PAULO DE ASSUNÇÃO
A TERRA DOS BRASIS"
A NATUREZA DA AMÉRICA PORTUGUESA
VISTA PELOS PRIMEIROS JESUÍTAS
Dissertação apresentada ao Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para a obtenção do grau
de Mestre em História, sdb a orientação da Prof.a. Dra.
Mary Lucy Murray dei Priore.
SÃO PAULO
1995
1
2
“A TERRA DOS BRASIS”
d NATUREZA DA AMÉRICA PORTUGUESA
VISTA PELOS PRIMEIROS JESUÍTAS
3
SUMÁRIO
CAPÍTULO I - PERCEPÇÕES DO MUNDO NATURAL DA ANTIGUIDADE AO PERÍODO
MEDIEVAL.. 5
1 - A MAGIA DO MUNDO NATURAL 6
2 - O MUNDO NATURAL ENTRE O MITO E A RACIONALIDADE 30
3 - O MUNDO NATURAL CAPTURADO PELO CRISTIANISMO 54
CAPÍTULO n - TRANSFORMAÇÕES NO "ORBIS CHRISTIANUS"____________________ 81
1 - A IGREJA CATÓLICA NO LIMIAR DO SÉCULO XVI 82
2 - A COMPANHIA DE JESUS DE PARIS PARA SALVADOR. 102
CAPÍTULO III - CARTAS JESUÍTICAS: ORDEM DO SABER E O SABER DA ORDEM •••*••••• 125
1 - EM BUSCA DO ELO PERDIDO 126
2 - NO ISOLAMENTO: A NATUREZA 148
CAPÍTULO IV - A CONQUISTA DA TERRA DOS BRASIS..... .164
1 - OS FUNDAMENTOS RELIGIOSOS NAS METÁFORAS 165
2 - O MUNDO NATURAL CONVERTIDO. .224
CAPÍTULO V - PERCEPÇÕES DA NATUREZA: UMA VISÃO UTILITÁRIA____________ 266
1 - ALÉM DO BOJADOR A TERRA DOS BRASIS. .267
2 - OS BONS ARES DA TERRA DOS BRASIS: NEM FRIO NEM CALOR .285
3 - O REINO VEGETAL: TUBÉRCULOS E FRUTAS .293
4 - OS MALES DA TERRA SÃO CURADOS COM OS BENS DA TERRA 312
4
5 - NA TERRA DOS PAPAGAIOS: ONÇAS, TAMANDUÁS, ANTAS, COBRAS E
LAGARTOS 326
6-OURO A VISTA .355
CONCLUSÃO. .363
FONTES .367
FONTES PRIMÁRIAS. 368
FONTES SECUNDÁRIAS .370
BIBLIOGRAFIA. .372
AGRADECIMENTOS
Sou imensamente grato à Mary del Priore, que me honrou com
sua dedicada orientação e amizade. Com carinho e sempre solícita, no
acompanhamento das etapas da pesquisa, suas propostas, suas
preocupações teóricas e sua sabedoria me estimularam permanentemente.
A Francisco Murari Pires por ter me possibilitado um
recomeço.
Aos professores Kátia, Sandra e Porphírio que me incentivaram
a continuar na jornada da pesquisa.
Aos colegas que com paciência souberam dividir as angústias e
as alegrias: Jussara Pilão, Elizabeth Miranda, Maria Helena, Rafael
Chambouleyron, Henrique Carneiro, Adriana Romeiro.
Aos professores Filomena Hirata, Jaa Torrano, Adriane
Duarte, Laura de Mello e Souza, Janice Theodoro, Hilário Franco Jr., pela
atenção e sugestões.
Por sua amizade e carinho agradeço a Dirce Lorimie
Fernandes quefoi uma leitora atenta e cuidadosa.
Aos meus pais que por sua dedicação extremada não pouparam
esforços para que pudesse me dedicar a este trabalho.
5
CAPÍTULO I
PERCEPÇÕES DO MUNDO NATURAL
DA ANTIGUIDADE AO PERÍODO MEDIEVAL
La nature n’est pas une aveugle puissance.
C’est un art qui se cache à 1’humaine ignorance.
Ce qui parai! hasard est 1’effet d’un dessem,
que débore à tes yeux son príncipe et sa fin.
C’est qui dans 1’univers te revolte et te blesse,
forme un parfait accord qui passe ta sagesse.
Tout desordre apparent est un ordre réel,
tout mal particulier un bien universel,
et bravant de tens sens 1’orgueilleuse
imposture concius que tout est bien
dans toute la nature.
Anónimo - Museu Conde Castro Guimarães
Cascais - Portugal
6
1 - A MAGIA DO MUNDO NATURAL
Lhomme n’est pas jeté dans la Nature comine
une pure ignorante «sur laquelle
il n’y a rien d’écrit».
Tout de suite il a ses idées concemant ia Nature;
II a fait choix de moyens d’action,
et ces idées et ces moyens sont magiques.
Robert Lenoble - Histoire de 1’idée de nature
A busca da origem da humanidade sempre se revelou para o
homem, em vários periodos da sua história, como uma das
principais questões ontológicas que o acompanha. A incerteza
perante as condições de sobrevivência biológica, devido às
alterações do meio natural e da sua conservação, a
alteridade1 do mundo2 , e a pouca consciência de si próprio,
i Utilizamos as considerações sobre alteridade feitas por Tzvetan Todorov e i François
Hartog. Sobre o assunto ver HARTOG, François, Xe miroir d’Hérodote. e TODOROV,. Tzvetan,’ A
conquista da América.
2 Utilizaremos o termo mundo no sentido destacado por Micheli que é o de referenciar as
coisas existentes consideradas na sua totalidade orgânica. Para Micheli: "o termo "mundo"
vem do latim mondas, tradução da palavra grega Kosmos, indica, no seu sentido básico, as
coisas existentes consideradas como totalidade orgânica. Trazendo embora em si um caráter
unívoco de significado geral, adquire tonalidades diversas conforme o contexto em que é
inserido; de facto, indica também a totalidade de uma categoria especial de fenômenos ou
entidades conceptuais. A acepção determinante é a da totalidade, que necessariamente
implica a de uma ordem constituída: a acepção
acepçâo de que uma totalidade desordenada não tem
qualquer significado em si mesmo considerável, a não ser como entidade correlativa da
totalidade ordenada. Esclareça-se, além disso, que mundo significa a totalidade das coisas
existentes como particular incidência nos seus princípios constitutivos essenciais".
7
fizeram com que o ser humano, desde as primeiras
investigações ontológicas, realizasse uma compreensão
concomitante da existência das coisas do mundo e da sua
própria existência3 . Este processo visava a dar uma
logicidade ao seu lugar no Cosmos4 , a partir de uma visão
egocêntrica.
0 homem, ao refletir sobre o seu vir a ser no universo,
deparou com a necessidade de pensar em si e no mundo
natural, enquanto alteridade, como parte integrante da sua
elaboração sobre o processo da génesis da humanidade. Desta
forma, ao pensar a origem de si próprio e do mundo, o homem
realizou um ato cognitivo, a partir de uma observação ativa
da ordenação da natureza e da própria relação humana com o
MICHELI, Gianni, "Mundo"- in Enciclopédia Exnaudi Natureza Esotérxco/exotérxco.
Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, vol. 18, 1990, p. :171.
3 Conforme Micheli:" na sua acepção geral, "natureza" indica o conjunto das coisas que
existem, referindo-se particularmente, mais do que a uma configuração determinada,
objetiva, aos seus princípios constitutivos essenciais. A intima conexão entre totalidade
e essencialidade é expressa de modo significativo pela própria etimologia da palavra
(natureza deriva do verbo latino naacx "nascer", homólogo do verbo grego physex "ser
gerado": todas as coisas, quando nascem realizam-se segundo uma sua característica própria
e imanente". MICHELI, Gianni, "Natureza"- in Enciclopédia Einaudi - Natureza
Esotérico/exotérico , Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, vol. 18, 1990, p.
P- 11.
4 O termo Cosmos é utilizado segundo a sua raiz grega, na qual kósmos significa
literalmente arranjo, ordem. Micheli, afirma: "Cosmos" é correntemente entendido como um
termo correlativo de "caos": a noção de um mundo composto por um agregado ordenado de
elementos reenvia-nos a um momento antecedente ou subsequente, no qual essa agregação não
subsiste e se tem um conjunto informe de elementos sem qualquer coesão inteligível. Neste
sentido, a oposição é a variante física do problema fundamental de toda a filosofia grega:
as relação unidade-multiplicidade". MICHELI, Gianni, "Caos/Cosnos" - in Enciclopédia
Exnaudi. - Natureza - Esotérico/exotérico. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, vol.
18, 1990, p. 135.
8
meio, visando a relacioná-los de maneira interdependente.
Segundo Feuerbach:
"O primeiro objeto do homem é o homem. O sentimento da natureza, o
único que nos proporciona a consciência do mundo como mundo, é UIDL
produto posterior, porque ele só aparece através do ato da distinção
que o homem faz de si mesmo"5 .
Os diversos posicionamentos perante o mundo natural, em
diferentes momentos da história da civilização, revelam que
a pluralidade e mutabilidade de percepções, a respeito do
mundo natural, foram constantes e se consolidaram em função
das vicissitudes a que cada grupo social estava sujeito. 0
homem necessitava conferir ao seu universo uma ordem, uma
justificação para a sua existência, e só ele detinha o
conhecimento para discernir a si próprio daquilo que o
envolvia. Assim, Lenoble ressalta que:
"la Nature ne sera conçue comme une réalité pour elle-même, que dans
la mesure oú la consciense aura conquis une certaine liberte par
rapport à ses propres problemes"6 .
0 ser humano, nas primeiras andanças pela face da Terra,
interagiu com o meio natural circundante buscando, num
primeiro momento, a sua sobrevivência biológica. Dependente
dos recursos naturais (vegetais, animais, minerais), fosse
para a alimentação, habitação, transporte, etc., a relação
5 FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 126.
5 LENOBLE, Robert, Histoire de l'ideé de nature, p. 42
9
do homem com o meio natural foi imperante e constituiu-se
como um dos principais problemas a ser equacionado. Neste
momento primordial, a interação humana com a natureza foi
por excelência predatória e conflituosa, refletindo as
divergências existentes entre as necessidades do homem e a
possibilidade de obtenção de alimentos junto ao mundo
natural.
Esta desarmonia é sinalizada pelas interações grupais em
pequenas hordas, que revelavam uma vida humana ainda
instável e pouco adaptada ao meio. Tal situação era
decorrente do continuo deslocamento a que estavam sujeitos
os seres humanos, uma vez que estes incursionavam pelas
matas em busca de gêneros alimentícios. A pequena
compreensão da natureza, no que diz respeito aos seus
ciclos, fez com que ao término dos alimentos, ou com o
escasseamento destes, os homens abandonassem suas habitações
temporárias em busca de novos locais, onde os recursos
fossem mais abundantes7 .
A árdua tarefa diária de obtenção de recursos, para a
sobrevivência individual e grupai ou a temeridade de não
encontrá-los, impôs ao homem uma necessidade de observação
7 Sobre o assunto ver: CHILDE, V. Gordon, A pré-história da sociedade europeia. Lisboa,
Europa-América, 1963 e CHILDE, V. Gordon, A Evolução Cultural do homem . Rio de Janeiro
Zahar, 1981.
10
cuidadosa do meio em que vivia, a fim de localizar e
selecionar:
as melhores plantas que pudessem servir de
alimentação;
os animais e os seus hábitos de caça;
• fontes de água potável;
• recursos minerais que atendessem as suas necessidades.
Espectador atento dos movimentos da natureza, o ser
humano procurou captar a sua lógica, a sua composição, a sua
ordem, os seus ciclos e as suas mutações, em função dos seus
anseios e limitações. Tal procedimento objetivava
estabelecer um domínio sobre a realidade natural, na medida
em que esta só tinha fundamento se garantisse a
sobrevivência biológica humana.
Contudo, os mistérios insondáveis da natureza e a
temeridade humana continuavam a ser explicados por meio de
um "processo mágico", através do qual era atribuida uma
força e uma finalidade (animismo), dentro do equilíbrio do
Cosmos. Este equilíbrio era conservado na memória do grupo
social que o havia elaborado, sendo este responsável pela
11
transmissão para as gerações futuras8 . Conforme observa
Heinberg:
"A vida espiritual de todos os povos antigos e tribais girava em
torno da manutenção de ritmos e equilíbrios sagrados por intermédio
de rituais destinados a recapitular a Criação, o derradeiro ato
sagrado, que há de ser comemorado e repetido simbolicamente e em
ocasiões significativas da vida do indivíduo e da vida coletiva da
tribo."9
0 mundo natural, enquanto força, fornecia equilíbrio ao
Cosmos, que era alimentado pelos rituais que celebravam a
natureza e a criação, revitalizando os ritmos da vida
espiritual dos seres humanos.
Hauser observa, ao analisar a arte deste periodo, que as
representações produzidas pelo homem eram a revelação de um
animismo latente, que visava a auxiliar na obtenção dos
alimentos, sendo que as pinturas
"constituíam simultaneamente a representação e a coisa representada;
eram simultaneamente o desejo e a realização do desejo. O caçador e
o pintor da era paleolítica supunham encontrar-se na posse do
próprio objeto desde que possuíssem a sua imagem; julgavam adquirir
8 Lenoble identifica que o animismo é a primeira idéia de Natureza produzida pela
consciência humana: ”0n concoit ainsi que, dans la Nature magique, rien n'arrive par
hasard, mais rien n'arrive non plus par l'effect de lois indépendantes de 1'histoire des
hommes. On se contente, en géneral, de décrire 1'animisme de l'enfant et du primitif - qui
a donné sa premiere forme à 1'idée de Nature - comme s'il était un fait premier. Pourtant
cet animisme a lui même des causes psychologiques: il n'est pas simplesment un état de la
conscience, il en est un produit. LENOBLE, Robert, op. cit., p. 43.
9 HEINBERG, Richard, Memórxaa e Visões do Paraíso, p. 25-26. Ver também ELIADE, Mircea,
História das Crenças e das Idéias Religiosas. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda, Rio
de Janeiro, Zahar, Tomo I, Vol. I, pp. 19-47.
12
poder sobre o objeto por intermédio da sua representação.
Acreditavam que o animal verdadeiro sofria, no mesmo preciso
momento, a morte do retratado em efigie. A representação pictórica
nada mais era, a seus olhos, do que a antecipação do efeito
desejado; o evento real seguir-se-ia inevitavelmente à ação mágica
da representação, ou melhor, aquela está contida nesta, separando-as
apenas os meios, supostos irreais, do espaço e do tempo."10
0 mundo natural, enquanto objeto, é apreendido pela sua
passividade frente a ação humana. 0 homem pensa o mundo
através de uma concretitude sensorial, com significados e
forças abstratas, fornecendo o esteio básico das primeiras
formulações simbólicas para a definição do homem e da
diferenciação deste em relação ao meio. Heinberg,
considerando estes aspectos, afirma que:
"Para os Antigos, o respeito ao sagrado derivava da consciência dos
processos criativos da Natureza, e implicava uma hesitação em
intrometer-se arbitrariamente neles. Para a consciência santificada,
até o tempo e o espaço eram sagrados, e cada átomo da criação fazia
parte de um coro jubiloso"11 .
A natureza era o espaço sagrado da criação, na sua
existência concreta para o homem.
A representação de animais nas cavernas pré-históricas,
tais como bisontes e cavalos, demonstra que o discernimento
humano tentava controlar o meio natural. As gravuras
extrapolavam o sentido de imagem imitada do real, como parte
10 HAUSER, Arnold, História Social da Literatura e da Arte, p. 16.
11 HEINBERG, Richard, op. cit., p. 14.
13
fundamental de um ritual que obedecia a conceitos mágicos e
religiosos que transmitiam as inquietudes latentes, quanto
à garantia da sobrevivência. Lenoble, ao analisar a idéia de
natureza, observa que:
"Les premiers dessins que nous trouvons des objeta naturels, das les
grottes préhistoriques, sont des images magiques. Le bison ou
1'antílope figuré est entouré de flèches ou blessé, ou capté par de
mains qui le serrent de toute part. Donc l'homme n'arrivait pas
démuni devant les choses, il "savait" déjà comment on s'en rend
"maitre et possesseur"12
A harmonia da natureza com a vida humana não tinha como
objetivo somente uma compreensão do mundo natural como fonte
de recursos, mas antes de tudo esta leitura era uma
consciência da existência do ser humano para si mesmo e para
o mundo natural, imediato e distante, bem como, a submissão
deste ao seu possuidor, o homem13 .
As alterações que se processaram durante o longo periodo
da existência levaram o homem a uma dissociação quase
completa de sua origem animal. Isto o coloca em confronto
com os animais e o leva a constatar diferenças e oposições;
a elaborar distinções através de categorias e classes
visando a definir afastamentos e aproximações. 0 homem
criava um conjunto de nexos para a estruturação do seu
12 LENOBLE, Robert, op. cit-, p. 35.
13 Sobre o tema ver MORIN, Edgard, O Paradigma Perdido, Tradução de Hermano Neves, Lisboa,
Europa-América, 1988, pp. 53-169.
14
universo, sintetizado na linguagem, onde eram criados
conceitos que articulavam as contraposições da sua
existência com a alteridade e o mundo natural. Edmund Leach
observa que:
"No homem, a capacidade de separar os elementos pertencentes a uma
classe, daqueles pertencentes a outra classe, e o desenvolvimento de
um Eu autoconsciente que se define por contraposição ao Outro,
encontram-se em estreita conexão com a formação de conceitos
verbais. A estrutura da linguagem, que é linear e segmentada, induz-
nos a representarmos o ambiente circundante como se este fosse feito
de «entidades» separáveis (ou «categorias») , e a estabelecermos
que a cada uma delas se possa atribuir um nome. De entre estas
distinções, uma das polaridades universais é a que estabelece entre
o «homem» (no sentido de «criaturas semelhantes a nós») e
«todos os seres»." 14
A natureza, como os demais elementos, fornecia substrato
para que o homem criasse um conjunto simbólico próprio,
livre e fecundo, que passou a integrar expressões orais,
gestuais, intelectuais e artísticas, possibilitando as
elaborações miticas que se atinham à origem, composição e
ordenação do mundo.
0 mito, enquanto representação, foi por excelência o
meio pelo qual o ser humano dimensionou a natureza,
14 LEACH, Edmund, "Katuzeza/Cultura"- in Enciclopédia Einaudi - AntArcpos-Homem. Lisboa,
Imprensa Nacional- Casa da Moeda, vol. 5, 1985, pp. 76-77.
15
explicitando as ligações entre ele e o meio natural15 .
Conforme destaca Micheli:
"A imagem de um génese do mundo é, com efeito um dos momentos
essenciais da explicação mitica do mesmo; trata-se de um processo
que parte da assunção de dados retirados de experiências concretas,
que são transformados e colocados num contexto geral (o de todas as
coisas conhecidas) . As motivações são essencialmente religiosas e o
objetivo (a explicação do mundo é plenamente adequado ao pressuposto
inicial; a ordem que se encontra no universo não é construída
segundo processos racionais."16
0 mito confere uma logicidade às coisas do mundo e à
existência do homem, enquanto marca a sua capacidade de
separação, de forma consciente, de um todo em partes que se
interligam num mosaico de conhecimento sobre o individuo e a
coletividade17 .
Sem a elaboração mitica a sua vida no mundo estaria
desprovida de significado pois, a realidade das origens, o
nascimento e a geração de todas as coisas eram desconhecidas
e cheias de mistérios intransponíveis concretamente pelo ser
humano18 . A tomada de consciência que o mito consagra
15 Segundo Turner: "...o mito deve ser encarado como uma resposta natural, adaptativa do
animal (humano) ao seu ambiente". TURNER, Frederick, O Espírito Ocidental Contra a
Natureza, p. 11.
16 MICHELI, Gianni, "Caos/Cosmos" - in Enciclopédia Einaudi - Natureza
Eaotérico/exotérico. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, vol. 18, 1990, p.135.
17 Sobre o assunto ver: CASSIRER, Ernest, linguagem e Mito . São Paulo, Perspectiva, 1985;
CAILLOIS, Roger, O mito e o homem . Lisboa, Ed. 70, 1984.
18 Lenoble, destaca que a elaboração mágica realizada pelo homem reflete uma necessidade
psicológica no que diz respeito a construção de fabulações. LENOBLE, Robert, op. cit., pp.
38-39.
16
constitui a possibilidade indefinida de elaboração de
representações e significados. Os mistérios são absorvidos
pela mente humana. Segundo Micheli esta condição marca a
"consciência, no homem, da existência uma realidade
exterior a si, de um conjunto de res que o circundam e que
ele se vê na obrigação de descrever e explicar para nelas se
orientar, orientando a própria vida"19 .
Este conjunto simbólico primordial, pleno de
significados advindos de uma decodificação do universo
revela que o homem criou um sentido para o mundo em
consonância com os limites da sua interação, com o meio
natural; ora como sujeição; ora como dominação. Estes
limites estariam sempre presentes nas reflexões sobre a
natureza20 . Num processo continuo de ver, aprender e
19 MICHELI, Gianni, "Hundn"- in Enciclopédia Einaudi - Natureza Esotérico/exotérico.
Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, vol. 18, 1990, p. 171.
20 Claude Polin ao analisar o sentido da cultura, como elemento diferenciador do homem em
relação ao animal, identifica na capacidade de discernimento e representação que o homem
possui, o principal fator classificatório para definir o homem como um ser de cultura.
Desta forma, Polin afirma:" o simples fato de que a vida do homem (de que todo gesto
humano) é acompanhada de representações basta para defini-lo como um ser de cultura, pois
isto significa que sua relação com a natureza, com outros homens, mesmo consigo mesmo,
nunca é imediata, mas sempre mediatizada pela representação que ele tem deles, e que, por
conseguinte, seu comportamento, mental ou fisico, não consiste numa reação ao significado
de suas representações, isto é, a idéia que ele faz de seu meio, dos outros e de si mesmo.
Ora, parece-me que se onde, de maneira mais genérica, definir uma cultura como o conjunto
das representações que um homem faz de si e do mundo (humano ou material que o rodeia,
enquanto que, por um lado este conjunto tem um sentido que, para este homem, representa a
realidade propriamente dita de seu próprio ser, desse mundo humano ou material, e, por
outro lado, enquanto seu comportamento é ordenado nesse sentido consistindo concretamente
e este comportamento em costumes, num certo tipo de organização social, numa produção
daquilo que hoje chamaríamos de obras de arte, ou naquilo que o homem consideraria como
seus conhecimentos ou sua ciência, etc. Dentro desta perspectiva, a noção de cultura e
17
apreendê-lo em função da sua vivência com o meio, pois o
Cosmos era tão vivo e ativo como o homem, ambos partilhavam
da força organizadora da criação que tendia ao infinito,
numa elaboração que transcendia a própria existência
terrena.21
Com a sedentarização, a atitude humana perante o mundo
natural foi substancialmente alterada. A sua fixação em
determinadas regiões seguiu um processo seletivo e esteve
vinculado diretamente a uma disponibilidade de recursos
naturais, para a realização da agricultura e da existência
de espécies animais aptas para a domesticação.
0 cultivo da terra estreitou as relações do homem com o
meio e o conduziu à fixação em aldeamentos permanentes, pois
a agricultura impunha a fixação e a espera da germinação das
sementes, num determinado periodo do ano. Além disso, fazia-
se necessário protegê-las e armazená-las para o resto do
indissociável da de civilização, a civilização não sendo nunca senão o mundo (humano e
material), enquanto vivido conscientemente pelo homem." POLIN, Claude, "Claude Polin, da
xevxsta "CozEnaentaxxe ana 7 i aa o sentxdo da cultura no mundo moderno" in O Estado de Seio
Paulo, caderno Cultura, Ano I, número 45, p. 12.
21 Segundo Edmundo O'Gorman "...desde que o homem se imaginou a si mesmo, seja como animal
inalteravelmente definido por sua natureza, seja como criatura à qual se lhe impuseram fim
e destino que transcendem a sua vida, isto é, desde que o homem se imagina como algo feito
para sempre, de acordo com um modelo prévio e inalterável, terá que imaginar que seu mundo
tem a mesma inabalável estrutura ou natureza. Mas se o homem se imagina, não como
definitivamente feito mas como possibilidade de o ser, o universo em que se encontra não
lhe parecerá como limite intransponível e realidade alheia, mas como um campo infinito de
conquista para fazer seu mundo, como um produto de seu esforço, de sua técnica e de sua
imaginação". 0'GORMAN, Edmundo, A Invenção da America, p. 95.
18
ano, com o intuito de manter uma regularidade estável no
abastecimento de alimentos, situação possivel somente com a
sedentarização22
Com a fixação do homem em pequenos aldeamentos, a
dependência da coleta de plantas silvestres cedeu lugar ao
crescimento dos campos cultivados, principalmente os de
trigo, que atraiam os animais, como as ovelhas que buscavam
uma alimentação mais farta, colocando-o em contato mais
direto com a fauna. Este contato próximo e intenso
permitiu-lhe perceber que era mais conveniente a
domesticação destes animais do que a caça. Assim, o cultivo
agricola tornou a sedentarização e a estratificação social
possivel, na medida em que a concentração dos estoques de
alimentos se processava num único local, o que exigia a
divisão do trabalho para o desenvolvimento da comunidade.
Estas condicionantes contribuíram diretamente para o
crescimento da população, acentuaram o desenvolvimento da
produção material e a criação de novas categorias de
compreensão do mundo natural. Estabelecidas as diferenças
espaciais, que envolviam o mundo natural, distinguindo-o em
espaço natural (não cultivado) e espaço habitado
22 Para o assunto, ver o trabalho de Mircea Eliade, em especial: "A mala longa Revolução:
A descoberta da Agricultura-Mesolítico e Neolítico" in História das Crenças e das Ideias
Religiosas, tomo I, vol. I, pp. 48-78.
19
(cultivado), o homem procurou fixar-se nos locais mais
propicios para o desenvolvimento da atividade agricola e
criatória.
Esta primeira diferenciação, que se processou na escala
evolutiva humana, marcou uma primeira cisão no conjunto
simbólico até então elaborado entre os espaços habitado e
não habitado. 0 homem redimensiona a sua cosmovisão, o seu
sentido de espaço e a sua auto-imagem dentro da convivência
grupai, conforme sua nova condição terrena. 0 produto deste
redimensionamento foi a reelaboração de um conjunto
simbólico próprio, a cada um destes espaços, que por séculos
serão reelaborados, e que, direta ou indiretamente, foram
incorporados nas formulações posteriores, acerca do mundo
natural, nas quais persistem a noção de dependência e temor
em relação ao mundo natural. Hauser observa que:
"Quando o homem tomou consciência da dependência em que se
encontrava do bom e do mau tempo, do sol, da faísca e do granizo das
pragas e da fome, da maior ou menor fertilidade do solo, é que
surgiu a concepção de toda espécie de demónios e espíritos -
benéficos ou maléficos - distribuindo bênção ou maldições, e a idéia
de poderes desconhecidos e mistérios, de forças supraterrenas
independentes do controle humano"23 .
Desta forma, pode-se denotar que a criação de divindades
e de um universo religioso esteve diretamente ligada a uma
23 HAUSER, Arnold, op. cit., vol. I, PP- 25-26.
20
interação continua do homem com o meio natural, sendo que o
homem foi o criador de mecanismos que permitiam um diálogo
com a natureza e por conseguinte de decodificação.
Durante a antiguidade, com o surgimento das primeiras
civilizações, verifica-se que os núcleos populacionais
formados a partir da sedentarização, normalmente nas margens
de uma corrente de água natural, tinham sofrido um aumento
populacional, devido ao crescimento dos centros agricolas e
criatórios, o que ocasionou uma remodelação das estruturas
politicas, sociais e religiosas. 0 homem da antiguidade
aprimorando as técnicas de controle do meio, tais como o
armazenamento de água da chuva para os seus cultivos e suas
criações e usufruindo de uma disponibilidade de mão-de-obra,
começou a praticar o regadio, com o fito de ampliar as
terras agricultáveis. Devido a este expancionismo agricola
os núcleos populacionais obtiveram uma produção excedente
àquela necessária para a manutenção do seu grupo social, o
que contribuiu diretamente para a diversificação das
atividades não ligadas à agricultura e à criação.
Esta complexidade de atividades económicas fez-se
refletir diretamente na vida social e religiosa, onde
continuava a perdurar os medos caracteristicos das
vicissitudes externas a que estavam sujeitos os homens. A
21
complexa relação com o mundo natural trará para a estrutura
social uma nova classe religiosa, a dos sacerdotes, que
seria responsável pela intermediação entre a vida social e
as representações simbólicas religiosas dos fenômenos
naturais e do devir humano. Esta nova classe religiosa,
detentora de um saber primordial, foi responsável não só
pela sistematização das crenças, mas também pela
justificação da organização politico-militar-social e pelo
desenvolvimento intelectual e material da sociedade, que se
revelou essencialmente dependente do substrato religioso,
que fundamentava seus princípios em idéias morais
provenientes da reflexão sobre as coisas do mundo natural.
Segundo Bottéro:
"l'Homme n'est pas un pur esprit, et ses rapport avec ses dieux sont
indissociables de sa vie économique, sociale, politique,
intelectuelle et sentimentale , profondément marquês par toutes les
crises que les effectent... ,/24
A religião organizou a existência do homem e seus fins
espirituais, na sua relação com o sagrado, assim como no
plano terreno, que tende a reproduzir o equilíbrio cósmico
do universo divino. A religião, por conseguinte, era o elo
de comunicação que alimentava e justificava a estrutura
temporal em função do plano divino, que se compunha da
relação harmoniosa com o meio.
24 BOTTÉRO, Jean, Naissance de Dieu, p. 30.
22
A sistematização empreendida pela classe sacerdotal, nas
diversas sociedades antigas, visava a dar ordenação ao
mundo, situando o vir-a-ser do homem dentro de uma ordem
universal de forma coerente e una, para que fosse facilmente
absorvida e compartilhada por um grupo social. Desta forma,
mitologia e teologia se apresentam como dois estágios
sucessivos do pensamento cosmogônico, onde se manifesta a
sintese do pensamento sobre a origem25 .
A recuperação da forma de pensar a decodificação que os
homens fizeram, como parte iptegrada da natureza e agente em
relação ao meio natural, em qualquer periodo da história da
humanidade, permite não só resgatar percepções do mundo
natural, mas sobretudo detectar permanências que, de maneira
direta ou indireta, continuam presentes nas representações
simbólicas que o homem elaborou para a ordenação do mundo e
da sua existência em fases posteriores.
Dentro deste enfoque de leitura, os séculos XV e XVI
foram importantes para a história da humanidade, pois
marcaram o encontro e a sobreposição de dois universos
culturais distintos, um europeu e outro americano em
25 Bottéro identifica esta sucessão entre mitologia e teologia como fundamental para o
historiador na análise da cosmogonia judaica. BOTTÉRO, Jean, op. cit., p. 261.
23
processos evolutivos distintos. Entre eles, além do
distanciamento geográfico havia um distanciamento cultural,
muito maior do que as léguas que separavam os dois
continentes. Ambos possuiram interações com o meio natural
próprios e diferentes, que estavam refletidos em suas
culturas. A união entre ambos, no caso brasileiro, se daria
por intermédio de uma ordem religiosa recém fundada, a
Companhia de Jesus, que através do catolicismo sistematizou
a ordenação do mundo, alimentou e justificou a estrutura do
plano terreno em função do plano divino. Elo de ligação da
ordem com o Caos, fundiu heranças, inseriu o novo no velho e
vice-versa.
No âmbito religioso, a Igreja Católica, enquanto
instituição organizada, que exercera seu reinado de forma
plena e soberana, durante quase todo o periodo medieval,
começava a sofrer os primeiros abalos. Baseada numa
estrutura frágil e com graves problemas internos, quanto aos
dogmas e à disciplina, além de problemas externos,
principalmente no que concerne à relação com os leigos, a
instituição religiosa teve seus pilares de sustentação
abalados, frente aos movimentos que não aceitavam ou
questionavam os dogmas, tradições e interpretações da
doutrina Católica. A nova ordem económica, que então surgia,
acelerou estas alterações ao impor uma nova visão do homem
em relação à atividade mercantil/ até então condenada pela
Igreja Católica.
Contudo, a Reforma, iniciada por Lutero e Calvino no
século XVI, é que romperia com a hegemonia secular da Sé
Católica, fazendo com que esta se reorganizasse mais
rapidamente para o novo periodo.
Concomitantemente à Reforma protestante, a Igreja
passava por um profundo questionamento e reformulação no
final do século XV, que resultou no surgimento de novas
ordens religiosas no século XVI, assim como a reordenação
das antigas ordens. Este movimento conhecido como Centra
Reforma ou Reforma Católica, teve como fim a expansão da fé,
que coincidiu com os descobrimentos, com o fim último de
inibir o desenvolvimento do protestantismo.
A Companhia de Jesus, fundada em 1534, por Inigo de
Loyola, assumiu um papel decisivo e fundamental no movimento
estratégico de regeneração da Igreja na Europa e da expansão
da fé católica pelos demais continentes. Os loiolanos,
enquanto membros de uma congregação missionária e
apostólica, encontraram no reino português um baluarte forte
para sua atuação e sustentação. Os loiolanos chegaram às
terras brasileiras em 1549 e desde o inicio trabalharam para
25
a propagação da fé cristã e no auxilio do povoamento das
terras recém-achadas.
Os jesuitas, autores de inúmeras cartas, narraram as
práticas religiosas, os ensinamentos empreendidos e os
êxitos ou fracassos obtidos. Nestes relatos, surgem as
primeiras informações detalhadas sobre a terra dos brasis
onde começavam a pregar, revelando uma consciência histórica
apurada26 . Responsáveis pela intermediação entre a vida
social e as representações simbólicas do cristianismo, os
loiolanos decodificaram um novo meio natural, desconhecido
do europeu, e participaram na concretização de uma
formulação para o entendimento do mundo natural e da
existência humana, na América portuguesa, numa ótica cristã.
Os jesuitas eram conscientes da diversidade de povos
indigenas que habitavam as terras coloniais portuguesas da
América. Ao se fixarem estabeleceram desde o inicio a
distinção entre: tupi-guaranis27 e os povos que falavam a sua
lingua e praticavam os mesmos uso e costumes; dos tapuias26 ,
que significava o "Outro", para o tupi-guarani, ou seja,
26 RODRIGUES, José Honório, História da história do Brasil, la. parte (Historiografia
colonial), p.249.
27 Os tupis estavam divididos em vários grupos locais Tupiniquim e Tapanases, na região de
Porto Seguro e Espírito Santo; na região nordeste encontravam-se os Caetés, os
Tabajaras, os Amoípira.
28 Os tapuias estavam localizados numa estreita faixa do litoral do Espírito Santo
designados de Guaitacazes ou Goitacá e em Sâo Vicente os Guaianazes.
26
aqueles que não falavam a mesma língua e não praticavam os
mesmos usos e costumes, também classificados como
escravos29
Distinguindo os grupos segundo o espaço geográfico que
ocupavam e que invariavlemente seguiu a divisão entre
litoral do território e o sertão, os missionários
conseguiram perceber que o mundo indígena se dividia em dois
grandes grupos culturais. Contudo, quando se referiam ao
coletivo utilizavam do substantivo brasis para designar
aquelas tribos com que mantinham contato regularmente e com
as quais interagiram e construíram um conjunto de
informações sobre o meio natural da América portuguesa. Sua
visão de fauna e flora, tão peculiar, se dá em função dos
brasis que lhes fornecem os ensinamentos básicos para a
sobrevivência na nova terra. Desta forma, a terra dos brasis
muito mais do que uma designação comum significou uma
especificidade com a qual os primeiros jesuítas conviveram.
0 objetivo desta pesquisa é o de estudar e analisar as
percepções dos primeiros jesuítas do mundo natural, como
produtores e difusores de uma representação do meio natural
29 Sobre o assunto ver: CLASTRES, Pièrre, "Elemento* de demografia ameríndia" in A
Sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, pp. 56-70; MARCHANT,
Alexandre, Do escambo à escravidão. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1943; RIBEIRO,
Darcy, Os índios e a civilização. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970.
27
brasileiro e da sua interação com os brasis, e como aqueles
reformularam dúvidas, contradições e correlações adequando-
as às visões de mundo existentes na Europa cristã.
Através de suas cartas, buscar-se-á recuperar nas
narrativas a proximidade ou o distanciamento destas com a
cultura européia, onde o pensamento cientifico estava em
transformação. 0 objetivo é trilhar, por meio dos documentos
e da historiografia, os meandros que compõem a leitura dos
primeiros jesuitas do mundo natural das terras de Santa
Cruz, a qual era profundamente influenciada pelo pensamento
judaico-cristão, cuja relação com a natureza era
essencialmente utilitária.
Optou-se pela utilização das cartas escritas pelos
primeiros jesuitas, alocados na América portuguesa durante o
periodo compreendido entre 1549-1596. 0 motivo da definição
de um corte temporal e de espaço se deu em função de várias
razões: primeiramente, a facilidade que as fontes impressas
oferecem aos pesquisadores, principalmente para aqueles que
como eu exercem atividade profissional na área de exatas,
dispondo tempo reduzido para pesquisas em arquivos.
Acrescido a este fator, a reorientação do eixo temático
da Antiguidade para Brasil Colónia, após a conclusão dos
28
créditos oficiais, também contribuiu para definir pela
restrição da unidade de tempo e documentação impressa, pois
estes cortes eram os mais condizentes com a disponibilidade
de tempo para uma pesquisa de mestrado.
Outro fator de suma importância para definição dos
limites da pesquisa foi o problema de ordem documental. A
documentação existente, produzida pelos primeiros jesuitas,
encontra-se distribuída por vários arquivos europeus e
nacionais, por vezes sem catalogação e de dificil acesso.
Desta forma, tomamos como fonte as compilações oficiais
da Companhia, principalmente os quatro primeiros volumes que
compõem a Monumenta Brasiliae30 . Dos cinco volumes que
integram a Monumenta Brasiliae31 , os três primeiros foram
editados pelo Pe. Serafim Leite no Brasil, em 1954, por
ocasião do quarto centenário de fundação da Cidade de São
Paulo, com o titulo "Cartas dos Primeiros Jesuítas do
Brasil". 0 quarto volume foi publicado somente na Europa e
compõe o conjunto documental que abrange o periodo de 1549-
1568. 0 quinto, e último volume do trabalho do Pe. Serafim
30 A Monumenta Brasiliae integra a Monumenta Missionum, composta de diversos documentos
referentes às missões jesuíticas nas índias Ocidentais e Orientais. A Monumenta Missionum
compõem, em conjunto com a Monumenta Originum, a Monumenta Histórica Societatis lesu.
31 Os volumes referentes a Monumenta Brasiliae correspondem aos volumes 79, 80, 81, 87, 89
e 99 da Monumenta Histórica Societatis lesu.
29
Leite é dedicado ao Pe. Inácio de Azevedo (Complementa
Azevediana 1539-1565).
Utilizamos ainda das compilações feitas pelo Instituto
Histórico, publicadas com o titulo Cartas r Informaçõesr
Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta
(1554-1594) ; e pelo Pe. Hélio Abranches Viotti, referentes
as cartas do Pe. Joseph de Anchieta, que compreende o
periodo de 1553-1596.
30
2-0 MUNDO NATURAL ENTRE O MITO E A RACIONALIDADE
A rota para cima e para baixo é uma e a mesma”.
“Heráclito”
A interação continua do homem com a natureza permitiu
que fossem elaboradas várias narrativas miticas, as quais
visavam a organizar a lógica do mundo num processo ordenado,
que seria passado para as gerações seguintes, através dos
relatos orais.
No mundo antigo encontramos várias cosmogonias, que de
maneira genérica propunham uma ordenação coerente e una do
Caos primitivo do Cosmos32 , por meio da intervenção de um
ente divino ou herói benfazejo, que ao construi-lo, ordená-
lo e modelá-lo, estabelecia desdobramentos, que levavam à
origem da existência humana, com a qual o ser humano se
identificava.
32 Cf. nota 4.
31
Este é o momento fundamental da elaboração simbólica,
pois organizando-se o Caos primitivo, tem origem o mundo
natural e o homem na sua unidade interativa com o meio. 0
que em última instância configurará uma atribuição de
sacralidade aos elementos naturais, dada pelo ato divino
criatório da qual o homem também compartilha, enquanto parte
da criação.
Esta organização da origem construia também uma visão
dos deuses como controladores todos poderosos do equilíbrio
cósmico, imortais e onipresentes, sem contudo serem
visíveis. Tais divindades, criadas pela mitologia, tendiam
de maneira genérica a ordenar o Cosmos dentro da dualidade
antagónica entre as divindades ligadas ao Bem e ao Mal, que
estavam disseminadas pela natureza, assumindo atribuições
ora positivas, ora negativas, advindas dos efeitos que
pudessem causar sobre os seres humanos.
Assim sendo, o homem neste cenário complexo que
interliga sagrado e humano, encontra-se suj eito às
divindades, sendo que os desígnios humanos estavam
vinculados ao cumprimento da sua sujeição ao ente divino.
Esta sujeição do homem é feita primeiramente pelo mito, que
determinava e sancionava as normas morais e éticas de
32
convivência grupai, o que em outras palavras poderia ser
dito como aquilo que tem ou não senso dentro da sociedade.
Se considerarmos o caso grego, eleito pela civilização
ocidental como inicio da identidade cultural do ocidente,
notamos que a religiosidade helénica no seu primórdio é
constituída de uma combinação de crenças e cultos herdados
dos povos indo-europeus, dentre eles os micênicos, onde a
presença da oralidade do mito e do conhecer por ouvir dizer
é marcante33 .
A sistematização e estruturação da religião e mitologia
grega se efetuou com as obras de Homero e Hesiodo34 , os
33 Paul Veyne afirma que: ''Literatura antes da literatura, nem verdadeira, nem fictícia,
porque exterior ao mundo empírico, na mais nobre do ques ele, o mito tem uma outra
particularidade: como o seu nome indica, é uma narrativa, mas anónima, que se pode
recolher e repetir mas de que não seria possível ser-se o autor.". VEYNE, Paul,
Acreditavam os gregos nos seus mitos?, Tradução Antonio Gonçalves, Lisboa, Ed. 70, 1983,
pp. 36-37. Brisson destaca que "un mythe ne rapporte jamais une expérience actuelle ou
récente il évoque toujours un souvenir conservé en mémoire par une collectivité tout
entiere que l'a transmis oralemente de génération en génération pendant une longe période
de temps. Aussi, pour définir ce qu'est un mythe, faut-il commencer par déterminer sur
quels criteres se fonde une collectivité pour conserver en mémoire le souvenir de tel ou
tel événement". BRISSON, Luc, Platon les mots et les mythes, Paris, François Maspero,
1982, p. 23.
34 Homero, autor presumível da Ilíada e a Odísaéía, era tido pelos antigos como o educador
da Hélade, como observa Platão ao destacar os malefícios de sua influência no livro X da
República. A existência de Homero, bem como a autoria das obras tem sido colocadas em
questão por estudiosos que apontam para imprecisões e contradições nas obras, além da
sobreposição de camadas lingílísticas. Independentemente destas questões modernas as duas
obras constituem como esteio básico na compreensão do pensamento helénico na antiguidade.
Homero sistematizou poemas compostos oralmente pelos aedos na forma épica. O conjunto da
obra homérica revela um conjunto de descrições fidedignas de acontecimentos concretos e
atos humanos para com os deuses na sua relação com o sagrado entrelaçando atos humanos com
ações divinas. Hesiodo, o primeiro poeta a elaborar um poema cósmico ocidental, era
considerado pelos antigos como contemporâneo de Homero. A sua existência é identificada
33
quais são considerados, desde a antiguidade, como os
responsáveis pela elaboração do conjunto de divindades que
constituíam a base da religião helénica, bem como pela
educação da Hélade35 .
A obra de Hesiodo, Teoqonia, narra as origens do mundo,
dos deuses e dos homens, considerando o mito como uma
instância de comunicação reconhecidamente aceita, dotado de
um conteúdo comunicável à sociedade e que é responsável pela
conservação de uma memória do passado, transmitida oralmente
e, em função desta caracteristica, sujeita a transformações.
Este texto de Hesiodo nos permite refletir sobre elementos
importantes da relação homem-natureza neste processo
criativo primordial.
Hesiodo, após o proêmio às musas, onde instaura a
excelência da palavra sagrada, narra o surgimento dos deuses
primordiais:
entre o final do século VIII e início do século VII a.C., em Ascra na Beócia. As suas duas
obras Teogonxa e os TrabaJJios a os Dxaa, junto com a obra de Homero representam a
fecundidade daquele período. Heráclito afirmou que "Mestre da maioria é Hesiodo; pois este
reconheceu que sabe mais coisas, ele que não conhecia dia e noite; pois é uma só (coisa)".
Os Pré-Soeráticos, São Paulo: Nova Cultural, 4 ed., 1989, vol. I, p. 57.
35 Heródotos assim se pronuncia ao realizar a investigação sobre o passado da Hélade: "Mas
os helenos por assim dizer não sabiam até há bem pouco tempo qual era a origem de cada um
dos deuses, nem se eles todos sempre existiram, nem qual era a sua forma. Realmente,
suponho que a época de Homero e Hesíodos não é mais de quatrocentos anos anterior à nossa,
e foram eles que em seus poemas deram aos helenos a genealogia dos deuses e lhes
atribuíram seus diferentes epítetos e suas atribuições, honrarias e funções, e descreveram
sua figura. Mas os poetas considerados anteriores a esses parecem-me ser-lhes
posteriores". HERÓDOTOS, História., Brasília, UNB, LII-53, p.106.
34
"Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre deuses imortais,
solta-membros, dos deuses todos e dos homens todos
ela doma no peito o espirito e a prudente vontade.
Do Caos Êrebo e Noite negra nasceram
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os fecundada unida a Êrebo em amor,
Terra primeiro pariu igual a si mesma
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor
e ser aos deuses venturosos sede irresvalável sempre.
Pariu altas montanhas, belos abrigos das deusas
ninfas que moram nas montanhas frondosas.
E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas
do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos
e Coios e Crios e Hipérione Jápeto
e Téia e Réia e Têmis e Memória
e Febede áurea coroa e Tétis amorosa.
E após com ótimas armas Cronos de curvo pensar,
filho o mais terrível: detestou o florescente pai7'36 .
Sucessivamente, a história das diversas linhagens de
elementos do mundo natural é apresentada numa sequência
narrativa de criação constitutiva, e de subsequentes
desdobramentos degenerativos, onde a verdade sobre a origem
do mundo, dos deuses e do homem é construída dentro de uma
perspectiva mitico-religiosa. A violência das forças da
natureza marca a passagem por estágios sucessivos de
realidade em que prepondera uma visão concreta sobre a
origem do Cosmo.
36 HESÍODO, Teogonxa, Tradução e comentário de Jaa Torrano São Paulo, Roswitha Kempf,
1986, pp. 132-133.
35
A criação do mundo, em cada uma das fases cósmicas,
segundo Hesiodo, reúne elementos antagónicos e conflitantes
de uma realidade transcendente, revelando a concretitude e o
simbolismo do pensamento helénico do periodo arcaico. Esta
instauração cronológica de inicio, que marca a origem,
revela que os deuses e a descendência humana compartilham do
meio natural, uma vez que, "toda a descendência é uma
explicitação do ser e natureza da divindade genitora", e
esta, por sua vez, é determinada e apreendida pelas
qualidades que possui. 0 homem era a sintese de uma natureza
primordial37 .
É interessante notar que à divindade Terra é atribuido o
epiteto de "amplo seio, de todos sede irresvalável sempre";
sendo esta fecundada pelo Céu, através de uma chuva-sêmen,
as qualidades da Terra, enquanto força nutriz, solo fértil e
geradora do mundo natural é que dão origem aos deuses (e é a
sua sede), e à própria existência humana. 0 objetivo de
Hesiodo era fundamentar um pensamento sobre as origens,
utilizando para tanto uma concepção divina na qual os deuses
configuravam como forças concretas e ativas da natureza.
Estas concepções da natureza mágica, que visavam a
concatenar num sistema explicativo lógico cada uma das
37 HESÍODO, op. cit-, pp. 43-46
36
manifestações da realidade, atingiram uma penetração
significativa no corpo social helénico. Se considerarmos que
esta era uma sociedade essencialmente oral, a recepção e a
aceitação da informação estavam infimamente ligadas à fonte
emissora, que a tinha produzido. Destarte, os helenos
assimilaram as estruturas do pensamento de Homero e de
Hesiodo pela sacralidade que o tempo e a memória oral, dos
aedos, conferiam às informações sistematizadas por ambos os
autores.
A obra hesiódica, ao propor a procura de um sistema
explicativo lógico para a compreensão do principio da
humanidade, abriu caminhos para as reflexões do pensamento
racional.
0 surgimento do pensamento racional, ou filosófico, que
utilizou também da concepção de natureza mágica, se reveste
como foco abundante de discussões de suma importância para a
formação do homem ocidental, especialmente do mundo natural,
como afirma Torrano:
"os poetas líricos e pensadores colaboram inicialmente (séculos VI e
VII) na grande tarefa de elaborar uma linguagem abstrato-conceitual
e apta como instrumento de análise tanto do cosmos como da realidade
humana"38 .
38 HESÍODO, op. cit.. p. 17.
37
A criação da linguagem abstrato-conceitual contribuiu
para a formação da racionalidade ocidental, bem como para a
compreensão do homem no mundo, marcando o surgimento de uma
forma de pensamento filosófico que a partir de então
conviveu com a concretitude do pensamento arcaico do mito.
0 surgimento e o florescimento dos primeiros
investigadores acerca da origem do mundo, que posteriormente
receberiam a designação de filósofos, se deu em torno do
século VII a.C., momento que marca a passagem paulatina da
tradição oral para a sociedade escrita na Grécia clássica,
onde é inaugurada uma nova modalidade de pensamento, muito
mais intensa e profunda, que se faz refletir nos textos
escritos no periodo. Esta transição, como ressalta Torrano,
marca a passagem de uma "exterioridade objetiva", concreta
por excelência, para uma "interioridade subjetiva",
abstrata39 .
39 As influências recebidas do Oriente, no que tange a esse periodo, são notórias advindas
da própria localização geográfica, assim como da intensidade das atividades comerciais,
via terrestre ou maritima, que favoreciam contatos constantes entre os helenos e os povos
do Oriente. 0 estabelecimento de relações periódicas permitiu um contato cultural que
facilitou a introdução de alterações significativas na cultura das cidades da costa da
Jônia e por decorrência da Hélade continental. Apesar disto, a mensuração da influência
oriental no pensamento filosófico, e por vezes do conjunto mitico helénico, não pode ser
estabelecido de maneira precisa e "desde a própria Antigilidade confrontam-se duas linhas
de interpretação: a dos orientalistas, que reivindicavam para as antigas civilizações
orientais a criação da sabedoria que os gregos teriam depois apenas herdado e
desenvolvido; e a dos ocidentalistas, que viam na Grécia o berço da filosofia e da ciência
teórica". Os Pré-Socráticos, São Paulo: Nova Cultural, 4a. ed., 1989, vol. I, p. VII.
38
A cidade de Mileto, na costa da Jônia, caracterizou-se
no século VII e VI a.C. como centro cultural e comercial das
cidades costeiras da Ásia Menor40 .
As primeiras reflexões sistematizadas ocorreram dentro
deste contexto de florescimento e tiveram como objeto
principal a investigação da natureza (physis). Como observa
Vernant, são os primeiros filósofos que inauguram uma nova
reflexão da natureza, "nada existe que não seja natureza,
physis"il
Tales de Mileto, que é identificado como o iniciador de
um pensamento racional helénico, nasce num momento de grande
prosperidade económica do mundo antigo. Sem ter deixado nada
por escrito, as suas idéias foram apresentadas
principalmente por Aristóteles, que já o designava como o
primeiro dos filósofos naturais42 . Tales, na sua elaboração
intelectual, uniu as experiências sensiveis integrando-as a
uma "visão compreensiva e globalizadora" acerca do homem e
40 Neste período identifica-se uma "revolução económica" advinda da utilização do padrão
monetário para as atividades comerciais. "A moeda,facilitando as trocas, vem fortalecer
económica e socialmente àqueles que viviam do comércio, da navegação e do artesanato,
marcando definitivamente a decadência da organização social baseada na aristocracia de
sangue". Os Pré-Socráticos, p. XV.
41 VERNANT, Jean-Pierre, As Origens do pensamento grego, São Paulo, Difel, 1984, p.73.
42 Watanabe afirma que: na obra Metafísica, Aristóteles resume o pensamento dos filósofos
que o precederam e que servia de antimodelos e trampolins para que seu próprio pensamento
se afirmasse. WATANABE, Lígia, Primeira Filosofia, São Paulo, Brasiliense, 1989, p.15.
39
do universo, sendo que seu objetivo era identificar a
origem, o principio de todas as coisas43 .
A busca do começo, que permitia a origem de todas as
coisas, revelava a necessidade de atingir o principio único,
uno e ordenador do mundo. Aristóteles afirmou que os
primeiros filósofos na procura dos '•''princípios de todas as
coisas" vão buscá-los na natureza. Assim, a este respeito se
pronuncia:
"Tales, o fundador da filosofia, diz ser a água [o principio] (é por
este motivo também que ele declarou que a terra está sobre a água) ,
levado sem dúvida a esta concepção por ver que o alimento de todas
as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive
(ora, aquilo de que as coisas vêm é, para todos, o seu princípio) .
Por tal observar adotou esta concepção, e pelo fato de as sementes
de todas as coisas terem natureza úmida; e a água é o principio da
natureza para as coisas úmidas"44 .
Por meio da observação empirica, Tales percebe a
constância do principio úmido na formação de todas as coisas
o que lhe permite concluir que era a água a substância
primordial do Cosmos. 0 empirismo, norteado por uma
repetitividade constatável na natureza, dava embasamento à
sua afirmativa.
43 Os Pré-Socráticos, vol. I, p. XV.
44 íbidem, p.7.
40
Os primeiros passos da filosofia tiveram também como
ponto central a busca da origem, principio do homem e por
decorrência o principio do universo, a arché45 . Retirando da
origem primordial a névoa de mistério que a envolvia, e
preocupando-se em compreender "os acontecimentos primitivos"
e as forças que produziram o Cosmos, Tales inaugura para o
ocidente a pesquisa sobre a origem de todas as coisas
através de uma proposição racional, dando importância
significativa à observação, sendo ela o centro nutriz, para
que a razão possa encontrar, além da percepção sensitiva, a
substância primordial. Os sentidos são vistos assim, como
meios para que o processo reflexivo se inicie. Dentro de um
pensamento "científico-filosófico". Tales propõe uma "nova
visão de mundo cuja base racional fica evidenciada na medida
mesma. em que ela é capaz de progredir, ser repensada e
substituída"46 .
Se tomarmos como comparação a génese do mundo na obra
de Hesiodo, Teoqon/a, citada acima, notaremos que nos
45 O termo arché é pela primeira vez utilizado por Anaximandro, recebendo posteriormente
alterações significativas no seu sentido uma vez que a utilização da palavra recebeu
atribuições diversas variando de acordo com o contexto histórico. Lígia Watabane nos
alerta que o termo pode receber vários sentidos ao mesmo tempo: seja o princípio enquanto
início, movimento, movimento primeiro que deu origem a todas as coisas; seja o princípio
enquanto o que rege a existência de todas as coisas em todos os tempos, no seu começo, no
seu presente, no seu final: seja o destino, único ou não, para o qual tendem e se dirigem
todas as coisas em seus movimentos. Watanabe, Lígia, Primeira Fxloaofxa, São Paulo,
Brasiliense, p. 16.
46 Os Pré-Socráticos, vol. I, p. XV.
41
primeiros versos a presença da busca pelo princípio
originário do mundo identifica a água através do mito do
Caos aquoso como o gerador do Cosmos. Nota-se, portanto, que
de "um sistema de explicações de tipo genético, que faz
homens e coisas nascerem biologicamente de deuses e forças
divinas, como ocorre no mito passa-se a buscar explicações
nas próprias coisas, entre as quais passa existir um laço de
causalidade e constâncias de tipo geométrico"'
Anaximandro, enveredando pelos caminhos do pensamento
racional abertos por Tales, terá como preocupação básica a
busca do "princípio" arché introduzindo este termo no
uso corrente filosófico; segundo observou Simplício,
Anaximandro acreditava na unicidade do princípio, bem como
na sua mobilidade, afirmando que.Princípio dos seres...
ele disse (que era) o ilimitado... Pois donde a geração é
para os seres, é para onde também a corrupção se gera
segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça e
deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a
ordenação do tempo"48
Enquanto Tales defendia a hipótese de que a água era o
princípio, Anaximandro, por sua vez, afirmava que o
47 ibidem, p. 16.
48 SANTOS, J. T., Antes de Sócrates, Lisboa, Gradiva, 1983, p. 73.
42
principio é o ilimitado, ápeiron. Identificando o principio
como conceito abstrato, Anaximandro prenunciou a
possibilidade de articulação filosófica por meio de
conceitos abstratos, fugindo da identificação do principio
com elementos concretos da natureza. Ápeiron, conforme
Anaximandro, é o ilimitado que expressa ao mesmo tempo a
noção de infinito, de algo amorfo, que comporta "a ideia de
infinitude numérica e espacial, além da distinção
constitutiva, ou seja, sem forma externa e interna"49 .
Além disso, o ápeiron é o ponto de partida e ponto de
chegada, um ponto de inflexão que ao mesmo tempo é máximo e
minimo, "do qual tudo tinha nascido e no qual tudo
acabaria"50
Anaximandro estabelece, com suas proposições, que a
pluralidade das coisas, dentre elas o antagónico (quente-
frio), podem ser reduzidas a algo que é ao mesmo tempo uno e
total e que trilha uma trajetória ciclica.
A concepção da geração dos seres e do mundo natural para
Anaximandro se faz a partir do ápeiron, sucessivas
separações de contrários:
49 CRESCENZO, L-, História da Filosofia Cregra, Lisboa, Presença, 1988, pp. 36-41.
50 ibidem, p.36-41.
43
"No inicio, havia apenas o ápeiron a substância infinita; depois, o
Calor e o Frio separam-se e formam, respectivamente, para o exterior
e para o interior do universo, gerando o Seco e o Úmido. Estes, de
acordo com as melhores tradições da familia, continuaram a guerrear-
se: no Verão, o Seco conseguia prevalecer e arrebatar grandes
quantidades de mar, transformando-as em vapor de água; no inverno o
úmido reconquistava as posições perdidas, pegando nas nuvens e
fazendo-as precipitar sob a forma de chuva ou de neve"51 .
A origem das coisas múltiplas advém do principio
primordial da natureza que é uno e total, o que equivale a
dizer que a multiplicidade do universo das coisas são
oriundas da unidade primordial, ou seja, "todas as coisas
são um (ou é um) ".
Anaximandro, não negando a noção de movimento instalada
por Tales, ampliou-a afirmando que as coisas existem
seguindo regras de decomposição por pares antagónicos, que
ao mesmo tempo em que marcam a dualidade, estabelecem o
equilíbrio e a harmonia. 0 mundo ordena-se assim sob a lei
da compensação. Do um sai o múltiplo que se reordena e volta
a ser um, garantindo a estabilidade e o caráter ciclico e
eterno da natureza.
Ao determinar o nascimento do Cosmo por meio de uma
dialética de forças, Anaximandro estabeleceu a noção de
51 Os Pré-Socráticos, vol. I, p. 15-16.
44
medida que caracterizou de maneira acentuada a civilização
helénica.
Anaximenes, um dos expoentes maiores da escola de
Mileto, ao refletir sobre a produção anterior, chegou à
conclusão de que não era a água nem o ápeiron o substrato
gerador, mas sim o ar.
Simplicio, numa das principais menções à obra de
Anaximenes, sintetiza o pensamento deste contrapondo-o ao de
Anaximandro:
"Anaximenes..., afirma também que uma só é a natureza subjacente, e
diz, como àquele (Anaximandro) , que é ilimitada, não porém
indefinida, como àquele (diz), mas definida, dizendo que ela é ar.
Diferencia-se nas substâncias
substâncias,, por rarefação e condensação.
Rarefazendo-se, torna-se fogo; condensando-se, vento, depois, nuvem
e ainda mais, água, depois terra, depois pedras, e as demais coisas
(provêm) destas"52 .
Anaximenes estabelece como principio o ar, invisivel, e
este com as suas sucessivas transformações (rarefação e
condensação) dá origem a todas as coisas, ordenando-as e
constituindo-as. É de bom alvitre notarmos que a noção de
movimento continua em voga, uma vez que a idéia de rarefação
é no sentido de desaglomerar, desunir, desagregar, e a de
condensação é no sentido de aglomerar, unir, agregar sem
52 ibidem, p. 23.
45
contudo deixar de existir. 0 que difere as coisas entre si é
a forma como se processa a rarefação e a condensação, uma
vez que a composição básica é o ar.
Anaximenes não se distancia da reflexão acerca da
unidade primordial; ele mantém a idéia acesa e vislumbra um
meio pelo qual o uno passa a ser múltiplo, dando assim maior
sustentação à noção de processo de alteração que é
proveniente dos efeitos causados pela rarefação e
condensação constatado no mundo natural. 0 objeto em si tem
uma unicidade primordial que no processo de criação
desdobra-se e dá origem a elementos distintos.
Anaximenes, como pudemos observar, retoma a natureza
para explicar a ordenação e constituição do mundo, ao mesmo
tempo em que, através do ilimitado, o ar, consegue
estabelecer a noção de existência e a possibilidade de
sobrevivência humana através de uma massa amorfa, invisivel,
que faz parte da constituição do homem, que por um lado o
preenche internamente, e por outro lado o envolve
externamente. A natureza, enquanto objeto externo analisável
e distinto, passa a ser elemento constitutivo do ser humano;
o homem se une à natureza de forma invisivel e
indissociável.
46
Heráclito de Efeso, pai da dialética, com sua linguagem
nova e ritmica de prosador, inicia os ataques sistemáticos à
preponderância mitica, afirmando que
"a todos os homens é compartilhado o conhecer a si mesmos e pensar
sensatamente"53 .
No que se refere ao mundo, entendia que
"este mundo o mesmo de todos os (seres), nenhum deus, nenhum homem o
fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas
e apagando-se em medidas"54 .
0 universo tem sua existência, tal como a oscilação da
chama, a partir da luta entre contrários, onde o mundo era
as
"conjunções o todo e o não todo, o convergente e o divergente, O
consoante e o dissonante, e de todas as coisas um e de um todas as
coisas"55 .
Apesar de propor um afastamento do pensamento mitico,
Heráclito utilizava-se de idéias miticas primitivas. 0 fogo
primordial compunha na sua essência a luta entre Prometeu e
Zeus, delineada no mito hesiódico56 .
