
a", descreve uma menina com características nitidamente autís-ticas.
rimeiros estudos efetuados por Bettelheim, Mahler e Szurek, nos E.U.A., Melaine Klein, na Inglaterra, e
o, na França, concluíam pela psicogenia do autismo, responsabilizando as relações patogênicas com a
desencadeamento do problema. Lauretta Bender e um grupo de psiquiatras acreditavam que tratava
de esquizofrenia precoce.
1943, vários cientistas e psiquiatras passaram a se interessar por es-ta intrigante síndrome. A partir d
m apresentas várias obras tentando explicar e até tratar este severo distúrbio do comportamento. Na A
n Clancy e John Rendle Short, da Universidade de Queensland, relacionaram os 14 sintomas estatistica
frequentes, para facilitar o diagnóstico do autismo, que tiveram grande aceitação e são adotados até
re os inúmeros espe-cialista, destacaram-se, no cenário mundial, Rimland, Lorna Wing, Ferster, Edwar
A), Lovaas, Ornitz, Michael Rutter, Eric Schopler e, no Brasil, Gauderer, Fación, Swchwartzman, Rosem
argos, F.B. Assumpção e outros que, com seus trabalhos em língua portuguesa, nos estão dando uma
ribui-ção para a abordagem deste problema.
ngo de todos os tempos, a história das doenças mentais foi sempre uma tenebrosa história de cruelda
nsciência e desumanidade! Faz ainda muito pouco tempo que despertamos de tão inconcebível pesade
ar de to-dos os pesares, diante de tão tétrico quadro, poder-se-ia concluir que, comparati-vamente, a
o era tão desesperadora e havíamos avançado bastante. Contudo, nessa nossa visão pretensiosa, talv
mos encarados pelas gera-ções futuras, como igualmente retrógrados e ignorantes.
mos ainda tateando, no estudo do autismo, que se iniciou muito recen-temente. Data de pouco mais d
. Mal se começou a desvendar-lhe os im-precisos contornos. Durante várias décadas, por influência do
analistas, se acreditava na psicogenia do autismo. Muito do interesse despertado por essa sín-drome, s
ssociações fundadas por pais, a partir da década de 60. Desde então vários centros, dedicados à pesqu
mo, vêm sendo criados em diversos países. Foram pais, inclusive, que levantaram fundos, com doaçõ
ator Silvester Stallone. A partir de então o enfoque psicanalítico foi ca-indo em descrédito, face às con
cientistas daqueles Centros e da UCLA, o que hoje se estende pela maioria dos países desenvolvidos. M
sil, ainda teríamos que nos defrontar muito com os defensores de crenças bizarras, que insistiam em c
exto familiar pelo problema
Artigo 1
REFLEXÕES SOBRE O AUTISMO NO ÂMBITO DA PSICOPATOLOGIA INFANTIL
M. Graça Messias
O presente artigo pretende expor uma sinopse da tese de Mestrado, realizada na Faculdade de Psicologia e de Ciências da
Educação da Universidade de Coimbra-Portugal. A referida tese reflete desde a evolução da noção de psicose na criança e do
autismo infantil até as alternativas terapêuticas, valorizando, a partir do estudo exploratório, a relação precoce e suas
eventuais perturbações, e, sob o aspecto estrutural, com base num estudo de caso, a compreensão acerca das qualidades
psíquicas que se (des)organizam nas estruturas autísticas.
Compreender o termo autismo requer um percurso histórico, envolvendo a confluência desta visão panorâmica com os
aspectos psicopatológicos da síndrome.
Na psiquiatria do século passado, a doença mental era considerada estritamente de origem neurológica e somática. De um
processo mórbido localizado no cérebro, evoluía para uma deficiência psíquica que envolvia a memória, a percepção e a atenção.
Esta consideração determinava, a partir das descrições sobre a "idiotia" (Pinel) e de "demência" (assinalado o termo precoce por
Morel e Kraepelin, e de precocíssima por Sancte Sanctis), que as crianças, portadoras deste quadro demencial eram cometidas
por perturbações orgânicas degenerativas.
