Memorial do Convento, de José Saramago
Nota Inicial: As páginas indicadas ao longo destes apontamentos tem como referência a 35ª
edição de Memorial do Convento (editorial Caminho)
MEMORIAL DO CONVENTO
José Saramago
Análise do título
MEMORIAL DO CONVENTO
Escrito que relata factos que se pretendem guardar na memória
- Convento de Mafra; edifício português
construído por ordem de D. João V entre 1717 e
1744.
- o seu enorme custo foi suportado pelas
remessas de ouro e diamantes do Brasil
- arquiteto: João Ludovice (Ludovisi/Ludwig); o
conjunto do palácio e convento é marcado pelo
barroco e é, ao tempo, um dos maiores da Europa.
Contracapa – texto-síntese
Era uma vez...
• Remete para o mundo fictício, da infância e dos contos.
• Repetição intencional – convite a ler e entrar nesse mundo em que tudo parece
ser imaginário excepto o próprio Convento de Mafra e o Rei que viveu nessa
época.
... um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra.
-1-
Memorial do Convento, de José Saramago
Rei = D. João V (1689-1750); filho de D. Pedro II e da rainha Maria Sofia de
Neuburg.
D. João V
• Proclamado rei em 1707, casou no ano seguinte com a princesa Maria Ana de
Austria, de quem teve seis filhos.
• O período do seu reinado foi muito debatido entre opiniões opostas que o
consideravam um bom governante ou um péssimo administrador das riquezas
provenientes do Brasil (ouro e pedras preciosas).
• O rei fez promessa de construir o convento de Mafra por estar preocupado com
a falta de descendentes. Apesar de existirem bastardos, o objectivo era que a
rainha lhe desse um filho que pudesse assegurar a sucessão.
• O convento será construído após o nascimento da princesa Maria Bárbara.
Era uma vez a gente que construiu esse convento.
POVO PERSONAGEM COLECTIVA –
caracterizado por uma completa
miséria física e moral. Massa
humilde e trabalhadora que o autor
enaltece e tenta tirar do anonimato,
individualizando-a em várias
personagens e simbolicamente
atribuindo-lhe um nome para cada
letra do alfabeto (pág. 250).
e Blimunda.
PERSONAGENS como Francisco Marques, Manuel Milho, José Pequeno, Baltasar
Epopeia da Pedra – descrição do transporte da grande pedra que se destinava à
varanda sobre o pórtico da igreja (p. 266) momento em que se salienta o valor deste
herói que é o povo.
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Memorial do Convento, de José Saramago
Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes.
“soldado maneta” – mutilado da guerra de sucessão espanhola = Baltasar
É de Mafra. Quando volta a Portugal conhece Blimunda num Auto de Fé, em Lisboa
(Rossio).
Vivem juntos uma história de amor e paixão.
Na construção do convento
Baltasar trabalha
Na construção da passarola
Blimunda é vidente; tem a capacidade de, em jejum, ver as pessoas e as coisas por
dentro. Ajuda na construção da passarola com a recolha de “vontades”, usando os
seus poderes mágicos.
Partilha com Baltasar as alegrias e preocupações da vida mas, principalmente, um
amor verdadeiro, espontâneo e duradoiro.
Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido.
Padre Bartolomeu de Gusmão – protegido de D. João V.
Queria voar / construir a passarola.
Realiza o seu sonho com a ajuda de Blimunda, Baltazar e Scarlatti
Leitura do 1º parágrafo
- realce para o tom depreciativo e irónico e para as características da escrita de
Saramago, nomeadamente a forma livre e inovadora como aparece o discurso directo
(exemplo - leitura do 5º parágrafo)
Cada fala apresenta uma vírgula no final
O início é marcado por uma maiúscula a seguir à vírgula
São eliminados os pontos de interrogação das perguntas
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Memorial do Convento, de José Saramago
CONTEXTUALIZAÇÃO
Século XVIII, reinado de D. João V
- atenções do Rei concentradas no Brasil (donde vinham o ouro e as pedras
preciosas que melhoravam a economia portuguesa)
- Política externa: posição neutra do Rei mas com estreitas relações com a Austria
(daí o seu casamento com a princesa Mª Ana)
O AMOR CONTRATUAL: RELAÇÃO REI / RAINHA
REI representantes do poder e da ordem mas também da repressão
RAINHA que caracteriza o poder absolutista.
Relação conjugal
OBJECTIVO dar um herdeiro à coroa
Inexistência de afectividade
O cerimonial de que se reveste o encontro periódico do casal revela um ambiente anti-
erótico, artificial – excesso de roupas, presença dos camareiros... (pág. 16)
Infidelidades do Rei – referência à existência de bastardos; referência satírica ao
facto de ser recebido pelas freiras.
Relação contratual
Rei /Rainha
Sonhos da Rainha (p. 17-18; 118-119)
O AMOR VERDADEIRO: BALTASAR E BLIMUNDA
A partir do cap. IV (inclusive) a história deste casal está sempre presente.
Cap. IV – fala de Baltasar Sete Sóis
Soldado da Guerra de Sucessão Espanhola
Volta maneta para Portugal
Procura trabalho em Lisboa
Assiste a um Auto de Fé no Rossio, em Lisboa, onde conhece Blimunda
Excerto: “Frias hão-de ter parecido (...) nunca te olharei por dentro” (pág.
57)
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Memorial do Convento, de José Saramago
Vivem um amor sem regras ou limites, institivo e natural. Não há discurso
amoroso – entre os dois há apenas amor, paixão, gozo, cumplicidade,
entendimento perfeito (p. 100)
Casal transgressor dos códigos estabelecidos:
- não procriam
- entregam-se a jogos eróticos sem olharem a limites, lugares ou datas (p.109)
A integração mútua é perfeita bem como a integração de ambos com a
natureza. (pp. 280-281)
Não se ressentem da inexistência de um herdeiro. Envelhecem mas continuam
eternamente enamorados; escandalizam até a vila de Mafra.
-Reflexão sobre a condição humana
-Fugacidade da vida pág. 340
-Sinais da passagem do tempo
Blimunda foi baptizada pelo padre como “Sete Luas”. (pág. 94)
Blimunda Sete- Luas Simbolismo das alcunhas – nº 7
Baltasar Sete-Sóis NÚMERO SETE – representa a totalidade do universo em
movimento; liga-se ao ciclo lunar (cada fase da lua dura
aproximadamente sete dias) e ao ciclo vital (as células humanas
renovam-se de sete em sete anos; representa o descanso do fim da
Criação.
O AMOR: CARACTERIZAÇÃO DE BALTASAR E BLIMUNDA
BALTASAR MATEUS (o Sete-Sóis)
Um dos protagonistas do romance
Combatente na Guerra de Sucessão Espanhola e foi mandado embora quando
perdeu a mão esquerda (pág. 35)
Em Évora começou a pedir esmola para fazer um gancho que lhe substituiria a
mão (pág. 35)
Dirige-se para Lisboa (pág.36)
Aparece como um marginal que não hesita em matar para sobreviver.
