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Art 2012 Transformacao Processo Seminario Itau Social

O documento discute a contemporaneidade como um tempo de transformação e obscuridade, destacando a necessidade de uma crítica permanente em relação ao passado moderno. A análise propõe que a atualidade não deve ser vista como uma simples sucessão temporal, mas como uma busca por novas formas de conhecimento e experiência que desafiem a unidade e a totalidade. A reflexão enfatiza a importância de compreender as mudanças contemporâneas sem nostalgia, reconhecendo a multiplicidade e a indeterminação como características centrais do presente.

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Art 2012 Transformacao Processo Seminario Itau Social

O documento discute a contemporaneidade como um tempo de transformação e obscuridade, destacando a necessidade de uma crítica permanente em relação ao passado moderno. A análise propõe que a atualidade não deve ser vista como uma simples sucessão temporal, mas como uma busca por novas formas de conhecimento e experiência que desafiem a unidade e a totalidade. A reflexão enfatiza a importância de compreender as mudanças contemporâneas sem nostalgia, reconhecendo a multiplicidade e a indeterminação como características centrais do presente.

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1

Transformação em processo1

Celso Favaretto

O título que me foi proposto para este Seminário supõe que se esclareça antes de
tudo o significado da nossa atualidade, entendido como tempo em transformação. De
modo geral, a atualidade é designada pelo termo contemporaneidade, que alude
frequentemente a uma suposta época contemporânea, entendida também como pós-
moderna. E, com isso, se estaria afirmando que esta é simplesmente uma época posterior
à moderna, que a sucederia e mesmo a ultrapassaria. Não é, entretanto, este o sentido
que nos interessa nesta fala, pois a nossa atualidade, este agora, afirma um tempo sempre
presente, extenso e, inclusive, marcado fundamentalmente pela obscuridade. E é
exatamente a sua obscuridade, lembra Giorgio Agambem, que caracteriza o
contemporâneo – um tempo crítico que só pode ser surpreendido em relação a outros
tempos, que por sua vez também foram contemporâneos. Assim, hoje só podemos falar
em contemporâneo em relação ao que foi moderno, ou que ainda é moderno. A
contemporaneidade é, assim, simultânea à modernidade..
Michel Foucault, na sua peculiar análise do texto de Kant, “O que é
esclarecimento?” (“O que é iluminismo?”), detecta de modo surpreendente” a questão
da atualidade” Diz ele: “O que se passa hoje? O que se passa agora? E o que é este
“agora” no interior do qual nós somos uns e outros; e o que define o momento onde eu
escrevo? ”2. E continua: “Qual é minha atualidade? Qual o sentido desta atualidade? E o
que faço quando falo desta atualidade? É nisto, parece, em que consiste esta
interrogação nova sobre a modernidade”. Ora, esta “interrogação nova”, esta
interrogação, esta criticidade do pensamento, da arte, da cultura, da educação, “sobre
sua própria atualidade”, sobre “o campo atual das experiências possíveis” distingue-se
da novidade moderna, da atitude moderna, do trabalho moderno. Por atitude, Foucault
entende “um modo de relação que concerne à atualidade; uma escolha voluntária que é
feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir

1
Conferência no Seminário Nacional “Educação Integral: experiências que transformam”. São Paulo:
Fundação Itaú Social/ UNICEF/Cenpec, 03/08/2012.
2
cf. FOUCAULT, M. “O que são as luzes?”. Ditos e escritos. v. III. Trad. Elisa Monteiro, Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2000, p. 341 e ss.
2