A primeira observação relacionada às descrições vigentes neste período trata-se de uma criança denominada o "Selvagem de
Aveyron". Os seus comportamentos denotavam características de um quadro autístico, tais como: comportamentos
estereotipados, indiferença às afeições das pessoas, necessidade de manter o ambiente sem modificações, ausência de
linguagem, utilização da mão do adulto como de uma ferramenta, entre outros comportamentos que dificultavam a comunicação
e o relacionamento interpessoal.
Será, no início do século XX, quando Bleuler, abrindo as portas à noção de esquizofrenia, revela tendências psicopatológicas
de determinados pacientes que se isolavam do meio ambiente, atribuindo o termo autismo como sendo uma defesa contra um
mundo que se mostra hostil ao doente. A partir dessa concepção (e depois estudada por Potter e Lutz, que evocaram a
necessidade de critérios diagnósticos que considerassem os aspectos peculiares do desenvolvimento na infância) atinge-se a
classificação de psicose infantil, compreendida como um grupo de distúrbios que evoluíam quer cronicamente quer por surtos.
Ainda que os interesses sobre a concepção orgânica fosse considerada sobre os quadros mórbidos encontrados, destacando
as inadaptações como originárias de uma deterioração cerebral, ela deixa de ser compreendida como uma condição sine qua non
dos distúrbios na infância a fim de serem eleitos como critérios primordiais a alteração do pensamento, das emoções e da
relação com o mundo externo.
Com o início dessa proposta dinâmica, a noção de autismo ganha maior sentido, sendo iniciada pelo pioneiro Leo Kanner, na
década de 40, como uma síndrome a que denominou Autismo Infantil Precoce. Caracterizado por sua sintomatologia e
manifestações precoces, o autismo é compreendido como um distúrbio do contato afetivo que surge por volta dos trinta meses
de idade, cuja as perturbações são identificadas pelo isolamento, pela necessidade de imutabilidade e por comportamentos
estereotipados.
Quase ao mesmo tempo, o psiquiatra vienense Asperger, apresenta quadros clínicos determinados pela perturbação do
contato, porém manifestados por volta dos 4/5 anos de idade. Asperger denominou por Síndrome de Asperger ou Psicopatia
Autística.
Tendo como base o estudo acerca do funcionamento psíquico e da estrutura psicopatológica, é desenvolvido uma leitura
dinâmica do autismo. Entre muitos autores que contribuíram, podemos destacar Melanie Klein, que permitiu o estudo do
desenvolvimento e conflitos psíquicos, inclusive a adoção do jogo no tratamento com as crianças. Encontramos Ana Freud, que
defendeu a ação educativa no tratamento; Spitz, elaborador dos organizadores mentais do desenvolvimento infantil, observando
também sobre a carência afetiva, cujas as crianças eram acometidas por um marasmo que interrompia o seu desenvolvimento,
como se desligassem da realidade externa. Deparamos com Bowlby, quem enfatizou estudos sobre os distúrbios ocasionados
pela separação precoce materna. Bion, destacando o papel materno como sendo fundamental no desenvolvimento da criança.
Importante autora como M. Mahler, quem elegeu os conceitos de simbiose e de separação-individuação no trabalho relacionado
à psicose infantil. F. Tustin e D. Meltzer, renomados autores que descreveram sobre a existência de tipos de autismo patológico
e seus estágios, compreendendo esta síndrome numa perspectiva desenvolvimental.
De uma maneira geral, vamos nos servir de uma longa trajetória até aos dias de hoje, a fim de aproximarmos, cada vez mais,
do conhecimento sobre o autismo.
PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES SINTOMÁTICAS E DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Sem dúvida, a prática clínica permitiu um avanço à compreensão do autismo para além do sentido etimológico. 1 Apontando
também para os aspectos da personalidade, os sinais e sintomas evocadores do autismo testificam transtornos precoces no
decorrer do primeiro ou segundo semestre, evidenciando o quadro mais completo no segundo/terceiro ano de vida. De acordo
com o nosso estudo, as manifestações podem ser divididas em sete grupos principais; contudo, nenhum destes sinais podem ser
indicativos do autismo infantil sendo considerados sozinho e transitório. Será a sua persistência no tempo e a existência de um
certo número de sinais associados que demonstrará fortes indícios da síndrome.
Sinais e Sintomas na Relação
De aparência normal ao nascimento, a criança autista reage de maneira inconstante: às vezes chorosa e apática, outras vezes
inquieta e desperta. Consta a ausência do sorriso e dos movimentos antecipatórios, hipotonia, bloqueio do olhar, isto é, ao ser
captado torna-se evasivo e furtivo. Mostra-se indiferente às pessoas, revelando-se intolerante às frustrações, que conjugam,
sem motivo aparente, com comportamentos exuberantes de risos e agitação motora, bem como , diante de uma intrusão do
meio ambiente, crises de cólera e angústia mediadas por auto e/ou hetero-agressividades.
Distúrbios Funcionais
De maneira muito precoce, o sono é perturbado. Constata-se tanto insônia agitada, com excitação motora, ou pelo contrário,
insônia calma, na qual a criança permanece na cama, imóvel, com os olhos abertos.
Os distúrbios alimentares também estão presentes. São caracterizados pela sua precocidade, desde a ausência da procura do
mamilo até as dificuldades (ou recusa) de ingestão de alimentos sólidos.
Do ponto de vista das condutas esfincterianas, observa-se que as crianças autistas geralmente são encopréticas e/ou
enuréticas, mostrando-se resistentes a submeterem-se a aprendizagem relativa a higiene.
Perturbações do Comportamento
os distúrbios psicomotores se revelam com evidência. Na ausência de qualquer lesão neurológica, as crianças autistas
conservam determinados comportamentos tônico-posturais como sendo um modo arcaico de comunicação. Estas crianças
apresentam estereotipias motoras (flapping), mantêm a cabeça inclinada, marcha sobre as pontas dos pés, movimentos de
rodopio, balanceamento do tronco, conduta de "farejamento" (ato de cheirar tanto os objetos quanto as pessoas), de
movimentos de toques bruscos nos objetos.
Perturbações da Imagem do Corpo
A imagem corporal parece não existir. A maneira como a criança autista apreende o corpo e seus movimentos, parece não
estabelecer a integração da psique com o soma. Ao corpo não é atribuído qualidades de comunicação consigo própria e com o
ambiente. A imagem refletida no espelho pode significar algo que se movimenta, mas não assume gestos de interação e de
noção de individualidade. Diante do espelho, a criança autista é indiferente à própria imagem, como se o corpo fosse pensado
(percebido) como um espaço sensorial onde ela está "aprisionada", mas que não constitui-se como uma unidade.
Perturbações da Linguagem
As perturbações da linguagem caracteriza-se por anomalias específicas. Apresentam gritos monocórdios monótonos, não
dirigidos socialmente. A linguagem pode constituir-se num mutismo primário (intermitente ou entrecortado por solilóquio) ou de
mutismo secundário que integra geralmente num contexto de negativismo.
Quando a linguagem é existente, denota-se distúrbios em seus aspectos léxicos e sintáticos. As crianças referem-se a si
mesmas na terceira pessoa do singular ou pelo nome próprio. Destituída de trocas, destaca-se habitualmente a ecolalia. Em
outros casos, o discurso da criança parece incompreensível, caracterizados por alterações de fonação (modulação e timbre),
ritmo (fluência acelerada ou diminuída) e entoação (utilizada através de inflexão melódica).
Perturbações Lúdicas
Ao lado do isolamento autístico revela-se a necessidade de imutabilidade e da obsessividade com os próprios movimentos e
ruídos.
Parecendo abandonar a imaginação e a criatividade, refugiam-se em jogos solitários, monótonos e estereotipados, porém sem
valor funcional e simbólico.