53 ibidem, p. 62.
54 ibidem, p. 54.
55 ibidem, p. 52.
56 HESÍODO, op. cit., pp. 144-146, ver w 507-616.
47
Heráclito, de forma mais acentuada que seus
antecessores, colocou como reflexão básica o conflito entre
uma cultura do mito e a filosofia racional emergente; ciente
da impossibilidade da união entre ambas, propôs a utilização
de uma linguagem diferente que rompesse com qualquer tipo de
associação. Retirando o fundamento da totalidade das
substâncias naturais, Heráclito, instaura o predominio do
logos51 negando a percepção sensorial, entende que a
linguagem sintetiza o desejo de comunicar58 . Formava-se a
linguagem abstrato-conceitual e o pensamento racional
encontrava-se na transição entre o concreto e o abstrato. A
natureza deixava sua concretitude representativa e se
instaurava no logos. Enfim, conforme afirmava Heráclito, a
"natureza ama esconder-se"59
Os pré-socráticos, de maneira variada, destacaram como
preocupação do ser cognoscente o problema da génese das
coisas, propondo que para a sua inteligibilidade é
necessário refletir sobre o principio ou princípios que
constituem as coisas. Cada filósofo, priorizando um
elemento, orientou o pensamento para a individualização,
aplicando a cada um dos princípios, categorias e regras
57 Logos é nome correspondente ao verbo légein = recolher, dizer. Podendo ser compreendido
como "palavra", "discurso", "linguagem", "razão". Os Pré-Socráticos, vol. I, p. 51.
58 ibidem, p. 54.
59 ibidem, p. 63.
48
próprias. 0 pensamento instaurava assim a via contemplativa
da natureza no sentido de compreender o processo intrínseco
do mundo natural. A observação empírica revela um olhar
crítico tentando emancipar-se das tramas da cosmogonia
mítica vigente. 0 homem pela primeira vez indagava o que é a
natureza f desvinculado de uma explicação essencialmente
religiosa.
Os filósofos subsequentes analisaram e ampliaram as
reflexões sobre a origem do Cosmos e a preocupação do homem
com o seu destino. 0 século V a.C. marca um redirecionamento
nas investigações filosóficas, que se ocupam de
considerações políticas, éticas, da teoria do conhecimento,
além do exame da Natureza, que deixa de ser o centro das
especulações filosóficas.
Sócrates dirigindo-se à Cebes, seu interlocutor, em
Fédon, responde a questão: Qual é "a causa da geração e da
corrupção de todas as coisas" afirmando:
"Em minha mocidade senti-me apaixonado por esse gênero de estudos
que dão o nome de "exame da natureza"; parecia-me admirável, com
efeito, conhecer as causas de tudo, saber por que tudo vem à
existência, porque perece porque que existe. Muitas vezes detive-me
Bpriamenfr-e a examjnar questões como esta: se, como alguns pretendem,
os seres vivos se originam de uma putrefação em que tomam parte o
frio e o calr>r; se é o sangue que nos faz pensar, ou o ar, ou o
fogo, ou quem sabe se nada disso, mas sim o próprio cérebro, que nos
dá as sensações de ouvir, ver e cheirar, das quais resultariam por
49
sua vez a memória e a opinião, ao passo que destas, quando adquirem
estabilidade, nasceria o conhecimento"60 .
Os filósofos pós-socráticos privilegiaram em suas
discussões a possibilidade do conhecimento; a racionalidade
humana preponderava e separava o universo entre aqueles que
tinham conhecimento, faculdade racional, daqueles que não a
possuiam. A ordenação da origem era explicada em função da
distinção da racionalidade e era imposta por uma abordagem
funcional, utilitária.
Epicuro, retomando a proposta atomistica apresentada por
Demócrito61 , afirmava que:
"Os átomos encontram-se eternamente em movimento continuo, e uns se
afawtam entre si uma grande distância, outros detêm o seu impulso,
quando ao se desviarem se entrelaçam com outros ou se encontram
envolvidos por átomos enlaçados ao seu redor. Isto produz a natureza
do vazio, que separa cada um deles dos outros, por não ter
capaciaaHg de oferecer resistência. Então a solidez própria, dos
átomos, por causa do choque, lança-os para trás, até que o
entrelaçamento não anule os efeitos do choque. E este processo não
tem principio pois que são eternos os átomos e o vazio"°2 .
Para que fosse atingido o conhecimento absoluto dos
átomos, enquanto ilimitados eternos, o homem deveria valer-
se da sensação, para seu procedimento, através da qual,
raciocinando, poderia chegar à indução "de verdades que não
60 Platão - Vida e Obra. São Paulo: Abril Cultural, 3a. ed., 1983.
61 Os Pré-Socráticos, vol. II, pp. 119-168.
62 ibidem, p. 48.
50
são acessíveis aos sentidos". Entendendo que " [ para a
explicação dos fenômenos naturais] não se deve recorrer
nunca à natureza divina; antes se deve conservá-la livre de
toda a tarefa e em sua completa bem-aventurança"63
As sensações eram um meio pelo qual o homem poderia
julgar. Para que o critério de justiça se efetivasse, ele
deveria libertar-se das amarras das fábulas miticas, e por
si só buscar na natureza do universo indicações para o
procedimento humano, sem as quais não poderia "gozar
prazeres puros"64 . A sua preocupação essencial era restituir
à idéia de Natureza a unidade primordial, livre das
superstições e do temor mitico.
Epicuro propunha o rompimento com as fabulações miticas,
que causavam danos aos homens, pois já não podiam satisfazer
os espiritos, impedindo a felicidade que é a aspiração
última para o epicurista. Como bem destaca Silva:
"Epicuro sentiu, e isto nos mostra que era um espirito filosófico, a
sede de unidade que atormenta a inteligência humana, a necessidade
de por de acordo as nossas crenças teóricas e os nossos princípios
práticos, de alicerçar as regras da nossa moral sobre uma concepção
da nossa natureza e do universo em que estamos colocados"65 .
63 ibidem, p. 49.
64 ibidem, p. 47.
65 ibidem, p. 43.
51
0 Epicurismo significou, portanto, um rompimento
profundo no pensamento filosófico helénico. Sua proposta
visava a compreender a condição humana e sua inquietude
espiritual, que levava o homem à insegurança. Epicuro
identificou que esta advinha do temor que aquele tinha dos
deuses e de suas interferências na vida terrena e pós morte.
Propunha para a solução deste problema, o esvaziamento do
papel dos deuses e suas ações no universo humano.
Utilizando-se das idéias da Fisica de Demócrito66 , entendeu
que no universo repleto de átomos não existiria nenhuma
força superior que coordenasse o movimento das coisas; assim
sendo, era inexistente qualquer ação dos deuses.
Como afirma Lenoble:
"Epicure, jette 1'homme dans l'inconnu; enfant du hasard, né
dans un monde quelconque formé au hasard des combinaison des atomes
dans l'Univers infini auquel il ne saurait être de trouvez un
centre!"67 .
Libertando o homem do temor do ente divino, com o
atomismo, Epicuro conclama à liberdade, à total
independência do medo dos fenômenos naturais; a humanidade
é capaz de gozar de prazeres estáveis oriundos do espirito.
66 Ver LEGRAND, Gérard, Os Pré-Socráticos, Tradução de Lucy Magalhães, Rio de Janeiro,
Zahar, 1987, pp. 123-128.
67 LENOBLE, Robert, op. cit. pp. 105-106.
52
Lenoble conclui que Epicuro, por intermédio do atomismo,
introduz na linguagem um sistema simbólico, unindo sensação
ao objeto concreto, fruto das convenções sociais, o homem
construía uma ordem objetiva da essência das coisas que se
manteria na Idade Média e Moderna68 .
Mediante ao acima exposto, verifica-se que o ser humano
parte da sua experiência concreta no mundo para construir o
seu referencial mitico e racional, buscando explicar a sua
existência e a existência do mundo de forma coesa, sendo que
os pré-socráticos são os primeiros a inaugurarem um conceito
de Cosmos que acenava para uma concepção de que o mundo era
formado por conjuntos de elementos, passiveis de serem
analisados. Este pensamento iria desenvolver-se somente a
partir do final do século XVI e no decorrer dos séculos
seguintes.
As percepções da natureza são, portanto, dentro do
contexto helénico, fruto de uma experiência vivencial que
permite a elaboração de mitos civilizatórios e organizadores
da sociedade e constituem a base para a criação do
pensamento racional abstrato, que não exclui o mito, pois
necessita deste para seu referencial. 0 mito é o alicerce do
68 ibidem, pp. 95-116.
53
pensamento racional onde a natureza é vista como um
principio tautológico, como afirma, Edmund Leach
"no pensamento grego, a natureza representava, de facto, um
principio tautológico, uma causa final. Pensava-se que o mundo
exterior, dotado de existência independente do pensamento e da ação
humana, estava impregnado de uma ordem - ou de um espirito
metafisico"69 .
Estas percepções múltiplas do homem no mundo afloram a
cada deslumbramento com a natureza na busca pela liberdade;
são capturadas pelo pensamento judaico-cristão. Elas se
intensificam com as novas descobertas e interligam as
experiências humanas européias com as da terra dos brasis.
Os humanistas, durante os séculos XIV-XV ao, dedicarem-
se à recuperação das obras da antiguidade clássica,
promoveram a ressureição do pensamento helénico e com ele os
escritos dos primeiros filósofos sobre a natureza, que são
tomados como modelos. Preocupados com as condições de
sobrevivência, os humanistas incentivaram a investigação
cientifica, promovendo uma maior observação da natureza e
do espirito critico, que se contrapôs ao pensamento judaico-
cristão, que possuia uma visão particular na leitura da
natureza, a qual passamos a considerar
69 LEACH,Edmund, "Natureza/Cultura"- in Enciclopédia Einaudi - Anthrcpos-Honiem, Lisboa,
Imprensa Nacional, Casa da Moeda, vol. 5, 1985, p. 67.
54
3-0 MUNDO NATURAL CAPTURADO PELO CRISTIANISMO
“O ar é Deus [...] a terra, nossa mãe”
“Quem é que vocês pensam que seja Deus?
Deus não é nada além de um pequeno sopro
e tudo mais que o homem Imagina”
“Tudo o que se vê é Deus e nós somos deuses”;
“0 céu, a terra, o mar, o ar,
o abismo e o inferno, tudo é Deus”;
Domenico Scandella (Menocchio) - 0 Queijo e os vermes
A proposta de racionalismo grego diminui sua intensidade
de maneira similar à queda da civilização Helénica. Sem
deixar de existir, o pensamento helénico passa para um plano
secundário, por ocasião da incorporação da cultura grega na
cultura romana.
Se por um lado, a cultura romana assimilou o pensamento
helénico e colocou-o num segundo plano, por outro, não o fez
com a seita que ora surgia. 0 cristianismo marca presença já
nos primeiros anos do Império Romano, e sobreviveu à sua
derrocada. A seita judaico-cristã, tornada religião oficial
de Roma, fundamentou os alicerces da cultura religiosa de
todo o Ocidente medieval, na qual a Companhia de Jesus
55
buscaria a fonte de inspiração para a ampliação da fé e
realizaria uma leitura peculiar do mundo natural no Novo
Mundo, no século XVI.
O homem, no seu convivio com o meio natural, impregnado
do pensamento cristão medieval, viu na natureza o
referencial básico para a compreensão da condição humana.
t Para Le Goff o homem medieval entende que "o horizonte
geográfico é um horizonte espiritual, o horizonte da
Cristandade"'10 , a partir do qual define a si próprio, a
natureza e o resto da humanidade.
Keith Thomas, ao analisar os fundamentos teológicos do
homem com o mundo natural, na Inglaterra nos periodos Tudor
e Stuart (1485-1714), destaca que neste periodo
"a teologia da época fornecia os alicerces morais para o predomínio
do homem sobre a natureza, que tinha se tornado, em inícios do
periodo moderno, um propósito amplamente reconhecido da atividade
humana"71 .
A visão do mundo era essencialmente cristã, o universo
estava organizado de acordo com os dogmas judaico-cristãos
que estabeleciam um ente divino supremo, o qual regia à
70 LE GOFF, Jacques, A Civilização do Ocidente Medieval, vol. ii, p. 137.
71 THOMAS, Keith, O Homem e o Mando Natural, pp. 27-28.
56
totalidade do universo, sendo o homem o administrador
terreno do mundo natural.
Nesse espectro de análises, a Biblia, enquanto palavra
de Deus, é considerada como fonte primária de informações
para o mundo medieval, porque ela "exerce poder" sobre a
humanidade, constituindo o esteio básico que fundamenta e dá
sentido à organização social, onde a natureza e o homem não
podem ser compreendidos sem a presença divina. Pois Deus era
o principio gerador de todas as coisas.72
Para o cristianismo, a ordem do meio natural, ou do
Universo criado, estava diretamente ligada à estruturação de
uma sociedade ordenada. Assim sendo, no processo criativo
primordial Deus é identificado como um construtor, o artesão
do mundo, que é responsável pela modelação da matéria e pela
harmonia dos alicerces sociais, colocando o homem como
senhor de todas as criações divinas na Terra73 . Para
Bottéro, que analisa o nascimento de Deus no judaismo, o ato
criador de Deus "n'est-elle pas un acte à part, coupé de
tout le reste, accompli une foi pour toutes et qui peut se
72 Em Hb. 4:12 delineia-se o poder da palavra divina: "Porque a palavra de Deus é viva,
eficaz e mais penetrante do que toda a espada de dois gumes; chega até à separação da alma
e do espírito, das junturas e das médulas, e discerne os pensamentos e intenções do
coração".
73 Gên. 1:X.
51
refaire", mas sim significa que "la marche du monde, dirigée
par le même Dieu, comprend d'autres moments homogenes""'
Na cosmogonia apresentada no Génesis, a origem se
efetivava através da instauração da excelência divina, que
habitava sozinha o vazio do espaço, e por intermédio desta é
deliberada a geração do mundo. Conforme observa Bottéro:
"II [Dieux] parle seulement, et tout se fait sur l'heure, tout
apparait, tout "est créé" confonnément à l'ordre ainsi proféré"75 .
Apesar da similaridade com a cosmogonia helénica, no
que concerne à palavra divina instauradora do vir-a-ser,
pela qual tudo é criado em consonância com os desejos
primordiais, o Génesis logo no proêmio aponta para uma
diferença substancial em relação àquela76
Na teogonia helénica as forças naturais precedem
qualquer existência divina, as quais são responsáveis pelo
processo de união amoroso e de cissiparidade que dão origem
às divindades primordiais, que por sua vez compartilham na
sua essência da força geratriz. A assimilação do mundo
74 BOTTÉRO, Jean, op. cit., p. 236.
75 ibidem, p. 241.
76 As cosmogonias tendem a ter elaborações muito próximas sobre o primeiro ato criador,
Bottéro observa que o primeiro ato da criação do mundo traduz exatamente a mitologia das
origens. Ver ibidem. pp. 27-179.
58
natural estruturou-se e hierarquizou-se em função das
divindades religiosas, cada qual com poderes específicos,
advindos do elemento natural que lhe tinha dado origem, e no
qual atuava diretamente, intervindo não só na natureza mas
também na vida humana.
A doutrina da criação judaica, segundo Feuerbach,
entende a existência divina como monoteista, formada por um
ser puro, enquanto causa única77 , anterior ao mundo natural,
sem o qual o vir-a-ser dos elementos naturais não poderia
ter ocorrido78 . A valoração do ato divino criatório reside
na capacidade de produzir as coisas a partir do nada, "ex
nihilo", ou seja, a partir da inexistência fisica das
coisas. Assim, o pensamento cristão, ao atribuir ao universo
uma origem divina, entendia que o Cosmo era fechado e
finito, pois dependia da vontade de Deus79 .
77 Feuerbach associa monoteísmo e egoísmo ao afirmar que: "o monoteísmo é essencialmente
monoteístico, porque ele só tem uma coisa por meta: a si mesmo. O egoísmo recolhe,
concentra o homem sobre si mesmo; ele lhe fornece um princípio de vida sólido, denso, mas
limita-o teoricamente, porque é indiferente a tudo que não se relacione imediatamente com
o próprio bem-estar". FEUERBACH, Ludwig op. cit., p. 155. Ver BOTTÉRO, Jean, op. cit., p.
230 e pp. 237-242.
78 Conforme ressalta Breton, o termo natureza é estranho à linguagem religiosa. A criação
divina se refere sempre de forma individuada a criação do céu, da terra. Em sentido amplo
o mundo natural pode ser compreendido como "todas as coisas" do mundo. BRETON, Stanislas.
"/rh-r-í at-iuni um* et conaept de nature". in - Les sentiaents de la natare, p. 146.
79 Breton identifica 3 significados para a idéia de criação, delineadas pela proposta de
leitura de Feuerbach:
- ato de independência absoluta do criador;
- compreensão do conceito de "ez nxhilo" em função direta ao criador;
- o ato criador é a manifestação de um gratuidade da ação do ente divino, ibidem, pp. 144-
145.
59
0 mundo natural é decorrência de um ato autoritário
primordial do criador, que instaura a existência do meio
natural pelas suas atribuições benéficas para com o ente
divino e o homem. Pois, após Deus ter criado o mundo, dando
organização e coerência ao Caos primitivo, numa auto-
consulta delibera:
"Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos peixes
do mar, e às aves do Céu, e aos animais selváticos e a toda a terra,
e a todos os répteis, que se movem sobre a terra"80
As criações que antecedem temporalmente a existência
humana só têm sua razão de ser em função da vida humana.
Assim sendo, o ser humano, como último ato divino de um
processo criatório, é responsável pelo sentido do mundo81 .
80 Gên. 1:26.
81 Breton afirma que: ”J'oserais dire, à ce propos, que la dignité humaine consiste moins
dans une position de suprême au sommet d'un hiérarchie ontologique, que dans sa
ressemblance d'image au triple néant qui définit l'acte créateur. "Néant de nature",
1'homme l'est en tant que, por être à la mesure de 1'univers qu'il s'efforce de connaitre
et de transformer, il ne saurait se réduire à la condition de simple partie, élément ou
mode du grand tout: loin d'être "tout fait", il a "à se faire" et a se donner son être.
C'est pourquoi l'univers, en tant que monde, s'insere dans une histoire de la liberte.
Image, en ce sens, de la transcedance divine, qu'il manifeste, 1'homme participe, par là
même, bien que dans les limites de sa finitude, de l'acte créateur, et ce d'une double
maniere: d'un part, il confere à l'univers, en vertu de sa liberté, un surcroit d'être qui
n'est pas "contenu, au titre de présupposé, dans la pure "nature"; d'autre part, en tant
qu'artisan d'un monde, il est aussi l'artiste qui en prolonge la beauté, il reflete une
gratuité qui excede, d'une surabondance insurveillée, la rigueur biologique de
l'indispensable." BRETON, Stanislas, op. cit., p. 145. Serres destaca que a palavra divina
tem poder de lei, ”... le dieu créateur parle ainsi,
perfomativemente: il dit et les
colhes se font en conformité avec la parole, comme si la création du monde avait été
pensée comme une loi." SERRES, Michel, Xe Contrat naturel, pp. 120-121.
60
Mediante o acima exposto, pode-se afirmar que o texto
bíblico do Génesis, e em outras passagens, enfatiza a
criação do Mundo por Deus, tendo como objetivo básico
prepará-lo para a existência humana, pois o homem e a mulher
são criados à semelhança divina e colocados numa categoria
diferenciada em relação às demais criações, suplantando-as e
controlando-as82 . Edmund Leach, ao analisar o Génesis,
destaca para a compreensão da natureza e cultura que:
"Se considerarmos a estrutura interna de um sistema religioso, como
a que se encontra no Génesis, vemos que o homem é ai apresentado
como uma criatura feita «à imagem de Deus» e colocada no ponto de
encontro entre o mundo natural dos animais e o mundo sobrenatural
dos espíritos, enquanto à natureza selvagem (o deserto bíblico) é
confinado em igual medida um papel de mediação entre o homem mortal,
que vive em sociedade, e o Deus imortal, que se encontra em outro
mundo. Quando apreciamos do exterior uma dada religião, chegamos,
porém, à tese oposta: Deus foi criado à imagem do homem para
desempenhar um papel de mediação e proteger o homem dos acidentes
incontroláveis desencadeados pela ação de uma natureza cruel."83
A natureza, portanto, é captada pelo homem que a
decodifica sob um ponto de vista prático da sua
sobrevivência, em decorrência dos desejos divinos, ou da
gratuidade divina, que tem o dom de gerar os elementos
naturais. Deus é a fonte da vida. Para o judaismo, o mundo
natural é visto em função das necessidades humanas, à qual
está submetida e sem a qual não possui significado, pois
82 ibidem, p. 146.
83 LEACH, Edmund, "Natureza/Cultura" - in Enciclopédia Einaudi - Antlrropos-Hompm. vol. 5,
Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1985, pp. 79-80.
61
"por si mesma nada é"84 . A razão da existência da natureza é
a de ser cultivada pelo homem, pois Deus colocou suas
criaturas num "paraíso de delícias, para que o cultivasse e
guardasse"85 . Cultivando e guardando o mundo natural o homem
dava significado à criação divina, pois esta existia em
função da existência biológica humana.
0 ato criativo, segundo Feuerbach, exteriorizava o
principio supremo do judaismo que é o utilitarismo, que
identifica os elementos naturais como "um mero meio para o
fim do egoísmo um mero objeto da vontade", concluindo que o
mundo natural para o hebreu é "o produto de uma palavra
ditatorial, um imperativo categórico, de um decreto
mágico"86
A quebra da ordem ideal, ou do convivio harmonioso, que
os seres humanos compartilhavam com a natureza, é rompida
logo após o pecado original87 . Com a expulsão do Paraiso,
foi permitido ao homem vislumbrar que a providência divina
84 Drouin ao analisar a teologia natural destaca o caráter diferenciativo da teologia
cristã no surgimento de "l'idée de la sollicitude du créateur pour ses créatures", ver
L'Ecologia et son histoixe
DROUIN, Jean-Marc, ISEcoloçp-a histoixe,, p. 38 e 55.
85 Gên. 2:15.
86 FEUERBACH, Ludwig, op. cit., p. 156.
87 Hilário afirma que: "o pecado original implicara na expulsão do Paraíso e em função
disso castigos de duas ordens: uma espiritual, fora a perda da androginia e o afastamento
da beatitude divina; outra, material, fora a condenação a parir com dores e a obter
alimentos "com suor do teu rosto". FRANCO Jr., Hilário - Utopias Medievais - São Paulo,
Brasiliense, 1992, p. 23.
62
possuía o controle sobre os elementos naturais, e poderia
agir com fins punitivos, na medida em que interviria para
causar a degeneração da terra. Por decorrência, a ação de
Deus atinge sensivelmente a hegemonia humana sobre o paraíso
terrestre, inviabilizando a sobrevivência: ganhar o pão não
seria uma tarefa que se efetivaria tão facilmente88 . Holanda
sintetiza esta condição, afirmando:
"O perfeito acordo entre todas as criaturas, a feliz a ignorância
do bem e do mal, a isenção de todo mister penoso e fatigante, e
ainda a ausência da dor fisica e da morte: estes são os elementos
constitutivos da condição primeira do homem, que há de ser abolida
com o Pecado e a Queda"89 .
0 rompimento do equilíbrio primordial com o pecado
original marcou também o surgimento da consciência da
alteridade. 0 ser humano diferenciava-se do todo, ao qual se
opunha diretamente. 0 pecado original estabelecia a
consciência humana na distinção entre o Homem e a Natureza,
e definia uma escala valorativa que ia da positividade
representada pelo homem a uma negatividade representada
pelos elementos naturais. A leitura do mundo, a partir de
88 Turner afirma que: "O castigo divino de ganhar o pão com o suor do rosto parece
refletir o desprezo histórico dos povos semi-pastoris pelos povos agrícolas, num desprezo
misturado com e informado por uma profunda inveja. Essa ambivalência explica a aparente
contradição dos castigos: o homem foi originalmente um agricultor no jardim do paraíso
(Génesis 2:15), mas sua punição é continuar a de ser agricultor exilado do jardim (Génesis
3:17-19)". TURNER, Frederick, op. cit., p. 39.
89 HOLANDA, Sérgio B., Visão do Paraíso, pp. 150-151.
63
então, passava a delinear-se entre estes dois polos
antagónicos.
Se por um lado, as idéias dos pré-socráticos definiam um
saber abstrato-conceitual, onde as leis do conhecimento do
mundo natural se processavam de forma independente, por
outro, o cristianismo era avesso à confrontação e à
independência do conhecimento da natureza. 0 esforço da
cristandade dirigiu-se no sentido de tentar captar esta
oposição entre a unicidade divina e a natureza, dissociando
desta, qualquer atribuição autónoma em relação a Deus. A
justificativa consolida-se através do principio fundamental
de que Deus era o criador e controlador de todas as coisas
do mundo.
0 conceito de natureza, no cristianismo, ao conceber uma
união umbilical entre esta e o ser humano, enquanto
criaturas divinas, confere uma similaridade intrínseca entre
estes, sendo ambos inseparáveis e componentes de uma escala
divina criatória, onde a alteridade nascente confirmava e
definia as noções de igualdade, reciprocidade e
interdependência90 . Além disso, como bem observou Holanda, â. i
maldição advinda da Queda também se estendeu para as demais
criaturas, inclusive a natureza, pois "era de crer ante a
90 BRETON, Stanislas, op. cit-, p. 161.
64
simples coerência dos juízos de Deus, que todas as coisas se
vissem atingidas pelos malefícios do mesmo pecado. Toda sem
exclusão dos próprios elementos"91 .
Destarte, o homem era expulso do paraíso e lançado num
mundo natural onde havia a preponderância de um meio
selvagem, não cultivada, portanto, negativa, com a qual
teria que guerrear para sobreviver; a relação de harmonia
deixava de existir sendo substituída pela de temor92 .
0 dilúvio que atingiu toda a humanidade, segunda punição
divina aos seres humanos, marca o rompimento da harmonia e o
retorno ao Caos; retorno terrível à origem não criada, pelo
poder destruidor que a água revela, sendo ao mesmo tempo tão
necessária à vida humana. A água, enquanto elemento natural
mantenedor da sobrevivência das criaturas divinas, rompia o
seu caráter utilitário e servia como elemento purificador do
mundo, ao mesmo tempo em que demonstrava, aos seres mortais,
a sua impotência frente aos desejos do Criador93 .
9-L HOLANDA, Sérgio B., op. cit., p. 195. “^5"^”
92 Heinberg afirma que "O impacto da imagem paradisíaca sobre a consciência coletiva
humana é tão profundo quanto vasto, em nenhuma tradição o tema é recente ou periférico;
existe, antes, no próprio cerne do impulso espiritual perene, que reemerge na literatura,
na arte e nos ideais sociais de cada geração". HEINBERG, Richard, op. cit-, p. 5.
93 CORBIN, Alain, O território do Vazio, p. 12.
65
A perda da hegemonia sobre o seu novo "habitat", a
Terra, seria recuperada parcialmente, após o Dilúvio, quando
é restituída ao homem, a sua autoridade sobre as criações
divinas, numa relação de temor, conforme se pronunciou
Deus: " Temam e tremam na vossa presença todos os animais da
terra, todas as aves do céu, e tudo o que se move sobre a
terra; todos os peixes do mar estão sujeitos ao vosso
poder"94 .
A natureza, a partir de então, tornou-se uma barreira
hostil aos desejos de sobreviver. 0 poder sobre o mundo
natural significava, em outras palavras, uma luta continua
contra o meio selvagem, para que este fosse dominado e
conquistado, ou seja, cultivado, residindo neste ato boa
parte do engenho humano95 . Revestida de um papel duplo, a
concepção de natureza oscila entre a fonte da vida e a
possibilidade da morte. Essa condição era decorrente da
transgressão acompanhada de punição, ocorrida com a expulsão
do homem do Paraiso, por ter desafiado a vontade divina. Tal
ato demonstrava que a salvação era possivel, desde que
fossem respeitadas as leis morais cristãs.
94 Gên. 9, 2.
95 A não celebração da natureza pelo cristianismo marcaria todos os demais povos que
adotaram o Velho Testamento, Turner destaca que: "Em todas as épocas subsequentes, os
povos que adotaram o Velho Testamento estigmatizaram a natureza selvagem: era um lugar
enorme e terrível onde ocorriam coisas terríveis". TURNER, Frederick, op. cit., p. 47.
66
0 ato divino oscilava, portanto, entre a criação e a
punição e apresentava-se como o único mecanismo de retorno
ao equilibrio primordial, residindo nesta possibilidade de
reversibilidade da natureza, parte da onipotência de Deus.
Ao homem; enquanto duplo proveniente do criador, cabia-lhe
somente o controle do mundo natural, o poder de subjugar e
fazer-se impor ao mesmo, pelo medo96 .
Deus, articulador do equilibrio cósmico, continuava a
exercer suas forças e se sobrepunha ao próprio controle
humano da natureza, que não ultrapassava os limites das
necessidades de manutenção da vida biológica. Feuerbach
lembra que
"o utilismo, que nada maia contém, nada maia expressa além do
imperativo de não se fazer da natureza um objeto de pensamento, da
contemplação, mas sim da utilização, do aproveitamento"97 .
Contudo, o homem jamais esqueceria a sua estada no
Éden98 . Banido deste por causa de um animal ardiloso,
buscaria nos periodos seguintes, da sua existência terrena,
recuperá-lo, redescobri-lo. A imagem do Éden suscitava
96 BOTTÉRO, Jean, op. cit-, p. 232. ,
97 FEUERBACH, Ludwig, op. cit-, p. 158.
98 Conforme observa Heinberg: "o mundo ocidental tem uma herança de pelo menos cinco
tradições, aparentemente independentes, de um Paraíso original: o jardim do Éden Hebraico,
o Dilmun sumeriano, o Jardim iraniano de Yima, Tep Zepi egípcio e a Idade de Ouro grega",
sendo que o termo "Éden" significa para os sumariados "planície fértil", sentido similar
aquele utilizado na Bíblia. Para uma análise mais profunda sobre o tema ver HEINBERG,
Richard, op. cit-, pp. 50-53.
67
reflexões que tendiam, via de regra, a tornar cada vez mais
a natureza um objeto a ser aproveitado.
0 periodo medieval e seus pensadores religiosos, direta
ou indiretamente, realizaram reflexões sobre a possibilidade
de ascensão a um jardim edênico, não só para uma comunidade
judaico-cristã, mas também para uma comunidade ecuménica.
Se a Idade Média consolida por um lado o cristianismo e
seus dogmas advindos do judaismo, por outro realiza a fusão
da herança greco-romana com o cristianismo/ que moldaria a
civilização ocidental.
0 pensadores cristãos, articulando a relação da razão
com a fé, entendia que esta última proporcionava
conhecimento e sabedoria superior à razão filosófica, pois
esta era produto da mente humana, enquanto aquela era
oriunda do próprio Deus, que com seu poder infinito
conseguia chegar ao conhecimento das verdades fundamentais.
Apesar das repetidas tentativas de sobreposição da fé à
razão, a querela entre os dois meios de acesso ao
conhecimento continuaram a ser objeto de estudo de
religiosos e filósofos cada um deles tentando justificar se
o conhecimento provinha da fé ou da razão.
68
Santo Agostinho (354-430), um dos representantes
marcantes desse momento, foi o primeiro a viabilizar a
efetivação de um sistema de pensamento cristão, a partir da
releitura da filosofia platónica. Concebendo que a razão era
um dos estágios preparativos para o ato de fé, Agostinho
almejou entender e explicar a razão em função das verdades
reveladas.
Santo Agostinho retoma o tema da criação, vinculando a
versão apresentada pela Biblia com o pensamento helénico, a
fim de resolver o problema que, segundo ele, era o mais
importante para o homem: a sua felicidade. Imbuido do
pensamento neoplatônico e preocupado em responder o
vir-a-ser da matéria, enquanto forma, através de um processo
de mutabilidade, nem sempre visivel, o bispo de Hipona
reforça a idéia de que o mundo não era coeterno à existência
divina, sendo criado por este. Na sua obra, Confissões,
redigida em 398, propõe com sua análise uma interpretação
única, afirmando que:
"É verdade que Vós [Deus], origem de todas as coisas, fizestes não
só o que foi criado e formado, mas também o que é criável e
formável. Finalmente é verdade que tudo o que se forma do informe e,
ao principio, informe e só depois é que recebem forma"99 .
99 Santo Agostinho, São Paulo, Nova Cultural, 1989, p. 246.
69
As leituras de Santo Agostinho, propondo um monoteísmo
profundo, opunham de maneira clara o homem ao mundo natural.
Dessacralizando os elementos naturais, a proposta
agostiniana os reduzia a uma insignificância. A natureza não
deveria ser objeto de conhecimento, pois não era digna de
ser pesquisada. 0 desejo humano de conhecimento deveria
dirigir-se ao conhecimento do criador e da fé católica, fim
último de toda a reflexão, pois a vida terrena, com suas
riquezas materiais tende a fazer com que o homem se volte
para uma existência pragmática, sem se preocupar com o lado
espiritual100 .
A recuperação da obra Aristotélica, pela civilização
ocidental entre os séculos XI e XII, fez com que as
reflexões entre a razão e a fé fossem revistas. 0 pensamento
aristotélico, negando a criação do mundo por um ente divino,
assim como a imortalidade da alma, tão defendida por Platão
nos seus escritos, obrigou a filosofia cristã a reformular a
sua cosmovisão que surgiria de maneira mais elaborada com a
escolástica.
A escolástica tentou unir a razão à religião, buscando
sintetizar a racionalidade aristotélica e os ensinamentos
100 ibidem, p. 235-288. Ver sobre a obra de Santo Agostinho MARROU, Henry e BONNARDIERE,
A. M., Santo Agostinho e o Agostinismo, Tradução de Ruy Flores Lopes, Rio de Janeiro,
Agir, 1957.
70
cristãos de forma a comprovar que não eram excludentes, mas
sim congruentes. Os filósofos muçulmanos que iniciaram a
dificil tarefa de conciliação destas duas partes,
posteriormente seguida pelos escolásticos, se utilizaram do
pensamento racional de Aristóteles para justificar o primado
da fé, fortalecendo-o, entendendo que a razão deveria ser
guiada por ela.
Tomás de Aquino (1225-1274), de maneira mais bem
elaborada que os demais pensadores da sua época, através de
sua obra, Suma Teológica defendeu uma harmonia intrínseca
entre a razão e a fé, entendendo que na fase terrena do
homem, este deveria deixar que sua fé guiasse a razão, pois
com isto atingiria a felicidade, e no céu ganharia o
conhecimento pleno. Para Tómas de Aquino, Deus era a causa
primeira e o fim último de todos os homens; estes não
deveriam sobrepor a razão à doutrina , pois a razão nada
mais era do que um elemento facilitador para esclarecimento
dos dogmas revelados. Sua proposta apontava para uma
conciliação frente ao pensamento helénico, na Europa
Ocidental, a partir do século XII, deflagrado pelo
humanismo, que indagava o primado da Igreja e da religião em
todas as esferas da sociedade.
71
Este movimento questionador foi impulsionado também pelo
desenvolvimento comercial que alimentava a convicção de que
a relação com Deus residia no comportamento do indivíduo na
sua condição terrena.
Essa alteração profunda, no âmbito intelectual e também
no cenário económico com o renascimento comercial, fez com
que uma nova consciência religiosa surgisse
progressivamente. 0 homem era um ser pecador, e o pecado
residia em cada um. Cabia-lhe discernir e libertar-se da
mácula que contraíra buscando reencontrar-se e alcançar a
luz divina. Assim, Duby afirma que cada vez mais, durante a
Idade Média, Deus vai assumindo a associação com a luz; luz
irradiada de Deus sobre as criaturas, que une matéria e
espírito, através da graça divina. Os novos teólogos
medievais: "Vêem a criação como uma incandescência
procedente de uma fonte única, uma luz que chama à
existência, de degrau em degrau, as criaturas; e refletindo
em cada elo dessa mesma corrente hierarquizada, a luz, desde
os confins tenebrosos do cosmos, volta à origem que é
Deus"101 . 0 homem procura libertar-se das amarras terrenas
que a Igreja lhe impunha, almej ando uma transcendência
divina maior do que aquela até então professada pela Sé
Católica. Subindo os degraus de uma escada, por vezes
101 DUBY, George, A Earopa na Idade Média, p. 4 9.
tortuosa, o ser humano caminhava em direção à fonte de luz
emanada pelo criador que clareava a sua existência e
permitia a evolução material humana.
Para o cristianismo a ordem do meio natural, ou do
Universo criado, estava diretamente ligada a uma
estruturação da sociedade de forma ordenada, que se
consolidou no periodo medieval. A criação teológica que
identificava Deus como um construtor, o grande artesão do
mundo, imperou nas elaborações mentais que buscaram reunir o
homem e Deus para um retorno ao estágio primordial da vida
na Terra, onde a natureza é vista como extensão da vida
humana102 .
Recuperando o simbolismo emblemático da natureza na
Idade Média o pensamento cristão resgatará principalmente a
imagem do Éden, paraiso terrestre original perdido, simbolo
da esperança e da salvação, delineado no Génesis como
contraponto de um mundo visivel, onde as imagens infernais e
as vicissitudes impostas ao homem preponderavam. Este tema
fora resgatado por Agostinho e Tomás de Aquino103 .
102 Ver BLOCH, Marc, "Maneiras de sentir e pensar" in A Sociedade Feudal, Lisboa, Ed. 70,
pp. 90-105.
103 HOLANDA, Sérgio B., op. cit-, p. 174.
73
Os parcos meios para a exploração da natureza, as
colheitas deficientes, o trabalho árduo, a miséria e a fome
criaram um meio propicio para a busca de um paraiso
terrestre; "um paraíso de delícias"104 , em que a abundância
de recursos vegetais, animais e minerais permitiriam uma
vida tranquila, sugerido pelo próprio texto biblico105 .
Imagens de um jardim do Éden, idealizado pelo homem, povoam
o imaginário europeu que concebe este espaço dentro de uma
"geografia visionária", que em termos fisicos é uma sintese
da literatura clássica e das narrativas biblicas106 . Uma
natureza abundante, repleta de árvores frutíferas, rios,
fontes e lagos com água limpida, paisagens verdej antes
entoadas pelos cantos dos pássaros era o quadro edênico a
ser conquistado107
Todavia, esse paraiso não foi encontrado no território
europeu. Os únicos espaços com caracteristicas próximas de
um paraiso para os homens daquele tempo eram os núcleos
habitados e cultivados, cercados, sinais de segurança e
descanso após as árduas travessias tão comuns naqueles idos.
104 Gên. 2,8-14.
105 Gên. 2,7-17.
106 HOLANDA, Sérgio B-, op. cit., p. 16.
107 As representações do Paraíso foram as mais variadas possíveis no período medieval,
sendo este identificado ora, numa ilha, ora em terra firme, sempre associado com a imagem
de inacessível por barreiras naturais, água e fogo; montanhas intransponíveis; animais
perigosos. Ver KAPPLER, Claude Monstros, Demónios e Encantamentos no Fim da Idade Média.,
p. 34, e HOLLANDA, Sérgio B., op. cit., pp. 15-34 e 185-246.
1b
Para além dos cercados, encontravam-se as florestas, a
natureza hostil não cultivada, vasta por excelência, e
ameaçadora pela grandeza e perigos iminentes.
0 homem medieval entendia que o acesso ao momento da
origem do mundo era possivel, e as primeiras descobertas
acenavam como manifestações do sagrado, neste sentido. 0
paraiso existia e estava separado do território europeu. Tal
como a separação que Deus fez com as águas da Terra, no
primórdio da humanidade, as novas terras também tinham sido
separadas por Deus; as descobertas eram o significado de um
começo, ou recomeço, uma nova ordem que o ente divino
concedia aos mortais.
As descobertas maritimas, ao mesmo tempo que marcaram o
crescimento e fortalecimento da burguesia comercial, e dos
Estados Nacionais, na sua avidez pela expansão, na busca de
novos mercados, são responsáveis pela propagação continua do
simbolismo cristão acerca do Éden, bem como de uma visão de
mundo egoista e utilitária que se intensifica, após as
descobertas de riquezas no Oriente. Conforme destaca
0'Gorman, ao analisar a conjuntura dos descobrimentos
maritimos:
"O conceito básico para entender a fundo a imagem que se tinha do
universo em tempos de Colombo é o de haver sido criado ex nihilo por
Deus.
75
Dado que esta era a sua origem, se lhe atribuem as seguintes notas
caracteristicas: é finito, pois de outro modo se confundiria com
Deus; é perfeito, pois é obra de Deus; perfeito que é, tudo nele já
está feito de forma inalterável e de acordo com um modelo
arquetipico e único e, finalmente, o universo é de Deus e para Deus,
pois foi criado pela sua bondade infinita, mas com testemunho da sua
onipotência e glória. Nada, pois, no universo pertence ao homem, nem
mesmo a porção que habita e será sacrilégio toda tentativa que
prejudique essa soberania divina"108 .
Neste Universo de Deus para Deus e por extensão ao homem
como duplo do divino, cabia-lhe utilizar da bondade daquele
que lhe era ofertada com o reconhecimento do mundo.
Utilizando-se da natureza, o ser humano defendia a soberania
divina, pois como conclui Turner:
"na era das explorações marítimas, os cristãos de todas as
nacionalidades e seitas compartilhavam a concepção de que a terra
era uma coisa criada divinamente para o usufruto, a edificação e o
lucro do homem"109 .
A origem que é resgatada por ocasião das descobertas
remete diretamente à criação universal, em que a lógica e o
mundo eram tão desconhecidos quanto o Novo Mundo. Ginzburg,
resgatando a memória do moleiro Menocchio, aponta para esta
permanência e permite-nos compreender que a cosmogonia é um
dos temas centrais da problemática cultural dos Quinhentos.
Menocchio, quando questionado pelo Santo Oficio, deixa
transparecer de forma plena o imbricamento de idéias sobre a
origem do mundo, sobreposições do resgate humanista dos
108 O'GORMAN, Edmundo, op. cit., p. 72.
109 TURNER, Frederick, op. cit-, p. 109.
76
séculos anteriores combinados com o pensamento judaico-
cristão, que permite ao moleiro tecer a seguinte cosmogonia:
"Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto
é, terra, ar, água e fogos juntos, e de todo aquele volume em
movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito
do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A
santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre
todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa,
naquele mesmo momento, e foi feito senhor com quatro capitães:
Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. O tal Lúcifer quis se fazer de
senhor, se comparando ao rei, que era a majestade de Deus, e por
causa dessa soberba Deus ordenou que fosse mandado embora do céu com
todos os seus seguidores e companhia. Esse Deus, depois, fez Adão e
Eva e o povo em enorme quantidade para encher os lugares dos anjos
expulsos. O povo não cumpria os mandamentos de Deus e ele mandou seu
filho, que foi preso e crucificado pelos judeus" 110 .
A composição "sui generis" do mundo, elaborada por
Menocchio, indica que a origem do mundo era concebida
através de analogias, metáforas e assimilações, sugeridas
pelo seu discurso, que tende a sistematizar o profano e o
sagrado no momento da criação. Muito mais vivido do que
pensado, tal condição aponta a passagem do Caos para o
Cosmos como uma transubstanciação do principio liquido para
o sólido, que o homem conseguia equacionar através do
empirismo que a sua existência terrena lhe fornecia. Esta
associação visivel partia do concreto para o abstrato e
respondia parcialmente a problemática existencial humana que
a Igreja tentava homogeneizar. Era uma imagem que convergia
110 GINZBURG, Cario, O queijo e os rermea, p. 46, ver também pp. 121-124.
77
para um denominador comum, o desejo latente de ascensão a
uma existência edênica. Imagem plena de vitalidade que
alimentava um bem-estar vital, almejado por uma população
sujeita às vicissitudes da existência no tempo.
As descobertas acenavam com um segundo momento da
criação universal, onde a reflexão sobre o principio e a
origem são relembrados mediante os novos reconhecimentos,
permitindo imagens tão proficuas como aquelas sugeridas por
Menocchio.
Para Holanda, é notável a importância do predomínio
deste pensamento. Em Visão do Paraíso, o autor ressalta as
peculiaridades da mentalidade espanhola e portuguesa,
imbuidas de um pensamento cristão tradicionalista, que 7
fundia a busca de riquezas e a propagação da fé cristã, com
o humanismo renascentista emergente, onde o pensamento
cientifico inicia sua estruturação. É neste sentido que Dias
adverte ao analisar a obra de Holanda:
"o mito do paraíso terrestre partilhava de dois mundos mutuamente
excludentes: o da religiosidade tradicional e do humanismo
renascentista, que visualizava uma redenção possível no próprio
mundo de todo dia. Com suas ambiguidades de sentido, foi transmitido
pelos textos eruditos da Igreja e penetrou na mentalidade popular do
fantástico e do maravilhoso"111 .
111 DIAS, Maria Odília, Sérgio Buarque de Holanda, São Paulo, Ática, 1985, p. 37.
78
A difusão da imagem de "um paraíso de delícias"
encontra-se disseminada pelo corpo social. 0 europeu,
incorporando a cientificidade do periodo humanista, revelava
a sua sede pelo ilimitado, nas suas visões a respeito das
novas terras descobertas, em que o desconhecido abria campos
para a especulação sobre o maravilhoso. Holanda descreve
este estado de espirito como "uma psicose", afirmando que:
"Essa psicose do maravilhoso não se impunha só à singeleza e
credulidade da gente popular. A idéia de que do outro lado do Mar,
Oceano se acharia, se não o verdadeiro Paraiso Terreal, sem dúvida
um simile em tudo digno dele, perseguia, com pequenas diferenças, a
todos os espíritos. A imagem daquele jardim fixada através dos
tempos em formas rígidas, quase invariáveis, compêndio de concepções
bíblicas e idealizações pagãs, não se podia separar da suspeita de
que essa miragem devesse ganhar corpo num hemisfério ainda
inexplorado, que os descobridores costumavam tingir da cor do sonho.
E a suspeita conseguia impor-se até mesmo ao mais discreto e
atilados, àqueles cujo espirito se formara no convívio assíduo com
os autores da Antiguidade"112 .
A imagem do Paraíso, mais presente e real do que as
terras longínquas conhecidas por alguns viajantes, povoa um
imaginário propenso à ilusão. A coerência das imagens de
reconhecimento provinha de uma coesão do progresso material
da sociedade com o pensamento cristão. 0 imaginário ao nivel
espiritual, sugestionando as descobertas geográficas,
inseria-se num universo de imagens sonhadas que, se por um
lado confirmaram a magnitude divina, por outro,
desestruturavam, no âmbito do conhecimento cientifico, os
112 HOLANDA, Sérgio B., op. cit., p. 184.
Ga
erros que os mapas antigos e medievais tinham consagrado. A
idéia de psicose de um Paraiso terreal, apresentada por
Holanda, enquanto uma lembrança mitica da história da
humanidade que povoa a mentalidade européia, permite
entender o contexto das descobertas em função de uma
reflexão sobre a origem do ser humano.
Os primeiros relatos das descobertas da América
invadiram a Europa com uma intensidade acentuada. 0 Novo
Mundo povoava o imaginário com representações idilicas, em
que a riqueza e o não trabalho preponderavam, provocando um
frenesi que impulsionava uma grande movimentação de
indivíduos pelo mundo. Em expedições incertas buscavam as
novas terras para obter as riquezas sonhadas.
A maioria dos relatos, numa visão claramente utilitária
do mundo natural, destacava as propriedades produtivas dos
novos espaços, paisagens bucólicas, fauna e flora
abundantes, variadas e exóticas. E as representações criadas
proporcionavam uma aproximação com a idéia de paraiso
terrestre de abundância e riqueza, cuja obtenção não
requeria grande esforço humano.
Neste contexto de movimentações pelo mundo, encontramos
os jesuítas, navegantes da fé por terras desconhecidas, em
80
expedições incertas por terras que, na maioria das vezes,
lhes eram estranhas. Buscando as novas terras com o fito de
realizar a propagação dos dogmas católicos, para converter
os infiéis, seus relatos, talvez com mais clareza que os
demais produzidos naquele periodo, refletiam uma visão
utilitária da natureza, ora perto do paraiso, ora perto do
inferno. As miragens e imagens do mundo natural povoaram a
imaginação dos companheiros de Jesus e refletiriam a
pluralidade simbólica e cultural daquele periodo que
pretendemos analisar nas páginas seguintes.
81
CAPÍTULO II
TRANSFORMAÇÕES NO "ORBIS CHRISTIANUS"
0 mito é o nada que é tudo.
0 mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Fernando Pessoa - Mensagem
82
1 - A IGREJA CATÓLICA NO LIMIAR DO SÉCULO XVI
Alma de Cristo, santificai-me.
Corpo de Cristo, salvai-me.
Sangue de Cristo, inebriai-me
Água do lado de Cristo, lavai-me
Paixão de Cristo, confortai-me
ó bom Jesus, ouvi-me.
Alma de Cristo - (Anima Christi)
A sistematização das idéias sobre a existência humana e
administrativa da Igreja Católica Ocidental foi iniciada
ainda no periodo final do império romano. 0 apóstolo Paulo
(5-67 A.D.)1 , atuando junto ao gentio, na Bacia do
Mediterrâneo, logo após a morte de Cristo, consolidou a
autonomia do cristianismo em relação à religião judaica,
sendo ele o
"primeiro que percebeu a relação entre os eventos registrados no
Velho Testamento e os fatos da pregação de Cristo"2 .
i Ver: DANIEL-ROPS - "tta arauto do Espirito: São Paulo" in A Igreja dos Apóstolos e dos
Mártires, pp. 56-103.
2 TURNER, Frederick, op. cit., p. 199. É conveniente destacar que o cristianismo foi, a
priori, uma seita dentro do judaísmo. Sua proposta tendeu a defender uma estrutura menos
rígida que aquela da religião judaica e das demais seitas. Pode-se afirmar que o
crescimento e desenvolvimento do cristianismo, nos anos seguintes, se deu justamente em
83
Esta dissociação significou a efetivação de um conjunto
simbólico-religioso distinto, com um ritual, uma cultura e
politica diferente daquelas do judaismo.
Os Evangelhos que surgem anunciando a Boa Nova às
comunidades cristãs são o produto de uma reflexão sobre o
ensinamento dos apóstolos, transmitido oralmente sobre o que
Jesus tinha feito e ensinado. A sistematização desta
tradição oral, feita a partir do ano 70 d. C., colocou por
escrito as narrações sobre as ações e palavras de Jesus.
Assim, cada um dos Evangelhos revela como cada uma das
diversas comunidades cristãs reflete a respeito de Jesus,
como o Salvador. As bases para ascensão do cristianismo
estavam lançadas. Faltava ainda atingir todas as partes do
mundo ocidental.
Após o conturbado inicio da Idade Média, reiteradas
tentativas de organização da Igreja Romana foram
empreendidas. Todavia, estas se perdiam numa obscuridade,
que em última instância dificultou a unificação da Igreja.
função desta capacidade de tolerância e assimilação de elementos externos de outras
seitas.
84
A Reforma Gregoriana (590-604) constituiu um passo
decisivo no processo de ordenamento da Igreja, na medida em
que apontou para a necessidade de uma recuperação do
espiritual, frente ao crescente relaxamento moral do clero e
da autoridade papal, viabilizando e consolidando a
centralização do poder religioso.
Ao defender as virtudes inerentes do sacerdócio
(retidão, pureza, misericórdia, humildade), e ao ressaltar a
conduta exemplar do sacerdote, como superior às das demais
camadas da população, advindas de sua preocupação interna,
que conferia autoridade às ações externas, a Reforma
Gregoriana procurou dar coesão a uma instituição dispersa. A
prática efetiva, junto ao corpo social deste movimento de
revitalização da Igreja, foi representada pelos monges
beneditinos de Cluny que buscaram desvincular a continua
influência da aristocracia nos assuntos seculares.
Sob a égide de Carlos Magno (768-814) é que se
processaram atos mais efetivos quanto à reorganização da
hierarquia eclesiástica, sistematização das leis canónicas e
dos dogmas cristãos; numa estrutura especifica, fruto de
sinodos e concilios, tentou-se dar à Igreja não só uma
85
estrutura coesa e fortalecida, mas sobretudo, um esteio
comum quanto à doutrina católica 3
Nesta fase vital, o alto clero agiu de maneira atuante
na reforma disciplinar do clero, almejando consolidar a
centralização do poder eclesiástico e afirmar a autoridade
da Igrej a Romana. Entretanto, os êxitos obtidos foram
pequenos e dispersos devido à grande autonomia dos
sacerdotes, em nivel regional, e às disputas constantes
entre os poderes temporal e secular, que impediram a coesão.
Esta só se delineou de maneira consistente com a reconquista
cristã dos séculos XI e XII.
As Cruzadas (1095-1291), enquanto marco da ampliação da
ação do catolicismo, sintetizam o esforço da civilização
cristã, unindo o poder religioso e temporal de forma
organizada e idealizada para regenerar a cristandade4 . 0
objetivo, porém, não era só a ampliação da fé católica, de
forma ofensiva e violenta, pela cristandade ocidental,
3 A importância de Carlos Magno para o catolicismo neste momento de reorganização da
política-administrativa da Europa e da Igreja é fundamental. Ver DUROSELLE, Jean-Baptiste.
Hisfcoire dtt Ca.tholici.siae. Paris, Presses Univ. de France, 1993, pp. 36-50. No que tange ao
Regulamentação da organização eclesiástica, o concílio de Nicéia determinou que o clero
deveria ser orientado pelos bispos das dioceses a qual pertenciam, e estes últimos eram
controladas pelos patriarcas nas capitais das províncias.
4 Na segunda metade do século VIII a cavalaria organiza-se como uma ordem, decorrência da
formação de uma classe guerreira privilegiada. A Igreja utiliza-se desta classe pelo poder
bélico-militar que representava atribuindo um caráter religioso a ordem na consecução da
expansão da fé católica e na manutenção de regras, que seria o modelo típico da
reconquista.
86
contra os muçulmanos, que marcou a tônica da relações dos
europeus com os demais povos. Concomitantemente, nota-se
sobretudo, que tais expedições visavam a atender aos
interesses comerciais prementes advindos do renascimento
comercial, que se processava ainda de forma embrionária.
A Cruzada, enquanto recurso para recuperar os locais do
passado sagrado e movimento regenerador da fé, serviu, em
última instância, como elemento difusor. Marcou de forma
ampla e profunda o imaginário europeu com a idéia dos
inimigos de Cristo, os quais deveriam ser destruídos
sumariamente pela sua nocividade, pois não professavam a fé
católica, nem adotavam o modelo cristão de conduta.
No século XII, com a entrada das unidades monetárias nas
relações comerciais, que ora se intensificavam, o sentimento
religioso assumia uma nova nuance decorrente de um controle
mais sistemático da Igreja. Abre-se espaço para a convicção
de que a salvação era obtida vivendo-se segundo preceitos
definidos. Conforme ressalta Duby, esta alteração
comportamental se deve a uma alteração na mentalidade
religiosa do periodo, afirmando que
87
"Do Apocalipse o olhar deslizou insensivelmente para os Atos dos
Apóstolos, para o evangelho buscando-se nessa parte da escritura
modelos de conduta "5 .
Esta construção de um modelo ideal de conduta visava a
concretizar a ascendência da instituição católica sobre a
sociedade, dentro de uma nova atitude para com o corpo
social. A atividade comercial rompia com a ordem tripartida
da sociedade impondo uma nova realidade e uma nova
ideologia, em que a atitude religiosa era individual. 0
homem era visto em função da demonstração de uma fé
religiosa nos atos que praticava cotidianamente. A fé
deixava a interioridade da mente para alcançar o horizonte
temporal, o homem era responsável pelos seus atos.
A nova estrutura da Sé Católica foi construída
lentamente e impôs à sociedade um padrão divino, que deveria
modelar todas as demais instituições sociais, segundo os
preceitos cristãos. A Igreja servia como identidade e
elemento aglutinador da sociedade européia ocidental,
especialmente da cristandade latina, a partir da criação da
liturgia romana e da efetivação das Cruzadas. Defendendo a
unicidade das tradições propostas pelo catolicismo, a Igreja
classificava como pagão e idólatra tudo aquilo que escapasse
às tradições, ou melhor dizendo, ao seu controle. 0 "Outro"
5 DUBY, George, op. cit., p. 41.
88
era por decorrência aquele que não pautava a sua conduta
conforme os preceitos do cristianismo.
Ciente da pluralidade de manifestações, que por vezes
poderiam conduzir a desvios maléficos à hierarquia e
instituições sociais, a Igreja canalizou todos os movimentos
espontâneos para a órbita da instituição eclesiástica, que
buscou organizá-los e em alguns casos tornava-os parte da
politica salvacionista da cristandade. Contudo, a Igrej a
Católica, apesar do seu papel dominador, chegou ao final
deste periodo com suas estruturas abaladas.
0 Renascimento humanista, na sua recuperação dos textos
e do pensamento antigo, revitalizou a vida cultural e
intelectual européia possibilitando a reflexão sobre novas
perspectivas religiosas objetivando retomar o cristianismo
original. Como bem destacou Holanda:
"com o próprio renascer das letras clássicas, o descobrimento do
mundo antigo, coincidindo o "descobrimento" do homem, de sua
dignidade própria e de suas virtualidades quase ilimitadas é, por um
lado, uma escola de otimismo, por outro,..., dava ocasião à maior
familiaridade com as idéias, já existentes no paganismo, do declínio
simultâneo da natureza e do gênero humano 6 .
Estimulando a curiosidade, através da experiência
empirica, o humanismo propiciou o questionamento da ordem do
6 HOLANDA, Sérgio B., op. cit., p. 193.
89
saber até então vigente, que seria alimentado pelas novas
descobertas, na medida em que estas trazem à tona a
fragilidade dos argumentos até então defendidos pela Igreja.
Deus, o universo, o homem, a natureza passam a ocupar um
novo espaço nas reflexões e investigações sobre o
conhecimento da existência humana 7
0 humanismo conduziu os leigos a um posicionamento
critico perante a Igreja. Sua proposta reformuladora
conseguiu amplitude dilatada e foi impulsionada pelas novas
técnicas a multiplicação de informações de uma maneira
espetacular. 0 alargamento da possibilidade de acesso aos
textos antigos e a febre de publicações que ocupavam todo o
século XVI, versando sobre as descobertas ou sobre as
melhores rotas, bem como as novas representações
cartográficas impulsionaram a novos trabalhos teóricos. Os
novos conhecimentos precisavam ser revitalizados, pois o
homem moderno deveria se adequar a uma nova realidade que o
desenvolvimento material lhe dava acesso. Uma nova
religiosidade se fazia necessária. Mais pragmática, menos
controladora e corrupta era o desejo expresso da maioria da
população européia.
7 MANDROU, Robert, Des hvmanistea avx homes de Science XVI et XVIII sieales, pp. 331-342.
90
O surgimento da devoção moderna, como afirma Mandrou,
revelava a necessidade de definir novas práticas religiosas
que atendessem o desejo de transformação imediata, norteando
uma vida simples que a obra de Kempis, L’imitation de Jésus-
Christ, enfatizava ao destacar a caridade, a simplicidade, a
humildade e a pureza como modelo para o homem8 .
Esta conjuntura de florescimento intelectual coincidiu
com o surgimento do sentimento nacional que, como destaca
Meihy,
"a medida que se definiam os Estados europeus, em termos políticos
principalmente, era derrubada a posição papal"9 .
Os monarcas europeus, com a ampliação do seu poder
politico e os grupos económicos locais fortalecidos pelo
crescimento mercantil, imbuidos do pensamento humanista,
identificaram a Igreja como um elemento inibidor do
desenvolvimento económico, pelas amarras nocivas que sua
influência impunha à atividade comercial.
Esta incompatibilidade de interesses agravou-se com a
necessidade de afirmar o poder do papado e da Igreja sobre o
temporal, o que conduziu inevitavelmente a uma luta entre a
8 ibidem, p. 54-59.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom, Os jesuítas, p. 22.
91
autoridade espiritual e as autoridades temporais. Deste
complexo processo de questionamento do papel da religião e
da instituição advieram rupturas que causaram o
desmembramento da Igreja.
As primeiras investidas sistematizadas à estrutura e ao
papel da Igreja, assim como ao poder papal, após o cisma do
Oriente, ocorreram já no inicio do século XIV, por ocasião
da crise económica e social que abrangeu toda a Europa,
provocada pela Guerra dos Cem Tinos e pela peste negra.
Conforme destaca Elton:
"A reforma da Igreja fora exigida de muitos lados pelo misticismo
dos fins da Idade Média, as exigências éticas o humanistas
platónicos, surtos revivalistas como o de Savonarola em Florença,
todos representavam diferentes manifestações do reconhecimento
generalizado de problemas e da decisão de os resolver"10 .
Os primeiros movimentos populares de revolta, que
evidenciaram problemas agudos da estrutura social vigente,
assumiram com frequência aspectos heréticos manifestando um
ódio latente pela autoridade e poderio económico da Igreja,
além de uma insatisfação pela ausência de moral e ética
dentro do quadro eclesiástico, numa conjuntura de crise,
onde a maior parte da população enfrentava situações de
extrema penúria.
10 ELTON, G. R., A Europa Durante a Reforma 1517-1559, p. 144.
92
A Sé Católica que sempre se colocara numa posição
defensiva contra aqueles que não respeitassem a verdade
divina, da qual ela era guardiã, combateu todas as crenças
que questionassem os dogmas cristãos. Mantendo uma postura
inflexível, a Igreja condenou todos aqueles que não
professavam a fé católica, que passaram a ser um empecilho à
consolidação de uma estrutura social cristã.
Os movimentos de tentativa de reforma das doutrinas e
práticas realizadas pela Igreja foram iniciados por John
Wycliffe, na Inglaterra, e John Huss, na Boémia; apesar
destes movimentos serem confinados no plano regional, ambos
revelavam um anseio da sociedade européia quanto ao
reordenamento de uma instituição ineficiente e corrupta 11
A Reforma protestante, iniciada pelo teólogo e ex-frade
Agostinho Martinho Lutero, no século XVI, enquanto parte
integrante de um processo amplo de questionamento, acentua o
crescente poder político e económico da Igreja, bem como a
sua interferência em questões temporais e o seu
distanciamento dos princípios espirituais e dogmas cristãos.
11 Sobre a crise dos séculos XIV e XV, sua origem, contexto e desdobramentos ver CHAUNU,
Plerre. O tempo das Reformas (1250-1550): a crise da cristandade, vol. I, pp. 181-240.