e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como
uma tarefa” 3 – a nossa tarefa, de escavar a obscuridade da cena contemporânea.
Esta atitude é fundamental, e tem que ser objeto de um trabalho de
rememoração, de elaboração analítica, porque só assim se pode identificar o que é e o
que não é simplesmente precário, passageiro, que só tem caráter de evento, tendo em
vista pesquisar as possibilidades do que é permanente no movimento contínuo de
transformação. Esta é a outra parte da modernidade, que, apesar dos discursos que
sempre a valorizam, é suplantada pela atitude que põe em relevo a efemeridade das
experiências e valores como compondo a totalidade do que se entende por moderno.
Nesta relação tensa entre efêmero, precário e permanente estaria “a crítica permanente
de nosso ser histórico” e, portanto a atualidade das Luzes, diz Foucault.
Esta reflexão, a pergunta sobre o que define a nossa atualidade, retira a idéia de
contemporâneo da proposição de “uma certa época do mundo”, mas também da “busca
[em] compreender o presente a partir de uma totalidade fixada no passado ou de uma
realização futura”. O que é visado nesta reflexão, é a busca por uma diferença: qual a
diferença que este tempo, o contemporâneo, introduz hoje em relação ao passado,
especialmente ao passado moderno?
Ora, é uma modalidade de análise ou, mais propriamente, uma espécie de
elaboração, semelhante à psicanalítica, que pode responder a esta pergunta. Esta atitude
tem no seu centro “a obstinação de imaginar” o presente, para realizar o desregramento
do mesmo, para deslocá-lo, para captar o eterno no transitório, para acentuar a duração:
“A modernidade (...) é um exercício em que a extrema atenção para com o real é
confrontada com a prática de uma liberdade que, simultaneamente, respeita esse real e o
viola”. Trata-se, portanto, da afirmação do poder transformador dos dispositivos
modernos, comprometidos com a produção do novo e com a efetuação de rupturas; em
imaginar outra coisa que confira consistência ao presente, assim resolvendo o conflito
entre o transitório e o eterno. O heroísmo do homem moderno, no pensamento, na
cultura, na arte, na educação, nas atitudes e nos comportamentos, está exatamente nisto:
“tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura”. Uma ética, uma
estética, presidem às invenções desse tempo das promessas e do entusiasmo histórico.
Dois conceitos são fundamentais para se entender as transformações modernas
que estão sendo levadas aos seus limites expressivos nas transformações

3
cf. FOUCAULT, M., Id. ib.
3

contemporâneas: de um lado, o deslocamento de fronteiras conceituais e históricas; nos


conhecimentos, na cultura, no saber; no ensino e na pesquisa; de outro, a
indeterminação da experiência, melhor dizendo, o caráter insuportável da experiência
contemporânea. A incidência dessas transformações no saber, especialmente as
provocadas pela tecnociência e pelas redes de comunicação, corresponde ao desgaste
das delimitações tradicionais de áreas de conhecimento e da cultura e à perda da
unidade da experiência. De fato, nota-se que na situação pós-moderna, o saber deixa de
ser magnetizado por uma Idéia; desenvolve-se por uma dinâmica interna assimilando o
acaso e, através de novas mediações, transforma-se muitas vezes em instrumento de
circulação mercantil e poder.
O insuportável dos deslocamentos provém do fato de que os valores de
consenso buscados na modernidade tornaram-se em grande parte obsoletos com o
desmoronamento dos grandes discursos de legitimação. De modo que, como diz Jean-
François Lyotard, estaríamos hoje assistindo a uma transformação profunda dos
referenciais e sistemas; especialmente da razão instituída ou que se institui
continuamente no esforço de restaurar e recompor identidades – conforme aparece nos
discursos que afirmam o social, o político, o sujeito, a arte etc. –, exatamente para não
se enfrentar a indeterminação contemporânea, a heterogeneidade de saberes, de práticas
e experiências. As implicações de tudo isto são muito grandes, afetando o mundo do
trabalho, do saber, da cultura, as práticas, a sensibilidade contemporânea, dadas as
transformações que atingem as formações modernas, como a individualidade, a família,
o ordenamento jurídico do Estado, a lógica cultural e as ilusões de livre escolha e de
livre afirmação dos interesses do capitalismo.
A globalização, a aliança entre o capital e a tecnociência, a importância cada vez
maior da informação; a convivência de três espaços, o geográfico, o socioambiental e o
virtual; o biopoder como administração dos indivíduos e das massas, gestão dos corpos
e das populações; configuram um grande dispositivo de dominação. É preciso, é
imperioso, assim, tentar compreender estas transformações, sem dramas, mas sem
negligenciá-las. O termo pós-moderno, apesar de inadequado, serve para designar
qualquer coisa dessas transformações; pelo menos a atmosfera, a inquietação, os traços
que misturam empenho de leveza, falta de entusiasmo, dúvida e ironia que marcam os
discursos políticos, éticos, estéticos, destes tempos pós-utópicos, desta nossa atualidade.
Desde que se tome como fato a visada da multiplicidade em todos os campos do
saber, das práticas e dos comportamentos, a questão contemporânea pode ser assim
4

