Organizadoras:
Germana Araújo Sales
Leila Cristina de Melo Darin
DIÁLOGOS E INTERFACES
EM LITERATURA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
_________________________________
Diálogos e interfaces em literatura [livro
eletrônico] / organizadoras Germana Araújo
Sales, Leila Cristina de Melo Darin. --
São Paulo : Setare, 2024.
ePub
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-983503-2-1
1. Literatura 2. Literatura - Crítica
e interpretação 3. Literatura - Diálogos
4. Tradução e interpretação I. Sales, Germana
Araújo. II. Darin, Leila Cristina de Melo.
24-213438 CDD-801.95
__________________________________________
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura : Ensaios e críticas 801.95
Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253
Coordenação editorial: Equipe Tesseractum Editorial
Diagramação: Equipe Tesseractum Editorial
Revisão: Equipe Tesseractum Editorial
Arte da capa: Tammy Guerreiro
Site da Editora:
www.tesseractumeditorial.com.br
©Nenhuma parte desta publicação, incluindo o desenho de capa, pode ser reproduzida, armazenada ou
transmitida de maneira alguma por nenhum meio, sem a prévia autorização do autor.
SUMÁRIO
HISTÓRIAS PROSAICAS DE OUTRAS HISTÓRIAS: PRIMEIRO
DIÁLOGO...................... ................................................................................................ 4
A MIMESIS PÓS-MODERNA DE ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ
RUFFATO.. ................................................................................................................... 9
Regina Zilberman ...................................................................................................... 9
RETRATOS DE CIDADES AMAZÔNICAS EM RAIMUNDO MORAIS, OSVALDO
ORICO E DALCÍDIO JURANDIR ................................................................................ 23
Marlí Tereza Furtado (UFPA) ................................................................................... 23
“UM BANQUETE DE CORVOS”, DE RODOLFO TEÓFILO ........................................ 35
Atilio Bergamini ....................................................................................................... 35
HEROÍNAS PROBLEMÁTICAS NEGRAS: DIÁLOGOS ENTRE AS PERSONAGENS
RAINHA GINGA, DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, E LUA CAMBARÁ, DE
RONALDO CORREIA DE BRITO ............................................................................... 58
Kelcilene Grácia ...................................................................................................... 58
Enedir da Silva dos Santos ..................................................................................... 58
FLORBELA ESPANCA E ROSIDELMA FRAGA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL NA POESIA
FEMININA DE PORTUGAL E DA AMAZÔNIA ............................................................ 69
Cátia Monteiro Wankler ........................................................................................... 69
Veronica Prudente Costa......................................................................................... 69
LITERATURA COMPARADA E TEORIA QUEER ........................................................ 85
Anselmo Peres Alós ................................................................................................ 85
A TRADUÇÃO LITERÁRIA E O DESAFIO DA SINTAXE COMPLEXA: OS CASOS DE
PROUST E WOOLF ................................................................................................. 106
Cynthia Beatrice Costa .......................................................................................... 106
Lenita Maria Rimoli Pisetta .................................................................................... 106
4
HISTÓRIAS PROSAICAS DE OUTRAS HISTÓRIAS: PRIMEIRO DIÁLOGO
“Tudo muda com o impresso. O impresso fixa”
(Conto O progresso, Machado de Assis, publicado n'A Estação (1882).
O prefácio constitui uma tradição antiga inaugurada pelos
agradecimentos e dedicatórias, presentes nos mais diversos gêneros literários,
como parte necessária ao desenvolvimento dos enredos. No teatro grego
antigo, antes das peças, havia um prólogo de apresentação para a plateia,
visando a um melhor entendimento dos espectadores. Posteriormente, esse
breve texto incorporou-se ao livro, com a função de dedicar a obra a um
príncipe, rei, ou alguém poderoso, que financiava a produção e autorizava a
sua circulação. A prática percorreu os séculos, modificando sua proposta em
algumas circunstâncias, sobretudo quando o leitor começa a aparecer como a
peça-chave para a acolhida da obra.
Nas obras literárias, o prefácio, quando assinado pelo próprio autor,
assumiu uma parcela importante do texto, pois, na maioria das vezes,
compreendia-se indispensável, seja pelas orientações para a leitura da obra,
seja por demais especificações necessárias do autor. Mais tarde, contudo, o
texto inicial perdeu o protagonismo do autor e ficou terceirizado a outra
competência e essas introduções alcançaram o status de uma espécie de selo
para a obra, pois, a depender do encarregado pela apresentação, mais
valorizada ficava a publicação. Com a prática de nomes influentes
selecionarem e organizarem obras, a comunidade acadêmica se rendeu à
experiência, como parte do seu ofício e das tarefas incorporadas de forma
intensa e extensa, como forma de divulgação e resultados das pesquisas
realizadas nas Universidades brasileiras.
Assim, este livro que chega às mãos das leitoras e dos leitores
construiu-se com base no esforço de suas organizadoras para divulgar textos
de interesse para docentes e estudantes dos cursos de Letras e áreas afins, a
partir da reunião de especialistas capazes de nos anunciar que há sempre algo
de novo a pesquisar, estudar e descobrir em nossa área.
5
Para reunir os capítulos desta coletânea, tivemos como prioridade a
acomodação de nomes das distintas regiões do país e de variadas instituições
que se espalham neste Brasil de 8.510.000 km². A organização previu duas
divisões, estabelecidas em dois blocos, com ensaios dirigidos à análise de
produções nacionais e, na segunda categoria, estiveram elencados os textos
destinados a analisar autores estrangeiros, quer sejam pelo viés comparatista,
ou não.
O primeiro capítulo é assinado por Regina Zilberman e propõe a leitura
do romance de Luiz Ruffato Eles eram muitos cavalos, “em dois segmentos”,
que “exemplificam como opera a mimesis nesse romance”, a partir da leitura
dos capítulos 13 e 48, intitulados, “Natureza Morta” e “Minuano”,
respectivamente. Com o título A MIMESIS PÓS-MODERNA DE ELES ERAM
MUITOS CAVALOS, DE LUIZ RUFFATO, a autora desenvolve a análise dos
dois capítulos, a partir do olhar de uma criança, observadora do espaço
“profanado” da escola em comparação ao “espaço natural cultivado”. As
descrições são enriquecidas pela “enumeração rimada” para definir um espaço
desigual, empobrecido, caótico, com marcas de simplicidade, eivado pela
“plenitude do momento e da recordação”.
A narrativa de Ruffato situa-se na região Sul do país, onde é habitual a
estação do inverno com temperaturas frias, em oposição à Amazônia, ambiente
retomado por Marlí Tereza Furtado, no capítulo RETRATOS DE CIDADES
AMAZÔNICAS EM RAIMUNDO MORAIS, OSVALDO ORICO E DALCÍDIO
JURANDIR, cujo estudo apresenta as seguintes obras dos autores paraenses:
Na planície amazônica, de Raimundo Morais (1872-1941), Seiva, de Osvaldo
Orico (1900-1981) e Belém do Grão-Pará, de Dalcídio Jurandir (1909-1979). As
obras remetem “o olhar para o retrato de cidades amazônicas” na época dos
“áureos tempos da borracha”, exploradas pelo viés ficcional. Por seu turno,
Belém do Grão-Pará recria uma Belém “agônica” pela perda do poder na
produção da borracha brasileira pelo capital estrangeiro.
