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A Lei de Moisés Ou A Lei de Cristo

O documento discute a relação entre a lei mosaica e a nova aliança no Novo Testamento, enfatizando a continuidade e descontinuidade entre os Testamentos. A análise se concentra em três pontos principais: o cumprimento da lei por Jesus, a declaração de Paulo sobre Cristo como o fim da lei e a noção da 'lei de Cristo'. A conclusão sugere que, embora a lei mosaica tenha um papel significativo, sua interpretação e aplicação devem ser vistas à luz do ensino de Jesus.

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A Lei de Moisés Ou A Lei de Cristo

O documento discute a relação entre a lei mosaica e a nova aliança no Novo Testamento, enfatizando a continuidade e descontinuidade entre os Testamentos. A análise se concentra em três pontos principais: o cumprimento da lei por Jesus, a declaração de Paulo sobre Cristo como o fim da lei e a noção da 'lei de Cristo'. A conclusão sugere que, embora a lei mosaica tenha um papel significativo, sua interpretação e aplicação devem ser vistas à luz do ensino de Jesus.

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A lei de Moisés ou a lei de Cristo


Douglas J. Moo

INTRODUÇÃO

A relação entre os Testamentos é um dos poucos assuntos de maior importância para a


teologia bíblica e, em última análise, para a teologia sistemática. E uma questão crucial
para a definição correta dessa relação é o grau de continuidade dado à lei mosaica no NT.
A lei é tão central para a aliança sinaítica que a própria lei se agiganta no AT. Então, se o
NT revela uma abordagem predominantemente descontínua da lei, um considerável
suporte para uma visão descontínua dos Testamentos é fornecido; mas, uma atitude mais
contínua nos encoraja a achar mais continuidade entre os Testamentos. O estudo desse
assunto demanda tanto habilidades exegéticas como sensibilidade teológica. Um ensaio
sobre essa matéria é, portanto, apropriadamente dedicado a S. Lewis Johnson, cujos
muitos textos se destacam como modelos de exegese teológica ou teologia exegética
Particularmente, lembro-me bem da censura do dr. Johnson a exegetas que falharam em
reconhecer mudanças teológicas no estudo de Romanos 5.12. E, com o risco de me expor
a censuras semelhantes, ofereço esse estudo da lei ao dr. Johnson.
O título deste trabalho sugere que será apresentada uma ênfase geralmente
descontínua sobre a lei na história da redenção. Na essência isso é verdade. Mas devemos
tomar muito cuidado ao apresentar soluções simplistas para uma questão tão complexa.
As simples alternativas continuidade e descontinuidade são esboçadas com muita ousadia.
Na realidade, é uma questão de ênfase, com posições que variam num amplo espectro de
alternativas. Embora a minha visão, então, se incline para o fim do espectro descontínuo,
espero ser suficientemente sutil em meu tratamento para que os claros elementos de
continuidade não sejam ignorados. Muitos leitores deste volume reconhecerão o
tamanho da questão à nossa frente. Vários versículos-chave tiveram monografias inteiras
a eles dedicadas. A última década testemunhou um número quase esmagador de estudos
significativos da visão de Paulo sobre a lei.3 Quando confrontado com assunto tão vasto, e
por causa da limitação de espaço para escrever sobre ele, temos duas opções: pegar um
minúsculo pedaço do quebra-cabeça e encaixá-lo no quadro maior, ou sugerir algumas
ideias gerais sobre o formato do próprio quebra-cabeça, com argumentação e escopo
necessariamente limitados. Eu escolho a última direção. Muitos pedaços do quebra-
cabeça são ignorados no que se segue, e até os mencionados não são tratados com
profundidade. Especificamente, pretendemos focar três pontos que são centrais para a
questão do grau da continuidade da lei entre o AT e o NT: o que Jesus quis dizer ao alegar
cumprir (πληρόω) a lei e os profetas em Mateus 5.17; a importância da afirmação de
Paulo em Romanos 10.4 de que Cristo é o τέλος [fim, objetivo?] da lei; e a importância da
alegação de Paulo de que os cristãos não estão mais debaixo da lei, mas debaixo da lei de
Cristo. Tomados em conjunto, esses três pedaços do quebra-cabeça sugerem que uma
nota clara de descontinuidade deve soar como um tema básico nesta discussão.

“EU VIM PARA CUMPRIR A LEI E OS PROFETAS” (MT 5.17)