entendida: afirmar a multiplicidade como potência da experiência contemporânea não


significa simplesmente afirmar uma multiplicação indefinida de experiências e valores.
A multiplicidade é relevante quando valoriza o que se passa “entre”, o que se elabora
não na continuidade e totalidade (isto é, segundo um ponto de vista), mas na
“transversal”, na associação de signos heterogêneos. Mas isto não implica um simples
elogio da fragmentação, pois esta pode estar postulando uma realidade já existente (que
se apresenta fragmentariamente) ou um conjunto ainda por vir – o que retira a violência
dos fragmentos e suas relações, que são inteiramente diferentes e irredutíveis à unidade.
Pois fragmento aqui quer dizer signo, que já implica a heterogeneidade como relação4.
Assim, não há multiplicidade qualquer; unidade e multiplicidade são componentes de
um único movimento que tenta dar conta do estado atual (aleatório, flutuante) das
coisas, para o qual não há uma linguagem adequada. A visada da multiplicidade é
desterritorializante (dos territórios sociais, das identidades coletivas, dos sistemas de
valor tradicionais), desterritorializadora daquele tipo de demanda de unidade que é
reativa, que apenas visa à recomposição de esquemas e modelos funcionalmente
similares aos criticados pelas ciências, técnicas e artes da modernidade, mobilizando
freqüentemente a reterritorialização subjetiva do conservadorismo5.
O sentimento muito difundido de que hoje patina-se no indeterminado,
manifesta-se, atualmente, ou em adesão irrestrita – tal como a que é manifesta na
expressão “livre, leve e solto”–, ou, em conservadores, progressistas e apocalípticos,
através de expressões como: desencanto, desilusão, vazio de idéias, melancolia,
niilismo, barbárie. São expressões que não alcançam os paradoxos, as ambigüidades e
as conseqüências da modernidade. Longe, entretanto dessas visões taxativas e
apressadas, fora desse lamento, dessa nostalgia das promessas da modernidade, ou do
puro entusiasmo, cumpre constatar, como diz Eduardo Prado Coelho, que

através do próprio desastre, nessa perda dos astros reguladores que todo desastre é, [que] alguma
coisa se move [e] que, se nos incitarmos a seguir o fio tênue desse movimento, nos poderá
conceder um pouco de alegria e deslumbramento (...). Poder-se-á suspeitar que, quando se fala
em “vazio de Idéias”, o que se lamenta é [que] não existem hoje idéias que salvem, nem idéias
que fundamentem, [que] nenhuma idéia nos assegura a salvação, nenhuma idéia é portadora de
uma verdade que salve, nenhuma idéia nos dispensa de sermos nós próprios a criarmos o nosso

4
DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, pp. 22 e 122.
5
GUATTARI, F. “Impasse pós-moderno e transição pós-mídia”. Folha de S. Paulo. 23/04/1986,
Folhetim, p. 4.
5

modelo e itinerário de salvação. E ainda: [que] nenhuma idéia é suficientemente forte para
fundamentar uma prática, para funcionar como ciência rigorosa da práxis. Sem astros que nos
guiem, sem uma ciência da navegação que apenas seja preciso aplicar, avançamos agora num
mar de surpresas e incertezas. [...] Contudo, o panorama das idéias contemporâneas é feito de
múltiplos acontecimentos interessantes. Se não procurarmos idéias que salvem ou fundamentem;
mas, sim, a proliferação de teses, conceitos, redes, deslocações, sobreposições, derivas e
invenções, deparamos com uma paisagem desconhecida que é preciso configurar e decifrar 6.