93
Lutero, quando começou em Wittenberg o seu curso de
Epistola de São Paulo aos romanos, era um brilhante
professor para a época. Ao analisar os textos do apóstolo
Paulo e de Santo Agostinho, concluiu que os atos humanos não
influenciavam diretamente na salvação do homem, argumentando
que o individuo poderia alcançar a salvação
independentemente da Igrej a, uma vez que a salvação é
produto de uma religiosidade pessoal, que tem por base a fé
em Deus, a qual faz com que o homem se torne justo e assim
obtenha a salvação12
A relação direta entre o homem e Deus, possivel através
do acesso às escrituras sagradas, permitia que o individuo
se arrependesse de seus pecados, confiando na misericórdia
divina que o conduziria à salvação. Com estas proposições,
Lutero criticou principalmente o papel da Igrej a e a
ascendência espiritual do papado e do clero, negando
importância a ambos como intermediários entre os homens e
Deus. Tal proposição expôs a fragilidade dos dogmas e
práticas religiosas cristãs revelando a necessidade de uma
reforma imediata da hierarquia e do papel social de cada um
dos membros religiosos.
12 No que se refere a Teoria e planos da Reforma protestante ver: CHAUNU, Pierre, op.
cit., vol. II, pp. 157-212.
94
A amplitude de penetração da proposta de Lutero, e as
suas implicações politicas económicas e sociais podem ser
constatadas pela difusão rápida das idéias luteranas por
toda a Europa, que contou com vários seguidores.
0 ideário protestante acrescido a fatores políticos, à
negligência e morosidade da Igreja (no que tange à reforma
interna) , o interesse económico dos principes e as
insatisfações da população permitiram a eclosão de diversos
movimentos que culminaram com o êxito do protestantismo. As
consequências imediatas destas movimentações foram, por um
lado, o enfraquecimento do poderio da Igreja na sociedade e,
por outro, o florescimento dos Estados modernos numa relação
de paridade com a Igreja 13 . Meihy, ao analisar as crises
desse momento, diferencia as consequências que se processam
na Igreja e nas elites, daquela que se processa em relação
ao povo, salientando que:
"as sérias crises que atingiram a Igreja era de unidade, autoridade
e de religião, marcando mais acentuadamente as elites intelectuais e
as camadas dirigentes. O povo, de um modo geral, participava mais da
crise de comportamentos. Nos indivíduos existia algo comum: a
insatisfação que induzia à busca de soluções "14 .
13 Duroselle afirma que: "pour que la réforme protestante réussit, deux conditions avaient
été nécessaires: Io - L'absence de réforme catholique - le concile du Latran (XVIIIe. o
ecuménique 1512-1517) n'ayant pris aucune mesure efficace; 2o - L'appui interesse des
princes: ceux-ci ayant au XVIe. siécle des besoins un mouvement qui leur permettait de
confisquer les biens ecclesiastiques". DUROSELLE, op. cit., p. 79. Ver também ELTON, op.
cit., pp. 113-140.
44 MEIHY, José Carlos Sebe Bom, op. cit., p. 22.
95
A frágil unidade religiosa da Europa sucumbia frente à
modernidade que se aproximava.
Simultaneamente ao processo de reforma trilhado pelos
protestantes, detecta-se uma preocupação da própria Igreja
Católica no sentido de manter o fervor religioso da maior
parte da população, que se encontrava numa crise
comportamental, inclusive os próprios membros da
instituição.
Era notória a decadência moral do clero ( em todos os
niveis ), as disputas entre ordens religiosas, a influência
do papado em assuntos leigos ( principalmente no que dizia
respeito à religiosidade), bem como à ignorância quanto à
prática dos oficios15 .
Enfim, a Igreja era considerada pelos próprios membros
que a constituíam, como uma instituição displicente e
distante dos interesses espirituais a que se propunha, sendo
urgente uma revitalização da organização face aos abalos
significativos que vinha sofrendo. Inicia-se, no corpo da
Igreja Católica, um processo de regeneração das práticas e
dogmas católicos, que foi impulsionado no final do século XV
15 HALE, J. R., op. cit., pp. 183-190. No que se refere a decadência do papel das ordens
mendicantes ver o sugestivo trabalho de MARC-BONNET, Henry, Hiatoire dtea Ordrea Reiigienx.
Paris, Presses Univ. de France, 1968, em especial pp. 62-71.
96
e inicio do século XVI, antes mesmo que a Reforma tivesse
causado sequelas profundas.
Os articuladores do movimento de reformulação católica
atacaram os mesmos pontos questionados pelos protestantes, a
fim de conseguir retomar a unidade e autoridade doutrinária
dentro dos escalões da Igreja e o seu controle sob a
sociedade. Elton observa que
"todos concordavam que a Igreja precisava de ser reformada, que os
abusos, especialmente na cúria papal, tinham de ser remediados e que
o tom mundano que rodeava o papado e a Igreja tinha de ser removido
pela prática de um puritanismo austero"16
0 poder pontifical, questionado e abalado, atuou de
maneira efetiva e decisiva no controle do protestantismo,
objetivando manter e fortalecer a sua própria autoridade
espiritual colocada em questão pelos diversos
reformadores 17
As ações tomadas provocaram um reordenamento da Igreja
levando ao surgimento de novas ordens monásticas ou à
reforma de ordens religiosas antigas 18 a fim de atender às
16 ELTON, G. R., op. cit., p. 148.
17 No que diz respeito a ação dos Papas no processo de Reforma Católica veja ELTON, G. R.,
op. cit., pp. 149-156.
18 As ordens religiosas desde o seu fundamento preocuparam-se com o equilíbrio da vida
religiosa com uma atividade prática temporal. Atuando no plano religioso com a
evangelização e no plano temporal dedicando a educação ao desbravamento de terras fundando
povoados. Contudo, como observa Elton "as velhas ordens tinham-se distinguido por um
97
novas exigências de uma sociedade que se desenvolvia
materialmente. Elas contribuíram diretamente para contenção
da difusão do ideário protestante, confirmando o poder
centralizador do papado. 0 humanismo impulsionou a Igreja a
um novo papel social. Menos hegemónica, mas sem dúvida com
uma presença intensa, quer no âmbito da educação, da
administração, justiça ou medicina, a Igreja adaptou-se para
continuar a ser a responsável pela formação de uma
intelectualidade religiosa atuante junto ao corpo social.
0 papado, utilizando de uma politica coercitiva para
restaurar o seu controle, resgatou a Inquisição, criada no
Concilio de Verona de 1183. A Inquisição tornou-se um dos
mecanismos de coação religiosa e politica, empreendidos pela
Igreja, para manter a unidade da fé, nas localidades onde
prevaleceu o aparelho judicial católico. Era uma reação de
recusa ao protestantismo, que se consubstanciaria de forma
definitiva nas decisões do Concilio de Trento, no qual uma
recente ordem religiosa assumiu papel fundamental de defesa
do cristianismo19 .
particularismo ostensivo: mesmo que, como os frades trabalhassem no mundo, não pertenciam
a ele, suavam roupas que os diferenciavam e eram cioso dos privilégios que os eximiam ao
controle da organização diocesana". ELTON, G. R., op. cit., p. 147. As ordens religiosas
que foram reformuladas mediante os acontecimentos do século XV foram: Ordem Fransciscana,
Ordem de São Domingos, Agostinianos trinásios, carmelitas e servos de Maria. MEIHY, José
Carlos Sebe Bom, op. cit-, pp. 27-28.
19 A reformulação da Igreja foi realizada pelo Concílio Ecuménico de Trento, iniciado em
13 de dezembro de 1545 e concluído em 1563, após várics períodos de interrupção.
98
0 Concilio de Trento concretizou: o posicionamento da
Igreja, perante os ataques que esta vinha sofrendo;
confirmou os dogmas católicos; enfatizou o seu papel junto
à educação e às atividades assistenciais, como decorrência
das práticas de caridade. Estas ações revelavam uma
reformulação que buscava sistematizar a posição da
instituição perante a sociedade, num claro sinal de
reconquista das posições perdidas com o avanço do
protestantismo.
As conclusões do Concilio Tridentino definiram: os
dogmas cristãos (a fé, a tradição, a salvação, a
interpretação da Biblia, os sacramentos, etc.); a reforma da
disciplina dentro do quadro eclesiástico e estruturação de
uma formação educacional (seminários) que orientasse os
padrões de conduta do clero, responsáveis, segundo a Igreja,
pelo afrouxamento da vida católica: elaboração do catecismo
romano e da revisão do Index librorum prohibitorum. A Igreja de
Roma objetivava reestruturar suas instituições, adequando-as
à nova conjuntura em transformação. Contudo, mantinha a
posição conservadora e pouco conciliatória frente às demais
religiões que surgiam.
99
0 papel de Companhia de Jesus foi decisivo no Concilio
de Trento. Responsável por um posicionamento conservador
frente às propostas de conciliação, a nova ordem buscou para
o revigoramento da fé católica o modelo do periodo inicial
do cristianismo adequando-o à nova conjuntura. Fundada com o
objetivo universalista de atuar na frente educacional e
assistencial, a Companhia foi responsável pela disseminação
dos princípios católicos e dos bons costumes cristãos. Suas
propostas adquiriram forma com o "Ratio atque institutio
studiorum societatis Jesu", do Padre Acquaviva, publicado em
1586, que codificou e estruturou a forma pela qual a ordem,
enquanto instituição escolar, desenvolvia e efetivava seu
controle social, auxiliada também pelas demais ordens já
existentes. A aclimatação da Igreja, segundo Silva Dias, é
processada por meio dos escombros, adequando-se à nova
realidade20 .
Este momento coincide com as descobertas marítimas que
revelavam ao mundo uma parte do globo, até então não
conhecida. O movimento de Reforma Católica dilata seu campo
de ação, e a cristianização do mundo é necessária,
principalmente daquelas populações distantes que não tiveram
oportunidade de ter consciência da existência de um Deus
cristão. Uma homogeneidade ideológica unindo espiritualmente
20 DIAS, J. S. da Silva, Os descobri mantos e a problemática cultuxal do século XVI, p. 38.
100
o mundo confirmava a ação divina que não atingia somente um
continente, mas todo o território espiritual do mundo21 .
Segundo Neves
"A "descoberta" de novas terras não seria o achamento de uma
Alteridade Total, de Outro ( uma séria de Outros ) e sim um
reencontro com regiões de Si que se teriam afastado física e
espiritualmente. A 'descoberta' é antes, um conhecimento das partes
até então dobradas, ocultas de um mesmo mapa já muito desenhado por
uma só Mão22 .
Afastamento ou descoberta, a única verdade concreta era
que a Igreja necessitava enquadrar a alteridade no discurso
biblico e nada mais convincente do que indicar uma dobradura
que separava a humanidade.
Em suma, as reivindicações da sociedade, acrescidas dos
movimentos da Reforma e Contra-Reforma, exteriorizaram o
anseio por uma vida mais igualitária, uma nova ordenação
social e natural igual àquela dos tempos primitivos do Éden.
A sociedade desejava uma existência próxima daquela
desfrutada no Paraiso. As imagens de uma situação idilica
estavam latentes, principalmente após os descobrimentos,
pois as partes "até então dobradas" são abertas, sendo que
no contexto da América portuguesa isto seria feito pelos
jesuitas.
21 NEVES, Luiz Felipe Baeta - O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios, p.
32.
22 ibidem, p. 32.
101
A natureza, dentro desta ótica, servia de cenário e meio
para as narrativas de desdobramento dos viajantes da fé, em
que o Novo Mundo era recolocado dentro do contexto edênico.
O desenvolvimento material impulsionava para novos
progressos, mas sofria o refluxo da mentalidade religiosa
que remetia à origem do mundo e inibia a penetração das
propostas humanistas mais radicais.
102
2 - A COMPANHIA DE JESUS: DE PARIS A SALVADOR
Nunca, com graça de Deus,
nos perturbaremos de nos chamarem ignorantes,
rudes falhos na linguagem, e até maus,
enganadores e volúveis. Mas doía-nos
dissessem não ser exata
a doutrina que pregamos e se julgasse
mau o caminho que trilhamos.
Inácio de Loyola -
Carta a Pedro Contarini (02/12/1538)
A Companhia de Jesus floresce dentro do processo de
reformulação religiosa do cristianismo, em que havia uma
necessidade de apoio à centralização da Igrej a,
principalmente da politica papal, da qual ela se tornou um
instrumento e um dos seus melhores sustentáculos23 .
Inigo de Onaz y Loyola24 , em conjunto com seis amigos25 ,
realizaram em 5 de agosto de 1534 o voto de Montmartre,
23 Brou conclui, com propriedade, qual é o papel dos jesuítas para o papado: "En somme,
ils jouaiente XVIe. siecle le rôleque, sous saint Grégoire VII, avaiente joué les moines
de Cluny, ils étaient les Instruments souples et dévoués de la papauté". BROU, A., La
Coag>agnze de Jésus, p. 56.
24 Inigo de Onaz e Loyola nasceu em 1491 filho de Beltrão Yanez de Onaz Loyola e de Marina
Saez de Licona. Pertencia à uma família nobre cortesã da província vasca. Órfão aos 16
anos é enviado para a corte espanhola para completar os seus estudos. Após a batalha de
103
dando inicio a uma união embrionária que resultaria numa das
mais importantes ordens religiosas do século XVI, a qual
atuaria de maneira decisiva no processo de reordenação da
Igreja, na Europa e no restante do mundo recém-conhecido.
Este pequeno grupo de jovens estudantes, reunido em
Paris, alimentava o anseio de servir a Deus, assim que
findassem os seus estudos. Retomando a Bíblia para moldar as
suas ações futuras, identificaram-se com o apóstolo Paulo,
difusor do cristianismo entre o gentio, que servira a Deus
com caridade e abnegação26
A identificação com o apóstolo Paulo não se dá somente
no que concerne à ação, mas sobretudo no diz respeito ao
Pamplona, onde é ferido, se converte. Em sua convalescença em Manresa, na Catalunha, entra
em contato com livros (tais como: a Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis;) que
inspirariam o reordenamento de sua vida e influenciariam no seus Exercícios Espiritoais
(redigido em 1522 e publicado pela primeira vez em 1548). Para vida de Inigo Onaz y Loyola
há sugestivos trabalhos feitos por membros da Companhia dentre eles destaco: DALMASES,
Cândido. Inácio de Loyola: fundador da Companhia de Jesus. Braga, Apostolado da Imprensa,
1984. BANGERT, William V., História da Coqpanhia de Jesus, tradução Joaquim dos Santos
Abranches. S.J., São Paulo: Loyola, 1985. LACOUTURE, Jean, Jésuites, Paris, Seuil, 2 vols.
1991.
25 São eles: Francisco Jaso y Javier, Simão Rodrigues de Azevedo, Pierre Favre, Nicolas
Bobadilla, Alfonso Salméron e Diego Laynez. Os dois últimos participaram ativamente nas
decisões do Concílio de Trento.
26 Inigo em carta ao seu irmão Martin Garcia de Onaz, em fim de junho de 1532, menciona
sua predileção pelo apóstolo Paulo como aquele que era identificado por ter tido uma vida
rebelde e cheia de desejos da conversão mencionado que: "veneramos, honramos e amamos mais
os Apóstolos do que a outros santos inferiores, porque mais e mais serviram, mais e mais
amaram a Deus N. S-, porque a caridade, sem a qual ninguém pode conseguir a vida, se diz
ser o amor com que amamos a Deus N. S. por si mesmo e a todas as criaturas por ele, mais
que o der de louvar a Deus em seus Santos, como diz o Salmista". CARDOSO, Armando, Cartas
de Santo Inácio de Loyola, vol. I, p. 20.
104
referencial utilizado. O apóstolo Paulo entendia que todos
os homens eram pecadores, condição que dá igualdade ao
gênero humano. O pecado advinha da ação adâmica no Génesis e
foi transmitida às gerações subsequentes. Jesus concretizara
o meio pelo qual Deus interveio na realidade terrena para
salvar suas criaturas da mácula do pecado original.
A morte na cruz simbolizava a redenção da humanidade e a
possibilidade da vida eterna após a morte. Jesus é, além do
Salvador, um meio pelo qual o homem poderia ascender e obter
a salvação. Os futuros fundadores da Companhia de Jesus
entendiam que o seu papel era o de facilitar e intermediar,
o processo em direção à salvação, para que o homem
conseguisse purificar-se.
Após deliberação, os sete companheiros entenderam que a
ação do grupo deveria ser dirigida à conversão dos
muçulmanos na Terra Santa, os maiores pecadores daqueles
idos. Visando a estreitar mais o vinculo de unidade entre
todos e a fortalecer a sua determinação, resolveram fazer
três votos: pobreza, castidade, obediência, além de
prometerem ir a Jerusalém. Se não fosse possivel cumprir
este último, iriam a Roma, pondo-se à disposição do
Papa 27
27 BANGERT, Wíllian, op. cit. p. 27.
105
Ante os entraves políticos que envolviam os príncipes
católicos e protestantes, o grupo saiu de Paris, dirigindo-
se a Veneza, para dali partirem em direção a Jerusalém e
realizarem a conversão dos mouros, a última de suas
promessas. Contudo, em consequência das sucessivas guerras
que assolavam a Europa, foram tolhidos pelas armas turcas
que impediram a continuidade da viagem28 . Tal conjuntura fez
com que aqueles se alocassem em Veneza e atuassem junto aos
hospitais da cidade, no auxílio ao tratamento de enfermos, o
que impediu a realização da peregrinação a Jerusalém29 .
A não concretização da última promessa levou o grupo a
confirmar o voto de obediência e sujeição ao Papa. Conforme
carta de Pierre Frave, primeiro sacerdote da Companhia de
Jesus, ao Dr. Diogo de Gouveia, principal do Colégio de
Santa Bárbara em Paris
"... todos nós os que estamos mutuamente ligados nesta Companhia nos
pusemos à disposição do Sumo Pontífice, como ao senhor de toda a
messe de Cristo; e com essa entrega mostrámos-lhe que estamos
preparados para tudo quanto ele decidir de nós em Cristo; se,
28 Carta do Doutor Diogo de Gouveia <o velho> a D. João III Rei de Portugal, in LEITE,
Serafim, Cartaa dos Primeiros Jesuítas, vol. I, p. 94.
29 Dr.Diogo de Gouveia em carta ao Rei de Portugal relata este momento assim se referindo:
"...sua tençam era quando daqui partirom, vai em 2 anos, de irem a Jerusalém nom soo polia
romaria maas pera verem se podiam converter mouros, e nom poderom passar por ha armada do
turquo fiaquaron em Italia onde lhe fazem muito gassalhado e esmola". Carta do Dr. Diogo
de Gouveia à D. João III. Paris, 17 de fevereiro 1538, BATAILLON, Mareei. "Un document
portuguais sur les origines de la Compagnie de Jesus." in - Etudes sur le Portugal au
temps de l'lmmanisn>e. Paris, Caloouste Gulbenkian, 1974, p. 108.
106
portanto ele nos mandar para onde chamais, iremos com gosto; e a
causa, por que assim nos sujeitamos ao seu parecer e vontade, foi
sabermos que ele possui maior conhecimento do que convém a toda a
Cristandade"30 .
Entre o voto de Montmartre e a autorização da criação e
aprovação do estatuto da Companhia de Jesus, o grupo atuou
em pregações e no exercício de lições sobre as escrituras
por diversas cidades, adquirindo a respeitabilidade da
população e dos membros do alto clero por guiarem
rigidamente a sua conduta pela vida de Cristo 31
Em 1538 é elaborado, por Inigo, um breve estatuto dos
princípios fundamentais da ordem, em que é delineada a
estrutura e a função de Jesus na Europa, que segundo seu
criador era marcada pelo
" seu espírito apostólico, tendo em vista primariamente o proveito
das almas na fé e na doutrina católica; a lealdade à Santa Sé,
expressa por um voto especial de ir a qualquer parte do mundo onde o
Papa os envie; o seu amor de pobreza, sacrificando o direito
individual à posse de quaisquer bens; a sua obediência pronta e
perseverante ao Geral; o sacrifício do canto em comum, tão belo e
tradicional, do Ofício Divino, com fim de poupar tempo para a acção
apostólica"32 .
30 Carta do Pe. Pedro Favro e Companheiros ao Dr. Diogo de Gouveia. Roma, 25 de novembro
de 1538, in LEITE, Serafim, op. cit-, vol. I, p. 98.
31 A imitação da vida de Cristo sempre guiou aqueles que objetivaram uma vida dedicada a
Deus. Francisco de Assis (1181-1226), é talvez, um dos exemplos mais marcantes de uma vida
regrada ao mesmo tempo que marca o rompimento com um tipo de vida monástica isolada da
sociedade e inaugurou uma vida de itinerante percorrendo aldeias e cidades, pregando e
auxiliando os menos favorecidos socialmente.
32 BANGERT, Willian, op. cit., p. 33. Esses princípios deram origem as Constituições da
Ordem Inaciana.
107
Este estatuto, submetido à apreciação dos cardeais,
recebeu a aprovação formal do Papa Paulo III, em 27 de
setembro de 1540, através da bula "Regimini militantis
Ecclesiae”, que reconhecia a Companhia de Jesus como ordem
religiosa33
O caráter diferencial da Companhia das demais ordens
religiosas já existentes era a sua recusa ao isolamento em
relação à sociedade. A ordem de Loyola pressupunha a sua
existência diretamente ligada às necessidades de uma ação
ampla de revigoramento espiritual, na qual os jesuitas, com
princípios interiores de vida espiritual, se identificavam
com as preocupações da humanidade, principalmente no que
dizia respeito à crise do comportamento das demais ordens.
Agindo como educadores, contribuíram sensivelmente para a
difusão do espirito cristão a fim de atingir a salvação de
33 A aprovação da Companhia foi condicionada a um limite máximo de sessenta membros
imposta pelo Cardeal Bartolomeo Guidiccioni. O Papa Paulo III suprimiu a restrição em 1544
e o Papa Júlio II, em 1550, confirma a Companhia de Jesus com a bula Exposcit debitnm.
BANGERT, William, op. cit., p. 34. Conforme observa Meihy o objetivo jesuítico constante
na Fórmula do Instituto, incluído na bula de aprovação era o seguinte: "qualquer um que,
na nossa Companhia, que desejamos seja assinalada com o nome de Jesus, quiser militar como
soldado de Deus, debaixo da bandeira da cruz e servir ao único Senhor e ao Romano
Pontífice, Vigário seu na terra, depois de fazer voto solene de castidade perpétua,
assente comigo que é membro de uma Companhia, sobretudo fundada para, de um modo
principal, procurar o proveito das almas, na vida e doutrina cristã propagar a fé, pela
pública pregação e ministério da palavra de Deus, pelos exercícios espirituais e obras de
caridade, e, nomeadamente ensinar aos meninos rudes as verdades do cristianismo, e
consolar espiritualmente os fiéis no tribunal da confissão; e tratar de ter sempre diante
dos olhos primeiro a Deus". MEIHY, José Carlos Sebe, op. cit., pp. 36-37.
108
toda a humanidade34 . Para Neves, a Companhia, quanto aos
seus objetivos
"dirige-se aos homens que iguais a si, objetivando transformá-los
para incorporá-los à cristandade"35
Este processo de mutação do homem ocorre dentro da
proposta inaciana, através da educação. Segundo os
pressupostos jesuíticos, o educador deveria trilhar as
necessidades dos alunos, considerando seu contexto
vivencial, a partir do qual poderia guiá-los, por meio de um
sistema pedagógico, a uma formação pragmática. Com isto os
educandos eram introduzidos no seio das evoluções que as
descobertas marítimas impunham aos espíritos
tradicionalistas, sem a perda dos valores cristãos, e
alcaçavam o objetivo principal36 .
A formação educacional ocupava o cerne das preocupações
das propostas para a expansão da fé e da conversão de toda a
humanidade; esta atenção já era demonstrada através dos
rígidos estudos impostos aos noviços da ordem, futuros
34 A Companhia de Jesus não foi a única ordem e atuar junto a sociedade nesse processo de
revigoramento Meihy, destaca que: "No século XV, inspirado por São Boaventura e São
Bernardo, iniciou-se um grande movimento de padres que percorriam as cidades, vilas e o
campo, sem hábitos solenes nem atitudes ostensivas pregando o evangelho e difundido o
espirito cristão". MEIHY, José Carlos Sebe B-, op. cit., p. 29.
35 NEVES, Luis Felipe B., op. cit., p. 45.
36 GUILLERMOU, Alain, op. cit., p. 19.
109
educadores, e consubstanciados pela construção de Colégios
jesuíticos, modelos das instituições de ensino modernas37 .
Outro aspecto que diferenciava a Companhia de Jesus das
demais ordens era a sua estrutura coesa e extremamente
hierarquizada em moldes militares38 , numa relação de
sujeição e obediência dos soldados (Irmãos) subalternos aos
seus chefes superiores. Este preceito era introjetado
durante a formação do noviço j esuita39 r através dos
questionamentos e ritos de passagem, pelos quais os
37 Guillermou afirma que: "La réussite du college de Messine encouragea vivemente Ignace
de Loyola. On peut dire qu'à partir de cette anéé 1548 toute nouvelle implantation
importante de la Compagnie dans le monde se traduit de maniere concrete para la fondation
d'un college. Et pour commercer, à concrete para la fondation d'un college. Et pour
commercer, à Rome même, fut inaugure en février 1551 de "College romain" que deviendra par
la suite une sorte d'école normale, à la fois modele pour les autres institutions et lieu
de rencontre et de confrontation des expériences diverses tentées par les pédagogues de la
Compagnie". GUILLERMOU, Alain, op. cit., p. 24. Leal delineia as concepções jesuítica
mais importantes sobre a educação: - direito da pessoa à educação e poder decisivo desta;
o valor educativo das línguas clássicas, a necessidade de preparação cuidadosa dos
docentes: - subordinação de todos os saberes à Teologia; reconhecimento da importância do
trabalho autónomo dos alunos; a pompa dos actos acadêmicos, com demonstração pública dos
alunos; ênfase na capacidade expressiva, verbal e literária dos alunos; os graus definiam-
se pelos estudos inferiores - compreendendo três classes: gramática, humanidades e
retórica - e estudos superiores - visando a formação filosófica e teológica. "A Conpanhia
de Jesus: Origens da Educação no Brasil", in Revista Portuguesa de Pedagogia, Coimbra,
1989, p. 63.
3 A Brou destaca que: "on parle tout de suite d'obéissance militaire quand il s'agit des
Jésuites, et l'on a raison, en somme, à condition de ne pas oublier que dans le régiment
recruté para Ignace, les chefs sont et restent peres, et que "l'esprit de corps" y est
surtout "esprit de famille". BROU, A-, op. cit., p. 35.
39 O período de noviciado para a entrada na Companhia era de dois anos, nas demais ordens
vigorava o período de um ano confirmado pela Igreja. Para se tornar um coadjutor
espiritual eram necessários 17 anos de estudos (2 anos como noviço, 9 anos como
escolástico, complementado com 5 anos de exercício em algum estabelecimento de ensino, e
mais um ano de noviço especial). Ver CHAMBOULEYRON, Rafael, Os lavradores de almas, p. 34.
110
iniciantes eram submetidos antes de se tornarem membros
professos.
Em contrapartida, como observou Mandrou, não . só a
sujeição e obediência constituíam o esteio da formação
jesuítica. Uma formação humanistica é fornecida aos noviços
nos colégios jesuíticos, constando no currículo do futuro
religioso, o conhecimento da lingua antiga e da filosofia;
um curso de teologia, seguido do estudo e prática de
predicações teológicas, sendo que ao final desta formação o
noviço estava capacitado a proferir o quarto e último voto
da Companhia e incorporar-se a ela definitivamente40 .
Em suma, pode-se afirmar que a Companhia de Jesus
simbolizava o sentimento de participação atuante da Igreja
junto à sociedade além de satisfazer a necessidade humana de
pertencer a um grupo, tão própria daquele momento histórico;
por outro lado, atendeu parcialmente aos anseios de uma
sociedade em processo de mudança. Mesclando conservadorismo
e humanismo, a ordem tornou-se um dos meios pelos quais a
Igreja atuou de forma marcante nos séculos seguintes.
A expansão e atuação da Companhia foi ascendente e se
espalhou principalmente após a eleição de Inácio de Loyola,
40 MANDROU, Robert, op. cit., p. 86.
'11V
como Geral da Companhia em 13 de abril de 1541 data em, que
consolida o inicio oficial da organização. A partir de então
os jesuitas atuaram em diversos trabalhos, exercendo
atividades diplomáticas para a Igreja Romana, desenvolvendo
e ampliando o ensino universitário, criando colégios para a
catequização e: conversão de infiéis, tanto em missões na
Europa como no estrangeiro41
Esta situação angariou, por vezes, a antipatia de
outras ordens e de membros da sociedade em que
atuavam, os quais identificam Inigo e seus companheiros como
w
...ignorantes, rudes, falhos de linguagem e até maus,
enganadores e volúvel'"12 .
A despeito das perseguições iniciais a Companhia de
Jesus conseguiu se estabelecer conquistando a
respeitabilidade que propiciou um crescimento rápido da
instituição. Portugal foi uma das nações onde a ordem
floresceu com maior intensidade, impulsionada pelo monarca
português D. João III.
41 A Companhia teve um crescimento significativo no número de componentes e de colégios
fundados. No que tange ao crescimento da Companhia de Jesus ver: MEIHY, op. cit., pp. 40-
41. Para a atuação da Companhia ver: BANGERT, op. cit., p. 35.
42 Carta de Inigo a Pedro Contarini, clérigo veneziar.o. Roma, 2 de dezembro de 1538,
cit., p. 65. Ver também carta de Inigo a Isabel Rosen. Roma, 19 de
CARDOSO, Armando, op. cit-,
dezembro de 1538. ibidem, p. 73 e carta de Inigo ao seu sobrinho Beltrão de Loyola, Roma,
fim de setembro de 1539, op. cit-, p. 75.
112
0 objetivo da ação jesuítica em Portugal e nas colónias
portuguesas foi destacado pelo Dr. Diogo de Gouveia (1471-
1557) que aconselhou ao rei português a solicitar a presença
dos jesuítas "polia grandíssima terra que tem descuberta e
necessidade que as taes tem de letrados" considerando que
estes sacerdotes eram os "mais autos pera converter toda a
índia"'' .
Em meados de agosto de 1539, D. João III solicitou a D.
Pedro Mascarenhas, embaixador de Portugal em Roma, que
certificasse as informações recebidas sobre a conduta
daqueles sacerdotes, e caso estas viessem a se confirmar, D.
Mascarenhas deveria empreender as providências para a
atuação em terras portuguesas e nas colónias lusitanas de
"certos clérigos letrados e homens de boa vida, os quays por
serviços de deus tinhão prometido proveza, e somente viverem polas
esmolas dos fieys christãos a que andam pregando por onde quer que
vão e fazem muito fruyto . . . (os quais estavam) detydos polo Papa
pera lhes ordenar o que havia por seu serviços que elles fizessem; e
sua tenção segundo se vee por esta carta hé converter infieys; e
dizem que, aprazendo ao santo Padre, a quem se são offrecidos, e sem
cujo mandado nam ham-de fazer nada, que elles yram à índia44 .
0 voto de obediência ao papa e a intenção dos jesuítas
em "converter infieys" nas terras longínquas, bem como o
43 Carta do Doutor Diogo de Gouveia <o velho> a D. João III Rei de Portugal, in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. I, p. 95.
44 Carta de D. João III a D. Pedro de Mascarenhas. Lisboa, 4 de agosto de 1539, LEITE,
Serafim, op. cit., vol. I, P- 103.
113
prestígio e admiração dos fiéis, pelo seu desprendimento
material e sua abnegação, levaram o monarca português a
aceitar os conselhos do Dr. Diogo de Gouveia, após a
confirmação, feita por D. Pedro Mascarenhas, da ação
virtuosa das pregações e exercícios que os jovens clérigos
praticavam. 0 suporte material e financeiro, fornecido pelo
coroa, para as despesas que os inacianos tivessem com
locomoção, assim como aquela referentes à manutenção destes
em terras portuguesas e nas colónias de além-mar, selaria
uma união que almej ava atender interesses temporais e
espirituais que se manteriam durante os séculos XVII e
XVIII.
Aliado a este fator havia no âmbito da política externa,
relações conflituosas de represália contra aqueles
navegantes estrangeiros ou nacionais que atacassem navios
portugueses ou se dirigissem às terras coloniais. Causando
grandes perdas às alfândegas da Coroa Portuguesa e solapando
os interesses económicos dos comerciantes alocados em
Portugal, os ataques de piratas e de outras nações
constituíam uma negação direta do monopólio ibérico, que
Portugal tentava administrar45 .
45 HOLANDA, Sérgio B. op. cit-, p. 77.
114
Deste modo, a preocupação latente com a necessidade dos
letrados religiosos para as colónias não se restringia
somente à educação e catequização dos povos encontrados. Dr.
Diogo Gouveia, atuante junto à corte francesa, vislumbrava a
ameaça dos interesses franceses sobre as possessões do rei
português, ressaltando de forma alarmante e patriótica a D.
João III, na referida carta, que "achara melhor de olhar as
cousas a vir que se lembrar das passadas". Esta afirmativa
que soava como uma profecia tenebrosa, é esclarecida pelo
teólogo, com a seguinte argumentação:
"Eu por vezes tenho dito a V.A. aquilo que me parecia acerca dos
negócios de França, e isto por ver por conecturas e aparências
grandes aquilo que podia suceder dos pontos mais aparentes, que
consigo traziam muito prejuízo ao Estado...E tudo se encerrava em
vós, Senhor, Trabalhardes com modos honestos de fazer que esta gente
não houvesse de entrar nem possuir coisa de vossas navegações, por o
grandíssimo dano que daí se podia seguir: a uma por eles serem
poderoso sobre o mar; a outra por V.A. ter muitas cousas, as quaes
não podiam guardar, até não serem fortalezas feitas nos lugares onde
elles podiam ir a resgatar; a outra que para elles ofenderem no mar
a El-Rei não poem hum só real, e V.A. há mister, pera defender,
tirar tudo da sua bolsa; e, tirando não sei se por agora se poderá
tudo guardar ou, se guardar, não sei se a derradeira passará o
proveito, que será fadiga se não olhasse ao tempo vir por o dano que
pode trazer" 46 .
Num claro sinal de preocupação temporal Dr. Gouveia
enfatiza o perigo, alertando com exemplos concretos que a
demora ou inação permitiria que navegantes, com grandes
recursos, pilhassem as embarcações portuguesas ou terras
46 Carta do Doutor Diogo Diogo de Gouveia <o velho> a D. João III Rei de Portugal, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol., I, pp. 89-90.
115
coloniais não habitadas regularmente, trazendo por
conseguinte perdas elevadas à coroa. Proposição sem dúvida
persuasiva, tendo em vista o risco a que estavam sujeitos os
interesses dos comerciantes portugueses, tais como as
investidas feitas por João Ango em 1530, que causaram uma
tensão entre as coroas lusitana e francesa.
O Tratado de Leão (1536), entre D. João II e Francisco I
de França (1515-1547), estabelecia uma trégua efémera entre
as duas coroas, ao confirmar que os portos de ambas as
nações eram declarados abertos sendo que qualquer ato de
pirataria receberia punição mútua aos infratores. As
investidas de corsários franceses nas colónias portuguesas,
dentre elas o Brasil nos idos de 1543, reavivaram as
celeumas nas relações entre as ambas que estariam longe de
serem resolvidas.
As ponderações do Dr. Gouveia são essencialmente de
cunho pragmático. Imbuidas de uma consciência comercial e
territorial expancionista, é possivel entrever que, apesar
da reforma religiosa, a Igreja continuava atenta à sociedade
e aos interesses politicos dos monarcas europeus,
principalmente no caso português, pois como detectou Silva
Dias:
116
"A nação portuguesa, pelos meados do século XVI, debatia-se com dois
problemas altamente complexos, no plano das relações internacionais:
a fundamentação da legitimidade da sua presença em terras do
ultramar, e a exclusão, com base em justo titulo, de outras
presenças europeias, nos espaços em que, de facto ou de direito,
exercíamos o nosso domínio"47
A penetração rápida dos jesuítas em Portugal48 deve
também ser vista em função de uma vida religiosa desregrada,
praticada pelo clero secular e pelo insuficiente
conhecimento que estes possuíam dos dogmas e práticas
cristãs. Aliado a este aspecto, havia um desejo da coroa
portuguesa de reordenação religiosa, após um longo período
de negligência e convivência com outras religiões e que
marcavam um posicionamento dúbio quanto à religião em terras
lusitanas.
Os reis portugueses resgataram a autoridade espiritual
do cristianismo, colocando-a ao seu serviço, pondo fim à
verdadeira "babilónia" religiosa em que se tornara Lisboa no
século XV49 . 0 passo marcante, nesse sentido, foi o
47 DIAS, J. S. da Silva, op. cit., p. 194.
48 A primeira expedição com destino à índia partiu de Lisboa em 7 de abril de 1541,
levando a bordo de uma das naus Francisco Xavier. Segundo, Bangert: "em 1544 a comunidade
da cidade universitária contava com quarenta e cinco membros". BANGERT, Willian, op. cit.,
p. 43. Este número é significativo tendo em vista o recém reconhecimento da ordem".
49 Costa Lobo observa que o reordenamento religioso é anterior ao governo de D. João III.
O fato marcante para este posicionamento é dado pelo rei D. Manuel I que em fins de 1496
publica um decreto que expulsa de Portugal "todos os judeus e mouros forros, sob pena de
morte natural e perda da fazenda em proveito do denunciador". No que tange a pluralidade
religiosa o autor destaca que "a intensidade do sentimento religioso não degenerava em
odiento fanatismo, na catedral o cristão elevava as preces ao Redentor, a curta distância,
a Sinagoga congregava os filhos de Israel; no lado oposto da cidade o alfaqui doutrinava
na mesquita os sequazes de Mahomet". LOBO, A. S. S. Costa, História da Sociedade em
117
estabelecimento da Inquisição em Portugal a 23 de maio de
1536 pelo Papa Paulo III, através da bula Cum ad nihil magis
com aquiescência do próprio D. João III, que permite a ação
dos tribunais da Inquisição em Évora, Lisboa e Coimbra. Esta
reordenação estrutural visava a atender à politica
centralizadora da coroa lusitana bem como os crescentes
interesses expancionistas.
Mediante este painel delineado acima, é que Portugal
assume importante papel na cristianização do mundo,
permitindo a Barreto afirmar que:
"A faceta de universal cristianização concede a Portugal um estatuto
religioso e positivo singular, porque é, ao mesmo tempo, o único
europeu-cristão mundializado e o único exemplar positivo europeu,
porque preocupado com o essencial da Europa, que é a vitória do
cristianismo"50 .
Portugal, identificando-se com guardião da cristandade,
via as suas conquistas permeadas por uma tradição de
reconquista árabe. 0 ideal de cruzada mantinha-se em dois
niveis: o temporal que entendia a colonização como
decorrência de um estado guerreiro; e o religioso,
representado pelo jesuita, onde a conversão era a luta
contra os inimigos da fé51 . Hoornaert nos seus estudos
Portugal no século XV, p. 33 e 129, respectivamente. Para uma melhor compreensão do
contexto religioso em Portugal ver p. 59, pp. 184-185.
50 BARRETO, Luis Felipe. Os descobrimentos e a ordem do Saber, p.39.
51 ibidem, p. 32.
118
salienta este caráter do messianismo guerreiro que, segundo
ele, pode ser identificado nas imagens de santos guerreiros,
amplamente difundidas neste periodo, que sintetizam a árdua
luta portuguesa na reconquista do seu território. São Jorge
e o castelo que recebe seu nome em Lisboa significam muito
mais do que um santo e um marco arquitetônico; eram o
simbolo concreto do triunfo guerreiro religioso português
contra os árabes e por decorrência contra o gentio das
terras americanas52 .
Apesar do papel vanguardista na universalização do
espiritual, Portugal, ao nivel temporal, não conseguiu
manter a sua frágil hegemonia comercial. Após um breve
periodo de consagração comercial a coroa lusitana volta a
rever as regras de estruturação e funcionamento do complexo
económico mercantilista em processo de decadência.
Portugal na terceira década do século XVI já não estava
mais em posição privilegiada no plano internacional. Os
custos, no que se refere a capital e material humano, com as
viagens à índia, e as operações guerreiras de dominação dos
territórios, mostraram-se muito elevados para uma nação
pequena, com uma exigua população e uma situação financeira
comprometida.
52 HOORNAERT, Eduardo - Formação do Catolicismo Brasileiro 1550-1800, p. 37.
119
Desde o início a expansão marítima portuguesa tinha se
realizado de maneira deficitária, agravando-se com a
necessidade de manter as exigências de manutenção,
funcionamento e defesa dos domínios portugueses. Novos
investimentos para a construção de guarnições militares e
armadas se tornaram cada vez mais inviáveis pois, diminuíam
de maneira acentuada os lucros das empresas comerciais, mola
mestra do mercantilismo.
Tornou-se impossível manter o monopólio do comércio
indiano, devido às debilidades financeiras internas e às
investidas constantes de outras nações européias no caminho
do comércio com as índias. Esta última situação provocou uma
oferta abundante dos produtos orientais no mercado europeu
e, conseqúentemente, uma queda dos preços das especiarias,
atingindo a base se sustentação da coroa portuguesa. A ruína
das finanças portuguesas, causadas pelo endividamento
crescente, bem como a incapacidade da coroa portuguesa em se
adequar às novas estruturas sociais e económicas, levaram a
nação lusa a buscar novas soluções, dentre as quais, a
colonização do Brasil que se apresentava como uma proposta
viável, uma vez que a colónia poderia oferecer lucros
120
idênticos aos proporcionados pelas colónias espanholas da
América53 .
Aliado ao fator de declinio, Portugal receava perder a
colónia brasileira para outras nações européias, pois esta
sua colónia era alvo de cobiça, como ressaltara o Dr. Diogo
de Gouveia, e de frequentes ataques de contrabandistas.
Cartas vindas da colónia americana já apontavam para as
investidas francesas nas terras coloniais. Piratas roubavam
os habitantes locais e ameaçavam a conquista americana pelos
colonos portugueses. Luis Góes, morador da Vila de Santos,
temeroso em relação à sua própria sobrevivência e dos demais
moradores da povoação, solicita a ajuda do rei D. João III,
em meados de 1548, arguindo:
"...ainda que nós [ habitantes da Vila de Santos ] percamos as vidas
e fazendas vossa Alteza perderá a terra, E que nisto perca pouco,
aventura perder muito, porque não está em mais de serem os
franceses Senhores dela em se acabarem de perder estas Capitanias
que ficam. .. "54 .
Este perigo ameaçador, por si só persuasivo, foi
acrescido de uma ponderação mais sensivel aos interesses
53 HOLANDA, Sérgio B. , A Época Colonial: do descobrimento à expansão territorial , tomo I,
São Paulo, Difel, 1976, pp. 89-103.
54 "Carta de Luis de Gôes, escripta da Villa de Santos a El-Rei D. João III, pedindo-lhe
que socorresse urgentemente as capitanias e o litoral do Brasil, para que a Coroa
Portuguesa não pedisse esta sua conquista americana"- de 12 de maio de 1548 - in
Documentos Interessantes XLVIII, São Paulo, 1929.
121
comerciais lusitanos, que era a iminência de ataques ao
comércio com as índias. Se a posse da Vila de Santos não
merecesse a atenção do monarca, ele deveria antever que a
posse da Ilha de Santa Helena, "paragens em que por força as
naus da índia vão ter", significaria a ameaça direta à base
de sustentação da coroa.
Para a metrópole a nova conjuntura apontava que era
interessante e fundamental conquistar e ocupar as terras
coloniais, para não perdê-las, mas para isto era necessário
ocupá-las produtivamente, ou seja, colonizá-las, sem gastos
elevados para a metrópole na ocupação do território
colonial, e se possivel, por risco e conta daqueles que se
aventurassem a tal empreitada.
As capitanias hereditárias concretizaram formalmente o
anseio da coroa portuguesa. Utilizaram o capital privado
para conhecimento da terra e apontaram propostas
economicamente viáveis, dentre as quais a economia
açucareira se apresentou como uma das mais promissoras.
Contudo, a participação da coroa nos lucros obtidos e
principalmente nos tributos cobrados foram mantidos.
Em suas colónias dos Açores e Madeira, Portugal já
possuia uma produção de açúcar, pequena mas lucrativa, que
122
não atendia mais a um mercado consumidor em franco
crescimento. As condições propicias para efetivar o plantio
na terra dos brasis possibilitou a exploração sistemática do
solo, dando inicio à monocultura em larga escala e com ela
as tentativas de colonização, feita pelos primeiros
donatários.
A estrutura económica açucareira organizou-se de maneira
a propiciar a máxima rentabilidade, de forma tal que viesse
a compensar os investimentos iniciais. Para a efetivação
deste plano, adotou-se o regime de grandes propriedades de
monoculturas, e escravistas, produtoras em larga escala de
açúcar destinado aos mercados externos55 .
Porém, o planejamento administrativo e politico da
colónia portuguesa eram deficientes, refletindo o
desinteresse económico dos primeiros anos. A distância que
separava a colónia da metrópole, aliada ao despreparo dos
funcionários da coroa, e O isolamento das capitanias entre
si fizeram com que ações e o modelo de administração de
capitanias hereditárias se tornassem inócuos quanto à
colonização, evidenciado pelo êxito de somente duas
capitanias (São Vicente e Recife).
55 Sobre o Assunto ver: NOVAIS, Fernando, Estrutura e Dinâmica do Antigo sistema Colonial,
São Paulo, Brasiliense, 1986. NOVAIS, Fernando, Portugal e Brasil na Crise do Antigo
sistema Colonial, São Paulo, Hucitec, 1988.
123 i
Face ao malogro das capitanias hereditárias, a monarquia
redirecionou a política de administração da colónia com a
criação do governo-geral que não substituía as capitanias,
mas sobrepunha-se a elas. A criação do governo-geral
respondia então aos interesses básicos da coroa que eram:
incentivar o desenvolvimento da economia açucareira e do
tráfico de escravos; estabelecer povoamento para defesa do
território, para que o desenvolvimento económico vingasse.
A vinda dos jesuítas para o Brasil coincide, e é parte
integrante do novo direcionamento da política económica e
administrativa portuguesa nas terras brasileiras. A economia
açucareira era um elemento motivador para que tal ação fosse
tomada, despontando como atividade altamente lucrativa. 0
sistema de produção regular, a fim de atender um mercado
europeu, em crescimento, justificava e exigia uma política
mais pragmática quanto às terras ainda devolutas no Novo
Mundo. A ocupação e o desenvolvimento da economia da cana-
de-açúcar acenava para a realeza lusa como uma fonte de
recursos certa e atrativa para um reino em crise.
Priorizando o lucro, a atividade produtiva apresentava-se
concentrada em uma região geográfica e nas mãos de uma
camada que a custos baixos proporcionaria riquezas ao
monarca e aos comerciantes lusitanos.
124
A exploração da cana-de-açúcar, voltada e atrelada aos
interesses do comércio europeu, foi o fio condutor e
norteador do processo de ocupação do território, que
atenderia de maneira satisfatória aos interesses mercantis
da coroa portuguesa e da camada mercantil que a apoiava. 0
projeto de colonização trouxe consigo um processo de
ocupação do território no qual o jesuita foi um elemento
chave na legitimação da posse da terra, conforme salienta
Meihy: "se colonizar significa cristianizar, os loiolanos
tornaram-se colonos porque missionários"56 .
Enquanto colonos, os jesuitas, percebiam não só a posse
da terra, como condição da expansão da fé e do
mercantilismo, mas principalmente a alteridade que o Novo
Mundo lhe revelava. Uma cultura e uma visão de natureza que
são registrados em suas cartas.
56 MEIHY, José Carlos Sebe B., op. cit., p. 58.
125
CAPÍTULO III
CARTAS JESUÍTICAS: ORDEM DO SABER E O SABER DA ORDEM
lo. Verei, com os olhos da imaginação,
os grandes fogos e as almas como
que em corpos incandescentes.
2o. Escutarei com os ouvidos, pranto, alaridos,
gritos, blasfêmias contra Cristo
e contra todos os seus santos.
3o. Sentirei com o olfato, o cheiro de fumo,
enxofre, imundice e podridão.
4o. Procurarei com o gosto saborear
coisas amargas, assim como lágrimas,
tristezas e o remorso da consciência.
5o. Tocarei com o sentido do tato
essas chamas, sentindo como elas envolvem
e abrasam as almas.
Meditação do Inferno
Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola
126
1 EM BUSCA DO ELO PERDIDO
Alguém que se crê abandonado lê
e dói-lhe que a página que quer
virar já está cortada,
que nem sequer ela precisa
mais dele.
Rua de mão única - Walter Benjamin
0 deslocamento dos jesuítas da Europa para as novas
terras apresentou-se como proposta de viagem ao
desconhecido, uma "jornada tão larga e perigosa //I . 0 fator
surpresa era a única certeza da qual não podiam esquivar-se.
As novas terras naqueles idos, antes de serem uma realidade
concreta, constituíam-se para a maior parte da população
européia como um local longínquo e imaginário que só um
grupo muito seleto de navegantes teve oportunidade de
experienciar. A evangelização das novas terras, neste
contexto, apresentava-se como algo totalmente novo e
desconhecido, tão desconhecido quanto a natureza das terras
americanas.
i Carta de D. Pedro Mascarenhas a D. João III. Roma, 10 de março de 1540, in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. I, p. 106.
127
Os primeiros jesuítas chegaram à povoação de Francisco
Pereira Coutinho (fundada em 1536), na Bahia, em 29 de março
de 1549, na esquadra de Tomé de Souza, e foram testemunhos
de um processo violento e dificil de conquista e defesa das
terras coloniais portuguesas por um aparelho administrativo
colonial ainda incipiente2 . No primeiro caso em relação aos
indígenas que dominavam a extensão das terras e se tornaram
um empecilho à efetivação do poderio colonial: e no segundo
em relação aos ataques constantes ao litoral da colónia, por
outras nações européias, ameaçando a perda das terras que
ainda não tinham sido efetivamente conquistadas.
Para Meihy, a atividade jesuítica no Brasil "teria que
atender a dois pontos fundamentais: aos propósitos da ordem
e à conversão do indígena"3 . Estes dois pontos sintetizam,
de maneira clara e objetiva, a diretriz que norteou o plano
de evangelização da América portuguesa, revelando uma
comunhão de interesses entre o plano espiritual e o plano
temporal, que transparecem claramente na produção escrita
empreendida pelos membros do aparelho administrativo aqui
2 Na primeira expedição vieram os Padres: Manuel da Nóbrega, Antônio Pires, Leonardo
Nunes, Juan de Azpilcueta Navarro e os Irmãos Vicente Rodrigues.
3 MEIHY, José Carlos Bom, A Presença do Brasil na Coapanhia de Jesus 1549-1649, op.
cit-, p.33.
128
alocados, bem como pelos próprios loiolanos, realizada
naquele periodo.
As cartas elaboradas e recebidas pelos primeiros
missionários residentes nas terras dos brasis constituem um
conjunto documental impar do periodo colonial brasileiro. As
cartas, ao relatarem as ações da Companhia de Jesus e o
desenvolvimento da instituição dentro do território colonial
português, durante o século XVI, permitem um conhecimento
não só da instituição religiosa, amplamente estudada por
diversos autores, mas também, e principalmente para a
história da cultura dos Quinhentos, uma fonte de informações
vastíssima sobre: a religiosidade do periodo; os usos e
costumes dos indios; a formação politico-administrativa da
colónia; o desenvolvimento económico; a política externa
portuguesa; o estudo das línguas brasílicas; além de uma
colaboração acentuada para as ciências naturais.
Numa conjuntura em que o analfabetismo preponderava, os
jesuítas se destacaram como responsáveis já na Europa, pela
formação educacional dos filhos das camadas mais abastadas,
e depositários de uma herança cultural que fundia a cultura
religiosa da Idade Média e o humanismo intelectual do
renascimento. Apesar de terem acesso a uma cultura, tida
como letrada, os jesuítas não devem ser vistos como parte de
129
uma cultura dominante que se contrapõe a uma cultura
dominada, mas sim, devem ser compreendidos como agentes
depositários de uma herança cultural comum a todos os homens
dos Quinhentos. Compartilhando dos elementos de uma cultura
erudita e de uma cultura popular, os primeiros missionários
eram canais para a circulação e combinação de tradições e
costumes religiosos com a sociedade4 .
No Brasil os loiolanos foram os primeiros a elaborar
relatos informativos periódicos sobre o desenvolvimento de
algumas vilas e aldeias onde atuavam, e por conseguinte,
foram responsáveis pelas elaborações mais detalhadas das
terras dos brasis, que até então fora somente objeto de
narrativas esparsas de viajantes5 . Realizando a integração
entre dois universos culturais dispares, estes sacerdotes
mesclaram na prática da catequização duas culturas que
diretamente se interagiam, apresentando uma decodificação do
Novo Mundo peculiar e distinta daquela produzida por
visitantes circunstanciais e representantes do aparelho
administrativo, assim como dos demais membros religiosos que
começavam a afluir para as novas terras.
4 Para o assunto ver: ROMEIRO, Adriana, Todos os Caminhos Levam ao Céu: relações entre
cultura popular e cultura erndita no Brasil do século XVI.
5 Os relatos informativos sobre as terras brasileiras no século XVI são: "A Carta de Pero
Vaz de Çavrínha" de Pero Vaz de Caminha; "Diário da Navegação" de Pero Lopes de Souza;
"História da Província de Santa Cruz a Que Vulgarmente Chamamos Brasil" de Pero de
Magalhães Gandavo e "Tratado Descritivo do Brasil em 1587" de Gabriel Soares de Sousa.
Sendo as duas últimas posteriores a chegada da Companhia de Jesus ao Brasil.
130
Os jesuítas e os demais colonos que habitavam a
conquista americana portuguesa eram os únicos elos de
ligação com uma cultura européia, tctalmente ausente na
terra dos brasis. Necessário se fazia construir, ou
reproduzir, nas terras tropicais, os modelos ausentes
europeus que serviriam como marcos transformadores e que
simbolizariam de fato a conquista. A construção do domínio
colonial português era, principalmente para o elemento
inaciano, a busca do elo perdido localizado no outro lado do
oceano, elo presente num imaginário religioso que aflora nos
primeiros escritos jesuíticos.
Relatos densos de informações e com um fervor religioso
exacerbado, as cartas revelam que seus autores
compartilhavam do universo cultural do período,
principalmente o da literatura do século XVI, onde se
combinavam o maravilhoso, exótico, e desconhecido com ideais
de lutas, conquistas e combates das Cruzadas, justificados
por um empreendimento cristão que objetivava a expansão da
fé católica.
O conteúdo das cartas j esuíticas não se limita a
retratar o dia-a-dia da Companhia de Jesus, na terra dos
brasis. Indiretamente os textos fazem transparecer o novo e
131
o deslumbramento que cada um dos autores experimentou com as
suas descobertas. A descrição de uma realidade escondida
revelava um olhar curioso que captava e unia dois mundos.
Silva Dias com muita astúcia soube enfatizar o caráter impar
dos relatos jesuiticos ao observar que
"não há nos jesuítas a menor tendência para dourar ou abafar
ressonância antropológica e ética das suas revelações. Procuram
mesmo, avolumá-la, no propósito evidente de fazer compreender
europeus a realidade social e moral de um selvagem da América"6 .
A primeira questão que surge, ao analisarmos a
correspondência ativa dos missionários loiolanos, se refere
à identificação de: Qual era a função das cartas dentro do
aparelho administrativo da Companhia de Jesus?
A distância que isolava os inacianos da sua sede central
em Roma exigiu que as comunicações se fizessem por via
escrita. Conforme orientação dos superiores da ordem, as
cartas deveriam ser elaboradas regularmente pelo Provincial
ou seu substituto. 0 conteúdo essencial destas é delineado
6 DIAS, J. S. da Silva, op. cit., p. 225.
7 Castello referindo-se as cartas afirma que: "Tal "literatura informativa", escrita sem
intenções literárias, como já vimos, só excepcionalmente apresentando trabalhos que
pressupunham um certo planejamento, visava essencialmente a informar os próprios elementos
da Companhia de Jesus o andamento e as condições da obra de catequese: a situação geral do
Brasil-Colônia, sua vida social e espiritual, as condições materiais dos núcleos de
catequização, condições de vida, de subsistência, de comunicações, os hábitos, costumes,
instituições, valores e tradições indígenas, conhecimento da língua nativa, dificuldades,
reveses e sucessos dos trabalhos de cristianização do indígena também relativos à
e
elevação moral, espiritual e intelectual do próprio colonizador. CASTELLO, José A-, A
Literatura Brasileira: ManxfGestações Literárias da Era Colonial (1500-1808/1838) , p. 54 .
132
segundo as diretrizes do Pe. Inácio de Loyola, em carta de
15 de agosto de 1553, ao Provincial Pe. Manoel de Nóbrega8 :
"En las letras mostrables se dirá en quantas partes ay residntia de
los de la Companhia, quantos ay en cada una, y en qué entienden,
tocando lo que haze a edificatión; asi mesmo cómo andan vestidos, de
qué es su comer y beber, y las camas en que duermen, y qué costa
haze cada uno dellos. También, quanto a la región esta, en qué
clima, a quantos grados, qué cómem etc.; qué casas tienen, y
quantas, según se dize, y que costumbres; quantos christianos puede
aver, quantos gentiles o moros; y finalmente, como a otros pro
curiosidade scriven muy particulares informaciones, asi se scrivan a
nuestro Padre, porque mehor sepa cómo se ha de proveer; y también
satisfazer-se ha a muchos senores principales, devotos, que querian
se scriviesse algo de lo que he dicho"9 .
Nesta ordenação percebe-se que as cartas faziam parte de
um sistema de comunicação interna da Companhia de Jesus com
interesses diversos e abrangentes, sendo reguladas por uma
sequência de procedimentos administrativos rigidos da ordem
e que atendiam a uma multiplicidade de funções da ação
jesuitica no seu contexto europeu. 0 objetivo principal era
a troca de informações precisas e regulares dos membros da
Companhia para com a sede em Roma, ao mesmo tempo que servia
de elo de união entre os membros da ordem.
8 Manuel de Nóbrega nasceu a 18 de outubro de 1517, em Portugal, onde realizou seus
estudos e se formou em Coimbra. Ingressou na Companhia a 21 de novembro de 1544. Foi
nomeado Prepósito Provincial da Companhia na América portuguesa, em carta de 9 de julho de
1553, do Pe. Inácio de Loyola, sendo seus atributos "inquirir, ordenar, reformar, inibir,
proibir, admitir na Companhia para aprovação, e afastar da mesma os que parecer bem,
prover em qualquer ofício e depor dele e, numa palavra, - para dispor de tudo com nós, se
estivéssemos presentes..."in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 509. Faleceu no Colégio
jesuítico do Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1570. Sobre o labor catequético de Manuel
da Nóbrega ver CHAMBOULEYRON, Rafael, Os lavradores de almas, pp. 63-91.
9 Carta do P. Juan Polanco por comissão do P. Inácio de Loyola, Roma, 15 de agosto de
1553, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 519.
133
A função primeira, e principal, era identificar se os
preceitos que norteavam o padrão de conduta e de moral da
ordem jesuitica estavam sendo devidamente praticados pelos
seus membros, principalmente no tocante ao voto de pobreza,
que era percebido através das condições materiais em que
viviam os jesuitas, bem como as práticas e ocupações que
realizavam para a propagação da fé cristã; haja vista a
orientação quanto à descrição das condições existenciais dos
sacerdotes como modelo edificante. Por outro lado, a
obrigatoriedade das cartas denunciavam uma fiscalização
rigida da Companhia sobre os seus membros. Os mecanismos de
controle da instituição demonstravam que os superiores da
ordem estiveram atentos à conduta moral de seus membros
de além-mar, pois a distância permitia uma autonomia não
desejável, tendo em vista a possibilidade de um
desregramento.
As cartas e relatórios quadrimestrais, além de
consubstanciarem os frutos obtidos e os anseios dos jesuitas
na conversão do gentio, refletem as preocupações latentes
com as condições e processo de catequização, e necessidade
da estruturação e ampliação da Companhia na conquista
portuguesa da América. Essa preocupação revela um interesse
edificante, não só da Ordem, mas da própria Igreja como um
134
todo, que se aliava às monarquias nacionais para a expansão
da fé cristã pelo mundo.
Ao analisar o balanço empreendido pela Igreja, da
qualidade e quantidade dos convertidos, Boxer destaca que:
"Pouco antes de deixar Malaca a caminho do Japão, em junho de 1549,
S. Francisco Xavier escreveu aos missionários jesuitas nas Molucas,
dando-lhes as diretrizes a seguir na correspondência com os seus
superiores na Europa. Deveriam escrever um relato pormenorizado do
trabalho de conversão, e que seja sobre assuntos edificantes; e
cuidado, não escrevam sobre assuntos que o não sejam... Lembrem-se
que muita gente vai ler essas cartas e assim devem ser escritas de
forma a que todos fiquem edificados"10 .
Edificar era o verbo que exprimia melhor a ação que unia
todos na relação com as terras americanas. Partindo do
pressuposto de que nada do que existia nas terras coloniais
era digno de ser mantido, a atenção se voltava para a
edificação. Construir uma sociedade, com homens ideais, com
sacerdotes padrões. Tudo convergia para a edificação que
começava pelos escritos.
A obrigatoriedade dos relatos revelavam-se como
ingrediente fundamental para a concretização de um
mandamento especial, que era o da obediência para com o
superior, que se sobrepunha em importância ao conteúdo da
missiva. Sem dúvida, edificar era nortear os comportamentos
10 BOXER, C.R. - A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770) , p. 118.
135
e agir no sentido de confirmar o frágil edifício da
cristandade ocidental.
0 jesuíta Manuel Alvares11 , consciente de seus deveres,
destaca o ato narrativo não pela sua obrigação, conforme
estabelece a ordem, mas sim pelo prazer que este lhe
proporcionava, assim se referindo à elaboração das cartas:
"não somente polia obrigação que tenho de o fazer por muytas vias, e
também por o Padre Doctor mo mandar, mas pelo grande gosto que eu
nisso levo me faz pronptíssimo pera o fazer"12 .
José de Anchieta13 , ciente da necessidade de cumprimento
dos requisitos impostos pela instituição, percebeu com
clareza que nem sempre havia "grande gosto" ou necessidade
de relatos sobre a conversão, e exteriorizou seu pensamento
ao Pe. Diego Laynes:
"EI ano passado de 61 en el mes de Júlio se escrivió largamente por
la 2* via en este mesmo navio, aviendo ya sido la primera embiada
por otro antes del. Mas este no pudo llegar por los vientos
contrários y por esso tomó a arribar. Lo que después acaescio
11 Manuel Alvares nasceu em Portugal no ano de 1526. Ingressou na Companhia em 2 de
outubro de 1549. Não se tem notícia de quando teria chegado ao Brasil. Em 1560 embarcou
para a índia, onde faleceu em 2 de junho de 1571 .