Perturbações dos Estímulos Sensoriais
No que diz respeito às experiências perceptivas, se evidenciam respostas excessivas, diminuídas ou imprevisíveis aos
estímulos sensoriais. Algumas crianças manifestam hipersensibilidade, sendo demasiadas sensíveis e aguçados os sentidos do
tato, paladar, audição e visão. Até mesmo os estímulos considerados normais do ambiente provocam uma sobrecarga
insuportável. Outras crianças, porém, apresentam uma hiposensibilidade, cujo o sistema sensorial mostra-se insuficiente para
levar ao cérebro a quantidade necessária de informação, ou seja, as crianças parecem receber uma carga insuficientes de
mensagens no cérebro.
As particularidades desta característica soma-se à manifestação, em muitos casos, de insensibilidade à dor, que, se por um
lado podemos pensar sobre um processo de alienação de emoções e da possibilidade de ausência de noção do interior do corpo,
por outro lado, é sensato questionarmos sobre a possibilidade da inoperância do hemisfério cerebral.
O diagnóstico diferencial é de suma importância. Sobre o mesmo aspecto de comportamentos pode surgir quadros complexos
onde vários comportamentos autistas se misturam. Os quadros comportamentais são variados, sendo essencial uma exploração
minuciosa a fim de permitir um diagnóstico preciso.
Com base na descrição semiológica citada, distinguimos o autismo dos seguintes quadros:
Esquizofrenia
a manifestação é mais tardia (por volta dos doze anos);
o desenvolvimento dessa criança segue um curso incerto: embora a saúde seja precária (sendo comum
apresentarem dificuldades respiratórias, metabólicas e digestivas) a criança tem período de desenvolvimento
relativamente normal para depois surgir sintomas mais complexos, como alucinações;
o contato dessas crianças com o outro é patologicamente invasivo, e quando seguradas no colo, o corpo
se molda ao de quem a segura, como se fosse uma "massa";
enquanto a criança autista evita olhar as pessoas, a criança esquizofrênica quando focaliza os nossos
olhares parece transpassá-los;
indica confusão no pensamento, cuja as perturbações revestem-se de alucinações auditivas e visuais,
enquanto a criança autista denota inibição do pensamento;
a coordenação motora mostra-se precária, com movimentos descoordenados;
mostra-se ansiosa em relação ao ambiente, ao contrário da criança autista que demonstra desinteresse;
a capacidade cognitiva parece variar, mostrando-se deficitário após um período de normalidade;
nota-se uma alta incidência de doença mental na família;
na criança esquizofrênica o desenvolvimento regride, enquanto na criança autista o desenvolvimento
psicológico parece cessar;
Deficiência Mental
A deficiência mental caracteriza-se por dificuldades específicas no domínio da inteligência, isto é, denota a existência de
défice intelectual caracterizado: pensamento lento e concreto, incapacidade de abstração, de análises, de previsão dos atos,
etc.
Na criança autista pode sobrevir a deficiência mental, mas é uma entidade distinta. Estas crianças podem apresentar
capacidades visuo-espaciais, manipulatórias e de memória, enquanto as com deficiência mostram-se incapazes.
Surdez e Cegueira Congênitas
Sabemos que a surdez pode ser confundida com o diagnóstico do autismo mediante a dificuldade de comunicação, bem como
a ausência de respostas aos sons. Porém, se por um lado as crianças com surdez quando aprendem a se comunicarem, perdem
as características autistas, como o isolamento e as estereotipias, por outro, as crianças autistas são capazes de se voltarem ao
menor ruído mas serem indiferentes aos ruídos de maior intensidade.
Quanto as crianças com cegueira, elas apresentam relações sociais normais, interessando-se pelo ambiente, e quando não
apresentam comprometimentos cerebrais associados e nem ausência de estimulação, elas se desenvolvem sem problemas.