A sua figura assume maiores proporções após conhecer Blimunda e, por mérito
próprio, é-lhe reconhecido o contributo na construção do Convento e a sua
grande ajuda na construção da passarola (pp. 37-38)
É jovem (p. 41)
Conhece Blimunda em Lisboa, num Auto de Fé e vai partilhar com ela toda a
sua vida.
Ajuda na construção do Convento de Mafra, como tantos outros operários que
são recrutados pelo país fora para esses serviços
Participa com grande entusiasmo na construção da passarola (sonho do Padre
Bartolomeu Lourenço). Baltasar contribui com a mão-de-obra e diviniza-se
nessa missão. É o padre que o ajuda a ultrapassar a sua deficiência física. (pp.
68-69)
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Memorial do Convento, de José Saramago
BLIMUNDA (Sete-Luas)
Filha de Sebastiana Maria de Jesus, conhece Baltasar no Auto de Fé em que sua
mãe é condenada ao degredo em Angola, acusada pela Igreja de ser visionária
e Cristã-nova
Constitui com Baltasar o casal amoroso que contrasta com o casal Real
A apresentação de Blimunda é feita pela mãe, durante a procissão dos
condenados, em que faz alusão aos seus olhos, conferindo-lhes um carácter
enigmático. (pág. 53-54)
Retrato físico – dados escassos; realce para os olhos (pp. 55, 56,107)
Em jejum possui capacidades de vidente - vê por dentro as pessoas e as coisas
(pp. 7980)
Recusa olhar por dentro Baltasar porque o ama e tem receio do que vai
encontrar
Tem uma presença muito forte no romance
Possui uma sabedoria muito própria – aprendeu tudo na barriga da mãe, onde
esteve sempre de olhos abertos (p. 345)
Apaixonada por Baltasar, mantém para sempre uma relação de amor,
cumplicidade e companheirismo a que não falta a atracção física revelada em
jogos eróticos e de prazer (pp. 346-347)
Um dia, Blimunda tem o pressentimento de que algo não correrá bem e não
acompanha o marido até Monte Junto.
Mais tarde, ao aperceber-se de que ele não voltaria, foi ao Monte Junto e encontrou
vazio o sítio onde estava a passarola e encontra o alforge e o espigão de Baltasar.
Ficou sozinha e o seu destino foi procurá-lo durante nove anos.
CAP XXIV – tentativas de encontrar Baltasar na Serra de Monte Junto, onde acaba por
matar um dominicano que tenta violá-la (pág. 358)
O amor incondicional de Blimunda por Baltasar é posto à prova quando este
desaparece. Durante 9 anos esta procura-o por todo o país (tendo mesmo
entrado em Espanha) e quando regressa ao Rossio está a decorrer um Auto de
Fé onde ela encontra Baltasar, que aí é executado (pág. 373)
Blimunda recolhe a “vontade” de Baltasar = junção de
ambos para sempre
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Memorial do Convento, de José Saramago
A INQUISIÇÃO – UM AUTO DE FÉ
A obra denuncia o medo que se vivia na época devido às perseguições levadas a cabo
pelo Santo Ofício, através das descrições de grande visualismo (rigor de pormenor
e objectividade)
RECURSOS ESTILÍSTICOS mais utilizados: adjectivação expressiva e dupla,
diminutivos, metáforas, imagens, ironia Exemplos assinalados pp.
50-52.
- Metáfora: “úbere terreno para diamantes e impiedades”
(o Brasil era origem de riqueza mas também de crueldades e sacrilégios)
- Ironia: “O Rossio está cheio de povo duas vezes em festa...”
- Adjectivação
:
expressiva
Dupla “úbere terreno“
“pequena e espremida”
superlativada com diminutivo
“soberbíssima” “sinaizinhos”, “borbulhinha”
- enumeração: “os tremoços e os pinhões, as queijadas e as tâmaras”
- Imagem: 3º parágrafo (procissão = cobra)
Formas verbais no Gerúndio = continuidade/prolongamento da acção
PROCISSÃO DA QUARESMA - leitura do excerto “Vai sair a procissão (...) outros o
façam para gáudio doutras” (pp. 28-30)
Aspectos a salientar:
- comportamento do povo na procissão e o que ele traduz sobre a religiosidade que se
vivia na época.
- recursos que contribuem para uma descrição visualista e pormenorizada.
• Caracterização da cidade de Lisboa;
• Excessos praticados durante o Entrudo (satisfação dos prazeres carnais) e
brincadeiras carnavalescas – as pessoas comiam e bebiam demasiado, davam
“umbigadas pelas esquinas”, atiravam água à cara umas das outras, batiam
nas mais desprevenidas, tocavam gaitas;
• Penitência física e mortificação da alma após os desregramentos durante o
Entrudo;
• Descrição da procissão;
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Memorial do Convento, de José Saramago
• Manifestações de fé que tocavam a histeria (as pessoas arrastam-se pelo chão,
arranham-se, puxam os cabelos) enquanto o bispo faz sinais da cruz e um
acólito balança o incensório; os penitentes recorrem à autoflagelação.
O narrador afirma que, apesar da tentativa de purificação através do incenso,
Lisboa permanecia uma cidade suja, caótica e as suas gentes eram
dominadas pela hipocrisia de uma alma que ironicamente, este define como
“perfumada”.
Recursos expressivos -
PADRE BARTOLOMEU LOURENÇO DE GUSMÃO
(1685-1724?)
DADOS HISTORICAMENTE COMPROVADOS:
Padre Jesuíta, nascido no Brasil, em São Paulo, viveu em Portugal onde foi
sacerdote e um brilhante orador.
Estudou em Coimbra
Inventor do aeróstato por ar aquecido.
Dedicou-se aos estudos sobre a “passarola” que “voou” em 1709, elevando-se
cerca de quatro metros.
Considerado o precursor da navegação aérea
[Em 1783 os irmãos Montgolfier fizeram voar um balão com dois ocupantes, durante
25 min e ao longo de 9 km, mas ao que parece este balão seria uma mera cópia do
aeróstato de Gusmão, uma vez que após sua fuga para a Espanha deixou seus planos
inventivos com seu irmão e notável cientista Alexandre de Gusmão.]
Cap.V – o padre está na assistência, no Auto de Fé, com Blimunda e vê passar a
procissão dos condenados; acompanha Blimunda de regresso a casa e assiste ao
primeiro encontro entre ela e Baltasar, “casando-os” de seguida.
Este é um padre especial porque foge às regras e convencionalismos
impostos pelo catolicismo:
É cúmplice numa situação ilegal aos olhos da Igreja
Surpreende Baltasar quando lhe pede ajuda dizendo “maneta é Deus e fez o
universo” (pág. 68)
Tem uma concepção muito própria da sua religião e ideias muito liberais
“casou” Baltasar e Bimunda no próprio dia em que se conheceram, através de
um ritual muito simples, no qual a colher assume o valor simbólico da união,
como se fosse uma aliança.