Começamos com o ensinamento de Jesus e seu anúncio programático: Não penseis
que vim revogar a lei ou os profetas; não vim para revogar, vim para cumprir (Mt 5.17).
Decisivo aqui é o significado a ser dado à palavra πληρόω (cumprir). O uso da expressão a
lei e os profetas em Mateus, bem como o contexto da passagem em pauta que foca o
relacionamento entre o AT e o ensino (5.21–48) de Jesus, demonstram que ele está
falando acerca de como o seu ensino se relaciona com as exigências da lei feitas por Deus
no AT. Os defensores de certo grau de continuidade entre os ensinos de Jesus e a lei
argumentam que ele a cumpriu ao “estabelecê-la” ou “defendê-la”, devolvendo-lhe o
significado realmente pretendido em resposta às tentativas dos judeus de se esquivarem
do seu sentido pleno.4 Mas, ainda que πληρόω possa significar isso, ainda que represente
o contraste mais natural com o termo (grego p. 204) (“abolir”), esse entendimento incorre
em duas dificuldades fundamentais.
Primeira, o contexto não o apoia. Na “antítese” de Mateus 5.21–48 Jesus
simplesmente não restabelece o verdadeiro significado da lei, como se estivesse fazendo a
exegese dos textos relevantes do AT. Nenhuma exegese da lex talionis levaria à conclusão
que não se deve resistir ao Maligno (5.38–39); que amar o próximo em Levítico 19.18
significa amar o companheiro israelita, não, como Jesus manda, amar o inimigo (5.43–47);
nem que o AT requer que alguém, para manter os juramentos, entenda que não se deve
fazer juramentos (se aplicado no sentido geral ou mais restrito) (5.33–37).
Temos de admitir que alguns dos requisitos de Jesus parecem ser diretamente contra
a perversão do ensino da lei entre alguns judeus do seu tempo; o ódio ao inimigo (5.43)
certamente não é um ensinamento do AT. Mas permanece o fato de que as próprias
exigências de Jesus vão consideravelmente além de qualquer exegese razoável da maioria
dos textos que ele cita; nem a maioria de suas exigências encontra apoio em qualquer
lugar do AT. O eu vos digo enfatiza o novo e surpreendente foco na autoridade desse
Jesus de Nazaré, uma autoridade que vai muito além de uma reafirmação da lei do AT.
Esses pontos têm influenciado grande número de estudiosos a sugerir que πληρόω
significa algo como “aprofundar” ou “aumentar”. Jesus leva a lei do AT mais adiante ao
aumentar suas exigências do externo para o interno (assassino-ódio; adultério-luxúria) e
por “radicalizar” a vontade de Deus. Essa visão se relaciona melhor com o contexto, mas,
junto com a primeira concepção, não faz justiça para o uso em Mateus do πληρόω. Essa
palavra é central para o vocabulário teológico de Mateus; além de 5.17 ele a usa quinze
vezes em comparação com duas de Marcos e com as nove de Lucas. Há dez ocorrências
nas introduções das “citações de fórmula” distintivas de Mateus (1.22; 2.15,17,23; 4.14;
8.17; 12.17; 13.35; 21.4; 27.9), duas em declarações mais gerais de Jesus em relação ao
cumprimento da Escritura (26.54,56), uma na razão dada para o batismo de Jesus (3.15), e
duas outras não têm importância teológica (13.48; 23.32).
O que emerge disso é que πληρόω é o termo-chave escolhido por Mateus para
descrever o impacto da vinda de Jesus no AT. É claro que πληρόω é usado por Mateus de
uma forma mais ampla, como meio de designar a ocorrência das profecias do AT. A
história de Israel tem seu “cumprimento” em Cristo (cf. 2.15); e, numa impressionante e
sugestiva declaração, em Mateus, Jesus diz que todos os profetas e a lei profetizaram até
João (11.13). Em outras palavras, Mateus apresenta uma história da teologia da salvação
que mostra todo o AT aguardando ansiosamente por Jesus.6
Quando esse uso característico de Mateus de πληρόω é levado em consideração, é
provável que o “cumprimento” de Mateus 5.17 signifique que as novas exigências
escatológicas de Jesus não constituam um abandono da lei, mas sim expressem aquilo que
a lei sempre pretendeu antecipar. A continuidade da lei com os ensinamentos de Jesus é,
com isso, claramente enfatizada, mas é uma continuidade no plano de um esquema
histórico de salvação, de “expectativa-concretização”. É nesse sentido que Mateus 5.18,19
deve ser entendido, em que Jesus afirma a validade permanente da lei e recomenda que
ela continue a ser ensinada. Recorrer a esses versículos para demonstrar a validade
permanente da lei como um código de conduta faz com que os versículos pareçam exigir a
oferta de sacrifícios e a observância da lei cerimonial na era cristã. Embora alguns pensem
que é justamente esse o significado desses versículos (pelo menos em seu suposto
ambiente original), esse modo de pensar é plenamente incompatível com os
ensinamentos de Hebreus, para não mencionar Paulo. É geralmente discutido que Jesus
tem aqui apenas a visão da lei “moral”. No entanto, não somente essa é uma categoria
não bem estabelecida nos dias de Jesus, mas o i ou til do versículo 18 apresenta uma
restrição muito problemática. Se, no entanto, o versículo 17 é visto como programático,
então é quase legítimo concluir que os versículos 18 e 19 devem ser entendidos como
afirmação da validade e utilidade permanente da lei, quando vistos à luz do seu
cumprimento em Cristo.
A implicação dessa exegese de Mateus 5.17–19 é que o código de conduta aplicável à
vida no reino – e também, eu diria, à igreja – deve ser encontrado no próprio
ensinamento de Jesus. A lei do AT não deve ser abandonada. De fato, deve continuar a ser
ensinada (Mt 5.19), mas interpretada e aplicada à luz de seu cumprimento por Cristo. Em
outras palavras, não se mantém mais como supremo padrão de conduta para o povo de
Deus, mas deve sempre ser vista através das lentes do ministério e do ensino de Jesus. É
comprovado que essa conclusão está de acordo com a abordagem geral de Jesus à lei do
AT com base no número relativamente pequeno de vezes em que ele cita o AT como
prova de suas exigências (e a maioria ocorre em contextos polêmicos), e das claras
implicações de declarações como o Filho do homem é Senhor também do sábado (Mc
2.28), e do fato que é o ensino de Jesus que os seus discípulos devem levar em suas
iniciativas missionárias (Mt 28.16–20).
Conclusões de alcance profundo e dogmático com base nessas evidências são
inadequadas. De fato, o contexto e o ensino do ministério de Jesus – que ocupam um tipo
de salvação histórica numa fase de transição, quando a antiga aliança estava ainda em
vigor e a nova aliança estava no processo de inauguração – explicam por que mais
pronunciamentos decisivos sobre esse assunto não são encontrados nos Evangelhos. Mas,
quando nos voltamos para Paulo, deparamos com o problema oposto. Paulo fala tanto
sobre a lei em contextos diferentes e em resposta a tantos problemas diferentes que
muitos se desesperam em sistematizar seu pensamento sobre a lei. Mesmo se alguém
pudesse decidir sobre a abordagem geral de Paulo, é comum afirmar que a visão dele é
diferente da visão de Jesus.12 Não podemos aqui tentar responder a esses problemas. Mas
eu gostaria de mostrar que um pouco, pelo menos, do que Paulo diz sobre a lei é bem
similar ao que encontramos no ensino de Jesus.

CRISTO, O TELOS DA LEI (RM 10.4)