A paisagem do Nordeste brasileiro é recuperada no capítulo UM
BANQUETE DE CORVOS, DE RODOLFO TEÓFILO, de Atilio Bergamini, que
contextualiza o romancista cearense e as categorias da sua produção, como o
6
“absurdo, o mau gosto, o grotesco, as hipérboles”, camadas das “escritas
literária, histórica, pedagógica e científica de Teófilo”, que reproduzem “eventos
tão agudos quanto a seca política e econômica de 1877 e os sofrimentos dela
decorrentes”. O autor detalha a produção amplamente criticada do escritor
cearense na imprensa e nas edições em livros, mas, em sua defesa, afirma
que suas “imagens” eram conhecidas e familiares “para narrar os sofrimentos
dos retirantes”, o que torna viável integrá-las na produção literária de Rodolfo
Teófilo.
O estudo da Literatura abrange fontes diversificadas e múltiplas,
capazes de abarcar interpretações potentes que envolvem duas nações, como
constatamos nos capítulos, HEROÍNAS PROBLEMÁTICAS NEGRAS:
DIÁLOGOS ENTRE AS PERSONAGENS RAINHA GINGA, DE JOSÉ
EDUARDO AGUALUSA, E LUA CAMBARÁ, DE RONALDO CORREIA DE
BRITO, de Kelcilene Grácia e Enedir da Silva dos Santos, e FLORBELA
ESPANCA E ROSIDELMA FRAGA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL NA POESIA
FEMININA DE PORTUGAL E DA AMAZÔNIA, escrito por Cátia Monteiro
Wankler e Veronica Prudente Costa. Os dois ensaios englobam autorias
brasileiras e portuguesas numa apreciação comparada dessas produções em
vista das teorias que ancoram as linhas de pensamento.
No texto que aborda as obras de Agualusa e Robaldo de Brito, as
autoras observam a construção das figuras femininas, como emblemas de
resistência, “pois se trata de mulheres ousadas, que desafiaram as normativas
de suas vivências, contrapondo-se, muitas vezes com violência, aos ditames
que as orientavam”. A configuração dessas personagens ilustra “a
representação de mulheres fortes: capazes de guerrear, de lutar pelo querem e
desafiar a ordem imposta”.
De forma similar, do confronto entre a obra portuguesa e a brasileira
resulta a avaliação de Cátia Monteiro Wankler e Veronica Prudente Costa,
agora expondo duas escritoras, uma portuguesa e outra amazonense, com
objetivo de atentar “para os olhares de mulheres sobre o mundo e o meio”,
importantes argumentações, atualmente, quer seja no campo dos Estudos
Literários, como em outras áreas. Tal posicionamento reproduz a máxima do
“silenciamento da figura feminina nas literaturas, seja como personagem,
7
narradora e, sobretudo, como autora”. No que tange à reflexão em tela, a
análise dos dois volumes circunscreve o “tom confessional, no erotismo, nas
buscas por diferentes formas de vivenciar o amor, de lidar com as dores e
vazios” e proporcionam a concepção em torno da “condição feminina no campo
literário e, por meio dele”, a partir dos poemas de Florbela e Rosidelma.
Anselmo Peres Alós enfoca a Literatura Comparada sob a perspectiva
dos estudos de gênero e da teoria queer, que servem como diretriz para o
capítulo LITERATURA COMPARADA E TEORIA QUEER. Além de listar os
teóricos responsáveis pela literatura comparada, o autor recupera também
aqueles que se debruçaram pela “interface literatura e homossexualidade”.
Entre os romances em que a homossexualidade aparece explicitamente, Alós
cita Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha (1995), O cortiço, de Aluísio Azevedo,
Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, e El lugar sin límites
(1969), de José Donoso. Conforme argumenta o autor, o queer reconstitui
politicamente o perfil da resistência e o papel da subversão, sendo, sobretudo,
“uma postura epistêmica, é um espaço de articulação e de produção de
conhecimento, ou ainda, uma possibilidade de enquadramento; ele não é um
mero locus de enunciação”.
Encerrando o volume, Lenita Esteves e Cynthia Costa oferecem, no
capítulo A TRADUÇÃO LITERÁRIA E O DESAFIO DA SINTAXE COMPLEXA:
OS CASOS DE PROUST E WOOLF, uma instigante discussão sobre a
tradução de narrativas ficcionais complexas, em uma abordagem comparativa
que promove a percepção não só das diferenças entre as línguas-culturas, mas
também as entre estilos narrativos. As pesquisadoras escolhem comparar a
mais longa frase de Proust, situada no início de Sodome et Gomorrhe a duas
traduções para o português, a de Mário Quintana e a de Fernando Py. No
labirinto de frases entremeadas por tantos apostos, torna-se difícil localizar as
referências, seja no uso de pronomes ou nas concordâncias adjetivas, ou
verbais, o que exige do tradutor um contínuo esforço de compreensão e busca
por sentido. As autoras cotejam também excertos de outra narrativa complexa,
To the Lighthouse, de Virginia Woolf, às traduções para o português de Denise
Bottmann e de Paulo H. Britto e concluem que, cada um a seu modo, seguiram
as pegadas da escritora e lograram reconstruir o fluxo de consciência
8
woolfiano. Os desafios dessas traduções, assim expostos para o leitor,
contribuem para a reflexão sobre a natureza das línguas e sobre o aspecto
pessoal das escritas e das reescritas.
A coletânea que ora disponibilizamos reúne manifestações de
estudiosos brasileiros, docentes, pesquisadores, orientadores, responsáveis
pela formação de inúmeros estudantes nas universidades nacionais e
responsáveis pela especialização dos recursos humanos na área de Letras.
Convidamos à leitura e ao aprendizado!
Germana Araújo Sales
Leila Cristina de Melo Darin
9
A MIMESIS PÓS-MODERNA DE ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ
RUFFATO
Regina Zilberman
Considerações iniciais
Eles eram muitos cavalos já foi estudado sob o prisma de distintas
teorias literárias abrigadas sob o guarda-chuva da pós-modernidade. A
polifonia do discurso, valorizada por Mikhail Bakhtin desde seu livro sobre
Dostoiévski (BAKHTIN, 2002), é facilmente reconhecível, bem como o
hibridismo de linguagens, conceito igualmente posto em relevo por aquele
filósofo (BAKHTINE, 1978). Questões relativas à identidade e anonimato,
prezadas por pesquisadores como Stuart Hall (HALL, 2003), estão igualmente
aptas a serem abordadas desde o romance de Luiz Ruffato. A composição
heteróclita e centrífuga permite, por sua vez, entendê-lo desde a noção de
alegoria, exposta por Walter Benjamin em seu exame do drama barroco
alemão e da poesia de Charles Baudelaire (BENJAMIN, 1977; BENJAMIN,
1989).