Síndrome de Rett
Trata-se de uma síndrome degenerativa, de etiologia desconhecida que atinge o sexo feminino. Essas crianças apresentam
comportamentos autísticos, mas há uma perda rápida das aquisições motoras e de linguagem, sobrevindo convulsões e períodos
de apnéia.
Síndrome de Asperger ou Psicopatia Autística
É caracterizada pela dificuldade de interação, de linguagem e presença de condutas estereotipadas, porém os sintomas
aparecem após o terceiro ano de vida.
Síndrome de West
Aparece entre o terceiro e o nono mês de vida, cuja a etiologia parece associar-se a uma lesão cerebral, em que os sintomas
se traduzem por espasmos, com quadros de indiferença e atraso no desenvolvimento psicomotor.
EPIDEMIOLOGIA, EVOLUÇÃO E PROGNÓSTICO
Apesar da vasta literatura referente ao autismo infantil há mais de 60 anos, as condições estatísticas a respeito desta
síndrome ainda permanece insólita. Isso deve, possivelmente, ao fato de que essas crianças devem permanecer dispersas e em
várias instituições ocultas, como também de serem consideradas como retardadas mentais e desajustadas. Entretanto, ainda
que devidamente diagnosticados, muitos casos são tratados longe de seus lares, tornando incompleto o estudo epidemiológico.
Apesar destas implicações desfavoráveis, é possível estimar a incidência e predominância da síndrome num valor significativo
de investigação. Numa população geral, estima-se que em 10.000 nascimentos, 4 crianças são autistas. Embora a falta de
referências nos impossibilita saber da viabilidade desta indicação, é revelado que a predominância do autismo refere-se ao sexo
masculino, sendo encontrado uma relação de 4 meninos para 1 menina. A explicação para esse fato permanece imponderável,
havendo especulações genéticas mas nada comprovatórias. Entretanto, com base na literatura e em nossos estudos (Messias,
1995), verifica-se que o quadro clínico é muito mais grave nas meninas, constatando uma porcentagem elevada de associação a
uma disfunção orgânica e de deficiência mental aparente.
Outros aspectos importantes do estudo epidemiológico alude que o aparecimento da síndrome independe da composição do
meio sócio-cultural. Também não há relação quanto a distribuição geográfica particular, surgindo tanto na zona rural quanto
urbana.
No que se refere às características familiares, parece que não há na de crianças autistas maior quantidade de transtornos
mentais que no resto da população. Isso eqüivaleria mencionar que os pais dessas crianças não são nem mais nem menos
patológicos que a média da população.
Considerações também relevantes aplicam-se à posição na fratria. O risco do autismo entre irmãos é de 188 vezes maior na
fratria das crianças atingidas pela síndrome do que na população geral.
De acordo com alguns estudos franceses (nomeadamente os de Geissman, 1982), destacou-se a predominância da síndrome
nos primogênitos (48%), seguida dos caçulas (40%). Em nossos estudos (Messias, 19995), encontramos a prevalência doa
autismo nos filhos caçulas (44,8%), e, muito próximo, ocupam os primogênitos (41%), enquanto 13,8% eram intermediários.
Entretanto, curiosamente verificamos a existência preponderante de morbidade (como por exemplo, comportamentos
excessivamente bizarros, isolamento, evitamento do olhar, etc) nas crianças que ocupavam a fratria de caçula.
De conformidade com a complexidade do quadro clínico do autismo infantil, a evolução e o prognóstico se revelam graves em
decorrência da precocidade das manifestações de sinais e sintomas, da existência do nível intelectual 2 inferior a 50, do atraso
significativo da linguagem ou da sua ausência até a idade de 5 anos. Com o decorrer dos anos, sobretudo quando não existe
tratamento adequado ou este não intervêm satisfatoriamente, o quadro pode evoluir para um estado demencial profundo,
permanecendo as características iniciais, podendo desenvolver crises convulsivas na adolescência, mesmo não sendo
constatado danos neurológicos.