Levou Baltasar e Blimunda a S. Sebastião da Pedreira para verem a sua máquina
(estes mudam-se para lá e ajudam na sua construção)
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Memorial do Convento, de José Saramago
Desloca-se à Holanda, onde os estudos estão mais avançados, para trazer o
“segredo alquímico do éter”, regressando após três anos. (Cap. XI, pág. 130) –
ler o resto do capítulo.
No seu convívio com o casal, aceita naturalmente a sua relação e não se
escandaliza com as suas demonstrações de amor nem com aquilo de que falam.
(Cap. XIII, pág. 149)
Personagem multifacetada, ele tem outras ocupações e preocupações (Cap. XV,
pág. 182)
Aquando da doença de Blimunda, revela-lhes as suas ideias acerca da confissão
(Cap. XV, pág. 190)
As suas dúvidas revelam-se frequentemente e a sua fé está cada vez mais
abalada (final do Cap. XV, pág. 194)
Tem cada vez mais medo de ser apanhado pela Inquisição; sente-se perturbado
por saber que existem razões para ser condenado (Cap. XVI, pág. 197; 198)
Estando a passarola construída, esta será o seu meio de fuga (Cap. XVI, pág. 199)
Após regresso a terra, o padre tenta incendiar o engenho e justifica-se
respondendo a Blimunda “Se tenho de arder numa fogueira, fosse ao menos
nesta.” (Cap. XVI, pág. 212)
O padre morre em Espanha; é Scarlatti quem dá a notícia a Blimunda (Cap. XVII,
pág. 231)
O SERMÃO DO CORPO DE DEUS
Bartolomeu Lourenço, como padre católico e pregador prepara o seu sermão para a
festa do Corpo de Deus.
Encontra o tema para a pregação após a observação de uma gaivota que pairava
sobre o beiral do telhado – reflectiu e afirmou “Deus é uno”, o que veio pôr em dúvida
o que lhe tinham ensinado, “Deus é uno em essência mas trino em pessoa”.
(Cap.XIV, pág. 171)
LER EXCERTO “ O padre saiu para o pátio, (...) et quis potest eum audire:” (Cap. XIV,
pp. 178180)
O sermão do Corpo de Deus é um exemplo de texto argumentativo.
ARGUMENTAR = defender uma ideia, utilizando um conjunto de argumentos (razões).
Um TEXTO ARGUMENTATIVO é constituído por três momentos, que encontramos
neste sermão – a exposição da tese, o conjunto (corpo) argumentativo e a conclusão.
Identificar no excerto lido os 3 momentos do sermão, isto é, do texto argumentativo.
1º momento: “Deus é uno em essência e pessoa (…) onde está a falsidade.” (Pág.
178);
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Memorial do Convento, de José Saramago
2º momento: “Mas acreditas na Santíssima Trindade (…) quando criou o mundo e os
homens.”
(…) “Et ego in illo (…) grande foi a injustiça que se cometeu contra Adão.” (pp. 178-
179);
3º momento: “…ora resumindo agora (…) et quis potest eum audire.” (Pág. 180)
“ O padre Bartolomeu, Baltasar e Blimunda encarnam os valores religiosos
preconizados pelo cristianismo na sua essência e que se contrapõem às atitudes
tomadas pela Igreja e pela
Inquisição.”
A CONSTRUÇÃO DO CONVENTO
Construção do Convento Mafra (macro-
espaço)
Baltasar
Blimunda
Lisboa (macro- espaço)
Terreiro do Paço Rossio
micro-espaços
S. Sebastião da Pedreira
A construção do convento deve-se ao cumprimento de uma promessa do Rei. É Frei
António de S. José que, valendo-se do que ouvira em confissão e usando de
diplomacia, convence o Rei a fazer a promessa. (Cap. I, pág. 14)
Na verdade...
A Ordem Franciscana aguardava há mais de 100 anos a construção de um convento
em Mafra. Nos primeiros tempos da sua história a vila de Mafra desenvolvia-se em
redor do castelo (vila velha). No séc.XVIII o convento tornou-se um pólo de atracção
surgindo nas suas imediações uma vida nova que resultou do afluxo de gente que
para ali se deslocou para trabalhar na construção do Convento (vila nova).
Saramago = olhar crítico que faz sobressair o trabalho e esforço dos homens
que o construiram para satisfazer a vaidade e ambição do Rei.
- O local de construção é escolhido pelo rei (Cap. VIII, pág. 89)
- O rei tinha o sonho de fazer uma obra grandiosa (semelhante à Basílica de S. Pedro,
em
Roma). O arquitecto convence-o a desistir dessa ideia. (Cap. XXI, pp. 289-291; 291-
292)
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Memorial do Convento, de José Saramago
Relativamente ao Rei, a sua condição humana está presente:
no facto de ser vulnerável: está sujeito a doenças, envelhece e tem
medo da morte, como qualquer outro homem.
no facto de a sua natureza adúltera revelar as fraquezas da carne na
vaidade e inveja que demonstra
não é o facto de ser rei que o torna imune aos pecados, aos vícios, às
tentações do demónio
medo de morrer = questão de vaidade
morrer impedi-lo-ia de
assistir à sagração do Convento
será no dia do seu aniversário (22 de
Outubro de 1730, domingo),
cumprindo assim o ritual que diz ser
esse o dia da semana para a sagração
das basílicas
(Cap.XXI, pp. 299-300)
O aniversário do Rei só voltará a ser a um domingo dali a 10 anos. É necessário
apressar as obras de construção do convento. (Cap. XXI, p. 301)
“E por alguns terríveis minutos tornou a subir este rei ao Monte das Oliveiras” –
alusão bíblica ao Monte em que Jesus Cristo foi preso e onde ascendeu aos céus.
Decisão final – a sagração será feita dia 22 de Outubro de 1730 (Cap. XXI, p.301)
A EPOPEIA DA PEDRA (Cap. XIX)
EPOPEIA – poema extenso em que são narradas acções heróicas e grandiosas,
façanhas de heróis ou factos memoráveis do colectivo de um povo.
Neste capítulo narra-se a saga heróica do transporte de uma pedra enorme de Pêro
Pinheiro para Mafra (cerca de 15 km); essa destinava-se à varanda situada sobre o
pórtico da igreja.
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Memorial do Convento, de José Saramago
- foi
preciso
construir um carro
Pesava cerca de trinta toneladas puxado por 200 juntas de
bois Tinha 7x3 metros (Nau da Índia)
- foram precisos 600 homens
- levou 8 dias a ser transportada
É neste capítulo que o narrador destaca o povo, elegendo nele os seus heróis – que
geralmente ficam no anonimato. Neste capítulo, o povo é o herói da epopeia.
Humilhado, sacrificado e miserável, alcança uma dimensão trágica e eleva-se aos
nossos olhos – supera em força e humanidade todas as outras classes.
Aqui destaca-se a força, o suor, o sacrifício e até a morte dos homens que, pela
sobrevivência, trabalham sem descanso para tornar possível o cumprimento da
promessa do rei. A epopeia da pedra inicia-se na página 249 (cap. XIX).