Foi também Walter Benjamin que introduziu o tema do flâneur nos
estudos literários (BENJAMIN, 2007), formulação que toma configuração
particular em Eles eram muitos cavalos, protagonizado por uma personagem,
digamos, coletiva, em trânsito pela cidade de São Paulo. Como, a partir dos
variados fragmentos, atravessa a obra uma espécie de linha equatorial que
sintetiza a sociedade brasileira, pode-se pensá-la desde uma focalização
sociológica, reforçando uma tradição crítica sólida na compreensão da ficção
nacional (CANDIDO, 2010).
Ainda que carreguem o selo da pós-modernidade, critério esse de ordem
historiográfica aplicado a criações produzidas entre as últimas décadas do
século XX e o começo do século XXI, muitas dessas teses remontam a
pensadores e pesquisadores em atuação sobretudo na década de 1930, à
época da ascensão e consolidação do nazismo, na Alemanha, que obrigou
Walter Benjamin a emigrar para a França, e da implantação do stalinismo, na
União Soviética, que exilou Mikhail Bakhtin por muitos anos na Sibéria e depois
10
o manteve em Kustanai, no Cazaquistão, distante de Moscou e de Leningrado
(São Petersburgo na juventude daquele filósofo e hoje outra vez assim
denominada), as capitais intelectuais da Rússia. A década seguinte começou
com o Terceiro Reich espalhando-se a oeste, ocupando a França, e a leste,
chegando às portas de Stalingrado. Benjamin suicidou-se, quando tentava fugir
para a América, e Bakhtin manteve-se ainda mais isolado no gelado canto
soviético para onde tinha sido enviado.
A descoberta e a expansão das reflexões dos dois autores, distantes no
espaço europeu, mas aproximáveis por suas trágicas biografias, deram-se
depois dos anos 1960, quando os propósitos modernistas pareciam não mais
satisfazer os criadores, exigindo, pois, novos olhares sobre seus feitos
artísticos. Um autor profundamente comprometido com a modernidade e o
projeto da poética experimental do Surrealismo, como Walter Benjamin, passou
a intermediar a compreensão de produtos que muitas vezes rejeitavam os
pressupostos da vanguarda, em busca do estabelecimento da comunicação
com o público leitor, perdida ao longo da viagem inovadora proposta pelos
movimentos do início do século XX. Não por outra razão, o primeiro Benjamin a
ser divulgado no Ocidente foi o autor de A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1985; BENJAMIN, 2002), que sumaria
suas ideias sobre a cultura de massa e o eventual papel revolucionário que
aquela pode trazer consigo.1
Na esteira dessa descoberta, outras revelações intelectuais
aconteceram, e esses autores – Bakhtin e Benjamin – juntos ou separados
fomentaram investigações que privilegiaram os tópicos com que o romance
Eles eram muitos cavalos foi examinado: a polifonia, o hibridismo, o dialogismo,
a alegoria, o trânsito do flâneur, a representação da vida urbana, a sociedade.
Outro autor dos anos 1930 pode ser relembrado: Erich Auerbach,
também ele judeu, como Benjamin, também ele um exilado, como Bakhtin.
Procurando escapar à sanha antissemita do nazismo, aceitou lecionar na
1
Em 1968, foi publicada a primeira tradução brasileira de A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica, realizada por Carlos Nelson Coutinho e publicada na Revista
Civilização Brasileira em 1968 (BENJAMIN, 1968). Essa tradução foi divulgada em livro por
Luiz Costa Lima em 1969 (LIMA, s. d.).
11
Universidade de Istambul a partir de 1936, onde permaneceu até 1947, quando
se transferiu para os Estados Unidos. Nesse período, ele redigiu seu livro mais
conhecido, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental,
publicado em 1946, escrito, porém, no começo dos anos 1940.
Tomando como ponto de partida o conceito de mimesis, entendido como
representação na maioria das traduções da palavra alemã Darstellung, ou
como apresentação ou exposição, em outras versões, Auerbach atravessa a
tradição literária do Ocidente, começando com Homero e os textos sagrados
das Bíblias hebraica e cristã, e estendendo-se até Virginia Woolf, nas primeiras
décadas do século XX, com o fito de identificar como o mundo concreto se
mostra nos textos daqueles autores. Trata-se, como se verifica, de uma
proposta de narrar a história da literatura ocidental desde o prisma da literatura
comparada, tomando como pressuposto um conceito teórico, para chegar à
discussão da consecução, ou não, de uma poética realista nas obras
examinadas.
Mimesis é, como se sabe, uma noção formulada originalmente pelos
filósofos que atuaram em Atenas a partir do século V a. C. Assume relevância
no pensamento de Platão, que reconhece sua existência, mas rejeita seu valor
especialmente na República, e ocupa posição central na Poética, de
Aristóteles, reflexões, as duas, datadas do século IV a. C. De lá para cá, a
mimesis passou por altos e baixos, valorizada, por exemplo, nos projetos de
vários ficcionistas do século XIX, depreciada, época provavelmente de sua
rejeição mais saliente, quando os modernistas estavam na liderança das
manifestações artísticas de ponta.
Assim, ainda que a obra de Auerbach, tão logo publicada na Alemanha
em 1946 e traduzida para o inglês em 1953, tivesse se convertido em
respeitadíssimo manual dos estudos literários, aparentemente ela continha um
elemento anti-modernista, talvez até passadista, ao colocar em primeiro plano
um conceito que remonta aos helênicos da Antiguidade e foi matéria normativa
dos classicismos que ocuparam a mente dos mestres de Poética e de Retórica,
e o coração dos artistas desde a Renascença até o século XIX. Por isso, nem
sempre os pesquisadores envolvidos com práticas próprias ao Pós-
modernismo recorrem aos conceitos formulados por Auerbach – o de mimesis,
12
já mencionado, ao lado das noções de figura e de alegoria – em sua obra e
também em outros estudos, como Figura (AUERBACH, 1997) ou no renomado
ensaio “La cour et la ville” (AUERBACH, 2007). Mas talvez ele se mostre tão
apropriado quanto os demais para descrever o projeto estético e estilístico de
Luiz Ruffato, em Eles eram muitos cavalos.
Mimesis: representação e estilo
Mimesis é o conceito que, para Aristóteles, define a natureza da poesia,
termo mencionado no segundo parágrafo de sua Poética e traduzido por
imitação, reprodução ou representação, sendo esse o vocábulo considerado
mais adequado, conforme sugerem os responsáveis pela edição francesa
daquela obra (ARISTOTE, 1980). Auerbach apropria-se da palavra
(AUERBACH, 1994), mas não se preocupa em prestar contas do fato de ela
remontar aos helênicos; também não discute seu significado em uma língua
atual, bastando-lhe empregá-la no sentido do subtítulo de seu livro:
Darstellung.
