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Nietzsche e o Ressentimento

O documento é uma apresentação do livro 'Nietzsche e o Ressentimento' de Antonio Edmilson Paschoal, publicado pela Editora Humanitas em 2014. O texto inclui informações sobre a coordenação editorial, apoio financeiro e detalhes de catalogação. O livro faz parte da série 'Nietzsche em Perspectiva' e aborda temas relacionados à filosofia contemporânea e moral.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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Nietzsche e o Ressentimento

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UNlVERSIDADE DE SAo PAULO
NIETZSCHEEM PERSPECTIVA
FA(Tl.DADE DE fILOSOFIA, LL'J RAS E C!GNCIAS HU\iANAS

Diretor
Sérgio frança Adorno de Abreu

Vice-Diretor
João Rohcrrn Gomes de Faria
ANTONIO EDMILSON PASCHOAL

EDITORA HI'MANTTAS

Presidente
Sedi Hírano NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO
Vice-Presidente
Valeria De Marco

Nietzsche em perspectiva

Coordenação: Vânia Dmra de Azeredo (l'UC-Cunpinas)


Conselho Editorial: Scarlett Marcon (USP}, Roberto Machado (UFHJ},
Ernildo Stein (PUCRS}, Francis Wolff WNS/Paris), Mônica B, Cragnolini (Ufü\/
Buenos Aires), Nuno Nabais (UNL/Lisboa), Pcrcr P,íl Pclhart (PLJCSP), 1'.tulo
Roberto Margutti (UFMG), Rosa ,\,faria Dias (UERJ}, Olímpio Pimcnra (UFOP),
Sandra Corazza (UFRGS), Antonio Edmilson Paschoal (PUCPR}, Cladcmir Luís
Araldi (Ofpcl), Wilson frezzaniJünior (Uniocstc); Ivo da SilvaJé,nior (Unifcsp);
Ernani Chaves (Uf!BP); Rogério Lopes Miranda (UFMG).

l;,J
Apoio financeiro: AssociaçãoParanaensc de Cultura - PUC/PR

HUMANITAI
Prníhida a reprodução parcial ou integral
de::;taobrn por qu,1\ciucrmeio dccrônico, mt.::- Ruat.fo Ligo, 717 -· Cid. Cniv~rsidrü
dnico, inclusive por pron:.sso xerográfico. 05508-080 - S:io Paulu - Sl' - ílrasil
pcnHls.s:l<ic:xpre:ssado ediror (Lei nº.
::,:c..:m Tdefax: 3091-2920
9.610, de 1'.J/02/1998). c-mall: l·dímrahumanita,,f~~·mp.br
http ://\VW\V. i.:diru ra hu rnJ11 ilas. cn 111.br
HUMANITA~

Foi feiro t) depósito lcg,11na l3ibliotrca Nacional (Lcl n') l .825, de 20/12/1907}
São Paulo, 2014
lmpre::.so no Brasil/ Printed ir1 Hra:z..il
Mar1:o / 2015
C:opyr({htfl 20 I 4 Antonio Edmilson Pasdwal

Catalogação na Puhlicaçfo (Cl P)


Serviço de Biblioteca e Documenta~:ão
Faculdade de Filosofia, Lerras e Ciências Human;is da Universidade de Sã.o P,1ulo

Paschoal, Antonio Edmibon.


P279 Nícrzschc e o rcssc1Himc:nt:o/ Anronio Edmilson Paschoal. -- .S;io
Paulo: H uman icas, 20 14.
226 p. -- (Nicrz.,chc cm Pcrspccriva)

lSBN 978-85-7732-250-3

1. Filosofia contemporânea - Alemanha. 2. Moral. 1. Nicrzsche,


friedrich Wilhdrn, 1844-1900. II. Título. 1.11.Série.

CDD 193.9

SERVIÇO DE EDITOR.AÇAO E DISTlt!BUlÇAO

3091-2920/4593
[email protected]

Coordenaçãolditori,zl
M• Helena G. Rodrigues - MTh n. 28.840
À Fátima, Tânia e Aline...
Projt'toGrdfico
M' Helena G. Rodrigues

Dittgr,urwção
W.1lquir da Silva - MTb n. 28.841

Capa
Carlos Colemuano

Revisãoda diagramação
Catarine Aurora Nogueira Pereira
AGRADECIMENTOS

Ao Professor Dr. Werncr Sregmaier pela acolhida


em Greifswald e pelos debates em torno do rema dores-
sen timento, bem como aos colegas do Greifswaldcr
Nietzsche-Forschungsgruppe;

Ao Dr. Erdmann von Wilamowirz-Moellendorff, res-


ponsável pelo Acervo-Nietzsche da Biblioteca Herzogin Anna
Amalia em Weimar, pela acolhida, amizade e pelo apoio
logístico no uso da biblioteca de Nietzsche;

Ao professor do Departamento de Filosofia da Univer-


sidade de Leipzig- Prof. Dr. Chriscoph Türckc, pela acolhida,
conversas e provocações sobre o tema da pesquisa;

Ao professor Oswaldo Giacoia Junior, pela inspiração


Neste pomo tem início o texto, a exposição de ideias
já "gastas e cansadas" (Niecz_~che).
Aqui começa, tam-
interlocução e amizade;
bém, o "difícil 1x1uilíbrio"(Merleau-Ponry) encre es-
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
sas ideias e os leitores, com suas ideias próprias. A par-
Superior (CAPES) e ao Conselho Nacional de Desenvolvi-
tir daqui eu encontro meus leitores.
mento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio finan-
ceiro que possibilitou minhas estadiasde pesquisana Alemanha;

À Vânia Dutra Azeredo, por ter acolhido o manuscrito


para publicação na coleção "Nietzsche em Perspectiva".
NOTASOBREAS CITAÇÕESDOS
ESCRITOSDE NIETZSCHE

Faço as citações dos escritos de Nietzsche por meio de


siglas já convencionadas, conforme lista abaixo. O objetivo é
facilitar o acesso à obra independentemente da edição utiliza-
da. Além da sigla, faço a referência ao volume e à página da
edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari:
SdmtlicheWerke.Kritische Studienausgabe (KSA), em 15 vo-
lumes, que comporta todas as anotações e textos consultados.
Para o caso das cartas de Nietzsche, indico o volume e a
página da edição crítica das canas do filósofo, organizada tam-
bém por Giorgio Colli e Mazzino Monrinari: SdmtlicheBriefe.
Kritische Studienausgabe (KSB), em 8 volumes.

Siglas das obrasutilizadas:

NT - O .l\Ta.rcimen!o
da Tnff'/dia
CE I - Considerarões
ExtemporâneasI: Dazàl.\'traim,o Confessor
e o Escritor
CE II - Con.riderarões II: Da UtilidadeeDtsvant,igemda His-
F,;:x:lemporâneas
tóriaParaa Vida
CE III Extevtporâm:asIII: Schopenhamrco1J10
- Considerações Edt1cador
CE IV - Consideraçõe.r
Rxtem/JoráneasIV: Richardlf:1/agner
mi Bqyre/,{fh

HH - Humano, Dev,asiadoI-l!tmano1
OS DemasiadoHmnano II: 1viiscel,inea
- Ht11t1a110, de Opiniõese Sentenças
AS - Hmvano Dema.riado
Humano II: O.Andarilhoe s11aSombra
A - ...-11mir,1

GC - // ( :a1~1 ( .f{'///1c/
ZA - Assim/à/ou %aratustm
ABM - .A.km deBe/JIe 1Hal
GM - Paraa Genea!o,gia
da Aforai
cw - O Caso ffé,gner
CI - O CreptÍsc11!0
dosÍdolos SUMÁRIO
AC - O Anticristo
EH - Ecff Homo

DD - Ditim,vhosrk Dioniso
NW - Ntúzscht wntm Uíc({;lltr PREFl\00 ................................................................................................ 15

Para os textos de Nietzsche, embora opte por apresentar rN·n:zoDUÇÃO ................................................................................... . 25


uma tradução própria, não deixo de consultar as já existentes,
1. O TERMO "RESSENTIMENTO" E SUAS OCORRÊNCIAS
cm especial aquelas feitas por Paulo César de Souza, Rubens NOS ESCRITOS DE NlETZSCHE ......................... . 29
Torres Filho, Mario da Silva e Andrés Sánchez Pascual (este J. 1 ASPECTOS SEMANTICOS DO HRJ\10 "RESSENTllvlE'JlO" 29
último
.
em espanhol). Traduções que recomendo para aqueles
.
1.2 RF.SSF.KTIMEI\TO.APROl'RW,:AO E USO DO CONCEITO PORNIF:IZSUJL .. 34
leitores que não tem acesso direto ao texto alemão do filósofo. 1.3 0 RESSl:NTIMENTO NOS ESCRITOS DE Nwrzsc1 IE....................... 37
1.4Usos DO TERMO RESSENTIMENTO EM PAR11A (;JilVFNO(;/A /)1JMOIIAI. 41
Outras citações que fazemos por meio de siglas, l. 5 Ú1 :rJJ'vlA,OllSF.RVAÇÜESSOGRF.O USO IlO TERMO RF.,Sl'.Nl'IMENTO POR
em função da sua grande recorrência são: 49

2. RESSENTIMENTO E VONTADE DE PODER .............................. 51


WL Der WerthdesLebens - de Eugcn Dühring
2.1 DEMARCA(,:ÃO T'JICIAI DA QUESTAO A SER l!\VF.STIGALJA............... 51
Curst/S CursusderPhilosophie - de Eugen Dühring
2.2 RFSSENTJMr.rs·To l' VONTADE DE POllER ............ . 54
MS Memóriasdosuhsow - de F.Dostoiévski
2.3 Ü RESSENTIMENTO L\l TERMOS TNll!VIDliAIS: A MMS l'lc.R/\JCJOSA
LS L'espritsouterrain - atribuído a F Dostoiévski 63
2.4 o Rl'SSEN I IMENTO ( :oMO lJM rEN0MF.NO SOCIAL: A RFBF.LTAO
ESCRAVANA
Para essascitações, após a sigla segue-se o número da página 65
2.5 Ü RESSE:-,JTJME'JTO
COMO UM FENl)MENO SOCIAL: A l'FQCENA
na edição indicada nas referências ao final do livro.
7l
2.6 ALGUMAS Prs·us DO lllE,\L CONTRÁRIO ........................................... 74
---------------

3. NIETZSCHE E DÜHRING: RESSENTIMENTO, VINGANÇA E 6. POSSIBILIDADESDE SE COLOCAR PARAALÉMDO


JUSTIÇA ................................................................................................ 77 RESSENTIMENTO ............................................................................. 175
3.1 KARL EucEN DOHRJNG.............................................................. 77 6. l Ü llFU:--IEAMENTO IJE L/M C.ONTRAPON'J"ü ................................... J75
3.2 Os PRIMEIROScor-:·[~TOS DE NtF.17.SCHE COM A OHlv\ DE D01IRIKG...... 79 6.2 A METODOI OGIA CmTICADA POR NIETZSCHE ................................. 178
3.3 ATE$F DE DüHIUNl~ SO!ll\E ti ORIGEM llA JUSTIÇA.......................... 84 6.3 A UJV/'U llO,\ÜM DOI!OMEM F. OS PRIMEIROSINDÍCIOS DE COMO
I.IVllAR-SE DO RESSENTIMENTO.................................................... 184
3.4 A CONTRAPOSIÇÃO l.1F.NIETZSCHE A TESE DE DOIm1NG SOllRC
ti 87 6.4 As Si\ÍDAS l'ARAO Rf.5SF.NTIM~:NTO C.ONSIDERAllAS ,\ PARTIR DAS
NOÇôES l.lE F.T1QUE1i\ E lll:: HIGIFNE: ASPECTOS BÁSICOS DE UMA
3.5 DüHR!NG: UMA i'OllF.RüSA LENTE D!'. AUM~:NTO .............................. 99
TOALETE llO F.SPÍRITü................................................................ 190
3.6 D(;MRING: Rr.l'IU'.SEN'UNTE l)A MORAL DO Rr-SSl·:N'IIMEN'IO ................. 1.03
6.5 Ü AMOR l·'ATI E O Til'O/i,\'1/.~: POSSIIIILIDADES l!MfTROfES DE
3.7 BIH,VE FXCURSAO,\ Ql.11'.:\"1·AollAS FONTES .................... "................. l 07 S\Jl'ERAÇAO ll() RESSFNTJM ENTO .................................................. 196
6.(i 1),1 FI.UlllEZ DE SENT!OOS À l'ILOfül'IA EXPERIMEN'IAJ... ..................... 203
4. DOSTOlÉVSKI E NIETZSCHE: ESPECULAÇÕES EM TORNO
DO "HOMEM DO RESSENTIMENTO" l 11
APÊNDICE: ESPECULAÇOES PARA NOVAS INVESTIGAÇÕES ...... 205
4.1 RETOMANDO A QUKW,\() llAS FONTES......................................... .. 112
4.2 PRIMEIROS COKTATOS llt-: NtETLSCl IF. COM ti LITERATURA RUSSA EM REFER.f:NCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 217
GERAI. F. COM 00STOIÉVSKI F.M PARTIClJI.AR.................................... 114
4.3 0BSERl'A<,;0ES ACERCA DO I IVRO O ESl'liii'IO SUBfl:.'RRÃNl'O.... ............ 122
4.4 0 "HOMEM IJE CONSCII;NCIA l!il'Eltl'Rllf!ADA" 127
<i.5PERSONA<;F.NSr TIPOS PSICOI.ÓGJCOS.............................................. 1.3l
4.6A RF.INSF.Rt,:ÁO00 MATERIAi. PSICOLÓGICO EM NOVAS FINAI.IDAllr.\ ......... 138
4.7 ENTRE ÜOl·IRING E ÜüSTlll.ÉVSKI - llRF.VF.SCONSIIJElV\(,:ÓES ............ 141

5. "MACONSCIÊNCIA"ERESSENTIMENTO ..................................... 145


5.1 A ,A;J'ENç,\o À, NUANCF.5............................................................. 145
5.2 A FLUIDEZ Ili'. Sl'NTIOOS DO CONCHl"ü "RF..\SENTIMENTO" NA OBRA l.ll'.

Nnn,.,CHF................................................................................. 150
5.3 ÜCORRÊNCIAS l)A l'.xPRE.SS,\O"MÁ CONSC!Ê.KCIA" NA OBRA DE
NJF:f'ZSCHE
................................................................................ 155
5.4 A CüN~TRlJÇÁO DE UMA "HIPÓTESE l'RÓPRJA" ACER('.A DA "MÁ
CO~SClfNCIA" 159
5.5 SEMEII-IAK<,;AS E DIFERENÇAS ENTRE OS DOIS COI\CEITOS .................. 169
PREFÁCIO

Em uma cana a Meta von Salis, escrita em Sils-Maria


em 14 de setembro de 1887, Nietzsche registra a importân-
cia e o lugar de Para a genealogiada moral. Urn escritopolê-
mico, sua mais recente publicação:

Com este rírulo, daqui em diante rodo o essencial


é assinalado, o que pode oferecer uma orientação
provis<Íria sobre mim: do Prefácio ao Nascimento
df),Fmgédia até os Prefácios dos livros acima men-
cionados - isso constitui uma espécie de 'História
de uma evolução'. A propósito, nada é mais
desgostoso, do que dever comentar a si mesmo,
mas diante da ahsolma falta de perspectiva, de que
alguém, além de mim, venha assumir esta tarefa,
trinquei os dentes e fiz o que pude 'para ver o lado
bom das coisas'. O crabalho de um ano inteiro!
(incluindo o quinto livro da gaya scienza, que eu
recomendo especialmente)- minha cara senhorita,
mantenha esse verão em boa memória, - quero
também fa"ê-lo (KSB 8, p. 151-152).

Esta confidência embaraçosa de Nietzsche, que resis-


rc a co111cnrar a si mesmo, para não correr o risco de perder
;1 dis1;111cÍ;1 ncccss,íria a toda crítica, mostra com clareza a
.,...