Devemos começar com a que talvez seja a mais famosa declaração de Paulo sobre a
lei: Cristo é o τέλος da lei (Rm 10.4). Esse versículo é frequentemente entendido como um
slogan, resumindo a convicção de Paulo de que Cristo é o “fim” da lei. Mas temos visto um
forte ataque a essa visão nos últimos anos, por isso requer alguma discussão. Três
questões são cruciais.
Primeira, que significado devemos dar à palavra νόμος nesse versículo? Recentemente
tornou-se popular discutir que muitas ocorrências dessa palavra em Paulo não se referem
à lei como tal, mas ao legalismo, um uso impróprio da lei que a vê como um meio de
salvação. Esse significado é fornecido em Romanos 10.4 por vários estudiosos. Mas é
duvidoso que Paulo sempre use νόμος para significar “legalismo”, e a sugestão é
particularmente improvável para Romanos 10.4 porque iria sugerir que a lei antes de
Cristo foi um meio de salvação. Isso é contraditório não apenas para o AT, como também
para a visão de Paulo. É provável, então, que νόμος em Romanos 10.4 se refira à lei
mosaica. Esse é o significado que νόμος tem em tudo, menos em algumas ocorrências em
Paulo. Uma segunda questão é como a expressão justificação de todo aquele que crê se
relaciona com a primeira frase. Alguns a usam para qualificar a “lei”, dizendo que o texto
trata dela apenas “em sua conexão com a justiça”, sendo a isso que Cristo pôs fim. Mas é
bem claro que a expressão em questão especifica o resultado da primeira cláusula: Cristo
é o τέλος da lei, para a justificação de todo aquele que crê.
O que, então, τέλος significa nesse versículo? A palavra pode ter vários significados; os
dois mais citados são “fim” e “objetivo”. 20 Parece claro, no entanto, que a palavra não
deve significar “fim” no sentido de término ou cessação. Mas isso não significa que a
tradução de “objetivo” deva ser aceita, dando ênfase demasiada à noção de continuidade.
Isso aconteceu no passado quando os estudiosos permitiram que palavras em inglês (ou
alemão ou francês) determinassem o significado de uma palavra grega mesmo quando
esse crivo não representava adequadamente todas as possibilidades de sentido.
Elementos tanto de “fim” como “objetivo”, com nuanças de outras palavras inglesas,
estão envolvidos. Isso não significa que estamos aceitando um “duplo significado” para
τέλος, como Badenas parece pensar ser o caso, se tal significado for adotado. Ao
contrário, é necessário usar várias palavras inglesas, ou uma frase, para capturar o
significado dessa palavra nesse tipo de contexto.
No contexto da teologia de Paulo, dizer que Cristo é o τέλος da lei é o mesmo que
dizer que ele é o ponto culminante para a lei mosaica. Ele é o seu “objetivo”, no sentido
de que a lei sempre previu e esperou ansiosamente por Cristo. Mas ele é também o seu
“fim”, visto que nele o cumprimento da lei encerra aquele período de tempo quando a lei
foi um elemento fundamental no plano de Deus. As duas ideias são claramente
apresentadas no contexto: Paulo censura os judeus por falharem em ver que a lei teve
outros propósitos além de um apelo às obras (9.31,32) e também por não reconhecerem
a justiça de Deus (10.2,3), uma justiça que se manifestou sem lei (Rm 3.21).
Então, vemos nesse versículo-chave elementos tanto de continuidade como de
descontinuidade. Cristo é aquele para o qual a lei tem apontado; agora que ele veio, existe
uma situação totalmente nova com respeito ao lugar da lei na vida do povo de Deus.
Curiosamente, essa interpretação de Romanos 10.4 resulta numa explicação bem
semelhante às nossas conclusões sobre Mateus 5.17.

“A LEI DE CRISTO”
É apenas em Paulo que encontramos a verdadeira expressão usada no título deste
artigo, a lei de Cristo; e ele a usa apenas uma vez, em Gálatas 6.2 (embora 1Co 9.21,
ἔννομος, Χριστοῦ, debaixo da lei de Cristo, seja semelhante). O significado da expressão é
debatido. Podemos encontrar três posições principais. Primeira é a visão de que a lei de
Cristo não difere, no que diz respeito ao conteúdo, da lei mosaica sobre a qual Paulo fala
em Gálatas. O que a torna a lei de Cristo é o fato de Cristo interpretá-la, ou cumpri-la, ou
providenciar as bases para a sua obediência. Em segundo lugar, há aqueles que veem a
palavra lei “formalmente” e acham que essa lei de Cristo é basicamente sem conteúdo.
Então, o que se quer dizer é que agora o próprio Cristo é a raiz e o padrão de toda
conduta cristã. Finalmente, a expressão pode ser vista como uma forma de declarar o
novo código de conduta aplicável aos cristãos da nova aliança. Como o AT teve a lei de
Moisés, também o NT tem a lei de Cristo.
Duas subdivisões importantes dessa última abordagem devem ser observadas. Alguns
acham que esse novo código consiste unicamente na exigência do amor (cf. Gl 5.14),
enquanto os outros veem a expressão como uma forma de denotar toda a tradição da
pessoa e do ensino de Jesus (incluindo, talvez, a parênese apostólica). 25 O que se torna
imediatamente óbvio é que somente o contexto mais amplo pode determinar qual dessas
alternativas deve ser preferida. Nesse contexto, duas questões chamam particularmente a
atenção: o sentido preciso no qual o mandamento do amor cumpre a lei (5.14) e o
significado da declaração de que os cristãos que são conduzidos pelo Espírito não estão
sob a lei (5.18). Visto que esses dois pontos são importantes para a tese deste artigo,
vamos aproveitar a ocasião para olhar para esses conceitos em outras cartas paulinas
também.

O AMOR E A LEI

Depois de estabelecer sua independência (e igualdade) em relação aos apóstolos de