12 Carta de P. Manuel Alvares aos Padres e Irmãos de Coimbra, Baia, 4 de setembro de 1560,
in LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. 273.
13 José de Anchieta nasceu na Ilha de Tenerife em 19 de março de 1534. Entrou para a ordem
jesuítica em Io de maio de 1551 e embarcou para o Brasil em 1553. Ordenou-se sacerdote em
1566, e tornou-se professo em 8 de abril de 1577, sendo nomeado neste mesmo ano
Provincial, cargo que ocupou por dez anos. Faleceu no Espírito Santo a 9 de junho de 1597.
No que tange ao labor catequético de José de Anchieta ver CHAMBOULEYRON, Rafael, Os
lavradores de almas, pp. 92-121.
136
escrivire brevemente, más por complir con en mandamiento de la
saneta obediência que por aver cosa digna de ser escrita"14 .
A importância das cartas, para a eficácia da interação
das diversas casas da Companhia de Jesus, assumiu particular
destaque devido às várias missões espalhadas pelo mundo.
Isto fez com que a instituição se estruturasse de modo a
garantir um sistema controlador e eficiente de comunicação
entre as diversas localidades com Roma.
0 oficio de Secretário da Companhia, responsável pela
redação das cartas e relatórios, revela-nos esta latente
preocupação de viabilizar a comunicação de forma
controladora:
"al officio de Secretario pertence escrivir todas las cartas del Pe.
Provincial asi para personas de la Compania, como otras de fuera
delia, respondiendo o de otra manera; sacar extratos de las que
vienen, copiar en libros las que se embian. Acordar lo que se ha de
consultar, eznbiar las que se escriven, cobrar las que vienen, leer
al Padre las suyas e las más que él quiere, destribuir las de casa,
hazer que se eníbien las que son para personas de fuera. Ver las
quadrimestres y cartas de nuevas y las ordinárias de los collegios y
Provincias, quitar y anadir lo que parece, copiar y embiar las que
vienen de fuera, scilicet: a Roma a lo menos una via, cada Provincia
de Europa otra, a la índia tres o quatro, al Brasil otras tantas, a
Angola dos. Hazer instruciones y patentes a los que embian fuera,
copiar todo esto en livros"15 .
14 Carta do Irmão José de Anchieta ao P. Diego Laynes. Piratininga, março de 1562, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. 451. Ver também Carta do Irmão José de Anchieta ao
P. Diego Laynes. São Vicente, 16 de abril de 1565, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. III,
p. 546.
15 Informações dos oficios do P. Francisco Henriques. Lisboa, 8 de agosto de 1561, LEITE,
Serafim , op. cit., vol. III, pp. 384-385.
137
Os relatos funcionavam como controladores e modeladores
da conduta moral e abnegação a ser perseguido e imitado
pelos demais membros da Companhia, nas diversas regiões onde
estivessem presentes os membros da Companhia, conforme
salientara Francisco Xavier. 0 loiolano dizia que dava de si
antes mesmo de pensar em si próprio, adequando sua ação à
visão de que o sacerdócio e a prática de catequização eram
uma penitência colocada por Deus, enfrentada pelo jesuitas
todos os dias.
Para a efetivação destes intentos, as cartas deveriam
ser elaboradas com fatos essencialmente edificantes e com
uma acuidade religiosa que demonstrasse um equilíbrio e boa
ordem, não sendo rara a necessidade de reelaboração da carta
para que estes objetivos fossem atingidos, uma vez que a
palavra escrita era perene e por isso deveria ser precisa e
fiel. Após a chegada a Roma, as cartas eram compiladas e
enviadas aos demais membros da Companhia residentes nas mais
diversas partes do mundo. A missiva era por excelência
parte do processo de formação educacional e de consolo
espiritual para os jesuitas 16
16 0 P. Francisco de Borja na carta de 24 de fevereiro de 1566 delineia as diretrizes para
a visita do P. Inácio de Azevedo ao Brasil, visitador do Brasil, solicitando a estes que
"Lleve consigo copias de las ordenaciones que se han hecho estos meses passados acerca del
modo del escrevir, la forma de la casa de probación, del alargar la oratión, del andar
acompanados, y las demas;..." - Carta do P. Francisco de Borja ao P. Inácio de Azevedo.
Roma 24 de fevereiro de 1566, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. IV, p. 326.
138
A segunda função das cartas, já expressa na orientação
de Loyola, era a de identificar para os companheiros
inacianos a região onde atuavam, sua localização geográfica,
as tradições e costumes dos povos que a habitavam, tanto
cristãos como não cristãos, bem como a quantificação das
almas que poderiam ser convertidas. Dados etnológicos que
auxiliavam na estratégia da instituição e no mapeamento das
regiões, tinham por intuito informar quais eram as
possibilidades e dificuldades da atividade jesuitica e de
sua amplitude, ao mesmo tempo que denunciavam possiveis
irregularidades dos membros do corpo social que empreendiam
a ação catequizadora.
Por último, é interessante notar que o conteúdo dos
relatos escritos não se restringia ao âmbito dos membros da
Companhia. As informações também satisfaziam a curiosidade
da mentalidade européia que circundava os jesuitas. Por
vezes as cartas recebidas passavam ao dominio público que as
reproduziam e as espalhavam oralmente17 . Assim sendo,
verifica-se que a repercussão das cartas não se dá somente
dentro da ordem religiosa; ela possui os seus desdobramentos
17 Sem dúvida, o hábito de leituras em voz alta em locais públicos devem ter estimulado a
disseminação de informações sobre o Novo Mundo. Chartier destaca este hábito afirmando que
"Do século XVI ao século XVII, subsistem as leituras em voz alta, na taberna ou na
carruagem, no salão ou no café, na sociedade selecta ou na reunião doméstica". CHARTIER,
Roger - A história Cultural, p. 124.
139
para uma sociedade ansiosa por informações das terras
longínquas, ávida pelo desconhecido18 .
As cartas, em conjunto com as demais obras produzidas no
periodo, por alguns viajantes, constituem os relatos
informativos sobre as terras dos brasis mais próximos da
realidade, contribuindo para diminuir o erro das primeiras
informações, fortemente marcadas pela tônica do maravilhoso.
A produção escrita dos primeiros jesuitas tem o mérito de
aumentar e enriquecer o conjunto de experiências e
conhecimentos históricos, geográficos e naturais sobre o
mundo. 0 banco de dados do saber do universo dilata-se e
incorpora o novo, graças ao ideal de edificação cristã19 .
Os destinatários das cartas eram, na sua maioria,
membros da ordem inaciana, principalmente provinciais,
superiores e Irmãos residentes em colégios na Europa,
especialmente na cidade de Coimbra. As diferenças entre eles
eram muitas, mas o espirito da Companhia controlava a
diversidade canalizando para um modelo comum, pautado pela
religião católica.
18 A divulgação por meio extra oficiais das atividades da Companhia podem ser percebidas
através da Cartas de Santo Inácio, ver Cardoso, Armando, Caxtaa de Santo Inácio de Loyola,
São Paulo, Loyola, 2 vols-, 1988.
19 BARRETO, Luis Felipe, op. cit., p. 34.
140
A regularidade com que as cartas eram enviadas esteve
diretamente ligada à frequência com que as embarcações
partiam das terras brasileiras com destino a Portugal sendo,
segundo Nóbrega, prática comum "que não vá de cá navio sem
carta nossa, e isso mesmo deviam lá de usar, de mandarem
sempre por todos os navios alguma carta, para qualquer
destas capitanias que venha, porque em todas se achará que
as encaminhe à esta Bahia"20 .
Devido às vicissitudes a que estavam sujeitas as naus,
tais como naufrágios e ataques de piratas, foi prática comum
escrever diversas cópias de uma mesma carta, e enviá-las em
diversas embarcações como mencionou o Pe. Manuel Alvares21 .
Tal prática garantia a chegada dos relatos ao seu destino.
Contudo, as adversidades tão rotineiras dos Quinhentos
fizeram com que muitas cartas fossem refeitas com o intuito
de resgatar os textos perdidos, ou possivelmente
extraviados, devido às condições das viagens.
Pedro da Costa22 , cumprindo o encargo que a obediência
lhe atribuia, retoma o conteúdo de uma carta escrita por
Diogo Jacome, justificando que:
20 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Padre Miguel Torres, Baia, agosto de 1557, in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. II, p. 396.
21 Cf. nota 11.
22 Pedro Costa nasceu no Minho em 1529. Entrou para a Companhia em 1556 e faleceu na Bahia
a 26 de maio de 1616.
141
... parece que ainda lhes não teria enviado alguma carta por se
perder o navio em que ouveram de hir neste porto, direi nesta o que
me lembrar que creo será pouco, polia pouca capacidade e saber que
em mim há, par ho poder entender... "23
As cartas uma ve z em Portugal eram enviadas a Roma para
apreciação. Apesar destes cuidados específicos, a
periodicidade destes navios é marcada por intervalos longos
entre uma carta e outra, e por vezes de ano em ano, como
observou José de Anchieta, situação esta que não passou
desapercebida pelos superiores da Companhia.
Juan Alfonso de Polanco, identificando que os revezes da
navegação ultramarina é que provocavam estas lacunas na
comunicação, e não a displicência dos missionários, escreve
ao Pe. Gregório Serrão, observando que:
"Hase recibido una de V. R. , escripta en la Baía el hebrero 1568, y
uvo particular causa de consolamos más con ella, por ser la última
que se ha recebido del Brasil hasta aora, porque las de P. Inácio de
Accebedo son del hebrero de 1567. Bien se cree que la falta de la
navigación o el perderse las cartas que se escriven en tan largos
caminos, es causa de no tener más a menudo letras de esas partes, y
no la falta de diligencia de los que las escriven."24 .
Não podemos deixar de salientar que as cartas não eram o
único meio de se obter informação sobre a prática jesuitica
23 Carta do P. Pedro da Costa aos Padres e Irmãos de S. Roque. Espírito Santo, 27 de julho
de 1565, in LEITE, Serafim, op. cit-, vol. IV, p. 265.
24 Carta do P. Juan Alfonso de Polanco ao P. Gregório Serrão. Roma, 24 de dezembro de
1568, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. IV, p. 493.
142
nas terras coloniais. Os "testemunhos vista", que
preponderavam durante este periodo, complementavam as
informações e se sobrepunham às narrações das cartas, e por
vezes eram as únicas noticias que chegavam a Portugal por
meio dos navegantes. Mesmo porque, a escrita ainda era um
privilégio de poucos, não se incluindo nesta categoria os
navegantes25
No que se refere à correspondência passiva, nota-se sua
exiguidade dentro deste periodo, conforme alertara Nóbrega
ao Pe. Miguel Torres26 .
As cartas dos superiores da Companhia e seus membros são
raras e quando ocorrem se restringem às regulamentações,
nomeações, relatos de outros membros ou como na maioria das
vezes, respostas às indagações sobre a prática missionária
dos membros aqui alocados.
As cartas do corpo administrativo português também eram
poucas e normalmente atinham-se às condições de sustentação
da Companhia nas terras coloniais, prevalecendo entre as
cartas recebidas, os Mandados Oficiais de provisões para os
j esuitas.
25 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simão Rodrigues, 3aia, 9 de agosto de 1549, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 119.
26 Cf. nota 20.
143
Esta ausência foi notada pelos próprios inacianos, que
ressaltaram o isolamento significativo em relação a Roma.
Reiteradas vezes os loiolanos solicitaram a atenção da
instituição e de seus pares por meio de cartas, "cosa que en
estas tierras remotas causa mucha consola tion"27 . Tal
situação permitiu o desenvolvimento independente, e não
raras vezes, totalmente desorientado da Companhia no Brasil,
uma vez que a própria estrutura daquela ainda não se
efetivara por completo no próprio continente europeu.
0 recebimento de cartas vindas da Europa constituiu um
acontecimento especial, que fazia com que os jesuitas das
aldeias mais próximas se reunissem para a leitura das
noticias da instituição. Referindo-se às cartas recebidas
nos idos de 1559, António Blazquez28 relata que estas
"fueron recebidas en este collegio, con las quales todos los
Hermanos que en el se hallaron, y otros que mandaron llamar de una
Aldea más cercana, tomaron summo contentamiento, asy por las buens
nuevas, como por saber el cuydado que Su Reverenda Patemidad tiene
de nos encomendar a su Divina Magestade en su sanctos sacrifcios y
oraciones".
27 Carta do P. Bras Lourenço aos Padres e Irmãos de Coimbra. Espírito Santo, 26 de março
de 1554, LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 38.
2® Antonio Blásquez nasceu na Espanha em 1528. Entrou na Companhia em 19 de setembro de
1548. Embarcou para o Brasil em 1553. Faleceu na Bahia a 27 de dezembro de 1606.
144
As boas novas sobre os feitos da Companhia,
ardentemente desejadas, quando chegavam à terra dos brasis
rompiam com a rotina diária do missionário, que por ocasião
do recebimento canalizava toda a sua atenção para as
missivas recebidas. Estimulo ou consolo, as cartas
reforçavam a necessidade de reconhecimento do esforço
empreendido. Destarte, António Blazquez enfatiza que:
"Consolónos también el Spirito Santo en su casa y en su misma
vispera con las cartas, que recebimos aquella noche, de Portugal,
porque segundo mi estimativa serian dos oras después de la media
noche quando por casa entró el que las traya; no cabian los Hermanos
de comtentamiento y plazer, viendo lo mucho que el Senor se dignava
de obrar y plazer, viendo lo mucho que el Senor se dignava de obrar
em sus criaturas por médio de los de la Compania en tantas Y tan
diversas partes del mundo. De ay hastala manana, no avia quien
pudiesse dormir porque lueguo el Padre Provincial començó a leer las
cartas y lo que resto, después de leerse algunas, expendióse u
empleóse todo en oir comfessiones de la gente de fuera para que
pudiessen melhor ganar el jubileo"29 .
As cartas, portanto, eram além de um consolo espiritual,
a própria motivação para os loiolanos. Os exemplos
edificantes dos demais membros da Ordem, disseminados pelo
mundo, estimulavam o prosseguimento da atividade
catequética.
Todavia, este contentamento parece ter sido pouco
frequente, devido não só à falta de atenção da cúpula da
29 Carta do P. António Blazquez, por comissão do P. Manuel da Nóbrega ao P. Juan Polanco.
Baia, 10 de setembro de 1559, LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. 144.
145
ordem, mas sobretudo pela própria precariedade do sistema de
transporte das missivas, que fazia com que muitas delas se
extraviassem, como lamentou Nóbrega:
" ...por a desconsolação que cá temos de não poderemos ter resposta
das muitas cartas que são escritas, porque as trazia este navio de
João Gomez não nos deram, porque o principal maço em que deviam de
vir se perdeu ou alguém as tomou de maneira que não vieram a nossa
mão:... "30 .
A ausência de informações ou incapacidade de elaborar
cartas para todos os membros da Companhia, distribuídos pelo
mundo, não passou desapercebido pelos superiores da ordem,
que efetivamente não conseguiram retribuir à altura a
quantidade de cartas recebidas. Destacando esta
impossibilidade, o Pe. Leão Henriques, Provincial de
Portugal, utilizando de sua influência junto aos assuntos
ultramarinos, sugere ao Pe. Francisco que havendo:
"... mucha carga con copiar cartas y essas otras para la Xndia,
Brasil, y para outras partes; aliviarse hia dalguna manera, si V. P.
ordenasse que cada Collegio embiasse cinquo o seis copias de las
cartas de edificación que se an de scrivir cada ano para el Brasil y
índia, porque tantas y aún más son menester"31 .
Devido às grandes distâncias que separavam as
residências dos jesuitas e a inexistência ou precariedade
3° Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Miguel e Padres e Irmãos de Portugal. Baia, 5 de
julho de 1559, LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, 49.
31 Carta do P. Leão Henrique ao P. Francisco de Borja. Lisboa 4 de fevereiro de 1566, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. IV, p. 306.
146
dos meios de transporte, também havia dificuldade de
comunicação dentro da colónia, tanto por via escrita como
pela proximidade fisica dos membros da Companhia.
0 sistema de ventos e correntes maritimas impediam que
os deslocamentos por mar se realizassem constantemente. As
monções impunham um isolamento natural, na medida em que o
contato só poderia ser feito por mar, e em determinadas
épocas do ano, ou seja, na ocasião dos ventos favoráveis, o
que permitia às vezes, que a comunicação com a metrópole
fosse mais viável do que com as demais partes da colónia
como destaca Brás Lourenço32 :
"Despues que desa sancta cada parti [Coimbra], Charissimos , nunqua
más oi nuevas suias, cosa que en estas tierras tan remotas causa
mucha consolacion, principalmente para mi, que tanto em mi alma os
tengo. Y secundariamente me causa estos deseos estar solo sin mis
conpanneros y sin Padre ni Hermano con que me pueda consolar, y
estaremos tan remotos que más presto puedo oir nuevas de allá que de
los de aquá, por causa de las mociones que cursan medi o ano de um
cabo, y médio del otro, de manera que de 7 ó de 8 en 8 meses tenemos
nuevas unos de otros, y aun si acierta a venir algun navio,; lo qual
es para mi mui gran desconsolación" 33 .
Assim sendo, as cartas internas não alimentaram nem
aqueceram com regularidade os jesuitas. Segundo Pero
32 Nasceu em Portugal nos idos de 1525. Embarcou para o Brasil em 1553. Faleceu na aldeia
de Jeritiba no Espírito Santo a 15 de julho de 1605.
33 Carta do P Brás Lourenço aos Padres e Irmãos de Coimbra. Espírito Santo, 26 de março de
1554, LEITE, Serafim, op. cit-, vol. II, p. 38.
147
Correia34 estas cartas eram como "un pan de mucha sustancia
y un fuego que mucho calienta a los friorentos y causar
mucho animo y confiança a los desconfiados, e tienen otras
muchas virtudes"25 .
Quanto ao contato pessoal, Brás Lourenço diz:
"passa-se às vezes muito tempo que nem presencialmente, nem por
cartas se podem comunicar uns com os outros, como agora aconteceu
que ha perto dous annos que por aqui não passou algum dos nossos //36
Os jesuitas viviam sujeitos à sua própria sorte,
completamente isolados das suas raizes européias. As suas
práticas e os seus conhecimentos eram muito mais adequados
ao contexto europeu, e eram de pouca valia num meio tão
inóspito. A imensidão do mundo natural impunha-se pujante
aos companheiros de Jesus.
34 Pero Correia vivia no Brasil por ocasião da chegada dos primeiros jesuitas. Faleceu em
fins de 1554.
33 Carta do Irmão Pero Correia ao P. Bras. Lourenço. São Vicente, 18 de julho de 1554,
LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 65.
36 Carta por comissão do P. Brás Lourenço ao Padre Miguel Torres. Espirito Santo, 10 de
junho de 1562, LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, 460.
148
2 - NO ISOLAMENTO: A NATUREZA
“a medo vivo, a medo escrevo e falo,
Hei medo que falo só comigo,
Mas inda a medo cuido, a medo calo.”
Antonio Ferreira -1598
Deslocando-se para a América portuguesa, os j esuitas
foram forçados a um contato íntimo como o novo meio ambiente
em que se instalavam. Isolados dos recursos materiais e
naturais existentes na Europa, a adaptação foi vital para a
sua sobrevivência.
0 mundo natural era um dado concreto e inédito para
estes primeiros missionários que incorporaram e deram
significado à mesma na razão direta à sua experiência de
vida. A natureza, até então escassamente conhecida e pouco
dominada, apresentava-se nos textos como perturbadora da
ordem religiosa vigente. Muitos dos primeiros missionários
não deixaram de tecer os seus comentários, as suas
observações e até mesmo o hiato nos escritos demonstram uma
atitude frente ao mundo natural, que permite compreender o
149
referencial cultural que estes utilizavam para fazer seus
julgamentos.
Silva Dias observa que a preocupação com a natureza das
novas terras começava a ocupar um espaço maior no
desenvolvimento do conhecimento europeu, pois o "eixo do
interesse europeu pela empresa ultramarina dos portugueses e
suas refrações culturais, fixou-se, de início, no que tinha
epopeia e na revelação factual de continentes
desconhecidos ou só lendariamente conhecidos", deslocando em
seguida "pouco a pouco, com o andar dos anos, para a
geografia, a fauna, a flora, as crenças e os costumes dos
povos". Os textos antigos são suplantados e substituídos
pelos escritos dos colonos das novas terras e dos viajantes
que as visitavam. Descrições mais fidedignas delineavam a
nova realidade do continente americano37 .
Ao analisarmos as cartas produzidas pelos jesuítas, como
discurso sobre o mundo natural, se faz necessária uma
reflexão prévia sobre os três elementos básicos que compõem
a comunicação: emissão, mensagem e recepção.
Os inacianos residentes no Brasil, enquanto emissores,
se constituíam como uma fonte, de onde propagavam idéias bem
37 DIAS, J. S. da Silva, op. cit., pp. 110-111.
150
definidas e sistematizadas pelos preceitos cristãos,
norteados pela rigida formação jesuítica. As cartas e os
relatórios, na sua maioria, sintetizam o cotidiano da vida
dos jesuítas no trabalho da conversão das almas, na colónia,
e seus questionamentos e suas dúvidas em relação às
práticas, ofícios e estruturas da instituição jesuítica.
Enfim, um discurso religioso, que apesar de atender a um fim
específico, como foi visto, encontra no outro lado
destinatários múltiplos, o que implica dizer que a leitura
do enunciado das cartas recebeu compreensões diversas, pois
como foi visto, diversos eram os sentidos do discurso
aludidos pelos primeiros missionários.
Em síntese, revelavam uma visão de mundo essencialmente
religiosa, formada na Europa, que refletia a mentalidade da
época, sendo que sua compreensão do Novo Mundo visava a dar
uma reordenação lógica às descobertas dentro do horizonte da
cristandade. Conforme observou Paiva
"o jesuíta, que aqui lançou as sementes da pregação cristã, via o
seu inundo com olhos contemporâneos, sob a ótica do século. Sua ação
regia pela visão do "orbis christianus", que era visão de todos os
homens do seu tempo"38 .
38 Segundo Paiva: "o "orbis chzistiaxma" é uma imagem cristã medieval do mundo. Fundou-se
na crença de que o mundo é de Deus, cujo representante na terra é a Igreja Católica. Este
Deus, por ser verdadeiro, exigia que todos o reconhecessem e lhe prestassem o culto.
PAIVA, José Maria de, Colonização e Cataqaese, pp. 21-22.
151
Os autores das cartas, apesar de serem indivíduos
distintos entre si, cada um com sua individualidade, não
realizaram produções escritas antagónicas, nem tampouco, as
cartas possuíam diferenças extremadas. 0 conjunto das cartas
tendeu a ter uma relativa homogeneidade de princípios, no
que se refere ao estilo, modelo de apresentação e conteúdo,
sofrendo variações, no que diz respeito à ênfase a
determinados temas.
Os dogmas impunham uma retidão da palavra que
preponderou quando se descrevia a natureza, cerceando a
capacidade de senti-la e admirá-la, fruto da peculiar
formação jesuítica moldada pelos Exercícios Espirituais. Estes,
por sua vez, impunham uma técnica de meditação que
disciplinava a imaginação, principalmente quanto à
composição de lugar, obrigatório a cada dia de prática. Tal
repetitividade fazia com que a experiência sensorial, no
caso da natureza, ficasse delineada segundo modelos que
apoiavam e davam suporte às meditações. 0 único sentido que
permitia a compreensão de tudo era Deus.
Desta forma, os escritos são marcados por uma visão
simbólica da natureza, baseada nas Escrituras Sagradas e
amplamente desenvolvidas no final do período medieval, com
os bestiários e plantários. Holanda, ao analisar as
152
permanências de uma visão do paraiso, não deixa de salientar
o olhar essencialmente religioso desse simbolismo
"que não desdenha mesmo a natureza orgânica, todos os animais, e
também as plantas, têm sempre qualquer coisa a dizer aos homens.
Mais do que isso, são um dos instrumentos de que se vale o Eterno
para se manifestar no tempo, e o sobrenatural na natureza"39 .
0 conteúdo das cartas traduzia em idéias um conjunto de
simbolos sistematizados, que visavam a expressar uma
mensagem, que apesar de ser essencialmente uma descrição da
ação jesuitica, numa ótica religiosa, permitia identificar
informações isoladas, mas importantes, sobre a forma de
percepção do mundo natural.
Pela visão religiosa de mundo, revelada pelas cartas, é
possivel delinear as facetas do mundo natural no século XVI,
na medida em que os textos das missivas evidenciaram quais
eram os mecanismos de leitura da natureza pelos primeiros
loiolanos.
0 olhar do europeu católico deve ter se debruçado sobre
o novo mundo natural com os mesmos anseios dos jesuitas, o
que em última instância possibilita entendê-lo num amplo
conjunto de vinculações com a produção cultural do periodo.
Os mapas do periodo permitem perceber que não só um contorno
39 HOLANDA, Sérgio B., op. cit., p. 198.
153
bem definido era importante para o reconhecimento das novas
terras, mas principalmente um reconhecimento da natureza era
fundamental. É praticamente comum na cartografia da época
constar, além da representação do traçado imaginário dos
limites da terra, elementos naturais que indicavam a
peculiaridade das diversas regiões, simbolos que ressaltavam
o novo, o medo, o maravilhoso e a alteridade.
0 mapa mais rico em informações geográficas, étnicas e
naturais é o “Terra Brasilis”, atribuído a Lopo Homem e
desenhado por volta de 1519. Feito à mão sobre pergaminho,
este mapa é rico em detalhes do litoral brasileiro. Apesar
das discrepâncias, o autor conseguiu dar uma unidade ao
território que compreendia a faixa litorânea do Maranhão até
o rio da Prata. Além do traçado e da nomenclatura, o mapa
representa ilustrações realistas sobre a fauna e a flora da
terra, além de registrar os aborígenes da terra realizando a
extração do pau-brasil. Apresentando de forma clara a
destruição da flora, já nas primeiras décadas dos
Quinhentos, Lopo Homem, não deixa de acrescentar ao seu
traçado espécies da fauna. Papagaios coloridos, dispersos
entre as diversas árvores de pau-brasil, ora parados, ora
voando, preenchem a gravura juntamente com macacos e uma
onça. Realidade que se mistura com a fantasia da
154
representação de uma serpente alada, tão comum aos escritos
dos viajantes da época.
0 mapa mundi de Pierre Desceliers, elaborado em 1542 sob
os auspícios do monarca francês Henrique II, revela que este
incorporou informações de testemunhos oculares e dos mapas
portugueses, inclusive do "Terra Brasilis”, situação comum, uma
vez que Portugal era o centralizador de informações mais
precisas sobre as terras de além-mar. Desceliers representa
os hábitos e costumes dos indígenas, sua moradia, a pesca e
caça, os ritos antropofágicos das terras americanas,
inclusive as pertencentes à Espanha, onde se pode vislumbrar
cenas de combate entre índios e castelhanos na conquista do
Peru. A fauna brasileira sobressaia-se com cobras, lagartos
ou jacarés, porcos do mato, além de animais aquáticos que
são representados conforme o momento em que foram avistados
pelas suas fontes. Sem deixar de dar crédito às lendas
vigentes, o cartógrafo francês desenhou figuras aladas e
animais maravilhosos nos mapas, revelando que a mentalidade
da época poderia abarcar muito mais do que os acidentes
geográficos ou os limites da América. 40
40 Pierre Desceliers, cartógrafo oficial da coroa francesa, desenhou outro mapa da América
Meridional, também valendo-se de informações de mapas portugueses e de testemunhos de
vista, onde preponderam as mesmas figuras simbólicas encontradas no mapa de 1542.
155
Além destes mapas, podemos citar outros que com maior ou
menor intensidade incorporam as noticias sobre o Novo Mundo.
Dentre eles o de Diogo Homem (cosmógrafo oficial do monarca
português) de 1558 a 1568, Sebastião Lopes também de 1558, e
de Vaz Dourado de 1573. Em todas estas cartas, florestas,
matas, animais exóticos, aves multicolores, rios e mares
aparecem identificando a região americana, ou como designa
Diogo Homem na carta de 1568, a "terra do antropófogos", que
assumiu papel importante na construção do simbolismo natural
americano.
Assim, os relatos j esuiticos, como os mapas dos
Quinhentos, narram com olhares múltiplos, a percepção que
retém das coisas naturais, acessíveis pelos órgãos dos
sentidos. 0 mundo é identificado através de imagens
sensoriais: forma, peso, cor, odor. 0 Novo Mundo era
construído na produção cultural do periodo por imagens que
reuniam experiências presentes e passadas; dois universos
distintos se comunicavam e se moldavam mutuamente.
0 principio axiológico que justifica o estabelecimento
da narrativa do mundo natural era a grandiosidade e a
diferença nele contida. Isto implica dizer que a natureza da
terra dos brasis, por sua singularidade e grandiosidade,
suscitava a admiração, decorrente do acontecimento a
156
existência do Novo Mundo visto como parte do todo criado
por Deus. 0 testemunho dos primeiros jesuitas conferia
dimensão de verdade ao acontecimento, vivenciado por eles,
enquanto sujeitos observadores. Seus relatos marcados por
uma frequência pontual contribuíam para a estruturação do
saber sobre a alteridade da América portuguesa. A
experiência, por eles vivida, era o arcabouço que norteava o
verdadeiro e o tornava digno de ser narrado.
Esta nova dimensão do conhecimento se contrapunha à
preponderância da transmissão oral, vigente durante todo o
periodo medieval, que permitia a intervenção de outrem na
relação ver conhecer. 0 ouvir por intermédio de alguém
colocava o ouvinte na posição de passividade em relação a
quem falava, o que impedia a aferição da verdade, uma vez
que a presença ocular do fato não era possivel. 0 ouvir
acarretava a perda da verdade e permitia a concepção de
mentira. 0 escrito, ou o impresso, resgatou parcialmente a
relação ver-conhecer, que a partir de então passa a ser,
ler-conhecer. Nova ordem que cresce e substitui
paulatinamente o ouvir. A verdade do escrito era
incontestável, principalmente quando produzidos pela camada
clerical que conferia uma verdade cristã ao acontecimento.
157
A natureza ou o desconhecido, nesta perspectiva, nada
tinha de extraordinário para os jesuitas, pois todas as
coisas do mundo eram vistas numa concepção de possibilidade
existencial, uma vez que tudo tinha sido criado pelas mãos
do ser divino. Destituídos de um olhar cientifico, as
observações dos primeiros loiolanos revelam uma visão
utilitária na leitura da natureza, apreendida nas suas
novidades e vantagens. Estas particularidades adquirem
relevância pela oposição ou analogia ao referencial europeu.
Holanda salienta que:
"a mentalidade da época acolhe de bom grado alguns modos de pensar
de cunho analógico" onde "em tudo discernem-se figuras e signos: o
espetáculo terreno oferece, em sua própria evanescência, lições de
eternidade. A Natureza é, em suma, livro da Natureza, escrito por
Deus e, como a Biblia, encerra sentidos ocultos, além do literal"41 .
As cartas revelam as diversidades das coisas do mundo
natural da América portuguesa para o mundo europeu,
totalmente diferente daquelas por ele conhecida, mas da qual
dependia, enquanto referência, para construir a
representação mental à qual as cartas aludiam. 0 mundo
natural europeu, principalmente o português, era o modelo
ausente que acrescido das analogias da Biblia, justificava e
dava inteligibilidade à construção imaginária do mundo
natural da terra dos brasis.
41 HOLANDA, Sérgio B., op. cit., pp. 65-66
158
A mensagem escrita pressupunha que uma das partes os
destinatários estivessem distanciados do universo ao qual
se referia, mas tão presentes quanto os redatores, pois como
lembra Todorov "o destinatário é tão responsável pelo
conteúdo de um discurso quanto seu autor"iZ . A compreensão
desse mundo natural só seria possível através de uma
representação simbólica e abstrata, desde que esta se
ativesse a um conjunto de experiências comuns que
permitissem a efetivação do processo de comunicação. Tal
prática não tinha como objetivo inibir a liberdade do
leitor, que era criador de significados singulares e
múltiplos, mas sim nortear os juízos contraditórios que
pudessem surgir. As escrituras sagradas eram de grande valia
para a comunicação intercivilizacional. Tudo convergia para
Deus por meio dos escritos sagrados.
Os meios utilizados pelos jesuítas, para descrever o
mundo natural, remetiam, portanto, a passagens e imagens
bíblicas, e seguiam um processo que permitia ao leitor
realizar relações comparativas. Organizando a realidade da
natureza da terra dos brasis, através de semelhanças e
oposições, os loiolanos tornavam a diversidade compreensível
para o leitor, em função do próprio universo do
42 TODOROV, Tzvetan, A Conquista da América, p. 224.
159
destinatário, o que permitiu algumas imperfeições. Estas
imprecisões, por vezes consciente, revelam que o jesuita
tendeu, dentro do processo descritivo, a corrigir esta
discrepância, utilizando de uma série de analogias ou
substituições para melhor representar a imagem do objeto,
valendo-se de elementos semelhantes ou dessemelhantes do
simbolismo dos Quinhentos. As descrições seguem, conforme
ensejou Chartier, as circulações fluidas, "as práticas
partilhadas que atravessam os horizontes sociais"43 , unindo
vivências comuns.
Destarte, as cartas formam composições significativas de
um conjunto simbólico de experiências comuns que permeiam a
vida européia, da qual o jesuita, baluarte civilizacional,
confere à decodificação do Novo Mundo, uma interpretação
crivei.
Deve-se notar ainda, que houve uma preocupação com a
realização de representações que manifestassem o objeto tal
como ele era dado na intuição sensorial, remetendo sempre a
uma realidade significativa que fosse representável dentro
da própria lógica dos textos. Os jesuitas, enquanto
catequizadores, sabiam que transmissão da mensagem só se
completaria corretamente com o processo de interpretação que
43 CHARTIER, Roger, op. cit., 134.
160
recuperasse a mensagem na sua dimensão simbólica original.
Desta forma, é importante destacar o sistema simbólico que
há nas entrelinhas das cartas, como forma de captar os
simbolos elaborados em relação ao mundo natural, enquanto
possibilidade de comunicação.
Verifica-se que, não raras vezes, os j esuitas
esboçaram, numa atitude positiva, tentativas de se colocarem
mentalmente no lugar do receptor, de forma a produzir
analogias, passiveis de serem apreendidas no seu significado
pelo leitor. O conteúdo era a consubstanciação do esforço
jesuitico quanto a colocar em contato leitor e narrador,
saindo do isolamento que a atividade catequética impunha.
A imagem simbólica existente nas cartas era a sintese de
uma decodificação, por via escrita, de uma representação
concreta do mundo natural, que para o leitor tinha um
sentido abstrato. Por conseguinte, as idéias apresentadas
não se revestem de um significado único, porque o discurso
deve ser compreendido dentro de um sistema amplo e complexo,
que é o pensamento religioso, conjugado com experiências
vividas não inseridas numa continuidade.
As descrições, contudo, não chegam a uma profusão de
detalhes, pois estes poderiam, pelo excesso, serem foco de
161
confusão. Esta tarefa era feita através da meticulosidade
empreendida na organização da informação, que ficou patente
principalmente nos relatórios informativos. Desta forma,
enfatiza-se o caráter diferenciativo, o estranho pela forma,
cor, sabor, odor e que invariavelmente está ligado a uma
visão utilitária da natureza.
Esta forma de narrativa permite entrever que havia
dificuldade em equacionar a discrepância entre o vivido e o
descrito. 0 pensamento sensorial era incapaz de construir a
experiência tal como esta se processara. Desta forma, como
destacou François Hartog,
"le narrateur, pour se faire persuasif, est passe de la position de
la différence à la production de 1'opposition, bientôt spécifiée en
inversion"44 .
Talvez resida no enfoque discursivo da oposição,
enfatizado por Hartog, o nó que permite compreender mais
fidedignamente as descrições do mundo natural, pois na
narrativa dos seguidores de Loyola não poderia transparecer
o caráter maravilhoso ou imaginativo que se dissociava da
visão cristã do mundo.
44 HARTOG, François, Xe airoir d'Herodote, p. 48.
162
0 conteúdo das cartas jesuíticas, considerando os
pressupostos acima mencionados, auxiliaram de forma direta
ou indireta, na elaboração de uma imagem mais fidedigna das
novas terras, ampliando o conhecimento sobre a natureza da
terra dos brasis. 0 lugar exótico, concebido como um meio
hostil, cheio de animais selvagens e indígenas cruéis, pela
sua antropofagia, era substituído por imagens mais
aproximadas da realidade, que por vezes reforçaram aspectos
das primeiras imagens, já presentes nos mapas, e
apresentaram novas características. A natureza, como
observou Silva Dias
"mostrava-se, essencialmente, igual a si própria em todo o orbe //45
Os velhos mitos sucumbiam e eram repudiados lentamente.
Todavia, nada no mundo podia ser dissociado de sua função
ético-moral que remetia a Deus, que dava a todo o universo
um significado peculiar.
0 obj etivo de um estudo crítico em relação aos
discursos, produzidos cronologicamente, mas desmontados e
transformados em um objeto de estudo, de uma produção
cultural, visa a fornecer uma aproximação da forma de pensar
o mundo natural na fase de transição que é o século XVI,
45 SILVA, J. S. da Silva, op. cit-, pp. 161-162.
163
onde a pluralidade de imagens culturais se proliferariam
formando um mosaico em função de uma mentalidade em
transformação. Conforme afirma Chartier
"compreender as séries de discursos na sua descontinuidade,
desmontar os princípios da sua regularidade, identificar as suas
racionalidades particulares, supõe em nosso entender ter em conta os
condicionamentos e exigências que advêm das próprias formas nas
quais são dados a ler"46 .
Desta forma, buscar-se-á nas cartas revelar o modo de
ver o mundo dos jesuitas, descortinando apreciações de ordem
moral e valorativa. Buscar-se-á revelar a trama complexa de
fios que entrelaçam natureza e religião, já presentes nos
Exercícios Espirituais, que podem ser entendidos como a formação
básica da mentalidade jesuitica, nos primeiros anos da
Companhia. Nesta época o discurso jesuitico busca as suas
matrizes, dando significado à ação catequética, a qual
passaremos a considerar.
46 CHARTIER, Roger, op. cit-, p. 133.
164
CAPÍTULO IV
A CONQUISTA DA TERRA DOS BRASIS
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é um ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita com olhar esffngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal,
Mensagem - Fernando Pessoa
165
1 - OS FUNDAMENTOS RELIGIOSOS NAS METÁFORAS
Trabalhai não pela comida que
perece, mas pela que dura até
ã vida eterna a qual o Fdho
do homem vos dará.
João 6:27.
As descobertas marítimas romperam com o enclausuramento
das partes do mundo conhecido, alterando os ritmos da vida
cotidiana dos indivíduos dos séculos XV e XVI. A viagem, por
mares ainda incertos, exigia uma reunião de interesses
económicos, políticos e, sem dúvida culturais. Contudo, a
racionalidade dos interesses económicos nem sempre explicou
o gosto pela aventura, pelo desconhecido ou novo, que só a
mentalidade medieval tinha alimentado como um vinho
enebriante.
A grande alteração que os descobrimentos deflagram
começa pela cosmografia. 0 período medieval era marcado por
uma diversidade de representações do mundo distintas entre
si. 0 "orbis christianus" era ordenado dentro de uma
geometria simbólica, distinta daquela matemática, onde o
166
elemento espiritual, pelo seu poder significante, se
sobrepunha ao material.
A cosmografia, até então, representava o convívio de um
mundo harmonioso vivendo dentro de uma ordem espiritual que
organizava também de forma hierárquica o mundo segundo o seu
criador. Como observou Kappler preponderava uma cartografia
que delineava muito mais uma concepção ptolomaico-cristã do
universo do que propriamente a realidade concreta do mundo
fisico. Segundo o autor
"uma das principais características da cosmografia é a admissão da coexistência de
sistemas muito diferentes e a manutenção das teorias mais diversas, sem jamais se
proceder a uma "tábua rasa” que permitiria privilegiar um sistema em relação aos
outros"1 .
Céu e Terra se confundiam no plano da representação e na
mente humana do homem do Quinhentos.
As descobertas ao sintetizarem um conjunto de novos
processos técnicos (teóricos e empiricos), astronómicos , em
nivel da arte náutica, possibilitaram a abertura dos olhos
do mundo. Portugal, com um papel de destaque nesta
empreitada, além de promover uma verdadeira revolução nas
artes náuticas, impulsionou a cartografia. 0 mundo passa a
i KAPPLER, Claude, op. cit., p. 14, ver também pp. 24-26.
167
ser cada vez mais representado, os espaços planetários eram
construídos na sua aproximação com a realidade, segundo os
reconhecimentos que cada viagem exploratória promovia,
fazendo com que as configurações fantasiosas fossem perdendo
sua intensidade.
A cartografia náutica, que paulatinamente floresce em
qualidade e quantidade nos séculos XV e XVI, permite a
criação de uma consciência geográfica global. 0 mundo
adquire consciência do "orbis christianus" e do "alter
orbis" a partir da construção gráfica do seu próprio
universo, que os une num todo.
0 mundo começa a ser delineado na sua forma geóide com
contornos definidos, que permitiam uma melhor compreensão
dos seus limites. 0 homem europeu conseguia realizar uma
representação abstrato-conceitual, deixava a Terra e
ascendia às alturas do Céu para contemplar a Terra.
Superando a sua condição terrena, o homem conseguia ver a
Terra dissociada da imagem Céu-Inferno, enquanto esferas
interligadas e decorrentes2 .
2 Segundo O'Gorman os descobrimento da América: "não deixou de refletir nas novas idéias
astronómicas que deslocaram a Terra da sua condição de centro do universo para convertê-la
num carro alado de observação do céu, foi uma mudança cujas consequências ultrapassaram o
seu aspecto meramente fisico. É claro que se o mundo perdeu sua antiga natureza de cárcere
para converter-se em casa aberta e própria, é porque o homem, por sua vez, deixou de
imaginar-se a si próprio como um servo prisioneiro para transfigurar-se em dono e senhor
do seu destino. Ao invés de viver como um ente predeterminado num mundo inalterável,
168
A imaginação humana estava simbolicamente livre para
romper os estreitos limites da Terra e para dominá-lo, pois
tal como os primeiros seres humanos do paleolítico, que
realizavam os desenhos nas cavernas, o homem ao delinear os
contornos do mundo, tornava-se possuidor da coisa
representada. 0 desejo humano de captura concretizava-se.
As explorações feitas pelos navegadores lusitanos dentre
eles Diogo Cão, Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, entre
outros, além de inaugurarem o contato com as novas
civilizações da África e da índia, apontaram para a
possibilidade da união dos mares até então desconhecida,
rompendo com as concepções medievais influenciadas pela
Biblia e textos clássicos da antiguidade3 . A representação
gráfica de um universo harmonioso é rompido pelas navegações
que desequilibram os alicerces da organização simbólica do
Cosmo. Uma nova visão do mundo, mais próxima da realidade, e
por conseguinte mais detalhada, superava os esboços
cartográficos antigos. 0 homem dá contorno ao seu mundo,
apreendendo-o e torna-o um objeto de estudo.
começou a se imaginar como dotado de um ser aberto, habitante de um mundo construído por
ele à sua medida e semelhança. O'GORMAN, Edmundo, op. cit., pp. 185-186.
3 Até este período preponderavam as concepções ptolomaicas que concebiam os mares de forma
isolada.
169
Os descobrimentos, ao revelarem a verdadeira dimensão do
globo terrestre para a humanidade, desencadeiam um novo
reordenamento das estruturas de pensamento, uma mudança
histórica até então nunca vista. 0 palco da atuação humana
era ampliado, assim como o seu conhecer, sendo que essa
" novidade-mudança " é responsável "por um novo mundo de
coisas, informações, dados, diferenças, etc"4 . Como
observou Carvalho, as descobertas prepararam o caminho para
uma nova ciência, o homem despertava para sua consciência
critica, desterrando do saber os erros longamente enraizados
no pensamento europeu. 5
Os relatos das viagens e façanhas de Marco Polo, pelo
Oriente, invadiram a Europa e processaram as primeiras
fissuras no universo da homogeneidade cristã. As viagens de
uma maneira geral promoviam no âmbito da cultura uma
circulação de imagens de caráter religioso, filosófico e
artistico, bem como de bens materiais que levaram os
indivíduos a indagarem sobre a ordem do saber vigente e da
sua própria cultura6 .
A Europa conhecia-se e avaliava-se em função da
emergência das novas culturas, que paulatinamente iam sendo
4 BARRETO, Luís Felipe, Os descobrimentos e a Ordem do Saber-, p. 41.
5 CARVALHO, Joaquim de, Estados sobre a cultura portuguesa do século XVI, p.12.
6 THEODORO, Janice, América Barroca, pp. 57-70.
170
identificadas, e que foram impulsionadas e expandidas pelo
surgimento e desenvolvimento da imprensa. Um novo sistema
de pensamento era construído em consonância com o progresso
material7 .
As diferentes formas de vida encontradas revelavam que a
civilização européia não era única, nem tampouco seus
valores eram os dominantes. Como observou Barreto:
"os descobrimentos foram uma imensa explosão dos limites da terra e
do mar, uma nova e maior extensão dos horizontes e modalidades de
comunicação intercivilizacional"8 .
Como toda explosão abala estruturas, os descobrimentos
solaparam as bases européias de interação sociocultural, até
então apoiadas exclusivamente num caráter bélico de
relacionamento.
A reordenação do saber era uma condição "sine qua non",
frente a um processo de desmoronamento do pensamento
europeu. O Velho Continente era mais instável e mais
vulnerável aos deslocamentos e reconhecimentos contínuos que
o mundo assumia, fazendo como que uma outra lógica fosse
inventada.
7 Sobre a influência dos descobrimento e da colonização na ciência portuguesa ver
CARVALHO, Joaquim de, op. cit., pp. 21-50.
8 BARRETO, Luis Felipe, op. cit., p. 10.
171
0 conceito proposto por 0'Gorman para a leitura da
elaboração do pensamento ocidental, do aparecimento
histórico da América, é sintetizado pelo autor com o termo
"invenção". Para a leitura do novo, 0'Gorman revela que as
terras americanas não podiam contradizer a idéia dogmática
cristã da existência de um Deus único necessário. Desta
forma, a origem do mundo se confunde com a própria invenção
da América pois, "a idéia de universo inclui a totalidade de
tudo quanto existe; o conceito de globo terrestre refere-se
ao nosso planeta mas, na época considerada, referi-a à nossa
de matéria cósmica mais pesada, porque nela prevalecia a
essência ou o elemento terra. O mundo não é, primariamente,
nem uma coisa nem outra. É antes de tudo, a morada cósmica
do homem, sua casa ou domicílio no universo, antiga noção
que os gregos definiram com o termo ecúmeno. O mundo, pois,
certamente supõe um sítio e uma determinada extensão, mas
seu traço definidor é de natureza espiritual"9 .
0 reconhecimento de novas culturas, se por um lado,
permitiu a ampliação dos horizontes económicos e da
possibilidade de um desenvolvimento mercantil mais
acentuado, por outro, alterou os padrões comportamentais
como um todo, a começar por aqueles advindos da própria
9 O'GORMAN, Edmundo, op. cit., p. 87.
172
condição das descobertas. A vida do navegante, transeunte
dos mares, será a brecha vital que ao mesmo tempo que rompe
condições existentes, instaura uma nova circulação de
informações e de cultura nunca antes experimentada.
Circulação cultural é, sem dúvida, o termo que melhor
define transações e interações que se processaram com os
descobrimentos nos Quinhentos e Seiscentos. 0 homem até
então confinado à Europa, ao norte da África e parte do
Oriente, com as descobertas, vê o limite do seu universo
ampliado sensivelmente; diferenças e similaridades
exteriorizam-se, necessidades e abundâncias delineiam-se, o
perto e o distante relativizam-se, o mundo torna-se
ecuménico na própria acepção da palavra, e da mentalidade
religiosa da época.
A universalização impõe a ampliação da rotatividade
cultural. 0 conhecimento não é mais uno e sim múltiplo, pois
múltipla é a experiência vivida que deve ser transmitida,
tal como os produtos são trocados no comércio. 0 Cosmo ganha
vitalidade. A circulação, que implica a possibilidade do
novo, é a redescoberta de uma origem similar àquela do
momento primordial da criação.
173
Os descobrimentos, ao permitirem um re-conhecimento do
mundo, traziam consigo uma nova leitura da existência
humana. A Igreja, detentora do saber primordial sobre as
origens da civilização ocidental, redireciona suas
explicações. 0 microcosmo medieval é implodido, e surge um
macrocosmo que o pensamento cristão tem que reordenar. 0
novo precisava ser inserido no discurso religioso das
Escrituras Sagradas, como parte componente dissociada da
célula materna, algo perdido que era achado.
As terras americanas acenavam para um reencontro das
partes, até então desunidas, há muito imaginado e pouco
crivei. Só uma lógica as envolvia, pois uma única razão as
tinha tornado possível; o ponto comum entre ambas, nesse
contexto, era que o monoteísmo cristão reunia de maneira
convergente, todas as coisas criadas pelo ente divino. Deus
era o centro do universo. Conforme observou Theodoro:
"A América, o novo mundo, é exótica apenas na sua aparência, pois
faz parte da grande obra de criação, contendo, em essência, a mesma
verdade que está no relato bíblico"10 .
A verdade fundamental do católico, enquanto universal,
atingia sua amplitude máxima, nascia a certeza de que o
grande articulador e controlador divino ofertara ao homem a
10 THEODORO, Janice, op. cit., p. 47.
174
possibilidade de conhecer os seus pares, regulados por uma
mesma ordem e uma mesma regra geral que era o cristianismo.
Desta forma, apresentava-se aos olhares curiosos da época
como uma dádiva divina. Deus oferecera senão o Paraiso, pelo
menos algo muito próximo de uma situação idilica, há muito
tempo desejada. As novas terras são inseridas num contexto
religioso de concepção que entendia que o universo, feito
por Deus, é ampliado pelo engenho do homem europeu. As
descobertas eram o sinal de uma nova era. 0 homem conseguia
contemplar a onipotência divina e sua criação na sua
plenitude11
0 surgimento de um outro elemento totalmente
desconhecido, frente à identidade européia, gerou a
necessidade de introduzir um processo de transformação, ou
aproximação que significava a inserção do novo dentro do
velho mundo, que se consolidara com a preponderância do
modelo europeu. Estruturas e regras foram sistematizadas,
semelhanças foram ressaltadas, diferenças atenuadas, a
sistematização do saber das Escrituras Sagradas orientou
para que se criasse um conjunto comum de regras e práticas
necessárias para um convivio harmonioso.
ii Thevet afirmava: "tornou-se a navegação pouco a pouco tão comum entre os homens, que
muitos, passando mesmo além de incertas e perigosas ilhas, alcançaram por fim a boa e
fértil terra firme, realizando um feito que, pelo que se deduz dos textos antigos, não foi
nunca dantes igualado". THEVET, André, As Singularidades da França. Antártica, p. 17.
175
Há um reducionismo que conduz a humanidade da diferença
à identidade, e sendo a humanidade cristã, segundo a ótica
européia, há uma "planetarização global e total do
cristianismo"12 .
A Igreja, enquanto instituição modelar, assumia o grande
papel que as descobertas lhe reservara, quanto a constituir
as amarras de ligação com fios tênues, permitindo um
trânsito cultural, ao mesmo tempo que se efetivava a
aculturação do continente americano a partir do modelo
eurocêntrico cristão. A cristandade descobre a existência de
um outro universo, povoado de não cristãos até há pouco
tempo inimaginável, mas desde a origem inferior, por não ser
cristão. Este posicionamento etnocêntrico europeu tendeu a
aprofundar os mecanismos de leitura do "Outro" sempre como
inferiores, pelo seu distanciamento do padrão matriz
europeu, pois a concepção medieval não permitia uma
concepção de mundo que não fosse a do "orbis christianus"13 .
Essa alteração ou reordenação da estrutura mental
européia de incorporação do novo/desccnhecido, ou seja, do
12 BARRETO, Luís Felipe, op. cit., p. 39.
13 José Maria de Paiva, esclarece no seu estudo que: "A concepção de mundo oferecida pelo
"orbis christianus" explicitava a ordenação do universo através de leis, que se reduziam
todas à lei, que Deus era". PAIVA, José Maria, op. cit-, p. 61.
176
"novus/a1 ter", dentro do "orbis" processou-se de maneira
morosa no seio do corpo social. A sociedade européia,
baseada na concretitude vivencial, demoraria a desenvolver
novos raciocínios científicos inaugurados com o
renascimento. Preponderavam ainda os limites da analogia e
semelhanças para a descrição das coisas do mundo.
Os discursos orais desse periodo revelavam-se pouco
convincentes para uma credibilidade imediata. Os testemunhos
de vista como os de Marco Polo e Mandeville, apesar de
revelarem aos europeus a diferença, eram passíveis de
contestação das afirmações desses testemunhos, pelo grau de
maravilhoso que possuiam para o europeu, além de impeli-lo a
romper com sua cosmovisão, inaugurando outra totalmente
distinta. Como observou Barreto:
"A força dos obstáculos etnocêntricos é ainda profundamente
dominante e o outro é sempre bem mais uma falha/falta, um espelho
invertido do mesmo, que uma diferença"14
A Igreja e suas instituições, consideradas como
difusoras, definiam o padrão de identidade cristã da qual a
expansão, especialmente a expansão colonial dos portugueses,
surge "como concretização histórico-humana de desígnios e
projetos transcendentes-absolutos"15 .
14 BARRETO, Luis Felipe, op. cit., p. 35.
15 BARRETO, Luís Felipe, op. cit., p. 38.
177
As embarcações lusitanas simbolizavam a viabilidade de
congraçamento universal, que os mapas e a cartografia
náutica concretizavam em nivel da representação. 0 novo
adquiria forma através dos conhecimentos informativos dos
navegantes e viajantes. Terras, mares, culturas, o mundo
natural imaginado tridimensionalmente pelo europeu, chegavam
às suas mãos por vias bidimensionais; escritos, relatos,
cartas, diários, compõem, com os testemunhos orais, o
progresso da humanidade que se iniciara com as técnicas de
navegação. A instrumentalização e observação do navegar
desmembrava-se por extensão, para os demais campos. Os
descobrimentos formam, conforme Barreto, um quadro de
"(...) linguagens/pensamentos acentuadamente subjetivos/valorativos
e, por isso, vocacionados para o reconhecimento normativo do
fenômeno da expansão, isto é, para uma avaliação onde se pesam os
valores do ser e do dever ser (político, moral, comportamental,
epistêmico, etc.) da aventura planetária" 16 .
É interessante notar ainda, que o século XVI, dentro do
contexto das descobertas, como trata Barreto, marca a
construção do experiencialismo, delineado entre suas
propostas: "a do experiencialismo como empirismo sensorial e
16 BARRETO, Luís Felipe, Portugal Mensageiro do Mando Renascentista, p. 25. Ver também
CARVALHO, Joaquim de, op. cit-, pp. 51-73.
178
a do experiencialismo como racionalismo crítico
experiencial"' ' .
Esta ordem do saber, antes de mais nada, revela a
convivência mútua de duas formas de pensar a realidade,
tipica do periodo de transição do mercantilismo para o
capitalismo e que em nivel cultural é marcado pela migração
da fé para a racionalidade. 0 empirismo sensorial,
atribuindo à vivência de cada individuo papel central, pela
evidência da observação, entende que dela deriva a
acumulação informativa que compõe o arcabouço de
conhecimento do individuo18 . A mensuração, oriunda dos
descobrimentos, revelava um dos principais problemas do
homem moderno, que era determinar com precisão as distâncias
entre os diversos pontos do globo terrestre. Logo, o
quantificar das descobertas dava a conhecer o avanço
vagaroso do pensamento cientifico, que romperia com a
exclusividade do saber cristão sujeito à Igreja.
A construção da imagem do Novo Mundo é o simulacro do
velho; o novo, pelo sensorial, remete ao velho e dali nasce
o significado e a dimensão da cultura universal.
17 BARRETO, Luis Felipe, op. cit., p. 33.
18 ibidem, p. 33.
179
0 papel desenvolvido por Portugal nesse processo de
expansão, além de ser decisório para o rompimento dos
estreitos limites que envolviam o homem europeu, contribuiu
para consecução da circulação cultural. Barreto afirma que
"Os portugueses são os olhos do mundo e ouvidos da Europa, o
comunicador intercivilizacional por excelência da cristandade"19 .
0 reino português, sistematizador de teorias e difusor
de conhecimentos, concentrou um conhecimento técnico e
empirico entremeado pela religiosidade cristã, fórmula que
extrapolou os limites da epistemologia teórica e foi
disseminado pelo mundo, pela praticidade dos portugueses.
Conforme afirmou Holanda, os marinheiros e exploradores
portugueses do periodo, tendo a experiência como mestra,
constituíam "os olhos que enxergam, as mãos que tateiam" e
que iriam mostrar "constantemente a primeira e última
palavra do saber" ao mundo20 .
Se os portugueses eram os olhos do mundo e os ouvidos da
Europa, como afirmou Barreto, sem dúvida os jesuitas
compunham de forma complementar, o paladar e o olfato da
cristandade portuguesa e européia, através dos quais a
comunicação intercivilizacional se processou.
19 BARRETO, Luis Felipe, Os descobrimentos e a ordem do Saber, p. 56.
20 HOLANDA, Sérgio B., op. cit., p. 11.
180
0 século XVI, com as descobertas, revelou a Portugal e à
Europa, pela visão e audição, um requestionamento cultural e
religioso. O novo necessitava ser assimilado dentro do todo,
até então conhecido, e sua inserção se deu através das
similitudes. O olhar europeu busca no novo elementos que
possam identificar marcas comuns a ambos os universos,
empreendendo aproximações e reforçando a cultura cristã como
superior.
A grande dificuldade desse processo é que o novo, pela
existência autónoma que lhe é peculiar, possui um grau de
dessemelhança grande em relação ao universo europeu. Por
conseguinte, partindo-se de uma visão eurocêntrica, os
demais povos eram vistos em função da proximidade em que se
encontravam do modelo padrão, tido como civilizado, e a não
proximidade apontava para um estágio primitivo humano21 .
Esta leitura das relações de contato marcam o antagonismo de
Natureza e Cultura presente na leitura da alteridade desde a
Antiguidade22
21 Sobre o assunto ver: PAIVA, José Maria de, op.cit., p. 23.
22 Para uma discussão da dualidade Natureza/Cultura ver LEACH, Edmund, Wataxeza/Caltara in
Enciclopédia Einaudi Anthropos-Homfím, Tradução de Rui Pereira e Miguel Serras Pereira,
Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, vol. 5, 1985, pp. 67-101.
181
Após a efetivação das primeiras ocupações e do
reconhecimento da região e dos povos que nela habitavam,
necessário se fazia repensar os elos de ligação destes seres
tão exóticos em relação às concepções biblicas modelares.
Como observou Theodoro, ao analisar a obra de Las Casas:
"Dominicanos e jesuitas, mantendo perfis narrativos peculiares,
caracterizaram suas obras por uma preocupação em englobar a história
dos indios na obra da criação"23 .
A preocupação primeira era realizar um cruzamento que
apresentasse similaridade e pontos em comum, que reforçasse
a narrativa biblica ou apontasse para vestigios de um
cristianismo primitivo. No contexto brasileiro, o elemento
mais forte dessa ligação, utilizado pelos primeiros
jesuitas, foi a identificação do Pai Tomé dos indígenas,
como São Tomé cristão. Holanda destaca em "Um mito luso-
brasileiro”, que a lenda do apostolado de São Tomé, nas índias
e nas outras regiões do mundo, era amplamente divulgada. Já
pelos idos de 1516, circulavam versões da estada de São Tomé
na terra dos brasis, publicada na "Nova Gazeta Alemã”,
baseada na viagem de D. Nuno Manuel e Cristovão Haro24 .
São Tomé, reverenciado pelos indios como aquele que
teria fornecido as raízes de que se fazia o Pão, era o
23 THEODORO, Janice, op. cit., p. 91.
24 HOLANDA, Sérgio B., op. cit., p. 110, ver também DIAS, J. S. da Silva, op. cit-, p. 70.
182
elemento identificador de uma herança comum25 . De imediato
os universos se cruzam e confirmam o beneficio de ser
cristão. São Tomé, enquanto missionário, é representante de
Deus que possibilita a existência indigena fornecendo-lhe o
básico da alimentação. As informações sobre o apóstolo, como
vestigios concretos, também comprovam o elo de ligação,
desse povo, com a cristandade. Nóbrega menciona que:
"também tem notícia de São Tomé e de um seu companheiro, e em esta
Baia estão umas pegadas em uma rocha que se tem por suas, e outras
em São Vicente, que é no cabo desta costa. Dizem que ele deu o
mantimento que eles agora tem, que são suas raízes de ervas; estão
bem com ele, posto que de um seu companheiro dizem mal".
0 dilúvio, muitas vezes mencionado como ponto de contato
cultural, ao mesmo tempo que dá respaldo ao relato biblico,
apresentava-se como idéia constatável na memória coletiva da
humanidade, sendo esta memória cristã.
A versão do dilúvio era narrada com variações, ambas
relatadas por Nóbrega. A primeira identificava como
sobrevivente somente uma velha:
25 Nóbrega afirma que: "Também me contou pessoa fidedigna que as raízes de que cá se faz
ho pão, que, S. Thomé as deu, porque cá nom tinhão pão nenhum". Carta do P. Manuel da
Nóbrega ao P. Simão Rodrigues, Baia, 15 de abril de 1549, in LEITE, Serafim, op. cit.,
vol. I, p. 117.
183
"Tem noticia do dilúvio de Noé, posto que não segundo a verdadeira
história, porque dizem que morreram todos, senão uma velha que
escapou em uma árvore alta"26 .
Na segunda versão, os sobreviventes escolhidos é um
casal que, salvando-se, teria dado origem à humanidade:
"Tem memória do dilúvio, porém falsamente, porque dizem que
cobrindo-se a terra de água, uma mulher com seu marido, subiram em
um pinheiro, e depois de baixadas as águas desceram, e daqueles
procederam todos os homens e mulheres"27
Apesar da similaridade dos fatos, a versão indigena não
era aceita, pois negava a descendência divina do ser humano,
conforme o relato biblico. Noé não subiu em uma árvore, o
que impedia associações mais profundas, porém sua arca era o
marco de um desenvolvimento material de superioridade, que
emerge durante a construção das amarras cristãs28 .
Indicios de uma ligação possivel, mas pouco aceita,
revelam simbolos perdidos num universo cultural distinto,
que o europeu considerou em suas reflexões, no sentido de
entender o novo dentro do velho, que conforme Holanda foi
criada com a colaboração de missionários de forma tal que,
"se incrustaram, afinal, tradições cristãs em crenças
26 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Martin de Azpilcueta Navarro. Salvador 10 de
agosto de 1549, in LEITE, Serafim, ibidem, vol. I, p. 138.