16 NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO PREFACIO 17

compreensão que ele tinha de sua própria obra à época da que não é pouco - que sua época entende de maneira equi-
publicação da Genealogia, mais exatamente o começo do vocada o sentido e o significado da ciência, ao ignorar a sua
segundo semestre de 1887. Tratava-se, sem dúvida, de en- gênese propriamente histórica, suas profundas raízes na his-
contrar um fio condutor, uma espécie de pensamento co- tória espiritual do Ocidente e, portanto, sua "afinidade
mum, um rio subterrâneo, que a alinhavava desde O nasci- eletiva", para com estes domínios - o da filosofia, do mito,
mento da tragédia, constituindo o que ele chama a "história da religião e também o da arte - dos quais o cientificismo
de uma evolução" (Entwicklungsgeschichte). Relacionando triunfante do século XIX quer apartá-la. A palavra
seu "escriro polêmico" aos "Prefácios" de 1886 a todos os "Entwicklung" traz consigo, em sua formação, nuances que
seus livros até então publicados, à exceção do Zaratustra estão no horizonte de Nietzsche, que nunca deixou de ser
cuja trilha o próprio "Prefácio" da Genealogia também ca- filólogo e de exigir de seu leitor uma atitude de filólogo: o
minha, Nietzsche compara seu processo de criação com uma que está "enrolado", "enovelado'' - wincke!n - está sujeito,
árvore que produz seus frutos (GM, "Prefácio", 2). Tal an- neste caso, a uma ação contrária, a de "desenrolar", a de "ex-
seio por uma "unidade", por mais provisória que ela seja, trair" alguma coisa deste novelo, tal como o prefixo ent o
constitui, sem dúvida, a gênese do projeto de um livro indica. Tornar a ponta de um fio deste novelo e distendê-lo
intitulado A vontade de poder, que ele abandonará integral- em uma linha reta significa, entretanto, não apenas criar cone-
mente no ano seguinte. Em outras palavras, Nietzsche com- xões, estabelecer pontes, mas, ao mesmo tempo, não desco-
preendeu que "unidade" não significa necessariamente "sis- nhecer os atalhos, os saltos, os desvios, as modificações, as
tema". pequenas ou grandes interrupções, rupturas, que o próprio
Por outro lado, é igualmente importante e necessário autor imprimiu na sua obra.
não entender "evolução" como "progresso", no sentido que Nesta perspectiva, o significado de "genealogia" se
este termo vai paulatinamente adquirindo desde o Iluminismo, amplia e se torna ainda mais complexo. Em consonância
até se consagrar durante o Positivismo do século XIX, como com sua crítica do Historicismo, cujas linhas gerais a Se-
avanço da razão em direção ao conhecimento verdadeiro, gunda consideração extemporânea, mesmo que ainda no in-
ou seja, à ciência, numa lura de vida e morte contra a pró- terior de uma "metafísica de artista" já esboçara, o proce-
pria filosofia entendida como metafísica, contra o mito, dimento genealógico não pode e nem deve ignorar o passado,
contra a religião, contra a arte. Não se trata também da ideia tomá-lo como letra morta ou ainda sacralizá-lo e/ou
de "processo", de algo semelhante à concepção hegeliana, de mumificá-lo. Mas, não o faz mais, como no escrito juvenil,
um processo dialético, de caráter teleológico, comprometi- cm nome de um ideal "supra-histórico" ou ainda da espe-
do com uma Aujhebung das posições contraditórias que o rança depositada numa "juventude" livre da "poeira biblio-
movem, mas sim de acentuar a ideia de "vir a ser", da per- gráfica", das citações eruditas, do peso de um conhecimen-
manente mudança. Não se trata, por fim, de pensar que a ro, enfim, que pouco ou nada faz pela "vida". Desde Humano,
crítica de Nietzsche ao "progresso" ignore a importância da demasiado humano, a concepção de história em Nietzsche e r'j
ciência. Muito pelo contrário: ela sinaliza, tão somente - o /ilia crítica aos procedimentos historiográficos de sua época,
18 KIE'fZSCHF r. U RESSENTUv!ENTO l'RHÁCIO 19

não considera mais a "reflexão" como plano único ou privi- mestrandos e doutorandos ou ainda na edição de uma revis-
legiado de apoio para a análise, procurando embrenhar-se ta científica. Se em livro anterior, 1 nosso autor se dedicara a
na selva quase inexplorada pela filosofia, da minuciosa pes- uma apresentação mais geral deste "escrito polêmico", agora
quisa documencal, a partir daquilo que estava disponível e seu ponto de partida é o conceito de "ressentimento", cen-
era possível em sua época: histórias do direi to, da moral, tral nessa obra. Como ele mesmo diz logo nas primeiras
relatos produzidos pela nascente Antropologia, estudos no linhas da "Introdução", seu objetivo é triplo: 1) entender
campo da biologia, da medicina, entre outros. A Genealogia "como o conceito aparece e é utilizado na filosofia de
caracteriza seu procedimento por uma cor, o cinza, em oposi- hiedrich Nierzsche"(p. 25), 2) apontar "as possibilidades
ção ao azul celeste das promessas da filosofia tradicional. A de superação"(p. 25) e, por fim, 3) aventurar-se cm "algu-
"escavaçao
_,, , entretanto, nao
- basta e a e1a se sobrepoe,
- necessa- mas especulações que se desdobram"(p. 25) a partir dele.
riamente, a "decifração" ou ainda a "interpretação", caracte- Para atingir seus objetivos, Antonio Edmilson
rizada por um trabalho de paciência, por vezes entediante e Paschoal se vale da perspectiva metodológica aberta a partir
cansativo, semelhante ao "ruminar" de alguns animais. A da edição crítica das obras, anotações póstumas e da corres-
crítica do progresso, portanto, é complementar e coetânea pondência de Nietzsche, organizada por Colli e Montinari.
ao trabalho interpretativo, que recusa, de antemão, em re- Tal perspectiva se desdobra não apenas a partir da articula-
conhecer a existência de algo na sua facticidade para, ao ção entre esses diferentes estratos (obras publicadas, anota-
contrário, mostrar que fatos só adquirem este ou aquele sen- ções pós rumas e correspondência), percorrendo internamente
tido e, portanto, ganham existência, porque foram submeti- a.obra de Nietzsche a partir da primeira menção ao "ressen-
dos ao trabalho de interpretação, porque deles, a linguagem timento", em uma carta a Cosima Wagner, de 1875, mas
necessariamente ambivalente e alegórica, se encarregou. também pelo recurso importante e fundamental às fontes
Mediada pela linguagem, a cultura se diz de várias manei- por ele utilizadas, principalmente Eugen Dühring e
ras, embora essas "várias maneiras" não sejam equivalenres, Dostoiévski. Com isso, seu pensamenro é restituído à sua
mas obedeçam a hierarquias, a disposições nascidas do con- época, ao seu momento histórico, o que, ao mesmo tempo,
fronto, dos antagonismos próprios ao caráter multifacetado demarca seus limites e sinaliza para a ultrapassagem desse
do que Nietzsche denominou de "vontade de poder". tempo, nas palavras do próprio Nietzsche, sua "extempora-
Este livro de Antonio Edmilson Paschoal, professor neidade". E isso se faz, repito, a partir do estudo das fontes,
de Filosofia Clássica Alemã da Universidade Federal do algumas delas ainda disponíveis no que restou da Biblioteca
Paraná, dá continuidade a uma pesquisa de mais de uma Particular de Nietzsche, e não a partir de biografias ou ain-
década, dedicada ao estudo da Genealogiada moral. Pesqui- da de estudos panorâmicos sobre sua obra.
sa que contribui de maneira significativa com a recepção
brasileira do pensamento de Nietzsche, na forma de arti-
gos, apresentações em evenros científicos, organização de Antonio Edmilson. A genealogiade Nietzsche.2 cd. Curitiba:
PASCHOAL,
eventos, de livros, mas também na formação de graduandos, Champagnar, 2005a.
20 NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO PREFACIO 21

É essa articulação que permite a Antonio Edmilson como a Moral e o Direito. Soldando, articulando fortemente
nos conduzir com um estilo agradável e com a segurança de esses dois planos, encontramos o conceito de "vontade de
um pesquisador já maduro, nos labirintos que culminam poder" . .É justamente o caráter múltiplo e agonística da
na concepção de ressentimento em Nietzsche. Sua pesquisa "vontade de poder" que torna possível a compreensão da
sobre os usos e antecedentes da palavra "ressentimento", a aparentemente paradoxal posição do ressentimento na obra
partir das raízes francesas da palavra, passando pelo seu uso tardia de Nietzsche: se, cercamente, ele se constitui como
no pensamento alemão anterior a Nietzsche, é absolutamente negação da vida, por outro lado, não deixa de trazer consigo
impecável e inovadora se pensarmos na recepção brasileira. uma "vontade de poder operante", que acaba por constituir
Assim, ele vai descortinando diante de nós os dois sentidos um determinado tipo de vida, caracterizado pela "inibição
da palavra, o psicológico e o social, devidamente articula- da ação".
dos às fontes, assim como nos introduz aos modos possí- Mas, Antonio Edmilson não se contenta em fazer mais
veis de superação do ressentimento, seja pela "higiene", seja um estudo sobre um conceito específico de Nietzsche numa
pela elaboração de uma "etiqueta" ou ainda a partir de cer- obra específica. Mesmo que seu trabalho tivesse se limitado
tos "tipos" de homem. Se o ponto de partida de nosso autor a isso, ele já seria exemplar. Entretanto, ele vai adiante e se
é uma ideia que pode ser partilhada com outros comenta- pergunta se a concepção nietzschiana de ressentimento não
dores e intérpretes, qual seja, a de que a filosofia de Nietzsche pode per mi rir uma reflexão acerca do "ódio na política". E
não se limita à "crítica corrosivà', mas também acena para nosso autor encontra essa possibilidade numa situação par-
as possibilidades de superações dos entraves e obstáculos que ticular - a de "aparcheid" na África do Sul-, a qual, por sua
se opõem à afirmação imanente da vida, por outro lado, o vez, pode servir de contra-modelo em relação a uma ideia
que caracteriza o seu trabalho é justamente o de mostrar de Peter Sloterdijk, presente em Zorn und Zeit, livro publi-
essa dupla postura de Nietzsche em relação ao conceito de cado em 2006, para quem o "ressentimento é o afeco básico
ressentimento. Isso já se faz sentir na crítica de Nietzsche à da modernidade" e a política, apenas expressão de "ódio".
concepção de Dühring, limitada por seu caráter psicológi- lbseando-se em larga medida em Nietzsche, é como se
co, equivocada quando torna ressentimento sinônimo de Slocerdijk tivesse se limitado à face "corrosiva" do seu pen-
vingança. A leitura de Dostoiévski complementará essa críti- samento.
ca, uma vez que o romancista russo, sem deixar de lado a Neste diapasão, Antonio Edmilson nos relembra não
caracterização psicológica, a transpõe para o campo da socie- :1pcnas a figura de Nelson Mandela, mas o modo pelo qual
dade, da cultura. .1 África do Sul conduziu a "elaboração do passado", para
.Éesse o caminho seguido por Nietzsche: se o ressenti- retomar um conceito freudiano, que não se encontra assim
mento se enraíza fortemente na interioridade de um tipo , :1n discante de cercas proposições de Nietzsche. A situação
incapaz de esquecer, de digerir as "agressões" que lhe atin- ,l.1 África do Sul poderia, sem dúvida nenhuma, naufragar
gem do interior, ele se desdobra, entretanto, em direção da 110s ahisrnos do ressentimento, transformando em "justiça"
vida social, enraizando-se também em práticas e saberes 11 que sni;1 apenas expressão de ódio e rancor. Ou seja, po-
22 NJETI.SCHF, E O RESSENTIMENTO Plff.l'ÁCIO 2..)

der-se-ia facilmente confundir justiça, ressentimento e vin- eia não apenas como uma forma de evitar uma
gança, à la Dühring. Ora, o que Antonio Edmilson procura guerra civil, mas de viabilizar ações voltadas para
mostrar é justamente o contrário: a experiência da África do o futuro (p. 214-215).
Sul se constituiu, justamente, a partir do combate ao res-
sentimento, do não se deixar contaminar pelo veneno do Como se vê o que seria apenas mais um estudo sobre o
ressentimento. E é justamente recorrendo à outra face do pensamento de Nietzsche, tendo como pano de fundo e
pensamento de Nietzsche, àquela que torna possível en- ponto de foga o conceito de ressentimento transforma-se,
contrar alternativas, caminhos diferentes, desvios proposi- ao final, numa especulação acerca de um dos problemas
tivos, que nosso autor caminha, embora não deixe de re- cruciais do pensamento político de nosso tempo, um tem-
conhecer a justeza da análise, mesmo que limitada, de po marcado pela presença da barlxírie, nas mais diversas for-
Sloterdijk. Em Nietzsche, ele nos lembra, é possível também mas, dentre as quais a do "aparthcid". O importante é que
encontrar uma possibilidade de "autossuperação da justiça», isto Antonio Edmilson, justamente por separar-se de uma con-
é, uma possibilidade de pens~i-lapara além do ressentimento e cepção religiosa de indulgência, afirma que a fecundidade
da vingança. Deixemos a palavra a Antonio Edmilson: da perspectiva de Nietzsche não está numa negação da pre-
sença tão forte quanto nociva de dimensões de ressentimento
Para designar essa autossuperação da justiça, no mundo contemporâneo, que ainda é o nosso, mas sim de
Nietzsche utiliza o termo "graç11"( Gnade), colocan- que é necessário combatê-las e de que é possível vencê-las. O
do em evidência não aquele que recebe o perdão, exemplo da política de Mandela revela então sua função es-
mas o que o concede de forma gratuita, como uma cratégica: contra o ressentimento, é possível pensar numa
indulgência, deixando de cobrar uma dívida por potência criativa que surge, paradoxalmente, dele mesmo,
gentileza (p. 211). que pode forjar novos modos de vida, novas formas de con-
ceder sentido à dor, ao sofrimento e à morte.
"Indulgência'' não tem aqui, ele nos assevera, um signifi- Nesta perspectiva, este livro de Antonio E<lmilson
cado religioso, uma vez que ligada à "gentileza", isto é, a uma Paschoal merece ser lido com a mesma regra de etiqueta que
rl·novação das regras da "etiqueta". Tese arriscada, nosso autor Nietzsche solicitava sempre aos seus leitores: com paciên-
rcrnnhece, tendo em vista as inúmeras críticas feitas à políti- cia, atenção e cuidado.
c:1 (k Nelson Mandela. Mesmo assim, ele afirma:

Ernani Chaves
C:omudo, o fato é que a figura de Mandela foi cen-
tral numa política que não se pautou tanto em acer- Belém, julho de 2013
tar as pendências do passado e em liberar os senri-
11H·11tosde vingança, num momento em que o poder
muda de mãos, mas em propor a in<lulgên-
11oli1i,·1,
INTRODUÇÃO

O propósito deste livro é reunir uma série de estudos


sobre o tema do "ressentimento", realizados por mim nos
últimos anos, colocando em relevo o modo como o concei-
to aparece e é utilizado na filosofia de Friedrich Nietzsche e
as possibilidades de superação do ressentimento considera-
das por ele, além de algumas especulações que se desdo-
bram de seu pensamento. 1 Dessa forma, pretendo contri-
buir, por um lado, para ampliar o espaço de discussão sobre
o tema em termos gerais e, por outro, apresentar algumas
considerações sobre os movimentos internos da obra de
Nietzsche, tendo em mente o conceito de "ressentimento".
Pensando não apenas em um público especializado, começo
o livro com uma caracterização do conceito "ressentimen-
to", tendo em vista, inicialmente, alguns aspectos que serão
desdobrados mais adiante, como é o caso dos contornos
conferidos ao conceito na filosofia alemã do século XIX e
do modo pelo qual Nietzsche se apropria e o ressignifica a
partir de interesses próprios. Em seguida, apresento o apa-
recimento do termo no interior da obra de Nietzsche, colo-
cando em relevo o modo como a ideia de ressentimento se
encontra em vários de seus escritos até 1887, sem ser acom-