Mas há de considerarmos que as crianças que apresentam capacidades normais ou acima de 70, tendem a apresentar uma
adaptação favorável e quando adquirem a linguagem permanecem com anomalias fonéticas e sintáticas. Podem possuir um
vocabulário erudito, mas o diálogo é extremamente pesado e excessivamente formal. Porém, é raro as que consegue atingir
autonomia, predominando o contigente psicótico. No adulto com autismo permanece em evidência as deficiências em relação a
socialização, comunicação e imaginação.
De uma maneira geral, é complexo predizermos a evolução e o prognóstico do autismo, uma vez considerando não somente a
(des)organização do quadro autístico sob um aspecto dinâmico e estrutural, mas quanto a multiplicidade das suposições
etiológicas. Mas, seja como for, apesar do processo de prognóstico e evolutivo apontarem para um índice desfavorável em
relativa à cura, propriamente dita, é de suma importância percebermos a necessidade do diagnóstico realizado precocemente,
bem como as intervenções psico-terapêuticas com a criança autista e com a família. Desse modo, compreendemos que a cura do
autismo está na prevenção, reunindo, assim, melhores condições de uma clínica favorecedora.
INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS E PSICOTERAPÊUTICAS
Apesar das incertezas sobre a atribuição de uma causa em detrimento da outra, existem efeitos terapêuticos que resultam na
melhora da criança autista.
No tratamento farmacológico, a prescrição dos neurolépticos ou antipsicóticos são os mais freqüentes, como também são os
mais discutidos quanto a sua eficácia, sobretudo nos casos de ansiedade e hiperatividade. Uma das considerações que se deve
observar é quanto a sedação, uma vez que pode provocar letargia e diminuir a atividade motora e a atenção. A prudência na
administração das doses e na duração deste tipo de tratamento é fundamental, a fim de possibilitar um melhor processo de
aprendizagem. Contudo, não devemos considerar esta intervenção como um tratamento único e sim como um meio de apoio no
combate dos sintomas (como por exemplo, auto e hetero-agressividade, imutabilidade, estereotipias) de forma eficaz e sem
agressão aos processos psíquicos, físicos, sociais e educacionais da criança.
A perspectiva clínica e pedagógica comportamental tem como objetivo a modificação do comportamento, cumprindo o valor
da aprendizagem de respostas consideradas socialmente adequadas, como por exemplo, as atividades da vida diária (A.V.D.).
Entre outras intervenções, mencionamos a terapia do abraço desenvolvida pela psiquiatra M. Welch pressupondo que o
autismo é provocado pelo défice do processo de vinculação mãe-bebê. Nesse sentido, a mãe deve abraçar o seu filho autista
mesmo que este se esforce para evitar o contato. Perante este procedimento, é extremamente importante avaliar cada caso,
tendo em conta a hipersensibilidade da criança autista relativa ao toque corporal
Em contrapartida, a terapia sensorial busca, com precauções, integrar os estímulos sensoriais a partir da própria
disponibilidade e reações da criança. O objetivo também é propiciar à criança sensações tranquilizadoras, promovendo a
aprendizagem e através de atividades variadas (como a balneoterapia, massagem) eliminar comportamentos bizarros.
Por intermédio da musicoterapia atingimos um ponto crucial no tratamento com a criança autista; a comunicação. A aplicação
do som significa a presença de movimento e é vivenciado ou experienciado de maneira a inserir no mundo externo ao mesmo
tempo que o interno é tocado pelas sensações que a música propicia. Sucede que, a musicoterapia aumenta o papel ativador e
comunicacional, possibilitando a retirada da criança do seu isolamento autístico. É um recurso de aproximação, pois o
enquadramento não-verbal permite a estas crianças estabelecerem canais de comunicação sem se sentirem ameaçadas.