27 Informação das Terras do Brasil do P. Manuel da Nóbrega (Aos Padres e Irmãos de
Coimbra). Baia, agosto de 1549, in LEITE, Serafim, ibidem, vol. I, 153.
28 Thevet também se refere ao dilúvio relato pelos indígenas ver THEVET, André, op. cit.,
p. 172.
184
originárias dos primitivos moradores da terra"29 Elos
frágeis de uma corrente cultural que começava a ser
concatenada e precisava solidificar as suas conexões,
através de um espirito religioso e guerreiro que emergia. A
Igreja via-se "impelida a uma ampla revisão de suas antigas
posições, buscando renovar a própria estrutura ideológica de
acordo com a imagem do mundo que se começava pela primeira
vez, a descortinar, a simples tentativa de identificação de
um herói mítico ancestral dos índios do Brasil com o
apóstolo das índias, deveria simplificar as dúvidas,
fornecendo uma solução concreta e histórica para o
problema"30
Se a lenda de São Tomé se mostrou ineficaz para a
solução do problema, sua imagem não o foi. Transportada para
o Novo Mundo, esta imagem do guerreiro implicava reger a
conquista. Recordando seu exemplo, era possivel construir
uma igrej a, tal como o apóstolo fizera. São Tomé era o
portador da tradição de conquista da Igreja Católica.
Os jesuitas, imbuidos de fundamentos teológicos
medievais, principalmente aqueles que norteavam as ações das
cruzadas, consideravam dentro desta perspectiva, que sua
29 HOLANDA, Sérgio B., op. cit., p. 113.
30 ibidem, p. 129.
185
missão era cristanizar e aumentar o universo cristão,
respeitando e ampliando a ordem dos governos vigentes que
possibilitaram a atuação da Companhia. Eram eles os
"guerreiros de Cristo" na luta para a expansão das asas da
caridade, da fé católica, e dc poderio económico
expancionista europeu31
0 papel do inaciano tendeu a ser um elo de ligação e
equilibrio entre as partes componentes da sociedade e, por
conseguinte, mantenedor e defensor da legitimidade dos
governos nacionais nas terras americanas. A Companhia de
Jesus agia para garantir o bom funcionamento do corpo social
e da conversão destes para o catolicismo.
Mediadores entre o espiritual e o temporal, o poder
reivindicatório dos jesuitas era limitado. Conciliadores,
por formação, não procuraram tecer articulações que
abarcassem grandes propostas radicais junto à sociedade.
Voltados para um passado ideal, essencialmente guerreiro, as
propostas restringiam-se a projetos conciliatórios frente às
mudanças, as quais inevitavelmente tenderam a se compor com
o da ordem econômico-politica vigente, pois dela advinha a
sustentação da Companhia. 0 Novo Mundo era amarrado ao
31 Carta do Ir. Vicente Rodrigues aos Padres e Irmãos de Coimbra. Baia, 17 de maio de
1552, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, P- 313.
186
continente europeu, como parte secundária de uma máquina já
em funcionamento.
A própria formação jesuitica apontava que o papel do
futuro companheiro de Jesus deveria ser mais o de um
facilitador, entre o humano e o divino, do que propriamente
um questionador da estrutura de desigualdade social ou da
garantia dos povos recém-achados.
Inigo de Loyola, após sua conversão para a vida
monástica, redigiu uma pequena obra que norteou a formação
dos primeiros jesuitas e daqueles que os cercavam. Nesta
obra são sumarizadas as principais concepções da existência
humana dos Quinhentos.
Os Exercícios Espirituais, escritos por Loyola, não
constituíam uma elaboração teórica sobre o cristianismo
frente às novas descobertas nem pretendiam defendê-lo dos
ataques que vinha sofrendo. Os Exercícios, muito mais
pragmáticos do que teóricos, visavam antes de mais nada a
reunir o ser humano ao seu criador, afastado por motivos
terrenos (advindos da intensificação do mercantilismo e das
descobertas), conclamando o ser humano ao discernimento e à
aproximação com Deus. Partindo do pressuposto de que a
condição humana era pecadora, por não reverenciar a Deus, os
187
Exercícios se apresentavam como uma atividade controlada e
metódica a ser praticada por todo o exercitante que,
assumindo seus pecados, desejasse redimir-se. A união dos
dois mundos, diversos e separados, nada mais era do que a
decorrência de uma união da criatura com criador. 0 plano da
vivência religiosa definia e unia toda a humanidade32 .
Esta obra, muito mais que uma atividade auto-pedagógica
religiosa, criada em função de um modelo europeu, serviu e
inspirou a forma de agir e de pensar dos primeiros jesuitas
que, através da prática catequética, deixaram transparecer
que esta nova parte do mundo em que atuavam como todas as
outras recém-incorporadas ao contexto europeu, deveriam
convergir para Deus, por intermédio de Cristo e de seus
companheiros.
Os Exercícios elaborados para um universo europeu,
passaram a ser utilizados para a conversão do gentio, sendo
utilizados como parte do processo de catequização que guiava
as criaturas perdidas do rebanho a se reencontrarem com
Deus. 0 ideal de Cruzada, enquanto combate contra hereges e
infiéis, transparece na sistematização dos Exercícios, que
32 Barthes adverte que: "les Exercices D'Ignace sont fondés en écriture. II n'est pas
nécessaire d'être jésuite, ni catholique, ni chrétien, ni croyant, ni humaniste, pour
s'y intéresser." BARTHES, Roland, Sade, Fourzer, Xoyola, p. 46.
188
repetiam no plano religioso, a fidelidade dos cavaleiros
para com o rei (Deus), modelo este sugerido explicitamente.
Loyola, ao concluir o roteiro para as reflexões da
primeira semana dos Exercidos, complementa suas observações
realizando adições para que o exercitante pudesse fazer
melhor as suas práticas e assim encontrar o que desejava.
Aconselha o fundador da Companhia, o seguinte procedimento:
"Quando acordar, sem me deter em pensamentos distrativos, pensarei
logo no assunto de contemplação do exercício da meia-noite,
excitando-me à confusão por meus pecados tão numerosos, Propor-me-ei
algumas comparações, como por exemplo, a de um cavaleiro que se
encontrasse diante do seu rei, e de toda a corte, envergonhado e
confundido, por haver ofendido enormemente aquele de quem antes
recebera numerosos benefícios e favores"33 .
0 ideal de conduta a ser seguido é o de obediência.
Aquele que pratica os Exercícios deve ter consciência de que
as reflexões, apesar de se dirigirem ao plano espiritual,
tomam como pressuposto as condições terrenas de ordenamento
social.
Os Exercícios Espirituais, elaborados por Loyola, através de
interrogações, tinham como objetivo auxiliar o penitente a
ordenar a sua vida, a "examinar a consciência, meditar,
contemplar, orar vocal ou mentalmente e outras atividades
33 SANTO INÁCIO, Exercícios Espirituais, p. 57-58.
189
espirituais.Z,34 , a fim de tirar "todas as afeições
desordenadas"35 , em relação a Deus, que deveriam ser o
centro de todas as suas atividades36 .
As quatro partes constituintes dos Exercícios
enfatizavam, como exemplo, a "vida de Nosso Senhor Jesus
Cristo" em cada uma de suas fases, as quais deveriam servir
de modelo para a vida prática do exercitante e de toda a
humanidade cristã.
Loyola, de forma clara e objetiva, definia que a força
motriz do processo de reaproximação da criatura com o
criador era o da conversão para uma vida regrada, a qual
estava na base do processo educacional do individuo que era
também a do jesuita. Seguindo uma proposta rigida de
conduta, o modelo deveria ser reproduzido. Esta missão
deveria ser conduzida e impulsionada pelos reis escolhidos
por Deus que, ao conquistarem a terra de infiéis,
possibilitavam a reunião de toda a humanidade com o seu
criador, que Portugal com seus olhos bem abertos
visualizou37 .
3^ ibidem, p. 11.
35 ibidem, p. 12.
36 Barthes identificava quatro categorias de discurso na obra de Loyola. BARTHES,
Roland, op. cit., p. 49.
37 SANTO INÁCIO, op. cit., pp. 65-66.
190
Aquele que guiava o exercitante38 deveria ser um
facilitador da ação do Criador com a criatura e vice-versa.
A meta era reestabelecer a ordem primordial, perdida com o
afastamento do Criador, sendo que a criatura deveria mostrar
essa alteração, inclinando-se para a luz divina e para uma
nova vida espiritual, muito próxima daquela descrita no
Génesis39 .
É importante destacar que, o pressuposto para
compreender a existência humana nos Exercícios estava
atrelado à concepção biblica de que as criações divinas
foram concebidas para louvar a Deus. Assim, o principio
fundamental do modelo ideal, salientado por Loyola, entendia
que o "homem é criado para louvar, reverenciar e servir a
Deus Nosso Senhor, e assim salvar a sua a Ima". Por
conseguinte, as demais coisas terrenas são concebidas como
um elo de aproximação do homem com o ente divino, pois são
"criadas para o homem", a fim de "que o ajudem a alcançar o
fim para que é criado", que é servir a Deus e privando-se
"delas tanto quanto dele o afastem"40 .
38 Os exercícios poderiam ser recebidos por intermédio de um religioso, ou realizados de
forma direta pelo exercitante, daí sua exposição pedagógica e minuciosa. Pela ocasião da
elaboração dos Exercícios Espirituais, a Companhia de Jesus não existia, portanto, o
caráter aberto para qualquer religioso servir como mediador. Com a fundação da Companhia,
esta função passa a ser exercida pelo jesuíta.
39 ibidem, p. 21.
4° ibidem, p. 28.
191
0 mundo natural como parte do processo de ascese, se
manifestava de maneira a confirmar o criador. A natureza
assumia, momentaneamente, sensibilidades que reforçavam a
existência divina. Tendo como pressuposto a natureza como
parte do processo de ascese, é que se deve compreender a
ressonância das metáforas correlatas aos elementos naturais
que dão sustentação à praxis jesuitica.
É com alegria e esperança que Antônio Pires41 ressaltava
o comportamento de um chefe indigena, que ao desejar a ação
catequética jesuitica, afirmava:
"Vinde, muito folgo com vossa vinda, alegro-me muito com isto OS
caminhos folgam, as ervas, os ramos, os pássaros, as velhas, as
moças, os meninos, as águas, tudo se alegra, tudo ama a Deus"42 .
Os Exercícios, enquanto diálogo com Deus, eram a
confissão explicita de um pecado, o rompimento com Deus e a
negação do divino ou do distanciamento em relação ao
Criador43 . Esta questão ocupou a atenção da Igreja durante
o periodo final da Idade Média, que entendia a confissão
como uma forma de exercer um controle social mais ativo44 .
41 Antônio Pires nasceu em Castelo Branco, Portugal, nos idos de 1519. Entrou para a
Companhia, já Padre, a 6 de Março de 1548. Chegou ao Brasil em 1549. Faleceu na Bahia a 27
de Março de 1572.
43 Carta do P. Antônio Pires aos Padres e Irmãos de Coimbra. [Aldeia de Santiago], Baia,
22 de outubro de 1560, in LEITE, Serafim, op. cit-, vol. III, p. 313.
43 SANTO INÁCIO, op. cit., p. 50.
44 Para uma discussão aprofundada sobre a importância da confissão dentro do periodo ver
DELUMEAU, A Confissão e o Perdão, pp. 13-96.
192
Dentro desta conjuntura histórico-social, os Exercícios
podem ser classificados como parte de uma preocupação
religiosa e cultural da Igreja Católica, que surgiu após o
Concilio de Latrão IV (1215), o qual definia a
obrigatoriedade da confissão anual para todos os cristãos.
Os diversos manuais produzidos no periodo, visando a nortear
as confissões ou a elaborar modelos de conduta, demonstram
que dentro dos limites do catolicismo a questão não foi
marginal, pois estes escritos definiam a inserção direta da
Igrej a na sociedade, regulando-a em função do modelo
controlador cristão. Delumeau, ao analisar a documentação do
periodo, no que se refere às práticas religiosas, destaca
que há uma abundância documental, basicamente normativa, que
tinha por meta indicar aos padres " como confessar e aos
fiéis como confessarem-se"45 .
Este ponto comum, de que o homem era um pecador pela sua
condição mundana, da qual a confissão nada mais era do que
um passo para a conversão, revela que o catolicismo esperava
uma mudança de conduta, que os Exercícios reforçavam e
tomavam como base para alcançar Deus. Aquele que procurava
realizar os Exercícios, exteriorizava o seu discernimento e o
arrependimento de uma vida pecadora.
45 DELUMEAU, op. cit., p. 9.
193
Para trilhar de novo, os caminhos do reencontro, o
exercitante deveria ser acompanhado por um guia, a fim de
conseguir a ascensão e obter o perdão. Esta situação era
comum a todos os homens e por extensão, condição do gentio,
que não tinha nenhum conhecimento de Deus. Contudo, o ato
voluntário, que muitos empreendiam para esta confissão, era
visto como vantajoso, pois demonstrava um reconhecimento
intimo e um preparo para receber o Santissimo Sacramento.
Deus já teria tocado a alma daquele que assim procedia,
apontado para uma conversão na iminência de se concretizar.
Entendendo que a consciência possuia livre arbitrio para
optar entre os espiritos do Bem ou do Mal, que tendia a
conduzir a consciência, cada um em sua direção, o praticante
é impelido a agir, tendo que guiar seus pensamentos para a
purificação e a confissão.
0 gentio, por sua condição natural, encontrava-se
perante esta decisão fundamental para sua salvação e não
tinha consciência para fazê-lo por si só. Necessitava de
alguém que o conduzisse em direção ao Bem, que facilitasse o
seu acesso ao contato com Deus.
194
Os Exercícios Espirituais pressupunham ainda uma ação
contida principalmente na fala.
"Não devemos dizer nenhuma palavra ociosa. Por palavra ociosa
entendo aquela que não tem utilidade nem para mim, nem para outrem,
nem se ordena a tal fim. De forma que não é palavra ociosa falar
daquilo que aproveita, ou se diz com intenção de aproveitar à
própria alma, ou à de outro, ao corpo ou aos bens temporais, mesmo
que se fale de assuntos estranhos à própria profissão, como um
religioso a tratar de guerras ou de comércio"46 .
Desta forma, aquele que aplica e aquele que recebe devem
ser o mais objetivos possivel em suas palavras. A fala é o
dom divino que tem por intuito celebrar o ente divino. Logo,
todo e qualquer discurso deve estar circunscrito na sua
utilidade celebrativa de louvor.
0 cenário para os contatos com Deus são sugeridos
normalmente, no preâmbulo de cada um dos Exercícios. Ele
permite compreender um processo de composição do espaço via
imaginário, que tenta reconstruir um espaço ou idealizá-lo
concretamente com precisão em nivel temporal47 .
0 lugar concreto é um lugar ideal e está associado ao
espaço sagrado, templos, montes, sinagogas, aldeias, que
permeiam as passagens biblicas escolhidas para a reflexão, e
46 SANTO INÁCIO, op. cit., p. 37.
47 BARTHES, Roland, op. cit.. p. 54.
195
principalmente aqueles que Cristo percorreu durante sua vida
são um espaço convertido48 .
Imaginar o local na sua concretitude, dimensão, sons,
odores é fundamental . 0 esforço, solicitado por Loyola,
dirige-se no sentido de conferir a aproximação mais fiel,
para sensibilizar o exercitante a promover a sua reordenação
com Deus. 0 mundo natural era o meio que fornecia os
elementos palpáveis para a transformação, onde a disciplina
da imaginação era fundamental para sustentar a meditação49 .
0 exercitante, ao realizar os Exercícios, confirmava a
posição de inferioridade e dependência de Deus proveniente
do pecado original e da perda do Jardim do Éden. A
presentificação do pecado aprofundava o sentimento de dor e
culpa associando sua dor com a de Cristo. Isto significa
que a imagem de Cristo na cruz confirma que a vida humana só
foi possivel com a morte temporal do Salvador que morreu
pelos homens50 .
0 homem que não praticasse os Exercícios estava na
iminência de precipitar-se no inferno. Sua ação, mesmo que
tardia, enquanto exercitante, apontava para um reordenamento
48 SANTO INÁCIO, op. cit., p. 44 e 65.
49 ibidem, p. 55.
50 ibidem, pp. 46-48.
196
salvacionista, não só do ser humano, mas do próprio gênero
humano que se encontrava em situação análoga.
Estes elementos norteadores que conduziam a ação dos
jesuitas, no contexto brasileiro, assumiram nuances
peculiares. Aqueles que recebiam a palavra sagrada deveriam
compreender a ação divina sobre toda a humanidade como um
ato benevolente, responsável pela articulação do sincronismo
do mundo por Deus, sendo que o mundo natural era o meio pelo
qual vinculos correlacionais eram construídos.
Os povos recém-descobertos eram vistos pelos jesuitas
como seres mergulhados numa cegueira nociva que, após a
morte, desceriam ao inferno e por isso necessitavam de um
cuidado especifico para alcançar a salvação. Com efeito,
conforme aborda Silva Dias:
"Havia agora a certeza de que o Evangelho ainda não fora anunciado a
todos os homens. E não podia deixar de ser dramático, à luz das
concepções teológicas dominantes, que nem a todos os homens tivesse
sido dada a oportunidade de se salvarem através do baptismo"51 .
As dificuldades eram muitas e a exiguidade de recursos,
que afligiam os jesuitas, tende a comparar-se com aquelas
que o casal Maria e José padeceram em sua viagem por terras
estranhas: fome, sede, calor, frio, injúrias e afrontas.
51 DIAS, J. S. da Silva, op. cit., p. 48.
197
Nos discursos produzidos nas cartas, percebe-se que a
argumentação principal se dirige no sentido de persuadir e
demonstrar ao leitor que a ação missionária era possivel e
benéfica, por decorrência necessária. Todos os cristãos
deveriam realizar a aproximação do gentio com Deus.
Nóbrega, com muita astúcia, utilizava-se deste argumento
para evidenciar a atuação jesuitica, logo na primeira carta
após sua chegada à Bahia:
"é gente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem Ídolos, fazem tudo
quanto lhe dizem"52 .
Os simbolos religiosos, utilizados para remeterem à
associação com Deus, nesse primeiro contato cultural,
envolviam diretamente elementos da natureza, geralmente em
função dos atributos que Cristo recebeu do Pai divino. A
natureza era cenário e meio para que a mensagem catequética
se realizasse. E, conforme observou Theodoro, ao analisar
Exercícios Espirituais,
"A relação entre imagem, pensamento e palavra constituem a memória
como sistema capaz de criar analogia entre signos de poder"53 .
52 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simâo Rodrigues. Baia [10 de abril] de 1549, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 111.
53 THEODORO, Janice, op. cit., p. 59.
198
A interferência divina, sempre presente como reforço
para a ação missionária, servia como exemplo de aceitação da
prática jesuitica na expansão da fé católica e da
catequização. Reiteradas vezes, fatos das atuações do
inaciano são associados ao desejo divino que se
exteriorizava, via de regra, através da natureza para
confirmar os beneficies advindos da introdução da fé
católica ou para condenar aqueles que se afastam dela.
0 controle da natureza por Deus conduzia à efetivação da
grande obra de catequização. Os condicionantes do meio
fisico impunham uma barreira dificil de ser transposta pelos
homens dos Quinhentos, e podiam levar à morte toda a
tripulação das naus. Contudo, se esta embarcação fosse
responsável pela divulgação da palavra divina, a
intervenção miraculosa do ente divino se apresentava,
conduzindo os jesuitas à realização de seu objetivo. Levou
"N. Senhor [a embarcação] contra vento por aquela boca
estreita (...) «54 . A salvação do navegante da fé acenava
como uma salvação maior, a de toda a humanidade ainda não
convertida.
54 Carta do P. Brás Lourenço aos Padres e Irmãos de Coimbra. Espírito Santo, 26 de março
de 1554, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 42.
199
Os anseios e desejos dos loiolanos, portanto, são
reforçados por dádivas que favorecem a prática religiosa.
Via de regra, a manifestação divina se fazia concreta
através dos elementos da natureza necessários à expansão da
atividade de catequização. Irmão Vicente Rodrigues55 relata
que:
"Estando los Padres en Puerto Seguro fundando una casa, no aviendo
agua que fuese buena para beber deseavan ahí cerca una fuente. Quiso
Dios que en esta conjunción caió hum monte, y con el abrir de la
tierra se abrió la más fesca y hermosa fuente que ai en aquella
tierra. Y proque la casa, que fundavan, es de la invocación de
nuestra Sennora, se llama la dicha fuente, entre los christianos y
gentiles, "la Fuente de la Senora"56 .
A fonte aberta não propicia somente a ação divina,
enquanto símbolo; mas concretiza a transmutação que um
elemento natural pode ter ao deixar de ser uma água comum
para ser "fonte de saúde aos enfermos", que os jesuitas
entendem como decorrência da sua chegada 57
Antônio Pires baliza a diferenciação das Terras de
Santa Cruz entre, antes e depois dos jesuitas. 0 marco
55 Vicente Rodrigues nasceu em Portugal nos idos de 1528. Entrou para a Companhia 16 de
novembro de 1545 e seguiu para o Brasil na primeira expedição.
Faleceu no Rio de Janeiro a 9 de junho de 1600.
5® Carta do Ir. Vicente Rodrigues por Comissão do Governador do Brasil Tomé de Sousa ao P.
Simão Rodrigues. Baia, maio de 1552, in LEITE, Serafim, op. cit-, vol. I, p. 321.
57 Antônio Pires menciona: "Ha hecho hazer una hermita alli, a la qual la gente es muy
devota y es muy visitada de romerias. Díze-se por toda la costa que una fuente que se
abrió después de la fundación de la hermita da salud a los enfermos". Carta do P. Antônio
Pires aos Padres e Irmãos de Coimbra. Pernambuco, 2 de agosto de 1551, in LEITE, Serafim,
op.cit., vol. I, p. 260.
200
jesuítico transformador é exaltado pela própria natureza que
exterioriza a aprovação de Deus, em relação à prática
missionária. Assim afirmava o Irmão aos seus pares de
Coimbra:
"Esta capitania [Pernambuco] é terra de ntuito tráfego e onzenas e
outros peccados, que á força de virtude se hão de tirar e não com
meu exemplo. Já agora dizem que se vão tirando e eu tenho ouvido
dizer a homens que têm os olhos alum tanto abertos, que depois que a
ella viemos, das dez partes dos peccados que nella havia, as oito
são fóra. E assi havia quatro ou cinco annos que não chovia nella, e
este anno choveu tanto e recolheram tanto mantimento que é pasmo, e
já os da terra se vão persuadindo que por causa dos peccados não
chovia: louvam muito a Deus"58 .
A noção dualística entre um mundo material, mau por
excelência, oposto a um mundo espiritual, bom, que ora se
manifestava, permeia o discurso e a mentalidade do jesuíta.
A criação das coisas naturais só são qualificadas como boas,
caso sejam identificadas com Deus, recebendo a dádiva da
intencionalidade divina. O jesuíta entende a sua prática
umbilicalmente ligada às atuações divinas na natureza,
devido ao convívio de integração espelhado na vida de
Cristo.
As imagens simbólicas atribuídas a Jesus na sua atuação
junto ao gentio, para a propagação da seita cristã, seriam
recuperadas totalmente pois, o gentio dos primeiros anos do
58 Carta do P. Antônio Pires, Pernambuco, 5 de junho de 1552, in Cartas Avulsas, vol. 2,
p. 149.
201
cristianismo era tão hostil quanto aqueles encontrados nas
novas terras. A ação benéfica de Cristo resida também em
poder converter elementos do mundo natural em produtos
diferentes da sua existência primeira. Assim, o jesuita
associou à sua prática por um processo de concatenação
direta, ora a figura de um pastor, ora a de um agricultor,
sintetizando nestas imagens o dom ofertado por Deus para a
ação do homem junto à fauna e à flora.
O elemento indigena assume, dentro desta leitura,
várias representações simbólicas: ovelhas perdidas, uvas de
uma vinha que não produz bons vinhos, metáforas comuns O
densas de significados, que além de se associarem aos
escritos sagrados, revelam como uma mentalidade jesuitica
construiu ligações para unir os dois mundos, utilizando-se
da natureza empirica que confirmava as verdades das
Escrituras Sagradas. Rui Pereira59 relata aos Padres e
Irmãos de Coimbra que:
"quantas razões temos de nos alegrar vendo que, além do fruto dos
nossos trabalhos que na glória esperamos, vemos na terra criarem-se
tantas plantas para o céu, e que gosta Deus delas tanto que parece
que antes de serem de vez as colhe, e que não pode esperar
dilação!"60 .
59 Rui Pereira nasceu em Braga, Portugal, nos idos de 1533. Entrou na Companhia a 23 ce
março de 1550. Chegou ao Brasil em 1559. Faleceu em data desconhecida.
6° Carta do P. Rui Pereira aos Padres e Irmãos de Portugal. Baia, 15 de setembro de 156C,
in LEITE, Serafim, op. cit-, vol. III, p. 298.
202
Tanto a terra como o céu eram povoados pelo mundo
natural, com plantas de espécies variadas na terra, mas
plantas iguais no céu.
A Biblia, de maneira figurada, identificava o povo de
Deus como ovelhas, e aqueles destinados ao cuidado delas,
como pastores. A associação do jesuita com a figura dos
guardadores de rebanhos é uma imagem comum dentro das
cartas, sendo que o gentio é inúmeras vezes classificado com
um ser afastado do rebanho do Senhor.
Pedro Fabro salienta que a função dos jesuitas associa-
se àquela em que Deus declara, em Jeremias61 , que o papel do
pastor é se espalhar "sobre as nações, e sobre os reinos,
para arrancares e destruíres, para arruinares e dissipares,
para edificares e plantares"62
Os jesuitas, identificando-se com a imagem do pastor
Jeremias, que demonstra ser "uma cidade fortificada, como
uma coluna de ferro e como um muro de bronze, sobre toda
esta terraf...) ", lançam as bases para que o catolicismo
seja construído no Novo Mundo, funcionando como um cimento
para a construção do edificio da cristandade.
61 Je. 1:10
62 Carta de D. Pedro Fernandes ao P. Simão Rodrigues, Baia, julho de 1552, in LEITE,
Serafim, op. cit-, vol. I, p. 358.
203
Uma segunda associação da metáfora do pastor advinha da
figura de Cristo, enquanto pastor de Deus na Terra. Os
loiolanos companheiros de Cristo eram herdeiros de seus
atributos, pois todas as imagens convergiam para um único
ponto, Deus.
Nas Epistolas63 , Pedro referindo-se à união intima com
Cristo, ressalta esta imagem aos homens dissociados do filho
de Deus, afirmando que:
"Porque vós [humanos] éreis como ovelhas desgarradas, mas agora vos
convertestes ao pastor [Cristo] e bispo das vossas almas".
Essa identificação de Cristo como pastor, segundo São
João64 , tinha sido sugerida por Jesus, ao afirmar:
"Eu sou o bom pastor. O bom pastor expõe a sua vida pelas suas
ovelhas", concluindo que "Eu sou o bom pastor, conheço as minhas
[ovelhas], e as minhas [ovelhas] conhecem-me."
Os j esuitas, enquanto companheiros de Cristo,
configuram-se como parte dos atributos que aquele possuia,
aptos e qualificados portanto, a pastorear o rebanho do Novo
Mundo, servindo de meio para a promessa de Deus, que dizia:
63 1 Pedro 2:25
64 Jo. 10:ll;14
204
"Eis que eu mesmo irei buscar as minhas ovelhas e as visitarei.
Assim como um pastor visita o seu rebanho no dia em que ise acha no
meio das suas ovelhas [depois que andaram] desgarradas,, assim eu
visitarei as minhas ovelhas, e as livrarei de todos os lugares por
onde tinham andado dispersas no dia de nublado e de escuridão//65
O atributo de pastor não advêm da condição de
missionário, mas sim da proposta de conversão que este
pretendia realizar. Conforme sublinha Azpilcueta Navarro66 ,
a persistência dos costumes gentios era decorrente da
ausência de
"pastor que os metesse no curral da vida cristã, que é caminho de
ouro, que é a glória onde nós todos esperamos de ir... „67
Por decorrência, o jesuita é o meio pelo qual se
efetiva, segundo Anchieta, a ação do Senhor que
"por sua misericórdia e bondade infinita quer reduzir algumas destas
ovelhas perdidas ao rebanho de sua Igreja, e isto não com pequeno
trabalho que com eles temos, predicando-lhes continuamente e
trazendo-os por quantas vias podemos, porque es esta gente tão
indómita e bestial, que toda sua felicidade tem posta em matar e
comer carne humana, do qual pela bondade de Deus tenemos apartados
estes:... "68 .
65 Ez. 34:11-12
66 Juan de Azpilcueta Navarro nasceu em Navarra entre 1521 e 1523. Entrou na Companhia a
22 de dezembro de 1545 e embarcou junto com a primeira expedição para o Brasil. Faleceu na
Bahia a 30 de Abril de 1557.
67 Carta do P. João de Azpilcueta Navarro aos Padres e Irmãos de Coimbra. Baia, 28 de
março de 1550, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 178.
66 Carta do Ir. José de Anchieta [Ao P. Inácio de Loyola?], Piratininga [setembro de]
1554, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 120.
205
Os indígenas, considerados '•''ovelhas perdidas" as quais
Deus quer incorporar ao rebanho da Igreja69
1 f conferem
dilatada dimensão para a figura do pastor, que é o condutor
dessa "gente tão indómita e bestial" ao "curral
cristandade".
A ovelha, dentre os animais, é mais vulnerável, por sua
fraqueza e por sua incapacidade, de procurar alimentos
sozinha, assim como de fugir de seus predadores. Desta
forma, a ovelha é entendida pela falta de capacidade de agir
de forma independente, assumindo além desta caracterização,
e num sentido figurado, uma referência explicita às pessoas
inocentes ou recém-convertidas, como exalta o Ir. Anchieta,
ao afirmar:
já não é pouco fruto, antes o maior benefício de Deus, que
entre tanta multidão de infiéis, algumas poucas ovelhas se abstenham
ao menos de comer seus próximos."70
As demais ovelhas, espalhadas e desgarradas, estavam
também sujeitas a toda sorte de malefícios, inclusive
aqueles provenientes do Diabo. Por isso, nas Epístolas,
Pedro dedicava especial atenção aos deveres dos pastores e
dos fiéis, ressaltando:
69 Carta do Ir. José de Anchieta [Ao P. Inácio de Loyola?], in LEITE, Serafim, op. cit-,
vol. II, p. 120.
70 Carta do Ir. José de Anchieta ao P. Inácio de Loyola. São Paulo de Piratininga [1 de
setembro de] 1554, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 110.
206
"Sede sóbrios [pastores] e vigiai, porque o demónio, vosso
adversário, anda ao redor, como leão que ruge, buscando quem
devorar. Resisti-lhe, fortes na fé sabendo que os vossos irmãos, que
estão espalhados pelo mundo, sofrem as mesmas coisas"71 .
0 demónio, "inimigo dos homens", estava tão presente
como Deus e era identificado normalmente como responsável
pela não consecução da salvação humana; perspicaz e
ardiloso, ele atuava diretamente na sociedade para impedir o
êxito das obras cristãs, das quais os pastores inacianos
eram guardiões e defensores.
Esta analogia do indio como a ovelha sugere de maneira
indireta uma forma de percepção mediatizada pela Biblia, que
identifica, naqueles que não são cristãos, as fraquezas
humanas sujeitas ao demónio, sendo que a ação dos pastores
de Cristo era, segundo o Pe. Rui Pereira, "a restauração das
ovelhas e castigo dos lobos"12 .
O Ir. Antonio de Sá73 , relatando suas atividades na
aldeia de Vitória, Espirito Santo, traça na sua narrativa a
composição de um quadro catequético, onde o divino e o
demónio guerreiam. Exaltando os êxitos obtidos pela
71 1 Pedro 5:8-9.
72 Carta do P. Rui Pereira aos Padres e Irmãos de Portugal, Baia, 15 de setembro de 1560,
in LEITE, Serafim, op. cit-, vol. III, p. 300.
73 António de Sá nasceu pelos idos de 1537. Entrou na Companhia em 1559. Faleceu em data
desconhecida.
207
conversão, Antonio de Sá ressalta a fúria do demónio,
afirmando que este andava
"muito raivoso e indignado por ver que lhe temos [jesuítas] levado
este ano tão grande prenda de almas, que na mortandade passada
depois de ser batizadas levou o Senhor para si".
Todavia, a persistência do demónio continuava, não
deixando de existir com as conversões "in extremis". Todo o
ato de expansão da cristandade deparava com a presença de um
demónio atuante. Isto leva o missionário a afirmar que:
"Mil impedimentos há posto o inimigo para que esta Aldeia de Vasco
Femandes não se ponha por obra, porque como determinamos de
residir nela teme já a perda que há de receber com nossa [jesuítas]
estada, ... "74 .
A escolha do sitio para Igreja e a casa jesuítica era de
forma simbólica, o triunfo da cristandade contra o demónio.
Deus vencia o Diabo na terra dos brasis.
A presença de forças malignas nestas terras não impunha
somente transtornos em nivel material. Azpicuelta Navarro
enfatiza esta ascendência demoníaca sobre o gentio,
afirmando:
74 Carta do Ir. Antônio de Sá aos Padres e Irmãos da Baia, Espírito Santo, 13 de junho de
1559, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. 45.
208
"Tem o Demónio muito dominio nelles, o qual dizem algumas vezes lhes
apparece visivelmente e que lhes dá e atormenta outras vezes
asperamente. Nosso Senhor nos livre de suas mãos"75 .
O Diabo, tão onipresente quanto Deus, estava dissimulado
em multiformas, controlando uma série de entidades negativas
que coabitam com os homens.
A ação jesuitica tinha salutar importância nessa luta
terrena contra inimigos da cristandade, por vezes
invisiveis. A tarefa do missionário jesuita era lutar contra
o demónio, que reinava num meio inóspito, influenciando
desde a população que habitava a região, até a natureza. Seu
fim último era purgar os males brasilicos.
Diego Laynes, por ocasião de sua investidura no cargo de
Prepósito Geral da Companhia de Jesus, destaca a importância
da obra jesuitica:
"A importância da obra se vê quanta seja, tratando não somente de
conservar e ajudar os cristãos que já na fé tem principio de sua
salvação, como por aqui se faz, porém ainda de trazer muitos outros
de novo, que do todo eram servos do demónio, e como ele filhos da
ira e da perdição, ao estado da liberdade santa, e adoção dos filhos
de Deus, e herdeiros com Cristo nosso Senhor de seu reino e
felicidade eterna"76 .
75 Carta do P. João de Azpilcueta Navarro da cidade do Salvador do ano 1551, in Cartas
Avulsas, vol. 2, p. 97.
76 Carta do P. Diego Laynes aos Padres e Irmãos do Brasil e da índia. Roma, Io de dezembro
de 1558, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. 8, José Maria Paiva identifica esta
concepção, como uma pastoral legalista, cabendo aos jesuítas "retirá-los [indígenas] da
jurisdição do demónio e inseri-los na comunidade cristã ou, pelo menos, emprestar-lhes o
209
Em contrapartida, a imagem do pastor é caracterizada por
uma vida dificil, pois deve cuidar para que suas ovelhas
obtenham alimento e água, além de protegê-las dos seus
predadores, para que não se tornem presas de animais
ferozes. Muitas vezes, expondo-se às alterações climáticas e
a perigos incomensuráveis, o pastor luta para manter o
rebanho unido, gastando parte do seu tempo na procura
daquelas ovelhas que se desgarraram ou se perderam, e é
assim que a maioria dos relatos caracteriza a atividade
missionária. A catequização se consubstancia, via de regra,
pelo mundo natural.
O Pe. Azpilcueta Navarro, por ocasião de sua viagem a
Porto Seguro, relata aos Padres e Irmãos de Coimbra, os
perigos incomensuráveis para a ampliação da doutrina
católica. Utilizando as imagens do pastoreio, destaca:
"Dali também ia visitar algumas aldeias ao derredor. Indo uma vez me
houvera de afogar em um rio em o qual há pouco tempo que se afogou
um Frade de Santo Antonio que ia desta mesma capitania pregar no
sertão. Passei assaz de perigo por ser o rio mui corrente e enganoso
de passar. Outra vez íamos a Vicente Rodrigues e levávamos em nossa
companhia uma língua; fomos a umas aldeias alongadas que ainda não
tínhamos visitado e no caminho passamos assaz trabalho e perigo, por
nos ser necessário andar de noite algumas vezes e por matos, porque
figurino cristão, de modo que ao menos o território fosse legalizado". PAIVA, José M.,
op. cit., p. 62.
210
cá não há os caminhos de Portugal e há nelles muitas onças e outras
feras". 77
O Irmão Pero Correia, em carta ao Pe. Belchior Nunes, de
8 de junho de 1551, relata, por sua vez, a vida dificil de
missionário na jornada para divulgação da fé católica, que
começa com o preparo dos meios de transporte:
"Em esta jornada que fizemos, fomos alguns oito ou nove dias por um
rio abaixo em casca de pau, e primeiro que tirássemos as cascas em
que havíamos de embarcar se nos gastou o mantimento, porque nos
pussemos a fazer almadias de um pau molle, e quebraram-se depois de
feitas"78 .
Os caminhos para conduzir as "ovelhas perdidas" ao
ncurral da cristandade" não eram tampouco fáceis de serem
ultrapassados. Ressaltando-se a fragosidade da terra, os
loiolanos evidenciaram as dificuldades em atravessá-la.
Guerreiros do espiritual, lutavam contra as diversidades
naturais do temporal.
A natureza inóspita impunha ao pastor barreiras
concretas, que só a fé impelia à ação. António Blazquez,
relatando a visitação feita à aldeia do Espirito Santo, na
Bahia, destaca que para a realização e celebração do Senhor
77 Carta do P. João de Azpilcueta Navarro da cidade do Salvador do ano 1551, in Cartas
Avulsas, vol. 2, pp. 95-96.
78 Carta do Ir. Pero Correia ao P. Belchior Nunes Barreto, Coimbra, São Vicente, 8 de
junho de 1551, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, pp. 229-221.
211
e do Espirito Santo foi necessária uma caminhada de seis
léguas:
... de aqui desta ciudad [Baia], el camino es parte por arenales,
parte por lamaçales y charcos, el qual no se puede en ninguna manera
andar sino descalços, que para gente poco devota no es pequeno
impedimiento para dexar de lo hazer;... //79 .
Como se não bastassem os empecilhos e as precariedades
para a construção do edificio da cristandade, existiam ainda
as deficiências da manutenção durante as investidas pelo
sertão. Os caminhos contribuíam no sentido de dificultar a
atividade do inaciano. Perigos incomensuráveis são
vislumbrados, conforme afirma Pero Correia na mesma carta de
8 de junho de 1551:
"E assim fomos nosso caminho passando por aquele rio passos muito
periguosos de saltos muitos que tinha em lugar de pedra, e a fome
apertava conosco e comíamos alguns palmitos cozidos em água tal e
algumas frutas bem desengraçadas, de maneira que quando chegamos a
povoado levamos as cores muito demudadas"80 .
As armadilhas dos caminhos são intensificadas com a
iminência da falta de alimentos para os andarilhos da fé. A
fome, tão temida quanto os caminhos era no âmbito do
vivencial a barreira mais dificil de ser transposta.
79 Carta do P. António Blazquez ao P. Diego Mirón. Baia, 31 de maio de 1564, in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. IV, p. 60. Ver também sobre o mesmo tema Carta do P. Antônio
Blazques ao P. Diego Mirón. Baia, 15 de setembro de 1564, in LEITE, Serafim , op. cit.,
vol. IV, p. 73.
OQ
Carta do Ir. Pero Correia ao P. Belchior Nunes Barreto, Coimbra, São Vicente, 8 de
junho de 1551, In LEITE, Serafim, op. cit-, vol. I, pp. 220-221.
212
0 Irmão Diogo Jácome81 , em carta aos Irmãos de Coimbra,
revelava as dificuldades da prática missionária no Novo
Mundo, quase desconhecida daqueles que viviam num universo
em que as esmolas dos devotos supriam a deficiência
alimentar. Assim se pronunciava o loiolano aqui residente:
"Por estes caminhos padeceram os Irmãos com o Padre muito detrimento
além do cansaço do caminho que levaram passando por rios a nada
despidos, que dizem os Irmãos que entangessiam com o frio; e não tão
somente isto mas muita fome em extremo, que não comião senão
palmitos que achavam pelo mato com outras frutas de mais poco
substância sem terem nem um grão de farinha de que lá chamais de
pau."82 .
A atividade jesuitica era o palco de inúmeras privações,
provações que constantemente o inaciano sofria na pregação
da fé católica. Cada vitória contra a fome e o mundo natural
confirmava indiretamente o dominio de Deus sobre a criação.
Os jesuitas eram sempre colocados à prova sendo a água a
mais constante e sugerida em todos os discursos. A
necessidade de deslocamento por terra ou mar fazia com que o
inaciano enfrentasse ora um rio colossal, ora tempestades
mortais, situações marcadas por um padecimento em nome da
fé, que poderia ser amenizado com a interseção divina.
81 Diogo Jácome nasceu em Portugal e veio na primeira expedição para o Brasil. Faleceu no
Espírito Santo a 10 de abril de 1565.
82 Carta do Ir. Diogo Jácome aos Padres e Irmãos de Coimbra. [São Vicente junho de 1551],
in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 245.
213
Além disso, o tratamento médico das feridas destes
pequenos animais fracos e inocentes, como eram vistos pelos
loiolanos, era necessária, revelando outra faceta da
dedicação missionária. A imagem do pastor é a de um homem
bravo e valente, persistente e engenhoso, que antes de tudo
pensa com zelo no bem-estar do seu rebanho. Tomando a
iniciativa de se deslocar das terras européias para terras
desconhecidas, demonstravam ser prestimosos na procura dos
necessitados e constituiam-se como modelos completos de uma
conduta cristã pastoral.
A despeito disto, nem sempre a perseverança marcou a
tônica do pastorear as ovelhas. Dificuldades e provações
conduziram a um desânimo, revelado por alguns sinais de
cansaço, logo após a euforia dos primeiros anos83
Esta decepção, muitas vezes rotineira na prática
j esuitica, consubstanciava-se através das visões do mundo
natural. A não consecução dos objetivos previstos,
sinalizados pela hostilidade do indigena e marcados
essencialmente pela persistência de um padrão comportamental
83 Os sinais de cansaço variaram segundo cada autor das cartas, o que não permite definir
uma data para a compreensão deste aspecto. Cada loiolano isolado na sua aldeia ou vila
demonstrou um desencanto com o êxito da conquista, deixando entrever que para eles a
conquista era frágil e efémera, por isso as suas solicitações por novos missionários é uma
constante.
214
não cristão, levaram, não raras vezes, a associar o
comportamento indigena com aqueles praticados pelos animais
ferozes e agressivos ao homem "gente tan mala, bestial y
carnicera"84
Caracterizados pela violência e agressividade para com
os europeus, os jesuitas encontraram no mundo animal a
exata medida simbólica que servia como elemento
explicativo, facilmente assimilável, para delinear as
similaridades do "Outro" nativo mais próximo da
natureza, do que da civilidade cristã européia.
As associações do indigena com os animais são variadas
na sua representação metafórica. Tigres, leões e lobos são
os animais mais utilizados para caracterizar a força,
agressividade e antropofagia dos brasis, com quem os
inacianos deparam. Assim se revela o sentimento dos
jesuitas que invariavelmente estavam sujeitos às investidas
84 Carta do Ir. José de Anchieta ao P. Diego Mirón. São Vicente, 8 de janeiro de 1565, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. IV, p. 147. A associação com o comportamento animal não é
atributo exclusivo de uma leitura do indigena. Baltasar Fernandes utiliza a mesma figura
de linguagem para se referir aos colonos. Referindo-se aos indígenas pronuncia-se "Sam mui
aborrecidos à gente branca, somente a nós, que os tratamos bem e os amparamos e livramos
das unhas dos lobos, nos tem amor e se dam bem connosco". Carta do P. Baltasar Fernandes
aos Padres e Irmãos de Portugal. São Vicente 22 de abril de 1568, in LEITE, Serafim, op.
cit., vol. IV, P. 462.
215
dos índios que eram "como tigres, que aora dan aqui, aora
ally, y hui em con la presa en los dientes"85 .
No entanto, os desabafos provocados pelo ressentimento
da capacidade do gentio em compreender a palavra de Deus e
buscar a salvação não significaram um desestímulo ao
trabalho missionário. 0 número reduzido de jesuítas foi um
dos principais problemas enfrentados pelos inacianos. A
diversidade de tribos, dispersas por várias aldeias,
constituíram um dos grandes empecilhos a uma ação eficaz e
ampla do plano catequético.
0 Irmão Pero Correia relata com pesar a falta de
jesuítas, ao Pe. Simão Rodrigues. Após ter visitado
povoações indígenas em busca de um cristão que vivia entre o
gentio da terra, há mais de oito ou nove anos, e seguindo em
conjunto com o Pe. Leonardo Nunez e mais cinco Irmãos,
desabafa afirmando que voltavam "muito desconsolados por ver
tantas almas perdidas por falta de quem as doutrine"86 .
As longas distâncias que separavam as aldeias das vilas
impediam a divulgação da mensagem divina e o controle
85 Carta do Ir. José de Anchieta ao P. Diego Mirón. São Vicente, 8 de janeiro de 1565, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. IV, p. 172.
86 Carta do Ir. Pero Correia ao P. Simão Rodrigues, São Vicente, junho de 1551, in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. I, p. 230.
216
efetivo sobre os hábitos, costumes e padrões comportamentais
do indigena, dificultando a conversão que, antes de mais
nada, deveria ser comprovada através de uma prática
repetitiva de sujeição.
A ausência de novos agricultores, para a vinha do
Senhor, foi sentida desde os primeiros contatos, quando se
apresentou de maneira mais clara o contraste entre a
quantidade imensa de almas indigenas na escuridão a serem
convertidas, e a quantidade infima de operários para tamanha
messe. 0 Ir. Pero Correia, com pesar, lamenta a exiguidade
de vindimadores, para o Pe. Belchior Nunes Barreto,
concluindo:
"Há cá tanta miséria que se as houvesse todas de escrever, sei que
lhe poriam grande mágoa em seu coração; mas as maiores são as destas
pobres almas que por todo este Brasil e toda esta costa se perdem,
em que haverá mais de duas mil léguas, se tudo gente que não conhece
a Deus. Ora pois, carissimo Padre, em tamanha vinha bem há o que
cavar, mas faltam os cavadores"87 .
Faltavam lavradores para semearem as sementes da fé
cristã na vinha do Senhor, ou como afirma o missionário
Jorge Rodrigues, "semear a semente da palavra de Deus"88 .
Muito mais que uma metáfora. a simbologia utilizada pelos
87 Carta do Ir. Pero Correia ao P. Belchior Nunes Barreto. São Vicente, 8 de junho de
1551, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p.
P- 223.
88 Carta do Ir. Jorge Rodrigues aos Padres e Irmãos de Coimbra, Ilhéus, 21 de agosto de
1565, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. IV, p. 277.
217
inacianos para expressarem seus posicionamentos sobre a
estratégia da Companhia revelava que as necessidades na
colónia eram bem diferentes daquelas existentes na Europa,
onde o solo europeu já tinha presente as raizes do
cristianismo. Na Europa faltava somente acabar de cultivar
para realizar a vindima e nas novas terras as sementes ainda
tinham que ser deitadas a um solo pouco fértil, para
começarem a nascer as raizes da cristandade.
A necessidade fazia com que a formação educacional do
j esuita, quanto às Letras fosse secundária, como destaca
Azpilcueta Navarro:
"Approuve a Deus Nosso Senhor que chegassem os Padres mandados dahi,
e esperamos que façam grande fruto com os selvagens como fariam
outros si tivessem muita caridade e castidade de par com as forças
corporaes para suprir as necessidades de tantos. As letras são menos
necessárias, bem que entre os Christãos e entre os mesmos Gentios
conversos, sejam as lettras precisas para a solução de casos
diversos que entre elles se dão"89 .
Nóbrega, compartilhando da mesma opinião, justificava
tal posição afirmando que o indigena era "todo papel branco
e não há mais que escrever a prazer"90
89 Carta do P. João de Azpilcueta Navarro da índia do Brasil, 28 de março de 1550, in
Cartaa Aralaaa, vol. II, p. 79.
90 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Martin de Azpilcueta Navarro, Salvador 10 de
agosto de 1549, in LEITE, Serafim, op. cit-, vol. I, p. 142.
218
Estes posicionamentos, sem dúvida pragmáticos, entendem
que para terras tão dilatas, com duas mil léguas, ou mais,
os cultivadores eram insuficientes. Precisavam de cristãos
com uma vida regrada, independentemente de uma formação
acadêmica, para as mais diversas atividades como mencionava
António Blazquez:
"arrancar los cardos y espinas, or en criar las nuevas plantas que
crecen, ora en trajar que se tire coja algún fructo para el
Senor"91 .
Vicente Rodrigues sintetiza e delineia a pluralidade dos
papéis dos futuros jesuitas agricultores:
"uns orando, outros chorando, outros cozinhando, de maneira que com
tudo ajudeis e socorrais a tão miserável perdida de estas almas
redimidas com o sangue do benditissimo Jesus"92 .
A associação com a figura do agricultor é sugerida
através da atividade da vinicultura. Nas narrativas biblicas
a videira, que já estava presente na terra de Canaã, era
dificil de ser cultivada, requerendo um cuidado especial
para obter boas uvas. Como simbolo, a uva (videira) é em
sentido figurado, mencionada no cumprimento da profecia dos
91 Carta do P. António Blazquez aos Padres e Irmãos de Coimbra. Baia, 9 de agosto de 1565,
in LEITE, Serafim , op. cit., vol. IV, p. 186.
92 Carta do Ir. Vicente Rodrigues aos Padres e Irmãos de Coimbra. Baia, 17 de setembro de
1552, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 415.
219
últimos dias, quando Cristo recolhe as videiras que
simbolizavam os seus inimigos93
0 missionário, enquanto cultivador das vinhas, ou seja,
dos inimigos/infiéis do Senhor, é responsável pela produção
de boas uvas (cultivar/catequizar), para que estas produzam
bons vinhos (a adoção do modelo cristão de conduta).
0 projeto missionário, nesta perspectiva, via no gentio
a representação do inimigo de Deus na iminência de
precipitar-se no abismo infernal. Trata-se de uma visão
salvacionista de missionários guerreiros. 0 pensamento
jesuitico entendia sua obra como uma luta contra o indigena,
contra o mundo natural, em prol de Deus.
Em sentido também figurado, os recursos utilizados pelos
inacianos foram sempre manipulados no sentido de marcar a
negatividade dos tempos que antecedem a ação missionária e
os benefícios que advêem da conversão. 0 inimigo forte era
paulatinamente destruido e a conquista era vista, passo a
passo, nos escritos que construíam uma alteração
comportamental muito mais desejada do que consolidada.
93 Apoc. 14:19,20 ; 19:11-16
220
A conversão fundamental para o êxito da Companhia é
consubstanciada a partir da alteração comportamental do
gentio. Esta mutação, antes de ser um alteração rápida e
concreta, foi percebida nas suas etapas parciais de adoção
do modelo cristão, comprovadas principalmente no âmbito do
mundo natural.
A religião católica, controladora do tempo e do espaço,
ditava as normas para a ação do homem no mundo natural. A
transformação do indigena de uma "gente tão indómita e
bestial", para um rebanho de ovelhas, era necessária e
implicava uma alteração do aborigene em relação à natureza.
Como observou Koshiba " sob a aparência de queixa de um
comportamento que desconhece o respeito a regras europeias
de boa conduta, oculta-se o sentimento de superioridade dos
portugueses, que se colocavam como uma espécie de modelo ao
qual se esperava ajustar-se o índio, para enfim admiti-lo
como ser humanizado"94
Esta alteração, sinal concreto de uma batalha ganha, foi
destacada com insistência. A mudança de comportamento em
relação ao mundo natural é notada já por Azpilcueta Navarro,
ao afirmar:
94 KOSHIBA, Luís, A Honra e a Cobiça, p. 23.
221
"Em toda a semana se ocupam em fazer roças para mantimentos (que
antes ão faziam senão as mulheres) . Guardam os domingos como nós o
melhor, de maneira que em tais dias não fazem obra servil. Aconteceu
em um dia destes haver ido uma menina ignorantemente a roça a
trabalhar e, começando a trabalhar, veio-lhe uma dor de barriga tão
grande que houve logo tomar a casa. Entrando em caso, colo lhe
dizeram que era festa, achou-se culpada de haver ido a roça"95 .
A desobediência aos ditames impostos pelo comportamento
cristão implicava uma punição pela afronta que representava
a fé católica. 0 respeito aos desejos divinos era
fundamental, principalmente no que tocava às celebrações
cristãs. 0 não cumprimento trazia malefícios que eram
utilizados como exemplos edificantes para comprovar a
onipotência de Deus.
0 Irmão Vicente Rodrigues enfatiza este aspecto
afirmando:
"Algumas vezes vão às suas roças, que é o seu mantimento, ao domingo
e festas, onde os mordem bichos assi como bibaras, das quaes alguns
morrem. As quaes cousas e outras mais particulares lhe succedem em
tempos que lhes dá muito que cuidar e tirar de seus erros,... zz96
0 modelo europeu de cristandade intervinha no ritmo da
vida das tribos, reordenando-o e impondo limites e
permissões ao tempo e ao espaço que se justificavam em
função da religião. A Biblia impunha o compasso da vida ao
95 Carta de P. João de Azpilcueta aos Padres e Irmãos de Coimbra. Baia, 28 de março de
1550, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 179.
9® De uma carta de Vicente Rodrigues da Bahia de Todos os Santos de 17 de Março de 1552,
in Carta» Avulsas, vol. 2, p. 135.
222
mundo natural. Ser cristão era não só professar a fé
católica, mas sobretudo estar atento a um conjunto de
padrões impostos e definidos por Deus, desde a origem da
humanidade. Ser cristão era não ir às roças aos domingos,
pelo medo das punições divinas. Ser cristão era, sobretudo,
aprender que a natureza deve ser cultivada, pois o
cristianismo era uma civilização da cultura.
Essa simbologia, utilizada pela Biblia e apropriada pelo
pensamento jesuítico, tinha como objetivo principal e último
dar orientação ao gentio para que ele pudesse ser inserido
na civilidade cristã. A conversão significava não só
introjetar bons hábitos de conduta moral católica, mas
também uma nova relação com o mundo natural. A desordem do
sistema do Novo Mundo aproximava-se do fim. A nova ordem
era, a partir dos descobrimentos, a ordem católica, que se
iniciava com a própria ocupação do espaço geográfico.
Em suma, o mundo natural para os primeiros jesuitas era
uma realidade cotidiana indissociável da verdade absoluta de
que Deus tinha sido o seu criador e deveria ser louvado por
isso. 0 espetáculo da natureza, quando ocorria, se
processava principalmente em função e no âmbito do divino,
que dava eco à ação missionária. Por outro lado, a natureza
223
é algo que o loiolano tenta suportar, controlar ou vencer
para a concretização do ato catequético.
224
2-0 MUNDO NATURAL CONVERTIDO
Verei sucessivamente as pessoas.
Primeiramente os homens que vivem na face da terra,
tão diversos nos trajes e nas atitudes: uns brancos, outros negros;
uns em paz, outros em guerra; uns chorando, outros rindo;
uns com saúde, outros sem ela; uns nascendo outros morrendo etc.
Em segundo lugar, verei e considerarei como as Pessoas divinas,
assentadas no trono de sua divina Majestade,
contemplam na vasta superfície da terra todos os povos
mergulhados em tão profunda cegueira,
como morrem e descem ao inferno.
Exercícios Espirituais - Santo Inácio de Loyola
A narrativa bíblica dos Génesis concebe a vida do homem
na Terra num local especial. 0 Jardim do Éden foi criado
para que os primeiros seres humanos tivessem uma morada
perfeita97 0 paraíso de delícias, que Deus plantou,
foi destinado ao homem para que este o cultivasse e
guardasse 98
97 Gên. 2:8
98 Gên. 2:15
225
Após a Queda, cabia ao ser humano realizar o cultivo das
terras, sujeitar os espaços incultos, torná-los
agricultáveis, uma vez que a sua nova condição era marcada
pela necessidade do trabalho para obtenção dos alimentos.
Conquistar o mundo natural era converter este mundo bruto e
desordenado, "in natura", num espaço cultivado e religioso,
ou seja, reunir e ordenar um mundo natural variado e útil às
necessidades biológicas humanas, recriando o Jardim do Éden
pelo engenho humano.
0 antagonismo biblico dos espaços amplia-se durante o
periodo medieval, que os concebe de forma dual segundo a
visão cristã. Sagrado e profano duelam no horizonte da
cristandade. Como detecta Eliade ao analisar a essência das
religiões,
"a revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um -
«ponto fixo» e permite, portanto, a orientação da homogeneidade
caótica, o «fundar o mundo» e viver realmente"99
A habitação fixa é o inicio de um reordenamento da
confusão advinda de uma mobilidade constante. 0 espaço da
habitação que permite o cultivo é o ponto de partida e
99 ELIADE, Mircea, O Sagrado e o Profano, p. 37.
226
chegada e "comporta um aspecto sagrado pelo próprio facto de
refletir o Mundo"100 .
A natureza convertida, compreendida pelo espaço
civilizado dentro do contexto religioso cristão, é vista
como uma reminiscência do espaço sagrado primordial e por
causa deste, um vinculo indissolúvel com a religião. A
natureza convertida é mais transcendente do que a totalidade
do mundo natural, por ser útil à sobrevivência humana. A
potencialidade do mundo natural era percebida, segundo o
modelo cristão utilitarista, como uma reserva alimentar
vital e ilimitada para o homem.
Turner, ao analisar as influências da conquista da
América espanhola pelo europeu, salienta que o padrão de
conduta cristão do periodo ignorou a natureza, pois os
"cristãos negam vida espiritual à maior parte do mundo e agem como
se esses lugares fossem um aglomerado passivo de matéria destituída
de vida interior, de leis e de espírito, como se fossem lugares
existentes apenas para o benefício dos civilizados"101 .
Esta afirmativa, comprovada pela prática belicosa da
conquista, apontou para a diretriz básica seguida pelos
conquistadores e povoadores das terras americanas, que foi o
100 ELIADE, Mircea, op. cit., p. 65. Ver também MUMFORD, Lewis, A cidade na história,
Tradução de Neil R. da Silva, São Paulo/Brasilia, Martins Fontes/UNB, 1982, pp. 9-36.
101 TURNER, Frederick, op. cit., p. 168.
227
do não reconhecimento das culturas e da vida espiritual dos
povos americanos. A conquista colaborou para reforçar a
idéia de utilidade da natureza ao mesmo tempo que construia
um mito de superioridade dos europeus frente ao Novo Mundo.
Como observou Koshiba, a ausência de um centro de autoridade
reforçava a idéia de ausência de "ordem social e, pois,
humana"102
Neste quadro, onde a negação da alteridade preponderou,
enquanto identidade cultural e natural própria, verifica-se
que a proposta de evangelização foi um dos primeiros atos de
uma série de agressões no sentido de efetivar a conquista. A
apropriação do solo e a escolha das vilas,
moradias fixas e aldeias, primeiros sinais concretos da
ocupação, significaram também o marco inicial da conversão
do indigena e do mundo natural ao universo cristão, práxis
de uma conquista temporal e espiritual de desestruturação de
relações sócio-culturais indigenas preexistentes103
A chegada em terra firme, mesmo que esta fosse
desconhecida, foi vista normalmente com alivio por aqueles
que se aventuravam numa travessia longa e cheia de perigos
tenebrosos através do Oceano Atlântico. Os navegantes e
102 KOSHIBA, Luís, op. cit., p.25.
103 ROMANO, Ruggiero, Mecanxamos da Conquista Colonial, p. 23.
228
jesuítas, após meses de viagem, marcados por uma vida dura a
bordo, devido às condições do percurso, com uma alimentação
diária reduzida, por vezes deteriorada, e saturados dos
odores do mar e do ar fétido das embarcações, deveriam ver
com alento a terra firme exuberante e acolhedora104 . Após as
comemorações da passagem pelo Equador, a tripulação das
embarcações ansiavam pelos bons ares das terras tropicais
que prenunciavam um prazer senão edênico, muito próximo
deste, há muito tempo sonhado pelos navegantes 105
Para os primeiros jesuítas, após a longa travessia que
fazia parte da atividade missionária, foi imperioso lançar
as bases da catequização. Os missionários, uma vez na terra
dos brasis, com auxílio do poder metropolitano e dos
próprios brasis, começavam a procurar um sítio apropriado
104 Barreto refere-se às más condições das viagens marítimas daquele período destacando o
depoimento do Pe. Jerônimo Lobo, afirma o autor que "A alimentação a bordo é quase sempre
uma aventura, com alimentos insuficientes e frequentemente estragados (sendo a sua
distribuição, por regra, mensal, enquanto a água e o vinho têm uma distribuição diária):
«[...] os mantimentos roins e corruptos porque a carne de porco era tal, que pipas
inteiras lansavão ao mar, tanto que as abrião, por estar podre e ardida, affirmando a
gente ser causa pella salguarem, não estando enxuta, a fim de pezar mais, com o que se
perdeo tudo. O vinho na mesma forma era de sorte que as pipas inteiras abrião o torno e
corria ao mar pellos em bornais por estar danado. Arros vi eu lansado no convés tam podre
e mudado que me resolvi ser cal e o crera de todo se me não certefiçarão que era arros.»"
BARRETO, Os descobrimentos e a ordem do saber, pp. 21-22. Ver CORBIN, Alain, O Território
do Vazio, p. 26. Para uma descrição detalhada da viagem entre Portugal e Brasil ver carta
do Irmão Sebastião de Pina ao P. Gonçalo Vaz de Melo Baia, 12 de maio de 1563, in LEITE,
Serafim, op.cit., vol. IV, p. 24-25.
10$ Hoornaert observa que o simbolismo religioso é muito forte, principalmente no que se
refere as experiências concretas da travessia afirmando que: "numerosas imagens significam
o medo do mar que portugueses sentiram na empresa ultramarina: Nossa Senhora Aparecida, da
Penha, da Guia, das Graças". HOORNAERT, Eduardo, Formação do Catolicismo Brasileiro
1550-1S00, p. 13.
229
para a localização das primeiras casas jesuíticas nos
núcleos populacionais já existentes ou nas aldeias próximas
a estes. Tal ato, que se repetiu em cada vila ou
estabelecimento de aldeias, indica o paulatino avanço da
presença cristã nas novas terras, revelando que a ocupação
do espaço era o primeiro passo para a conversão de um mundo
caótico, para um mundo civilizado.
A própria terra dos brasis era ainda desconhecida.