1 Como alguns dos capítulos foram escricos inicialmente como texcos in-
dependentes, pode ocorrer certas repetições de alguns aspectos, embora
na montagem do livro tenha havido o cuidado de refazer a escrita dos
textos visando estabelecer uma sequência entre eles.
26 NIF:l"ZSCHF F O RESSE>!TIME1\JTO lt<TRODU(;Ao n

panhado, contudo, pelo uso do termo "ressentimento", algo ccito moldado por Nietzsche para o seu uso próprio. Isso
que se altera significativamente após a obra Para a genealogia posto, retomo a correlação clássica ente má consciência e
da moral, quando não apenas a ideia, mas também o termo ressentimento com o objetivo de fazer uma separaçáo de
ganha um lugar decisivo nos argumentos do filósofo, de- bens entre ambas e mostrar como essa conexão só ocorre
sempenhando d ifercntes papéis em suas construções quando se tem em vista a interpretação religiosa do sofri-
argumentativas. mento do homem.
Após esse mapeamento geral do termo no interior da Na parte final, apresento algumas possibilidades de su-
obra de Nietzsche, a atenção se volta para a distinção entre o peração do ressentimento que podem ser consideradas a partir
ressentimento entendido com um fenômeno psicológico, por dos escritos de Nietzsche posteriores ao Zaratustra, como é
um lado, e o ressentimento tomado como um fenômeno o caso da utopia de um tipo elevado de homem, além de
social, por outro, tendo em consideração, sobretudo, aquela formas de higiene e de etiqueta que podem ser úteis na luta
obra já mencionada - Pam tt genealogia da moml, de 1887. contra o ressentimento. Outra alternativa diz respeito à ca-
Em seguida, apresento uma análise da contraposição de racteri:u1ção de alguns tipos de homem que, uma vez situa-
Nietzsche a Dühring, especialmente em relação à tese do pro- dos para além do ressentimento, podem ser tornados como
fessor de Berlim acerca da origem da justiça, duramente modelo cm termm de supcraçáo do problema.
cri ti cada por Nietzsche na segunda dissertação da Cenealogitt. Tais considerações sobre as possibilidades de superação
Retomo, na sequência, a correlação do tema com Dostoiévski, do ressentimento tem presente, por um !ado, que a filosofia
o único psicólogo que teria "a!go a ensinar" a Nietzsche (CI, de Nietzsche não se reduz meramente a uma crícica corrosiva
"Incursões de um extemporâneo", 45; KSA 6, p. 147). 2 Esse da cultura e da moral de sua época, mas aponta possibilidades
reconhecimento do escritor russo está, sem dúvida, ligado à de superação para os problemas que aborda, sendo seus
caracterização de um tipo psicológico <1ueNietzsche deno- próprios escritos episódios do seu engajamento por tais
mina como "homem do ressentirnenro", que se encontra mui- soluções. Por outro lado, não esquecem que Nietzsche não
to próxima do delineamenro feito por Dostoiévski da figura
do "homem de consciência hipertrofiada". Conforme vere-
filósofo farei a citação do volume e da página da KSJ\ (edição das obras
mos., as considerações sobre Dühring e Dostoiévski permi-
de Nietzsche organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari) onde o
tem, de passagem, retomar a questão das fontes do filósofo
texto se cnconrra .. Para os cscriros de Nietzsche, embora opre por apresen-
e sopesar aproximações e distanciamentos, tendo em vista tar uma tradução própria, não deixo de consultar as traduções disponíveis
as possíveis influências de ambos na construção de um con- em português, em especial aquelas feitas por Paulo César de Souza,
Rubens Torres Filho, Mario da Silva e Andrés Sánchez Pascual (esta últi-
ma em espanhol). Traduções que recomendo para os leitores que não tl'lll
Conforme mencionado em nota prévia sobre as referências às obras <le :i.cessoao texto do filósofo em alemão. Para outras citações, utilizaremos o
Nietzsche, farei as citações com a sigla da obra e a indicaçfo do forismo e padrão auror-dai:a, seguido do número da página. T:imhém nesses C:lM>s.
da parte, o que permite ao leicor encontrar o texto também em outras edi- quando se tratar de textos cm língua estrangeira, apresento-os tra<!.r,.i.lm
ções. Quando for o caso de anotações e fragmentos não publicados pelo para o português.
28 NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO

pretende sanar o problema, no sentido de extirpar o


sofrimento do homem, visto que, para ele, o sofrimento é
inerente à vida e ao processo civilizatório, além de se configurar
como um fenômeno capaz de abrir novas possibilidades para
o homem. Norteia esta interpretação do pensamento de
Nietzsche, portanto, a ideia de que ao filósofo interessa
apontar modos de se colocar diante da vida em toda a sua 1. O TERMO"RESSENTIMENTO"
E
complexidade, sem que, para isso, seja necessário negar algum
de seus multifacetados aspectos ou buscar meios para SUASOCORRÊNCIAS
NOS ESCRITOS
minimizar a tensão que é própria à existência. 1
DE NIETZSCHE

Da mesmaforma que aspalavras, osconceitossão


comobolsos,nosquaisseguarcwuoraisto,oraaqui-
lo, oravdriascoisasde uma vez!(Fr. Nietzsche) 2

1.1 Aspectossemânticosdo termo"ressentimento"

Apresento neste capítulo o conceito de "ressentimento", 3


identificando o significado que ele possui quando Nietzsche
o recolhe da tradição ou mç;~modo uso corrente, as variações
que o termo sofre e as nuances conferidas pelo filósofo ao se
apropriar dele para suas próprias finalidades. A hipótese de tra-
balho que tomo aqui é que além da riqueza semântica que o
termo apresenta antes de seu uso por Nietzsche, também no
interior da sua filosofia o conceito não é monossêmico,mas

1
Uma primeira versão das questões discutidas neste capítulo foi publicada
anteriormente com o título "Asformas do ressentimento na filosofia de
Nietzsche", na RevistaPhilósophos(PASCHOAL, 2008b),
' AS 33; KSA II, p. 564.
Sobre as diferenças entre ressentimenco e má-consciência e a ideia de cura
do ressentimento. (Cf. PASCHOAL, 2007, p. 97-109).
.\O C:tETZSCIIE E o RESSFNrnvll'NI\) 0 TER.MO "RESSENTlMENTO" L SL,AS OCORl!l'.NCIAS NOS l'S( :1un 1.\ ... \\

possui diferentes acentos conforme os interesses do filósofo e desejo de vingança. Outro exemplo dessa polissemia 110 11su
;L\ relações estabelecidas com seus interlocutores. do termo se encontra cm Moliere, que no século XVII usa a
Na segunda metade do século XIX, não existia na língua palavra "ressentimento" numa conotação positiva, como uma
;1icmãuma palavra cunhada especialmente para expressar a ideia afeição de gratidão. O termo l'.utilizado ainda por Corncilk,
de ressentimento, 4 que poderia ser traduzida, de forma impre- também no século XVII, para designar um sentimento inte-
• pe1a pa 1avra "Grolt' (em port:ugues
usa, , "rancor ") ou " vrouen
,~ " " , rior negativo, e por Honoré de Balzac, no século XVIII, que
que mantém certa proximidade com a noção de ressentimen- conFere ao verbo "ressentir" tanto uma acepção positiva quan-
to, significando "guardar rancor", sem perder de vista a to negativa no sentido de se sentir novamente tanto a dor quan-
conotação de "sentimento de amargura, rancor e sede de vin- to a felicidade. É com Montaigne, contudo, em seus Ensaios,7
gança" (Langenscheidts: Gro_(sworterbuchFmnziisisch-Deutsch). que o termo recebe uma conotação marcadamente negativa e
hlósofos alemães como Dühring e Nietzsche,'i por exemplo, que ganha relevo a persistência daquele sentimento ruim. Res-
para expressarem um modo peculiar de reviver cercos senti- salte-se, contudo, que, diferentemente dos aspectos que sedes-
mentos passados, utilizam o termo francês "ressentimeni', que tacam no uso do termo por Nietzsche, em Montaigne, tal sen-
hoje, mesmo sendo um estrangeirismo, faz parte do léxico da timento não estaria ligado diretamente à vingança e mesmo
língua alemã, suprindo aquela carência inicial. quando considera tal relação, diferentemente do que verifica-
Na língua francesa, o termo remonta ao século XVI, mos nos escritos de Nietzsche, ele a rematiza do ponto de vista
derivado do verbo "ressentir", e se mostra polissémico desde de quem sente a revanche, e não daquele que a aplica. 8
suas origens, com um acento neutro cm alguns casos, ou nega- Numa consulta dpida aos dicionários da língua francesa
tivo em outros. Um primeiro exemplo dessa variação é verifl- do século XIX, época em que Nietzsche est,-Íescrevendo a sua
cado com Théophile de Viau/' que lança mão do termo para filosofia, observa-se que o termo mantém suas variações. Em-
designar um sentimento de dor associado à impotência e ao bora possa ter uma conotação neutra, significando a retomada
de um sentimento ou sensação anteriormente experimentada,
ou mesmo positiva, considerando a possibilidade de tal sensa-
' CC por exemplo, GRl!vlM, Jacob; GR!Mlv!, Wílhclm. Deutsch1•s
Wiirterbuch ção ser boa ou agradável, via de regra, possui um acento negati-
(1893). vo, designando a "renovação de um mal sofrido, de uma dor
s Não se poderia deixar de mencionar o filósofo dinamarquês Sort:n que se ressente", ou então a "persistência de um sentimento
l(ierkegaard ( 1978), que desenvolve tema correlato ao ressentimento, re- suscitado por uma injúria, uma injustiça, acompanhado de urn
ferindo-se a um modo de nivelamento do homem que sufoca a ação. 'E1I
seria, contudo, apenas um exemplo de um pensador que desenvolve o
tema sem recorrer ao termo "rcsscntimenro". Um levanramcn10de tais usos º Lidos por Nietzsche (cf. ÜJIVEIRA, 2012, p. 58)
8 Merece atenção especial o ensaio de Monraignc intimlado "Covanli;1 11rn·
não é o propósito deste estudo.
'' ( )s exemplos apontados neste parágrago são extraídos do verbere da crueldade" (MON'!J\j(;Nl'., Michel de. Essaisde Michel d{' Mo11111z1'.IV
"Nt.ucntirnent" do Historisches Wiirterbuch tln- l'hi!osophil' ( 197 l, v. 8, avec des notes de rous les commcntaceurs. Paris: Firmin-1 )ido1 h,·n·,,
11·<)21). 1864. 4 v.), no qual a origem da violência é identificada 11:1 mv:1rdi,1.
32 NIETZSCHE E O RESSENTIM r.NTü O TERMO "RESSENTIMENTO" E SUAS OCORRÊNCIAS NOS ESCRITOS .. .1.1

desejo de vingança" ,9 ou ainda: "o fato de se recordar com autoenvenenamento por meio de sentimentos como inveja,
amargor ou o desejo de se vingar de um mal sofrido, ódio, rancor e ódio, conforme veremos adiante. Um envenenamen-
rancor, amargura". 10 to que ocorre quando essessentimentos não podem ser descar-
Numa consulta igualmente rápida sobre o termo "ran- regados para fora e se voltam para o interior do homem, num
cor", quase sempre evocado ao se buscar um significado para a curioso tipo de resposta que faz com que o estímulo externo
palavra ressentimento e em alguns casos apresentado como seu não seja apenas sentido, mas res-sentido mesmo quando ele já
sinônimo, identificamos alguns dos motivos da proximidade não existe mais, ao menos externamente, pois, internamente
semântica dos dois termos, por exemplo, na forma como o (no subterrâneo daquele homem) permanece produzindo seus
termo "rancor" designa a cólera e a raiva contidas e, também, efeitos.
um sentimento de amargor, lembrando que a palavra "rancor", Essa reação expressa, certamente, um tipo de patolo-
do latim "rancôre", possui parentesco com "rançoso", também gia, desequilíbrio ou desordem daquele mundo interior, pois
do latim "rancídu", que é traduzido como aquilo "que cheira ela não possui uma simetria com o estímulo que a produziu,
mal, putrefato, infecto, fétido" 11 e que se encontra igualmente sendo desproporcional em relação ao ato que a gerou. Cabe
• de "derrancar " (estragar, corromper, tornar-se rançoso) .
na raiz ressaltar que, para Nietzsche (EH, "Por que sou tão sábio", 6;
O que se correlaciona, no caso do ressentimento, com a ideia KSA VI, p. 272-273), tal patologia não designa um proble-
de algo não digerido que produz uma espécie de intoxicação ma circunscrito a um órgão ou função, mas expressa um es-
ou envenenamento do mundo interior do homem. tado geral de morbidez. É sintoma <leque algo insano se pas-
Tal correlação entre um mal querer doentio e uma espé- sa com o homem e não apenas no sentido de que ele está
cie de indigestão psíquica, produzindo uma hipertrofia do doente e sofre, afinal, o homem é o "animal doente" (GM III
mundo interior, é encontrada, por exemplo, na forma como 13; KSA 5, p. 367), mas que vem reagindo de uma forma
Dostoiévski se refere ao material visguento no qual se esgueira que somente aprofunda aquela desordem e desperdiça nela
o homem do subterrâneo (DOSTOIÉVSKI, 20036, p. 21-24). Ela todas as suas energias.
é encontrada também na forma peculiar como Nietzsche O termo "ressentimento" corresponde, assim, já no
utiliza o termo "ressentimento", associando-o à ideia de um interior da filosofia de Nietzsche, a um problema fisiológi-
co, à falta de forças de um organismo cansado para reagir
9
DictionnaireEncydopédiqueQuillet (l 970).
frente às intempéries da vida e que também não consegue
10 digerir os sentimentos ruins que produz, apresentando, ora
GrandLarousseUniversel(1989, t. 13). Utilizamos a palavra "ódio" para
a tradução do termo francês "rancune"não por se uacar da melhor opção
pela fraqueza que gera tais sentimentos, ora pela presença
em língua portuguesa, mas apenas para evitar repetir a palavra "rancor", deles, uma desordem psíquica que o impede de viver efeti-
que traduz igualmeme "rancoeur",ambas presentes como sinônimos no vamente o presente. 12 Nesse organismo, a percepção da pró-
texto traduzido.
11 12
Como um estômago debilitado que não consegue digerir o alimcn1CJq11('
Cf., por exemplo, ÜLJVEIRA, H. Maia (Org.). Lisa:grandedicionárioda
línguaportuguesa,hist6ricoegeográfico.(1970). é introduzido nele, comando-se, esse alimento, um fator que ir;\ a11r11,·11
tar ainda mais a sua debilidade.
-- --
:)4 >IIETZSC:HE E O ltESSr:NTlivll•.I\TO O TERMO "tz1-:ssF."Tl,\1F.NTO" E SUAS OCORRÊKCIAS NOS E,( '.l(l'J'( JS... 1',

pria fraqueza e o sencimenco de frustração que se segue à obs- Nietzsche, em especial, trabalha com a concepção do
rrução da ação gera um rancor, uma vontade de ferir e produzir ressentimento como uma incapacidade de reação acompanha-
sofrimento naquele que o detratou. Toma posse dele uma sede da de uma fraqueza de assimilação, correspondendo, assim, :i
de efetuar aquela vingança que sua fraqueza não permite reali- um fenômeno psicológico, ou fisiopsicológico, na medida em
zar. 'frata-se, como anota Nietzsche em um fragmento póstu- que o filósofo não designa com o termo "psicologia" a ciência
mo de outono de 1888, de uma "disposição para a vingança", de algo estranho ao corpo. Contudo, além de tal peculiaridade
caracterizada por ele como "o mais pernicioso de todos os esta- ao tratar o ressentimento como um fenômeno psicológico,
dos possíveis para o doen re'' (KSA XIII, p. 618). Nietzsche amplia ainda o significado usual do termo, ligando-o
também a uma análise sobre o direito e à moral, ou seja, a uma
análise social, ao cerro. Nesse ponto, conforme veremos no
1.2 Ressentimento.
Apropriação e uso do conceito por Nietzsche capítulo três, ele acompanha a acepção conferida ao termo por
Eugcn Dühring, que lança mão do conceito na explicitação de
Caso se considere alguns exemplos já mencionados, como sua teoria da justiça, com a diferença de que, para Nietzsche,
o dos Ensaios de Montaigne, ou ainda as ponderações de o ressen cimento não designa uma reação mecânica ( Cursus,
Kierkegaard correlatas ao tema na obra Duas idades, é forçoso p. 224), J'i mas uma vontade de poder que é tão operante e
admitir que Nietzsche não foi o primeiro filósofo a se ocupar do efetiva quanto as demais na procura por tornar-se domi-
ressentimento. Caso se considere, ademais, as reflexõesde Eugen nante no jogo que o faz emergir. 16
Dühring na obra O valor da vida, cm 1865, (doravante citado Associado, pois, a uma vontade de poder, o ressentimen-
como WL), u a conclusão é que Nietzsche nem mesmo foi o to ultrapassa o campo da psicologia, mas também o campo
primeiro a utilizar o termo "ressentimento" na filosofia alemã. das relações mecânicas considerado por Dühring 17 para ganhar
Com Nietzsche, porém, o conceito ganha novos contornos, a
1
ponto de se tornar uma referência obrigatória nas atuais caracte- ; Esta citação é da obra: Curso defilosofia como rigorosae científica concepção
rizações do rermo, 11 e desempenha um papel muito peculiar na de mundo e configuração ele vida ( Crmus der l'hilosophie als streng
construção de sua filosofia e na sua crítica à moral. wissenscht;ftíicherWeltanschauung und l,ebensgesttt!tung).Também no caso
das citações dessa obra de Dühring, optamos por traduzir as passagens di-
retamente do texto cm alemão e fazer as referências por meio da indica-
u 'frata-se da edição de 1865 do livro cujo cítulo original é Der Werth des ção ()ursus,seguida do número dapágina da edição de 1875.
l,ebms. Fazemos as citações dessa obra traduzindo as passagens diretamen- '
6
Entendo que ao interpretar o ressentimento apenas como uma Í<m,"
te da edição alemã de 1865 e indicamos a referência por meio da sigla WL reativa, com a função de limitar a ação, Deleuze ([s. d.J, p. 167 ss) parTn-
seguida do número da pJgina. Esta opção de citação deve-se ao grande rernctcr mais à interpretação de Dühring sobre o ressentimento do (jll(' ;·1
número de citações desra obra neste livro, em especial no capítulo 3. de Nietzsche, que o coma como um sentimento reativo, ao ceno, 111.1-"
14
Hoje o vocábulo "ressentiment" é encontrado nos dicion:í.riosda língua ale- que não deixa de notar que, quando ligado a uma moral, ele 10111a s.·
mã e, curiosamente, na língua francesa, a apresentação do termo, muitas "criativo" (Ü'ITMAN, 2000, p. 313).
vezes, toma como referência a caraccerizaçãoconferida a ele por Nietzsche, 17 Ultrapassa também aquela conotação conferida por Christian Krn·,kl' 111,
co.mo é o caso do Dictionnaire Emyclopétlique ()_uitlet(1970). livro intírulado Zeitdes Resentiments, ZeitderErlôsung('/Í'l!IJw tl,-11·,11·1111
mento, tempo de redenção), que aponra o aspecto social t' ;111111'1'"1,·,i•.1,",j,.
,.