Os homens são tirados do anonimato:
• Alguns adquirem forma e identidade e vão entrar em acção (Francisco Marques,
Manuel Milho)
• Aos outros é-lhes prestada homenagem, no desejo de os tornar imortais, de os
incluir numa História de Portugal que os esqueceu como esquece todos os
“pequenos”. (cap.XIX, pág. 250)
Trabalho de transporte da pedra
p. 253 – os homens veem a pedra pela primeira vez e o seu gemido de espanto
antecipa o sofrimento que ela virá a causar-lhes.
- dimensões da pedra
pp.254-55 – Início dos trabalhos de transporte da pedra
Descrição pormenorizada – dá conta das grandes dificuldades que tiveram para
colocar a pedra em cima do carro . LEITURA DO EXCERTO pp. 255-257
É necessário alguma inteligência até para as tarefas mais simples (p. 258)
As dificuldades da viagem são logo de início anunciadas (p.250)
O avanço era extremamente lento (pp.259-260)
As aflições continuam no dia seguinte; perigo acrescido das subidas e descidas (p.
262; pp.262-263)
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Memorial do Convento, de José Saramago
Há sacrifícios humanos logo no primeiro dia; o pé de um homem fica debaixo de
uma roda.
VOZ DO NARRADOR - o narrador faz futurologia sobre o discurso do guia turístico
que irá orgulhosamente repetir aos visitantes as dimensões da pedra,
valorizando o empreendimento real mas ao mesmo tempo valorizando o
trabalho dos homens que, nada tendo a ver com a promessa feita pelo rei, se
vêem envolvidos em tamanho esforço. (p. 266)
A descida para Cheleiros é um calvário (p.266)
Sente-se a angústia pelo movimento perigoso e incerto do carro que transporta a
pedra que representará uma glória para o rei e uma infelicidade para o povo, uma
vez que vai culminar com a morte de Francisco Marques, um dos transportadores
(p.268-269)
A plataforma resvala e parte as pernas a dois bois que acabam por ter de ser
mortos à machadada.
Seguindo o seu percurso, a pedra foi sendo transportada pelo esforço dos homens
até à exaustão, trabalhando de dia, descansando de noite.
Nestas horas de descanso surge, encaixada na narrativa principal, a história de
Manuel Milho
Ameniza o sofrimento dos homens Deixa- os curiosos para o
desenlace. (noite seguinte
)
Distrai-os
História contada por M. Milho – sátira anti-monárquica
Reflexão profunda sobre a existência humana e
da possibilidade de transformação pelo sonho
(p. 273) HISTÓRIA CONTADA POR MANUEL
MILHO é contada em episódios, à noite, em
estilo de folhetim.
RESUMO
Tratava da história de um rei e uma rainha que viviam com os filhos no palácio.
Ao contrário do rei, a rainha não sabia se gostava de o ser pois, de facto, nunca
tinha sido mais nada (não podia comparar a sua com outra condição).
Um dia a rainha vai ter com um ermitão que vivia no alto de um monte para se
aconselhar – queria saber o que era preciso fazer para uma rainha se sentir
mulher e um rei se sentir homem.
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Memorial do Convento, de José Saramago
Tiveram uma profunda conversa acerca da existência; acerca do que se é, o que
se deseja ser e de toda a luta que é preciso para se deixar de ser o que não se
quer ser. No fim a rainha recolheu aos seus aposentos para reflectir.
Um dia a rainha desapareceu do palácio e o marido mandou procurá-la, embora
sem sucesso. Nunca se chegou a saber se a rainha se tornou mulher e o
ermitão se tornou homem.
Também podemos fazer a nossa própria reflexão sobre o mistério da natureza
humana – de facto, mais importante e mais difícil do que assumir qualquer cargo ou
profissão na sociedade, é sermos homens e mulheres, por dentro (integralmente). O
próprio Manuel Milho diz que duvida que o ermitão e a rainha tenham conseguido ser
homem e mulher. (pág. 273).
Final da Epopeia da Pedra – final do cap. XIX (pág.274)
QUESTÃO PARA REFLEXÃO:
Tão grande. Mas Baltasar murmurou, olhando a
basílica, Tão pequena.”
SAGRAÇÃO DO CONVENTO
Pavor do rei perante a perspectiva de morrer antes da obra estar
concluída
Sagração da basílica 22 de Outubro de 1730;
Domingo e dia do aniversário do rei. Nova coincidência só
ocorreria no ano de 1740, daí que seja preciso apressar a
construção...
Manifesta-se de imediato o poder absolutista do rei: “Ordeno
que...” (pág. 302)
E assim se passa à requisição, muitas vezes forçada dos trabalhadores (pp. 302-
303)
Comparação dos homens a
tijolos pág. 307 são considerados peças de uma
obra; perdem o valor quando já
não servem para o
pretendido
De tanto sofrimento e violência surge uma explicação para as iniciais MAFRA:
M ortos
A
ssados
F undidos
R oubados
- 14 -
Memorial do Convento, de José Saramago
A
rrastados
O DIA DA SAGRAÇÃO
Festejos – descrição pormenorizada
Luxo e ostentação
Duração de oito dias (curiosamente, o mesmo tempo que levou o transporte da
pedra)
LEITURA DO EXCERTO “Enfim, chegou o mais glorioso (...) e este é o primeiro.” (pp.
365366)
Identificar...
Expressões que mostram a pompa e o luxo em que decorreram as cerimónias:
Magnífico trono patriarcal;
Cadeiras e dossel de veludo carmesim, com guarnições de ouro;
O chão coberto de alcatifas;
Vinho branco numa garrafa de prata;
Uma colher de prata, uma concha dourada;
O anel faiscante;
Os ouros e os carmesins
resplandescentes; As alvas cambraias.
SÁTIRA – incide especialmente na figura do patriarca, nas suas vestes e nos
salamaleques que acompanham a cerimónia e prendem a atenção do povo, já que
este não consegue ouvir o que diz D. Tomás de Almeida (este não possui ainda as
“trombetas electrónicas”)
Identificar...
Expressões em que se manifesta esta sátira:
Mas o principal da festa é o patriarca;
Estar o patriarca escrevendo com a ponta do báculo (...), parece mais obra de
bruxedo, eu te talho e retalho, do que ritual canónico;
Não faltam hieróglifos, gatimanhos, passos e passes, para lá e para cá;
Começou a missa de pontifical, que, claro está, levou o seu tempo, e não foi pouco;
D. Tomás de Almeida recitando lá do alto as palavras da bênção, tendo boa vista
percebese-lhe o mexer dos beiços;
Mas a maior sabedoria do homem ainda continua a ser contentar-se com o que
tem, enquanto não inventa melhor;
Retirou-se o pastor com o séquito, as ovelhas já se levantaram.
O SONHO DO PADRE BARTOLOMEU LOURENÇO
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Memorial do Convento, de José Saramago
SONHO – faz parte da vida humana e é por ele que tudo avança e evolui...