O vocábulo alemão também não é facilmente traduzível, pois pode
significar exposição, apresentação, representação e até reprodução. Mas, ao
proceder às suas análises, parece-se esclarecer o que o autor pretende: ele
busca verificar como o mundo social e histórico se inscreve nos textos
literários; mas não apenas isso: importa-lhe igualmente identificar o estilo em
que se dá a apresentação. Logo, trata-se de salientar, de uma parte, o quê; de
outra, de que modo e com que expressões linguísticas. Para Auerbach, é muito
importante saber se a linguagem verbal transita em estilo sublime ou humilde,
categorias que presidiram a Retórica ao longo de sua história e pressionaram a
escrita de um autor, adotasse ele os gêneros elevados – como a epopeia ou a
tragédia – ou baixos, como a comédia ou a crônica de costumes.
Para Auerbach, o estilo adotado é tão ou mais importante que o objeto
da representação, pois esse pode ser idêntico, mas terá significado distinto, se
exposto por meio de processos linguísticos diversos. A premissa já está contida
na Poética, quando Aristóteles distingue os modos e os objetos de
13
representação, mas Auerbach associa os modos aos tipos de tropos e aos
níveis linguísticos (os meios, na terminologia aristotélica), aprofundando e
particularizando a questão, pois ao estilo – elevado ou baixo – relaciona-se a
maior ou menos humanidade do herói ou do tema. Seu método de trabalho
resulta dessa proposição, que lhe permite examinar uma obra a partir de
segmentos específicos, na hipótese de que eles sintetizam o todo. Portanto, a
uma abordagem da obra integral, Auerbach prefere isolar partes consideradas
suficientemente emblemáticas do conjunto. Essas partes, reproduzidas na
abertura de cada capítulo de seu livro, deflagram o exame, que, ao final, deve
concluir por uma definição do tipo de representação encontrável no texto
literário a que pertence.
Eles eram muitos cavalos em dois segmentos
Dois trechos extraídos de Eles eram muitos cavalos exemplificam como
opera a mimesis nesse romance:
13. NATUREZA-MORTA
A tia girou a chave, empurrou a porta, Ê!, algo a emperrava, estranhou. O
corpo no ombro direito, a custo cedeu, pororoca estraçalhando, arrastando, O
quê? Em algazarra, as crianças, às suas costas, espiavam-na, assustadiças,
curiosas. Pela fresta, antecipou-se a manhã frágil iluminando o quadro de
avisos – feltro verde colado sobre uma placa de cortiça – agora ponte em
diagonal ligando o rodapé à maçaneta, garatujas e desenhos ainda assentados
com tachinhas.
No corredor, onde desaguavam as três salas de aula, gizes esmigalhados,
rastros de cola-colorida, massinhas-de-modelar esmagadas, folhas de papel-
sulfite estragadas, uma lousa no chão vomitada, trabalhinhos rasgados, pincéis
embebidos em fezes que riscaram abstrações nas paredes brancas, pichações
ininteligíveis, uma garrafa de Coca-Cola cheia de mijo, um cachimbo
improvisado de crack – a capa de uma caneta Bic espetada lateralmente num
frasco de Yakult. Ao fundo, a fechadura arrombada, cacos de vidro do
basculhante, do barro do filtro-d’água, marcas de chutes nas laterais do fogão,
14
panelas e talheres amassados. Em correria, gritos atravessam as telhas
francesas, olhos mendigam explicações.
Puxada, empurrada, vozes choramingas, “A hortinha, a hortinha...”, conduziram
a tia ao quintal: à sua frente, fuçadas as leiras, legumes e verduras repisadas,
arrancadas, enterradas, brotos de cenouras, beterrabas, alfaces, couves,
tomates, tanto carinho desperdiçado, nunca mais vingariam, as crianças
caminhando, com cuidado, por entre os pequenos cadáveres verdes, olhos
baços, e ela, até onde a vista alcança, observa as escandalosas casas de
tijolos à mostra, esqueletos de colunas, lajes por acabar, pipas singrando o céu
cinza, fedor de esgoto, um comichão na pálpebra superior esquerda e a solidão
e o desespero. (RUFFATO, 2013, p, 28-29. Grifos do A.)
48. MINUANO
a menina pisou com cuidado a sandália-de-couro novinha no chão de orvalho
congelado os pés enrodilhados por meias cinza esburacadas o embornal cheio
de cadernos as letras caprichadíssimas a professora uma italianona
abrutalhada mas muito boa ela sempre passava a mão na cabeça da menina e
pulou para dentro da carroça tracionada por um pequeno e barulhento trator
que levava a gurizada para a escola rural ia todo mundo chacoalhando tiritando
de frio pulando que nem cabrito sempre rindo sempre rindo era junho e as
manhãs azulíssimas e a menina orgulhosa de suas tranças negras exibia seus
olhos também azulíssimos pelos campos de soja e era feliz porque seu pai
estava na roça com seus dois irmãos mais velhos a safra deste ano ia ser boa
ele dizia à noite quando se reuniam na cozinha em torno do fogão-a-lenha e da
água para o chimarrão zunindo na chaleira e a irmã bebezinha estava
crescendo logo logo ia poder correr pelo quintal a sua algazarra e seria ouvida
lá longe onde três pontos minúsculos eram seu pai e seus irmãos os chapéus
em cima da cabeça e sua mãe na cozinha preparava o almoço polenta com
galinha no molho e ela balançando de um lado para o outro sobre a carroça
desfilava radiante seus olhos azulíssimos pela verde extensão das coxilhas e
era plena em sua felicidade a felicidade que temos aos sete anos e que ela
agora com o som do microssystem ligado no último volume no décimo terceiro
andar de um edifício em cerqueira césar jogada no chão quase bêbada
desesperadamente reconhece mas meu deus como deixara escapar aquela
15
felicidade em que momento da vida ela tinha se esfarelado em suas mãos em
que lugar fora esquecida quando meu deus quando (RUFFATO, 2013, p. 89-
90).
“Natureza morta” corresponde ao capítulo ou segmento 13, e “Minuano”,
ao 48. Estão distantes um do outro, mas não foram escolhidos aleatoriamente.
Aproxima-os o olhar com que os fatos são observados, procedentes de uma
criança que está ou passa pela escola. No primeiro trecho, o sujeito da primeira
oração, a tia, substantivo empregado pelas crianças para designar sua
professora, sugere não apenas a perspectiva infantil, mas também a situação
escolar. Na continuidade do primeiro parágrafo, confirma-se a sugestão, pois
são mostrados elementos característicos do ambiente da sala de aula: “quadro
de avisos”, “feltro verde colado sobre uma placa de cortiça”, “garatujas e
desenhos ainda assentados com tachinhas”.