36 NIETZSCIJE E O RESSENTIMENTO O TERMO "RESSENTIMENTO" E SUAS OCORRÊNCIAS NOS ESCRITOS ... 37

uma conotação social bem mais abrangente que permite a júrias sofridas, mas, ao contrário, por uma forma de ação. No
caso da "moral do ressentimento", por exemplo, mesmo em se \
Nietzsche por exemplo, discutir em outro patamar a relação I'

entre o ressentimento e a origem da justiça, contrapondo-se à tratando de uma forma de valorar que se constitui a partir da l;I
tese de Dühring exposta em O valor da vida e no Curso de fraqueza, ela se faz justamente para criar as condições favorá-
filosofia e apontando o próprio professor de Berlim como um veis para a expansão e predomínio desse homem fraco sobre os }il!I

outros tipos de homem. Nesses termos, embora postule uma i,',


"homem do ressentimento" (GM III 14) no sentido de um 1

militante pelos interesses da moral do ressentimento. Nesse negação do caráter expansivo da vida, tal ação revela, parado-
novo patamar, ele pode também criticar certas formas de inter- xalmente, uma forma de vida que pretende se expandir e se
venção social que identifica em sua época, em especial aquelas impor sobre as demais.
que pretendem solucionar os problemas decorrentes do pro- Assim, nos escritos de Nietzsche, ao lado do ressenti-
cesso de sociabilização do homem por meio da produção nele mento entendido como uma inibição da ação encontra-se, tam-
de um estado hipnótico, como observa na obra O hipnotismo 18 bém, o ressentimento que designa uma vontade de poder
de James Braid e no livro Prazer e dor - uma teoria acerca dos operante. O que permite levantar a hipótese de que, mais do
sentimentos de Léon Dumont. 19 que elaborar uma peça de uma nosografia, como a simples des-
Interessa ressaltar que na apropriação feita por Nietzsche, crição de uma morbidade, interessa ao filósofo tipificar uma
quando o ressentimento extrapola a mera descrição de uma vontade de poder que se manifesta no direito, na política, na
fraqueza fisiológica, ele não se caracteriza mais pela inação, religião e na moral, como um meio de contrapor-se a ela tanto
como ocorre no homem fraco e incapaz de reagir frente às in- em termos individuais quanto coletivos.

ressentimento tendo em vista a referência de Nietzsche a amigas socieda-


des e castas sacerdotais, por exemplo, na primeira dissertação de Paraa 1.3 O ressentimento
nos escritosde Nietzsche
genealogiada moral(KoccKE,1994, p. 141). Conforme veremos, o cará-
ter social do resscmimenco assume uma dimensão mais ampla se for con- O tema do ressentimento não se desvincula de outras
siderada a sua crítica à moral e ao direiro, por exemplo.
18
matérias centrais da filosofia de Nietzsche como a sua análise
Der Hypnotismus,tradução alemã publicada em 1882. A presença do mé- psicológica do homem moderno, sua crítica à cultura, à moral,
dico inglês como uma fonte, especialmente na terceira dissertação da
à religião, ou às configurações políticas de seu tempo, sejam
Genealogiada moral,de Nietzsche, é apontada por Marco Brusotti no ar-
tigo "Wille zum Nichts, Resscmiment, Hypnose." ("Vontade de nada,
elas a democracia, o socialismo ou o anarquismo. Longe então
ressencimenco, hipnose.") (2001, p. 121). Desenvolvemos o rema dores- de englobar toda a complexidade do tema, pretendo mapear
sentimento como uma arte de hipnose, associada ao sacerdote ascético e a brevemente as formas como o termo aparece (e também desa-
Schopenhauer em um texto intitulado: "Artes de hipnose e de entorpeci- parece) dos seus escritos anteriores a Para a genealogia da mo-
mento na terceira dissertação de Paraa genealogiadtl rnort1f'(PASCHOAL, ral, obra na qual o conceito assume seu papel mais relevante.
2008a, p. 69-86). O termo "ressentimento" aparece pela primeira vez num
1
'' Vergnügenund Schrnerz.Zur Lehre von den Geft'ihlen-· cdic;ão alemã de escrito de Nietzsche no verão de 1875 enviado por ele a
1876.
---

!tlJ
_) 8 l\lETZSCHE E O RESSENTIMENTO O TERMO "RESSENTJMENTü" l' SIJAS OCORRÍ:l\CIAS l\US l:S( füTt >',..

( :osima Wagner e íntitulado "O valor da vida de E. Dühríng". 20 da alma humana'' (HH 503; KSA II, p. 321), ou da SL\;t(,
Esse texto, um manrncríco de 50 páginas (KSA 8, p. 131-181), intitulada "Das tarântulas'' de Assim jàlou Zaratustra, na qu:d o
corresponde a um escudo detalhado do livro de Dühring O autor associaa vingança à peçonha encontrada na tarântula e que
valor da vida, composto de anotações, citações, críricas e um se espalha na sua vítima. Zaratustra correlaciona o veneno d;1
comentário final da obra. É importante notar que este estudo vingança (da sede de vingança) à ideia Je justiça, em especial :1
surge pouco tempo após Níetzsche revelar o propósito de bus- concepção de justiça que se apoia na noção de igualdade 011,
car contrapontos ao pensamento de Schopenhauer com o in- numa "vontade de igualdade" entendida como um nivelamento
tuito de encontrar bases filosóficas para o seu afastamento em do homem e como uma forma de ódio, injúria e, por fim, de
relação ao antigo mestre (KSA 8, p. 129. Cf.: KSB 2, p. 258). interdição de tudo o que se d.escacaou que é diference.
É no âmbito desse propósito que ele faz um plano de estudos Como se pode observar, nessas várias passagens não se
que inclui as obras O valor da vida e Cursus de Filosofia (KSA encontra apenas o prelúdio de um tema a ser desenvolvido
8, p. 129) do assim chamado "professor de Berlim". Entre os posteriormente, mas já o delineamento da conexão entre o
aspectos analisados por Nietzsche destaca-se a correlação que desejo de vingança e cerra teoria da justiça, bem como a corre-
ele encontra no livro de Dühring entre o conceito de justiça e a lação entre uma possível saída para o problema do ressenti-
ideia de vingança e de ressentimento. Ele preserva, naquele mento e o termo "redenção". 2 i "Pois !como afirma o profetaJ
momento, o modo como o conceito é formulado por que o homem seja redimido da vingança: esta é, para mim, a
Dühring, associado à justiça, desvencilhando-se paulatinamen- ponte para a mais alta esperança e um arco-íris após longos
te de tal concepção mais adíanre e criticando-a duramente em temporais" (ZA, "Das tarântulas"; KSA IV, p. 128). Como se
seus últimos escritos. 21 pode observar também, nessas passagens o ressentimento, e a
Nos anos seguintes, o termo desaparece dos escritos de sua redenção, não corresponde a um problema apenas de or-
Nietzsche, e nas poucas passagens em que o tema é abordado, dem pessoal, mas também social, como é o caso do texto
- se encontra o uso da palavra "ressentunenco
nao • "E'
. o caso, por supramencionado de Assim jàlou Zaratustra, em que ele é cla-
exemplo, do aforismo 503 de Humano, demasiado humano, no ramente associado a uma acepção social que prega uma igual-
qual afirma que a inveja e o ciúme 22 "são as partes vergonhosas dade em detrimento de toda possibilidade de tipos diferentes
de homem.
O desenvolvimento da matéria nos escritos posteriorc.~
.w KSA 8, p. 131-185. A primeira referência de Nietzsche a E. Dühring, ao Zaratustra ocorre especialmente em Para a genealogia tlrt
contudo, é de 1865, em carta a Carl Gcsdorf (KSB 2, p. 258).
11
• Não poderemos, neste momento, adentrar nos detalhes da correlação en- veja, uma que não conduz à saudável disputa que se tem a partir da IJ/Jrl
tre Nietzsche e Dühring e da crítica do filósofo à concepção, apresentada Íris de Hesíodo. (Cf.: PASCHOAL, 2006, p. 6':Í).
por Dühring, de que a justiça teria uma origem a partir do tuscmimcn- 2·l As ideias de redençãoe de um homem redentorreaparecem, por cxc11111ln.
ro. Essesponros, contudo, serão retomados adiante no capítulo T na seção 24 da segunda dissertação de Para a genealogiada morrtl,, 1111<,
_,.. Notar a diferença em relação à ideia de inveja e ciüme que se encontra, por uma esperança freme ao "ideal vigente", um ideal que seria, scg1111d" ,·1,·.
cxcmpto, cm ''Adisputa de Homero". Trata-se aqui de rn11r,1 ordem de in- "inimigo da vida" (KSA 5, p. 335).
40 NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO ü TERMO "RESSENTIMENTO" E SUAS OCORRÊNCIAS NOS ESCRIT<lS ••• li 1

mora!, na qual o tema do ressentimento, associado, então, à to. Nesse caso, em que é entendido como uma doença, 011,
doutrina da vontade de poder, permitirá a Nietzsche caracteri- como o próprio "estar doente", o ressentimento traduz mais
zar a moral do ressentimento e reabrir seu debate com Dühring, uma vez a incapacidade de reação do fraco e a preocupação de
conforme veremos de forma breve logo abaixo e de um modo Nietzsche em "como livrar-se do ressentimento", leva-o a pro-
mais detalhado no capítulo 3. por como "um grande remédio" para aquela enfermidade o
Após a Genealogia,o tema do ressentimento, entendido "fatalismo russo". É importante observar, de forma antecipató-
como vingança e associado à justiça é retomado, por exemplo, ria, já que esse assunto será retomado no capítulo seis, que em
em O crepúsculodos ídolos.Nele, os cristãos, os socialistas e os Eccehomo Nietzsche toma certa distância da estratégia crítica
anarquistas são apontados como representantes do espírito de desenvolvida nos escritos dos anos anteriores e em especial na
vingança, especialmente por fundamentarem seus ideais de "jus- terceira dissertação da Genealogia.Em 1888, é possível obser-
tiça" e "sociedade" sobre a noção de "direitos iguais" e a partir var que os meios de cura utilizados pelo sacerdote ascético para
da ideia de culpa: "alguém deve ser culpado por ele [o sofredor] desviar o ressentimento da consciência do sofredor, conforme
sentir-se mal" (CI, "Incursões de um extemporâneo", 34; KSA se encontra na Genealogia,são retomados, em Eccehomo, ora
VI, p. 132). Ou seja, a justiça equivale à vingança dirigida con- como um grande remédio, ora como artes de higiene que aju-
tra aquele que o faz sofrer. dariam no combate ao ressentimento. Nesse sentido, chama a
Além da designação geral do anarquismo e do socialismo atenção que Nietzsche não faz uma oposição direta aos meios
e especialmente do cristianismo como movimentos impregna- de cura utilizados pelo sacerdote ascético para conter o ressen-
dos pelo espírito de inveja e vingança, é possível identificar nos timento, mas à finalidade conferida a eles: enquanto o sacerdo-
últimos escritos de Nietzsche (em alguns fragmentos póstumos, te postula um enfraquecimento geral do homem, Nietzsche
em O crepúsculodosídolose em O anticristo),certas figuras apon- pensa em uma estratégia de sobrevivência a ser utilizada naque-
tadas como grandes odiadores.São elas: Lutero, contra o clero (A les momentos em que as forças não são suficientes para uma
68; KSA III, p. 66), Sócrates, com seu ressentimento plebeu reação efetiva. Conquanto, ressalte-se, tenha sido preservado no
contra a aristocracia (CI, "O problema de Sócrates", 7; KSA VI, homem o "instinto de cura, isto é, o instinto de defesa e ataque"
p. 70), e Paulo, "o grande apóstolo da vingança". 24 (EH, "Por que sou cão sábio", 6; KSA VI, p. 272) como condi-
Por fim, em Eccehomo (EH,"Por que sou tão sábio", 6; ção para que tais meios sejam tomados sem que o uso deles seja
KSA VI, p. 272-273) o tema do ressentimento é retomado um sinal de fraqueza, como é o caso do sacerdote ascético.
em termos fisiológicos e pessoais, num contexto em que
Nietzsche aponta a si mesmo como exemplo da passagem pela
enfermidade e indica alguns meios para vencer o ressemimen- 1.4 Usos do termo ressentimentoem Paraa genealogia
da moral

24 A despeito de sua ocorrência em grande parte dos escri-


AC 45; KSA VI, p. 223. A este conjunco não pertencem, por exemplo,
Jesus, César e Napoleão, personagens que têm no fato de vencer o rcssen- tos de Nietzsche, é em Para a genealogiada moral que o ll'111:1
timenco um dos dísticos que os separam dos demais. do ressentimento aparece de forma mais conmndcnre L' 1k

1
42 NJF.T/.SCHE E O RESSENTIMENTO O TERMO "RESSENTIMENTO" E SUJ\S OCORR.i"N'C[AS NOS l'.SCJ(IH lS ... li .)

sempenha um papel mais preponderante. Se não é possível ver infortúnios a um terceiro, àquele outro que ele compreende
ali todas as nuances que o termo ganha na obra de Nietzsche, como culpado de seu sofrimento, seu "inimigo mau" (GM l
por exemplo, a ideia de higiene associada ao budismo, como se 10; KSA 5, p. 274). Além disso, esse prototípico ainda é des-
tem em Eccehomo, o fato é que em seu "Escrito polêmico" as crito em oposição ao homem que esquece, fazendo ressaltar a
duas variantes do termo, que coloco em destaque neste mo- noção de fraqueza entendida como a incapacidade também para
mento, ganham contornos bem claros e assumem funções bem digerir o veneno advindo da sua não reação. Esse homem que
precisas. Primeiro, o ressentimento entendido como um pro- não responde com atos às adversidades da vida, acumula em si
blema do homem individual, fraco, incapaz de reagir frente às o veneno que deveria descarregar para fora por meio dos atos,
adversidades da vida e de digerir o veneno produzido pela sua além de não possuir um "estômago" forte o suficiente para dige-
vingança não realizada. Segundo, o ressentimento com traços rir aquela peçonha, que permanece acumulada, hipertrofiando o
de um problema social, na medida em que corresponde a uma seu mundo interior.
moral, a uma concepção de justiça e a um rnodo de interven- Ainda na primeira dissertação, é possível reconhecer aque-
ção social. •làis variações de significado e uso não podem ser le movimento de ressignificação do conceito operado por
desconsideradas ao se ler a Genealogit1d11 moral, sob a pena de Nietzsche que o desloca do campo da psicologia, do indiví-
se perder a sutileza do tratamento conferido ao tema por duo, para o campo social. Um movimento que, de resto, tra-
Nietzsche, pois, enquanto no primeiro caso o conceito designa duz a intenção do filósofo que é operar uma crítica àquela moral
uma obstrução da ação que se desenrola numa indigestão do ressentimento, como parte de um combate à hegemonia
psíquica e num envenenamento produzido pela sua não ação;
no segundo, como uma moral, ele corresponde a uma vontade
de poder operante que busca o domínio sobre as demais e que
i que ela ganhou no mundo ocidental. Tal movimento se obser-
va, por exemplo, quando Nietzsche explicita que o ressenti-
mento, embora tenha sua origem e desdobramento a partir de
efetivamente é vitoriosa na cultura ocidental. um tipo de homem fraco, ele mesmo não é ftaco, vale dizer,
Na primeira dissertação, já aparecem essas nuances do não é incapaz de conquistar e garantir sua condição de domi-
termo quando Nietzsche o utiliza como uma peça na história nante, no caso, de moral dominante. Assim, embora tenha sua
da emcrgência 25 e na caracterização da forma de valoração do origem na impotência fisiológica e na rancorosa sede de vin-
rebanho. Por exemplo, no delineamento de um tipo de homem gança diante do "inimigo mau", o ressentimento descrito por
- o "homem do ressentimento" - a partir do qual se originaria Nietzsche na primeira dissertação da Genealogiaé vencedor,
aquela moral- a moral do ressentimento - e que seria o ideal de como se observa por meio da seguinte assertiva: "Mas o que
homem proposto por ela. Trata-se, de um homem que não rea- falam vocês de ideais mais nobres!Sujeitemo-nos aos fatos: o
ge frente às adversidades da vida e que atribui a origem de seus
ancig,1saristocraciase rambém aos judeus: um "povo sacerdotal do ressL'll·
timento por excelência" (GM I 16; KSA V, p. 286). O rcsscnrimrnto
25
Tal história da emergência considera além de fatores que se poderia cha- como uma peça na caracterização de formas de valoração pode ser Í(1l"lll i
mar de antropol6gicos, tamhém outros de ordem socíolúgica (Krn-:ucc, ficado também em outros textos de Nietzsche, como é o caso, por ,·x,-111
1994, p. 141) na medida em que faz um recuo a gnipos sociais como a pio, da seção 24 de O tmticrúto.
44 NJETZSCHE E O RESSENTIMENTO 1l TFRlvlO "RESSENTIMENTO" E SUAS OCORRÊNCIAS NOS ESCRJTOS ... 45