Representações do período traçavam um contorno incerto para
uma terra incomensurável a ser convertida. Terra muito mais
imaginada do que conhecida. Sua extensão e abrangência eram
totalmente conjeturadas com limites e dimensões incertos.
Nóbrega, ao atentar para este fator, ressaltava que "dizem
que, [esta terra], três partes do mundo, tem ela
duas"106 , revelando a permanência das concepções dos
cosmógrafos antigos no pensamento da época.
Os primeiros núcleos de povoamento, para onde se
dirigiam os jesuítas, ou que estes mesmos fundaram, eram
ilhas cristãs num mar territorial, onde imperava a natureza
bravia e o gentio hostil.
106 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Martin de Azpilcueta Navarro. Salvador, 10 de
agosto de 1549, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 138.
230
Após a chegada nesses núcleos, era necessário
estabelecer o marco jesuítico que instaurasse a presença da
nova ordem e a diferenciasse das demais ordens religiosas
aqui existentes. Esta ação se efetivava com a construção de
pequenas igrejas e casas jesuíticas e subseqiientemente dos
colégios inacianos, que na maioria das vezes coincidia com o
marco temporal. Conforme observou Meihy: "o jesuíta
modificava a paisagem criando, à medida do possível, casa,
colégios, aldeias, núcleos sociais. Cristianizavam a
paisagem. Modificavam o comportamento social tornando as
missas, as bênçãos, as procissões, hábitos constantes"101 .
A formação de aldeias e vilas, início da ocupação
efetiva das terras, na borda do litoral, atendia ao desejo
do monarca português, D. João III, de lançar as bases da
colonização e permitir aos novos habitantes da terra,
portugueses ou não, uma identidade cultural com a metrópole.
Se a distância geográfica e a diversidade natural impediam a
aproximação, na esfera religiosa o distanciamento era
convertido em afinidade. Esta simbiose entre temporal e
espiritual, tão comum aos países ibéricos, demonstra que a
Igreja, ao ocupar e controlar os espaços das novas terras,
não o faziam somente em função da instituição religiosa, mas
107 MEIHY, José Carlos Sebe Bom, A presença do Bxasil na Coupanhia da Jesus: 1549-1649, p.
93.
231
sim em função do poder temporal, de quem era preposta e
dependente economicamente. Tendo em vista esta comunhão de
interesses, é que os privilégios dos monarcas ibéricos são
mantidos "com a responsabilidade da manutenção da igreja de
além-mar", principalmente no que tange à construção de
qualquer edifício religioso108
A delimitação de uma área, com um conjunto de
caracteristicas próprias, na vastidão das terras tropicais,
era decisiva para a consecução da colonização e da
catequização. Fundar uma nova realidade definia a emergência
de uma nova identidade cultural, que necessitava afirmar-se
como dominante, instaurando uma nova ordem num Novo Mundo,
que a partir de então passava a envelhecer. As vilas as
casas jesuíticas e colégios, que surgem decorrentes do
próprio processo de povoamento, são "padrões de posse", que
confirmam o poder da coroa portuguesa e a intervenção
católica no espaço inculto109 . Possuir era reter a posse da
terra, distinguindo através de uma referência inaugural, "um
antes" e "um depois" e a partir dela gozar e desfrutar das
coisas do mundo natural, principalmente das suas riquezas,
ardentemente desejadas.
19® BOXER, C. R., A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770), p. 100.
109 HOORNAERT, Eduardo, op. cit-, p. 33.
232
A escolha do sitio ou posse de terras para a fixação de
um povoado ou colégio era feita, como observa Vicente
Rodrigues, de maneira meticulosa, uma vez que a função de um
bom sitio não era só garantir a sobrevivência dos membros da
Companhia, mas principalmente permitir "dizer missa,
confessar, fazer a doutrina e outras semelhantes". Reunindo
várias tribos, num único local, criavam-se condições
propicias para o povoamento e o desenvolvimento da
catequização, uma vez que "a intenção d'El-Rei e dos Padres
da Companhia é nela criar e ensinar moços do gentio, que por
tempos levem o nome do Senhor e todas as gentes, e que não
se podiam sustentar de outra maneira"110 . Esta proposta
catequética, com um olho no temporal, era um passo decisivo
para subjugar e dominar o gentio e efetivar a propriedade
das terras pelos lusitanos.
Manuel da Nóbrega, em carta ao Pe. Simão Rodrigues,
relata que a construção de casas jesuiticas é vital para o
empreendimento missionário. Com a astúcia que lhe é
particular, o missionário revela que a propriedade do solo,
que ora se fazia, era fundamental não só a curto prazo, mas
principalmente a longo prazo, afirmando que:
110 Sesmaria de <Agua dos Meninos> dada pelo Governador Tomé de Sousa ao P. Manuel da
Nóbrega, Baia, 21 de outubro de 1550, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 195.
233
e por este nos parecer meio tão necessário a conversão do
gentio, trabalhamos por dar principio a casa que fiquem para
enquanto o mundo durar, vendo que na índia isso mesmo se pretende e
em outras partes, muitos colégios em que se criem soldados para
Cristo"111 .
Necessidade presente e marco para o futuro o
estabelecimento de casas era um ato instaurador que
objetivava criar condições para que o exército de Cristo
pudesse desenvolver suas ações. 0 mundo todo haveria de ser
cristão após a ação jesuítica.
Com a criação das vilas e aldeias delimitava-se e
separava-se o espaço entre espaço ocupado e religioso com
moradia para seus habitantes, que por bênção divina se torna
sagrado, daquele espaço profano, inculto e hostil, que o
homem ainda não tinha convertido totalmente para seu
usufruto.
A conquista territorial era, em nivel metafórico, uma
ação concreta para abalar as bases da desordem vigente na
terra dos brasis112 . Satanás, conforme estudou Mello e
m Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simão Rodrigues. [Baia Fins de agosto de 1552], in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 402.
112 PAIVA, José Maria de , op. cit., p. 27.
234
Souza, dominava esta terra, povoando-a de mentiras e
enganos, que o cristianismo pretendia purificar113
A luta pela conquista do solo era também uma luta entre
o Bem e o Mal, como observou o Pe. Antônio Pires ao afirmar
que:
"Satanás que en esta tierra tanto reyna, ordeno y ensenó a los
echizeros machas mentiras y enganos para empedir el bien de las
almas, diziendo que con la doctrina que les ensenávamos las trayamos
a la muerte; y si alguno adolecia le dezian que tenia anzuelos en el
cuerpo, cuchillos o tiseras que le causavam aquel dolor, y fingian
que se las tiravan del cuerpo con sus hechizerias: estas Y otras
machas manas suele usar en esta su generación en la qual tanto ha
que reyna, temiendo ser despojado de su tyrania"114 .
0 foco da questão para os primeiros jesuítas era quem
detinha a hegemonia sobre a terra. Converter era destituir o
dominio de Satanás da terra e de sua gente e instaurar o
poder de Deus.
A criação de uma identidade do espaço, construída dentro
de um mundo natural adverso, onde povos em estágio peculiar
ocupavam a região, simbolizava a mudança do dominio. Uma
tirania era despojada de seu poder e substituída por outra.
113 Sobre o assunto ver SOUZA, Laura de Mello, O diabo e a Terra de Santa Cruz, pp. 19-85.
E da mesma autora, Inferno Atlântico, pp. 21-57.
114 Carta do P. Antônio Pires ao Padres Irmãos de Coimbra, Pernambuco, 2 de agosto de
1551, in LEITE, Serafim, op. cit-, vol. I, p. 256.
235
A necessidade da criação de uma identidade diferenciável
na ocupação da terra era fundamental para estabelecer, de
forma contrastável, as benfeitorias que a conquista julgava
estar fornecendo ao indigena. As descrições desta ação de
conversão do espaço pelo cristão são feitas associando-se a
elementos presentes na narrativa do Génesis.
Tal como no tempo primordial, que antecede a criação do
mundo por Deus, a terra dos brasis estava imersa numa
escuridão abismal.
A ausência de luz e um Caos absoluto são representados
pelas manifestações desordenadas da natureza remetendo ao
Caos biblico, que antecede e justifica a ação divina.
Anchieta representa esta associação em De Gestis Mendi de Saa,
assim se referindo:
"As glórias do Pai celeste e sua força divina
teu nome, ó Cristo Rei, e teus feitos gloriosos
começarei a cantar, num arrojo gigante,
empreenderei celebrar em verso tuas magnas empresas
Pois há pouco tua força descerrou uma aurora
por entre a escuridão das regiões brasileiras,
que o húmido Sul enxarca com furiosas rajadas.
Esse vento impele nimbos e arma tremendas borrascas
Nos altos mares, e cobre com véu de névoas os campos:
fustigando com o frio a nudeza das gentes
Já os astros que orvalharam o mmdo oprimido
brilham de luz fulgente, e o sol conduz o seu carro
no límpido espaço e, com novos raios, do céu afugenta
nuvens densas, dissipa névoas e seca o solo embebido
de longas chuvas e, todo-luz em seu disco brilhante
236
enche de claridades as trevas do mando"115 .
A ação jesuitica é associada à aurora divina, a qual
separou das trevas o gentio e todas as terras que
compreendiam a América portuguesa. A empresa da conquista
espiritual era celebrada, e a terra dos brasis ressurgia do
nimbo.
Tomé de Souza ao escrever a D. João III, sobre o
desempenho da Companhia, menciona a importância dos
loiolanos no aumento do poderio da coroa portuguesa, na ação
conjunta do temporal e do espiritual no estabelecimento da
ocupação. Afirmava o primeiro governador geral que:
"Os Irmãos da Companhia de Jesus fazem nesta terra muito serviço a
Deus por muitas vias, como por vezes tenho escrito a V.A. Tem eles
grande fervor de irem pela terra adentro a fazer casa no sertão
entre o gentio e lho defendi de maneira e com as palavras que devem
defender as tais obras, dizendo-lhes que assim como se fosse V.A.
alargando se vão eles também; e que se quisessem entrar polia terra
adentro que o fação dous ou tres com seus línguas a pregarem ao
qentio, mas irem a fazer casa entre eles me não parece bem por agora
senão em nossa companhia"!16 .
A ocupação do espaço pressupunha o rompimento da
natureza no seu estado originário de desordem. A fundação de
vilas ou aldeias simbolizava a concretização de uma cisão no
todo homogéneo da natureza. Dividida, dentro da ótica
H5 ANCHIETA, José, De Gestis Mendi de Saa, p. 91.
H® Carta de Tomé de Sousa a D. João III, Salvador, Io de junho de 1553, in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. I, p. 486. grifo nosso
237
jesuitica, em dois espaços distintos, o da ordem e o da
desordem, a natureza era convertida. Como acentuou
oportunamente Paiva,
"O natural, agora, é que o sobrenatural desterre a natureza e que
até os confins do mundo cheguem as palavras. A natureza era a
negação da verdade mais evidente - Deus entre os homens - e a
implantação da desordem"117 .
A atitude agressiva e dominadora em relação ao mundo
natural, caracteristica desse primeiro momento de ocupação
do espaço, evidencia a forma como o pensamento cristão
decodificava a diferenciação clara entre o espaço
civilizado, cristão (ordem) próximo ao paraiso de delicia, e
o não civilizado, não cristão (desordem) próximo ao inferno.
A partir destes conceitos redutores, é que a trama da
natureza é percebida.
Colocados em polos diametralmente opostos, Natureza e
Cultura (civilização) marcam a tônica do pensamento dos
primeiros loiolanos. Conforme ressalta Neves,
"Quando mais afasta da "natureza" mais alguma coisa é "civilizada".
A natureza é algo "bruto" à espera de ser "purificada", lapidado
pela ação dos súditos de Cristo"118 .
117 PAIVA, José Maria de, op. cit., p. 22.
118 NEVES, Luiz Felipe Baeta, op. cit., p. 41.
238
Tomando o referencial católico como parâmetro definidor
da cultura, tudo aquilo que era exterior a esta era
classificado segundo o seu grau de proximidade em relação ao
modelo cristão. A natureza pura era aquela incorporada e
domada pelo cristianismo.
As descrições que envolvem os elementos naturais centram
seu foco de atenção num antagonismo latente, entre a parte
cristianizada e o mundo natural em seu estado originário; é
uma luta constante de um mundo religioso, que tenta
converter o meio natural controlando-o e sobrepondo-se a ele
por intermédio da fé.
A natureza precisava ser domada, e o crescimento do
espaço civilizado estava diretamente ligado à sua
destruição. A construção de aldeias, com casas e demais
habitações, definia a derrubada de árvores e a limpeza do
solo, retirando-se a vegetação nativa e impondo uma flora
cultivada, pasteurizada, escolhida e cultivada pelo homem. A
cultura cristã partia da destruição para construir o
edificio da cristandade.
0 primeiro passo para a instauração da ordem, conforme
ressalta Vicente Rodrigues, era romper as terras, roçando os
matos e as árvores; descrevendo o adiantado da casa
239
jesuítica e ermida na Aldeia de São Tomé, relata os passos
seguidos para a ocupação cristã do solo:
" (...) já tem quase roçado o mato e roçam árvores tos grossas que
basta para as casas, e muita pedra e água: e isto tudo sobre o mar
onde há muito pescado, muito aparelhado para ter meninos e criar-
los"119 .
Destruição de uma natureza grandiosa e construção de um
edifício grandioso alternavam-se, marcando a conquista.
Nóbrega, em carta ao Pe. Simão Rodrigues, meses após a
sua chegada, demonstra suas preocupações com a catequese e
uma acuidade para com este momento de fundação e instauração
das casas da ordem inaciana, revelando uma visão complexa
para a efetivação da escolha do sítio.
"Eu trabalhei por escolher um bom lugar para o nosso Colégio dentro
da cerca e somente achei um, que lá vai por mostra a Sa.A. , o qual
tem muitos inconvenientes, porque fica muito junto da Sé e duas
igrejas juntas não é bom, e é pequeno, porque onde se há de fazer a
casa não tem mais que X braças, posto que tenha ao comprimento da
costa 40; e não tem onde se possa fazer horta, nem outra cousa, por
ser tudo costa mui ingreme e com muita sujeição da Cidade. E
portanto a todos nos parece muito melhor um teso que está logo além
da cerca, para a parte de onde se há de estender a Cidade, de
maneira que antes de muitos anos podemos ficar no meio, ou pouco
menos da gente, e está logo ai uma Aldeia perto, onde nós começamos
a batizar, e na qual já temos nossa habitação. Está sobre o mar, tem
água ao redor do Colégio, e dentro dele tem muito lugar para hortas
e pomares; é perto dos cristãos assim velhos como novos. Somente me
119 Carta do Ir. Vicente Rodrigues aos Padres e Irmãos de Coimbra. Baia 17 de setembro de
1552, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 412.
240
põem um inconveniente o Governador: não ficar dentro da Cidade e
poder haver guerra com o gentio... z/120
0 sitio escolhido, seguindo considerações de cunho
geopolitico, não era só a definição de um local para
habitação. Num sentido amplo, a proposta de Nóbrega
ultrapassa o estreito limite da Igreja enquanto morada de
Deus. Apontando para uma compreensão do estabelecimento como
um marco cristão, um valhacouto de onde se pudesse combater,
seu olhar permite ver a estratégia belicosa para o exercido
da prática catequética que viria a se desenvolver com
rapidez, frente à quantidade enorme de gentio. Conforme o
próprio Pe. Manuel da Nóbrega afirma, ao referir-se às
terras escolhidas para a igreja, pelo governador,
"Aqui devíamos de fazer nosso valhacouto e daqui combate todas as
outras partes"121 .
A necessidade da ocupação do espaço com metáforas que
remetiam às ações bélicas, revela a forma de conversão
adotada, que atribula ao ato de enxergar o meio mais eficaz
para vigiar os comportamentos dos indígenas no seio da
comunidade tribal e puni-los caso fosse necessário. Pois,
120 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simão Rodrigues, Baia, 9 de agosto de 1549, in
LEITE, op. cit., vol. I, pp. 125-126.
121 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simâo Rodrigues, Baia [15 de abril de] 1549, In
LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 118.
241
como afirmava Nóbrega, na mesma missiva, referindo-se à
Terra de Santa Cruz,
"Esta terra é nossa empresa, e o mais gentio do mundoy/122
Considerava-se também, para a escolha da região a ser
ocupada, as receptividades fornecidas pela própria natureza,
que seguia invariavelmente os seguintes critérios:
localização (condições de segurança contra ataques dos
inimigos e facilidade de abastecimento dos produtos
agricolas); possibilidade de acesso às fontes de água
potável: tipo de solo propicio para o desenvolvimento de
atividades agricolas (em especial pequenas hortas para
sustentos dos membros da Companhia); facilidade de acesso ao
mar (única possibilidade de contato com a Europa); a
facilidade para obtenção de recursos para a construção das
casas era a preocupação de uma população baseada única e
exclusivamente em atividades agricolas.
Considerando estas caracteristicas, o perfil do sitio a
ser escolhido deveria localizar-se na faixa litorânea, no
limiar entre o interior do território e o litoral. É de bom
alvitre lembrar que tal plano de ocupação estava em
consonância direta com os interesses da coroa lusitana.
122 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simão Rodrigues, Baia, 9 de agosto de 1549, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 123.
242
Desde as primeiras conquistas empreendidas nos Quatrocentos,
os monarcas portugueses tiveram cuidado especial em vedar o
acesso ao interior das terras descobertas, com as quais
mantinham um contato esparso e, portanto, deficiente.
Temendo que os cofres reais fossem lesados por particulares
ansiosos por um enriquecimento rápido, Portugal impôs a
todos os moradores de suas conquistas, restrições para a
penetração.
0 litoral oferecia a riqueza do pescado, e era o ponto
mais fácil de comunicação com a Europa. A vida no interior
do território, quando distante de rios e do mar, era
extremamente penosa, uma vez que não permitia o acesso
direto à pesca, base da alimentação dos indígenas e que é
compartilhado pelos primeiros habitantes, fenômeno que
acrescido do medo do ataque de tribos inimigas fazia com
que, por vezes, a fome imperasse123
António Blazquez, no relatório quadrimestral de janeiro
abril de 1556, relata a dificuldade de sobrevivência dos
jesuitas na Aldeia do Tubarão, que se mantinham com as
"esmolas dos índios", pois:
123 SCHWARTZ, Stuart, Segxedoa Internos - Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial 1550-
1835, p. 42
243
" (...) esta Aldeia não está junto do mar, mas pelo sertão wn
pedaço, está a pescaria longe e por amor dos contrários que ali os
costumam de esperar não ouzão de ir pescar, senão todos juntos, o
que há causa de muitas vezes eles e seus mestres padecerem muita
fome124 .
0 afastamento em relação ao mar comprometia
sensivelmente a existência dos jesuitas, colocando em risco
a obra catequética. Acuados no seu valhacouto, os
missionários colocaram-se muito mais numa posição de defesa
do que de ataque, principalmente nos primeiros anos.
As terras do litoral, por outro lado, eram pobres em
nutrientes, não permitindo o desenvolvimento da plantação
por anos seguidos, sem o esgotamento das terras, já que
qualquer tipo de recuperação do solo era inexistente.
Ambrosio Pires125 observa este problema ressaltando que:
... esta terra é muito estéril do lado do mar: porque os Christãos
(que são poucos) não se animam a penetrar no interior, e a terra,
uma vez lavrada, depois de dois anôs ou tres de colheita, deixam-na
por esteril e inhabil para dar mais nada."126 .
Tal situação forçava a uma penetração para o interior em
busca de terras mais férteis. Contudo, como observa o
inaciano, os cristãos não tinham sido motivados a realizarem
124 Relatório do Quadrimestre de Janeiro até Abril de [1556] pelo Ir. António Blazquez.
Baia [maio de 1556?], in LEITE, Serafim , op. cit., vol. II, p. 269.
125 Ambrosio Pires nasceu nos idos de 1525 em Lisboa. Entrou na Companhia em 1546.
Embarcou para o Brasil em 1553. Voltou para Portugal em 1558 e saiu da Companhia em 1568.
126 Extracto de uma Carta do padre Ambrósio Pires da Bahia do Salvador de 15 de junho de
1555, in Cartas Avulsas, vol. 2, p. 167.
244
tal empreitada. Sujeitos à própria sorte, não lhes faltavam
somente coragem e bravura para fazê-lo, havia sim uma
exiguidade de recursos para a realização de entradas.
Dentro deste contexto, a vila de Piratininga despontou
como a primeira investida ocupacional para o interior do
território feita pelos jesuitas.
A ocupação do planalto de Piratininga justificava-se
por dois motivos: estava localizada próxima a rios piscosos
(Tietê, Pinheiros e Tamanduatei), além de ser um local
propicio ao desenvolvimento de grãos alimentícios. A região
era fornecedora de farinha de pau (mandioca) para as vilas
de Santos e São Vicente, no litoral, como destacava
Anchieta, ao se referir à região, justificando a
transferência para o planalto pela viabilização que as
terras ofereciam para a continuidade da prática jesuítica,
frente às condições precárias da Vila de São Vicente:
"Para sustento destes meninos, a farinha de pau era trazida do
interior, da distância de 30 milhas. Como era muito trabalhoso e
difícil, por causa da grande aspereza do caminho, ao nosso Padre
pareceu melhor no Senhor mudar-nos para esta povoação de índios, que
se chama Piratininga. Isto por muitas razões; primeiro, por causa
dos mantimentos; depois, porque se fazia nos Portugueses menos fruto
do que se devia, ainda que logo ao princípio o trato do Padre lhes
trouxe a maior vantagem, como será fácil entender do P. Leonardo,
que foi o primeiro da Companhia a vir para aqui; e especialmente
245
porque se abriu por aqui a entrada para inúmeras nações, sujeitas ao
jugo da razão."127
A penetração justifica-se segundo a diretriz espiritual
e temporal. No primeiro caso o local destacava-se por que
era "a entrada para inúmeras nações" que se poderia sujeitar
e colocar "ao jugo da razão", tendo em vista que "se fazia
nos Portugueses menos fruto do que se devia"; no segundo
caso, por "causa dos mantimentos". Apesar da transferência
ser justificada de forma convincente, o fator temporal que
mais teria influenciado foi o da possibilidade de achamento
de metais preciosos como destacaremos no capitulo seguinte.
Após a definição do sitio a ser ocupado, a preocupação
era o estabelecimento dos limites. Esta ação concretizava-se
materialmente com o levantamento de uma cerca separando o
mundo natural em seu estado bruto, ou seja, sem o cultivo
humano, do espaço cultivado, por excelência humano, fosse no
âmbito da vila ou no âmbito das casas e colégios. Um êxito
pequeno, mas sem dúvida prazeroso para aqueles que almejavam
uma estrutura sólida para o edificio da cristandade. É pois,
com prazer, que Leonardo Nunes128 relata ter cercado a
127 Carta do Ir. José de Anchieta ao P. Inácio de Loycla, São Paulo de Piratininga [1 de
setembro de] 1554, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 105.
128 Leonardo Nunes nasceu em São Vicente da Beira em Portugal. Entrou na Companhia a 6 de
fevereiro de 1548, como Padre. Foi o primeiro missionário da Vila de Piratininga. Morreu a
30 de junho de 1554 em naufrágio.
246
horta, na qual "há muitas árvores de espinho e outras
árvores"129
Esta estruturação concreta do espaço rompeu com as
relações que os indígenas tinham com o mundo natural. A
natureza para os brasis era vista através de um olhar mágico
que atribuía aos elementos naturais significados que
transcendiam à concretitude da sua existência. Os índios não
concebendo limites físicos para os espaços, uma vez que a
aldeia era parte integrante e integrada da natureza,
encontravam na fauna e na flora os elementos suficientes
para justificar a sua existência no mundo. A planejada
ocupação cristã na sua ânsia de fazer uma incorporação
histórica, na maioria das vezes, revelou um total
desconhecimento da estruturação do espaço indígena e de sua
cultura. Com isto, indiretamente provocou sua morte
biológica e cultural.
0 novo espaço era cristão e a missão jesuítica era
confirmar esta verdade absoluta, que é percebida claramente
através do batismo da terra pelos jesuítas e colonos.
129 Carta do P. Leonardo Nunes aos Padres e Irmãos de Coimbra, S. Vicente, 20 de junho de
1551, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 233.
247
A nominação do litoral e das ilhas da costa brasileira,
feita pelos navegantes, nas viagens exploratórias e de
reconhecimento efetuadas nos primeiros trinta anos após os
descobrimentos, continuaram após a chegada dos jesuitas.
Sempre trilhadas pela ótica religiosa, a nominação dos
espaços, com nome de santos, era a garantia de proteção
divina, posse também divina, simbolo de uma cultura superior
que domava o espaço bruto. A identidade reconhecida é a
cristã, criada pela cultura européia, e é dentro desta
perspectiva que Neves observa que:
"só pessoas cultas podem dar nomes, só uma cultura pode nomear, só
há uma cultura, um saber: é o cristianismo; não se pode aceitar que
haja outras culturas, outras línguas, outros nomes «130
Esta imposição, fruto de uma concepção etnocêntrica,
ampliava os vinculos com Portugal, num claro sinal de
evocação de um elo perdido. Holanda, com a lucidez critica
que lhe é peculiar, destaca que os primeiros povoadores, de
uma maneira geral, tiveram que habituar-se com a natureza
"chã e aparentemente inerte" das terras dos brasis, sem
associá-la "à inquieta atração de outros céus ou de um mundo
diverso", já que a priori nenhuma riqueza fácil tinha-se
configurado. Preso a uma existência dificil, restava aos
colonos nominar. "Portos, cabos, enseadas, vilas, logo se
130 NEVES, Luiz Felipe Baeta, op. cit., p. 49.
248
batizam segundo o calendário da Igreja, e é um primeiro
passo para batizar e domar toda a terra. São designações
comemorativas, como a significar que a lembrança e o costume
hão de prevalecer aqui sobre a esperança e a surpresa"131
A não nominação dos espaços ou as poucas nominações que
existiam, dadas pelos indigenas, eram negligenciadas porque
os jesuitas entendiam que a falta de uma nominação
inteligível era proveniente da inexistência de uma
identidade do espaço. Esta postura demonstra que os
companheiros de Cristo não tinham conhecimento dos motivos
das migrações causadas pelo esgotamento do solo e da oferta
natural da terra, e desconheciam também as formas indigenas
de interação com a natureza. Conforme destacou Turner:
"o conhecimento harmonioso e exato que os primitivos tinham sobre
seus habitats veio a ser, dentro do processo de europeização do
planeta, a própria marca registrada do que era ser primitivo:
sentimentos e expressões de parentesco com os animais e até com
árvores, pedras e água"132 .
A movimentação dos grupos indigenas tão desconcertante
para os loiolanos, de uma maneira geral, apontou para uma
inferioridade deste gentio frente ao mundo natural. A
necessidade da busca de alimentos que provocava o
deslocamento, de parte da população para regiões mais
131 HOLANDA, Sérgio B., op. cit-, p. 146.
132 TURNER, Frederick, op. cit., p. 12.
249
favorecidas, era indicador da total dependência e sujeição
do indigena ao mundo natural, e não da harmonia, como
destacou Turner. A cultura cristã não aceitava uma
dependência que levasse às migrações. Para ela a harmonia
com o mundo natural configurava-se nas imagens biblicas do
Jardim do Éden.
A facilidade com que a população indigena se
movimentava, caracteristica de uma não fixidez da habitação,
e da transitoriedade do seu estabelecimento, assim como a
procura continua da garantia de sobrevivência biológica,
revelaram, segundo os jesuitas, uma maneira primitiva de
adaptação ao meio. Por conseguinte, a vida nómade era vista
de forma negativa, como um gênero de vida em que o homem se
adequava ao meio segundo as práticas de coleta e caça,
ignorando a atividade agricola. 0 universo cristão, tomado
como modelo, era considerado pela sua positividade, na
medida em que o homem sobrepunha os seus interesses ao meio
e modificava o mundo natural, tornando-o agricutável. Desta
forma, o homem poderia planejar a sua existência. 0 trabalho
de cultivar a terra permitia-lhe a obtenção da ração
alimentar diária certa, que era ampliada com a domesticação
de animais.
250
A leitura que o jesuíta estabelece da sua vinda para a
terra dos brasis é neste aspecto a da passagem de uma
positividade para uma negatividade, principalmente no
sentido de manutenção das necessidades biológicas. Havia no
mundo indígena uma ausência do controle humano sobre o meio,
que era visto pela sua negatividade. Ausência de trabalho
significava ausência de recursos monetários e por
decorrência carência de esmolas. Para o loiolano, esta
transição marcava a passagem de um quadro de abundância para
um quadro de privações, sendo a ação catequizadora
ressaltada pela dificuldade de ser exercida, similar àquela
dos pastores e cultivadores sugeridas pelas metáforas já
mencionadas.
A falta de moradia fixa ou regular era vista pelos
primeiros missionários, também por um prisma de negatividade
cultural, que se refletia na falta de uma organização social
e religiosa, e que permitia associar os índios diretamente
aos animais selvagens, que buscavam alimentos pelos matos de
forma errante. Como afirmou Gandavo133 , a inexistência das
letras F, L, e R no vocabulário indígena devia-se ao fato
de estes não possuírem nem fé, nem lei, nem rei, condição já
133 GANDAVO, Pero de Magalhães Tratado da Terra do Brasil: História da Província de
Santa Cruz, p.12 5.
251
observada pelos jesuítas. O indígena era visto pela ausência
de ordem religiosa e ético-moral.
Esta queda, que constituía parte da lógica da leitura
cristã de concepção do infiel, deveria ser superada. Ao
jesuíta cabia impor uma alteração direta na forma de
percepção que o indígena possuía do mundo natural. Era
imperativo fazer com que o índio se sujeitasse à natureza,
tornando-a agricultável, ao mesmo tempo em que sujeitava a
si próprio.
É de bom alvitre lembrar que o estabelecimento de
núcleos populacionais efetivos, nas terras brasileiras,
provocaram uma reordenação interna dos povos indígenas. A
ocupação das faixas litorâneas rechaçou as tribos indígenas
que não foram convertidas ou incorporadas de imediato. Esta
ação coercitiva dos colonos e jesuítas produziu no âmbito
das relações inter-tribais, ações coercitivas das tribos
entre si, que se processaram devido ao número crescente de
grupos que disputavam as regiões mais propícias para a sua
sobrevivência em terras de tribos inimigas. Em muitos casos
a hostilidade ao elemento branco, tão rotineiramente
destacado nos relatos quinhentista e seiscentista, nada mais
era do que o reflexo causado pela desestruturação do espaço
indígena pelos próprios cristãos.
252
A hostilidade dos indios, dentre outros aspectos, nos
informam das necessidades e dificuldades destes para
obtenção do sustento diário, uma vez que foram forçados a se
fixar em locais distantes das principais fontes de recursos
por eles utilizadas. 0 deslocamento dos grupos indígenas
também provocou, indiretamente, um processo de mudança nas
condições de sobrevivência de cada uma das tribos,
incrementando o caráter belicoso das mútuas agressões. Novos
"habitats" nem sempre favoráveis à fixação, disputa acirrada
e constante de defesa, uma mortandade elevada, fruto de uma
penúria extrema, eram os reflexos do mundo natural em
processo de conversão134 .
Nóbrega detecta este problema de desestruturação, em
função de uma visão catequizadora, ressaltando a
impossibilidade do prosseguimento da atividade missionária
frente à mobilidade das tribos. Residindo na casa de Nossa
Senhora do Rio Vermelho, informa os poucos êxitos obtidos a
Miguel Torres, pois o gentio:
...que eram freguezes destas duas igrejas, fugiram. A causa disto
foi tomarem-lhes os cristãos as terras em que têm seus mantimentos,
e, por todas as maneiras que podem, os lançam da terra, usando de
todas manhas e tiranias que podem dizendo-lhes, que os hão de matar,
134 ROMANO, Ruggiero, op. cit., p. 23.
253
como vier esta gente que se espera, e esta é a comum prática de maus
cristãos,... //135 .
Sem dúvida, o impacto causado pelos colonos portugueses,
na vida dos brasis, foram significativos e afetaram
profundamente a estrutura da sociedade tribal e sua cultura.
Ao impor uma cultura européia, utilizando-se da forma
coercitiva de sujeição ao sistema de escravidão, totalmente
desconhecido das relações inter-tribais, os colonos
conduziram as comunidades indigenas à desagregação das
estruturas sócio-culturais das tribos. Esta prática não
poderia ser evitada, pois '‘'conquistar é sujeitar", e a
"sujeição impunha a cultura e os objetivos portugueses", um
modelo cristão-português que deveria moldar o papel em
branco que era o indio136 .
0 plano da conquista pressupunha que a estrutura de
dominação deveria fazer com que o sujeitado reconhecesse o
outro, dominador, enquanto senhor. Este por sua vez deveria
ter "status" de dominador, que lhe era atribuido, na medida
em que se diferenciava dos dominados, fazendo-se impor a
eles. Essa diferenciação dada pelo sistema escravista
norteava o relacionamento de dependência e instaurava a
135 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Miguel Torres. [Baia agosto de 1557], in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. II, p. 399.
136 PAIVA, José Maria de, op. cit., pp. 41-42.
254
noção de poder, que necessitava consolidar-se por via da
conquista.
Por causa da insegurança advinda dos constantes ataques
dos indios, as aldeias tinham dimensões reduzidas,
protegidas por paliçadas onde os habitantes se recolhiam
para guerrear com o inimigo. Isto provocou uma concentração
do espaço cristão em pequenos núcleos urbanos. As aldeias
passam a ser, antes de tudo, fortalezas onde a cada alerta
do ataque do inimigo a população se refugia. Indiretamente,
os pequenos núcleos guarnecidos auxiliavam a coroa no
controle social e reforçavam a sua autoridade137 .
Os constantes ataques dos brasis exigiam uma defesa por
parte dos colonos e dos jesuítas. A cerca que demarcava o
limite das vilas e aldeias era um elemento de diferenciação
do mundo natural convertido, espaço ocupado e cultivado pelo
branco, sendo também um elemento de defesa. A cerca
significava distinção, proteção e resistência a um grupo
invasor. Esta barreira concreta frente ao ataque era uma
tentativa de garantia da integridade da cultura que ali se
instalara.
137 Costa Lobo destaca que no século XV o governo português "procura reter os habitantes
dentro do perímetro das muralhas, porque assim lhe convinha para o mais fácil exercício
da sua autoridade". LOBO, A. de S. S. Costa, op. cit., p. 19.
255
A constituição de um espaço cristão trouxe consigo uma
percepção da natureza que reforçava as caracteristicas
qualitativas da terra, como responsável pelo abastecimento
do grupo e fonte de riqueza primordial. Esta visão
utilitária indica que inevitavelmente a catequização deveria
alterar a percepção indigena do meio natural. A natureza
revestia-se de uma dupla caracterização: fonte de recursos
(exploração agricola) e fonte das guerras.
Dentro deste contexto os matos e florestas eram
perigosos, pois neles perambulava o gentio não civilizado,
temido e desprezado pela sua proximidade com a animalidade
do mundo natural.
0 pensamento cristão durante toda a Idade Média criou
uma imagem para as vastas florestas que cobriam a Europa.
Geralmente marcada por uma marginalidade, a floresta, como
analisou Harrison, era onde viviam:
"les proscrists, les fous, les amants, les brigands, les ermites,
les saints, les lépreux, les maguisards, les fugitivs, les
inadaptés, les persécutés, les hommes sauvages".
Local que fugia ao controle tanto do poder temporal como
do poder espiritual, a floresta era uma barreira para as
instituições vigentes, "barriere impassible de nature
inculte". Natureza inculta com uma multiplicidade de
256
habitantes e conseqúentemente lugar com imagens múltiplas.
Contudo, a Igreja atribuia uma imagem homogenizadora para o
conjunto de caracteristicas: o da ausência de modelo cristão
de conduta. A floresta é classificada pela imagem da
"bestialité, 2a chute, l'errance, la perdition"í3s
Os matos e florestas eram, pela permanência das imagens
cristãs medievais, um lugar cheio de morte e pavor no qual
os j esuitas, colonos cristãos ou qualquer outro indio
convertido poderiam ser capturados pela ferocidade da
animalidade das tribos não convertidas. Na narração De
qestis Mendi Saa, Anchieta delineia os cruéis indigenas
ocultos por entre matos prestes a atacar:
"Das fortificações, umas se ocultam em selvas sombrias, do lado em
que o sol, deixando o zenit, se engolfa no plaino;... «139
Os matos e florestas acenavam para a iminência de um
perigo a ser sempre considerado por ocasião de qualquer
investida, seja para a busca de um cristão de convivio
impróprio, no seio de comunidades indigenas, seja por
ocasião das fundações de aldeias ou visitas às tribos.
138 HARRISON, Robert, Foréts, p. 99. Ver sobre a origem do termo floresta pp. 54-55.
139 ANCHIETA, José de, op. cit-, p. 99.
257
Esta preocupação com a segurança nos caminhos e por
florestas tenebrosas era objeto de preocupação dos
superiores da Companhia, informados das condições perigosas
longe das ilhas de civilidade. Miguel Torres aconselha ao
Pe. Manuel da Nóbrega, em carta de 12 de maio de 1559, sobre
os cuidados para realização destas empreitadas:
" (...), seria mister muita cautela, e além da virtude que se
requer, em não ir nunca algum dos nossos só as povoações dos índios,
e por os caminhos, y aun seria de procurar que quando fosse dois ou
mais, los acompanhasse algum laico, pessoa virtuosa, se fosse
possivel. V.Ra. veja, por amor de Nosso Senhor, que nisto se tenha
toda a consideração necessária,... "14° .
0 medo das florestas era esmagador, pois o jesuita ainda
não conseguia controlá-las nem conquistá-las, por faltava-
lhe recursos para tanto.
0 afastamento dos núcleos civilizados remetida a um
perigo latente, como a perda da identidade cristã ou como
afirmou Harrison "les ombre de la loi". A floresta estava
fora do controle do mundo civil e das instituições que a
coroa portuguesa tentava tornar obrigatórias.
A penetração para o interior forçava o convivio com o
gentio, e normalmente significou a perda de referência em
140 Carta do P. Miguel Torres ao P. Manuel da Nóbrega. Lisboa 12 de maio de 1559, in
LEITE, Serafim, op. cit., ibidem, vol. III, p. 27-28.
258
relação aos pontos de cultura cristã do litoral. Logo, o
medo das florestas, para os inacianos, não se restringia
somente à ameaça das tribos hostis, mas principalmente à
tentação de retorno a uma vida que esta se configurava. Esta
situação era ameaçadora para aqueles que estavam em processo
de conversão ou para os cristãos de conduta duvidosa.
Nóbrega, com pesar, relata a situação encontrada na
Capitania de Duarte Coelho, apontando ao Rei D. João III, os
problemas advindos do desconhecimento da pregação da fé
católica aos cristãos que lá viviam:
"o sertão está cheio de filhos de cristãos, grandes e pequenos,
machos e femeas, com viverem e se criarem nos costumes do
gentio"141 .
Azpilcueta Navarro relata em carta de 24 de junho de
1555 a entrada pelo sertão que durou um ano e meio. Seu
relato sintetiza o deleite e o temor numa aventura incerta
de reconhecimento da terra e da descoberta de possiveis
riquezas que esta poderia oferecer, principalmente o ouro:
"Saibam, Irmãos caríssimos que entramos pela terra adentro trezentas
e cinquenta léguas, sempre por caminhos pouco descobertos, por serra
muito fragosa que não tem conto, e tanto número de rios que em parte
no espaço de quatro a cinco léguas passamos cinquenta vezes contadas
por água, e muchas vezes se não me socorriam me haveria de afogar.
Mais de três meses fomos por terras muito úmidas e frias por causa
141 Carta do P. Manuel da Nóbrega a D. João III, Olinda 14 de setembro de 1551, in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. I, p. 290.
259
das muitas arboledas de árvores muito grossas e altas, de folha que
sempre está verde. Chovia muitas vezes, e muitas noites dormíamos
molhados, especialmente em lugares despovoados , y assim todos los
homens em cuja companhia ia estiveram quasi a morte de enfermidades,
uns nas aldeias e outros en despovoados, e sem ter mais medicina que
sangrar-se em pé, forçando a necessidade, e caminhar. E sem ter
outro mantimento a mais das vezes senão farinha com água no perigo
nenhum porque nos socorreu Nosso Senhor com sua misericórdia,
livrando-nos também de muitos perigos de índios contrários que
algumas vezes determinavam de nos matar (...) «142
Apesar das diversas barreiras que a floresta oferecia, a
possibilidade de uma tribo inimiga aniquilar os loiolanos se
apresentava como a mais tenebrosa, pois significava a
derrota do cristianismo.
A outra visão que desponta na leitura jesuitica do mundo
natural é a da floresta como refúgio, que pode acolher
fugitivos, os expulsos de suas terras, os vencidos de
maneira geral, assim como colonos malfeitores. Eram ameaças
e medos reais que os inimigos podiam impor àqueles que se
aventurassem pelas trilhas dos matos, ou perigos
imagináveis, influenciados pela visão jesuitica da presença
demoniaca pelos locais ainda não convertidos.
í
A floresta, contudo, não pode ser vista só pela sua
negatividade. Deve-se também considerá-la de fundamental
importância, do ponto de vista económico, pois é ela que
142 Carta do P. Juan de Azpilcueta Navarro aos Padres e Irmãos de Coimbra, Porto Seguro,
24 de junho de 1555, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, pp. 245-246.
260
fornece a carne para alimentação, uma vez que a atividade
criatória não existia entre os indigenas. Afora a carne de
caça, a floresta fornecia frutos, madeiras para a manutenção
do fogo, ou construção das malocas, ou ainda para construção
de pequenos artefatos. A natureza não cultivada
proporcionava aos indígenas e aos jesuitas o único recurso
alimentar na ocasião dos deslocamentos entre as aldeias, o
que fazia com que os viajantes da fé se alimentassem daquilo
que a natureza inculta lhe oferecesse.
Leonardo Nunes ficou isolado após uma expedição
tempestuosa. Durante alguns dias, ele e seus companheiros
comeram das cabaças cozidas sem sal e sem azeite, com
farinha podre, dos indios, servidas nos mesmos alguidares
onde eram cozidas e comidas as carnes humanas. Essa situação
de fome intensa era amenizada pela coleta de mangabas pelos
nativos, "que eram como sorva de Portugal" e outra fruta
"yba putangat", que são "como amoras de silva e tem o mesmo
sabor" 143 Por conseguinte, a interdição de acesso às
florestas impedia a busca de alimentos.
António Blazquez relata em 1558, aos seus pares de
Coimbra, que os índios da Bahia, amedrontados não:
143 Carta do P. Brás Lourenço aos Padres e Irmãos de Coimbra. Espírito Santo, 26 de março
de 1564, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 43.
261
"ousam ir as suas roças, porque andam junto delas os Aymorés, gente
selvagem e alguns em seu viver não diferem dos brutos. Dormem no
solo, não tem lugar certo, senão andar como lhes apetece vagueando
por uma parte e por outra buscando o mantimento pelos campos"144 .
Em suma, a presença da Companhia de Jesus nas Terras de
Santa Cruz pode ser entendida como uma resistência à ameaça
que os aborígenes e as terras selvagens representavam numa
flora e fauna desprotegidas por Deus. Como destacou Baeta
Neves a natureza não era má,
"apenas que a natureza tropical parece ter sido abandonada por Deus,
não convive, não foi transformada pelos homens"145 .
A ação jesuitica marcou, antes de mais nada, um processo
de transformação dos elementos naturais. A colonização
consistia em destruir ou derrubar o mundo natural inimigo, e
construir ou cultivar um novo mundo natural companheiro.
Todas as obras se preocupavam com a transformação da
natureza, que é acompanhada pelo processo de sujeição dos
indigenas. Theodoro afirma que "a obra de colonização exigia
a presença da mão-de-obra indígena, mas não de sua cultura,
para a construção dos povoados com o perfil europeu"146
144 Carta do Ir. António Blazquez aos Padres e Irmãos de Coimbra. Baia, 8 de julho de
1555, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 254.
145 NEVES, Luiz Felipe Baeta, op. cit., p. 41.
146 THEODORO, Janice, op. cit., p. 66.
262
Na obra De Gestís Mendi Saa de José de Anchieta, o gentio
e a terra brasis são caracterizados pela negatividade de
atributos: um animal feroz e uma natureza hostil, que devem
ser domesticados pelas previdentes e sacras forças
portuguesas, que por intermédio de Mem de Sá, e apoio
divino, processam a conversão do gentio pela força bélica. A
natureza do Novo Mundo sucumbe convertida, frente à cultura
religiosa européia. A presença indigena para o trabalho era
fundamental, mas sua cultura não. Anchieta imortaliza tal
feito nos versos dedicados a Mem de Sá:
"Eis que vês, pontentado supremo, quão grande façanha
realizou a força do onipotente Deus.
O indómito Brasil já seus anchos orgulhos
depôs, e tombou, rendido às tuas armas.
O que dantes, furioso, semeava ruinas e guerras,
aprecia os favores de redentora paz.
O que dantes vivia escondido em sombrias florestas
aos templos do Senhor já pressuroso corre.
O que há pouco, cão feroz, roxa ossos humanos,
sacia como o Pão dos Anjos o coração já manso.
O que há pouco de fauces sedentas, sugava o sangue fraterno
voa a deslaterar-se nos mananciais divinos.
Foi a própria Onipotência que robusteceu os teus golpes
e prostrou a teus pés inimigas hostes z,147
Se, por um lado, o indómito Brasil com suas
negatividades culturais tombou frente à onipotência divina,
147 ANCHIETA, José de, op. cit., p. 83.
263
por outro, os jesuítas se prostraram aos pés do mundo
natural. Para semear a fé, nas terras sombrias dos brasis, o
inaciano foi capturado pelo ritmo da natureza. Sedento e
faminto, suas ponderações sobre a fauna e flora brasileira
revelam como saciou suas necessidades biológicas, ao mesmo
tempo em que robustecia o corpo da cristandade.
Profundamente imbuídos de uma visão medieval, a leitura
da natureza feita pelos primeiros jesuítas é marcada pela
predominância da fé e das doutrinas cristãs, consideradas
superiores em relação à razão.
A fé confirmava e fundamentava a suprema autoridade de
Deus sobre as coisas, inclusive o mundo natural. Deus era o
responsável pela ordenação do universo físico e nele estava
incluso o mundo natural. Para os primeiros loiolanos o
conhecimento do mundo através de classificações racionais
era colocado num segundo plano, pois o verdadeiro
conhecimento eram os ensinamentos da fé, e estes afirmavam
que a natureza fora criada para ser útil ao ser humano.
Cientes do desenvolvimento do conhecimento humano e da
especulação científica, os primeiros jesuítas entendiam que
a capacidade racional humana para a compreensão do mundo
264
terreno era um dos estágios para se alcançar o conhecimento
supremo de Deus pela fé.
Os escritos gregos, dentre eles os pré-socráticos (que
analisamos na primeira parte como referencial comparativo),
foram retomados pelos humanistas durante o renascimento e
paulatinamente assumem papel fundamental no desenvolvimento
da ciência.
Enquanto o conhecimento passava por um revisionismo
total que culminaria com a revolução cientifica do século
XVII e seguintes, as formas de pensar dos loiolanos são
marcadas por uma herança medieval que negligenciava o
progresso cientifico.
Desta forma, o olhar jesuitico é peculiar e difere dos
demais escritos produzidos sobre a natureza naquele momento
histórico. Enfatizando a utilidade do mundo natural para o
ser humano, os jesuitas convergiam para um denominador
comum que era a colonização cristã do mundo. A natureza é
analisada qualitativamente em função das suas propriedades
para a coroa portuguesa e para Deus na ampliação do
horizonte da cristandade. 0 maravilhoso o inacreditável e as
categorizações que o pensamento cientifico começava a fazer
265
são excluídas das descrições sobre os reinos: vegetal,
animal e mineral.
Preocupados em viabilizar a empresa cristã, o olhar
missionário dirigiu-se no sentido de apontar para os
benefícios ou malefícios que Deus criou para a América
portuguesa e que invariavelmente estavam ligados ao
referencial ético-moral dos seus habitantes. Marcado pela
tônica da sobrevivência e da riqueza os escritos buscam
apontar para a ocupação do território indómito, como veremos
a seguir.
266
CAPÍTULO V
PERCEPÇÕES DA NATUREZA: UMA VISÃO UTILITÁRIA
Considerai como Deus está presente nas criaturas.
Nos elementos, dando-lhes o ser.
Nas plantas dando-lhes a vida vegetativa.
Nos animais a vida sensitiva.
Nos homens, a vida intelectual.
Em mim dando-me a existência,
a vida, à sensibilidade e a inteligência:
e tendo me criado à imagem e semelhança
de sua divina Majestade,
fez de mim um templo seu.
Exercícios Espirituais - Santo Inácio de Loyola
267
1 - ALÉM DO BOJADOR A TERRA DOS BRASIS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Mensagem - Fernando Pessoa
A sobrevivência no hemisfério sul, desde o periodo
medieval, apresentara-se como uma das principais indagações
do homem europeu. A falta de informações precisas sobre as
regiões abaixo do Equador abriu espaço para o surgimento e
crescimento de várias conjecturas sobre a vida naquela
região, seus habitantes, sua fauna e sua flora. Gomes Eanes
de Zurara, em Crónica dos feitos da Guiné conjectura sobre as
terras além do Bojador:
"não há ai gente nem povoação alguma; a tersa não é menos aerosa que
os desertos da Líbia, onde não há água, nem árvore, nem erva verde;
e o mar é tão baixo que a uma légua de terra não há de fundo mais de
268
uma braça. As correntes são tamanhas, que o navio que lá passe nunca
poder tornar"1 .
Seria possível a ampliação das áreas cultivadas na
antípoda? Como seria a natureza e os homens nas regiões do
Equador? Estas eram as indagações que alimentavam as visões
do mito do Paraíso tão desejado, cujos relatos de viagem
abasteciam com uma riqueza de detalhes maravilhosos.
As representações das região abaixo do Equador, até
então, oscilavam entre uma imagem tórrida e uma região
aquosa, ambas inabitáveis por se localizarem nos extremos de
uma escala que inviabilizava a sobrevivência humana. Desta
forma, como destaca Kappler, o "alter orbis", era
"um lugar inacessível onde tudo ocorria ao contrário, já que era a
parte de baixo da terra"2 .
Esta concepção perdura mesmo após os primeiros
reconhecimentos, pois só um número reduzido ou privilegiado
de pessoas teve acesso ao "alter orbis".
As descobertas responderam parcialmente aos
questionamentos e mostraram aos olhos do Velho Mundo, ainda
incrédulo, a acessibilidade ao "alter orbis". A existência
i Citado por DIAS, J. S. da Silva, Os descobrimentos e a problemática cultural do século ,
p.56.
2 KAPPLER, Claude, op. cit-, p. 43.
269
de seres biologicamente iguais aos europeus e um mundo
natural distinto era possivel, mas inferior, pois o
referencial eurocêntrico servia de medida para todas as
coisas. Américo Vespúcio, em carta a Lorenzo de Mediei, em
1503, alude à alteridade caracterizada pelas diferenças:
"Naqueles países tal multidão de gente encontramos que ninguém
enumerar poderia, como se lê no Apocalipse; gente, digo, mansa e
tratável"3 .
Thomas More (1478-1535), contemporâneo das grandes
descobertas, sintetiza na sua obra, A Utopia, o
deslumbramento da mentalidade do europeu frente ao
reconhecimento da alteridade. Na figura do navegante Rafael
Hitlodeu, More destaca como este navegante era "o ser vivo"
que poderia fornecer "os detalhes tão completos e tão
interessantes sobre os homens e os países desconhecidos" . A
comunicação de Hitlodeu ressalta o novo pelo contraste e
pelas mutações e diferenças percebidas:
"No equador -(...)- de uma parte e de outra, no espaço compreendido
pela órbita do sol, não viram senão vastas solidões eternamente
devoradas por um céu de fogo. Ai, tudo os aturdia de horror e
espanto. A terra inculta tinha apenas como habitantes os animais
mais ferozes, os répteis mais terríveis, ou homens mais selvagens
que os animais. Afastando-se do equador, a natureza se abrandava
pouco a pouco; o calor é menos abrasador, a terra se cobre de uma
ridente verdura e os animais são menos selvagens. Mais longe ainda,
aparecem povos, cidades, povoações, em que se faz um comércio ativo
3 VESPÚCIO, Américo, Movo Mando, p. 93.
270
por terra e por mar, não somente no interior e com as fronteiras,
mas entre nações muito distantes"4 .
Os descobrimentos e a colonização, se por um lado, vêm
confirmar a idéia de ampliação de um jardim agricultável,
percebida através de " uma ridente verdura", por outro
revelam ao mundo a diversidade de habitantes, bem como de
flora e fauna, não contidas na Biblia. A alteridade
recém-encontrada não é afinal tão distante daquela já
conhecida. Silva Dias afirmou:
"que os habitantes da terra recém-descoberta não se distinguiam,
fundamentalmente, dos da terra já antes conhecida; que os antípodas,
afinal, sempre existiam; que a zona tórrida era uma região com vida
vegetal, animal e humana; que além do nosso orbe, havia outro orbe
terreno, para lá dos mares, maravilhoso, real e humano, como este em
milenariamente nos encontrávamos" 5 .
Destarte, a ampliação do jardim cultivado do Éden pode
ser compreendida em dois sentidos: o primeiro, da extensão
territorial agricultável que aumenta a partir da Europa para
o Novo Mundo; e o segundo, da diversidade da dieta do Novo
Mundo para a Europa, que o comércio ou trocas poderiam
proporcionar.
Barreto, ao considerar as decorrências do processo de
descobrimento, no campo da cultura, afirma que
4 MORE, Thomas, A Utopia, pp. 168-169
5 DIAS, J. S. da Silva, op. cit., p. 120.
271
"os descobrimentos promovem uma contaminação e circulação de
produtos e técnicas com interesse alimentar que até ai eram
propriedade exclusiva de determinados espaços isolados //6
A descoberta de novas terras levava a inferir sobre
diferentes culturas, novas espécies de animais e plantas, e
novas técnicas de cultivo e caça. A circulação cultural
pressupunha também uma circulação dos produtos do mundo
natural. A flora e a fauna universalizavam-se, pelo
mercantilismo vigente, e a viabilidade de uma dieta mais
farta e variada despontava num "sistema de trocas ao nível
das frutas com a deslocação da melancia, abóbora, da
banana, de África para o Brasil e do cajú, do maracujá,
etc., do Brasil para África"1 . Não só a dieta alimentar é
ampliada, mas a partir da alteridade natural que os
descobrimentos inauguram, temos também um olhar mais
cuidadoso sobre a natureza. Quanto a isto, Silva Dias
classifica os Descobrimentos como um
"agente de cultura entre camadas extensas da população no sentido da
natureza e da sua observação" 8 .
A grande extensão da costa brasileira, já destacada por
Pero Vaz de Caminha e pelos primeiros exploradores, a
6 BARRETO, Luiz Felipe, Os Descobrimentos e a Ordem do Saber, p. 15.
1 ibidem, p. 16.
8 DIAS, J. S. da Silva, op. cit., p. 64.
272
exuberância das paisagens e dos produtos naturais, e o
encontro de uma cultura desconhecida, permeiam os primeiros
escritos sobre a Terra de Santa Cruz, revelando o êxtase do
europeu frente a uma nova diversidade natural.
0 Brasil, parte integrante desta nova parcela natural
incorporada ao Velho Mundo, surge tal como a América, no seu
conjunto, como fonte primária de recursos que estimula e
desenvolve a circulação dos produtos naturais. A natureza
universaliza-se com o contato cultural, refletido nos
primeiros documentos em cujas narrativas se percebe o
deslumbramento à vista das fontes alimentares.
0 primeiro relato sobre as Terras de Santa Cruz, a Carta
de Achamento de Pero Vaz de Caminha permitem-nos vislumbrar a
cosmovisão dos portugueses navegantes, sobre o achado, onde
perpassa uma idealização da natureza que se aproxima da
imagem idilica, sem contudo evocar um paraiso terral ou o
mito da Idade do Ouro9 .
Pero Vaz de Caminha, após relatar o descobrimento em si
e os contatos com os nativos, descreve os elementos naturais
da terra, ressaltando a sua grandiosidade e as suas
9 DIAS, José S. da S., ibidem, pp. 144-149.
273
qualidades, onde o mundo natural é percebido na sua
diversidade:
"De ponta a ponta e toda
praia rasa, muito plana e bem formosa
Pelo sertão, pareceu-nos do mar muito
grande, porque a estender a vista não podíamos
ver senão terra e arvoredos, parecendo-nos
terra muito longa. Nela, até agora, não pudemos
saber que haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa
de metal, em de ferro; nem as vimos. Mas,
a terra em si é muito boa de ares, tão frios e
temperados, como os de Entre-Douro-e-Minho, porque,
neste tempo de aora, assim os achávamos como
os de lá. Águas são muitas e infindas. De tal
maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la
dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem."10 .
Pigafetta, ao mencionar a sua passagem pela Terra do
Verzino11 , no final de 1519, ressalta, após ter concluido os
primeiros contatos de provisionamento e troca com o gentio,
que a terra é "abundante em toda classe de produtos", sendo
que a mesma "é tão extensa como França, Espanha e Itália
juntas"12
Em ambos os relatos, a "priori", a natureza é descrita
como um conjunto homogéneo, com qualidades positivas e
negativas, mas sem diferenças significativas quanto à fauna
e à flora. Não se apontam diferenças profundas no contorno
10 CAMINHA, Pero Vaz, Carta do Descobrimento do Brasil, fl. 13, v. 8-21.
11 Conforme Amoretti: verzino, ou pau-brasil, é o nome da madeira vermelha que importava
antes da Ásia e a África e que depois se trazia quase unicamente do reino ao qual deu seu
nome, por causa da abundância de suas árvores. PIGAFETTA, Antonio, A Primeira Viagem ao
Redor do Mundo, Tradução de Jurandir dos Santos, Porto Alegre, L&PM, p. 75.
12 PIGAFETTA, Antonio, op. cit-, p. 57.
274
delineado das novas terras, mas a exuberância e a
diversidade do novo que pode ser povoado e cultivado. 0 Novo
Mundo poderia ser útil, pela sua natureza, ao continente
Europeu. Como observou Carvalho, as obras dos autores
quinhentistas estavam impregnadas de sentido utilitário,
"nascida na maioria dos casos das necessidades práticas
dos descobrimento e da colonização (...) "13
No caso brasileiro esta incorporação do mundo natural ao
universo económico europeu processou-se lentamente, de
acordo com as vicissitudes da coroa portuguesa e de uma
burguesia mercantil que ainda estava voltada para as
riquezas do Oriente.
0 único recurso economicamente viável da flora brasilica
era o pau-brasil, que recebeu regulamentação especifica para
sua exploração, tendo em vista as desordens advindas de um
comércio desregrado nos primeiros anos após o achamento.
Desta forma, o rei D. Manuel I, em regimento, determina:
"Eu EI-Rei faço saber aos que este meu regimento virem que sendo
informado das muitas desordens que há no sertão do pau-brasil em
conservação dele de que se tem seguido haver já hoje muita falta e
ir-se buscar muitas léguas pelo sertão dentro, cada vez será o dano
maior se não atalhar e der nisso a ordem conveniente e necessária
com em cousa de tanta importância a minha Fazenda, tomando
informações de pessoas de experiência das principais do Brasil e
comunicando-as com as do meu Conselho; mandei fazer este Regimento
13 Carvalho, Joaquim de, op.cit., p. 47.
275
que hei por bem e mando se guarde daqui em diante
inviolavelmente zzl4
Nos onze artigos que compõem o regimento, as ordenações
visavam a controlar a forma de exploração do pau-brasil, não
como forma de preservação do meio natural, mas
principalmente como preservação do poder económico da coroa
e de seus prepostos, abalado por um comércio ilegal da
árvore brasilica15 .
Esta primeira fase do processo exploratório baseava-se
no sistema de feitorias, que não permitiu a ocupação do
solo. Não havia relatos regulares sobre as terras da América l
portuguesa.
Os primeiros jesuitas direta ou indiretamente
empreenderam uma leitura mais demorada sobre a natureza das
novas terras. Os escritos mais fidedignos e mais próximos de
uma experiência concreta viriam com a nova politica de
povoamento da terra. Neles a acumulação informativa européia
se entrecruzava com uma experiência vivencial indigena, até
então nunca concebida. Enquanto observadores e sujeitos, os
jesuitas elaboraram a composição do mundo natural
14 Dognm^ntos Históricos - vol. LXXVIII - p. 269.
15 O declínio da exploração do pau-brasil já se faz sentir por volta da metade do século
XVI. Thevet ao referir-se a árvore tâo cobiçada menciona que "sua madeira já foi mais
apreciada no passado do que é hoje em dia". THEVET, André, op.cit.. p. 195.
276
brasileiro, dando a conhecer a cultura alimentar da Terra de
Santa Cruz.
Os testemunhos jesuíticos centram sua narrativa sobre a
terra, naquilo que era passível de conhecimento, através da
percepção empírica, no que concerne à qualidade da fauna e
da flora.
Suas descrições constituíam parte de depoimentos
vivenciais. Eles relatavam os animais e plantas com o qual
interagiam analisando-os e avaliando-os na sua concretitude
em relação à existência biológica, sem qualquer viés
científico. Conforme frisou Silva Dias,
"Os jesuítas não praticaram e nem sequer teorizaram ou ao menos
reivindicaram significativamente: a importância ou o papel da
experiência no estudo da natureza'«16
Destarte, as valorações de cunho genérico ocupam boa
parte dos primeiros comentários sobre a terra que tende a
configurar uma impressão de conjunto da natureza que
responde às perguntas formuladas acerca da existência além
do cabo do Bojador.
16 DIAS, J. S. da Silva, op. cit., p. 41.
277
Estas generalizações decorrem de um conhecimento
parcial da terra, tipicas dos primeiros registros, seja por
ocasião da chegada à Bahia, seja pela ocupação de novos
espaços. Havia a orientação para que as observações fossem
muito bem ponderadas, nada deveria ser fornecido em excesso.
Logo, as primeiras imagens invariavelmente remetiam ao
preâmbulo de cada exercicio espiritual, proposto por Loyola,
onde a composição do lugar material era feita com o auxilio
da imaginação, sempre norteado pela escolha da contemplação.
A primeira descrição da terra feita por Manuel da
Nóbrega em abril de 1549, logo após a sua chegada à Bahia, é
reveladora desse tipo de registro, afirmava o missionário "A
terra cá achamo-la boa e sã", deixando as "mais novas da
terra" para um segundo momento, sabendo que "muito há que
dizer desta terra „17
0 fator principal ressaltado aqui, no que concerne à
terra, é a qualificação desta com adjetivos que apontam para
a possibilidade de sobrevivência "boa e sã". Boa para o
cultivo, e sã para saúde, fatores fundamentais para o
povoamento.