Ainda neste espaço da intervenção, a nossa atenção também se volta à pratica psicoterápica, tanto com as crianças autistas
quanto com os s eus pais. Do conjunto de traços psicopatológicos, como a perturbação do contato afetivo e a inaptidão para o
estabelecimento relacional apropriado com o meio circundante, o "psiquismo autista" necessita de tratamento que vise atenuar
a angústia intolerável. Podemos expor, nesse sentido, as técnicas que visam a organização de uma "neo-relação" e as
interpretativas. A primeira têm como fundamento reconstruir o espaço relacional, beneficiando progressivamente o contato com
a realidade. Considerando as "partes sadias" da personalidade, a reconstrução do mundo autista parte da transformação dos
elementos significativos do comportamento em comunicação; ou seja, é possível, a partir de vias primitivas (como água, areia,
atividades ritmadas e musicais) estabelecer uma comunicação infraverbal (em oposição a uma verbalização autista e delirante)
com a criança autista cujo o propósito reparador consiste na disponibilidade e tolerância que propicie à criança a organização de
uma nova relação com mundo externo.
Desse modo, a "neo-relação" torna-se reestruturadora, permitindo aproximarmos do estado de espírito, como já dizia
J>Chazaud: "A psicoterapia é o tratamento do espírito e pelo espírito". Assim, essa aproximação nos permitirá perceber a
criança (e tudo que dela provém) como uma unidade de significados, buscando sempre uma reorganização psíquica.
Por conseguinte, quando falamos no âmbito da interpretação no tratamento, é lícito valorizarmos o significado das
experiências da criança, de maneira a distinguí-las uma das outras, até o momento em que ela sinta-se capaz de realizar por si
mesma. O psicoterapeuta, quando interpreta, confia à criança um "aparelho mental" de que ela utilizará até que consiga
desenvolver o seu próprio aparelho, e, desse modo, transformar as respostas psicomotoras e estereotipadas em estados
mentalizáveis, conferindo significados e (re)elaboração.
Ao lado da ótica reparadora e interpretativa, ganha sentido no tratamento com as crianças autistas a ação sobre a família. Se
as entrevistas periódicas e reuniões de pais são primordiais para o tratamento, defendemos que o apoio , muitas vezes
psicoterápicos, à família não pode ser dissociado do conjunto de intervenções, de modo a permitir-lhes um espaço de
(re)elaboração das suas relações com o filho autista.
DISFUNÇÕES INTERATIVAS PRECOCES E DESENVOLVIMENTO AUTÍSTICO
Sabemos que o processo vinculativo entre a mãe e o feto é (com)partilhado através das experiências sensório-motoras e da
atividade fantasmática e emocional da mãe. Este vínculo se perpetua com o nascimento, de maneira a organizar ou a
desorganizar a dimensão psíquica e afetiva da díade mãe-bebê. Então, o bebê exprime suas ações e reações, e
consequentemente, orienta as da mãe, que, por sua vez, retorna ao filho. Ora, se essa reciprocidade se propaga e intervém na
construção da relação (constituindo a dimensão psíquica e afetiva de ambos), é genuíno considerarmos que os sinais e sintomas
psicopatológicos quando subsiste na relação, podem ser caracterizados por mensagens contraditórias e por respostas
insuficientes, podendo gerar conflitos que perturbam a função materna, por um lado, e distúrbios no desenvolvimento
psicológico do bebê, por outro.
Sob este prisma e da psicopatologia clínica da psicose e do autismo infantil, encontramos proporções significativas que
viabilizaram a noção de existência de perturbações identificadas em diferentes modalidades evolutivas (desde o diálogo tônico-
postural até ao contato físico e das vocalizações) que diminuíam a qualidade de estimulação e trocas na relação.
Com base em nosso estudo exploratório (Messias, 1995), cujo o objetivo foi o de investigar a ocorrência e os possíveis níveis
significativos de relação entre os antecedentes maternais e as manifestações de distúrbios precoces nas crianças autistas, foi
possível inferirmos que o surgimento do autismo infantil parece ser precedido por disfunções interativas precoces. À mãe,
carece identificações gratificantes de um bebê que se revela apático, irrefutável, indiferente, cujo os comportamentos são
indicadores do quadro de autismo em evolução. Ao bebê, falta-lhe a disponibilidade psíquica e emocional materna em
corresponder às necessidades de segurança e proteção.