povo venceu~ ou 'os escravos' , ou 'a p lebe' , ou 'o reban ho' , ou A ideia do ressentimento como uma vontade de poder
como você preferir chamá-lo ... ". No caso, está em questão que operante, ou, mais precisamente, como parte da descrição das
"a mora ld o hornem comum venceu ", e tam b'em que o "enve- estratégias utilizadas pelo fraco para tornar dominante a sua
nenamento" colocado em marcha a partir dessa vitória, de for- forma de valorar, é o foco central de outras ocorrências do ter-
ma irresistível, não diz respeito apenas ao homem individual, mo ainda na primeira dissertação da Genealogia. Esse é o caso,
mas ele perpassa o "corpo inteiro da humanidade" (GM I 9; por exemplo, da seção 14, quando o filósofo, no contexto de
KSA V, p. 269). uma crítica propositadamente exacerbada ao cristianismo,
No mesmo contexto, portanto, em que descreveo homem apresenta a forma corno os "homens do ressentimento" (GM I
do ressentimento como sendo inapto para a ação, o filósofo 14;KSA 5, p. 282) "fabricam ideais na terra" (GM I 14; KSA 5,
lança mão do conceito de ressentimento num sentido diferen- p. 281), ressaltando o caráter estratégico de tal procedimento,
te, identificando por meio dele alguns dos pressupostos da- o "mais ousado, mais fino, mais espirituoso e mendaz artifício
quela "rebelião escrava na moral", que tem início, segundo ele, de artista'' (GM I 14; KSA 5, p. 282), bem como a motivação
"quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valo- que se encontra na origem desse processo criativo, aquela ne-
res: o ressentimento daqueles seres aos quais é negada a verda- cessidade de apontar um culpado para o sofrimento e, por de-
deira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imagi- corrência, aquele sentimento de "ódio" e sede de "vingança''
nária obtêm reparação" (GM I 10; KSA V, p. 270). próprios do fraco. 27
O ressentimento passa a expressai~então, ao lado da ideia Na segunda dissertação da Genealogi,ada moral além da
de "passividade", "impotência" e "entorpecimento", também o t, distinção entre uma psicologia do fraco e a caracterização de
caráter não "franco", nem "honesto" do homem ressentido que um modo de ação, encontramos o conceito de ressentimen-
"ama os subterfúgios( ... ), entende do não esquecimento e da to associado, por um lado, à discussão sobre a justiça e, por
espera", sabe lançar mão do "momentâneo apequenamento", e outro, em correlação com a má consciência, este último ponto,
o faz de tal forma que, segundo Nietzsche, "uma raça de tais desenvolvido de forma mais prolongada na terceira disserta-
homens do ressentimento tornar-se-á necessariamente, por fim, ção, em associação à figura do Sacerdote Ascético.
mais inteligente (klüger) que qualquer raça nobre ... " (GM I A ideia do ressentimento como a expressão de uma von-
10; KSA V, p. 272-273). Nesse ponto, vale ressaltar, a própria tade de poder marcada pela sede de vingança tem um lugar
passividade já não remete à ideia simples de não ação, mas passa privilegiado no debate sobre o tema da justiça, ocasião em que
a caracterizar o princípio básico de um modo de agir que impõe Nietzsche elege Eugen Dühring como um adversário justamen-
consequências para toda a civilização ocidental, e é vitorioso em te pela formulação do professor de Berlim de que a justiça teria
relação àquela moral nobre, operando uma transvaloração dos sua origem no ressentimento (WL, p. 219), no espírito de vin-
seus valores. 26
que esta caracterização do homem do ressentimento será retomada adian-
te, no capítulo 4, quando será confrontada com a descrição do homem
26
A este respeito, e também acerca da doença que acomete os políticos, vale de consciência hipertrofiada de Dostoiévski.
conferir também a seção 43 de O anticristo (KSA VI, p. 218). Lembro 17 Desdobraremos essa questão no próximo capítulo.
46 NIETZSCHF E O RESSENTIMEKTO O TERMO "izFSSENTIME:S'J'O" E SCAS OCOlrnl'.NCJAS NOS ESCRITOS... 47 11

~
11.1

gança próprio daquele que foi ofendido. A crítica de Nietzsche Para se compreender a correlação entre ressentimento e
é dirigida, então, à concepção de Dühring de que a ideia de má consciência tal como ocorre na Genealogia da moral, ainda !11
justiça teria cm sua origem um impulso de vingança que se que preliminarmente, é necessário tomar os dois conceitos não 1.

desenvolveria naquele que sofre um agravo. Desta forma, se- por aquilo que eles têm em comum, isto é, por traduzirem
11

gundo a teoria de Dühring, a justiça teria sua origem num "sen- modos de inibição da ação que levam à expansão do mundo
timento reativo" (WL, p. 222) que se encontraria na origem interior do homem, a um ripo de adoecimento, mas por aqui-
daquilo que chamamos de justiça. Para Nietzsche, ao contrá- lo que têm de diferente. Um primeiro aspecto que os diferen-
rio, não são os sentimentos reativos que fazem nascer a ideia de cia é que a má consciência cem sua origem na interiorização de
justiça, a não ser que se considere uma noção hodierna, que forças ativas do homem force, livre e errante, no momento em
"sacraliza a vingança em nome da justiça", (GM II 11; KSA 5, que esse homem é encerrado na estreiteza da vida em sociedade
li
p. 309-31 O) como sendo a justiça mesma e se desconsidere a e não pode mais descarregar essas forças num curso natural,
sua origem e a longa série de transformações conceituais que se para fora, como fazia antes em sua vida selvagem. Por sua vez, )1
encontra atrás daquilo que hoje chamamos de justiça. Em sua o ressentimento, conforme já foi sinalizado, não se separa da
origem, segundo Nietzsche, a justiça é um produto do homem sede de vingança e corresponde, mais propriamente, à
forte, que a inventa para estabelecer regras entre aqueles que interiorização do rancor e do ódio próprios do fraco diante de 1:
são iguais a ele e para impor um padrão de comportamento ao seu "inimigo mau''. Ainda nesse sentido, no caso do homem
fraco, àquele que não consegue manter sua palavra e cumprir do rcsscntimenlo, o alargamento produzido pelo material !1
suas promessas, e também para conter os desregramentos do interiorizado corresponde ao inchaço rípico da má-digestão e
J1
"pathos reativo", em especial o "sentimento reativo" (GM II não a alguma forma de crescimento <lo mundo interior do
11; KSA 5, p. 322) que se configura como o desejo de vin- home1n.1'1
gança. 28 A tese de Dühring é combatida por Nietzsche não Na terceira dissertação, na qual o ressentimento é associa-
apenas por se tratar de um eguívoco teórico, mas sobretudo do ao sofrimento interior do homem e que é causado por fato-
porque expressa o "próprio espírito do ressentimento" (GM II res "fisiológicos" (GM Ill 15; KSA 5, p. 374) e o sacerdote
11; KSA 5, p. 31 O), ou seja, aquele mesmo desejo de apontar ascético é apresentado como aquele que altera a "direção do
um culpado para o sofrimento externo ao homem que sofre e ressentimento" (GM III 15; KSA 5, p. 373), tem-se justamen-
o mesmo desejo de vingança que movia os fabricantes de ideais te a exposição do modo como aquela concepção de que o so-
na terra. frimento do homem seria uma espécie de punição é utilizada

28
Desenvolvi esta questão ressaltando o aspecro da superação ela justiça
29 Este e vários outros aspectos serão analisados adiante, no capítulo 5, quan-
como "graça"no capítulo intitulado "O perdão como sinal de força e saúde
- especulaçõessobre a Glosofiade F riedrich Nieusche" (P,\SCHOAJ, 2008c) do aprofundaremos essacorrdaç.'iotendo cm vista a polissemiados dois con-
que retomo cm alguns aspectos aqui. Adiante, contudo, no capítulo 3 ceitos e diferenças tais como oca r:frerparadoxal da má consciência que, ao
deste livro, tratarei de forma mais detalhada a relação e o debate entre menos em sua forma primitiva, permite identificar, ao lado do adoccimenro
Nietzsche e Dühring. do homem, também o surgimento de uma rensão que possibilita vislu111

j
1

'li
48 NTETZSC!IE E O RESSENTIMENTO O TERMO "RESSENT!Ml'NTO" E SUAS OCORRÊNCIAS NOS ESCRITOS... 49 11

1
11

,11

para conter o rebanho e mantê-lo apaziguado. O ideal ascético 1.5 Últimasobservaçõessobreo uso do termoressentimento
por 1

11

aparece, então, como parte do modus operandis da moral do res- Nietzsche


sen tímento, que apresenta o próprio sofredor como o culpado
pelo seu sofrimento e, por conseguinte, como o alvo da pró- A análise fisiopsicológica 32 do homem do ressentimen- 111,

pria sede de vingança. 30 Nesse contexto, em que os meios de to e em especial a consideração do ressentimento como uma f1
cura se confundem com o próprio adoecimento, o sacerdote vontade de poder operante, constitui, ao certo, a ampliação e a
ascético é aquele que reúne as estratégias tanto para impedir ressignificação que tornará peculiar a abordagem de Nietzsche 11!)
que o sofrimento - o ressentimento - se amplie, pois isso po- sobre o tema. Uma ressignificação que se verifica no acento de
deria significar a perda do seu rebanho e também porque a alguns aspectos psicológicos do ressentimento, utilizados para
tensão do mundo interior do homem poderia sinalizar para a caracterizar aquele tipo de homem fraco fisicamente, que é
illi
possibilidade de uma elevação do homem a partir da tensão inapto para a reação dos atos, e que possui igualmente um apa-
l,l:
produzida pela doença, o que, segundo Nietzsche, não interes- relho digestivo incapaz de digerir suas vivências frustrantes. A 1.
,,JI
sa à interpretação religiosa, que tem como meta aquele tipo de exposição de tais aspectos, contudo, não se faz em Nietzsche,
homem fraco, um tipo de homem totalmente oposto ao ideal especialmente no texto da Genealogia da moral, como a sim-
pensado por Nietzsche que deve ser justamente forte o suficien- ples descriçãode uma morbidade, mas a descriçãomesma cumpre ':1
te para se colocar para além do ressentimento.31 um papel de caracterizar uma moral: a moral do ressentimen-
to, cuja abordagem insere o tema do ressentimento no campo 11

J
social. i'
Sem perder, portanto, a dimensão do estabelecimenco 1
11
de um causador externo, um culpado para o sofrimenco do 11

homem, e sem esquecer a correlação com a sede de vingança,


brar novas formas de esperança e de futuro para o homem, ao passo que di-
o conceito de "ressentimento" cobre diferentes campos e aten- ,1
ficilmente se poderia esperar do res_mitimcnro esse mesmo tipo de resulta-
do que se obtém da ação <laqueie tipo de força plástica e modeladora que de a diferentes necessidades argumentativas de Nietzsche. A I'
permite a Nietzsche referir-sea uma "má consciência ativa". seguir nos deteremos de forma mais cuidadosa no uso do '/

Hi Uma ideia de ascese que já fora sinalizada por Nietzsche em 1875 ao ressentimento enquanto recurso utilizado para descrever um 1
comentar o livro de Eugen Dühring (KSA 8, p. 180), como uma espé- fenômeno social, destacando as peculiaridades desse uso em 1,
1
cie de vingança do homem contra si mesmo. Nietzsche e alguns de seus desdobramentos e implicações
31
Trabalhei a interiorização do homem enquanto possibilidade, por um quando se pensa para além dos escritos do filósofo.
lado, de ampliação da tensão e uma elevação do homem e, por outro, de
uma estagnação que o impediria de retirar qualquer proveito de seu sofri- 32 Conforme veremos no decorrer deste escudo,fisiologiae psicologianão cons-
mento em "Má consciência e ressentimento: doença e promessa de futuro tituem dois campos distintos para Nieu,5che, mas um todo que se reúne no
para o homem na filosofia de Nietzsche" (PASCHOAL, 2007). Neste livro corpo. O termo corpo, conmdo, é ressignificado e ampliado por
voltarei ao tema no capítulo 7, ao analisar as possibilidades de saída para Nietzsche, passando a designar não apenas um feixe de músculos, ossm
o problema do ressentimento.
etc., mas também instintos, impulsos etc.

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1

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2. RESSENTIMENTOE VONTADE il.
1.'i
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DE PODER1
•11'.
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O mundo vistode dentro,o mundodefinidoe desig-
nadopor seu 'cardterinteligível'- ele seriajusta-
('i,
~I'
mente "vontadedepoder" e nada mais do que isso.
(Fr. Nictzsche)2

2.1 Demarca~ão
inicialda questãoa ser investigada
l 1•

l1
Conforme vimos até aqui, o ressentimento pode ser en- J
~
tendido como o sintoma de um enfraquecimento fisiológico
que se traduz numa espécie de indigestão psíquica. Basta essa
frase para evidenciar a importância dos termos "fisiologia'' e ~
"psicologia'', para esta investigação sem que isso implicasse, até 11
aqui, numa abordagem conceituai deles, o que fazemos nos
1
próximos parágrafos, preparando, com tal abordagem, um elo
para o desenvolvimento posterior deste capítulo, que associa o
ressentimento à doutrina de Nietzsche da vontade de poder.

1 Este capítulo é, em grande parte, a reelaboração de algumas passagens de


um texto de minha autoria publicado anteriormente com o título "Ores-
sentimento como um fenômeno social", em BARRfNECHEA, M.; FElTOSA,
Ch. Nietzschee as ciências.Rio de Janeiro: 7 Letras, 201 lb, p. 197-21 O.
ABM 36; KSA 5, p. 55.