Jerusalém em Gálatas 1.1–2.14, Paulo desenvolve seu entendimento do lugar da lei na
justificação e na história da salvação, assim como em sua resposta teológica central aos
judaizantes em 2.15–5.12. Gálatas 5.12–6.10 é mais bem visto como a resposta de Paulo à
possível objeção contra sua ênfase “lei–liberdade” na segunda seção, sendo comum então
a acusação de que os cristãos, livres da lei, ficariam sem motivação ou orientação ética. Se
os cristãos não devem mais ser circuncidados, é claro que a lei mosaica não é mais padrão
absoluto de conduta; os cristãos, então, são chamados para viver na liberdade (5.1). Mas
como os cristãos podem saber o que é certo ou errado? A liberdade não vai trazer
irresponsabilidade, rebeldia e imoralidade? É essa objeção que Paulo confronta,
começando em 5.13: Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis
da liberdade para dar ocasião à carne (σάρξ); sede, antes, servos uns dos outros, pelo
amor. O versículo 14 então explica por que o amor é tão importante: o mandamento do
amor (Lv 19.18) cumpre toda a lei.
Quais são as implicações dessa declaração para a validade duradoura da lei na vida dos
crentes? Nossa resposta depende de determinar a exata importância da mesma palavra
que ocupou nossa atenção em Mateus 5.17, πληρόω. Alguns interpretam Paulo com base
em algumas discussões rabínicas bem conhecidas, como aquela em que ele destaca o
mandamento do amor que, em princípio, contém todos os outros. Mas essa circunstância,
embora mais plausivelmente avançada para o ensino de Jesus em Mateus 22.34–40 (onde
mesmo assim, em minha opinião, está fora de lugar), é bem estranha ao contexto e ao
argumento de Gálatas.
Outra abordagem é ver Paulo descrever o amor como o resumo e a essência da lei. O
amor é o que determina aquilo que permanece no centro da lei, e sem adesão às suas
prescrições não há verdadeira obediência ao seu espírito. É dito que essa interpretação é
particularmente atrativa porque pode, em geral, ser comparada a Romanos 13.8–10, em
que Paulo diz explicitamente que o amor “resume” a lei. No entanto, esse resumo da lei
em Romanos 13 envolve também seu “cumprimento” (v. 8,10). Em Gálatas, o contexto
torna difícil pensar que Paulo quer apenas acrescentar amor como razão e princípio
subjacente à execução das prescrições da lei. Porque Paulo proibiu claramente os
convertidos gentios de obedecerem à lei da circuncisão, por amor ou não. E Gálatas 5.3
sugere que Paulo vê a lei como essencialmente completa e como um código que ele se
recusa a colocar sobre os cristãos da Galácia.
Portanto, a interpretação que emprega πληρόω para significar que quem obedece ao
mandamento do amor automaticamente faz o que a lei requer deve ser preferida. Isso se
harmoniza perfeitamente com a situação na Galácia, onde Paulo precisou mostrar como
os cristãos que não estão presos à lei podem e devem viver de acordo com o padrão
divino. Pode ser que a colocação não usual do artigo na expressão ὁ πᾶς νόμος (5.14)
tenha o propósito de destacar essa exigência unitária de Deus.
A esse respeito, muitos falam de uma “redução” da lei ao mandamento do amor. Mas
isso está indo longe demais. Embora claramente destacando o amor como uma atividade
que, em si, realiza o que a lei manda fazer, Paulo não rejeita os outros mandamentos
caracterizando-os como não mais relevantes. Pode ser também que a linguagem de Paulo
tanto em Gálatas 5.14 como em Romanos 13.8–10 sugira o tipo de cumprimento
escatológico que encontramos em Mateus 5.17. O mandamento do amor, ensinado pelo
próprio Jesus, representa a meta definitiva e o propósito da lei.
Em suma, Paulo em 5.14 realça o amor como a atividade que traz para o seu objetivo
pretendido o que a lei almejou. Para Paulo, ainda é necessário que os cristãos “cumpram”
a lei (cf. esp. Rm 8.4), mas ele jamais exige que os cristãos a “façam”. A distinção não é
apenas semântica. “Cumprimento” da lei em Paulo é ligado não à obediência dos
preceitos, mas à atitude de amor e à obra do Espírito. Até mesmo em Romanos 8.4 o
sentido não está no fato de o Espírito nos capacitar a fazer a lei, mas, por sermos
habitados pelo Espírito, a lei se cumpriu em nós. Assim, a continuidade na exigência de
Deus (a lei deve ser cumprida) é atendida por uma descontinuidade no método (não em
“fazer”, mas em amor e pelo Espírito). Resta ver se, claro, somos obrigados a agir de
acordo com preceitos diferentes da lei mosaica. Porque é essencial lembrar que estamos
discutindo a lei mosaica, não toda a lei. Mas talvez estejamos nos adiantando em nossa
discussão. Devemos voltar à “lei de Cristo” e perguntar que implicações podemos tirar
desta frase: pois não estais debaixo da lei.

“DEBAIXO DA LEI”