Versos de António Gedeão: “ Eles não sabem que o sonho/é uma constante da
vida...”
...é o sonho que nos impulsiona e é por um sonho (um objectivo) que somos capazes
de singrar num mundo tempestuoso...
Como diz Sebastião da Gama “Pelo sonho é que vamos”
...sonho após sonho chegamos ao séc. XVIII (designado como “Século das Luzes”) e
Portugal, embora ensombrado pela Inquisição, teve contactos com os intelectuais
letrados que fugiram para o estrangeiro de forma a poderem colher novas ideias e
‘iluminar a escuridão’, o atraso em que vivíamos. O padre Bartolomeu Lourenço vai
também partir para a Holanda na ânsia de saber mais acerca das possibilidades de
navegação aérea, acalentando assim o sonho de voar, contruindo por isso a
passarola. O seu projecto é apoiado pelo rei que lhe fornece os meios económicos
necessários. Porém, o propósito de voar, através de conhecimentos técnicos opunha-
se à mentalidade do clero e era considerada bruxaria, pela Inquisição. O padre
sentese por isso tão perturbado que acaba por fugir e enlouquecer.
Já Fernando pessoa dizia, na Mensagem “Sem a loucura que é o homem/Mais que a
besta sadia,/Cadáver adiado que procria?”
O seu invento, a que se chamou passarola por ter a forma mista de um pássaro e de
um balão, fê-lo o pioneiro da navegação aérea.
Na obra, para além de dados verídicos, temos a ficção, o imaginário, a magia, que
irão dar o sentido do maravilhoso ao romance.
A CONSTRUÇÃO DA PASSAROLA
Cap.V – tomamos conhecimento do padre que assistia ao auto de fé e que foi
depois com Blimunda para casa dela, sempre seguidos por Baltasar, e aí os
“casou”.
Cap. VI – o padre é-nos apresentado como Voador por João Elvas. (pág.61)
- o percurso das suas aventuras é contado pelo próprio padre a Baltasar (pp.63-
64)
Cap. XIV – tem funções na corte e a amizade do rei que o protege (pág. 166)
Cap.XV – a preocupação com a aquisição de conhecimentos leva-o às leituras mais
diversificadas, na esperança de alcançar a totalidade do saber (pág. 182)
O padre Bartolomeu estabelece relações com as duas classes que se opõem: a
corte e povo.
- 16 -
Blimunda, recebe deles ajuda na
concretização do seu projecto,
compreende e aceita as suas
Memorial do Convento, de José Saramago
vivências
a corte vê o projecto com incredulidade,
menosprezando-o (Cap. VI, pág. 64)
o povo acolhe-o, confia e
participa no projecto (nas
personagens de Baltasar e
Blimunda)
(Cap. VI, pág.68)
O invento é planificável no desenho do projecto e é explicado por processos
naturais, embora haja uma área que não prescinde da ajuda da alquimia
(Cap. VI, pp. 67-68).
Do projecto à execução vai ser preciso muito trabalho, muita dedicação e
entrega. O padre convence Baltasar a ajudá-lo. (Cap. VI, pp. 68-69)
Mudam-se então para a quinta de S. Sebastião da Pedreira e Blimunda decide
acompanhar Baltasar. Passa então a contribuir com os seus poderes mágicos
(Cap. IX, pág. 94)
Devido a esta capacidade o padre baptizou-a “Sete-Luas” ( Cap.IX, pág. 94)
A construção da parte mecânica do invento vai em bom ritmo, no entanto, é
preciso descobrir a tecnologia que o fará voar. O padre desloca-se então à
Holanda para obtenção desse conhecimento (Cap. IX, pp.96-97)
AS VONTADES DOS VIVOS
Passados três anos, o padre regressa a Mafra com a informação de que o éter de
que necessitam se alcança através das vontades dos vivos. (Cap. XI, pág.130)
É Blimunda que se vai encarregar da missão de recolher as vontades, uma vez que
tem acesso ao interior das pessoas. (Cap. XI, 130)
O PAPEL DAS VONTADES, BLIMUNDA E A “NUVEM FECHADA”
“(...) mas a vontade, ou se separou do homem estando ele vivo, ou a separa dele
a morte, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas
(...) (Cap. XI, pág. 130)
Força de vontade superação de obstáculos para atingir um objectivo
Por vezes essa vontade separa-se do homem “estando ele
vivo”
- 17 -
Memorial do Convento, de José Saramago
Pessoas fracas, desinteressadas, sem vontade sequer de viver o
quotidiano
Blimunda terá de recolher 2000 vontades – símbolo da enorme força de vontade e
esforço necessários para cumprir determinado objectivo.
Outrora, pela magia e pelo divino explicava-se aquilo que era aparentemente
incompreensível, depois a ciência veio dar resposta a muitas dúvidas, ajudando o
homem a integrar-se num mundo muitas vezes hostil; o desenvolvimento da técnica
tornou o nosso mundo mais claro, a nossa vida mais fácil. A arte, que sempre existiu,
reflecte um outro mundo, o dos sentimentos, do que está dentro de nós e se
exterioriza de diversas formas.
Blimunda representa um elemento mágico não explicado, possui os poderes
sobrenaturais de ver por dentro das pessoas e das coisas; por esta razão, vai ser ela
a recolher as vontades humanas que estiverem prestes a sair dos corpos. A “nuvem
fechada na boca do estômago” que Blimunda vê são, simbolicamente, as vontades
que, aliadas ao sonho, vão permitir o progresso através dos séculos.
O padre explica a Blimunda como deve fazer para recolher as vontades. (Final do
Cap. XI, pág.131)
Enquanto Baltasar trabalha na forja, Blimunda encarrega-se da árdua tarefa para a
qual foi incumbida. (Cap. XIII, pp.149-150)
Chega o Verão e a máquina está pronta a ser experimentada. Porém o padre vive
atormentado com medo do Santo Ofício e surge-lhe a ideia de poder fugir nela.
(Cap. XVI, pág.199)
Após duas horas de intenso trabalho... (Cap. XVI, p.201)
A passarola materializa o sonho dos seus construtores, agentes do progresso, e
simboliza a perfeição e a sabedoria do homem que possui vontade e fé. Contudo,
neste momento ela é apenas um meio de fuga de um lugar onde predomina a
injustiça e a prepotência. (Cap. XVI, p.202)
À medida que vão subindo, o medo é substituído pela euforia. (Cap. XVI, p.203)
Dá-se o início da descida (Cap. XVI, p.204)
Começam a ficar inquietos porque está apenas uma brisa e a máquina não poderá
voar depois do pôr-do-sol. (Cap. XVI, p.205)
Após a euforia da subida vem o desânimo. (Cap. XVI, pp.206-207)
Os três aventureiros que tinham cooperado sentem agora, na imensidão do céu,
um medo tão grande como talvez tivessem sentido os nossos marinheiros quando
sulcaram “mares nunca dantes navegados” (Cap. XVI, p.207)
O medo transforma-se em pânico. (Cap. XVI, p.208)
Fim da notável proeza que os levou a sobrevoar Lisboa – LER EXCERTO (Cap. XVI,
pp.208210)
- 18 -
Memorial do Convento, de José Saramago
Saem vivos desta aventura, o que seria motivo de alegria, mas o padre não está
bem. (Cap. XVI, p.211)
A extraordinária proeza acaba por ter um fim trágico quando o padre resolve pegar
fogo à máquina. (Cap. XVI, p.212)
A máquina, salva do incêndio, fica ao cuidado de Baltasar. (Cap. XX, p.275)
Numa das idas a Monte Junto, para reparar a máquina, Blimunda pressagia uma
fatalidade e despede-se de Baltasar amorosamente mas com mágoa no coração.