O segundo parágrafo amplia a descrição do espaço escolar, humilde,
pois é composto por três salas de aula e um corredor. Mas o objetivo do trecho
é destacar o desconcerto do ambiente, com “gizes esmigalhados”, “massinhas
de modelar estragadas”, “folhas de papel-sulfite estragadas”, a lousa
“vomitadas”, os “trabalhinhos rasgados”. A enumeração se organiza desde o
par “substantivo + particípio passado”, podendo traduzir-se por versos rimados,
cuja metrificação alterna linhas de seis e cinco sílabas:
gi/zes/ es/mi/ga/lha/dos – seis sílabas
co/la/-co/lo/ri/da – cinco sílabas
mas/si/nhas/ es/ma/ga/das – seis sílabas
fo/lhas/ es/tra/ga/das – cinco sílabas
lou/sa/ vo/mi/ta/da – cinco sílabas
tra/ba/lhi/nhos/ ras/ga/dos – seis sílabas
pin/céis/ em/be/bi/dos – cinco síbalas
A descrição da destruição do ambiente se intensifica a partir do
momento em que se introduzem ações humanas degradantes, como o vômito,
16
as fezes que embebem os pincéis ou a urina despejada em uma garrafa de
Coca-Cola. Completa o quadro a exposição do cachimbo improvisado de crack,
formado talvez por resíduos do espaço escolar, como a tampa da caneta Bic.
Se a composição do cachimbo é exposta de modo detalhado, resultante da
capa de caneta “espetada lateralmente num frasco de Yakult”, a apresentação
dos demais elementos do cenário privilegia objetos e atos isolados –
“fechadura arrombada”, “cacos de vidro do basculhante, do barro do filtro-
d’água”, “marcas de chutes”, “panelas e talheres amassados” – de que resulta
uma imagem fragmentada e caótica e, por isso, ainda mais desoladora. A
construção metonímica agudiza-se, ao concluir o parágrafo com as reações
das crianças – os “gritos” que “atravessam as telhas francesas”, os “olhos” que
“mendigam explicações”. No parágrafo seguinte, a metonímia abre o primeiro
período: “vozes choramingas [...] conduziram a tia ao quintal.”
À profanação do espaço físico edificado pelo ser humano e que
representa a civilização e a cultura, segue-se a exibição do espaço natural
cultivado – a “hortinha”, com “legumes e verduras repisadas, arrancadas,
enterradas”. Mais uma vez, o narrador vale-se da enumeração rimada, com o
fito de estabelecer um ritmo no processo de aniquilação do universo produzido
pelas crianças, já que “brotos de cenouras, beterrabas, alfaces, couves,
tomates, tanto carinho desperdiçado, nunca mais vingariam”. A morte instala-se
plenamente, personificada primeiramente pelos “pequenos cadáveres verdes”,
depois por seu prolongamento para além do mundo danificado pela ação
predatória do crack. É quando a professora ergue os olhos e observa os
prédios que cercam a escola: as “escandalosas casas de tijolos à mostra”, os
“esqueletos de colunas”, as “lajes por acabar”. O que parecia internalizado na
escola desmantelada pelo(s) invasor(es) drogado(s), é agora externalizado
pelo contexto circundante, representado, de novo graças à metonímia, pelo
“céu cinza” ou o “fedor do esgoto”, determinando a “solidão e o desespero” de
quem entende a relação entre as duas partes.
A “Natureza-morta” do título, alusiva a um gênero consagrado das Artes
Plásticas, expressa, pois, a extinção da vida literal e simbolicamente. Nada
resiste ao pendor à aniquilação na cidade moderna, que transforma o espaço
em ruína, mesmo quando se luta pela preservação, atitude traduzida no
17
segmento 13 pelo esforço inocente e bem-intencionado das crianças e da
professora. Assim, o texto transcrito alcança transcender o caráter episódico do
evento e apresentar-se como interpretação da realidade – ou de uma fração
dela – socioeconômica contemporânea brasileira. Mas essa interpretação não
provém do comentário do narrador, e sim por meio da incorporação da visão
das crianças, traduzida, de uma parte, pelo inventário enumerativo-rimado da
destruição, de outra, pelo emprego de vocabulário próprio à relação entre
professor e aluno nas séries iniciais – a docente chamada de tia – e do uso de
diminutivos, como em “massinhas”, “trabalhinhos” ou “hortinha”. O diminutivo,
nesse caso, não pueriliza a fala dos meninos e meninas, mas acentua o
contraste com a dimensão do desastre ocorrido e as potencialidades de
entendimento dos pequenos estudantes.
O segundo fragmento compartilha com o primeiro a reprodução do
ambiente escolar, quando são mencionados “o embornal cheio de cadernos as
letras caprichadíssimas” e a professora, “uma italianona abrutalhada mas muito
boa” que “sempre passava a mão na cabeça da menina”. Mas, ao contrário do
capítulo anteriormente reproduzido, a paisagem é outra, transcorrendo a ação
no campo, distante da metrópole moderna.
Várias marcas do cenário acentuam a diferença e a distância: a escola é
“rural”, e a “gurizada” chega lá, transportada por uma “carroça tracionada por
um pequeno e barulhento trator”. A sugestão de que a menina, sujeito do longo
e único período que compõe o trecho, seja pobre e humilde não provém
apenas da indicação do tipo de escola frequentada, mas decorre também da
menção às “meias cinza esburacadas”.
O lugar onde vive a personagem situa-se no Sul do país, onde os meses
de junho são frios, há coxilhas e campos de soja, consome-se chimarrão e
emprega-se com frequência o termo “gurizada”. Há indicações de que as
personagens descendem de imigrantes italianos, ou ao menos europeus, em
virtude, de um lado, da menção à professora, de outro, da referência ao
“almoço polenta com galinha no molho”. Tal como no pequeno universo da
escola onde se passa o segmento “Natureza-morta” (antes de sua invasão e
aviltamento), o ambiente é idílico, pois a situação “era plena em sua felicidade”.
18
A repetição da palavra “felicidade”, explicitando que é aquela que “temos
aos sete anos”, não apenas acentua a plenitude do momento e da recordação,
mas também destaca a quebra da narração, pois, às marcas de simplicidade e
de algum primitivismo (relativas à “carroça” ou ao “fogão-a-lenha”, por
exemplo), contrapõe-se o que vem logo depois: o “som do microssystem” e o
edifício em Cerqueira César que tem, pelo menos, treze andares. Tal como a
felicidade, “esfarela-se” o discurso, pois as repetições de palavras intensificam-
se, e o período fica inacabado, encerrando-se pela conjunção “quando”, a que
não se segue outra oração, nem ao menos um sinal de pontuação. O caráter
incompleto da manifestação evidencia, desde o ponto de vista estilístico, não
apenas o desespero e a saudade da figura feminina – a menina, agora mulher
– mas também seu estado de alcoolismo.
O trecho emprega a terceira pessoa do singular, tal como no segmento
primeiramente analisado, e, como nesse caso, vale-se de um título vinculado a
um fenômeno da natureza – “Minuano”, o nome que toma o vento que,
proveniente dos Andes nos meses de inverno, alcança uma parte do território
nacional. Esse vento é congelante, mas representa, também ele, o espaço
geográfico sulino. Assim, antecipa-se o lugar da ação, antes mesmo de o
trecho aludir aos elementos da paisagem da parte mais meridional do Brasil.