De fato, ao salientarmos, no nosso estudo, fatores e sinais perturbantes durante a gravidez, parto e no contato pós-parto,
correlacionando-os às manifestações precoces do comportamento autista, encontramos índices significativos, como a presença
de depressão e ansiedade, que mostraram-se como intervenientes no processo de vinculação.
Tendo em conta essa evocação, ganha sentido que a (des)organização deficiente ou insuficiente do vínculo mãe-bebê pode
predispor a sinais e transtornos autistas precoces: o evitamento do olhar, o isolamento, dificuldades na amamentação, ausência
do sorriso, entre outros já citados na semiologia. Assume, neste sentido, a consideração de que os sinais e sintomas no autismo
estão, intimamente ligados, à perturbação na dinâmica da relação precoce, comportando riscos psicopatológicos de uma
evolução autística.
Somado a essas explorações como meio (e jamais o fim!) de questionamentos, somos surpreendidos quando, através da
clínica do autismo, deparamos com um universo repleto de significados. Apreendemos (e aprendemos) que, apesar da realidade
psíquica destas crianças se mostrarem imersas numa intensa angústia e intolerância à frustração, é possível concebermos como
uma forma particular de proteção psíquica. No entanto, quando o excessivo sofrimento mental não é contido suficientemente
(mediante a falência de um objeto interno), pode-se organizar uma "deterioração psíquica". Esta, compreendida como uma
suspensão do desenvolvimento mental e emocional, converge o estado autista em uma dimensão mental de "terror e
desespero", ameaçado pela "morte psíquica". É rompido, então, a relação com a realidade externa, não permitindo ao psiquismo
desenvolver o pensamento. Cria-se um "espaço branco", blindado pelo não-pensamento e reforçado pelo sentimento de vazio e
crônico de perda-de-si-mesmo.
Assim sendo, e do ponto de vista psicopatológico, a estrutura mental constituir-se-á por um conjunto de mecanismos a
funcionar morbidamente. O "ser autista", inclinado sobre-si-mesmo em suas estereotipias e autêntico isolamento, impõe ao
psiquismo uma "solidão mental", de difícil acesso, denunciando uma realidade interna caótica, presa a uma depressão
psicotizante que interrompe o desenvolvimento. O "eu" torna-se um sobrevivente do "tu", frágil e mantido por mecanismos que
têm por finalidade o afastamento da realidade externa e da dor mental.
Entretanto, é curiosos, que na proporção em que impera um self fragmentado, reforçado pela ausência de fronteiras entre o
eu e o não-eu, emerge capacidades para a transformação do estado psíquico.
No relato da história clínica de Maria3 é revelado não somente os transtornos do abandono que traumaticamente foi vivido, de
maneira a comprometer um mundo psíquico impregnado de angústia (sobretudo à separação), mas permitiu também
testemunhar a busca (dentro de Maria) de uma condição para (re)construir o seu estado mental. De forma peculiar, no decurso
do tratamento, a susceptibilidade de transtornos autistas foi dando lugar a uma "neo-relação" e a experimentação da
diferenciação entre si e o meio ambiente.
Será, a partir da nossa disponibilidade - psíquica e emocional - que a criança autista e psicótica despertará a sua capacidade
para expressar suas emoções (tal como os bebês, elas não são como massa amorfas) e, mediante o espaço mental que possamos
"emprestar-lhes", também possam elas reorganizarem - na relação - o seu universo contido de afetos por serem pensados.
Referência Bibliográfica:
Messias, M. Graça. Reflexões sobre o Autismo no âmbito da Psicopatologia Infantil. Dissertação de Mestrado em Psicologia
Clínica do Desenvolvimento, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Portugal, 1995.
Artigo 1
REFLEXÕES SOBRE O AUTISMO NO ÂMBITO DA PSICOPATOLOGIA INFANTIL
M. Graça Messias