Na verdade, um incidente ocorrido dentro da passarola fá-la subir, desaparecendo
com o seu passageiro. (Cap. XXIII, pp.349-350)
A CONJUGAÇÃO DOS SABERES: SCARLATTI, O 4º ELEMENTO
Ao trio Bartolomeu, Baltasar e Blimunda junta-se, a dada altura, o músico
Domenico Scarlatti (professor de cravo da infanta Maria Bárbara)
O músico passa a fazer parte do projecto de construção da passarola, tocando
cravo enquanto eles trabalham na construção da máquina (Excerto – Cap. XIV, p.
173)
É levado de olhos vendados até ao local onde a máquina está em construção. (Cap.
XIV, pp.174-175)
Blimunda apresenta-se ao músico. (Cap. XIV, p. 175)
A sua merenda vão ser as cerejas e a maneira como as comem vai ser motivo de
reflexão. (Cap. XIV, pp. 175-176)
Ideia de constituírem uma “trindade terrestre” (Cap. XIV, p.176)
A CONJUGAÇÃO DOS SABERES
Bartolomeu (saber científico/técnico)
Scarlatti
(saber artístico*)
Baltasar Blimunda
(saber artesanal) (saber sobrenatural)
- 19 -
Memorial do Convento, de José Saramago
*
É o saber artístico de Scarlatti que, através da música vai consolidar de forma
harmoniosa os saberes já referidos e assim, contribuir para o cumprimento do sonho
de voar.
DOMENICO SCARLATTI (1685-1757)
Compositor, cravista e organista italiano, filho e discípulo de Alessandro Scarlatti.
Autor de umas 550 sonatas para cravo, numerosas óperas, cantatas, etc.
Vem para a corte de Portugal como músico da infanta Maria Bárbara.
SUGESTÃO – audição de composições de Domenico Scarlatti (CD Obras Primas do
Milénio).
No romance...
É funcionário da corte, músico contratado para dar lições à infanta D. Maria
Bárbara. Podemos caracterizá-lo a partir do excerto “Está a menina sentada ao
cravo (...) É a força da vida, mana” (Cap. XIV, pp.166-167), em que o rei e a
rainha, acompanhados de um grande séquito, vão assistir à lição de música de
sua filha. É aí que Scarlatti conhece Bartolomeu e nasce entre ambos uma grande
cumplicidade.
Fica a saber que o padre tem um segredo (Cap. XIV, pp.172-173)
Associa-se ao projecto, acrescentando-lhe a componente musical (Cap. XIV, pág.
177)
Em consonância, a ciência, o artesanato, a magia e a música uniram-se para
corporizarem o sonho de voar.
O VALOR DA MÚSICA
A música constitui um elemento fundamental e é-lhe atribuído um papel
importantíssimo, não só na construção da passarola mas também como contributo
para a cura da doença de Blimunda.
I – NA CONSTRUÇÃO DA PASSAROLA
No final da lição de música da infanta e após o padre ter conhecido Scarlatti,
dá-se um momento musical que é descrito de forma poética com expressões
como “barca florida na corrente”, “lago profundo”, “baía luminosa de
Nápoles”, “secretos e sonoros canais de Veneza” , “luz refulgente e nova do
Tejo”. O padre sente-se arrebatado pelos sons
que saem do cravo. (Cap. XIV, pág.167)
Já aqui se anuncia o poder celeste da música que irá ajudar na construção da
passarola e na sua elevação. Scarlatti, no entanto, não vai partilhar deste
sonho até ao fim pois assiste ao início do voo sem poder participar nele. (Cap.
XVI, pág.201)
Mas tocará em terra, enquanto eles se elevam no ar. (Cap. XVI, pág.205)
- 20 -
Memorial do Convento, de José Saramago
É justo que Scarlatti seja lembrado pelo padre no meio da euforia de se
encontrarem os dois a voar. (Cap. XVI, pág.203)
Scarlatti destrói o cravo, atirando-o para dentro do poço, para que não suscite
a curiosidade da Inquisição. (Cap. XVI, pág.205)
II – NA DOENÇA DE BLIMUNDA
Sabemos que Blimunda contribuía, com os seus dotes, na recolha das 2000
vontades necessária para fazer subir a máquina. Começou o seu trabalho
mas, como tinha poucas vontades recolhidas aproveitou um momento propício
para o fazer – quando uma epidemia grassava em Lisboa. (Cap. XV,
pág.185/186)
Cansada de calcorrear as ruas de Lisboa, Blimunda acaba por contrair uma
debilidade que a deixou prostrada. (Cap. XV, pág.189)
É então que a música de Scarlatti vem mostrar o seu poder curativo, o seu
valor sobrenatural, tirando Blimunda do estado de profunda inconsciência em
que se encontrava. (Cap. XV, pág.191/192)
O TEMPO E O ESPAÇO
1. O Tempo
O início da narrativa de Memorial do Convento situa-se por volta de 1711
(Ver excertos Cap.I, p.12 e p.21)
Não há muitas referências temporais mas há algumas datas importantes que
permitem seguir cronologicamente a acção. As prolépses surgem naturalmente
integradas nas digressões mentais, conferindo ao narrador o estatuto de omnisciente
e são aliadas, muitas vezes, à ironia.
(Ver excertos Cap.XV, p.184; Cap. XVII, p.223; Cap. XVIII, p. 233)
A benção da primeira pedra do convento de Mafra realizou-se em 1717.
(Ver excerto Cap.XII, p.140)
O contrato de casamento dos príncipes foi estabelecido em 1725.
(Ver excertos Cap.XXII, p.309)
[Os casamentos de D. José com D. Mariana Vitória e da infanta Maria Bárbara com o
príncipe D. Fernando, que será VI de Espanha, realizaram-se em 1729.]
Em 1730 faz-se a sagração do convento, no dia de aniversário do rei D. João V, que
cumpre 41 anos.
(Ver excerto Cap.XXIV, p.365)
O desaparecimento de Baltasar dá-se em 1730, no dia em que toda a gente vai para
Mafra assistir à sagração do convento, enquanto ele se dirige para o Monte Junto a
fim de consertar a máquina que lá está escondida.