Além de Gálatas 5.18, Paulo usa a expressão ὑπὸ νόμον outras nove vezes. Quatro
delas estão em Gálatas (3.23; 4.4,5,21), três em 1Coríntios 9.20, e duas em Romanos
6.14,15. Vamos analisar rapidamente cada contexto para ver o que Paulo quer dizer com a
expressão. Romanos 6.14 – o pecado não terá domínio sobre vós – é uma reafirmação
triunfante do tema-chave do parágrafo: em união com Cristo experimenta-se libertação
definitiva do poder do pecado. Paulo dá a base para essa promessa em 6.14b: pois (γάρ)
não estais debaixo da lei (ὑπὸ νόμον), e sim da graça (ὑπὸ χάριν). Esse contraste serve
como uma transição para a próxima seção, na qual Paulo responde às conclusões
potencialmente antinomistas que poderiam ser tiradas de tal declaração. Mas o que o
contraste significa? A exegese reformada tradicional enfatiza particularmente o conceito
de estar debaixo da graça, que é entendido como uma referência à libertação da pena do
pecado. Ὑπὸ νόμον, o oposto, é entendido como uma referência à condenação
pronunciada pela lei. Então, Romanos 7.4, um versículo intimamente relacionado com
6.14,15 na sequência do pensamento de Paulo, é entendido como referência à mesma
libertação da condenação. Alguns que defendem essa interpretação sugerem uma nuança
adicional. Eles sugerem que não estar debaixo da lei (6.14,15) e morto para a lei (7.4)
pode significar também libertação da perversão da lei, típico da interpretação legalista
judaica da lei. No entanto, a última sugestão é particularmente improvável. Mesmo sendo
aceitável a explicação de algumas das mais negativas declarações sobre a lei em Paulo, ao
sugerir que a “lei” quase sempre significa não a lei como Deus a deu, mas a lei na forma
pervertida pelos homens que a transformaram em meio de salvação, 35 poucos, se é que
existe algum, contextos apoiam tal significado para a palavra. Às vezes, Paulo critica o
“legalismo”, mas, quando o faz, usa expressões que se aplicam ao ato de alguém tentar se
justificar “com base na” (ἐκ) lei (cf Rm 10.5; Fp 3.9) ou por meio de “obras da lei” (Gl 2.16
etc.). Ou seja, não é a palavra νόμος em si que denota “legalismo” em Paulo, mas sim as
várias frases nas quais a lei (como Deus a deu) é falsamente entendida como base para
salvação. No contexto de Romanos 6–7, o significado de “legalista” é particularmente
inapropriado. A condição de estar “debaixo da lei” e se libertar dessa situação pela
incorporação na morte de Cristo (7.4) claramente implica que estar debaixo da lei é uma
condição objetiva que é bem independente da atitude de alguém para com a lei ou da
compreensão dela. Como Räisänen diz: “… é difícil entender por que um método tão
drástico como a morte, tanto de Cristo como dos cristãos, teria sido necessário para se
livrar de um mero mal entendido a respeito da lei. Uma nova revelação sobre seu
verdadeiro significado teria bastado”.
Certamente é possível que Paulo inclua condenação em sua compreensão de estar
debaixo da lei. Mas é questionável se isso é tudo o que se entende disso. Em Romanos 6,
sabemos que o principal assunto não é a isenção da pena do pecado, mas a liberdade do
domínio do pecado. Se o pecado não deve dominar o crente (6.14a), é necessário mais do
que perdão. Afinal, a justificação em si poderia simplesmente livrar o crente de pecar com
impunidade – essa é precisamente a objeção levantada em 6.1. No contexto, então, há
razão para pensar que não estais debaixo da lei envolve mais do que ser livre de
condenação. Essa conclusão encontra apoio em dois outros fatores contextuais. A última
referência a νόμος antes de 6.14 vem em 5.20a, em que a lei é retratada como uma
instigadora do pecado: Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa. Se a lei funcionou
historicamente para intensificar o pecado, poderíamos supor que não estais debaixo da lei
descreve a condição de liberdade da instigação do pecado.
O argumento de Paulo em 6.15ss deve também ser notado. Exatamente a questão
sobre se alguém poderia pecar impunemente pelo fato de não estar mais sob a lei sugere
fortemente que não estar debaixo da lei, para Paulo, implica não estar debaixo de seus
preceitos. E é interessante notar que Paulo não argumenta em 6.16ss que a obediência à
lei é ainda requerida, mas que a obediência a Deus ou à justiça é necessária para o cristão.
A última é reconhecidamente um argumento de silêncio, mas, apesar disso, é sugestivo. O
que estamos sugerindo, então, é que estar debaixo da lei significa viver sob o regime ou
domínio da lei.
Tal conceito se ajusta bem a Romanos 6–8, em que Paulo emprega consistentemente
a metáfora de escravidão, liberdade e a transferência de um domínio para outro para
denotar o estado do crente. Assim, ele fala do cristão morrer para o pecado e unir-se a
Cristo (6.1–11), estar livre do pecado e escravizado a Deus e à justiça (6.15–23), morrer
para a lei (7.4), estar livre dela (7.3–5) para estar unido a Cristo (7.4), e ser libertado da
esfera da carne (7.5; 8.9) e colocado na esfera do Espírito (7.6; 8.9). Paulo designa a
mudança de um regime para outro ao falar dos cristãos não mais sob a lei, e sim sob a
graça, e isso se encaixa muito bem nesse argumento. O propósito de Paulo, então, é dizer
que o cristão vive em uma nova liberdade do poder do pecado, porque não vive mais sob
aquele regime no qual a lei mosaica fortalecia o domínio do pecado. Essa área da lei,
embora Paulo não diga especificamente isso aqui, obviamente inclui as ordenanças
específicas da lei. Não estar debaixo da lei, portanto, inclui não estar diretamente sujeito
às ordenanças da lei de Moisés.
Essa análise é geralmente coerente com o que encontramos em Gálatas. Paulo usa
primeiro a expressão ὑπὸ νόμον em 3.23 em sua explanação do propósito da lei na
história da salvação (a referência à entrega dessa lei por meio dos anjos [v. 19], 430 anos
depois de Abraão [v. 17], e a ênfase no propósito divino em todo o texto dão a ideia de
que Paulo está falando aqui da lei “equivocada” dos legalistas judeus que abrangia noções
incríveis). A lei, Paulo explicou, não é base para a justificação (3.10–14); ela foi dada 430
anos depois da promessa de Deus a Abraão e não pôde invalidar o caráter estritamente
promissório daquele acordo original (v. 15–18). Qual, pois, a razão de ser da lei? (v. 19a)?
Ela foi adicionada, diz Paulo: τῶν παραβάσεων χάριν. Embora o significado da expressão
seja debatido, provavelmente pode ser entendida como paralelo aproximado de Romanos
5.20. A lei tinha como um de seus propósitos a “intensificação” da “transgressão”, no
sentido de que a lei deu mais incentivo ao pecado que havia começado com Adão, e o
tornou mais grave ao claramente marcá-lo como rebelião contra a vontade de Deus.
O uso do verbo προστίθημι (“adicionar”) reitera o propósito dos versículos 15–18 de
que a lei veio depois da promessa a Abraão. Agora Paulo mostra que a lei teve, por outro
lado, também um limite temporário: ela foi até que viesse o descendente a quem se fez a
promessa (Gl 3. 19b). Os versículos 19b e 20 são tão difíceis quanto qualquer outro em
Paulo, mas o nosso presente propósito não requer que decidamos sobre o significado
deles.
Outra questão relacionada àquela levantada em 19a é trazida à discussão: É,
porventura, a lei contrária às promessas de Deus? (v. 21). A rejeição de Paulo dessa
suposição é apoiada, primeiro, por um ponto negativo: desde que a lei nunca teve a