Este é o desafio e a tarefa contemporânea: configurar e decifrar uma paisagem


desconhecida, indeterminada, o que exige não a aplicação de um modelo ou sistema
legitimados, inclusive os dispositivo articulados pela modernidade, mas o mergulho no
heteróclito e na diferença, aí procurando inventar um ponto estratégico para fazer face à
indeterminação. Entender, por exemplo, o conhecimento como processo, como devir
que tem as propriedades do acontecimento, cujas regras e categorias não são dadas, mas
se estabelecem na produção das relações. Defrontar-se com o desconhecido é
reconhecer nos acontecimentos, como diz Gilles Deleuze, “não exatamente o que
acontece, mas alguma coisa no que acontece”, de modo que o saber aparece como um
“espaço de encontro com os signos, espaço em que os pontos relevantes se retomam uns
nos outros, estruturando e modificando relações entre os signos instituídos” 7. Assim,
esta concepção estratégica de saber faz o conhecimento proceder das relações de força
num campo, em que ele surge como algo da ordem da invenção, de modo que o
importante é o conhecimento como produção que resulta da tensão de forças múltiplas e
heterogêneas num campo de ações. O que é sempre preciso – no pensamento, na
sensibilidade e nos modos da enunciação – é a escolha, a seleção e a gradação da
intensidade das forças em jogo.
Esta concepção não-consensual de conhecimento, de saber e da cultura,
corresponde ao campo aberto da experiência contemporânea, resistente à visão de
totalidade, o que é responsável pelo pânico generalizado que a desterritorialização
provoca, seja porque dificulta a elaboração de projetos, seja porque evidencia a irrisão
das ações individuais. Assim, compreende-se a ênfase e a insistência, principalmente
dos dispositivos de informação e comunicação e, para fins conservadores, a ênfase na
restauração da unidade perdida – o que aparece, por exemplo, na insistência nostálgica

6
COELHO, E.P. “Para comer a sopa até o fim”. Jornal do Brasil. 03/03/1991, Idéias/Ensaios, p. 4.
7
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 152 e Diferença e repetição. Rio de
Janeiro: Graal, 1988, p. 54.
6

para com o resgate do passado, entendido freqüentemente não como elaboração do que
no passado foi um trabalho de ruptura, mas apenas como retorno às promessas, ideais e
utopias modernas. Sob a rubrica, muito reiterada, do resgate, que é preciso resgatar isto
ou aquilo, ouve-se a voz da totalidade, como se fosse possível repetir a historicidade dos
projetos de ruptura e proposição do novo. Mas é claro que é preciso, sim, reiterar,
recodificar, reinscrever a modernidade, para iluminar o presente inconsistente através
daquilo que no passado ou cumpriu-se ou foi esquecido ou foi reprimido; melhor ainda,
obscurecido pela própria força dos projetos.
Observe-se, por exemplo, como tal atitude, como a idéia de resgate, manifesta-se
no campo educacional. Apesar das experimentações e iniciativas há bastante tempo em
desenvolvimento entre nós – de ordem teórica, técnica, de processos e procedimentos,
de organização de sistemas, etc. –, é um campo que ainda mantém uma distância
acentuada entre discursos modernizantes e práticas modernizadoras, entre desejos de
atualidade e persistência de modelos que conflituam com a heterogeneidade cultural. No
fundo, continua a valer o pressuposto de que a educação visa a realizar um programa de
reunificação da experiência, por exigência do dever de formação e necessidade de
cumprir objetivos e produzir ações com o mínimo de consenso – o que frequentemente
nega o devir.
Embora saibam os educadores que as práticas educativas exigem hoje a
coexistência de múltiplas referências teóricas, culturais, sociais e políticas, que é
impossível fechar os olhos para as transformações de toda ordem, especialmente aquelas
provocadas pela tecnociência – transformações da consciência da sensibilidade, dos
afetos e comportamentos que repercutem na teoria e nas práticas educacionais –, parece
que eles (nós), os educadores, ainda sonham com uma espécie de unidade sócio-cultural
moderna, na qual “todos os elementos da vida cotidiana e do pensamento encontrariam
um lugar como em um todo orgânico” 8, tendo em vista a tão propalada “formação
integral” dos educandos.
Simultaneamente, para se configurar a “paisagem desconhecida” e as
transformações em curso, também é preciso levar em conta, no campo político, do
abrandamento das opções radicais, do fim das utopias e do tempo das revoluções e de
uma perda do entusiasmo político. Também, filosoficamente, é preciso destacar a
oposição entre os que postulam um retorno ao discurso da verdade e os que apostam na