Porém, o local da cena não é o Sul, e sim um bairro paulista tido como “nobre”,
pois situado em zona habitada por pessoas endinheiradas. A região
denominada Cerqueira César desenvolveu-se em uma parte elevada da cidade
de São Paulo, e as circunstâncias de a “menina”, agora “mulher”, habitar o
décimo-terceiro andar de um prédio ali localizado e contar com equipamentos
eletrônicos modernos e caros (sumariados no “microssystem”) sugerem sua
pertença à alta burguesia ou, ao menos, a circulação entre aquela camada
social.
O trecho estrutura-se originalmente a partir de um contraste geográfico:
campo/cidade, Sul/Sudeste. Essa oposição sugere primeiramente o
deslocamento da menina, que deixa o meio rural e transfere-se para a cidade,
abandona o Sul e marcha para a principal metrópole da região financeiramente
mais progressista do país, o Sudeste. Trata-se, nesse caso, também de uma
alteração econômica e de uma provável elevação social. Seja a protagonista
19
quem for, ela, por alguma razão e em certo período de sua vida, na infância,
juventude ou maturidade, mudou de classe social, o que ocasionou, por tabela,
a perda do paraíso original em que vivia com a família. Agora com mais idade,
mostra-se, no contexto do segmento transcrito, só, sem os parentes (pais e
irmãos) e sem os companheiros de escola. Há, é claro, a idealização do
passado, pois a pobreza, a simplicidade e a pouca tecnologia de que o grupo
dispõe (exemplificada, por exemplo, pelo “fogão-a-lenha”) não impediram que
ela fosse feliz aos sete anos. Porém, o problema não se situa nessa visão
idílica, e sim na condição presente da personagem.
É importante destacar que essa personagem é uma mulher – a menina,
no começo do longo período que forma o segmento, depois apenas “ela”, um
pronome pessoal anônimo. A narrativa em terceira pessoa deveria supor a
nomeação da protagonista, mas seu anonimato é fundamental, para sublinhar
a anulação do eu, que não é mais sujeito da oração, nem uma identidade. Aos
tempos da vida na fazenda, mesmo com o Minuano esfriando a temperatura
das “manhãs azulíssimas”, ela era alguém: uma das filhas, ao lado da “irmã
bebezinha”, a aluna valorizada pela professora, parte da “gurizada [que se
dirigia] para a escola rural”; era mesmo parte da paisagem, cuja cor reproduz
em seus olhos, também “azulíssimos”. No presente de sua vida paulista, ela
perdeu esses atributos, o que a aniquila enquanto ser humano.
A anulação da identidade e a perda do espaço ideal aproximam,
tematicamente, os dois textos. Lidando com o mundo infantil, confinado na
escola, mas ainda assim valorizado por seus frequentadores, o narrador vai em
busca das marcas linguísticas que assinalam seu estilo para concretizar o
objetivo de tornar verossímil, logo, mimético, o ambiente apresentado. Expondo
por outro ângulo o desaparecimento daquele universo, desde a perspectiva de
um indivíduo adulto, o narrador destaca, também pelo estilo, as
particularidades de cada um dos espaços experimentados pela protagonista,
para dar conta de seus contrastes.
Em “Natureza-morta”, predomina o foco coletivo, em “Minuano”, o
individual. Nos dois casos, os resultados se aproximam: o antes – o passado
próximo ou distante – era, de algum modo, melhor. O duro é suportar o
presente e a atualidade, nas distintas situações em que ele pode se deixar
20
representar. Como falta a dimensão globalizante da compreensão por parte
dos protagonistas de cada capítulo, o romance Eles eram muitos cavalos opta
pelo formato fragmentado do mosaico. Contudo, cada mônada que o compõe
sintetiza o real enquanto um todo, dotado de um significado, capacitando-a a
dar vazão à mimesis, ainda que no contexto da pós-modernidade em que o
romance foi escrito.
Consideração final
Ao identificar o procedimento mimético da literatura ocidental, em busca
do realismo da representação, Erich Auerbach destaca, ao final de “Fortunada”,
o segundo capítulo do livro, o episódio em que o apóstolo Pedro, no Evangelho
segundo São Marcos, nega conhecer Jesus. Arthur Krystal, em resenha sobre
a gênese de Mimesis, comenta as conclusões que o pensador alemão extrai do
trecho examinado:
Auerbach encontra algo que nem os poetas, nem os
historiadores da Antiguidade alcançaram retratar: o nascimento
de um movimento espiritual na profundidade do povo comum,
desde os eventos cotidianos da vida contemporânea, que
assume assim uma importância ainda não alcançada na
literatura antiga... Uma cena como a negação de Pedro não se
adequa a nenhum gênero clássico. É muito sério para a
comédia, muito contemporâneo e cotidiano para a tragédia,
politicamente muito insignificante para a história.
(Krystal, Arthur.
http://www.newyorker.com/magazine/2013/12/09/the-book-of-
books.)
O realismo nasce da conciliação entre a seriedade da cena, como é
próprio aos gêneros nobres (epopeia, tragédia e história), e a
contemporaneidade da ação, que a coloca ao nível do leitor comum. Esse
constitui o princípio de construção da poética realista, que alcança seus pontos
altos, por exemplo, nos romances respectivamente de Honoré de Balzac,
Stendhal e Gustave Flaubert, mas nem sempre é bem-sucedida, como
apontam várias passagens da pesquisa de Erich Auerbach. Certamente, um
21
desses pontos altos corresponde, na literatura brasileira, ao livro de Luiz
Ruffato, como parecem indicar as passagens consideradas representativas de
seu Eles eram muitos cavalos.
Referências
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Lallot. Paris, Seuil, 1980.
AUERBACH, Erich. Figura. Trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 1997.
AUERBACH, Erich. La cour et la ville. In: ___. Ensaios de literatura ocidental.
Filologia e crítica. Org. Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr. Trad. Samuel Titan
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AUERBACH, Erich. Mímesis: a representação da realidade na literatura
ocidental. Trad. Suzi Frankl Sperber. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1994.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra.
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Primeira versão. In: ___. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre
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BENJAMIN, Walter. The Work of Art in the Age of Its Technological
Reproductibility. Second Version. In: ___. Select Writings. Ed. por Michael W.
Jennings e Howard Eiland. Trad. Edmund Jephcott, Howard Eiland e outros.
Cambridge, Mass; Londres: The Bellknap Press of Harvard University Press,
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BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Trad.
de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
22
BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização de Willi Bolle. Trad. Irene Aron.
Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2007.
BENJAMIN, Walter. The Origin of German Tragic Drama. Trad. John Osborne.
London: NLB, 1977.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2010.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da
Silva e Guacira Lopes Louro. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.
KRYSTAL, Arthur. The Book of Books. Erich Auerbach and the making of
“Mimesis”. http://www.newyorker.com/magazine/2013/12/09/the-book-of-books.
Acesso em: 25 fev. 2016.
LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Saga, s. d.
RUFFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. 11. edição, revista, definitiva. São
Paulo: Companhia das Letras, 2013.