intenção de garantir a vida eterna, seu propósito não conflita finalmente com o propósito
da promessa. Portanto, embora Paulo conceda claramente à lei um potencial
teoricamente vivificante (Rm 7.10: εἰς ζωήν), ele nega que seja uma possibilidade prática
guardar a lei para garantir essa vida. Porque ninguém depois da queda tem a capacidade
de cumprir a lei perfeitamente; e somente esse cumprimento perfeito levaria à segurança
da vida eterna. O apoio positivo para a compatibilidade da lei e da promessa é encontrado
no esboço de Paulo do propósito e função da lei na história da salvação. Este é o tema de
Gálatas 3.21–4.11.
Para entendermos o que ὑπὸ νόμον significa em 3.23, devemos olhar para os paralelos
da expressão que ocorrem em todo o contexto. Essas expressões são usadas para denotar
a vida dos judeus antes de Cristo e são contrastadas com outra série de expressões que
descrevem a situação dos cristãos. Parece claro que Paulo está falando principalmente dos
judeus sob a lei e na estrutura da história da salvação, não de experiência individual. Os
limites temporários da situação “debaixo da lei” que Paulo descreve são, como vimos,
Abraão por um lado e Cristo, por outro. Esse mesmo contexto temporário continua em
3.22–4.11: a lei vigorou antes que viesse a fé [em Cristo] (v. 23), “até” Cristo (v. 24,25 –
tomando o εἰς como temporário, como sugere o contexto); e foi quando Deus enviou seu
Filho, na plenitude do tempo (4.4), que se efetuou a transição do período de
confinamento próprio da fase de menoridade para o tempo de desfrute da herança. Não
está claro se Paulo tem em mente os judeus. Os verbos na primeira pessoa do plural e os
pronomes usados de 3.23 a 4.5 poderiam apontar nessa direção, mas o uso que Paulo faz
dessa primeira pessoa é notoriamente difícil de especificar.
No entanto, embora seja verdade que Paulo descreve os gentios como aqueles que
têm algum tipo de relacionamento com a lei (cf. Rm 2.14,15), é igualmente claro que ele
pode designá-los simplesmente como aqueles que não têm a lei (cf. Rm 2.12; 1Co 9.20,
21), restringindo a lei principalmente aos judeus. Embora o dogmatismo seja inadequado,
pode ser o caso que o “nós” de Gálatas 3.23–4.5 seja “nós, os judeus”. A transição para os
gentios seria então feita em 4.5; a redenção dos judeus sob a lei tem o propósito de
causar o “envio do filho” a todos os cristãos.
Esse assunto é importante para a questão do status dos gentios no AT. Estavam eles,
de alguma forma, “debaixo da lei”? Paulo nos fornece apenas pistas, mas argumenta que
os gentios têm relacionamento com a “lei”, embora não seja a lei mosaica (Rm 2.14, 15).
Talvez seja melhor ver a experiência de Israel com a lei como paradigma de todas as
nações. Embora os gentios não estivessem “debaixo da lei” no mesmo sentido que Israel
estava, eles seriam responsáveis pelos padrões morais que Deus havia imposto sobre eles.
Os profetas do AT podem condenar as “nações” por causa desse padrão. Além disso, as
nações estariam sob a condenação resultante do fato de terem fracassado em viver de
acordo com os padrões que Deus lhes havia imposto. A advertência de Paulo em Gálatas
4.21 e 5.4 de que os cristãos gentios que se colocam sob a lei estão desligados de Cristo
sugere a contínua importância dessa função da lei. Assim, o cumprimento da lei feito por
Cristo é aplicável somente aos que se tornam unidos a ele pela fé; para os que estão fora
de Cristo, tanto judeus como gentios, a “lei” de Deus continua a condenar.
Além de estar ὑπὸ νόμον, Paulo diz também que Israel era ὑπὸ παιδαγωγόν (“debaixo
de um pedagogo”, 3.24,25) como um herdeiro menor (criança) νήπιοι sob os cuidados de
tutores e curadores (ὑπὸ ἐπιτρόπους καὶ οἰκονόμος, [4.1–3]) e sujeitos aos rudimentos do
mundo (ὑπὸ τὰ στοιχεῖα τοῦ κόσμου [4.3]). Essas descrições estão inter-relacionadas e
mutuamente se interpretam, e isso é perceptível pela repetição da palavra-chave ὑπό e da
fluência do contexto. Linda Belleville, num ensaio bem debatido, demonstrou isso e tem
mostrado que o elemento de rigorosa supervisão e de segurança é a imagem produzida
por essa série de descrições. O παιδαγωγός emerge da literatura antiga não como o
“tutor” que conduz uma criança (uma função frequentemente atribuída à lei na vida de
um indivíduo, de acordo com o entendimento de Gálatas 3.24, 25), nem como uma
personalidade excessivamente áspera, mas como um servo que supervisiona de perto,
monitora e protege uma criancinha. Que estamos na direção certa em nossa interpretação
de παιδαγωγός é confirmado pelo contraste de “menor/criança” com “plenos direitos”
que domina 4.1–5. A expressão τὰ στοιχεῖα τοῦ κόσμου (usada em 4.3 e em Cl 2.8, 20; cf.
πτωχὰ στοιχεῖα em 4.9 e τά στοιχεῖα τῆς ἀρχῆς em Hb 5.12) é uma das mais debatidas em
Paulo, mas, tomando-a no sentido de “princípios ou normas elementares ou básicas”, tem
muito a ser dito em relação a ela.
O propósito de Paulo é, então, mostrar que a lei teve o objetivo de regular a vida do
povo de Deus por um período de tempo. Ela impôs regras, comportamento cauteloso e
serviu para revelar, confinar e estimular o pecado. Tudo isso foi planejado por Deus como
preparação para a era do cumprimento que chegou em Cristo, na qual os escravos se
tornaram filhos por meio da redenção produzida por Cristo e pelo dom do Espírito. A
semelhança com Romanos 6.14,15 é óbvia. Em ambos os contextos, um estágio anterior
da história da salvação, ὑπὸ νόμον é contrastado com a era presente (denotada por ὑπὸ
χάριν em Romanos), com particular ênfase na liberdade desfrutada no estado posterior. E,
como em Romanos, não estar ὑπὸ νόμον parece claramente incluir não estar obrigado à
lei como um código de conduta. Porque, quando alguém chega à maturidade, não precisa
mais do “tutor” para ser dirigido, orientado e corrigido.
Dito tudo isso, não é possível afirmar que o crente não tem absolutamente nada que
ver com os preceitos da lei, mesmo porque tal visão é provavelmente extrema demais.
Longenecker, por exemplo, sugere que façamos a clara distinção entre a “lei como padrão
e julgamento de Deus” com a “lei como obrigação contratual”. Pela última, Longenecker
quer dizer que a lei, sob a antiga aliança, foi um componente necessário, embora
secundário (à fé), de devoção e justiça. É nesse sentido que os cristãos não estão mais
“debaixo da lei”; ela não permanece mais como norma impositiva para que o
relacionamento de alguém com Deus sobreviva. Isso não significa, entretanto, insiste
Longenecker, que a lei em sua autoridade de julgar e condenar é abolida. Há muito a ser
dito em relação a essa distinção particular, e nos protege de entender a linguagem de
Paulo além do que deve ser entendido. Mas não será feita justiça ao argumento de Paulo
em Gálatas 3–4, a menos que haja o reconhecimento da liberação definida da força que
prende e da tutela imposta pelos preceitos da lei mosaica.
A expressão ὑπὸ νόμον é usada por Paulo em outro contexto. Em 1Coríntios 9.20,21,
Paulo a cita como exemplo de sua disposição de se privar de seus “direitos” apostólicos
em favor dos interesses do crescimento espiritual de outros, sua flexibilidade com
respeito ao seu hábito de vida:
Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem
sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo
da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não
estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo [ἔννομος Χριστοῦ], para
ganhar os que vivem fora do regime da lei.