(Ver excertos Cap.XXIII, p.348/350)
A narrativa termina em 1739, após terem passado nove anos em que Blimunda
procurou Baltasar de lés a lés. Encontra-o a ser queimado num auto de fé em Lisboa.
- 21 -
Memorial do Convento, de José Saramago
Entre os condenados estava António José da Silva, o Judeu, que efectivamente foi
executado nesse ano.
2. O Espaço
Os espaços físicos privilegiados são Lisboa e Mafra (macro-espaços, pois neles se
passa grande parte da acção e neles se movimentam as personagens principais).
Micro-espaços, relacionados com a capital:
- Terreiro do Paço
- Rossio
- S. Sebastião da Pedreira (onde se construiu a passarola)
- Odivelas
- Azeitão
Micro-espaços, relacionados com Mafra:
- Alto da Vela (local escolhido para construir o convento)
- Pêro Pinheiro (de onde veio a pedra)
- aldeia de Cheleiros
- Serra do Barregudo
- serra de Monte Junto
- Torres Vedras
O Espaço Social – Lisboa e Mafra – é construído através do relato de determinados
momentos e do percurso de personagens que tipificam um determinado grupo
social. LISBOA é uma cidade que ilustra bem as injustiças sociais, onde uma minoria
tem tudo e o povo nada tem, vivendo na miséria, bem como as condições sanitárias
da cidade (Cap. III, p.28; Cap.
VIII, p.88; Cap. XV, p.185).
Destaque:
1- Procissão da Quaresma – caracterização da cidade de Lisboa; excessos praticados
durante o Entrudo; penitência física; a descrição da procissão; as manifestações
de fé que tocavam a histeria com os penitentes a autoflagelarem-se.
2- Autos-de-fé (Rossio) – entre os autos-de-fé e as touradas, o povo revela gosto
sanguinário e emoções fortes; a assistência feminina preocupa-se com os
pormenores fúteis e com os jogos de sedução; a morte dos condenados é motivo
de festa.
3- Tourada (Terreiro do Paço) – os touros são torturados, o público exulta com o
espectáculo.
4- Procissão do Corpo de Deus – as procissões caracterizam Lisboa como um espaço
caótico, cujo ritual tem um efeito exorcizante.
5- O trabalho no Convento – Mafra simboliza o espaço da servidão desumana a que
D. João V sujeitou o seu povo (cerca de 40 mil trabalhadores).
6-A miséria do Alentejo – este espaço associa-se à fome e à miséria.
- 22 -
Memorial do Convento, de José Saramago
O espaço psicológico é constituído pelo conjunto de elementos que traduz a
interioridade das personagens.
Revela-se através dos sonhos e dos pensamentos.
Ex.: Sonhos de D. Maria Ana (com infante D. Francisco); de Baltasar quando andava a
lavrar o alto da Vela; pensamentos do padre Bartolomeu relativamente ao voo da
passarola.
A CRÍTICA
Este romance apresenta-se como uma crítica cheia de ironia ao que se passava no
início do séc. XVIII.
É criticada a opulência do rei e da nobreza, por oposição à extrema miséria do
povo:
-“Mas esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de
escasso para outro (...)” (Cap. III, p. 27)
-“a tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores(...) ” (Cap. IV, p. 36)
Lisboa é uma cidade muito criticada devido à falta de higiene:
-“(...) da pocilga que é Lisboa.”
-“a cidade é imunda, alcatifada de excrementos, de lixo, de cães lazarentos e
gatos vadios (...)” -“Lisboa cheira mal, cheira a podridão, o incenso dá um
sentido à fetidez (...)” (Cap. III, p. 28)
A sátira está presente nos casos de adultério e corrupção de costumes. Surge a
crítica à mulher que entre duas igrejas se foi encontrar com um homem, a uns
tantos maridos cucos que são ingénuos ou que fingem sê-lo. (Cap. III, pág. 31)
Nas classes altas não escapam à crítica os padres, os frades que levam as
mulheres para dentro das celas e com elas se gozam (Cap. VIII, p. 86), nem o
próprio rei que considera que as freiras o recebem nas suas camas (Cap. XIII, p.
163), nomeadamente a madre Paula de Odivelas.
Há uma constante denúncia dos métodos usados pela Inquisição e da repressão
exercida sobre o povo, mas também uma crítica a esse povo que dançava à volta
das fogueiras onde se queimavam os condenados e que assistia aos autos de fé
como se fosse um divertimento como as touradas.
Em Mafra a sátira abrange os trabalhadores que eram tratados como tijolos. É
criticado o rei que manda recrutar os homens válidos sem contemplações nem
humanidade e também o príncipe D. Francisco que se entretém a espingardear os
marinheiros só para se divertir e quer seduzir a cunhada só para se divertir e quer
seduzir a cunhada só para chegar ao trono.
HISTÓRIA E FICÇÃO
I - A HISTÓRIA
A história passa-se no séc. XVIII. Começa por volta de 1711, sensivelmente três anos
após o casamento de D. João V com D. Maria Ana Josefa de Áustria. Termina em
1739, vinte e dois anos depois, quando se realiza um auto de fé em que morre
António José da Silva. Os acontecimentos e as personagens são reais, as datas
- 23 -
Memorial do Convento, de José Saramago
respeitam o que se passou na época. As referências ao Convento de Mafra, na
generalidade correspondem à verdade histórica, por exemplo, a benção da primeira
pedra do convento, cujas cerimónias tiveram início às 7h da manhã do dia 17 de
Novembro de 1717.
Factos que são considerados históricos por poderem ser comprovados em livros e
crónicas da época:
- a indecisão do rei quanto ao nº de frades;
- o voto do rei D. João V, que levou à construção do convento;
- a matéria-prima e os artistas que vieram de vários países da Europa e do Brasil;
- o desejo do rei de que a cerimónia da sagração coincidisse com o seu aniversário;
- o trabalho que foi exigido aos operários para que os prazos fossem cumpridos;
- o recrutamento obrigatório feito a nível nacional;
- a origem das pedras em Pêro Pinheiro;
- o casamento dos infantes portugueses e espanhóis;
- o músico italiano Domenico Scarlatti que veio para Portugal para dar lições à
infanta D.
Maria Bárbara;
- os autos de fé e as perseguições levadas a cabo pela Inquisição;
- a construção da passarola pelo padre Bartolomeu de Gusmão
II – A FICÇÃO
O narrador, consciente de que só as pessoas das classes altas se imortalizam na
História, tenta individualizar o maior número de elementos pertencentes ao povo
para que também sejam lembrados e assim se faça justiça.
É na ficção que isso acontece com a referência aos trabalhadores Francisco
Marques, Manuel Milho, Álvaro Diogo, João Francisco, José Pequeno, Joaquim
Rocha, Julião MauTempo. Também travamos conhecimento com o par Blimunda e
Baltasar, casal amoroso cuja relação cheia de magia nos empolga e nos faz aderir
à sua forma de estar na vida. São eles também os construtores da passarola,
criando um espaço de evasão do real e ajudando a materializar um sonho.