23
RETRATOS DE CIDADES AMAZÔNICAS EM RAIMUNDO MORAIS,
OSVALDO ORICO E DALCÍDIO JURANDIR2.
Marlí Tereza Furtado (UFPA)
O enfoque do olhar sobre a Amazônia, sobretudo do estrangeiro-europeu,
na medida em que os tempos avançaram após as fases iniciais de contato,
recai, infalivelmente, sobre as cidades locais. E os viajantes do século XIX,
sejam eles cientistas ou aventureiros, não se isentam de as descrever em seus
relatos “interpretativos” sobre a(s) região(ões) visitada(s).
Ricardo Ossame (2007) segue quatro obras desses viajantes, “dois deles
ligados à formação acadêmica (Bates e Wallace) e dois “aventureiros”, (...) que
partiram para a Amazônia, não em razão de uma pesquisa requisitada por uma
instituição ou pelo Estado europeu” (OSSAME, 2007, p. 115)3. O autor mapeia
os caminhos traçados por esses viajantes e soma sessenta e oito cidades
visitadas por eles, ressaltando que as que mais “se destacaram foram as
capitais de província como Manaus e Belém ou as portuárias como Santarém e
Cametá” (OSSAME, 2007, p. 117).
No século XX, uma elite intelectual brasileira, formada por “estrangeiros-
nacionais”, bem como por autores locais, se debruça em retratos amazônicos e
as cidades fazem parte desse olhar, agora já marcado mais pela sede literária
que pelo tão objetivo registro documental.
Trago, neste estudo, três autores paraenses: Raimundo Morais (1872-
1941), Osvaldo Orico (1900-1981) e Dalcídio Jurandir (1909-1979). E,
respectivamente, uma de suas obras para uma interpretação comparativa, Na
planície amazônica, Seiva e Belém do Grão-Pará, sendo interessante o desvio
de rota da capital Belém, na obra citada de Raimundo Morais.
2
Este trabalho foi parcialmente publicado como resumo expandido, com o título: Porto Velho,
Belém, Manaus, cidades amazônicas. Do faroeste a torres de Babel. Do auge da belle époque
às fantasmagorias da borracha, em Caderno de resumos Joeel. Anais...Uberaba (MG) UFTM,
2021. Disponível em: <https//www.even3.com.br/anais/joeel2021/412490.
3
São as obras Viagem pelo rio Amazonas, de Paul Marcoy, Viagens pelos rios Amazonas e
Negro, de Alfred Russel Wallace, Um naturalista do rio Amazonas, de Henri Walter Bates e No
rio Amazonas, de Robert Avé-Lallemant.
24
Em 1925, Raimundo Morais publicou o livro Na planície amazônica, no
qual, em um dos textos, retrata Porto Velho (RO) como uma cidade “à Far
West” e uma Babel, tal o afluxo de diferentes nacionalidades que congregava,
no auge da economia da borracha. Nos romances das décadas seguintes, que
focalizaram a economia gomífera em seus enredos, as cidades de Manaus e
Belém aparecem como centros modernos, com ressonâncias europeias,
sobretudo de Paris. Poucos autores, porém, as retrataram, após o período
áureo dessa economia, quando aparecem como fantasmagorias daquela fase
esfuziante, caso de Belém do Grão-Pará, de Dalcídio Jurandir.
Ao ler o livro Na planície amazônica, de Raimundo Morais, reconhecem-
se nele traços de um modelo narrativo que focalizava a Amazônia, na época, e
que denomino de livro-catálogo, aquele que apresentava a região, mais no
nível etnográfico do que literário, cujos representantes encontram-se no
decorrer das duas primeiras décadas do século XX, seguindo tortuosamente,
às vezes, os passos de Euclides da Cunha (1899-1909).
O livro de Morais, no entanto, revela-se um diferencial entre aqueles, pois,
mesmo que o caráter informativo já se apresente em seu sumário, pelas
referências implícitas nos títulos, e não haja tentativa de efabulação para a
criação contística ou romanesca, seus textos prendem o leitor por sua
linguagem, a qual foi bem avaliada por Leandro Tocantins: “uma prosa
agradável, de lampejos literários, sem os preciosismos provincianos, ou o
linguajar propositadamente exagerado para caracterizar a região”
(TOCANTINS, 2000, p. XXI). Seguramente, essa foi a principal razão do
sucesso da obra, premiada pela Academia Brasileira de Letras, em terceira
edição já no ano de 1926 e adotada nas escolas do Amazonas e do Pará.
Entre o que me chamou a atenção está o título: Uma cidade à Far-West,
aproximação que o autor faz da cidade de Porto Velho, na época dourada da
economia da borracha, à expansão para o oeste americano, tão propalada pelo
cinema. Interessante que o narrador inicia o texto contextualizando a produção
cinematográfica americana nas representações do adentrar o “sertão do seu
país” (MORAIS, 2000, p. 125). Em seguida, traceja o seguinte quadro:
25
Quem pisa pela primeira vez Porto Velho tem a sensação de
estar pisando uma dessas cidades cinematográficas,
construídas, armadas e povoadas por todos os materiais e por
todas as gentes no far-west da grande República do pavilhão
estrelado. É a memória fiel que constata semelhante
identidade. As casas de madeira, aqui, cobertas de zinco, de
palha, de telhas de barro, teladas ao redor, como grandes
gaiolas, ao lado de edifícios de pedra e cal, de choupanas; a
agitação febril da população heterogênea, que formiga de sol a
sol; e a fisionomia predominante e quase coletiva do peão, que
parece ter chegado e já parece pronto a partir, além de outras
características, denunciam a urbe das mágicas, alevantada ao
toque das fadas tutelares. (MORAIS, 2000, p. 125).
Azáfama e heterogeneidade são traços que saltam dessa descrição que
nos levaria, também, a outras associações naturais com as cidades do faroeste
americano, como a violência imposta dessa massa heterogênea aos naturais
da terra, fato não ignorado pelo narrador que seguirá apontando o que se
apresenta como novo sobreposto ao que foi abafado. Então elenca os traços
distintivos da modernidade daquele município: a estrada de ferro que dali partia
para o Madeira, extensa 366 quilômetros; o salão elegante do Clube
Internacional em que o som do one-step e do Foxtrot extinguiu o monótono
batuque do aborígene; a água encanada; a luz elétrica; os dois jornais, o Alto
Madeira e A gazeta. Esses elementos reunidos “dão ideia segura de que a
civilização, em múltiplos detalhes, invade, conquista, domina a barbaria”
(MORAIS, 2000, p. 126). E o narrador se trai ao usar o termo “barbaria” para
retratar a sociedade originária local.
No entanto, ele afirma que a cidade não tem indústria ou usina, deixando
implícito que esses meios de produção potencializariam o progresso e um
modelo civilizatório para a região, dado recorrentemente apregoado pelos
autores que provinham do complexo positivista daqueles últimos quarenta anos
e da passagem da belle époque.