Está claro que ὑπὸ νόμον aqui não pode designar olhar para a lei como meio de
salvação ou até mesmo estar debaixo da condenação da lei. Paulo certamente não faria o
primeiro por qualquer motivo e claramente não poderia, como cristão, fazer o último. O
que Paulo tem em mente é o seu estilo de vida, e deixa claro que não está sob a obrigação
de buscar um estilo de vida ditado pelos preceitos da lei. Ao evangelizar os judeus, ele
pode proceder assim; mas, ao evangelizar os gentios, ele exerce a liberdade de não o
fazer. Não há nada nesse contexto ou no uso de Paulo de νόμος que justificaria uma
restrição aqui à lei cúltica ou a qualquer parte da lei.

GÁLATAS 5–6
Agora vamos retornar a Gálatas 5–6. Em 5.13–15, Paulo dirigiu o exercício da
liberdade cristã de acordo com a exigência central do amor; a partir do versículo 16, ele
ressalta o Espírito como uma segunda força diretriz. A guerra constante entre a força da
era antiga, caracterizada pela fragilidade e fraqueza humana – σάρξ, a carne – e o poder
da nova era – o Espírito – faz com que o crente tenha o cuidado de viver de acordo com o
Espírito (v. 16,17). Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais sob a lei (ὑπὸ νόμον)
(5.18). A cláusula condicional deve ser entendida como afirmação da realidade da
situação; “o indicativo da salvação”, como afirma Betz. Todos os que pertencem a Cristo
são, de fato, guiados pelo Espírito (cf. Rm 8.14) – embora isso não signifique que todos
estejam “andando” pelo Espírito, mas que não estão debaixo da lei. Mais uma vez vemos
que sob a lei designa o status oposto ao status do crente. Estar “debaixo da graça”, como
filhos livres de Deus, guiados pelo Espírito, significa viver na nova era da redenção, não
mais na antiga era que foi caracterizada e dominada pela lei.
Mais uma vez, argumenta-se que não estar sob a lei envolve não estar preso ao
legalismo ou à força condenatória e constrangedora da lei. Mas a discussão subsequente
do “fruto do Espírito”, com sua óbvia ênfase comportamental, sugere o contrário. O
cristão, vivendo pelo Espírito, deve também andar no Espírito (στοιχέω) (5.25) e, com isso,
produzirá as qualidades aprovadas por Deus. Então, é difícil evitar a conclusão de que a
vida no Espírito é proposta por Paulo como fundamento da ética cristã, em contraste com
a vida sob a lei.
Tendo examinado o contexto imediato da lei de Cristo (Gl 6.2), podemos agora sugerir
uma provável interpretação da expressão. A lei de Cristo é a forma de Paulo afirmar a
exigência de Deus que está vinculando os cristãos desde a vinda de Cristo. A lei
certamente retrata o mandamento do amor como um de seus componentes mais
fundamentais (5.13–15) e inclui o andar sob a direção do Espírito, que é um princípio
fundamental. Mas, com base no que vimos antes, está claro que a referência não é
essencialmente à lei mosaica, mesmo “interpretada” ou “cumprida”. E outra evidência
aponta na mesma direção. Se Efésios 2.15 se refere somente aos aspectos cerimoniais da
lei que serviram para separar o judeu do gentio ou se refere à lei como um todo, é assunto
debatido, e é melhor esse texto não ser usado aqui. Mas em 1Timóteo 1.9 – “a lei não é
‘imposta sobre’ (κεῖται) a pessoa justa (δικαίῳ)” (tradução literal) – o que provavelmente
significa que a lei não está atrelada aos cristãos.
Mas dois assuntos não são tão claros. A lei de Cristo inclui também ensinos e
exigências específicas como estabelecidos por Cristo e os apóstolos? Muitos dizem que
não, mas as razões dadas frequentemente denunciam uma propensão contra encontrar
algumas exigências específicas obrigando os cristãos. O trabalho de Schrage e outros tem
mostrado que Paulo e os demais apóstolos estavam dispostos a impor mandamentos
específicos sobre seus fardos, e Paulo faz alusão e usa os ensinos de Jesus mais do que, às
vezes, tem sido reconhecido.54 Isso, claro, não prova que Paulo tem esses componentes
em mente quando fala da “lei de Cristo”, mas a opção deve, pelo menos, ficar em aberto.
Em segundo lugar, a lei mosaica desempenha algum papel na “lei de Cristo”? Do ponto de
vista de uma distinção pura e simples, é tentador dizer: “Absolutamente; a lei de Moisés
foi para a antiga aliança; a lei de Cristo foi para a nova”. Mas há evidência de que isso é
excessivamente simples.
A esse respeito frequentemente se recorre aos textos em que Paulo parece usar a lei
do AT como uma norma contínua de conduta. Alguns fazem alusão a 1Coríntios 7.19, em
que Paulo enfatiza a necessidade de guardar as ordenanças de Deus. Mas, num contexto
no qual Paulo explicitamente nega a validade contínua da circuncisão, está claro, pelo
menos, que as ordenanças de Deus não podem se referir à lei mosaica simpliciter. Alguns,
então, entendem que é uma referência à lei moral. 56 Pode ser que estejam certos, mas de
certa forma isso é improvável, à luz do fato de Paulo não aplicar as leis do AT aos coríntios,
embora ele esteja profundamente interessado em combater suas tendências libertinas.
Até mesmo 1Coríntios 14.34, que faz referência à “lei”, é uma alusão não à lei mosaica,
mas à narrativa bíblica da criação (ou talvez da queda). Nem muito pode ser feito de
1Coríntios 9.8–10. Embora Paulo certamente cite a lei de Moisés aqui, seu uso do texto
deuteronômico é notoriamente obscuro, e ele parece citá-lo não como autoridade
obrigatória, mas como princípio que resume. De fato, o único lugar nas cartas de Paulo no
qual ele parece inequivocamente citar a lei mosaica como aplicável aos cristãos é Efésios
6.2, em que o mandamento do Decálogo de honrar os pais é citado para mostrar o que é
“certo” (δίκαιον) aos filhos cristãos. Alguns procuram minimizar essa referência, mas é
questionável se isso pode ser feito.
Além disso, a evidência da epístola de Tiago deve também ser considerada. Tiago é
visto, às vezes, como conservador em sua atitude para com a relevância da lei, mas isso é
exagerado. Ele chama a lei de lei da liberdade (1.25; 2.12) e a associa intimamente ao
evangelho (v. a sequência em 1.18–25). E seu uso de régia para descrever a lei em 2.8 é
provavelmente uma alusão ao próprio ensino de Jesus. No entanto, Tiago pode citar os
mandamentos do Decálogo como parte daquela lei que será o critério do julgamento
(2.10–12).