17 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simão Rodrigues, Baia, [10? de abril] 1549, in
LEITE, Serafim, op.cit., vol. I, p. 115.
278
Em carta de agosto do mesmo ano, Nóbrega relata ao Pe.
Simão Rodrigues, que a fertilidade e a amplitude da terra
permitem o povoamento. Este pode ser feito com algumas
mulheres de vida errada, desde que "não sejam tais que de
todo tenhão perdido a vergonha a Deus e ao mundo"
justificando que:
"todas casariam muito bem, porque é terra muito grossa e larga, e
uma planta que se faz uma vez dura X anos aquela novidade, porque,
assim como vão apanhando as raízes, plantam logo os ramos logo
arrebentam. De maneira que logo as mulheres teriam remédio de vida,
e estes homens remediariam suas almas, e facilmente se povoaria a
terra"18 .
A fertilidade da terra servia como ingrediente básico na
recuperação dos comportamentos desregrados de homens e
mulheres. A fertilidade natural impulsionava e permitia a
fertilidade humana. Era remédio para o povoamento.
Em missiva ao Dr. Martin de Azpilcueta Navarro, escrita
no mesmo mês, Nóbrega persiste na categoria do genérico
aliado ao discurso do povoamento. Nota-se porém, um pequeno
aprofundamento no conhecimento da diversidade do mundo
natural, pintado de forma contida, com nuances do
maravilhoso e paradisíaco. Muito mais do que uma pura
descrição, as observações que Nóbrega delineia são os
18 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simão Rodrigues. Baia, 9 de agosto de 1549, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. I., p. 120.
279
esboços de uma representação pictórica da terra dos brasis,
que celebra o mundo natural na sua grandiosidade e beleza
estética, fruto do ato de criação divina. Assim se refere
Nóbrega, à terra brasilica, numa narrativa incomum entre os
textos produzidos naquele momento inicial:
"E muito sã e de bons ares, de tal maneira que sendo a gente muita e
ter muito trabalho, e haver mudados os mantimentos com que se
criaram, adoecem muito poucos e esses que adoecem logo saram. É
terra muito fresca, de inverno temperada, e o calor do verão não se
sente muito. Tem muitas frutas e de diversas maneiras, e muito boas
e tem pouca inveja as de Portugal. Mora no mar muito pescado e bom.
Os montes parecem formosos jardins e hortas, e certamente nunca eu
vi tapete de Flandres tão formoso, nos quais andam animais de muitas
diversas maneira, do quais Plínio nem escreveu nem supôs. Tem muitas
ervas de diversos odores e muito diferentes das d'Espanha, e
certamente bem resplandece a grandeza, formosura e saber do Criador
em tantas, tão diversas e formosas criaturas"19 .
A despeito do tom celebrativo na descrição de um mundo
natural brasileiro mais formoso que um "tapete de Flandres",
os relatos seguintes, ainda do ano de 1549, enfatizam num
primeiro plano a possibilidade de sobrevivência nas novas
regiões, pelas qualidades apresentadas. Tal repetitividade
leva a crer que, ainda para a mentalidade da época,
persiste a idéia de que era inacreditável a sobrevivência
fora da Europa.
19 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Martin de Azpilcueta Navarro. Salvador, 10 de
agosto de 1549, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, pp. 135-136.
280
Os relatos inaugurais são um rompimento com a ordem do
saber de então. O elemento religioso confirmava que, abaixo
do Equador, era possivel a existência humana, pois "tem
muitas ervas de diversos odores e muito diferente das
d'Espanha". A alteridade existia e era reconhecida,
necessário se fazia dominá-la. Qualidades positivas nas
terras não faltavam, sendo úteis para o ideal expancionista
da fé, uma vez que, segundo Nóbrega,
"certamente bem resplandece a grandeza formosura e saber do Criador
em tantas, tão diversas e formosas criaturas"20 .
Nas Informações das Terras do Brasil de 1549 Nóbrega relata
aos Padres e Irmãos da Companhia, as informações sobre a
terra. Há nesta informações um desejo claro de convencer
seus pares a se deslocarem para as terras longínquas, pois
segundo o seu testemunho eram habitáveis. O homem poderia
guardá-las e cultivá-las:
"A informação que destas partes do Brasil os posso dar, Padres e
Irmãos caríssimos, é que tem esta terra mil léguas de costa toda
povoada de gente, que anda nua assim mulheres, como homens, tirando
algumas partes muy lexos onde estou onde as mulheres andam vestidas
ao traje das ciganas con panos de algodão, pela terra ser mais fria
que esta, la qual aqui é muito temperada. De tal maneira que o
inverno não é frio, nem quente, e o verão ainda seja mais quente,
bem se pode sofrer; porém é terra muito úmida, pelas muitas águas,
que chove em todo tempo muito a miúdo. Pelo qual os arvoredos e as
ervas estão sempre verdes. Bá nela diversas frutas, que comem os da
terra, ainda que não sejam tão boas como as de lá, as quais também
20 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Martin de Azpilcueta Navarro. Salvador, 10 de
agosto de 1549, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 136
281
creio que se darian cá, si se plantassem, Porque veio dar-se parras,
uvas, e ainda duas vezes no ano; porém são poucas por causa das
formigas, que fazem muito dano assim em isto, com em outras coisas.
Cidras, laranjas, limões dão-se em muita abundância; e figos tão
bons como os de lá. O mantimento comum da terra é um raiz de pau,
que chamam mandioca, da qual fazem uma farinha, de que comemos
todos. E da também milho, o qual misturado com a farinha faz-se um
pão, que escusa o de trigo. Há muito pescado; e também muito
marisco, de que se mantêm os da terra, e muita caça de matos, e
gansos que criam os índios. Bois, vacas, ovelhas, cabras e galinhas
se tão também na terra, e ai deles muita cópia"21 .
Neste quadro contrastante, pautado pela tônica da
abundância, Nóbrega, esclarece que, apesar de um meio
natural totalmente distinto daquele conhecido em Portugal, a
fauna e a flora brasilica eram quase "tão boas" quanto as da
metrópole. Os animais e plantas europeus poderiam adaptar-se
a um novo "habitat" e com isto era viável a vinda de
lavradores e pastores.
A mudança do discurso de uma forma panorâmica para
outra pormenorizada permite detectar que a ênfase
argumentativa, no que se refere à natureza, vai se fixar
definitivamente na visão utilitária da mesma. Isto se
percebe nos relatos que explicitam as variedades mais
importantes para a dieta alimentar, que antes eram
apresentadas genericamente. Acrescido à nomeação dos
espaços, encontra-se já nas primeiras descrições do cultivo,
21 Informação das Terras do Brasil do P. Manuel da Nóbrega. [Baia agosto? 1549], in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. I. pp. 147-148.
282
a preocupação com preparo e o consumo dos gêneros
alimentícios fundamentais para a sobrevivência.
A natureza por si só nada era. Dependia do engenho
humano para conferir-lhe significado, beneficiá-la para o
consumo, torná-la um produto cultural diferente do seu
estado "in natura".
A observação do mundo natural permite entrever que o
olhar jesuítico não se ateve aos limites do espaço
convertido. Seu olhar e paladar romperam os limites do
espaço cultivado e cristão, para incorporar um reino vegetal
e animal exótico e saboroso.
Estas informações, ainda que de cunho pouco abrangente,
foram ampliadas pelas cartas seguintes, denunciando que
pouco a pouco os inacianos iam se habituando à natureza, o
olho "va haciendo más familiar y al primer efecto
violento contraste con los animales y las plantas de Europa
sucede una percepción, imperfecta pero significativa, de las
afinidades y semejanzas"22 . Todavia, poucas cartas se detêm
de forma prolongada na descrição minuciosa do mundo natural,
revelando que o tema, salvo algumas exceções, assumiu um
plano secundário dentro das narrativas.
22 GERBI, Antonello, Naturaleza de Las índias Nuevas, p. 31.
283
Somente Anchieta, talvez pelo aspecto místico que lhe
atribuem, em alguns dos seus escritos apresentou a natureza
da América portuguesa como tema central. Revelando um gênio
pragmático, o missionário ultrapassou os estreitos limites
da reflexão espiritual com imagens interiores propostas por
Loyola, realizando uma leitura cuidadosa da evangelização na
sua plenitude. Imbuído de uma visão mística, as
considerações da natureza justificavam-se devido ao fim
último, desejado por Anchieta, que era a união intima com
Deus.
Marcado por uma consciência dinâmica o seu relato difere
acentuadamente dos demais membros, tendo em vista a pouca
referência que estes dispensam ao mundo natural. Como
observou Rodrigues: " a natureza selvagem, impenetrada e
misteriosa, materializou ou concretizou os símbolos da
conciência mística que se agitavam dentro em sua conciência
moral na ânsia do absoluto"23 . Sua visão sagaz revela nas
suas descrições a visão utilitária inseparável da criação
divina.
Tendo em vista a dispersão das informações documentais
dedicamo-nos ao seu agrupamento, seguindo a forma pela qual
23 RODRIGUES, LOPES, .anchieta e a Medicina, p. 345,
284
os jesuítas as hierarquizaram; este trabalho visa à melhor
compreensão do olhar jesuítico quanto à utilidade da
natureza e à forma de organizá-la.
285
2 - OS BONS ARES DA TERRA DOS BRASIS: NEM FRIO NEM CALOR
“Lhorad, llorad muchas lágrimas mis Hermanos,
y mirad que esta empressa da Dios a pocos”
Carta de 17/09/1562 - Ir. Vicente Rodrigues
Ao narrar a fixação no território, o clima desponta nas
descrições com relativa constância. Os elementos climáticos,
principalmente a temperatura, chamam a atenção dos primeiros
missionários recém-chegados, pela sua diferença extremada em
relação ao clima da região de origem. Um tempo ameno marca o
limite entre o nem frio e nem calor da terra dos brasis.
Conforme observou Hitlodeu, o calor tórrido do Equador
vai diminuindo com a latitude em direção do polo Antártico.
Por conseguinte, o clima nas regiões descobertas é mais
ameno do que aquele na região do Equador e mais agradável do
que o do continente europeu. Os jesuitas desejavam, de
maneira timida, confirmar com sua experiência que, após a
linha equinocial, a vida era possivel.
286
Até mesmo a astronomia utilizada pelo navegadores eles
ignoravam. Quase não se referem a ela durante as suas
viagens, seja no percurso de Portugal à Bahia, sej a nos
trajetos internos.
Ciente da sua incapacidade, no que tange à localização
das terras, segundo o conhecimento da época, Anchieta
declara, ao tentar localizar a provincia de São Vicente em
1560 que:
"não me é fácil explicar nela a aproximação e afastamento do Sol, o
curso dos astros, a diversa inclinação das sombras, as fases da lua,
porque nunca estudei estas; mas não vejo razão para que sejam
diferentes do que se observa lá [na Europa] //24 .
Este esclarecimento, se por um lado aponta para uma
complexidade e um desconhecimento das técnicas de
localização, por outro aponta para o relativo conhecimento
astronómico na época, iniciado pelos humanistas e
incorporado à prática dos navegantes.
A ponderação de Anchieta explicita que as técnicas
existentes para localização poderiam ser utilizadas também
nas novas terras. Não havendo nenhuma condenação ou juizo de
valor condenatório em tal prática, o mundo era um só e
24 carta do Ir. José de Anchieta ao P. Diego Laynes. S. Vicente, 31 de maio de 1560, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. I.
287
estava sujeito às mesmas leis de verificação. Anchieta, com
um olhar mais observador, aproximava-se de um conhecimento
cientifico sem sabê-lo.
Os ventos, as chuvas, os ares são elementos
constantemente observados pelos inacianos. 0 movimento de
ar nas regiões litorâneas, que soprava no final da tarde
sobre a terra, acompanhado algumas vezes de precipitações
atmosféricas abundantes, contrapunha-se àqueles encontrados
na Europa. A oposição pautava a experiência sensorial.
Segundo observa Anchieta:
"As estações do ano (olhando de perto) são aqui inteiramente às
avessas de lá; no tempo em que lá é primavera cá é inverno e vice-
versa; mas são tão temperadas que não faltam no inverno os calores
do sol para suavizar o rigor do frio, nem no verão as brandas brisas
e as húmidas chuvas para regalo dos sentidos; ainda que como já
disse esta terra, da beira-mar, é quase todo o ano regada por águas
da chuva"25 .
0 clima oposto ao da Europa é percebido também pelo
calendário das comemorações litúrgicas:
"O inverno começa cá em Março e acaba em Agosto; o verão começa em
setembro e acaba por fim de Fevereiro, e por isto o Advento, e o
Natal são em sumo estio"26 .
25 Carta do Ir. José de Anchieta ao p. Diego Laynes. S. Vicente, 31 de maio de 1560, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. III.
26 Informação da Província do Brasil para nosso Padres, 1585, in Cartas Jesuíticas III,
pp. 424-425.
288
Nem sempre a definição por oposição ao clima Europeu foi
possivel. Anchieta observava a irregularidade do clima na
Capitania de São Vicente assim se referindo:
"A duração das partes do ano é que é muito diferente e tão confusa
que não se podem distinguir com facilidade nem assinalar tempo
determinado à primavera nem ao inverno"27 .
Esta oposição tão marcante do clima brasileiro com
caracteristicas peculiares casou estranheza, mas sossegou a
curiosidade dos primeiros loiolanos pois, sabiam que em sua
sapiência, Deus providenciara o equilíbrio do Cosmos.
Anchieta explica tal ocorrência da seguinte forma:
"0 sol nos seus giros produz um acerta temperatura constante, de
maneira que nem o inverno regela com o frio, nem o verão é demasiado
quente, em nenhum tempo do ano param as chuvas, e, de quatro em
quatro, de três em três ou até de dois em dois anos, se alterna a
chuva com o sol"28 .
Claramente imbuido da teoria geocêntrica ptolomaica,
que concebia a Terra como centro do universo, Anchieta nota,
embasado nas constatações concretas, que o giro do Sol ao
redor da Terra produzia nas terras dos brasis efeitos
diferentes daqueles das terras européias. Comprovava isto
pelo um clima ameno e regular, sem as durações definidas
observadas na Europa.
27 Carta do Ir. José de Anchieta ao P. Diego Laynes, S. Vicente, 31 de maio de 1560, in
LEITE, Serafim, op.cit., vol. III, p. I.
28 ibidem, p. I.
289
Esta diferença do giro do Sol produzia também anomalias,
mais dificeis de serem explicadas do que as regularidades e,
Anchieta, preocupado com a sobrevivência, refere-se a este
caso especifico, notando que:
" (...) há anos em que se fecha o céu e não chove, de forma que, não
pela força do calor, que nunca é excessivo, mas por falta de água,
secam os campos que não dão os costumados frutos; e algumas vezes
chove demais e apodrecem as raizes de que nos alimentamos"29 .
As impressões sobre o clima confirmavam, apesar das
irregularidades, a possibilidade da existência humana abaixo
da linha do Equador.
0 clima suscitava ainda indagações sobre o caráter dos
seres que habitavam as terras abaixo da linha equatorial.
No século XVI vigorava ainda a concepção Hipócrates
sobre o ar, que lhe atribuia uma influência importante na
formação dos individuos. A escola hipocrática defendia "a
influência dos ares e dos lugares no desenvolvimento do
feto, na elaboração dos temperamentos, na génese das
paixões, nas formas de linguagem e no gênio da nações"30
ibidem, p. I.
2° CORBIN, Alain, Sabores e Odores, p. 22. Ver também KAPPLER, Claude, op. cit., p. 48.
290
Anchieta, em Informação da Província do Brasil de 1585
registra a permanência desta concepção que sobreviveu ao
periodo medieval, quando descreve a benignidade do clima, no
que tange à longevidade dos seus habitantes:
"O clima desta província do Brasil é geralmente muito temperado, de
bons e delicados ares e muito sadios, aonde os homens vivem muito,
até oitenta, noventa e mais anos, e a terra está cheia de velhos.
Não tem frios nem calores grandes, os céus são mui puros, maxime à
noite; a lua é mui prejudicial a saúde e corrompe muito as cousas,
as manhãs são salutiferas, tem pouco de crepúsculo porque em
amanhecendo logo sai o sol e em ponde-se anoitece"31 .
Em função desta boa fama dos ares tropicais é que o Pe.
Miguel Torres informa ao Pe. Diego Laynez a ida do jesuita
Dictio, "que tem a enfermidade de gota", para o Brasil
justificando a decisão não só pela utilidade que este teria
para a conversão, mas " especialmente se enviou porque aqui
[Portugal] não havia esperança ordinariamente de saúde, e lá
segundo dizem os médicos, a cobrará com os ares e exercícios
da terra se em alguma parte a pode cobrar"32 .
Contudo, os ares e o clima não eram vistos só pela sua
benignidade. Quando considerado em função de uma moralidade
cristã, o clima era visto através de uma influência maligna
no comportamento dos habitantes.
31 Informação da Provincia do Brasil para nosso Padres 1585, in Cartaa Jeauáticaa III, p.
424 .
32 Carta do P. Miguel de Torres ao P. Diego Laynes. Lisboa, 6 de outubro de 1559, in
LEITE, Serafim, op. cit., p. 164.
291
Os ares das terras equatoriais e subtropicais permitiam
a nudez indigena. A exposição do corpo e principalmente da
genitália, rompendo com os preceitos cristãos de moralidade,
significava a negação da moral cristã. 0 clima contribuía
para a perpetuação dos costumes da terra, e era uma barreira
natural à conversão33 .
A influência do clima de forma negativa também era
passível de ser constatada na fauna através da procriação de
determinadas espécies que comprometiam a própria existência
dos jesuítas. Anchieta entendia que a abundância de animais
imundos era decorrente desta negatividade que:
" (...) parece influir peçonha nos animais e serpentes e assim cria
muitos imundos, como ratões, morcegos, aranhas muito peçonhas"34 .
33 A presença da idéia da influência do meio na formação biopsicossocial do ser humano
pode ser identificada ainda no século XVIII. No Jornal Português do século XVIII (1752-
1754) verificamos que nos papéis anónimos encontra-se um texto "Para divertimento e
utilidade do público" cujo titulo é "Sobre os dentes". O autor deste texto menciona antes
de fornecer a justificativa da escolha para o seu relato que: "é certo que há muitos
lugares onde parece que a natureza produz homens muito diferentes dos outros. Os lobinhos
são particularmente dos Saboiardos, assim como as alporcas dos Espanhóis, E Ramúsio
observou que os habitantes das montanhas do Peru nascem quase todos vesgos ou tortos, Há
uma nação particular entre os Malabares nas índias Orientais, aonde todos nascem com uma
perna tão extraordinariamente grossa do joelho para baixo, que os outros Indianos entendem
por isto que são amaldiçoados do Céu." In O Anónimo - Journal Fortuguais du XVIII siécle
(1752-1754), Calouste Gulbelkian, Paris, 1979, pp. 395-397.
34 Informação da Provincia do Brasil para nossos Padres - 1585, in Cartas Jesuíticas III,
p. 432.
292
A despeito dos aspectos pouco favoráveis normalmente
apontados pelos primeiros missionários, o clima da terra dos
brasis foi considerado benigno e agradável pela
preponderância de temperaturas moderadas que favoreciam a
saúde e facilitavam a adaptação do homem, principalmente
daqueles que acabavam de chegar, como veremos a seguir.
Em suma, as condições climáticas prenunciavam
indiretamente as potencialidades produtivas da terra. Climas
amenos eram propicios também ao cultivo agricola desde que a
fertilidade da terra o permitisse.
293
3-0 REINO VEGETAL: TUBÉRCULOS E FRUTAS
Mostra-nos a Terra, exteriormente uma face
triste e melancólica, recoberta,
em sua maior parte, por pedras, espinhos,
cardos e coisas que tais, no entanto,
se vem o lavrador abri-la com arado ou chama,
ali reencontrará a excelência do solo,
pronto a produzir mancheias
e a recompensá-lo centuplicamente.
As Singularidades da França Antártica - André Thevet
As Escrituras Sagradas consideram que as criaturas de
Deus foram abençoadas pelas magnificência de seu poder que
faz "brotar capim verde para os animais e vegetação para o
serviço da humanidade, a fim de que saia alimento da
terra"35 . A dieta alimentar vegetal instaurada no Jardim do
Éden demonstra que o homem depende do mundo natural para
viver, principalmente do reino vegetal.
Na dieta da Igreja, durante o periodo medieval,
preponderava a ideia de que a alimentação vegetariana era a
35 Salmo 104:14
294
mais pura. As frutas eram base das refeições, conforme
relatam com relativa repetitividade as hagiografias.
A alimentação humana, organizada por Deus no jardim do
Éden, permitia alimentos disponíveis em abundância, sendo
proibido somente o fruto da árvore do conhecimento.
Desrespeitando a interdição divina, ao consumir esse fruto
o homem perde o seu paraiso de delicias vegetais. 0 paladar
foi uma das causas da sua queda e o inicio de uma nova era,
em que ele passa a ser um sujeito cognoscente. Como afirma o
texto biblico, a ingestão do fruto configura que o ser
humano será como Deus. Comer e saber constituem, a partir de
então, elementos indissociáveis . 0 homem passava a ser
dominador, como observa Serres:
"des papilles gustatives, dépassant l'extase de la cormaissance,
posse inunédiatemente l'homme à la domination: tu seras cornme
Dieu"36 .
A qualidade da terra e a possibilidade de obtenção de
grãos alimentícios que ocupam quase que a totalidade de
descrições sobre a flora, demonstram esta necessidade de
dominação da flora brasílica para a sobrevivência básica.
36 SERRES, Michel, Le Contraí Naturel, p. 97.
295
Descrições parciais, passageiras ou completas, todas
tenderam a reforçar uma imagem dual para a obtenção da ração
alimentar vegetal, apresentando, por um lado, uma natureza
selvagem que impõe barreira e por vezes é temivel, e por
outro, uma riqueza e abundância da flora nunca antes vista,
seja pela quantidade, seja pela diversidade. 0 clima, oposto
ao do europeu, permitia uma oferta de recursos alimentares
mais constante. A terra fértil com uma vegetação verdejante
o ano todo destacava-se quando comparada às penúrias que o
inverno europeu submetia a existência humana37 .
As descrições da flora, apesar da forma exortativa que
remetia ao tradicional tema dos hortos de delicias, fazia
transparecer, de maneira clara, uma visão utilitária de
dominio sobre a natureza. Ordenado segundo as necessidades
biológicas humanas, a tônica dos discursos enfatizava o
cultivar e guardar os mantimentos 38 .
Luis da Grã39 assim descreve a natureza segundo sua
função utilitária básica que é a alimentação:
37 LEITE, Serafim, História da Conpanhia de Jesus no Brasil, vol. I, pp. 109 e segs.
38 HOLANDA, Sérgio B-, op. cit., p. 244 . Os Exercidos Espirituais impunham regras para
ordenar a alimentação ver LOYOLA, Inácio - Exercícios Espirituais, pp. 118-120.
39 Luiz da Grã nasceu em Lisboa nos idos de 1523, onde estudou. Entrou na Companhia a 20
de Junho de 1543. Chegou ao Brasil a 13 de julho de 1553 com a terceira expedição
missionaria. Faleceu em Olinda a 26 de novembro de 1609.
296
"Os mantimentos próprios da terra, ainda que húmidos quase todos são
em abundância. O pescado é muito gostoso saníssimo. As carnes não
havia entre os Xndios senão de mato, que eles caçavam com suas
flechas e laços, e agora também com carnes que obtiveram dos
cristãos; porém todo o gênero de gado se cria em abundância, porque
los cristãos tem muitos porcos, bois, cabras, galinhas patos, etc.
Pão de trigo não tem senão o de Portugal ainda que em São Vicente se
semeia e colhe muito formoso, porém nem ali nem nas outras
Capitanias se trabalha para semeá-lo, porque este mantimento da
terra de raízes de árvores, a que chamam mandioca é peçonhenta, se
se bebe sua água, contudo a farinha que dele se faz não faz mal a
disposição. O aipim se come cru, como muitas outras raízes de que
usamos. E desta farinha se faz pão de raízes de que usamos, E desta
farinha se faz pão de muitas maneiras. Há com tudo muito milho e
arroz muito bom e em muita quantidade,«40
A terra mais fértil é aquela que pode oferecer meios
abundantes para a existência. Por conseguinte, alguns locais
se sobressaíram pela riqueza do solo se comparado a outras
regiões ocupadas. A vila do Espirito Santo é tida como "a
melhor e mais fértil de todo o Brasil. Há nela muita caça de
monte, muitos porcos monteses e é abastecida de pescado"41 .
As cartas levavam noticias da fertilidade da terra e da
produção de tubérculos, legumes e frutas dos mais variados
tipos degustados pelos jesuítas. Esta alimentação dos
trópicos garantiu-lhes as chances de sobrevivência da
40 Carta do P. Luís da Grã ao P. Inácio de Loyola, Baia, 27 de dezembro de 1554, in LEITE,
Serafim, op. cit-, vol. II, pp. 130-131.
41 Carta do P. Afonso Brás aos Padres e Irmãos de Coimbra, [Espírito Santo, 24 de agosto
de 1551], in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 275.
297
palavra de Deus, numa terra tão longínqua onde faltavam para
o cultivo as sementes das espécies européias42
Na maioria das cartas as descrições sobre a mandioca são
pontuais. Geralmente referem-se à sua utilização na dieta
alimentar. Tão comum quanto a sua importância para a
alimentação, era a descrição dos males provenientes da
ingestão de produtos indevidamente preparados. Viver e
morrer definem a ênfase de quase todas as narrativas sobre a
flora brasílica.
Gerbi, ao analisar as descrições da flora alimentícia,
feitas por Fernandez de Enciso em Suma de Geoqraphia, de
1519, afirma:
"Aquello de que se puede vivir y aquello de que se muere marcan los
limites de su curiosidade botânica"43 .
Tal como as descrições feitas por Enciso a pluralidade
de menções sobre a mandioca devia-se ao fato de que ela
sintetizava a dualidade vida/morte que envolvia o loiolano.
Muito mais do que uma curiosidade botânica, a mandioca
era o alimento vital para a sobrevivência da cristandade. Os
42 Sobre a agricultura praticada pelos jesuitas ver LEITE, Serafim, História, da Cogpanhia
de Jesus no Brasil, Tomo I, Livro I, pp. 19-186.
43 GERBI, Antonnello, op. cit., p. 108.
298
jesuítas necessitam viver para combater e converter. Esta
forma de percepção do mundo natural pautou constantemente as
descrições da flora brasileira explícita ou veladamente.
Devido à variedade de gêneros das raízes da mandioca,
era necessário conhecê-los junto aos indígenas para prepará-
la e consumi-la. As narrativas a este respeito eram
revestidas de nuances espetaculares. Sendo, como afirmava
Anchieta, o principal alimento da terra, a mandioca
substituía o trigo europeu, constituindo "o pão comum" da
Terra de Santa Cruz44 .
De forma mais ordenada que os demais, Anchieta menciona
em cartas as características do tubérculo, seu cultivo e
crescimento:
"A mandioca é como árvore, cresce com seus ramos e folhas á altura
de 10 a 12 palmos. Para se plantar cortam grandes arvoredos e depois
lhes põem fogo e plantam uns paus dos ramos de comprimento de um
palmo; em seis ou nove meses deitam mui grandes raízes,... "
Das raízes desta planta podem ser obtidos os manjares da
terra, variando segundo o seu preparo, conforme destaca:
w as quais [raízes] deitam de molho até ficarem podres e as
expremem e fazem farinha que fica como cuscús de farinha de trigo,
Também cruas se ralam e expremem-se e fazem-se uns beijús que são
44 Informação da Província do Brasil para nosso Padres - 1585, in Cartaa Jejmíticaa III,
p. 427.
299
obreias do tamanho de um prato mas mui alvo; é mantimento de pouca
substância, insípido, mas são e delicado".
Ele salienta que as raízes da mandioca são armazenadas
de forma peculiar:
"estão quatro, cinco ou seis anos dentro da terra e não são
necessários celeiros, como para o trigo, porque não tem mais que
tirar da terra cada dia e comer-se a farinha e beijús frescos //45
A farinha de pau, produto das raízes do tubérculo era o
produto mais consumido puro ou como acompanhamento de carnes
e legumes. A mandioca tornou-se o principal sustento da
população, sendo também servida como ração de animais.
Todavia, as raízes conforme alerta Anchieta, são
"venenosas e nocivas por natureza se não forem preparadas
pela indústria humana para se comerem"4 6 Na terra dos
brasis, as experiências comprovavam que a falta de certos
alimentos poderiam levar à morte, mas o seu preparo indevido
poderia levar a ter resultados similares. Eis o que diz
Anchieta sobre a mandioca que "tem algumas cousas notáveis":
"os homens que a comem crua ou bebem sua água arrebentam e morrem;
os animais que a comem crua engordam com ela e é ordinário
mantimento dos cavalos e outros animais. Os animais que bebem a água
que dela se expreme morrem logo. Se põe ao fumo depois de podre,
45 Informação da Província do Brasil para nosso Padres - 1585, in Cartaa Jesuíticas III,
p. 427.
4® Carta ao Padre Geral, de São Vicente ao último de maio de 1560, in Cartas Jesuíticas
III, p. 125.
300
fica tão saudável que bebida, em água ou vinho, é remédio
presentissimo contra peçonha e fazem-se dela certos calditos como o
amido ou tisana de cevada até para os doentes e sãos, mas é cousa
muito mais delicada e proveitosa para o peito e febres. Também se
faz outro gênero de farinha que chamam de guerra para as armadas e
gente de serviço e dura muito tempo"47 .
Dentre as "cousas notáveis", a toxidez da mandioca foi
um dos aspectos que mais chamou a atenção dos jesuitas.
Dependentes do sustento dessas raízes, os missionários
temiam um envenenamento. Anchieta, descrevendo a missão de
Iperoig em 1565, ao Geral da Companhia Diogo Lainez,
menciona que doze frades alocados no Rio de Janeiro vindos
da França, que
"deviam ser da Ordem de S. Bernardo, os quais fizeram casa e
mantimentos um ano que ai estiveram, e viviam apartados dos seus,
dos quais eram perseguidos e maltratados, porque eram papistas e
diziam missa; mas dos índios selvagens cruéis eram tratados com
muita humanidade, e alguns lhes davam seus filhos a ensinar, e com
tudo isso passavam muito trabalho de fome, pelo qual sendo forçados
a buscar de comer pelas roças, e não conhecendo bem as raizes,
comeram uma vez de mandioca assada, e houveram de morrer,... "48 .
Em oposição à toxidez da mandioca tradicional, Anchieta
ressalta a farinha feita "de outras raízes que chama aipim",
pertencente também à família das euforbiáceas, só que não
nociva por natureza pois, "são como as de mandioca
47 Informação da Província do Brasil para nosso Padres - 1585, in Cartaa Jesuíticas III,
P- 427.
48 Carta do P. José de Anchieta ao Geral Diogo Lainez, de São Vicente, Janeiro de 1565, in
rrar-tas Jesuíticas III, p. 208.
301
propriamente, mas não matam e também se comem assadas. Seu
sabor é como de castanhas"49 .
A impossibilidade de cultivo da terra agravava as
condições de subsistência, pautada por uma penúria
extremada. Em 1562, relata Anchieta na Informação dos
Primeiros Aldeamentos, que:
"por justos juízos de Deus, sobreveio uma grande doença aos índios e
escravos dos Portugueses e com isto grande fome, em que morreu muita
gente, e dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por
casa dos Portugueses a ser escravos, vendendo-se por um prato de
farinha,... "50 .
Além de fornecer o pão comum da terra, da mandioca
extraia-se também uma bebida que causava um vicio perigoso,
causando a perdição de algumas "ovelhas". Diz Azpilcueta
Navarro que quando os indigenas estão embriagados "porque
acá tienen uma manera de vino de razes que embriaga mucho;
quando ellos están ansi borrachos, están tan brutos fieros,
que no perdonan a ninguma persona, y quando más no puedem,
ponen fuego a la casa a donde ay estrangeros"51
49 Informação da Província do Brasil para nosso Padres - 1585, in Cartas Jesuíticas III,
P- 427.
50 Informação dos Primeiros Aldeamentos da Baia, in Cartas Jesuíticas III, p. 356.
51 Carta do P. João de Azpilcueta [Navarro] aos Padres e Irmãos de Coimbra, Salvador,
agosto de 1551, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 278.
302
Os indigenas obtinham da mandioca o cauim, utilizado
principalmente durante os ritos antropofágicos. Anchieta, no
Auto de São Lourenço, registra a beberagem assim como os ritos
nefandos, colocando na fala do personagem Guaixará (rei dos
diabos) a sintese de como o indio era visualizado pelo
jesuita:
"Sou Guaixará embriagado,
sou boicininga, jaguar,
antropófago, agressor,
andirá-guaçu alado,
sou demónio matador"52
O cauim contribuia para a mazela do indigena, que
deveria ser retirado das sombras em que se encontrava,
através do processo catequético:
"Bebem cauim a seu jeito,
como completos sandeus
ao cauim rendem seu preito.
Esse cauim é que tolhe
sua graça espiritual.
Perdidos na bacanal
seu espiritos se encolhem
em nosso laço fatal"53 .
Seu preparo, como o vinho das demais frutas, era feito
de forma especial. Luis de Grã destaca que este vinho era
obtido de "raízes ou de frutas, que todo a de ser
mastigado", sendo este ofício geralmente realizado pelas
52 ANCHIETA, José, op. cit., p. 61.
53 ibidem, p. 63.
303
"filhas e outras moças" da tribo "quando são virgens" e que
após a fermentação era ingerida quente54
Além da mandioca existia o milho que poucas vezes foi
mencionado, mas que também era utilizado para se fazer pão.
Pe. Brás Lourenço dá noticia de sua abundância no Espirito
Santo afirmando:
"o que se aqui come, pela maior parte é milho, de que se faz muito
bom pão que parece de Portugal"55 .
Os demais tubérculos eram mencionados de forma
secundária sempre apresentados pelo seu paladar agradável.
Sua exiguidade ou paladar sempre remetiam às associações com
a vida de santos.
Pela facilidade de cultivo das ervas, devido ao curto
ciclo evolutivo da maioria das espécies da flora alimentar,
pequenas hortas eram cultivadas, tanto pelos jesuitas nas
casas e nos colégios, como pelos colonos. As plantas
leguminosas, segundo Anchieta, não eram em grande variedade,
se comparadas com os demais grãos e frutos. "Da terra há
poucos legumes", afirmava o missionário.
54 Carta do P. Luis de Grã ao P. Inácio de Loyola, Baia, 27 de dezembro de 1554, in LEITE,
Serafim, op. cit-, vol. II, p. 132.
55 Carta do P. Brás Lourenço aos Padres e Irmãos de Coimbra, Espirito Santo, 26 de março
de 1554, LEITE, Serafim, op., cit., vol-. II, p. 47.
304
Se a pouca variedade de legumes locais apontavam para
uma ausência destas na alimentação, isto não significava uma
inferioridade da dieta alimentar em relação àquela de
Portugal, pois a terra fornecia em contrapartida outros
vegetais, levando Anchieta a destacar sua excelência:
"da terra e Guiné há muitas abóboras e favas, que são melhores que
as de Portugal e são tão sãs como ervilhas, feijões e outros
legumes, e todo o ano não faltam de ordinário aos nossos e muitos
deles tem em suas roças"56 .
Das leguminosas, a fava e o "yeticopé" eram os mais
utilizados. Conforme ressalta o loiolano, o "sustento
consiste em legumes e favas, em abóboras e outras que a
terra produz"51
Contudo, a adaptação das ervas européias ao solo
brasileiro parece ter sido fácil:
scilicet, couves, rabãos, alfaces, pepinos, abóboras,
"há muitos, scilicet,
gravanços, lentilhas perexil e erva boa e outros muitos em
Pernambuco e rio de janeiro muitos melões (...) z/58
56 Informação da Província do Brasil para nosso Padres 1585, in Cartas Jesuíticas III,
p. 430.
57 Relatório do Quadrimestre de Maio a Setembro de 1554, de Piratininga, in Cartas
Jesuíticas III, p. 44.
58 Informação da Província do Brasil para nosso Padres - 1585, in Caxtas Jesuíticas ITT,
P- 430.
305
Apesar de não serem em grande variedade, as ervas eram a
base da alimentação para aqueles que penetravam pelo
interior, para visitar aldeias ou em busca de indios para a
conversão.
350 léguas distantes de São Vicente, o Ir. Antonio
Rodrigues59 , visitando os indios Timbós que "não comem carne
humana, antes se apartam disso" relata a piedade deste
gentio que:
" ...vendo nós muito fracos, por não comer senão ervas, com os olhos
muito sumidos e os dentes e beiços negros, levando figura mais de
homens mortos que vivos, nos levaram nos braços e nos deram de comer
e curamo-nos com tanto amor e caridade,... "60 .
Esta alimentação exigua durante os grandes percursos dos
jesuitas nas visitações rememoram, indiretamente, as
hagiografias medievais.
Os condimentos naturais também chamaram a atenção dos
primeiros jesuitas.
A pimenta, preciosidade do comércio de especiarias de
Portugal, apesar de ser utilizada em grande quantidade pelos
59 António Rodrigues nasceu nos idos de 1516 em Lisboa, Entrou para a Companhia em 1553
no Brasil. Faleceu a 20 de janeiro de 1568.
6° Carta do Ir. Antonio Rodrigues aos Padres e Irmãos de Coimbra. São Vicente, 31 de maio
de 1553, in LEITE, op. cit., vol. I, p. 472.
306
indígenas, é pouco mencionada. Anchieta se refere à mesma
como artigo de contrabando das naus francesas, indicando o
seu elevado valor comercial.
Anchieta narra em Informação do Brasil e de suas Capitanias de
1584 que nas primeiras investidas dos franceses no Brasil,
iniciadas a partir de 1504, era comum o comércio destes em
terras portuguesas, principalmente com os Tamoios, "dos
quais nenhum agravo receberam, e iam e vinham, e carregavam
suas naus de pau do brasil, pimenta, pássaros, bogios e
outras cousas da terra, rr 61
(...)
Geralmente é mencionado o cultivo da cana-de-açúcar, por
ocasião das visitações feitas às aldeias ou aos engenhos,
onde os jesuítas atuavam, mas na maioria das vezes elas
tendem a ser isoladas. Ambrosio Pires menciona que a aldeia
onde estava sediado
"tiene quatro o cinquo poblaciones al rededor, de una legua, dos y
tres. Una está lexos, que es adonde Blas Tellez tiene una hazienda
de açúcar, que está siete léguas"62 .
A cana-de-açúcar tratada como tempero, era a principal
"mercadoria da terra". Cultivada em quase todas as
61 Informação do Brasil e de suas províncias - 1584, in Cartas Jesuíticas III, p. 311.
52 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Miguel Torres e Padres e Irmãos de Portugal. Baia 5
de julho de 1559, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 49.
307
Capitanias do Norte, a cana era o produto que sustentava a
economia mercantil portuguesa. A sua abundância e valor
contrapunham-se à ausência de outros mantimentos necessários
à subsistência dos missionários e à vida na colónia servindo
de referencial para a emissão de juizos de valor sobre a
pobreza e riqueza.
Referindo-se às três vilas da Capitania de São Vicente
(Santos, Itanhaém e a vila de São Vicente), Anchieta afirma
que estas
"São pobres, de poucos mantimentos e gado, porém abundantes em
assucar"63 .
A valorização da cana-de-açúcar, enquanto especiaria,
fez com que o açúcar se tornasse a moeda da terra. Luis da
Grã nota esta ausência de moeda em Piratininga, que fazia
com que as esmolas percebidas fossem em produtos, pois "os
brancos não têm que dar senão a farinha de raízes o pão que
dela fazem, pescado e carne; dinheiros em toda esta
Capitania não se usa, senão em lugar deles se usa açúcar o
ferramenta de ferro"64 .
63 Informação do Brasil e de suas Capitanias - 1585, in Cartas Jesuíticas ITT, p. 423.
64 Carta do P. Luis da Grã ao P. Inácio de Loyola. Piratininga 8 de junho de 1556, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, pp. 291-292.
308
Este valor monetário foi utilizado também pelos colonos
como forma de pagamento a serviços prestados por outrem fora
do território brasileiro. Nóbrega avisa ao Pe. Luis
Gonçalves da Câmara que, se as consultas feitas sobre o Caso
de João Ramalho gerassem algum ônus, este último enviaria o
pagamento em açúcar65 .
Apesar da produção açucareira voltar-se basicamente
para o comércio exterior, o seu consumo interno era
significativo na produção de bebidas, conservas e doces.
As frutas eram consumidas ao natural ou em doces. Em
Informação da Província do Brasil de 1585, Anchieta, referindo-se à
terra, destaca a especiaria como base de conserva:
"Para os enfermos não faltam regalos que se fazem de assucar, que ha
muito, e assim fazem laranjada, cidrada, aboboradas e talos de
alface e outras conservas"66 .
Regalo para os doentes, mas com alto valor económico, o
açúcar era a doce riqueza que alimentava a coroa e permitia
o desenvolvimento embrionário da colónia. Mas não só a cana-
de-açúcar adocicava a dificil sobrevivência dos pastores
inacianos. Uma diversidade de frutas estava disponível para
65 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Luis Gonçalves da Câmara. Do Sertão de S. Vicente,
último de agosto de 1553, In LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 526.
66 Informação do Brasil e de suas Capitanias de 1585, in Cartas Jesuíticas III, p. 428.
309
amenizar o doce fel da paulatina consciência dos fracassos
da conversão.
As frutas, notadas pela sua diferença em relação
àquelas consumidas na Europa, causaram relativa estranheza,
segundo permite entrever o Pe. Luis da Grã ao afirmar que:
"As frutas próprias da terra são muito diferentes e estranhas „67
As frutas citricas são as mais mencionadas em vários
trechos das cartas, sempre destacadas pelas suas variedades,
e fácil expansão:
"Nesta terra se dão bem árvores de espinho, que vieram de Portugal,
como laranjeiras, cidreiras, limoeiros, limeiras e todo o ano têm
fruto e bons sem ser regados: porque o céu tem Este cuidado e é a
terra tão fértil destas árvores que se dão pelos montes e campos sem
beneficio que lhes faça"68 .
A uva, tipica de regiões com clima sub-tropical e frio
era cultivada em quase todos os núcleos populacionais da
faixa litorânea. Anchieta diz que no Colégio de Piratininga
"dão uvas e fazem vinho", assim como no do Rio de Janeiro69 e
de Olinda70 .
67 Carta do P. Luís da Grã ao P. Inácio de Loyola. Baia 27 de dezembro de 1554, in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. II, p. 131.
68 Informação da Província do Brasil para nossos Padres - 1585, in Caxtaa Jesuíticas III,
P, 429.
69 ibidem, p. 420.
70 Carta do Pe. José de Anchieta ao Padre Geral, de São Vicente, a 1 de junho de 1560, in
Cartas Jesuíticas III, p. 144.
310
Apesar disso, o vinho consumido nas missa vinha de
Portugal, pois a produção era insuficiente, não por causa do
clima, mas devido às saúvas, uma praga da terra que destruia
os roçados.
Em carta dirigida ao Padre Geral em j unho de 1560,
Anchieta lamenta que os Irmãos da Companhia careciam de
tantas coisas que "até para dizer missa, nos faltou vinho
por alguns dias"11 .
Mas a flora alimentar da terra dos brasis oferecia
compensações a estas dificuldades. Elas foram citadas nas
cartas, mais para atender à retórica comum do modelo
comportamental imposto pela ordem.
A banana, fruta tipica das regiões de clima quente,
estava disseminada por todo o território, principalmente na
faixa litorânea. É citada como planta comum dos quintais dos
Colégios jesuíticos, juntamente com laranjas e limões72 .
Das frutas da terra, encontram-se várias frutas
exóticas, comentadas por Anchieta:
77 ibidem, p. 144.
72 Informação da Província do Brasil para nossos Padres 1585, in Cartas Jesuítas III,
pp. 415-420 e 430.
311
"Da terra ha muitos frutos e alguns de preço e que não dão vantagem
as peras melacotores de Portugal, scilicet: mangabas, que são como
albicorque amarelos, não tem caroço senão umas pevides pequenas e
são de bom gosto e mui sadias: mocujês, que são como peros bravos de
Portugal, mas de grande gosto e preço e ao comer se sorvem como
sorvas: acajús, que são como peros repinaldos e dão uma castano
ôlho, melhor
i que as de Portugal; araticús, a árvore é como o
limoeiro, o fruto como pinha; naná, dão-se em uns como cardos e as
folhas como erva bobosa, o fruto é a moda de pinha, ainda que maior,
dão-se todo o ano, é fruto de muito preço e real, sabem e cheiram a
melões, mas são melhores e muito mais odoríferos e têm muito sumo,
são bons para quem tem dor de pedra; o vinho que os índios fazem
deles é muito forte e se toma a miúdo dele; com as cascas se limpam
as manchas de azeite e quando se os cortam fica a faca limpa e
asseada"73 .
As frutas brasílicas são descritas e comparadas com as
frutas portuguesas, através de associações, revelando a
necessidade de analogia para compreender as formas e o
paladar do Novo Mundo. Pobreza e riqueza vegetal oscilavam
num discurso onde o agridoce se confunde com a prática
catequética.
73 Informação da Provinda do Brasil para nossos Padres - 1585, in Cartas Jeanítzcaa III,
p. 430.
312
4 - OS MALES DA TERRA SÃO CURADOS COM OS BENS DA TERRA
A cura do corpo é um pretexto para a salvação da alma.
O médico é o místico criador.
A abnegação do segundo modifica a essência do primeiro sacerdócio.
Anchieta e a Medicina - Lopes Rodrigues
Se por um lado a terra era considerada boa e sã, por
outro ela incomodava os jesuitas com as doenças tropicais.
"Alguns outros Irmãos são também visitados do Senhor com
enfermidades, como febres, prioris (pleurisia) e camaras, mas ele
que as dá as cura pela sua misericórdia, que nesta terra poucas
medicinas há para ele, bendito seja ele por tudo /z74
A doença permite delinear um quadro mais intenso e
dramático para a atividade missionária.
Anchieta, relatando as atividades exercidas pelos
jesuitas em 1562, inclui nas considerações que o atendimento
das enfermidades era um ato tão comum quanto o predicar a
doutrina:
74 Carta do Ir. José de Anchieta ao P. Diego Laynes. Piratininga, março de 1562, in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. III, p. 453.
313
"açodemos a todo gênero de pessoas, portugueses e brasil, servo e
libre, assim nas cosas espirituais como nas corporais curando-los e
sangrando-los, porque não há outro que o faça, e principalmente las
sangrias são aqui muito necessárias, porque es muito sujeita esta
terra a prioris, ttiaví nw* nos naturais dela,
maxime quando o sol toma
norte, que é no mes de Dezembro e dali por
declinar fazia el norte,
diante"75 .
Tal como os membros fundadores da Companhia, nos
primeiros anos após o voto de Montmarte, os jesuitas tiveram
que auxiliar na cura das doenças da terra, enquanto preceito
natural da caridade ao próximo76
A prática da medicina tornou-se comum e foi compreendida
como atividade associada à ação jesuítica77 . Contudo, com o
crescimento das vilas, esta prática provocou a preocupação
dos jesuitas, quando o Padre Geral interditou qualquer
exercicio neste sentido. Mas ante as evidências é solicitada
ao Padre Geral uma reconsideração desta, uma vez que:
"Ocorre muitas vezes que muitos teem necessidade de extrema de uma
sangria, porque sem ela provavelmente morrerão, como aconteceu a
muitos este ano, em que se começou a executar isso, no qual houve e
75 ibidem, p. 454.
76 O exercício de atividades médicas nào foi um atributo peculiar da atividade
missionária, na América portuguesa, De forma atuante os jesuitas se envolveram com a
recuperação da saúde de seu rebanho em Portugal, Lisboa nos idos do século XVI, mesclava
pobreza e riqueza, com outras cidades da Europa. A fartura convivia com a fome e as
ameaças de doenças eram constantes. Sobre o assunto ver MICELI, Paulo, O Ponto onde
Estamos, p. 41.
77 O primeiro médico que passou por terras brasileiras foi Mestre Johanes que
acompanhava a frota de Cabral. Contudo, o primeiro a se estabelecer foi o licenciado
Jorge Fernandes que é nomeado físico da colónia americana em 1553. RODRIGUES, Lopes,
pp. 111-113. Ver sobre o assunto pp.
Anchieta e a Medicina, PP- 116-127
314
há muitas enfermidades." sendo que desejavam "que V. P. alargasse
isto para quem o soubesse executar bem, ao menos aos nossos irmãos
coadjutores temporais, até mesmo pedindo-o de novo a Sua Santidade,
se fosse necessário, porque, por via de leigos é isso impossível
remediar-se" .
A resposta do Padre Geral é favorável:
"Não há inconveniente em que os nossos irmãos coadjutores temporais,
que souberem sangrar, o façam, quando houver importante causa para
isso e aos superiores parecer. E assim se poderá fazer, porque não
importa que eles se exponham a perigo de irregularidade, já que não
se vão ordenar"78 .
Esta proximidade da medicina com a prática catequética
não era totalmente desprovida de significado. A doença para
o jesuíta, como também para a maioria da população européia,
era oriunda não de uma debilidade do organismo humano, mas
sim de uma debilidade ético-moral.
Dentro desta ótica, na maioria dos casos, as doenças e a
mortandade são consideradas como influência do Diabo, e
portanto devem ser curados principalmente no âmbito
espiritual, para depois serem tratados no plano material,
que é uma decorrência do primeiro. Nesta ótica, a doença
antes de ser uma debilidade fisica é a manifestação do mundo
de forças malignas que devem ser expulsas dos pacientes.
78 VIOTTI, Hélio Abranches, S. J., Cartas - Correspondência Ativa e Passiva do Pe. Joseph
de Anchieta, pp. 292-293.
315
Leonardo do Vale79 ao descrever a cegueira em que vivia
o gentio nos seus ritos e venerações, confirma que a prática
destes
"redunda em camalidade e vícios diabólicos, o qual tudo comumente
pagão com fomes e mortandade com que Deus N. Senhor os
castigua;" 80
As doenças eram vistas como um castigo enviado por Deus.
Leonardo do Vale cita um castigo enviado aos indios,
afirmando que:
" (...) de maneira que seu peccado foi castigado com huma peste tão
estranha que por ventura nunqua nestas partes ouve outra semelhante.
Alguns querem dizer que se pegou da nao em que veio Pe. Francisco
Viegas, porque começou nos Ilheos onde ella foy aportar. Mas parece
mais certo ser açoute do Senhor, e começar donde os remeiros
primeiro começarão a correr à sanctidade, que andava polo certão
adentro. E o mesmo se pode dizer da fome, que casi hé geral antre
elles, porque nesta terra nem ha muita agoa nem o muito sol causa
fome como em portugal e outras partes, mas en todo ho tempo, que hum
quiser trabalhar e pôr ho terço da diligencia que põem hos
lavradores da Beira e Alentejo, terá que comer e que dar.«81
A preocupação com a doença tinha um olhar mais amplo que
o estreito limite do organismo biológico humano. 0 momento
de debilidade física era propicio para a realização da cura
não só do organismo debilitado, mas também do espirito, onde
79 Leonardo do Vale nasceu em Bragança, Portugal, em 1538. Chegou ao Brasil em 1553.
Faleceu na Vila de Piratininga no dia 2 de maio de 1591.
80 Carta do Pe. Leonardo do Vale ao P. Gonçalo Vaz de Mello. Baia, 12 de maio de 1563, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. IV, p. 9.
81 Carta do Pe. Leonardo do Vale ao P. Gonçalo Vaz de Mello. Baia 12 de maio de 1563, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. IV, p. 9.
316
a água, enquanto elemento purificador, marcava a conversão
do individuo, sendo que a recuperação fisica que nem sempre
ocorreu. Anchieta afirma:
"Alguns homens também assistem, aos Domingos, á celebração da Missa,
e nessa ocasião, depois do ofertório, se lhes prèga alguma coisa a
respeito da fé, da observância dos mandamentos e além disso, o que é
pouco, atendendo á sua rude natureza, nenhum dia deixamos passar,
sem que vamos a sua casa, exortando ora uns, ora outros a aceitar a
fé, tomando parte na sua conversação, e tratando com eles na maxima
familiaridade; com especialidade aqueles a quem este encargo é
imposto pela obediência: pois que as conversações particulares os
impressionam muito, ao verem o nosso esforço e o nosso cuidado, não
podem deixar de admirar e reconhecer o nosso amor por eles,
principalmente, porque vêm que empregamos toda a diligência no
tratamento de suas enfermidade, sem nenhuma esperança de lucro. E
fazemos isto, na intenção de preparar para o recebimento do batismo,
caso haja necessidade, os seus espíritos, em tais circunstâncias
mais redutíveis e mais brandos: por igual motivo é que desejamos
assistir ás parturientes, afim de batizar mãe e filho, se o caso
exigir. Assim acontece atender-se á salvação do corpo e da alma"82 .
A terra dos brasis, destacada pelos seus bons ares,
também era considerada propicia para a cura dos males. A
salubridade decantada visa a chamar a atenção para a vinda
de novos irmãos para as terras brasileiras:
" Y assimesmo si se oviessen de hazer acá casas de la Coinpania seria
bueno que hiziéssemos trueco con los Hermanos del Collegio de
Coimbra, de manera que nos mandassen acá los mal dispuestos de allá,
con tal que tengan subiecto de virtud, los quales acá sanarian con
los trabajos y bondad de la tierra. Como tenemos experimentado en
82 Trimestral de Maio a Agosto de 1556, de Piratlninga, in Carta Jesuíticas III, p. 88.
Conforme afirma Rodrigues: "A religião e a medicina se amparavam mutuamente, no exercício
do apostolado anchietano. A mistura de sangrias a confissões, batismos, orações,
penitencias, demonstra, a cada passo, que o amparo das aflições temporais realizava na
ação medica do sacerdote uma continuidade á sagrada inspiração e aos compromissos
implícitos do assistente das almas perdidas no cáos do paganismo tapuio." RODRIGUES,
Lopes, op. cit., p. 250.
317
los enfermos que de allá vineron, y aprenderían la lengua de los
índios, (...) "83 .
1
í
b A bondade dos ares era um sinal de acolhimento para os
l filhos doentes de Santo Inácio. Na terra dos brasis, a
i
Companhia poderia ganhar fôlego e crescer.
Luis da Grã, exaltando o caráter terapêutico dos bons
ares da terra, relata ao Pe. João Gonçalves:
" ...cujas ocupações eram de ensinar os meninos que a cargo temos e
ter cuidado de dar ordem ao que era necessário para sustentação dos
meninos, que é farto trabalho para sua disposição: que por graça do
Senhor foi sempre em muito notável aumento, vindo do Reino sem
remédio humano de saúde, porque não puderam fazer tantos os muitos
que o procuraram no Reino, quanto fez a terra com tão bons ares como
tem: que sem dúvida os velhos e de fraca complexão a sentem muito a
propósito para sua saúde corporal, y de todas as partes do Brasil se
diz o mesmo." 84 .
I
//
Anchieta também percebe a potencialidade da própria
terra no tratamento de males, que em Portugal eram difíceis
de serem curados. Os ares da terra e um tratamento
terapêutico impar levam o missionário a descrever o
tratamento do cancro, cuja cura ele comprovara:
"O cancro (que lá é tão difícil de curar) cura-se facilmente pelos
índios. Eles à doença, que é a mesma que entre nós, chamam (...); e
curam-na assim: do barro, de que fazem vasilhas, aquecem ao fogo um
pouco, bem amassado e, tão quente quanto a carne o possa suportar,
83 Carta do Ir. José de Anchieta por comissão do P. Manuel da Nóbrega ao P. Inácio de
Loyola. Piratininga julho de 1554, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 78.
84 Carta do Pe. Luis da Grã ao Pe. Inácio de Loyola. Baia 27 de dezembro de 1554, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 130.
318
aplicam-no aos braços em cranco, que pouco a pouco morrem; e repetem
isto tantas vezes até que, mortas as pernas e o corpo, o cancro
desprende-se e cai por si. Há pouco se provou isto por experiência
com uma escrava dos portugueses quando padecia de doença"85 .
A salubridade e potencialidade da terra dos brasis
constituía uma das positividades da terra que por vezes
apresentava pigmentos negativos. Na complexa escala
valorativa que o jesuita elabora para sua análise, sobre a
terra, nota-se um antagonismo latente, no que tange à
classificação das terras no seu conjunto. A própria trama
argumentativa ora destaca a vitalidade da terra, acenando
para as vantagens da vida e da prática missionária, ora
tenta enfatizar a penúria, visando a dar destaque ao perfil
de sofredor do jesuita, que se torna um empecilho concreto
para a vinda de novos loiolanos.
Destarte, apesar dos bons ares, a terra não era
aparelhada com uma alimentação reforçada para a cura dos
doentes.
Ambrosio Pires relata esta constatação ao Pe. Diego
Mirón, para corrigir a possivel incompreensão da realidade
que envolvia a atividade catequética. Referindo-se aos
85 Carta do Ir. José de Anchieta. Ao Pe. Diego Laynes, S. Vicente 31 de maio de 1560, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. VII.
319
meninos órfãos que acabavam de chegar à terra brasílica, o
missionário afirma:
"estes meninos chegaram quando eu de Porto Seguro e nos deram alguma
perturbação pelo poucos agasalhos e maneira de com que os manter há
nesta terra, e nisto não se enganem, que tirando a farinha de pau,
que é boa, a terra é muito necessitada de carne e peixe e das cousas
necessárias para uma enfermidade, quando o Senhor a dá, porque das
coisas dos sãos há poucas e das doentes nenhumas"86 .
Segundo esta observação do Pe. Ambrosio, a constância da
falta de recursos para a cura dos doentes parece ter sido
comum. Nem todos aqueles que para cá se dirigiram tiveram a
mesma sorte que o Pe. João Gonçalves. 0 jesuíta João de
Melo87 que para o Brasil se deslocou ressalta:
"Vindo já ao que V.R. me pediu que de mim lhe escrevesse e como cá
me acho, saiba que até agora pouca melhoria tive, e isto não é pela
terra ser má, senão pela falta que há das coisas necessárias para
minhas enfermidade, porque enquanto tinha alguma provisão das cousas
que trouxemos do reino, estive com medíocre disposição, mas logo que
faltaram me faltou também a saúde e minhas eivas antigas se
renovaram em tanto que por esta razões até a vinda do Padre Luís da
Grã me não mudou daqui o Padre Vice-provincial"88 .
Pela falta de medicamentos do reino, o doente ficava
sujeito aos medicamentos e mezinhas da terra, forçado a um
86 Carta do P. Ambrósio Pires ao P. Diego Mirón. Baia 6 de junho de 1555, in LEITE,
Serafim, op. cit., vol. II, p. 232.
87 João de Melo nasceu nos idos de 1525 em Portugal. Entrou na Companhia a 19 de Agosto de
1550. Chegou ao Brasil em 1559. Faleceu em 1576 na Bahia.
88 Carta do Pe. João de Mello ao Pe. Gonçalo Vaz de Mello, Baia 13 de setembro de 1560, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. 284.
320
contato direto com o reino vegetal, na busca de poção que o
curasse.
A cura das doenças naturais ou dos ferimentos
provenientes da guerra só poderia ser feita com a flora
local, unindo o saber indigena ao europeu. A doença e sua
cura parecem ter sido também uma forma de confirmar a visão
utilitária da natureza, onde o saber de duas culturas
distintas interagiram, deixando transparecer as várias
propriedades terapêuticas da flora.
No relatório quadrimestral de setembro de 1556 a janeiro
de 1557, redigido pelo Ir. Antônio Blázquez, há o relato de
atividades do Pe. João Gonçalves e do Irmão José de Anchieta
afirmando:
"Entre outras enfermidade[s] que com a ajuda sarou, foi essa uma,
que estando uma índia muito ao cabo de camaras, e não tendo remédio
os parentes com que as estancar, lhe fez ele uns emplastos com
acelga e azeite (porque cá não há outros materiais) e logo a deu sã,
ficando por esta cura acerca dos negros em grão reputação"89 .
Azpilcueta Navarro, ao narrar a sua viagem pelo interior
do território, menciona que após árduas caminhadas e perigos
sempre iminentes, ele e seus companheiros de viagem foram
vitimas de indios que atacaram os membros da comitiva,
89 Quadrimestre de Setembro de 1556 a Janeiro de 1557 pelo Ir. António Blázquez [?], in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 355.
321
ferindo alguns deles. Para curá-los, segundo o loiolano,
existia somente o mel silvestre, que foi usado com bastante
eficiência90 .
A descrição dos males da terra em algumas cartas era
acompanhada de referência sobre a flora medicinal que
possibilitavam a cura.
Anchieta, em carta ao Padre Geral em 1560, narra as
"coisas naturais" das Capitania de São Vicente:
"Úteis a medicina não há só muitas árvores como raízes de plantas;
direi, porém, alguma cousa, maxime das que são proveitosas como
purgantes «91
Preocupado com a purgação dos males do corpo, Anchieta
descreve:
"Ha uma certa árvore, de cuja casca com faca, ou do galho quebrado,
corre um líquido branco como leite, porém mais denso, o qual se
beber em pequena porção, relaxa o ventre e limpa o estômago por
violentos vómitos; por pouco, porém, que se exceda na dose, mata,
Deve-se, enfim, tomar dele tanto quanto caiba em uma unha e isso
mesmo diluído em muita água; se não se fizer assim, incomoda
extraordinariamente, queima a garganta e mata «92 /
90 Carta do P. Juan de Azpilcueta Navarro aos Padres e Irmãos de Coimbra. Porto Seguro, 24
de junho de 1555, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 244.
91 Carta do P. José de Anchieta ao Padre Geral. São Vicente, ao último de maio de 1560, in
Cartas Jesuíticas III, p. 127.
9 2 ibidem, p. 127.
322
Tal como a mandioca, o leite da árvore terapêutica
poderia restabelecer o equilíbrio orgânico ou provocar a
morte. 0 benefício ou malefício dependia do conhecimento
humano.
Anchieta refere-se também a outras duas raízes menos
nocivas que a primeira, mas tão úteis quanto aquelas:
" ... abundante nos campos, utilíssima para o mesmo fim: raspa-se e
bebe-se misturada com água; esta, se bem que provoque o vómito com
bastante violência, todavia bebe-se sem perigo de vida.