!
52 NWTZSCHE E O RESSENTIMENTO RESSENTIMENTO E VONTADE DE PODER '-d

Os termos "fisiologia" e "psicologia", na forma como padecimento a faltas e pecados cometidos e a considerar a si
são utilizados por Nietzsche e também nesce escudo, não re- mesmo como o culpado por seu estado,3 teremos de concluir
metam a campos distintos no homem, mas, antes, a uma uni- que, assim, como os músculos, órgãos, impulsos, etc., tam-
dade que poderia ser chamada de uma "fisiopsicologia" (ABM bém a alma, incluindo a fantasia religiosa,dizem respeito àquele
23; KSA 5, p. 38). Assim, mesmo quando utilizamos o termo conjunto complexo e em conflito que chamamos de "corpo",
"psicologià' para designar, por exemplo, aquela forma de indiges- e o termo "ressentimento" designa um tipo de adoecimento
tão das experiênciaspassadas, não pretendemos afiançar alguma daquele conjunto na medida em que ele parece ceder terreno
forma de separação entre psique ou alma, por um lado, e para uma espécie de debilidade geral.
corpo, fisiologia, por outro. Ao contrário, a "psicologia" refe- O termo "ressentimento", porém, embora seja utilizado
re-se a algo, um si mesmo (Selbst), que se realiza, em úlcima como parte de uma semiótica, como um conceito 4 para expri-
instância, no corpo e não em alguma entidade abstrara, como mir um estado daquele corpo, possui ainda outros usos nos
se a psique fosse um epifenômeno corporal. textos de Nietzsche. 5 Especialmente na sua Genealogia da mo-
Trabalhamos, assim, com uma concepção de corpo que ral ele é utilizado para exprimir conflitos que se verifica, tanto
compreende não apenas um feixe de músculos, ossos, etc., mas no corpo (Leib) do homem individual, conforme apontamos
também um emaranhado de impulsos, instintos, vontades, etc. rapidamente acima, no intuito de retomar adiante, quanto no
hcores que, considerados em sua dinamicidade, permitem asso-
ciar ao conceito "corpo" a ideia de um conjunto complexo de '1 Nesse momento o ressentimento ganha contornos de ascese, de uma vin-
forças em uma tensão permanente. Nesse conjunto, é impor- gança que se volta comra si mesmo.
tante observar, o próprio ressentimento pode ser entendido •i O termo "conceito" possui v,írios significados e nuances na filosofia de
como a designação de um episódio constituído por um Nicrz.sche. Opto aqui pela noção de "conceico" entendido não como algo
quantum de força que se produz em função de uma adversida- rígido, imutável cm oposição à fluidez das met.íforas, mas 11.ideia de con-
de e de uma debilidade daquele conjunto, e que, não sendo ceito ela mesn1a entendida como o resultado de uma cadeia de imposição
descarregado para fora, move-se para o interior do homem de significados, de transformações, apropriações e ressignificações, uma
ideia ligada à noção de fluidez de sencidos que encontramos, por exem-
causando nele uma série de danos que se verificam em termos
plo, na seção J 2 da segunda dissertação de Paraa genet1logia da moral. Os
físicos, por exemplo, "[n] um rápido consumo de energia
moúvos desta opção e a diferenciação entre as duas utilizações do termo
nervosa, (n]w11aumento doentio de secreções prejudiciais, de conceito estão expostos em um artigo publicado recentemente (Cf.:
bílis no estômago [...]" (EH, "Por que sou tão sábio", 6; KSA 6, PASCHO,\L, A. E. Transformação conceituai. RevistaTrdgica:Estudos sohn·
p. 272) e também psíquicos, por exemplo, numa "[des]ordem Nierzsche, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 17-30, 20096. Disponívd rn1:
anímicà'(GM II 1; KSA 5, p. 292). Danos, portanto, que dmp:/ /tragica.org/arrigos/04/02-anronio paschoal.pdf>. Acesso cm: jan.
atingem o indivíduo em todos os sentidos, ilustrando o caráter 201 O).
de unidade daquele conjunto. Se considerarmos que no seu 5 Asvariações que podem ser notadas no conceiro de "rcssenti111c1110" 1;•111

extremo, no limite da loucura, o ressentimento atinge até mes- relação aos usos e funções que o filósofo confere a ele, mas, 1:1111I"'"'
:, ,,.
lação do fi\císofocom algumas de suas fomes, corno veremos :1di.,1ll<", ,,. ,••
mo a alma daquele sofredor que termina por associar o seu
próximos capítulos, correspondentes a Dosroiévski e l )íili rÍllJ',·
j1 j)

54 NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO RESSEN'i'IMENTO r,VONTADE DE PODER

corpo social, conforme analisaremos na sequência. Em ambos te num jogo permanente e aberto de forças que se desenrola sem
os casos, conforme veremos, o termo encontra-se fortemente conhecimento prévio de vencedores ou vencidos. Tal concepção
vinculado à ideia de forças em conflito e de querer-poder. Tal é de mundo, segundo Marco Brusotti (1992, p. 82) marca uma
a nuance que passamos a ressaltar, associando o termo à doutri- "mudança de paradigma'', de uma acepção na qual a forças
na de Nietzsche da vontade de poder e destacando, por um atuariam num modelo ordenado por leis mecânicas e regula-
lado, o seu uso na análise da tensão que constitui o indivíduo res, para uma concepção em que as forças agem de forma dinâ-
particular e, por outro, na análise de formações sociais como mica, num ambiente no qual "faltam absolutamente as leis, e
uma moral ou justiça. No primeiro caso, dando ênfase à ideia cada poder extrai, a cada instanre, suas últimas consequências"
de um complexo de quanta deforça que se verifica num confli- (ABM 22; KSA 5, p. 37). O paradigma do qual Nietzsche se
to de impulsos e que se manifesta como saúde ou doença no afasta pode ser observado, por exemplo, nas teses de Eugen
corpo individual e, no segundo, à noção de vontade de domí- Dühring, que considera o ressentimento, conforme menciona-
nio considerada em termos sociais, na qual se tem, igualmente, mos anteriormente, como uma "reação mecânica" (DüHRING,
a busca de pontuações de poder por se afirmar sobre outras 1875, p. 224) de vingança frente a uma agressão (DOHRlNG,
pontuações e garantir os meios para a expansão do tipo de homem 1865, p. 42). Dühring acrescenta, ainda, nessa mesma perspecti-
que a partir dela é entendido como ideal. va, que "o impulso por vingar-se frente a uma lesão sofrida é
Para colocarmos em evidência essa nuance que o termo também uma evidente disposição da natureza agindo por
só possui com Nietzsche e em nenhum outro filósofo antes autoconservação", sendo que a reação que se segue à agressão
dele, apresentamos, a seguir, um delineamento geral da noção sofrida configuraria uma espécie de "necessidade" (DüHRING,
de vontade de poder, destacando os aspectos que mais interes- 1875, p. 224) de restabelecer uma ordem rompida, num "mo-
sam a esta análise e, em seguida, passamos ao desdobramento vimento reflexo", como ressalta Nietzsche (GM III 15; KSA
das análises sobre o ressentimento em termos individuais e 5, p. 374) em sua crítica ao professor de Berlim.
também sociais tendo em vista os pressupostos apresentados. Contrapondo-se a tal concepção de mundo, Nietzsche
escreve, em 1886, em Além de bem e mal, que "o mundo visto
de dentro, o mundo definido e designado a partir de seu 'cará-
2.2 Ressentimento
e vontadede poder6 ter inteligível' - ele seria justamente 'vontade de poder' e nada
mais do que isso".7De forma análoga, em algumas anotações pes-
Para Nietzsche, a fórmula "vontade de poder" corres- soais do mesmo período, ele apresenta esse "mundo" como um
ponde a um modo de expressar a dinamicidade do mundo, no conjunto de "pontuações de vontade, que constantemente aun1t:11-
qual tudo se encontra em movimento, num vir-a-ser constan- tam ou perdem seu poder" (KSA 13, p. 36-37), como um co111í
nuo efetivar-sede "quanta de vontade" (KSA 13, p. 262), dv "di
nâmicos quanta" dispostos uns diante de outros nurn:1 n-l:1(,;1,,
6
Parte dessas considerações sobre o ressentimento e vontade de poder foram
apresentados anteriormente em "Pressupostos para a análise e primeiras con-
siderações sobre a vida passional em Nietzsche" (PASCHOAL, 2009c).
7 ABM36; KSA5, p. 55.
56 NfET/.SCHE E O RESSENTIMENTO ''>/
RESSENTIMENTO E VO'.'JTADF. DE PODl:'.R

tensa, num vir-a-ser ininterrupto, que em momento algum •


D es1gnan d"o o mun d"o como " vonta <ld e e po d"er ,
poderia ser reduzido a uma unidade mecanicamente articulada Nietzsche está nomeando não apenas o conjunto total dos
e ordenada. Para o filósofo, portanto, "o mundo mecânico é acontecimentos, mas também "o fato mais elementar do qual
apenas algo imaginário" (KSA 13, p. 259) e corresponde ape- t e •
resulta um tornar-se, um erenvar-se • "um pat hos"
... ,,, ou se)a,
nas a um modo de dizer o mundo que se faz em atendimento (KSA 13, p. 259) que surge em certos jogos e que, na forma de
ao propósito de simplificá-lo e torná-lo inteligível, não poden- um imperativo, busca impor a todo o ambiente a sua própria
do ser tomado, em hipótese alguma, como a possibilidade de 1 perspectiva, isto é, aquilo que favorece "sua forma muito pró-
exprimir o que esse mundo seria em sua "realidade". pria de valoração, de agir e de resistir" (KSA 13, p. 3 71). Em
Por sua vez, o termo quantum, que encontramos naque- outros termos, o aumento de seu poder.
las anotações, não corresponde a um tipo de matéria ou uma Nesse mundo entendido como vontade de poder, um caso
partícula mínima, como um átomo ou uma mônada, que per- particularmente complexo e rico em alternativas é o homem,
maneceria após a desagregação de uma unidade e que voltaria a descrito por Nietzsche "como uma pluralidade de 'vontades de
se agrupar com outras panículas formando novos corpos. Um poder'.· cada uma delas com uma pluralidade de formas e meios
quantum não possui também o caráter de "ser" (KSA 13, p. 36), de expressão". Considerada essa definição inicial, infere-se de
algo que existe de fato como um ente, algo que eu posso apreen- imediato c.1uetambém as tentativas de compreender o homem
der em sua essência, muito menos de um "tornar-se" (KSA 13, como uma identidade fixa, si ncetizando essa suposta unidade
p. 259), entendido como um desdobramento de algo igual- em termos co1no "eu", "consciência", "alma", etc., conduzem
mente existente, mas, corresponde, antes, a "quantidades de apenas a "ficções". O mesmo que se verifica nas tentativas de
ação, proporções de querer, forças cm ação" (PASCHOAL, 2009a, explicitar o seu mundo interíorou seus traços passionais ("p. ex.,
p. 47), a uma dinamicidade que só pode ser entendida em rela- o homem é cruel"), unificando-os "de modo sintéáco em um 'ser'
ção com outros quanta. De modo análogo, nesse "mundo", as ou em uma 'faculdade'".Tais tencaávasredundam apenas em "uni-
forças, impulsos, vontades e perspectivas não designam unida- dades fictícias", vism que aquele conjunto complexo, fluido e
des fixas, mas apenas pontuações de existência provisória. 8 Elas multifacetado somente "imaginariamente" poderia ser unifica-
só existem no seu atuar e só podem ser identificadas "enquanto do. Elas remetem, no máximo, a "sintomas", oferecendo pistas
relação" (PASCHOAL, 2009a, p. 47). Surgem, confrontam-se e do estado momentâneo em que se encontra aquela pluralidade
desaparecem num jogo que se encontra igualmente em fluxo, complexa e dinâmica de vontades de poder (KSA 12, p. 25 -
podendo ser designado, essejogo, ou mundo, como um "eterno destaque no original).
auto criar-se e um eterno auto destruir-se" (KSA 11, p. 61 O). Como parte daquela '"pluralidade de 'vontadesde podn- '"
8
que designa o homem, o ressentimento designa um guercr-po ·
Vale observar que também os argumentos de NierlSche, ripose conceitos der que almeja se expandir. Abordado, portanto, no ct)111pt110
seguem esse padrão. Eles também surgem em certos contextos, cumprem
de uma "morfologia e teoria da evolução da vontade rk p111/,-r''
cercos papéis e desaparecem sem reivindicar a pretensão de unidades
conceituais. De verdades válidas para além do ambiente em que surgem (ABM 23; KSA 5, p. 38), como Nietzsche pretcndv Lr,n, "
e acuam. ressentimento é designado como um sintoma, conH, ., i 1111i, .1
58 NIET7.SO-lE L.O RESSENTTMENTO RESSENTIMENTO E VONTADE DE PODER '>()

ção do predomínio de um modo de agir nocivo, inibidor deforçase modosde ação.11 Assim, o que temos com a
rei.ações
que redunda naquele "entorpecimento" verificado no ho- expressão "sentimento reativo" é a designação de um modus
mem individual e, também, como a busca pelas condições opaandis, que se constitui como "resposta" (MAGO, 1996,
propícias para a expansão daquele tipo de homem. Assim, p. 9) a uma afronta anterior ou mesmo motivada por um sen-
mesmo associado a termos como "_ji-aqueza", "passividade"ou timento de inveja, 12 mas, em todo caso, uma resposta,algo que
"reatividade",9enquanto um querer-poder, o ressentimento depende de um agente externo para agir.
indica uma daquelas "formas e meiosde expressão",um modo Auxilia na compreensão do caráter reativodesse modo
de agir que busca tornar-se dominante. de ação, além da análise da figura do homem do ressentimento,
Neste ponto, alguns termos merecem uma atenção par- que é seu modo de expressão par excellence,também uma veri-
ticular, especialmente considerando sua relação com a ideia de ficação de alguns traços de seu antípoda, o homem do esqueci-
ressentimento que aqui se desdobra tendo em vista o paradigma mento,13 ou, o nobre. A primeira característica que Nietzsche
denominado vontade de poder. Ti-ata-sedo termo "reação", con- associa ao nobre é o olhar sobre si mesmo como referência
siderado em função da percepção já aventada de "reatividade" à primeira, num "triunfante sim a si mesmo". 14 Isto não signifi-
qual se associa o ressentimento, e também do termo "domí- ca, contudo, que de não conheceria adversidades e inimigos, e
nio", que parece central na ideia de jogos de poder. sim que, uma vez tendo-os diante de si, seu olhar se mantém
Sobre a ideia de reação, associada especialmente ao res- sobre si mesmo e sua atenção será, por exemplo, para os mo-
sentimento entendido como um "sentimento reativo" (GM
II 11; KSA 5, p. 31 O), deve-se considerar, inicialmente, dois
11 Como afirma Deleuzc ([s.d.], p. 63 ss). Segundo Marco Brusotti, (2001,
aspectos. Primeiro, que tal ideia pertence a Dühring, que afir-
p. 111-112), "Dcleuze (...) confundiu a contraposição 'ativo' - 'reativo'
ma: "o sentimento de justiça é essencialmente um ressenti- como contraposição de forças ativas e reativas. A ideia de uma 'força
mento, um sentimento reativo, ou seja, da mesma espécie de reativa', de uma reatividade como qualidade interna de uma determina-
sentimento que a vingança" (1865, p. 219), operando com da força é escranha ao pensamento de Nietzsche. Manifestações
aquela mesma reação mecânicada qual Nietzsche pretende se (Erscheinungen)reativas não são atribuídas a determinadas forças reativas
afastar, especialmente em 1887, quando escreve sua Genealogia ( ... ).O ressentimento é um fenômeno complexo que se baseia em uma
da moral e toma o professorde Berlim como um adversário e complexa relação de forças".
alvo de uma dura crítica.'º Segundo, que o termo "reativo", no 12 KSA 13, p. 232. A inveja cm questão aqui é diferente daquela que, por
exemplo, na Crécia Antiga conduzia à disputa e à saudável concorrência
pensamento de Nietzsche, não pode dizer respeito a serese unida-
entre os cidadãos (KSA 1, p. 786). A inveja do ressentimento condtu ao
desfixas como seria o caso de uma força em particular tida como ódio pela simples existência do outro. Conferir: ScHELER,M. fJ,1.r
ativa ou reativa em si mesma, mas, ames, caracteriza complexas Ressentirnentim Aujbau der Moral.en,p. 11.
l.l O esquecimento, um dos traços mais importantes na concraposi<,:;ío
,1., n ·.,

sentimento, bem como outros traços da contraposição entre o 1111hn· ,. o


9
Como propõe Deleuze cm Nietzsche e afilosofia, p. 63 ss. fraco, será retomado oportunamente, em especial no próximo< a11í11110.
14 Conferir, a respeito: PASCHOAL,
2009a, p. 98 ss.
ío Conforme veremos de forma mais detalhada adiante, no capírulo 3.
60 NIETZSCHE E O RE5SF.NT!MENT0 RESSENTIMENTO E VOKTADE DE PODER (,1