CONCLUSÃO
O que vimos, então, é que a ênfase paulina na descontinuidade entre a lei de Moisés e
a lei de Cristo não pode eliminar algum grau de continuidade. Como isso deve ser
entendido? Em primeiro lugar, claramente não se trata de um assunto de equilíbrio ou
uma questão de tensão entre dois pontos igualmente importantes. A descontinuidade é
simplesmente a “linha principal” tanto em claros pronunciamentos teológicos como na
prática real do ensino de ética no NT. Devemos, portanto, falar de uma “continuidade
dentro da descontinuidade”. Herman Ridderbos oferece uma longa e perspicaz discussão
dessa matéria, concluindo não haver dúvida de que “… a categoria da lei não foi revogada
com a vinda de Cristo; ao contrário, foi mantida e interpretada em seu sentido radical
(cumprir; Mt 5.17); por outro lado, a igreja não tem mais nada que ver com a lei de
qualquer outra forma, senão em Cristo, e, dessa forma, é ennomos Christou”.
Embora eu não devesse colocar tanta ênfase na continuidade como faz Ridderbos em
partes desta discussão, este resumo captura admiravelmente o centro do assunto. O
cristão não está mais obrigado à lei mosaica; Cristo realizou seu cumprimento. Mas o
cristão está obrigado à “lei de Deus” (1Co 9.20,21; cf. ordenanças de Deus em 1Co 7.19 e
1Jo, passim). “Lei de Deus” não é, entretanto, a lei mosaica, mas a lei de Cristo (1Co
9.20,21; Gl 6.2), porque é a Cristo, o cumpridor, o τέλος da lei (Rm 10.4), que o cristão
está obrigado. Nesse “cumprimento” da lei, entretanto, alguns dos mandamentos
mosaicos são aceitos e reaplicados ao povo de Deus na nova aliança. Assim, embora a lei
mosaica não se coloque como autoridade que não se diferenciou para o cristão, alguns de
seus mandamentos individuais permanecem respeitados como integrados à lei de Cristo.
Em termos práticos, isso significa que o cristão deve sempre ver a lei toda somente
sob a condição do seu cumprimento. Nenhum mandamento, até mesmo os do Decálogo,
é obrigatório apenas por fazer parte da lei mosaica. Ao dizer isso, estou indo diretamente
contra uma tradição estimada e amplamente ensinada. A distinção do Decálogo como
básica e eterna “lei moral” tem uma longa e respeitada história, para ser diferenciado da
lei cerimonial e civil e, com isso, ser visto como autoridade ética eternamente válida.
Mesmo nessa tradição, entretanto, há considerável discussão sobre o que fazer com o
mandamento do sábado que, pelo menos para a grande maioria dos que têm defendido
essa abordagem, não tem sido aplicado ou obedecido na forma em que foi dado no
princípio (p. ex., ao requerer o descanso no sétimo dia). Uma dificuldade adicional é a
questão de como determinar o que foi a lei “moral” e o que não foi. Mas a dificuldade
básica, claro, é que o NT não trata o assunto dessa forma. A lei toda, cada i ou til, é
cumprida em Cristo e somente pode ser compreendida e aplicada à luz desse
cumprimento. Na prática ética real, muito pouco se perdeu. Porque o NT adota
claramente todo o Decálogo, com exceção do sábado, como parte da lei de Cristo e, dessa
forma, como fidedigno para os crentes. Mas considerável diferença no conceito teológico
está envolvida, e a diferença de abordagem é, consequentemente, insignificante.
Uma abordagem que elimina a lei mosaica como autoridade compulsória para o
cristão é às vezes acusada de ser “antinomista” e de abrir a porta para a relatividade ética.
Mas duas respostas a essa acusação precisam ser dadas. Primeira, a posição aqui
esboçada afirma que os cristãos não estão sob a lei mosaica, não que estão livres de toda
lei. A distinção entre a lei mosaica, que é claramente o que os escritores do NT querem
dizer 95% das vezes quando usam a palavra “lei”, e o conceito teológico de “lei” precisam
ser cuidadosamente observados. Vimos que a distinção tem suas raízes no NT, onde Paulo
pode distinguir entre a lei de Moisés e a lei de Cristo (1Co 9.20,21). A falha em observar
essa distinção tem resultado em considerável confusão e mal-entendidos. Em segundo
lugar, com receio do falso niilismo ético, sente-se que há uma falha no reconhecimento do
poder do Espírito de Deus operante no crente. Quando as implicações “antinomistas” do
ensino de Paulo foram levantadas como objeção contra esse ensino, Paulo respondeu não
apresentando uma “nova lei”, mas apontando para o Espírito (Gl 5.16ss) e para a união
com Cristo (Rm 6). Temos de admitir a necessidade de reconhecer o fato de os cristãos
quase sempre fracassarem em andar de acordo com esse Espírito e a necessidade da “lei”
para corrigi-los e discipliná-los (Lutero é eloquente nesse ponto). Mas qualquer
abordagem que substitua o Espírito por mandamentos externos como norma básica para
a vida cristã encontra sérias dificuldades em Paulo.
Finalmente, resta ser visto o potencial desta abordagem geral para unificar os vários
ensinos do NT sobre a lei. Este ensaio somente arranhou a superfície e deixou intacto
muitos textos difíceis. Mas podemos ver pontos de concordância com respeito à
centralidade do “cumprimento” da lei por Jesus, com suas implicações em relação à
“continuidade dentro da descontinuidade” e na nova autoridade que age como força
aglutinadora na conduta cristã. O paradigma aqui sugerido pode, então, provar ser útil o
estabelecimento da unidade do NT sobre o assunto teológico fundamental.1

1 Douglas J. Moo, “A Lei de Moisés ou a Lei de Cristo”, in Continuidade e Descontinuidade:


Perspectivas Sobre o Relacionamento Entre o Antigo e o Novo Testamentos, org. John S. Feinberg e
Juan Carlos Martinez, trad. Onofre Muniz, 1a edição (São Paulo: Hagnos, 2013), 247–266.

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