Há também outra, chamada vulgarmente marareçô; as suas folhas
parecem as do bordo, a raiz pequena e redonda, que se come assada ou
bebe-se esmoída com água, exposta por uma noite ao sereno"93 •
A natureza por si só nada era. A sua função utilitária
derivava da sua importância para o homem, bem como do seu
preparo. Os males constantes que afligiam os colonos e
jesuítas fizeram com que novas árvores fossem incorporadas
ao rol das plantas medicinais. Temia-se a morte por um
excesso de cura ou de um preparo indevido. Na mesma carta,
relata Anchieta:
"Descobriu-se ultimamente outra, que é tida em grande estima e com
razão, esta é oblonga e delgada, contundi da e deixada de infusão em
água pelo espaço de uma noite, bebe-se de manhã sem dificuldade, não
causa náusea, nem produz fastio; desembaraça, porém, o ventre com
abundante fluxo, que cessa logo que se tome algum alimento, o que é
comum as de que falei ha pouco"94 .
93 ibidem, p. 127.
94 ibidem, p. 127.
323
Anchieta cita uma outra árvore da qual se extrai uma
resina com poder para curar feridas:
"Das árvores uma parece digna de noticia, da qual, ainda que outras
bajas que distilam um liquido semelhante a resina, útil para
remédio, escorre um suco suavíssimo, que pretendem seja o bálsamo,
que a princípio corre como óleo por pequenos furos feitos pelo
carrancho ou também por talhos de foices ou de machados, coalha
depois e parece converter-se em uma espécie de bálsamo exala um
cheiro muito forte, porém suavíssimo e é ótimo para curar feridas,
de tal maneira que em pouco tempo (como dizem ter-se por experiência
provado) nem mesmo sinal fica das cicatrizes"95 .
0 discurso segue a mesma forma usada nas passagens
anteriores. 0 objetivo da narração é fornecer dados sobre o
processo de obtenção da resina; suas caracteristicas (cor,
forma, odor) associadas a outras espécies da flora,
conhecidas pelo destinatário, e as propriedades terapêuticas
da planta.
Nem só da resina das plantas se obtinham as mezinhas
para a cura dos males. Outras variedades de frutas e raizes
também tinham o seu uso voltado para a medicina.
Nóbrega, por sua vez, demonstra as propriedades dos
ananases. Ao enviar conservas para Pe. Francisco Henrique,
disse que os ananases são "para dor de pedra, os quais posto
que não tenham tanta virtude como verdes, todavia fazem
95 ibidem, p. 126.
324
proveito"96 Dentre outros produtos da terra, Anchieta
destaca as raízes de um tubérculo com "agradável sabor" as
quais compara com o rabão, que é o "yeticopê", sendo que
estas raízes são "muito apropriadas para acalmar a tosse e
molificar o peito", ressaltando ainda que, a semente destas
"se mmhiu»lha a favas, é um violentíssimo veneno".91
A medicina, sem dúvida, foi uma das maiores
beneficiárias dos descobrimentos. As plantas medicinais,
encontradas na América, principalmente no Brasil,
contribuíram para um melhor conhecimento da utilização de
algumas espécies, e ampliou os horizontes informativos sobre
a botânica98 . 0 discurso jesuítico de maneira indireta
contribuiu para o reconhecimento de novas espécies da flora
medicinal e para a ampliação das técnicas de tratamento
utilizadas. Barreto ressalta que as vias do saber médico
eram norteadas pelo empirismo, marcado por uma "evidência
existencial", onde o mundo natural é conhecido pelas
experiências decorrentes da observação e constatação visual
das causas e efeitos, que são complementadas pelo processo
comparativo, do qual o modelo padrão era o europeu99
96 Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Francisco Henriques. São Vicente, 12 de junho de
1561, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 351.
97 Carta do P. José de Anchieta ao Padre Geral. São Vicente, ao último de maio de 1560, in
Cartas Jesuíticas III, p. 125.
98 BARRETO, Luis Felipe, O descobrimento e a ordem do saber, p. 81.
99 ibidem, pp. 86-87.
325
Portanto, as descrições dos jesuitas, enquanto frutos de uma
experiência do cotidiano, compartilham de uma similitude de
procedimento, pois o que funda o acontecimento, digno de ser
narrado, é a conjunção de uma constatação visivel, que pode
ser reproduzida e comprovada (causa-efeito) e que se faz
importante pela sua utilidade. Manter a saúde dos cristãos
na terra dos brasis era fundamental.
326
5 - NA TERRA DOS PAPAGAIOS: ONÇAS, TAMANDUÁS, ANTAS, COBRAS
E LAGARTOS
Há porcos, que nos pareceram
ter o umbigo nas costas
e uns pássaros grandes,
cujo bico parece uma colher,
porém que carecem de língua.
A primeira Viagem ao Redor do Mundo - Antonio Pigafetta
A descrição de aves e animais selvagens é constante na
Biblia, que menciona várias espécies da fauna. No texto
biblico, dentre outras passagens, o Salmo 103 (Hino ao
Criador) louva e registra informações sobre as magnificas
obras da criação, celebrando a natureza. Confirmando a
perenidade do Mundo e o bem-estar humano, o Criador é
louvado pelo salmista:
"Fundaste a terra sobre as bases, ela não se desnivelará por séculos
e séculos"100 .
Celebração do criador, o salmo aponta para o interesse
de Deus para com as suas criaturas, e nenhuma delas será
esquecida.
100 Salmo 103:5
327
A proteção da fauna por Deus não significava uma
interdição em relação ao consumo da carne dos animais. 0
dominio que o homem possuia sobre os animais não o impedia
de matá-los para a alimentação, nem tampouco, o cristianismo
condenava tal prática.
Após a sua estada no Jardim do Éden, onde o homem tinha
convivido em harmonia com os animais, sendo sua dieta
alimentar baseada na flora alimentícia, foi dada ao homem a
possibilidade de incluir na sua dieta alimentar, além da
flora, a fauna. A visão utilitária do cristão entendia que
os animais existiam para os seres humanos, concepção já
apresentada no próprio Géneses, quando Deus abençoa Noé e
confirma que
"tudo o que se move e vive será vosso alimento; eu [Deus] vós dou
todas estas coisas, como (vós dei) os legumes verdes"101
Antes mesmo desta dádiva, Deus tinha confirmado outras
concessões. Logo após o pecado original, Deus, antes de
expulsar Adão e Eva do paraiso, tinha preparado túnicas de
peles para o primeiro casal humano102 . Em seguida Abel,
filho do casal, ofereceu dos primogénitos de seu rebanho, e
101 Gên. 9:3.
102 Gên. 3:21.
328
das gorduras delas a Deus103 . A fauna fornecia a alimentação
básica do ser humano, além de vestimenta para a proteção
contra as intempéries e oferenda ao ente divino.
Como já afirmamos anteriormente, na dieta da Igreja,
durante o periodo Medieval, preponderava a idéia de que a
dieta vegetariana era a mais pura e as frutas eram a base da
alimentação relatada nas hagiografias. Contudo, o reino
vegetal era incapaz de suprir todas as necessidades humanas.
A despeito da ênfase modelar da vida dos santos, onde os
animais aparecem com relativa constância, as interdições, no
que se refere à carne dos animais, parece ter assumido uma
preocupação secundária104 .
Por conseguinte, a chegada em terras onde a antropofagia
era parte constituinte das relações intertribais
escandalizou os jesuitas pela sua ferocidade. 0 gentio não
sublimara o canibalismo com a total adoção na dieta
alimentar de animais.
Anchieta, ainda Irmão, relata as dificuldades
enfrentadas pelo seu par, Fabiano de Lucena, que estava
predicando em uma aldeia onde:
103 Gên. 4:4,5.
104 Sobre o assunto ver DELORT, Robert, Les anjjmmx ont nne histoire, pp- 47-75, e pp.
101-186.
329
w (...) aconteceu matarem nesse lugar com a maior solenidade um
inimigo, como costumam. O Irmão, ainda doente, repreendeu-se
asperamente com uma prática o mais longa que pôde, ensinando-lhes
que os homens não foram criados para se comerem uns aos outros,
tendo Deus criado muitos animais na terra e no mar para nosso
alimento"105 .
Os atos canibais vistos como anomalias dentro do padrão
comportamental cristão, sofriam sanções evidenciadas pela
cólera divina que se abatia sobre aqueles que rompessem os
limites da civilidade cristã. Os atos antropofágicos das
novas terras remetiam às lembranças de um passado não muito
distante do canibalismo, no final do periodo Medieval,
ocultado dos registros. Elas se atinham de forma esparsa a
estas ocorrências clandestinas e marginalizadas 106
O canibalismo era tido no contexto dos Quinhentos como
algo pertencente a um passado medieval de penúria, já
sublimado. Os comportamentos aberrantes, frutos da fome e de
seus efeitos negativos, já estavam superados pela expansão
agricola, impulsionada pelas melhorias nas técnicas e
práticas de cultivo.
105 Carta do Ir. José de Anchieta ao Pe. Inácio de Loyola. São Vicente [fim de março] de
1555, in LEITE, Serafim, op. cit-, vol. II, p. 200.
106 BONNASSIE, Pierre, Consonanation ã'a.l±nnents íamondes et aaaxbalisiae de survie dans
l'occident da hat moyen age, in Annales ESC, septembre-octobre 1989, n° 5, pp. 1040-1048.
330
Contudo, na terra dos brasis eram poucos os animais
criados pelos indígenas, que viviam basicamente de caça. Uma
fauna abundante pelos campos facilitava a obtenção de
proteínas dispensando a criação.
Azpilcueta Navarro nota esta ausência enumerando a
diversidade de exemplares da fauna silvestre, a qual é
descrita em função das espécies mais conhecidas pelos seus
interlocutores. Assim fala o missionário:
"Há muita caça assim de animais como de aves; há uns animais que se
chamam antas, pouco menos que mulas, e parecem-se com elas, senão
que tem os pés como de boi. Também ai muitos porcos monteses e
outros animais que tem uma capa por cima a maneira de um cavalo
armado; (tatu): há raposas, lebres e coelhos como nessa terra; ai
muitas castas de macacos, e entre eles umas paradas com barbas como
homens; há veados, gatos monteses, onças, tigres e muitas cobras,
entre as quais há umas que tem na cauda uma coisa a maneira de
cascavel, e também soa, e quando topam alguma pessoa bulem e fazem
soar com ele, e se acerta de não apartar-se, mordem-la, e poucos
escapam dos mordidos que não morrem. Há umas aves que são perdizes,
otras como faisões, com outras muitas diversidades, Também vi em
poder de índios dois avestruzes"107 .
Para Anchieta a fauna também era exótica e
impressionante:
"Os veados são de dois géneros, uns armados de chifres como os da
nossa terra, e estes raros; outros, brancos, sem chifres, que nunca
entram nos matos, mas sempre pastam em bandos pelos descampados. Há
grande quantidade de gatos monteses, ligeirissimos, gamos, porcos
bravos, de várias espécies. Longe daqui, no sertão, para os lados do
Peru, que dizem Nova Espanha, há ovelhas monteses, do tamanho de
107 Carta do Pe. Juan de Azpilcueta Navarro aos Padres e Irmãos de Coimbra. Porto Seguro
24 de junho de 1555, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 250.
331
vacas, revestidas de lá branca e bela, das quais os unidos se
servem, para levar e trazer cargas, como de jumentos. Um nosso
Irmão, que naquelas partes andou muito tempo, afirma que as viu e
comeu das suas carnes"108 .
Antas, tatus, macacos, veados, onças, tigres, porcos
bravos, ovelhas monteses compõem o quadro estético-
utilitário descrito por Navarro e Anchieta. Carnes que
reforçavam a dieta alimentar que Anchieta cita como "carnes
do mato", eram em alguns casos mais comuns que a própria
pesca, tais como:
..macacos, gamos, certos animais semelhantes a lagartos, pardais,
" ...macacos,
e outros animais selvagens, e ainda peixes de rio, mas estas coisas
raras vezes"109 •
A caça imperava nas terras dos brasis, e se contrapunha
à experiência do jesuita em Portugal, que estava habituado a
viver muito mais da atividade criatória do que da caça.
Porém, o olhar sempre atento dos membros da Companhia não
deixaram de apontar para a atividade criatória, que foi, em
alguns casos, de grande importância para o sucesso dos
colégios jesuíticos.
Dentre os animais de criação, o discurso jesuítico
destaca a criação de vacas. A flora abundante fornecia ao
108 Carta do Ir. José de Anchieta ao Pe. Diego Laynes. Sâo Vicente, 31 de maio de 1560, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. XII.
109 Carta do Ir. José de Anchieta ao Pe. Inácio de Loyola. São Paulo de Piratininga [1 de
setembro de ] 1554, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 112.
332
gado alimentação farta nos campos do litoral, dispensando o
trabalho do loiolano demasiadamente ocupado com o rebanho da
cristandade.
Os jesuitas solicitavam aos seus superiores além de
terras para a construção dos colégios e das residências,
permissão para a criação de vacas, vendo nesta atividade uma
maneira de sustento dos membros da Ordem e dos meninos.
Manuel da Nóbrega tenta defender sua posição por ocasião da
proibição feita pelo provincial Diego Mirón, arguindo que:
"avisava não se dever adquirir nada para meninos, nem fazer deles
tanto caso, como na verdade o que se adquiriu, assim terras como de
vacas, não foi minha intenção ser somente para os meninos, mas para
o que a Companhia dele dispusesse como le parecesse mais glória do
Senhor,... ,,u0 .
Apesar da preocupação temporal com a sobrevivência dos
meninos e dos membros da Companhia, poucas são as
referências no que tange à criação. Na maior parte dos
relatos destaca-se a peculiaridade da fauna brasilica, que
de modo geral aparece mencionada na descrição de Azpilcueta
Navarro. Esta descrição visava a proporcionar um
conhecimento pelo menos parcial da fauna, impossível de ser
descrita por si mesma. Por ser impossível montar uma imagem
totalmente alheia ao conjunto simbólico dos destinatários, é
110 Carta do Pe. Manuel da Nóbrega ao Pe. Diego Laynez, São Vicente, 12 de junho de 1561,
in LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. 358.
333
que as narrativas das missivas primam pela abundância de
associações. Estes relatos, sem notações cientificas,
permitem vislumbrar como os primeiros jesuitas decodificaram
a fauna dentro de um processo alusivo a imagens de animais
europeus, onde perpassa a originalidade da leitura do mundo
natural.
Se na maioria dos relatos a fauna ocupa referências
pontuais e escassas, na Carta do Irmão José de Anchieta ao
Pe. Diego Laynes, escrita em São Vicente a 31 de maio de
1560, esta ocupa boa parte da longa missiva que pode ser
classificada como a primeira obra concisa sobre a natureza
da terra dos brasis. Descrevendo principalmente o mundo
animal, esta carta tem a intenção didática de informar e
instruir o leitor quanto às peculiaridades da fauna,
constatadas no cotidiano e dignas de serem mencionadas, pois
respondem às preocupações de sobrevivência do jesuita. O
mundo animal, tal como a flora, é percebido em função dos
trabalhos dos jesuitas.
Anchieta, neste relato, traz à tona a exuberância e o
esplendor da fauna brasilica, revelando a novidade do mundo
animal na América portuguesa. Há nele um deslumbramento
contido, em relação ao novo, com as espécies; descrições
fisicas de cada animal, peculiaridades de cada espécie, bem
334
como os seus benefícios e malefícios. Tendo como linha
mestra estes três enfoques na descrição, é que Anchieta
descreve as onças, notando que existiam diferenças físicas
que permitiam dividi-las em duas variedades:
"Também há aqui onças, que são de duas variedades: umas cor de
veado, mais pequenas e mais cruéis; outras malhadas e pintadas de
diversas cores, que são mais frequentes em toda a parte, e estas, ao
menos os machos, são maiores que os maiores carneiros, porque as
fêmeas são mais pequenas, em tudo semelhantes aos gatos e servem
para se comer, como por vezes experimentamos. Em geral são medrosas
e acometem pelas costas, mas têm tanta força que com um golpe das
unhas ou dentada dilaceram o que tomam. As presas dizem os índios
que as enterraram e as vão comendo até acabar".111
Anchieta alerta para a diversidade, mas não tem
preocupação em enumerá-las ou classificá-las, nem tampouco
em explicar as relações entre as várias espécies ou sua
interdependência. Sua visão metódica dirige-se ao regime
alimentar no qual os animais estariam ao serviço do homem.
Identificando quatro castas para os macacos, Anchieta se
detêm no registro das características específicas do animal,
e sua utilidade para a alimentação, deixando qualquer outro
tipo de informação menos correta ou qualquer visão confusa e
alegórica fora da narrativa. Com um olhar preciso, afirma o
jesuíta:
111 Carta do Ir. José de Anchieta ao Pe. Diego Laynes. São Vicente, 31 de maio de 1560, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. IX.
335
"Os macacos, em quantidade infinita, são de quatro castas muito boas
todas para se comerem, como com frequência o experimentamos,
alimento muito são até para doentes. Vivem sempre nos matos,
saltando em bandos pelos cimos das árvores, onde se, por causa da
pequenez do seu corpo, não podem saltar duma árvore a outra, o maior
e como chefe do bando, agarra-se de cauda e pés a um ramo curvado,
pega outro com as mãos, faz de si mesmo caminho e como ponte para os
restantes, e assim todos passam com facilidade. As fêmeas têm as
mamas no peito como as mulheres, e com as crias pequenas sempre
pegadas às costas e aos ombros vão de um lado para o outro, até elas
poderem andar por si. Contam-se deles coisas maravilhosas, mas
incríveis por isso as omito"112 .
Fruto da experiência quotidiana, a fauna é percebida em
função da sua utilidade ou do seu perigo latente à
integridade fisica do loiolano. A onça, passivel de ser
utilizada na alimentação diária, também podia ser causa de
morte, como alerta Anchieta, que para comprovar a ferocidade
do animal relata alguns casos que visam a fornecer a real
dimensão de sua crueldade 113 0 macaco, por sua vez, é
destacado pelo seu convivio grupai, sendo sua carne
comumente utilizada na dieta alimentar. A predominância do
discurso é centrada constantemente no proveito para a
sobrevivência, que a fauna pode oferecer, residindo neste
aspecto o motivo da narrativa de coisas criveis, portanto,
destituídas do maravilhoso.
Com o seu olhar preciso e vivaz, Anchieta demonstra
perante uma fauna tão exuberante, um estupor admirativo
112 ibidem, pp. XI-XII.
112 ibidem, pp. IX-X.
336
pelas espécies. Entrelaçando aspectos curiosos com a
utilidade da carne do animal, o missionário descreve de
maneira detalhada e sistemática, exemplares da fauna que
julga digno de menção, pelo seu caráter impar. Tal êxtase no
relato é percebido, na medida em que a descrição é feita nos
seus aspectos mais peculiares. Um dos exemplos mais
completos é o do tamanduá:
"Há <~amhém outro animal de feio aspecto, que os índios chamam
tamanduá, de corpo maior que um cão grande; mas, curto de pernas,
pouco se ergue do chão, e por isso é vagaroso, e o homem pode
alcança-lo na carreira. As suas cerdas (negras, entremeadas de
cinzentas) são muito mais arripiadas que as do porco, sobretudo na
cauda, provida de longas cerdas dispostas umas de cima para baixo e
outras transversalmente, com a qual recebe e repele o golpe das
armas. Recobre-se de pele dura, que as flechas não peneram com
facilidade; a do ventre é mais mole. O pescoço é comprido e fino, a
cabeça pequena muito desproporcionada ao tamanho do corpo, a boca
redonda, da medida de um quanto muito dois anéis, a língua estirada
com três palmos de comprido na porção que pode deitar fora, sem
contar a que fica dentro (que eu medi); e deitando-a de fora,
costuma-a estender nas covas das formigas, e, assim que estas a
enchem i ntei ramen^e, a recolhe dentro da boca. E este é o seu
ordinário comer"114 .
Destacado pelo contraste que a sua constituição fisica
sugere, a descrição é enfatizada segundo qualificações, por
vezes opostas. Atraído por esta espécie, Anchieta não deixa
de mencionar que o seu testemunho é comprovado pelo contato
direto com o animal, alegando "que eu medi". A singularidade
do animal faz com que Anchieta conclua seu depoimento,
justificando o porquê da sua narrativa:
114 íbidem, p. X.
337
"Admira que tão grande animal se sustente com tão pequeno alimento.
braços muito fortes e grossos, quase iguais à coxa do homem,
armados de unhas duríssimas, uma das quais muito excede em
comprimento as de todas as demais feras. Não faz mal a ninguém a não
ser em defesa própria. Quando as outras feras o atacam, senta-se e
de braços erguidos espera o ataque e com um só golpe penetras as
entranhas e mata. É muito bom para comer, dir-se-ia carne de vaca,
se não fossem carnes menos substanciosas"115 .
Apontando para a sobreposição do "ver" em relação ao
"ouvir dizer", Anchieta segue na sua narrativa um modelo já
sugerido na antiguidade por Plínio, o Velho, que é o da
descrição da fauna e flora acompanhada de toda a classe de
informações sobre as caracteristicas e utilizações que se
faz delas. Como sugeriu Gerbi, a descrição da diversidade
era o primeiro passo para captar a nova realidade, e os
jesuitas tinham a necessidade implicita de capturar esta
nova realidade tornando-a parte de um universo cristão. A
multiplicidade de exemplares, antes de remeter a um mundo
animal exuberante, confirmava que a Arca de Noé teria sido
muito maior do que até então se imaginara.
0 jesuita faz também menção à anta e ao seu uso
alimentar:
"Há outro animal, bastante frequente, próprio para comer, que os
índios chamam tapiira, os hispânicos «anta» e os latinos, segundo
creio, alce. Animal parecido com a mula, um pouco mais curto de
pernas, tem as patas fendidas em três pontas, muito proeminente o
beiço superior, cor intermédia entre o camelo e o veado, a pender
115 ibidem, p. X.
338
para preta; um músculo levanta-se no lugar das crinas, pelo cachaço,
desde a cruz até à cabeça, na qual, erguendo-se um pouco mais, arma
toda a testa e abre caminho nos cerrados dos matos, apartando os
paus dum lado a outro, tem a cauda muito curta, sem nenhuma cerda, e
a sua voz é um grande silvo. De dia dorme e repousa, e de noite
corre duma banda para a outra a nutrir-se de diversos frutos de
árvores, e se faltam, come as cascas. Quando os cães o perseguem,
repele-os a dentadas ou coices, ou atira-se aos rios e fica muito
tespo escondido debaixo de água, e por isso vive de preferência
perto dos rios, em cujas ribanceiras costuma escavar a terra e
mastigar o barro. Do seu coiro fazem os indios rodelas endurecidas
apenas ao sol, inteiramente impenetráveis às flechas"116 .
Não menos importante para a alimentação, e de paladar
agradável, era o tatu, revelando que a América era rica em
quadrúpedes comestíveis.
"Há outro animal, bastante frequente entre nós (que chamam tatu),
que vive pelos campos em cavidades subterrâneas, na cauda e na
cabeça quase semelhantes a lagartos. Tem o corpo coberto por cima
duma concha muito dura, que as flechas não atravessam, muito
parecida armadura do cavalo. Para se defender escava a terra com
grande rapidez, e quando se abriga na sua toca, se não se lhe apanha
uma perna, em vão se trabalha em o tirar para fora: agarra-se à
terra tão pertinazmente com conchas e pés, que embora se puxe a
cauda, mais fácil é separar-se ela do corpo do que arrancá-lo da
cova. É de sabor bastante agradável"117 .
A captura da diversidade da nova realidade do mundo
animal era feita através de um modelo invariável, que
normalmente sugeria a fauna européia, sem atribuir
caracteristicas completamente distintas da fauna da América
portuguesa.
116 ibidem, pp. XI-XII.
117 ibidem, p. XII.
339
Este posicionamento eurocêntrico emitia um juízo de
valor sobre o mundo animal e conduzia a assimilação e a
absorção dentro de um quadro de imagens da fauna européia.
Anchieta, ao modelar os animais, para que o seu interlocutor
pudesse visualizá-lo, elenca semelhanças com o objetivo de
traduzi-las. Desta forma, a onça configura-se com a imagem
do carneiro e do gato; o tamanduá, entre as imagens do cão e
do porco; a anta entre as imagens de uma mula, camelo e
veado. 0 mundo animal é capturado pelas velhas imagens do
espelho europeu.
0 horizonte mental de Anchieta revela que as descrições
tendem a reforçar o sentido de posse, pois como afirmou
Gerbi, em La natureza de las índias nuevas, "Reconecer es ya un
acto de conquista y de sujeción"118
Neste sentido, são destacados alguns exemplares da
fauna, sugerindo ora a superioridade humana, como dádiva
divina, ora o desejo e a curiosidade humana, ambas se
sobrepondo ao mundo animal.
Animal lento, com um cara que se assemelhava ao da
mulher, é descrito o "aig", ao qual os jesuítas chamam de
preguiça:
118 GERBI, Antonello, op. cit., p. 19.
340
"Há outro animal (que os índios chamam aig e nos preguiça, por causa
da sua excessiva lentidão), na verdade preguiçoso, mais vagaroso que
um caracol. Tem o corpo grande, de cor cinzenta, cara que se
assemelha um tanto a rosto de mulher, longos braços munidos de unhas
também compridas e recurvadas, com que o dotou a natureza para subir
a certas árvores, de cujas folhas e rebentos tenros se alimenta, no
que gasta boa parte do dia. Não é fácil dizer quanto tempo demora em
mover um braço; e em subindo fica lá até esgotar a árvore toda;
depois passa a outra, às vezes mesmo antes de chegar ao cimo, e
agarra-se com tanta força ao tronco da árvore que não é possível
arrancá-lo senão cortando-lhe os braços"119 .
Caracterizado pela sua lentidão, a descrição do "aig"
revela que a relação do homem com a natureza não acenava
para um convivio harmonioso. Se necessário fosse o homem
utilizava da sua superioridade para se fazer impor aos
animais, pois esta era a verdade absoluta definida na origem
do mundo.
Não menos curiosa é a descrição do gambá, unida a uma
visão prática, que esboça o desejo de conhecimento que se
sobrepõe à natureza. Anchieta assim o descreve:
"Há outro semelhante a uma raposa pequena (que os índios chamam
sarxguéia) que cheira muito mal e gosta muito de comer galinhas, tem
no baixo ventre um saco, aberto de cima para baixo, onde se escondem
as tetas, e, quando pare, as criam entram nele, pega-se cada qual à
sua teta, e nunca mais saem senão quando já não precisam do auxílio
da mão e podem estar em pé e caminhar por si. E até quando se mata a
mão, é difícil arrancá-los com vida das suas tetas. Já matamos
muitos, um dos quais trazia naquele saco sete filhos"120 .
119 Carta do Irmão José de Anchieta ao P. Diego Laynes, São Vicente, 31 de maio de 1560,
in LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. XI.
120 ibidem, p. XI.
341
Prevalecendo o sentido utilitário, as descrições dos
animais seguem uma sequência similar àquelas dos bestiários
medievais, onde eram descritos, um subsequente ao outro, sem
nenhuma afinidade genética ou qualquer outra diretriz que
não fosse a divisão de Plinio, o Velho, que ordenava a fauna
em quatro castas: terrestre, aquáticos, voadores e insetos.
A pesca, pela extensão da faixa litorânea, dos rios e
lagoas de água doce, era também fonte abundante para a
alimentação. Os jesuitas serviam-se dos indigenas para obter
todos os tipos de alimentos, ao mesmo tempo em que
assimilavam o conhecimento da natureza que estes possuiam
para a sobrevivência.
A imensa variedade de peixes e seu caráter impar também
pautou os relatos jesuiticos. A fauna desconhecida por vezes
causou espanto aos missionários que a caracterizaram pelo
seu deslumbramento.
0 Pe. Azpilcueta Navarro descreve a piranha dentre os
peixes com especial atenção, pois esta '•'corta o anzol com os
dentes como uma navalha". Ciente do aspecto inacreditável da
sua informação acrescenta que o seu testemunho é de vista,
342
concluindo "o qual vi con mis ojos, porque de otra manera
apenas lo creyera"121
A pesca abundante compensava a penúria que a primavera e
o verão impunham com suas tempestades abundantes e
inundações dos campos:
"há então as enchentes dos rios e as grandes inundações dos campos,
tempo em que com pouco trabalho se toma entre as ervas grande
quantidade de peixes que saem dos leitos dos rios para pôr os ovos,
o que de algum modo compensa o prejuízo da fome que causam as
inundações. Este tempo é esperado com grande avidez para alivio da
fome os índios chamam-lhe de piracêzoa, que quer dizer «saída do
peixe». Dá-se duas vezes no ano, por Setembro a Dezembro; e às
vezes com mais frequência. Deixam os rios e se metem nas ervas com
pouca água para desovar; e no verão, quando é maior a inundação dos
campos, saem mais abundantes cardumes que se apanham em pequenas
redes e até à mão sem nenhum aparelho"122 .
Com o mesmo olhar curioso e vivaz, Anchieta destaca a
diversidade de animais aquáticos, que contribuem de forma
acentuada para enriquecer a dieta alimentar da época.
Interessado, principalmente naqueles animais que vivem na
água e na terra, a narrativa do missionário aponta para uma
seleção de espécies passiveis de serem consumidas na
alimentação.
121 Carta do Pe. Juan de Azpilcueta Navarro aos Padres e Irmãos de Coimbra, Porto Seguro,
24 de junho de 1555, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 249.
1 22
Carta do Ir. José de Anchieta ao Pe. Diego Laynes. São Vicente, 31 de maio de 1560, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. III.
343
Contudo, nem sempre a caracterização destes era fácil,
pois devido a algumas peculiaridades, era dificil a
classificação, como observa, o loiolano:
"Há um certo peixe (que chamamos peixe-boi e os índios iguaraguâ) ,
frequente na vila do Espírito Santo e noutras povoações para norte,
onde não há frio ou é pouco e se faz sentir com menor rigor do que
entre nós. Muito grande no tamanho, alimenta-se de ervas, como
mostram as mesmas ervas pastadas nos rochedos à beira dos mangues.
No corpo é maior que o boi, cobre-se de pele dura, parecida na cor à
do elefante. Tem no peito dois como braços, como que nada, e em
baixo deles as tetas, com que alimenta os filhos. A boca é em tudo
igual à do boi. É muito bom para se comer e mal se pode distinguir
se é carne ou se antes se deve considerar peixe. A gordura, que está
pegada à pele e sobretudo junto a causa, derretida ao fogo, torna-se
líquida e pode-se bem comparar à manteiga, não sei se ainda melhor,
e usa-se em vez de azeite para tenperar comidas. Todo o corpo é
travado de ossos sólidos e duríssimos, que podem fazer as vezes de
marfim"123 .
Não conseguindo empreender uma classificação, o animal
era normalmente descrito pelas diferenças, ou oposições, ao
modelo europeu, revelando que algumas espécies foram
dificeis de serem apreendidas, além do seu caráter fisico e
utilitário. Assim são mencionadas a capivara e a lontra,
cujo conhecimento preciso de Anchieta destaca a sua
utilidade:
"Há outros animais, de gênero anfíbio, de nome capiívára, isto é,
que «pastam ervas»(...), não muito diferentes dos porcos, de cor
tirante a ruivo, dentes como os da lebre, excepto os molares, parte
dos quais se fixam nas mandíbulas, parte no meio do céu da boca; e
carecem de cauda; pastam ervas, donde lhe vem o nome. São próprios
123 ibidem, pp. III-IV.
344
para comer. Domesticam-se e criam-se em casa como cães, saem a
pastar e voltam a casa por si mesmos" 124
"Próprios para comer" parece ter sido a razão motivadora
para a descrição, mesmo se o animal fosse feroz:
"Há muitas lontras, que vivem nos rios. Das suas peles, de pelos
muito macios, fazem-se cintos. E há outros animais quase do mesmo
gênero, mas de diversos nomes entre os índios, que se prestam ao
uso. Há pouco, um índio, frechando um deles e atirando-se à água
para o apanhar, acorreu grande cópia de outros, que estavam debaixo
da água, e acometeram o homem com unhas e dentes, de maneira que
teve trabalho para tirar o que tinha morte e saiu todo arranhado, e
passaram-se muitos dias até fecharem as feridas. Estes animais, de
cor quase negra, são pouco maiores que os gatos, munidos de
agudíssimos dentes e unhas"125 .
A luta pela vida contra o mundo animal era o ponto comum
da maioria dos relatos, sendo que poucos animais foram
descritos pelo seu convivio amistoso com o homem. As
narrativas privilegiaram aquelas espécies que, ao mesmo
tempo que constituíam uma fonte alimentar, eram um perigo
para o homem, que tinha que utilizar do seu engenho para os
dominar. 0 ser humano subjugava a natureza não só pela sua
superioridade, enquanto ser racional, mas principalmente
como "ser de cultura", capaz de produzir instrumentos
materiais que o auxiliassem na caça e pesca.
124 ibidem, p. VI- VII.
125 ibidem, p. VTI.
345
Neste sentido, é descrito o lagarto comum da terra dos
brasis, o jacaré, que apesar da sua corpulência e
ferocidade, é dominado:
"Também há lagartos, igualmente fluviais, a que chama jacaré, de tão
grande corpulência, que podem engolir um homem, cobertos de
duríssimas escamas e armados de agudíssimos dentes. Passam a vida na
água, algumas vezes saem às margens, onde acontece que os matam,
enquanto dormem, não sem grande trabalho e perigo, como é óbvio em
tamanho animal. As suas carnes são próprias para comer, cheiram a
almíscar, em particular os testículos, onde sobretudo está força do
cheiro"126 .
0 reino animal da terra brasilica não foi favorável à
vida daqueles inacianos acostumados com uma natureza menos
hostil em suas terras. Apesar de oferecer uma abundância de
alimentos provenientes da caça e da pesca, o reino animal
apresentou-se como perigos incomensuráveis; espécies
animais aterrorizaram os jesuitas, pois demoniacamente
atacavam-nos, pelos caminhos ou no sertão, como já foi
exemplificado com a onça.
A grande variedade de cobras, por causa de seus tamanhos
e venenos, causaram medo constante. A morte iminente que a
picada venenosa de uma cobra representava amedrontou os
jesuitas, que em suas movimentações as encontravam
rotineiramente:
126 ibidem, p. IV.
346
"No interior das terras acham-se cobras de extraordinário tamanho, a
que os índios chamam sucurijúba, que vivem quase sempre nos rios,
onde elas apanham para comer os animais terrestres que com
frequência atravessam a nado, mas às vezes saem a terra e os atacam
nas veredas por onde costumam passar dum lado para outro. Não é
fácil crer na grossura do seu corpo. Engolem um veado inteiro e
ainda maiores animais coisa comprovada por todos. E alguns Irmãos
nossos o viram com espanto; e um deles uma cobra a nadar, julgou que
fosse o mastro dum navio. Dizem que não tem dentes, só se enroscam
nos animais e prendendo-os pelo ânus com a cauda os matam e com a
força da boca os maceram e engolem inteiros. Delas contarei coisas
estranhas, não sei se dignas de crédito, mas que todos, tanto índios
como Portugueses, que passaram muitos anos nesta terra, afirmam a
uma só voz, engolem (como disse) certos animais grandes que os
índios chamam tapiira (de que logo falarei) , e não os podendo o
estômago digerir, ficam por terra como mortas, sem se poderem mover,
até que apodrece o ventre ao mesmo tempo que a comida, e então as
aves de rapina lhes rasgam o ventre e devoram com o que tem. Depois,
a cobra, informe e meio devorada, começa a refazer-se, crescem as
carnes, recobre-se a pele, e volta à antiga forma"127 .
Indefesos frente a um mundo natural hostil, os jesuítas
deram atenção especial não só à fauna alimentar, mas também
às espécies que poderiam provocar a morte. Sujeitos a vários
tipos de agressão, os loiolanos narraram as múltiplas
dificuldades que enfrentavam. Medo, prudência e alimentação
combinavam-se nas imagens sobre o paladar.
Numa descrição pormenorizada, as cobras são descritas
pela variedade de cores, formas, bem como dos efeitos letais
das mordeduras. Anchieta continua a elencar de maneira
pormenorizada cada um dos exemplares, pois segundo ele:
"Todas estas [cobras] (excepto as não venenosas, muito abundantes e
variadas) Sôo tão frequentes que não se pode viajar sem perigo.
127 ibidem, p. IV.
347
Vimos cães, porcos e outros animais sobreviver apenas seis ou sete
horas à mordedura. Não raro passamos os mesmos perigos os que por
dever de oficio andamos dumas vilas para as outras e as achamos nos
caminhos"128 .
Esta atenção especial dispensada às cobras devia-se ao
fato da necessidade de reforçar a imagem do jesuita num
valhacouto de lágrimas, que era a terra dos brasis. A morte
iminente era tão digna de menção quanto a vida, pois só um
guerreiro vivo poderia contribuir para o sucesso da
Companhia. Reforçando o perfil do loiolano, dentro desta
perspectiva, Anchieta narra um caso digno de admiração pela
dedicação e empenho de um irmão loiolano, vitima de animal
tão peçonhento que foi curado por Deus:
"Uma vez, com outro Irmão, voltando para Piratininga duma povoação
de Portugueses, aonde a obediência mandou doutrinar, achei no
caminho uma cobra enroscada e, benzendo-se primeiro, lhe dei com o
bordão e a matei. Quase sem demora começaram três ou quatro pequenas
a arrastar-se no chão, e admirando-se eu donde teriam vindo tão de
repente estas que antes não se viam, logo começaram a sair outras do
ventre materno, e sacudindo o cadáver saiu o resto da ninhada até o
número de onze, todas com vida e perfeitas, excepto duas. E ouvi
dizer, a pessoas fidedignas, de outra cobra em cujo ventre se
acharam mais de quarenta. Entre tão grande e tão frequente
quantidade, Deus tantos mais nos conserva incólumes quanto menos
confiamos em nenhum antídoto ou poder humano, mas ao Senhor Jesus,
que unicamente pode fazer que andando sobre cobras não recebamos mal
algum"129 .
Todavia, a descrição da natureza não foi pautada somente
por temores. Dando sequência ao modelo dos "bestiários
128 ibidem, p. VIII.
129 ibidem, p. VIII.
348
medievais" as aves são descritas pela sua variedade de
cores.
A terra dos brasis era rica em aves de plumagens as mais
variadas possíveis:
"Também há emas, às quais o extraordinário tamanho do corpo impede
voar. Há huns passarinhos, chamados guainuzabx, os mais pequenos de
todos. Só se alimentam de orvalho. Há vários gêneros; e um, afirmam
todos que nasce da borboleta. Há outra ave semelhante ao corvo, mas
com bico de pato, que mergulha nos rios, e fica muito tempo debaixo
da água a comer peixes. Há ainda outra, de corpo pequeno; quando
bate as asas faz tanto barulho que parecem árvores a cair no chão.
Há ainda uma ave marinha, por nome guará, igual ao mergulhão, mas de
pernas mais compridas, de pescoço igualmente longo, de bico
estendido e adunco, alimenta-se de caranguejos e é muito voraz. Dá-
se com ele uma como perpétua metamorfose. Na primeira idade reveste-
se de penas brancas, que se mudam depois em cor de cinza, e passado
algum tempo tornam a embranquecer, embora de menor alvura que na
primeira idade; e, por fim, ornam-se de cor purpúrea, belíssima; as
quais os brasis muito apreciam pois com elas enfeitam os cabelos e
braços nas suas festas. Há também outra ave marinha, parecida com a
de, que tem no lugar das asas pequenos membros cobertos de lanugem
macia, e as patas quase na cauda, de maneira que não podem sustentar
o corpo e serve só para ela nadar, pois não pode voar nem
caminhar130 .
Além dos animais, insetos também eram utilizados na
dieta alimentar dos jesuitas, como incorporação de uma
cultura alimentar indigena, que revela a ausência de
interdições nesse sentido, pois a formiga e o "rahu" também
se moviam sobre a face da terra.
130 ibidem, p. XIV.
349
Ir. Anchieta, atuando na vila de Piratininga,
recém-fundada, relata que pelos idos de setembro de 1554,
ele e seus companheiros esperavam
"por um certo gênero de formigas, as quais quando fazem exambre são
os filhos um pouco grandes, e estas temos cá por manjar delicado, e
não pensamos que temos pouco quando as temos"131 .
Este manjar era tão delicado quanto estranho, para o
europeu, que naquele periodo compreendia a formiga como
simbolo para a caracterização do burguês132 . Mas, não só as
formigas eram úteis à alimentação. Os "rahu", espécie de
lagarta eram consumidos com frequência:
"Criam-se em canas [taquaras] uns bichos roliços e longados, todos
brancos, da grossura dum dedo, que os índios chamam rahu e costumam
comer assados e torrados. E há-os em tanta quantidade que deles se
faz banha semelhante à do porco, e serve para amolecer o coiro e
para comer. Destes insectos uns se tornam borboletas
borboletas,, outros saem
ratos que fazem os ninhos debaixo das mesmas canas, e outros se
transformam em lagartas que devoram as ervas «133
Ambrosio Pires descreve os malefícios que as formigas
causam aos homens e os paliativos utilizados como forma de
controlar a praga:
131 Carta do Ir. José de Anchieta [Ao P. Inácio de Loyola?] Piratininga [setembro de
1554], in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 123.
132 HOLANDA, Sérgio B., op. cit., p. 226.
1^3
Carta do Ir. José de Anchieta ao Pe. Diego Laynes. São Vicente 31 de maio de 1560, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. XII.
350
"Ha aqui infinito número de formigas, que tem na boca umas pinças,
com as quais talam todo o plantio e, o que é pior, fazem-no murchar;
e assim os lavradores se arremedeiam dando-lhes comida para que não
estrague a tudo com o veneno das bocas e nem façam secar as plantas
de cuja raiz fazem o pão; principalmente porque dão cabo em uma
noite do que custa muitos dias a muitos homens, cousa que só se
acredita vendo; não se faz uma horta que não fique logo perdida"134
Contudo, em alguns casos, medidas mais sacrificáveis são
necessárias:
"As videiras dão bem e duas vezes por ano e com abundância; mas faz-
se preciso que o dono durma ao pé dela, porque, de outro modo, hoje
está cheia e amanhã só servirá para por-se ao fogo"135 .
Anchieta identificava também as formigas e suas inúmeras
espécies como uma das maiores pragas das plantas, ameaçando
a destruição da terra. Destruindo as roças de mandioca, as
saúvas colocavam em risco a sobrevivência de todos, pois
"não ha viver com elas".
Ciente de que sua narrativa favoreceria uma melhor
compreensão da luta direta contra estes inimigos, Anchieta
não poupava palavras para a caracterização do inseto tão
minúsculo e numeroso. Num relato onde perpassa uma certa
dose de pessimismo, frente a um inimigo tão rápido, o
missionário revelava que este inseto tão nefasto
134 Carta do Pe. Ambrósio Pires ao Pe.. Inácio de Loyola, Baia, 12 de junho de 1555, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, pp. 236-237.
í
135 ibidem, p. 237.
351
comprometeria a própria expansão demográfica, por destruir a
lavoura:
"Seria difícil exprimir por palavras as diversas espécies de
formigas que são de várias naturezas e nomes, porque (diga-se de
passo) na língua brasílica é muito usado dar nomes diversos a
espécies diversas , e raras vezes se nomeiam os gêneros por nome
próprio; e assim, a formiga, o caranguejo e o rato e muitos outros
não têem nenhuma denominação genérica, enquanto as espécies (que são
quase infinitas) nenhuma deixa de ter o seu nome próprio, e causa
verdadeira admiração tanta abundância e variedade. Quanto às
formigas, só parecem dignas de menção as que destroem as árvores, de
nome içâ, arruivadas, e que esmagadas cheiram a limão, e cavam para
si grandes casas debaixo da terra. Na primavera, isto é, em Setembro
e daí por diante, fazem sair o enxame dos filhos quase sempre num
dia seguinte ao da chuva dos trovões, se fizer bom sol. Vão à frente
os pais, de boca aberta, por um lado e outro, enchendo todos os
caminhos, e, mais cruéis que nalgum otro tempo, as suas mordidelas
chegam a fazer sangue; seguem-se-as os filhos com asas, de corpo
maior, e logo voam à procura de novas casas para si, tão numerosos
que fazem no ar densa nuvem, e onde quer que caiam, aí cavam logo a
terra construindo habitações cada qual para si; e pouco depois
morrem, e do seu ventre se geram outros inumeráveis filhos, e assim
não admira que haja tanta quantidade de formigas, quando de uma só
nascem tantas. Para esta saída das suas covas se juntam os índios e
também as aves. Juntam-se os índios, que esperam ansiosos este
tenpo. Tanto homens como mulheres saem de casa, chegam-se e correm
com grande alegria e saltos de prazer, para colher os novos frutos.
Aproximam-se das entradas das cavidades, e abrem pequenas covas, que
inundam de água, onde se metem e se defendem contra a fúria dos
pais, apanham os filhos, que saem dos subterrâneos, enchem os seus
recipientes, que são uns grandes cabaços; e voltam para casa e os
assam ao lume em grandes vasilhas de barro, e os comem; assim
torrados duram muitos dias sem se corromper. Quão saborosa e quão
seja esta comida sabemo-lo os que o experimentamos. Mas também umas
aves, semelhantes a andorinhas, de que há três gêneros, se juntam no
ar quase sem número, e com admirável rapidez cortam pelo meio as
formigas, que saíram voando, e lhes devoram o ventre, deixando a
cabeça, as asas e as pernas; e deste modo sucede que muito poucas
escapam"136
136 Carta do Ir. José de Anchieta ao Pe. Diego Laynes. São Vicente 31 de maio de 1560, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. III, p. XII-XIII.
352
Não só as formigas, mas outros insetos castigam os
homens da Terra de Santa Cruz, conclui Ambrosio Pires:
"Não poucas vezes vem a lagarta que chama gafanhoto, que estraga
tudo quanto existe, de maneira que se há aqui pecados, também não
faltam castigos"!37 .
0 Ir. António Blazquez, por sua vez, também ressalta as
dificuldades de sobrevivência em Porto Seguro, rodeado,
segundo ele, de "negros incapazes de receber a Fé", que já
era um desconsolo para os agricultores da vinha do Senhor, e
ainda havia:
" (...) uma lagarta, que é como o gafanhoto, que tem destruído os
mantimentos e feito grande fome a terra que pregamos,... «138
Além da fome, os loiolanos por vezes se vê em
importunados pelos insetos das terras tropicais. Francisco
Pires, ao citar as visitações que fez com os meninos órfãos
de Lisboa, enfatizou as agruras da caminhada afirmando:
"Fomos pela praia onde achamos outro limoal que nos deu muito
trabalho, principalmente aos meninos pelos muitos mosquitos que nos
mordiam, e desta maneira fomos até chegar a uma boca de rio que
passamos em uma canoa"139 .
137 Carta do Pe. Ambrósio Pires ao Pe. Inácio de Loyola, Baia 12 de junho de 1555, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 237.
138 carta do ir. Antonio Blazques aos Padres e Irmãos de Coimbra. Baia, 8 de julho de
1555, in LEITE, Serafim, op. cit. vol. II, p. 254.
139 carta dos Meninos Órfãos [escrita pelo Pe. Francisco Pires] ao Pe. Pero Doménech. Baia
5 de agosto de 1552, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 389.
353
0 duelo constante com a formiga e demais insetos e
animais impôs árduas penas aos habitantes da terra, pois tal
ameaça representava a inviabilização da sobrevivência. A
abundância facilmente obtida, podia ser também facilmente
destruida. Na relação de pecados e castigos, Deus
equilibrava o paraiso de delicias.
Além destes aspectos, o mundo animal impunha um temor
constante. A ameaça de morte com o veneno produzido por
certos animais fazia com que os cuidados fossem redobrados,
em qualquer parte onde estivessem ou pretendessem visitar.
António Blazquez aponta que além das barreiras naturais que
o j esuita enfrentava nos seus percursos por mar "pelos
muitos baixos que tem esta costa" tinha ainda o medo de "ser
mordido animais peçonhentos que em esta terra ai em
abundância". Este perigo, segundo ele, era mortal.
Exemplifica o sucedido com o Pe. Ambrosio Pires:
"Um dia pela manhã estando o Pe. Ambrosio Perez rezando as matinas
(e segundo ele me disse) espantando-se do esforço de uns mártires de
que estão rezava, quando no se cata viu uma cobra perto de si das
mais peçonhentas desta terra, e pensando que não tivesse tal
qualidade a matou. Perguntamos depois que animal era e responderam
que diziam os negros que aquele que fosse mordido daquela não podia
sarar se não comesse os fígados do homem, dando por isso a entender
a possibilidade que havia na cura"140 .
140 Carta do Ir. Antonio Blazques aos Padres e Irmãos de Coimbra. Baia 8 de julho de 1555,
in LEITE, Serafim, op. cit. p. 258.
354
0 exagero com que é delineado o contorno deste mundo
animal ameaçador, tem por objetivo não só relatar as
dificuldades da sobrevivência num meio inóspito, mas
sobretudo o de confirmar a possibilidade de dominio do
jesuita em sua batalha missionária. A sobrevivência e a
persistência do loiolano, nessas condições, marcam a
vitória do processo civilizatório e de expansão da fé sobre
uma natureza incontrolável e destruidora, que pouco a pouco
é convertida em nome da Fé.
355
6 REINO MINERAL: OURO A VISTA
A sua prata será lançada fora,
o seu ouro sera reputado como esterco.
A sua prata e o seu ouro
não os poderão livrar
no dia do furor do Senhor;
não saciarão a sua alma,
os seus ventres se não encherão,
porque a sua iniquidade
fez disso um motivo de queda.
Ezequiel 7:19
Ouro à vista foi um pensamento subjacente ao momento das
descobertas. 0 descobrimento de novas terras, num periodo em
que o bulionismo era vigente, fazia com que todos os
territórios fossem vistos em função da possibilidade de
fornecimento do metal nobre aos interesses económicos e
comerciais dos Quinhentos.
A perspectiva de obtenção de metais preciosos sempre
esteve latente entre os relatos das novas descobertas. 0
ouro e a prata da América espanhola acenavam no inicio do
século XVI para um paraiso dos metais. Porém, a sorte que se
abatera sobre os espanhóis não se estendeu de imediato para
356
as terras dos portugueses. Estes, tão ávidos por metais
quanto os espanhóis, alimentaram o desejo de encontrar no
interior das terras, minas de ouro em quantidade nunca antes
vista. Mas estas só seriam efetivamente descobertas e
exploradas um século mais tarde.
Nóbrega, relatando sua investida pelo interior da
Capitania de São Vicente, apresenta a primeira possibilidade
de riqueza concreta:
"Y tiénese por cierto aver raucha plata en la terra, y tanta que
dizen aver sierras delias, y raucha notita de oro, por lo qual çarró
y atapó el camino hasta S.A. en ello proveer, y, que pues lo atapava
a los otros, no parecia bien ir nós"141 .
A preocupação com o ouro antes de ser secundária parece
ter sido um interesse latente e constante da coroa
portuguesa, que desejava ansiosamente a mesma sorte com que
fora premiada a coroa espanhola.
Apesar das dificuldades de se encontrar o metal
precioso, os textos demonstram que a própria colonização foi
alimentada pela possibilidade em potencial do encontro do
ouro, da qual o jesuita participou e registrou. Este era um
desejo confesso de todos aqueles que habitavam a Terra de
141 Carta do Pe. Manuel da Nóbrega ao Pe. Luís Gonçalves da Câmara, S. Vicente, 15 de
junho de 1553, in LEITE, Serafim, op. cit-, vol. I, p. 492.
357
Santa Cruz, mas uma tarefa obrigatória daqueles que exerciam
os cargos de autoridade nestas regiões.
Tomé de Sousa, ciente da necessidade do ouro para a
coroa lusitana, acena nos seus relatos ao rei D. João III,
com possibilidades de descobertas deste metal, manifestando
empenho em realizar tal tarefa:
"Correndo esta costa achey entre o gentio nova mais que de ouro do
que me a mi parece, nem parecerá até que o veja, pelo muito que o
desejo. Todavia ordenei doze homens e um clérigo, Irmão da Companhia
de Jesus, com eles e estão pera entrar pela terra firme por via de
Porto Seguro e por Pernambuco"142 .
Nóbrega, enquanto observador arguto do contexto
temporal, alertou constantemente para o fato de que a
pobreza e o não desenvolvimento da terra estavam diretamente
ligados à politica de povoamento e administração da terra.
Era necessária a adoção de uma administração que impedisse o
retorno à pátria lusitana, após os serviços prestados pelo
corpo administrativo, pois tal configuração impedia a
afeição pela terra dos brasis. Por isso em carta alerta:
"Esta terra é tão pobre ainda agora, que dará muito desgosto aos
oficiais de V.A. , que lá tem, com verem muito gasto e pouco proveito
ir de cá, maiormente àqueles que desejão mais irem de cá muitos
navios carregados de ouro, que para o céu muitas almas para Cristo,
se não remendar em parte comum V.A. mandar moradores que rompam e
queiram bem à terra, e com tirar oficiais, tanto e de tantos
142 Carta de Tomé de Sousa Governador do Brasil a D. João III, Rei de Portugal, Salvador,
1 de junho de 1553, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 486.
358
ordenados; os quais não querem mais que acabar seu tempo e ganhar
seus ordenados (...) "143 .
Luís da Grã compartilhava da mesma posição de Nóbrega
entendendo que apesar de estar sendo habitada, há algum
tempo, os moradores da capitania da Bahia, por inoperância,
não haviam iniciado pesquisas para explorar os possíveis
metais da terra. Afirmava que estes nunca os procuraram
ainda que "mediocremente, para saber o que se poderia dar
bem na terra, nem se havia metais nela;(...) W144
r
Ao mencionar as primeiras perspectivas de achamento,
Luís da Grã não as atribui aos moradores, mas sim à
magnificência divina:
... quis Deus descobrir juntamente quasi em todas as Capitanias
muitos metais de ferro, prata e, segundo se afirma, de ouro, tão sem
diligência humana... que bem parece dar-lo Deus Nosso Senhor por
instrumento o meio deste seu serviço, que tanto se deseja, que é a
sujeição de tanta infinidade povos a sua santa fé que tão
entenebrecidos estão em suas brutalidades, que quase de todo parecem
ter absorto o lume da razão, de cuja fereza, se houvesse de
escrever, seria muito largo"145 .
0 ouro, enquanto metal precioso, altamente valorizado no
contexto quinhentista, o é não só pela riqueza que produz no
143 Carta do Pe. Manuel de Nóbrega a D. João III, Rei de Portugal. Baia, princípios de
julho de 1552, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 344.
344 Carta do Pe. Luis de Grã ao Pe. Inácio de Loyola, Baia 27 de dezembro de 1554, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, P. 132.
443 Carta do Pe. Luis de Grã ao Pe. Inácio de Loyola, Baia 27 de dezembro de 1554, in
LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, P. 132.
359
âmbito do temporal, mas também e principalmente dentro do
pensamento religioso. A sua descoberta amplia o "tesouro de
Jesus Cristo Nosso Senhor, e ser coisa de tanto proveito
resultará a glória do mesmo Senhor" e por decorrência "bem a
todo o Reino e consolação a Vossa Alteza"146 .
Com esta visão de que a fé pode ser ampliada, e que Deus
pode guiar para a consecução de riquezas desde que os
preceitos cristãos sej am efetivados, é que Anchieta se
pronuncia:
" (...) tendo-se dirigido todas as orações e gemidos dos nossos
Irmãos desde que estão cá, a pedirem continua e fervorosamente a
Deus se dignasse mostrar claramente o caminho, pelo qual estes
gentios se haviam de levar à fé, agora acabou Ele por mostrar
grandíssima abundância de oiro, prata, ferro e outros metais, antes
bastante desconhecida, como todos dizem, e esta abundância julgamos
que será óptimo e facílimo meio, como já nos ensinou a experiência.
Pois, vindo para aqui muitos cristãos sujeitarão os gentios ao jugo
de Cristo, e assim estes serão obrigados a fazer, por força, aquilo
a que não é possível levá-los por amor"147 .
Além da ênfase dada às possiveis descobertas de ouro
principalmente por Nóbrega, Luis de Grã e .Anchieta chamam a
atenção para o povoamento das terras e para a catequização.
Eis o que diz Anchieta sobre o assunto:
146 Carta do Pe. Manuel da Nóbrega a D. João III, Rei de Portugal. Olinda 14 de setembro
de 1551, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I, p. 294.
147 Carta do Ir. José de Anchieta ao Pe. Inácio de Loyola. São Paulo de Piratininga [1 de
setembro de] 1554, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 118.
360
"Vamos sofrendo com paciência, que depois da tempestade vem a
bonança e a grande paz. E especialmente agora que se encontrou
grande abundância de oiro, prata, ferro e outros metais com que se
enchem as próprias casas onde moram; o que levará o Sereníssimo Rei
de Portugal a mandar para aqui uma força armada e numerosos
exércitos, que dêem cabo de todos os malvados que resistem à
pregação do Evangelho e os sujeitem ao jugo da escravidão; e honrem
aos que se aproximarem de Cristo"148 .
A descoberta do ouro sem dúvida norteou as primeiras
investidas pelo sertão adentro. Só um mineral tão precioso
aguçaria a cobiça e forçaria o homem a tal aventura. O
desejo latente não só da coroa, na obtenção de ouro, também
era compartilhado pelos seus súditos, ansiosos pela
possibilidade de riqueza fácil e abundante. Porém o
cerceamento da coroa para evitar o avanço para o interior
era uma barreira oficial, nem sempre respeitada.
Os jesuitas compartilhavam com os moradores da mesma
expectativa do encontro de minas, marcada em alguns relatos.
A noticia sobre o achamento de minas acena para realização
de entradas, nas quais os jesuitas se prontificavam a
participar, pois estariam colaborando para o aumento da
riqueza do Rei e de Deus. Nóbrega, atento às necessidades de
seu tempo, apresenta as possibilidades de obtenção e as
interdições da coroa e suas justificativas:
148 Carta do Ir. José de Anchieta ao Pe. Inácio de Loyola. São Vicente [fim de março] de
1555, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. II, p. 196.
361
"Sucedeu que a partida do governador alguns moradores da terra assim
por ficar descontentes do Governador, como por alguma noticia o
esperança que tem de haver em esta terra ouro ou prata, sabendo que
nós queríamos ir por terra adentro a assentar casa, quase que toda
esta Capitania e muitos dos principais dela se moviam para ir onde
nós assentávamos. O qual veio a noticia do Governador e, dando-me
conta do que passava na terra, com de por diante da obrigação que
tínhamos a nostro Rei tão virtuoso, o impediu, e com muita razão,
porque fora abrir as portas para grandes males, se esta Capitania
despovoar. E assentamos a não fazer mudança até S.A. mandar recado
ao Governador de coisas que ele escreverá ou informará de palavra se
ai for este ano"149 .
Era necessário que as riquezas naturais em potencial
fossem exploradas. Ocultas num meio ardiloso, precisavam da
força humana para explorá-las.
A riqueza natural ajudaria na colonização e na
incorporação do novo território ao "orbis christianus". A
idéia subjacente à catequização é que a conversão se
tornaria efetiva com o aumento do número de cristãos.
Nóbrega e os demais companheiros, ao acenarem com as
perspectivas de enormes vantagens materiais, sabiam que era
necessária alguma forma de atração para o povoamento das
terras tão selvagens quanto distantes. 0 ouro deveria
estimular a vinda dos europeus para a terra brasilica, e com
isto a expansão da cristandade aumentaria
significativamente. 0 mundo mineral era tão útil quanto a
149 Carta do Padre Manuel da Nóbrega ao P. Simão
; Rodrigues. São Vicente [10 de março]
1553, in LEITE, Serafim, op. cit., vol. I-, p., 450.
362
flora e a fauna e compunha com estas o quadro utilitário na
visão destes primeiros jesuitas.
363
CONCLUSÃO
Compreender o documento e identificar as permanências e
diferenças dentro do momento em que foram produzidos é parte
integrante da investigação histórica, que pressupõe tornar
claro um conteúdo distanciado do pesquisador.
0 estudo da visão da natureza, dos primeiros membros da
Companhia de Jesus que chegaram à terra brasilica, delineada
ao longo destas páginas, visou a resgatar o comportamento
complexo dos missionários frente a um novo mundo natural.
Este comportamento refletiu em última instância as
representações que estes missionários faziam da sua própria
existência. Preocupados em implantar as sementes do
cristianismo na América portuguesa, os pastores e lavradores
de Cristo não deixaram de considerar nos seus escritos este
objetivo supremo de conquista e conversão.
A observação da natureza e de sua influência no processo
de colonização e catequização da terra dos brasis foram
364
focos de preocupação desde cedo nas ponderações feitas pelos
missionários, que visavam a diagnosticar a estratégia para a
ocupação cristã da terra.
Compreender os mecanismos de decodificação da natureza,
pelo jesuita, através das metáforas e da linguagem, bem como
a sua ausência, em esparsos fragmentos escritos, possibilita
recuperar a memória existente e assimilar os sentidos e as
idéias dos primeiros loiolanos na elaboração do seu discurso
sobre a flora e a fauna da terra brasílica nos Quinhentos,
no momento em que, paulatinamente, as idéias sobre a
natureza passavam por reguestionamentos advindos dos
conhecimentos objetivos das descobertas e das colonizações
integrados à revolução cientifica em gestação.
Inexistindo ainda divisões e classificações, que só o
pensamento cientifico do século XVII e XVIII consolidaria,
os primeiros jesuitas captaram a natureza na relação direta
da necessidade que a existência terrena o exigia. Um mundo
natural onde tudo era útil, onde tudo poderia ser convertido
em prol da necessidade humana, sintetiza a concepção de
natureza feita por uma cultura influenciada pelo
cristianismo.
365
Marcada pela predominância do pensamento judaico-cristão
que se sobrepôs ao pensamento helénico e humanista, a
natureza é vista como produto da criação divina, criada para
os seres humanos. A natureza por si só nada era, quem lhe
confere significado é o homem que necessita do produtos
naturais para a sua sobrevivência.
A natureza é concebida de forma dual. Vida e morte se
mesclam no horizonte mental dos loiolanos. Esta elaboração
decorrente da existência humana, confirmava que o homem
precisava satisfazer as suas necessidades biológicas ao
mesmo tempo em que sinalizava para a sua dominação sobre o
mundo.
Dentro desta perspectiva, a idéia que norteia a
narrativa dos primeiros jesuitas é a da utilidade, que
emerge a cada consideração sobre o mundo natural.
Correlações, distinções e similitudes manifestam claramente
como esta forma de saber dos missionários conseguiu
'aproximar a natureza da América portuguesa com os modelos
europeus, evitando o confronto com os dogmas cristãos ao
mesmo tempo que afirmava a fé católica como a suprema
autoridade. Deus era o criador do universo.
366
Enfatizando os aspectos do mundo natural que remetiam
indiretamente às potencialidades da terra, o discurso
jesuitico percebeu a natureza em função da prática
missionária e por decorrência, da religião católica. Marcado
pela tônica da conquista, a leitura da natureza também
confirmava a vitória do processo civilizatório e de
expansão do cristianismo na terra dos brasis. A natureza
era útil para a conquista.
ií:
367
FONTES
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