8
LYOTARD, J.F. O pós-moderno explicado às crianças. Trad. Tereza Coelho, Lisboa, Dom Quixote,
1987, p. 15
7

pluralidade dos jogos de verdade. E é preciso falar ainda de um certo desinvestimento


do social, em grande parte devido à importância desmesurada que assumiram os
sistemas de comunicação de massa, a telemática e a informática na determinação dos
valores e comportamentos sociais; é preciso falar ainda do interesse crescente pela
ciência, pelas pesquisas físicas, biológicas, etc. e pelas metáforas dela derivadas, de
grande repercussão pública e nas crenças (os buracos negros, a teoria das catástrofes, os
objetos fractais etc.); falar do significado da voga da psicanálise, da generalização da
arte; do retorno do discurso da ética e da religião (inclusive da sua metamorfose em
esoterismos, misticismos, ritualismos).
No fundo, tudo nos remete, de um lado, ao esforço em restabelecer um plano de
“formulações universalizáveis, isto é, de uma racionalidade que se considera apta a
definir regras universais do bom e do justo”; de outro, “uma tendência para restringir a
validade universal destes modelos em nome da pluralidade ilimitada das experiências9,
ressaltando o “sujeito fractal, fragmentado, que se agita na interface de uma
multiplicidade de redes” 10. Suportar o incomensurável, suportar a relatividade
essencial das coisas, olhar de frente a ausência de um juiz supremo: este é o desafio
dessa nossa condição.
Assim, estas considerações põem em relevo, repetimos a necessidade de se
pensar a educação no horizonte das transformações contemporâneas, da crítica das
ilusões da modernidade e da necessidade de se proceder à reorientação dos seus
pressupostos – o que implica pensar o deslocamento do sujeito, a produção de novas
subjetividades, as mudanças no saber e no ensino, a descrença dos sistemas de
justificação morais, políticos, estéticos e educacionais e as mudanças dos
comportamentos. Trata-se, mais precisamente, de se reconsiderar a fundamental idéia de
formação e de reexaminar as justificativas e os pressupostos da crença nos tradicionais
componentes do processo educativo. É disso tudo que se trata quando nos propomos a
pensar as questões educativas e culturais sob a perspectiva da nossa atualidade, da qual
somos contemporâneos, tendo, contudo, como referência o pensamento iluminista, que
ainda é determinante em grande parte do que somos, pensamos e fazemos hoje, ainda

9
COELHO, E.P. “Para comer a sopa até o fim”. Jornal do Brasil. 03/03/1991, Idéias/Ensaios, p. 4.
10
JEUDY, H.P. Ardis da comunicação. Trad. bras, Rio de Janeiro: Imago, 1990,
8

que seja insuficiente para dar conta da indeterminação e do insuportável da experiência