dos como aquela tensão poderá servir para lapidá-lo, refiná-lo 1.lafraqueza" (KSA 9, p. 252), em especial se for considerado o
e possibilitar que ele se lance para alvos ainda mais distantes. tipo de atenção dispensada ao outrono âmbito do ressentimento.
Considerando, assim, que ele tenha que reagir diante de inimi- O outro é reconhecido em meio à propensão do fraco de formar
gos, e mesmo que, nesses casos, ele experimente sentimentos comunidade, pelo grau de periculosidadce de ameaça que de pode
reativos,o que se observa é uma reação "imediará' que exaure, representar para aquela comunidade dos iguais.Assim, não é ne-
numa ação ingênua, espontânea e voltada para fora, todo aquele cessárioque o outro tenha cometido uma agressãopara se tornar
veneno que no "homem do ressentimento" (GM I 10; KSA 5, o alvo da sede de vingança do homem do ressentimento. Basta
p. 272) levaria à obstrução do seu mundo interior. Tal ideia, de ser diferente, pois, por uma expectativa de segurança ou por
uma reação feita por meio de "atos", explicita, ademais, a medo, o homem do ressentimento se volta para aqueles que são
polissemia do termo "reação", pois, como enfatiza Max diferences dele e, tomando-os como um perigo, real ou imagi-
Scheler,existem diferentes modos de se responder a uma agressão. nário, busca tê-los sob seu domínio. Nietzsche exemplifica o
Segundo Scheler, "o impulso de vingança [que caracteriza ores- modo como ocorre cal busca por domínio, por exemplo, por
sentimento] não coincide com o irnpulso de resposta ou de meio da figura dos "pregadores da igualdade" (ZA, "Das
defesa, mesmo se for acompanhada de cólera, raiva ou indigna- tarântulas"; KSA4, p. 128), que agem visando o estabelecimento
ção" (2004, p. 5). ' 5 Assim, é plausível a afirmação de que nem de condições para a sua proliferação numérica e para eliminar os
toda resposta (reação,vingança)corresponde necessariamente a que são diferentes, os homens de exceção.16
uma forma de ressentimento. Para se caracteriz.ar o ressenti- Diferentemente, no caso do nobre, mesmo se for conside-
mento, torna-se imprescindível que a reaçãocorresponda de for- rado que é possível falar em empreendimentos para a sua obten-
ma específica àquele modus operandisdo fraco e c-1uea vingança ção, não se pode perder de vista que tal tipo de homem não se
mesma não se traduza em atos, mas ocorra apenas de forma produz em "condições favoráveis" (ABM 44; KSA 5, p. 61),
imaginJria e especialmente que ela não seja imediata, mas mas sob tensão. O domínio ou a associação com grandes gru-
adiada, merecendo, assim, uma longa atenção e fazendo com pos de pessoas não seria, assim, um meio para a sua obtenção.
que o impulso detrativo se dirija para o interior do homem. De outra espécie, a obtenção do raro, do "homem de exceção",
Seguindo esse mesmo tipo de análise morfológica,cabe não pressupõe, em última instância, um domínio sobre os
observar, ainda, a diferença entre a ideia de domínio que se cem outros, mas sobre si mesmo. Nesse caso, portanto, seria neces-
no ressentimento e a de maestria que se tem na nobreza. Para sário rever o significado do termo "domínio" ou, quem sabe,
Nietzsche, a "inclinação para o domínio" é "um signo interno substituí-lo pelo termo "maestria" que traduziria melhor a ideia
de um controle das pulsões ou da "aptidão para superar a si
15
mesmo", conforme lembra Patrick Woding, (2009, p. 69), j;í
Não se deve perder de vista também que uma adversidade pode ser
tomada como um estímulo ou um desafio que imptdsiona o homem
para novos horizontes, da mesma forma como a "inveja" pode ser enten- 16 O mesmo que se verifica também na concepção de justiça aprq;o:ul.1 I" ,1
dida como algo posirivo, como explica Nietzsche ao tratar da ''boa Eris" Eugen Dühring que, segundo Nietzsche, "sacraliza a vingan\·;i ,·111 1" ,111,
(KSA 1, p. 786). da justiça", conforme retomaremos adiante, no rnpítulo :t

i
62 NIETZSCHE E D fffSSl'NTIMENTO RESSENTIMENTO E VON1i\DE DE PODFR (>.\

que essa é a principal condição para a obtenção do homem ainda neste capítulo, sob a perspectiva da vontade de poder e, a
raro, de exceção. parcir de outras abordagens, adiante, no capítulo "Possibilidade.~
Em resumo, tendo em vista os primeiros resultados daque- de se colocar para além do ressencimento". Por ora, seguindo com
la morfologiadeformas e meiosde expressão,é possível afirmar a argumentação proposta, cabe a exposição de alguns aspectos do
que o termo "ressentimento" designa um modo de agir e uma ressentimento em termos individuais e, cm seguida, no con-
ideia de domínio que não se coadunam com o propósito de o texto da "rebelião escrava na moral", uma breve análise do res-
homem atingir sua "suprema potência e esplendor"(CM, "Pre- sentimento como a expressão de uma vontade de poder
fácio", 6; KSA 5, p. 253). Tal observação recoloca a questão, operante e que visa tornar-se dominante em termos sociais.
ao certo, do propósito dessa morfologiae também da genealogia
de Nietzsche, bem como do uso que ele faz do conceito deres-
sentimento. Desde já é possível afirmar, frente a essa questão, 2.3 O ressentimentoem termosindividuais:
que o seu propósito é fazer uma crítica à moral, contrapondo-se a maisperniciosadoença
a ela na medida em que ela "poderia" ser culpada de o homem
não atingir aquela "supremapotênciae esplendor".Portanto, ten- Em termos individuais, conforme anunciamos no início
do em vista a noção de vontade de poder, não se pode deixar de do capítulo, o ressentimento designa uma forma de adoecimento
considerar um dos aspectos mais importantes da genealogia de que atinge o homem em todos os sentidos.Para retomarmos a
Nietzsche: que também os seus textos se constituem na pers- abordagem dos efeitos do ressentimento sobre o indivíduo, tor-
pectiva do querer-poder. Eles são partes de uma ação oposta ao na-se instigante uma anotação pessoal de Nietzsche do outono
ressentimento, ou, como Nietzsche mesmo afirma, eles são ar- de 1888, já que nela o autor menciona o ressentimento corno
tefatos de uma "luta contra os sentimentos de vingança e rancor" uma "disposição para a vingançà', caracterizando-a, naquele con-
(EH, "Por que sou tão sábio", 6; KSA 6, p. 273). Uma ação texto, por seus efeitos sobre o corpo, como "o mais pernicioso
oposta ao ideal de uma autodiminuição do homem e favorável de todos os estados possíveis para o doente" (KSA 13, p. 618).
ao ideal contrário, visando à lapidação, ao refino e à elevação do De forma análoga, em Ecce homo, ele associa o ressentimen-
homem, enfim, à produção de homens de exceção.17 to à condição mesma de "estar doente", apontando o "estar
Tal questão, acerca do propósito de Nietzsche com tais doente ( ... ) em si" como "uma forma de ressentimento"
escritos, traz consigo também a pergunta pelas possibilidades de (EH, "Por que sou tão sábio", 6). O ressentimento é aponta-
superação do ressentimento, uma demanda à qual retomaremos do, então, como sinônimo de um modo de viver "a partir da
fraquezà', no qual se esmorece justamente o "instinto de cur:1,
17
F,interessante observar que, neste ponto, também a crítica de Nietzsche pa-
rece partir de um olhar voltado para o exterior, para um tipo de homem que
predomina na cultura ocidental, por exemplo, associada à figura do sacer- ressentimento. Retomaremos essa questão no capítulo 6, :Hl 11:11:11 '' ",·,
dote, que ele afirma ser" o inimigomttisperverso"(GM I 6; KSA 5, p. 266). justamente das possibilidades de se colocar "para além do n·,..1,·1111
Assim, a sua luta e o seu ideal contrário poderiam ser lidos no registro do mento".
64 NIETZSCHE E O RESSENTtMENTO RESSENTIMENTO E VONTADE OE PODER (, ')

ou seja, o instinto de d~fesa e de ataque", 18 uma espécie de para o círculo viciosode uma doença, que é resultante de seu esta-
letargia que o filósofo traduz nos seguintes termos: "não se do de debilidade e que o torna ainda mais débil, consumindo-se,
sabe livrar-se de nada, não se é capaz de fazer nada, não se sabe assim, suas últimas forças vitais.
desvencilhar-se de nada, - tudo fere" (EH, "Por que sou tão Neste ponto, nos aproximamos novamente da questão
sa'6"10 " , 6) . da possibilidade de superação do ressentimento, de encontrar
Pensado nesses termos, o ressentimento expressa uma modos de se livrar dele ou de cura em relação a ele, visto tratar-se
não reação, especialmente pelo perigo que a reação representa de um modo de adoecimento. Como se observa, em Eccehomo,
nas situações limítrofes daquele tipo de adoecimento: "porque Nietzsche se refere a formas individuais de resistir ao ressenti-
nos consumiríamos muito rapidamente se reagíssemos, não mento, como é o caso do fatalismo russo e de algumas formas
reagimos mais". Desprovido da autêntica reação, a dos atos, de higiene que ele identifica em Buda, no entanto, caso mante-
aquele homem debilitado torna-se refém dos próprios senti- nhamos o foco a partir da perspectiva da vontade de poder,2°
mentos contidos, que produzem nele uma espécie de parece ganhar destaque em seus escritos a ideia de que a saída
auroenvenenamento na medida em que o seu mundo interior para o ressentimento mesmo em termos individuais se dá a
é ocupado com "o aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a partir de soluções que envolvem "grandes façanhas e tentativas
impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revol- globais de cultivo e de criação" (ABM 203; KSA 5, p. 126), ou
ver venenos em todo sentido". Se, contudo, aquela não reação seja, que ocorrem em termos sociais. Motivo pelo qual, antes
for considerada como um modo de reagir, o único que o fraco de apontarmos algumas piscas na direção do ideal contrário,
conhece, deve-se admitir tratar-se da "forma mais nociva de cabe assinalar os traços mais expressivos do ressentimento en-
reação", pois, conforme já mencionamos, ela leva a "um rápido tendido como um fenômeno social.
consumo de energia nervosa e [a1 um aumento doentio de se-
creções prejudiciais, de bílis no estômago, por exemplo." (EH,
"Por que sou tão sábio", 6) Dessa forma, o maior prejudicado 2.4 O ressentimento
como um fenômenosocial:
pelo ressentimento é o próprio doente que, sob o efeito de a rebeliãoescravana moral21
uma espécie de encantamento, parece não poder mais sair do
círculo que esse tipo de reação traça em torno dele. 19 Trata-se, Considerado em termos sociais e sob a ótica da vontade
assim, em síntese, de um organismo já abatido que é arrastado de poder, o conceito de ressentimento tem seu uso estendido
para vários campos como o da "psicologia social, filosofia
18
Nietzsche utiliza uma terminologia militar neste caso. "Defesa" (Wehr)é
no sentido de resistência por meio de armas e "acaque" (Waffen) está 20 Mais adiante, no capítulo 6, retomaremos o tema da superação do r,·ssrn
igualmente associado a ''pegar em armas". timenro a partir de novos elementos e colocando cm relevo o lu1;;11d.,
19
Conferir meu texto intitulado: "Arres de hipnose e de encancamento perspectiva da vontade de poder nos escritos de Nietzsche.
na terceira dissercação de Para a genealogia da moral" (PASCH01IL, 21 Uma versão preliminar deste item foi publicada com o título'"() rc,•;i·1111
2008a, p. 82). mento como um fenômeno social" (PASCHOAL, 2011 b, p. 1'>7 .'.1111.

~
66 1'1ETZSCHF.. E O RESSENTIMENTO RESSENTIMENTO E VONTADE DE PODER (,'/

moral, sociologia e [da] política", como ressalta Henning uma ideia de justiça ou mesmo uma concepção de política
Octmann (1999, p. 315). Um aspecto que é assinalado tam- marcada pelo ódio, pela ideia de vingança e por aquela con-
bém por Christian Koecke (1994, p. 141), tendo em vista de cepção de domínio própria do fraco em sua ação para tornar-se
forma especial o modo como Nietzsche, na primeira disserta- dominante. 23
ção da Genealogiada moral, recorre a uma espécie de antropo- Segundo Nietzsche, é com a "rebelião escrava da moral"
logia e sociologia de antigos povos e raças em sua história da (GM I 7; KSA 5, p. 268) que o ressentimento se tornou domi-
emergência de certas formas de valoração. Ao certo o primeiro nante no Ocidente, deixando de ser perigoso apenas para o
a colocar esse aspecto em evidência, Max Scheler tamhém apon- homem exausto e tornando-se uma ameaça também para aque-
ta para traços sociais daquela sede de vingança por meio de les que são saudáveis e, assim, para os homens em geral.Tem-se,
uma fenomenologia e sociologia do ressentimento, no semi- então, a paradoxal manifestação da força do fraco, num empre-
nário intitulado "Das Ressentimentim Aufbau der Moralen" endimento que foi vitorioso no conflito que marcou a civiliza-
(SCHELER, 2004), no qual identifica, por exemplo, situações ção ocidental. Um dístico desse conflito, segundo Nietzsche,
em que se teria um maior ou menor "perigo de ressentimento" seria o confronto entre Roma e Judeia, sendo os romanos o
(Sc:J-IELER, 2004, p. 22). Tal abordagem, muitas ve,,es, gera a protótipo dos "fones e nobres" enquanto os judeus correspon-
expectativa de uma anJlise que teria o ressentiment:o como um deriam ao "povo sacerdotal do ressentimentopar excel!ence",com
operador a ser utilizado numa avaliação de inst:ituições,organi- a evidente vitória do modo de valorar do segundo grupo, da sede
zações, partidos políticos ou cenas grupos que poderiam ou de vingança, como se constara observando-se,segundo Nietzsche,
não ser considerados como constituídos a partir do desejo de
vingança. f: o que fa1,,por exemplo, Peter Sloterdijk, em seu diante de quem os homens se inclinam atualmente na pró-
livro Zorn und Zeit ( Cólerae tempo, 2006), em especial no pria Roma, como a maior representação dos valores mais ele-
item "NietzschesAugenblick" (A perspectiva de Nietzsche), vados - e não apenas cm Roma, mas em quase metade da
quando aponta, de forma lúcida, o ressentimento e a sede de terra, em roda parte onde o homem se tornou manso ou
vingança como fatores que levaram à violência que ganhou quer se tornar ... (GM I 16; KSA 5, p. 286-287).
proporções indescritíveis na Europa do século XX. Nesse ca-
pítulo, contudo, mais do que tomar o ressentimento como Para Nietzsche, portanto, a vitória da moral do homem
um operador para avaliar situações pontuais, 22 o objetivo é, animal de rebanho sobre os ideais nohres e o sucesso do em-
retomando a morfologia delineada por Nietzsche, ressaltar preendimento de um amansamenco do homem, em detrimen-
aquele modus operandistípico do ressentimento, em especial
quando utilizado para designar, por exemplo, uma moral ou

2
~ Conforme entendo, tal procedimento pode levar a uma armadilha, pois 23 Trata-se, assim, de uma peça em uma genealogia daquilo qu, h,11, .11111
parte de um olhar para o ourro, cercamente algum outro querem me in- chama de '"alma' moderna" (1987, p. 31), de viabilizar wm .111.1101111.1
comodado, como um inimigo mau ... dessa alma, ou, ao menos, de parte dela.
( 1<)
68 NIETZSCHE E O RESSE>ITIMENTO RESSENTIMENTO E VONTADE Df'. PODrJl

to dos ideais nobres,24 seria um episódio incontestável no mundo A expansão do mundo interior do homem do ressenti-
ocidental. mento estaria, assim, relacionada à ausência de descarga para
Para que o homem animal de rebanho fosse vitorioso fora daquele quantum de força que se seguiria à ofensa sofrida.
alguns fatores desempenharam papel preponderante, em es- Contudo, é interessante lembrar que no paradigma adotado
pecial dois deles: a memória peculiar do homem do ressenti- por Nietzsche, o da vontade de poder, esse quantum de força
mento, associada à expansão de seu mundo interior, e a for- que se volta para o interior do homem não é simétrico em
ma peculiar de razão que ele cultiva e que no seu extremo ganha relação ao estímulo que o produziu. Conforme observa
contornos de uma sagacidade (Klugheit). A capacidade Dostoiévski,referindo-seao "homem de consciênciahipertrofiada"
mnemônica acentuada do fraco advém de sua ligação muito (2003, p. 22), ele não apenas acumula, mas multiplica o rancor
estreita com o passado. Quer em função de sua percepção das produzido pela ofensa, acrescentando à animosidade inicial um
adversidades passadas não resolvidas, quer graças à sua sede de sem número de novas injúrias efetivas e imaginárias, o que tor-
vingança, o fato é que ele mantém um vínculo estreito com o na complexo o processo de acúmulo daquele material que cons-
passado, que não o abandona, mas permanece como um incômo- tirni o seu subsolo, seu mundo interior, sua memória.
do sempre hodierno -- na memória - tornando-se determinante Ao lado <laqueia memória, outro fator que está associa-
para o direcionamento de suas ações. Con t:udo, mesmo se a do à vitória do fraco é a forma peculiar de razão que nele se
íntima relação daquele tipo de homem com o seu passado não ampliou justamente em função de sua vingança quase sempre
se faz, por exemplo, no intuito de evitar erros já cometidos, procrastinada e de sua necessidade de esperar, de aguardar o
ocorre que tal relação produz nele, no fraco, um diferencial em momento mais oportuno para agir. Desenvolvendo-se naquele
relação ao forte, que é caracterizado por Nietzsche, e também período de tempo que se encontra entre a ofensa produzida e a
por Dostoiévski, como aquele que esquece e que seria, por isso desforra, essa razão se apresenta especialmente como calcula-
mesmo, de alguma forma, um tanto estúpido. Comparado ao dora, como produtora de estimativas, planejamentos e tam-
fraco, o homem nobre tem menos memórias, visto que a pró- bém de premeditações, o que acentua naquele homem o cará-
pria capacidade de memorização é contrabalanceada, nele, por ter da esperteza ardilosa. Tal razão, produzida no silêncio
um ativo esquecimento, em função do qual, em casos extre- forçado, em meio ao não esquecimento e à espera, em "escon-
mos, ele sequer se recorda, por exemplo, das baixezaspelas quais derijos e caminhos secretos" (GM I 10; KSA 5, p. 272) não se
teve de passar, das injúrias sofridas e também não se lembra, verifica, ao menos com a mesma intensidade, no nobre, o qual,
muitas vezes, sequer de cobrar seus detratores. Antes, nele se mesmo sendo designado às vezes como guerreiro, não dá tanto
verifica certa ingenuidade que se avizinha da imprudência, por tempo nem atenção ao adversário como o homem do ressenti
exemplo, no atirar-se contra seus inimigos e no exteriorizar a menta. Por todos esses motivos, Nietzsche afirma que "11111:1
sua força sem medir todas as consequências de seus atos. raça de tais homens do ressentimento resultaria necessari:m1,·11
te mais inteligente (klüger) que qualquer raça nobre"(< ;rvl 1
24
Ideais que, de alguma forma, Nietzsche pretende retomar sem que isso impli- 10; KSA 5, p. 272-273). Por seu modo intrépido e 11111 1.111111
que, ao certo, retomar o aspecto violento das velhas aristocracias guerreiras. precipitado de lançar-se às cegas ao perigo, "seu irnnli.11Í'.,11111
Conferir, por exemplo, PASCHOAL, 2009a, p. 145 ss.
70 NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO RESW.NTlMENTO E VO\:TADE DE PO!H-'R /1