Outras personagens ficcionais são:
- Sebastiana Maria de Jesus – mãe de blimunda, degredada para Angola;
- Leandro de Melo – o vedor que recebe as cartas de el-rei com instruções superiores;
- Álvaro Diogo e Inês Antónia – cunhados de Blimunda. Álvaro Diogo morre quando
cai de uma parede de trinta metros de altura;
- João Francisco e Marta Maria – pais de Baltasar; - João Elvas – antigo soldado, vadio,
amigo de Baltasar.
III - Há factos/personagens históricos que são relatados e simultaneamente
envolvidos com aspectos ficcionais. Bartolomeu de Gusmão é uma dessas
personagens, que apesar de ser histórica e ter realmente existido, aparece na obra
com aspectos ficcionais que envolvem a construção da passarola (onde a
experiência voadora é amplamente desenvolvida) e a sua amizade com Baltasar e
Blimunda.
Assim, história e ficção dão-se as mãos e, através do fantástico e do
maravilhoso, talvez Saramago queira recuperar e explicar a História, valorizando
aqueles que são sempre esquecidos, os humildes e os desfavorecidos, que, neste
- 24 -
Memorial do Convento, de José Saramago
caso, contribuiram anonimamente para a edificação grandiosa do Convento e para a
construção da passarola.
O NARRADOR: LINGUAGEM E ESTILO
Ao longo da obra está presente um narrador que não é participante, é
omnisciente e teima em tornar-se bem visível estabelecendo uma comunicação
activa com o leitor.
A propósito do narrador é importante recordar palavras do próprio Saramago, em
entrevista de 21 de Janeiro de 1991, no jornal Público.
Saramago encontra-se, portanto, dentro do romance como ser vivo, criticando,
explicando, sentenciando.
São marcas do estilo de Saramago:
A sátira, com recurso à ironia, à linguagem depreciativa e humorística, à
subversão de citações bíblicas e de provérbios;
A ruptura com as regras de pontuação introduzindo um peculiar discurso
directo sem utilizar os sinais gráficos, ao abolir os dois pontos, os
travessões e os pontos de interrogação e ao utilizar a maiúscula após uma
vírgula;
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Memorial do Convento, de José Saramago
A presença do narrador-autor com comentários, apartes e frases
sentenciosas;
A intertextualidade frequente, sobretudo com Os Lusíadas de Luís de
Camões;
O uso de formas verbais no presente e no futuro;
A inclusão de um discurso argumentativo e reflexivo.
RECURSOS DE ESTILO
O discurso saramaguiano é rico em recursos de estilo, principalmente nas descrições
que são visualistas e pormenorizadas, utilizando para o efeito a adjectivação, a
hipérbole, longas enumerações, personificações, etc.
Além dos recursos já referidos a propósito de alguns excertos analisados em aula,
destacamse, ao longo do romance, exemplos de:
Metáfora –“O cântaro está à espera da
fonte” “Mas esta cidade (...) é uma boca
que mastiga”
“A passarola (...) é agora uma torre em ruínas, uma babel cortada a meio voo”
Comparação – “passadas as roupas de mão em mão tão reverentemente como
relíquias de santas”
“empoleirado em andas como uma cegonha negra”
Ironia – “Enfim, de tanto se esforçarem todos ficou preparado el-rei”
“o mal é dos corpos, que a alma, essa, é perfumada”
“se este rei não se acautela acaba santo”
Adjectivação – “mãozinha suada e fria”
“as lastimosas vozes”
“a tripa empedernida”
“a boca (...) pequena e espremida”
“aqui vou, blasfema, herética, temerária, amordaçada”
“mas foram altas e estrepitosas gargalhadas”
“padre pugilista e garanhão”
“reconheceriam neste murcho e apagado homenzinho o real e infatigável
cobridor”
Enumeração – “cordas, panos, arames, ferros confundidos”
“solene procissão de juízes, corregedores e meirinhos”
“dos Açores e Madeira os panos, o trigo, os licores, os vinhos secos, as
aguardentes, as cascas de limão cristalizadas, os frutos, e dos lugares que hão-
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Memorial do Convento, de José Saramago
de vir a ser Brasil o açúcar, o tabaco, o copal, o índigo, a madeira, os couros, o
algodão, o cacau, os diamantes, as esmeraldas, a prata, o ouro”
Personificação/Apóstrofe – “bendita sejas tu, noite, que cobres e proteges o
belo e o feio com a mesma indiferente capa, noite antiquíssima e idêntica, vem”
Repetição Anafórica – “é o que dizem... é o que dizem... é o que dizem... é o
que dizem” “gente que... gente que... gente que...”
Trocadilho – “o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo, é o
mesmo que homem e mulher, mulher e homem”
Onomatopeia – “a bater a pedra, truca-truca, truca-truca”
“agora vai ser fácil, Êeeeeeiii-ô, Êeeeeeiii-ô.”
“taratatá-tá, sopra a corneta”
“toque-toque-toque, lindo burriquito”
Comparação/Hipérbole – “triste morte, foi um abalo muito grande, como um
terramoto profundo que lhe tivesse rachado os alicerces”
Neologismo – “os frades atrás ladainhando”
D. João V(...)beijou a mão do provincial, humildando o poder da terra ao poder
do céu” Nos seus antigos tempos de soldadia”
Antítese - “A obra é longa, a vida é curta”
Eufemismo – “que ele próprio poderá amanhã fechar os olhos para todo o
sempre”
Hipálage – “nem Romeu que, descendo, colhe o debruçado beijo de Julieta”
PROVÉRBIOS
Os provérbios e expressões populares introduzem, no discurso narrativo, a peculiar
característica da linguagem corrente e familiar e são eco da sabedoria popular.
Para além da inclusão de provérbios na sua exacta expressão, outros há que são
transformados de acordo com a conveniência do momento narrado.
PROVÉRBIOS
Exacta expressão Transformados
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Memorial do Convento, de José Saramago
“(...) o sol, quando nasce, é para todos” “(...) e ainda agora a procissão vai na
“(...) a melhor lição é sempre o bom praça” “(...) dai a César o que é de Deus,
exemplo” a Deus o que é de César”
“Mas tem cada coisa seu tempo” “(...) que de louco todos temos um pouco”
“(...) uma mão lava a outra” “(...) fazer o bem olhando a quem”
“(...) para grandes males, grandes “(...) mas o que nenhuma dúvida tem, é
remédios”
não durar o bem sempre”
“(...) quem corre de gosto não cansa”
“(...) mas quem de gosto carrega não
“(...) pelo dedo se conhece o gigante” cansa”
“(...) o hábito não faz o monge” “(...) paga a dívida bem, não olhes a
quem”
“(...) de noite todos os gatos são pardos”
“(...) é para todos a chuva quando
“(...) uma desgraça nunca vem só”
cai” “(...) mas as mulheres não se
“(...) o mal e o bem à face vem” medem aos palmos”
“(...) a boda, e também a baptizado, não
vás sem ser convidado”
“(...) nem sempre galinha, nem sempre
sardinha”
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