contemporânea11.
Pode-se perguntar porque a educação resiste, apesar dos grandes esforços e
propostas em desenvolvimento, repetimos, a tomar as experimentações que criticam as
pretensões totalizadoras, implícitas na idéia de formação, como sua própria realidade.
Não seria porque a idéia de formação mantém vínculos profundos com a idéia de
natureza homogênea, autoconsistente? Pois não é visível que, na educação, enquanto
multiplicam-se discursos e ações que enfatizam a especificidade da vida infantil, a
experiência mutável dos jovens, o caráter efêmero das vivências cotidianas, a habilidade
dos valores, ao mesmo tempo insiste-se na necessidade do consenso para a formação?
E, assim, não estaria havendo um reforço das homogeneidades para validar identidades
institucionais?
Sabe-se muito bem hoje que é defrontando-se com o heterogêneo, com o
estranho, com o desconhecido, que se pode dar vazão à insatisfação, fundamento de
qualquer aprendizagem. Mas, não é passando apressadamente do heterogêneo ao
homogêneo, por uma suposta continuidade de experiência e conhecimento, que se pode
ao mesmo tempo acolher o múltiplo e salvar o uno. Todo o problema está na
possibilidade e nas maneiras das crianças e jovens apoderarem-se dos signos da
experiência para dominar situações e modificar relações vigentes nos signos instituídos.
É este o requisito para que se tornem, como diz Deleuze, uma espécie de “egiptólogos”,
de modo que, assim, aprender é sempre “considerar uma matéria, um objeto, um ser,
como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados” 12.
Portanto, a suposição que está na base dessas reflexões provém da necessidade
de se pensar o destino atual da concepção de educação como formação espiritual e
cultural, gerada no horizonte das proposições iluministas. Sabemos que o espírito das
Luzes funda-se no desejo de esclarecimento, cujas fontes são a razão e a experiência, na
tentativa de realização da razão no indivíduo e na história, tendo como finalidade a
emancipação. Autonomia, liberdade, emancipação e felicidade viriam da aposta na
laicidade do conhecimento, na dessacralização dos valores religiosos e da crítica de todo
tipo de preconceito. Este espírito supõe a consideração fundamental da perfectibilidade

11
cf. FOUCAULT, M. “O que são as luzes?”, in Ditos & escritos III, Trad. bras. Elisa Monteiro, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 335; LYOTARD, J. -F, O pós-moderno. trad. bras.Ricardo C.
Barbosa. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1986, p. XVII.
12
DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 4.
9

do espírito, da unidade do gênero humano, da universalidade dos valores e do


aprimoramento infinito do homem e do mundo.
Nesta perspectiva, moral e política, a formação “é aquilo que deve conduzir a
natureza humana à plenitude de seu desenvolvimento, à conjunção de suas forças
sensíveis e racionais, enfim, à união de dignidade moral e felicidade” 13, pois “é próprio
do homem conjugar o mais alto e o mais baixo em sua natureza, e se sua dignidade
repousa na severa distinção entre os dois, a felicidade encontra-se na hábil supressão
dessa distinção. A cultura, portanto, que deve levar à concordância, dignidade e
felicidade, terá de prover a máxima pureza dos princípios em sua mistura mais íntima”
14
. Em perspectivas que podem ser excludentes na interpretação e transformação da
realidade a formação visada pela educação reconhece a moral e a estética como
domínios racionais, denunciando os limites da racionalidade científica unificadora e
totalizante, com a clara intenção de matizar os efeitos, na formação, no indivíduo e na
cultura, dos excessos da racionalidade instrumental. A valorização da diversidade vem
a par com o que foi caracterizado como “ética da identidade”, voltada para a crítica “dos
valores abstratos” da racionalidade instrumental moderna.
Entende-se a dificuldade que temos hoje de afirmar estes pressupostos e torná-
los aptos a realização das necessidades educacionais de toda ordem. Pois é na aspiração
à perfectibilidade, traço distintivo da espécie humana, capacidade do homem de se
tornar melhor e de melhorar o mundo; é neste antropocentrismo do espírito das Luzes
que sobressai a importância da concepção, tornada dispositivo cultural-pedagógico, do
ideal de formação, tal como se tornou patente nas proposições e práticas educacionais
modernas. Sugestivamente, diz Jean-François Lyotard, referindo-se às dificuldades
desse sentido de formação: “sabemos que em torno da palavra formação, Bildung, e,
portanto em torno da pedagogia e da reforma, joga-se na reflexão filosófica desde
Protágoras e Platão, desde Pitágoras, uma partida maior. Partida esta que tem por
pressuposto que o espírito dos homens não lhes é dado de maneira adequada e tem que
ser re-formado. (...) A infância diz que o espírito não é dado. Mas que é possível.
Formar quer dizer que um mestre vem ajudar o espírito possível, à espera na infância, a
se cumprir. Conhece-se o círculo vicioso, entretanto: mas, e o próprio mestre, como se
emancipa de sua monstruosidade infantil? Educar os educadores, reformar os