na cólera, no amor, no respeito, na gratidão e na vingança", o um modo peculiar e com as vantagens que vão desde o seu
nobre não parece estar associado a uma ideia de inteligência maior número, passando por aquela intrincada inteligência e
(Klugheit) que redundaria, por exemplo, numa vida longa e pelas particularidades que apresenta quando ganha contornos
numa prole numerosa (Cf. CI, "Os quatro grandes erros", 2). de uma natureza espiritual, por exemplo, as noções de culpa e
De fato, a concepção de nobre que se verifica nos escritos de de pecado que utiliza como artifícios para enfraquecer o seu
Nietzsche corresponde a um tipo que não recusaria queimar adversário. Aspectos decisivos naquele confronto verificado na
toda a chama de sua vida de uma vez só, num único clarão, história do Ocidente do qual resulta, segundo Nietzsche, o
num feito tão fantástico quanto imprudente. Talvez, por isso, ressentimento como modo de valorar prcdominante. 25 Um
Nietzsche afirme que aquela inteligência no nobre seria um modo de valorar que nega a vida enquanto explosão de forças,
"luxo e refinamento" (GM I 1O; KSA 5, p. 273) e também abundância, sensualidade e conflito, favorecendo justamente
que "uma natureza superior é mais insensata ( ...) e em seus aquele tipo de vida que se traduziria numa espécie de homem
melhores momentos sua razão faz uma pausa" (GC 3; KSA 3, manso, produtivo e pouco perigoso.
p. 374). O fato é que essas proposições ajudam a esclarecer a
ideia de nobreza em Nietzsche que corresponde, por certo, ao
guerreiro, especialmente quando ele faz uma história da emer- 2. 5 O ressentimento
como um fenômenosocial: a pequenapolítica
gência de formas de valoração, mas, de maneira bem mais acen-
tuada, ao homem raro, destacado, ao homem de exceção e, Na denominada "moral de animal de rebanho" (ABM
por conseguinte, àquele que se perde com maior facilidade. 202; KSA 5, p. 124), expressão que Nietzsche utiliza para
A inteligência do fraco recebe contornos de estratégia, sintetizar aquela forma de valoração típica do ressentimento,
por exemplo, quando ele apresenta o modo de ser próprio do a sede de vingança assume contornos de uma tentativa de
forte, a altivez e o olhar voltado para si mesmo, como vício, e o domínio, de impor uma determinada forma de organização
seu modo de ser, a subserviência e a humildade, como virtude. visando desestabilizar possíveis concorrentes e intensificar o
Essa estratégia ganha destaque na figura do sacerdote, um tipo próprio poder. Porquanto, ela não se volta apenas para pretensos
que representa de forma exemplar tanto a ideia de não se achar detratores ou para aqueles que são considerados culpados pelo
em condições de rivalizar com seus adversários de forma direta, sofrimento do fraco, mas contra todos aqueles que não sofrem
de acumular rancor e sede de vingança, quando a de se ocupar como ele e que, portanto, não são seus iguais.
demasiadamente com tal material acumulado, dilatando seu
mundo interior com uma inteligência (expertise) que, nele, rece-
be contornos de uma espiritualidade voltada contra o corpo e 25 Tornando-se dominante, como é o caso dos "industriais e grnmks 1H·
contra tudo aquilo que é expressão de vitalidade, como aquela gociantes" que exercem o poder econômico n:t época de Nicr"l.s,111· n
que ele vê no seu rival. piorando as necessidades e comprando os trabalhadores, o ti 111,1'·""
e ressentido não passa a revelar, em hipótese alguma, aqtwh., ''1<>1111.1·.
Esse asceta ilustra, portanto, de forma privilegiada, que
e insígnias da raça mais elevada que tornam interc~sa111n .1•,;,,·,"'"' ••
o fraco não deixa de rivalizar com seu adversário, mas o faz de (GC 40; KSA 3, p. 407).

!l
72 1'.IFTZSCHE E O RESSENTIMENTO
RESSENTIMENTO E VO~TADE DE PODER í.l

Universalizada, dessa maneira, a sede de vingança recebe mal manso e civilizado, um animal doméstico" (GM 1 J 1;
o nome de "justiça",26 institucionalizando aquele princípio de KSA5, p. 276). Enfim, em todas essas correntes, Nietzsche
igualdade que, de resto, conflui numa massificação disforme, aponta um processo de homogeneização e de nivelamento, que
espalhando-se por todo o corpo social corno o veneno de uma tem por objetivo a produção de um tipo de homem fraco: "um
tarântula que invade sua vítima. Em relação ao fraco, tal vene- animal de rebanho, útil, laborioso, funcional e utilizável de dife-
no funciona como um anestésico que permite a ele suportar rentes formas" e, nesse sentido, o oposto do homem de exceção,
seu sofrimento sem sucumbir a ele27 e, em relação ao forte, "das qualidades mais interessantes e perigosas" (ABM 242; KSA
como um entorpecimento que visa enfraquecê-lo. Em ambos 5, p. 183).
os casos, o propósito é um nivelamento do homem, a produção O que reúne rodas essas concepções políticas aparen-
do rebanho universal e impedir o aparecimento de tipos diferen- temente díspares num conjunto único e designado pela ex-
tes de homem.
pressão "pequena política", (ABM 208; KSA 5, p. 140) é o
Na Europa de sua época, Nietzsche identifica o mesmo propósito que estaria arraigado nelas de se produzir uma "dege-
propósito de igualdade que caracteriza aquela concepção de neração e diminuição do homem em direção do perfeito ani-
justiça também no campo da política. Considerados do ponto mal de rebanho" (ABM 203). 28 A hegemonia das concepções
de vista dos valores, tanto o movimento democrático quanto os assinaladas com cal propósito é sintoma, segundo Nietzsche,
"fanáticos da irmandade", como ele se refere aos socialistas, ou de um enfraquecimento geral e de fadiga, uma expressão da-
ainda o movimento "anárquico emergente", (ABM 242; KSA quele adoecimento que corresponde ao ressentimento consi-
5, p. 182), todos eles são, em última instância, herdeiros do derado, nesse caso, em suas ramificações pelo corpo social.
"movimento cristão" e buscam o ideal do "rebanho autônomo" Em contraposição a essapequena política que caracteriza
(ABM 202; KSA 5, p. 125). Um propósito que não é estra- a "era das massas" (ABM 241; KSA 5, p. 181), 2') Nietzsche
nho também à política racista e nacionalista da Alemanha de apresenta uma tarefà que pode ser designada por meio da ex-
sua época, a qual revela ainda, segundo o filósofo, uma forma pressão "grande política" e também pela ideia de cultivo. Em
de "névrose nationale, da qual a Europa está doente" (EH, "O especial em relação à expressão "grande política", como
caso Wagner", 2; KSA 6, p. 360). Em todas essas concepções, Nietzsche a utiliza, cabe uma observação prévia, pois o termo
na interpretação de Nietzsche, tem-se a manifestação da força grande política não designa simplesmente uma política cunha-
do fraco, bem como daquele empreendimento que tomando da num formato oposto ao que seria a pequena política. Antes,
os "instintos de reação e ressentimento" liquidou "as estirpes
110hrese seus ideais" e estabeleceu como meta de roda cultura a
produção, "a partir do animal de pressa 'homem', [deJ um ani- 28 É nesse sentido bem preciso que Niet7.scheé contra a "instalação do r\'ÍtH>
da concórdia na terra (porque seria, sob codas as circunstâncias, o rl'i110d.r
mais profunda mediocridadee chineseria)"(GC 377; KSA3, p. (,.\0).
:,, '/./\, "I hs tarântulas"; KSA 4, p. 130. Apenas anunciamos aqui o tema da
j11s1i\·:1,pois iremos remmá-lo no próximo capfculo.
29 Nietzsche utiliza essa expressão para referir-se ao seu tempo un il ,<'·11, c111
outras ocasiões, como é o caso da Segundaconsideração('Xf1•1t1;,111;/111·,1: I J,1
< T: 1'11sc111
>,11,2008a, p. 69-86 e, adiante, capítulo 6.
utilidade e desvantagemda históriapara a vida (CE I 1'J; KSJ\ 1, I' 11 .'1.

1l
74 NfETZSCHE E O RESSENTIMENTO RES~ENTIMENTO f VONTADE DE PODER /')

o termo designa um ato de guerra e, nesse sentido, interessa a condições mínimas para a obtenção do ideal contrário, que tem
Nietzsche resgatar o uso corrente do termo utilizado para de- em vista aquele tipo de homem de exceção.
signar Estados nomeadamente bélicos, como é o caso, por Nesse sentido, é interessante ressaltar que tal empreendi-
exemplo, da Alemanha de então, liderada por Otto voo mento por condiçõesopostas não implica numa espécie de domí-
Bismarck. Com Nietzsche, porém, mesmo mantendo-se are- nio que só permitiria o aparecimento daquele tipo de homem,
missão à ideia de "ferro e sangue" e de uma "perigosa terapia", ou simplesmente não se poderia mais falar em exceção,mas num
(ABM 254; KSA 5, p. 200) o termo se associa a um modo novo padrão. Assim, o c-1ueparece importar a Nietzsche é a
peculiar de fazer "guerra" (KSA 13, p. 637) que não implica garantia da possibilidade de se ter diferenças e não a afirma-
em armas de fogo, por exemplo, ou exércitos, mas no discurso ção do diferente atual como a nova regra. Antes, consideran-
filosófico corno um instrumento de poder que ele volta contra do o homem como um "animal doentio", (GM III 28; KSA 5,
tudo o que engendra aquela "era das massas" e, assim, contra a p. 411) interessa a ele que a doença não seja um fator de embo-
"pequena política", na qual se inclui também a política de tamento <lepossibilidades, mas um meio para o aumento da
Bismarck, que, segundo o filósofo, estaria voltada para a pro- tensão na qual o homem se vê obrigado a subir às alturas, no
dução de uma "nova e duvidosa mediocridade" (ABM 241; qual se cem o crescimento da "planta homem" (ABM 44).-~0
KSA 5, p. 18 l). Conferindo, portanto, um significado preciso É a partir do pressuposto de que o homem é o animal
a um termo inicialmente dúbio, Nietzsche pretende designar "ainda não esgotado para as maiores possibilidades", (ABM
uma atitude bélica que se efetiva, por exemplo, por meio de 203; KSA 5, p. 127) e também de que essas possibilidades são
"escritos polêmicos", como a sua Genealogia da moral. Um múltiplas, que se tem o engajamento do filósofo contra o res-
procedimento que se complementa, conforme veremos adian- sentimento, contra o que ele chama de "era das massas", em
te, quando associado à noção de cultivo. que predomina um tipo de homem sem individualidade, sem
uma forma própria 31 e diluído na homogeneidade do grande
rebanho finalmente apascentado e que coloca em perigo justa-
2 .6 Algumaspistasdo idealcontrário mente a possibilidade do surgimento de homens de exceção.

Considerado, portanto, como um adoecimento em ter-


mos pessoais, mas também como um envenenamento que atin- 30 Isto também não significa que a separação proposta entre o ressentimen-
ge todo o corpo social e que ganha ressonância na moral, na to cm termos individuais e sociais constitua um faro nos cscricos de
justiça e na política, entre outros modelos de organização vol- Nietzsche. Tal separação é, antes, uma opção metodológica feita no sell\i-
tados para a produção daquele tipo de homem manso, dócil e do de viabilizar uma melhor compreensão do conceito e dos formams qw·
civilizado, a discussão acerca da superação do ressentimento ele ganha nos escritos do filósofo. Na prática, ambos são nuances q11,·,·s
cão, ademais, profundamente imbricadas entre si no pensamrnio d,·
precisa considerar a contraposição que se faz segundo o mode-
Nietzsche, conforme veremos.
lo de uma grande política, mas também o estabelecimento de 31 A produção em série pode gerar modelos interessantes, mas 11.11, índiv,
dualidades.
7(, NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO

Mesmo quando Nietzsche fala em cultivo, chegando a


indicar como tarefa dos "novosfil6sofos"a preparação de "gran-
des empresas e tentativas globais de disciplinamento e cultivo"
(ABM 203; KSA 5, p. 126) ou mesmo a propor a dura disci-
plina e o "cultivo espiritual" (ABM 188; KSA 5, p. 109) no 3. NIETZSCHE
E DÜHRING:RESSEN-
sentido de se obter "homens de exceção, da mais perigosa e 1
atraente qualidade", (ABM 242; KSA 5, p. 183), cabe notar
TIMENTO,VINGANÇAE JUSTIÇA
que não se trata do estabelecimento de um novo padrão de
homem. Antes, sua "tarefa" consiste em oportunizar o
surgimento de homens raros, o oposto do que pretende fazer - aosleitoresquetêmouvúwseu lembromaisumavez
aquela moral voltada para o "nivelamento da humanidade" e dttqueie apóstoloda vingança berlinenseEugen
para a produção de "grandes formigas trabalhadoras". A~sim, o Dühring,que na Aiermmharitualfaz o usomaisin-
movimento de Nietzsche, denominado por ele em oposição à decoroso e repugnantet:ÚJbumbum moral:Dühringo

moral do homem animal de rebanho como o "outro movi- primeirodosfanfarrõesda moralquehojeexiste,im:lusive


mento", consiste, "inversamente, na exacerbação de todas as entreseusiguais,OJ'antissemitas.
(rr. Niet7.sche)2
contrariedades e abismos, a abolição da igualdade''. Somente
assim seria possívela "criação de sobre-poderosos", visto que, se-
gundo ele, enquanto: "aquelemovimento gera o último homem. 3. 1 KarlEugenDühring
Meu movimento gera o além do homem". O homem fora
do padrão, da massa, do comum e, especialmente, o homem Dühring 3 é uma fonte, um interlocutor e um adversário
"mais forte e mais bem logrado", poderia lançar para longe de importante de Nietzsche\ em especial nas análises do filósofo
si o veneno do ressentimento ou, caso não pudesse fazê-lo,
teria um estômago forte o bastante para "digerir suas vivências Afora alguns ajustes e uma nova revisão, esce cexto foi publicado na ínte-
(feitos e malfeitos incluídos) como ele digere as suas refei- gra na edição de inverno de 20 l l, n. 33, da RevistaDissertatioda Uni-
ções, mesmo quando tem duros bocados para engolir" (GM versidade Federal de Pelotas. (PASCHOAL, 201 la)
III 16; KSA 5, p. 377). 2 GM III 14; KSA 5, p. 370.
3 Karl Eugen Dühring nasceu em Berlim no d ia 12 de janeiro de 1833 l'
morreu em Babelsberg em 21 de setembro de 192 l. Foi professor na
Fricdrich-Wilhclms-Universitâr de Berlim, atual Humboldt-Universi1:í1,
entre os anos de 1864 a 1921 e ficou conhecido especialmente por stL"
polêmicas e pelas posições assumidas em temas como o socia\is1110,. "
antissemitismo.
4 Conforme demonstra, por exemplo, Aldo Vencurelli, que foz11ma rn, ,, , ••
trução da "relação de Niensche com o filósofo de Berlim ,·111 ,,·11 ol,·•,,·11

!
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