13
SUZUKI, M. “O belo como imperativo”. In- SCHILLER, F., A educação estética do homem. Trad.
bras. R. Schwarz e M. Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1990, p. 19.
14
SCHILLER, op. cit., p. 125.
10

reformadores: eis a aporia de Platão a Kant, e até Marx” 15. Estão aí sugeridos o fascínio
e as dificuldades desta concepção central da educação como formação.
O que se quer dizer então é que, apesar de todo nosso empenho na educação
como transformação, da nossa aposta no devir, o sentido metafísico de formação, ainda
que a formação como processo, permanece. Pois nesta concepção, tão resistente, formar
é formar-se; supõe aprimoramento e engrandecimento do espírito. Nesta elevação
espiritual, a formação implica ruptura com o imediato e a passagem do particular ao
universal; um sair de si, um lançar-se para além de si. Formação supõe, então,
realização de uma forma, um acabamento. É construção de uma forma interior - mental,
16
psíquica, espiritual -, passagem da forma exterior a uma forma interior . Esta
concepção repousa sobre o pressuposto metafísico, de uma unidade da experiência, a
unidade do sujeito que deve ser educado em vista de uma finalidade. Mas, apesar do
fascínio e da eficácia deste dispositivo, é exatamente isto que é hoje questionado,
juntamente com todos os valores de consenso, interrogando assim a própria idéia e a
viabilidade desse sentido de formação.
Todo este debate que no fundo é sobre os limites da razão moderna e sobre as
ambigüidades da modernidade cultural, enfatiza exatamente o esforço em manter a todo
custo identidades e o consenso, na política, no social, na arte e na educação, como uma
maneira de se enfrentar a indeterminação, a incidência nos saberes e práticas dos efeitos
da perda da unidade da experiência. Portanto, o questionamento que está sendo feito
tem em vista afirmar uma concepção imanente da educação, em que a idéia de
transformação opõe-se à metafísica da formação. Ao invés, portanto, de a educação
significar a condução à forma de um sujeito constituído, trata-se agora da destituição, da
deposição desse sujeito, garantia da unidade da experiência, e do que é o visado na
formação, que deriva, segundo Deleuze, de “processos, que podem ser de unificação, de
subjetivação, de racionalização”...) e” que operam em multiplicidades concretas, sendo
a multiplicidade o verdadeiro elemento onde algo se passa “17. Mas, é bom excetuar que
esses processos não são propriamente funções; “são os devires, e estes não se julgam

15
LYOTARD, J. -F. O pós-moderno explicado às criança. Trad. port. Tereza Coelho, Lisboa: Dom
Quixote, 1987, p. 119-120.
16
cf.. SUAREZ, R., “Notas sobre o conceito de Bildung (formação cultural)”. Kriterion – Belo Horizonte,
Minas Gerais, Brasil. no. 112, jul-dez. 2005, p. 192 e ss.
17
DELEUZE, G. Conversações. Trad. bras. Peter Paul Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 182.
11

pelo resultado que os findaria, mas pela qualidade dos seus cursos e pela potência de sua
comunicação” 18.
Nestas condições, como inscrever pragmaticamente estes requisitos na
educação, aqui e agora, na escola e em qualquer outra instituição educativa? Como fazer
com que os acontecimentos de pensamento, linguagem, sensações, percepções e afetos,
que se fazem nas palavras, nas cores, nos sons, nas coisas, nos lugares e eventos, sejam
articulados como dispositivos, como agenciamentos de sentido dos múltiplos modos
atuais da experiência e do saber?
Face às dificuldades patentes nestas considerações, mas bem longe do niilismo,
o que está à nossa frente não é um suposto vazio, senão uma crítica das idealizações. O
que está para ser feito, o que está sendo feito, é o trabalho de decifração das
necessidades que se impõem e de configuração de uma paisagem ainda desconhecida,
embora pressentida. O visado do contemporâneo implica a aderência às virtualidades da
obscuridade do presente, uma atenção contínua às perguntas que interpelam o educador
e a vida.19

18
Id. ib. p. 183 e 188.
19
cf. AGAMBEN, G., “O que é contemporâneo?”. In O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad.
bras. V. N. Honesko. Chapecó-SC, Argos, 2009.

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