Essa, que a princípio poderia ser interpretada como uma cidade-mosaico,
tal a descontinuidade de linhas, acaba por ser denominada pelo narrador como
uma Babel, após o retrato insistente da diversificação lá existente. Observe-se:
Se o Amazonas, na sua própria capital, é um ninho de
forasteiros de outros estados, Porto Velho, na sua cidade, é um
pandemônio de muitas nacionalidades, verdadeira Torre de
Babel, na qual o grego conversa com o japonês, o americano
26
com o zíngaro, o boliviano com o argentino, o inglês com o
búlgaro. (MORAIS, 2000, p. 127).
Como Babel, Porto Velho é marcada pelo multifário que mata os traços
que lhe poderiam desenhar uma identidade única, identidade menosprezada
porque bárbara e primitiva. O narrador termina o texto demonstrando o
irreversível da situação:
O piano do Café Central, tocado com a fúria wagneriana desse
filho do Peru, anda derrubando, como as trombetas de Jericó, a
taba indígena dos arredores; e a locomotiva madeira-Mamoré,
silvando estridentemente rio acima, sob o olho discreto e frio de
John Bull, abafou quase por completo o ritmo do remar
cadenciado do único transporte de outrora. (MORAIS, 2000, p.
130).
O surpreendente retrato de Morais nos revela sua atualização como
homem de letras que se propôs a interpretar a Amazônia em linguagem
atualizada, sem recorrer a gestos grandiloquentes, trazendo a carga de leitura
comum para muitos autores da época, mas também o que se apresentava
como novo e moderno: o cinema, seu elemento de diálogo. Por outro lado, o
espaço narrado revela a imposição cultural via abafamento da local: o Café
Central se sobrepõe à taba indígena; o piano abafa-lhe os sons e o estrídulo
barulho do trem de ferro suplanta o ritmo dos transportes locais. Tudo isso
supervisionado pelo olhar de lince de John Bull, signo pulsante da população
inglesa, o capital estrangeiro na Amazônia.
Na continuidade de sua produção, Morais publicou vários livros, entre eles
três romances (Os Igaraúnas, O mirante do baixo Amazonas e Ressuscitados),
nos quais revelou o adensamento de sua atualidade e tentativa de inovação
literária, assunto para um merecido aporte em outro momento.
Neste texto, direciono o olhar para o retrato de cidades amazônicas
elaborado por outros autores na sequência temporal a Morais. Cabe dizer que
os anos de 1930 foram marcados por muitas obras que firmaram uma prosa de
ficção, em língua portuguesa, no retrato da Amazônia. Apareceram obras
inovadoras como Terra de Icamiaba (1931), de Abguar Bastos, ou de tessitura
bem articulada, como A selva (1930), do português Ferreira de Castro,
paradigma para muitos autores brasileiros tocados pelo tema dos seringais.
27
Destaco o livro Seiva, de Osvaldo Orico, publicado em 1937, e no qual
temos ressonâncias dos dois romances citados no parágrafo anterior. Chama a
atenção, na obra, logo em seu primeiro capítulo, o retrato da cidade de Belém
contrariando a visão primitiva e exótica da personagem miss Ellen Gray, filha
do chefe da missão comercial americana do Tapajós, em sua chegada à
cidade, provinda de Nova York.
Habituara-se a criar na mente uma topografia exótica,
misteriosa e indescritível da região a que se transportara, e
encontrava, em vez disso, uma cidade parecida com as outras,
com a reta cimentada de seu cais em comercio com paquetes
de todas as procedências; e, mais ao longe, elevando-se sobre
a fila de armazéns de zinco cinza, cúpulas e coruchéus de
mercados e igrejas, cumieiras e cornijas de edifícios públicos,
um quadro que nunca supusera deparar, embebida na miragem
das descritivas que lhe haviam feito. (ORICO, 1937, p. 10).
Quem lhe havia feito as descritivas, o narrador esclarece mais tarde,
foram os livros dos exploradores e cientistas, os quais, ironiza o narrador,
pormenorizavam fatos e contavam coisas só possíveis num milagre de
imaginação.
Miss Ellen encontra uma cidade em movimento, com bondes, com
tabuletas luminosas, automóveis que voavam de capotas arriadas, com um
conjunto de praças e parques lindamente armados, enfim o narrador afirma.
Foi apeada de sua visão selvática, esmorecida ante o
espetáculo de uma cidade com todas as características
de vida fácil e comum, que miss Ellen saltou num dos
armazéns do cais do porto, pisando Belém do Pará como
pisaria tranquilamente em qualquer das cidades de sua
pátria, sem que a espreitassem onças e cobras, nem
mesmo os lagartos, cuja pele tanta graça dava aos seus
calçados. (ORICO, 1937, p. 11).
A visão ultra pitoresca da personagem é amarrada com um tom irônico
do narrador ao associar a pele dos lagartos com os sapatos de Miss Ellen,
como se essa fosse razão para uma certa intimidade entre ela e o que poderia
encontrar de selvageria na cidade em que atracava pela primeira vez.
28
Essa Belém outra, moderna e esfuziante, será apresentada sempre que
o retrato dos áureos tempos da borracha for trabalhado ficcionalmente. O
mesmo acontecerá com Manaus, posto que as duas cidades eram os grandes
polos comerciais da Amazônia brasileira e centro das casas aviárias da
borracha. Tocadas pelo frisson do chamado progresso, ambas as cidades
seguiam Paris como modelo; não à toa, Belém tinha uma casa de modas
chamada Paris na América e ainda tem como rua importante o Boulevard
Castilho França.
O enredo de Seiva não fugiu de certos jargões da época, razão pela qual
não vou me deter mais no romance e passo ao retrato de Belém elaborado por
Dalcídio Jurandir (1909/1979), autor marajoara, que publicou, entre 1941 e
1978 um conjunto de dez romances denominado ciclo do Extremo Norte, todos
localizados na Amazônia4.
O quarto romance da série, Belém do Grão-Pará, de 1960, ganhador de
dois prêmios (o Paula Britto, da Biblioteca do Estado da Guanabara, e o Luísa
Cláudio de Souza, do Pen Clube do Brasil), traz a personagem central do ciclo,
o menino Alfredo, realizando seu grande sonho de estudar em Belém, provindo
de Cachoeira do Arari, na ilha do Marajó.
Belém, entretanto, não é mais a cidade luminosa e viva dos sonhos da
personagem e da imagem que lhe passavam na vila de Cachoeira, pois a
produção da borracha brasileira foi suplantada e superada pela da Ásia,
derrocando a região que caiu agônica ao choque com o poder do capital
estrangeiro.
O título do livro já indica a protagonização da cidade em seu enredo,
dividindo, assim, a atuação com Alfredo, que a deslinda e a desnuda como um
amante, mas na Belém fantasmagórica pós borracha, como um arqueólogo, ele
procura a cidade perdida. Empresto aqui a imagem trazida por Renato Cordeiro
Gomes, em Todas as cidades, a cidade (1994), ou seja, a cidade em
palimpsesto: tela e texto.
4
Compõem o ciclo: Chove nos campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três casas e um
rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem dos inocentes (1963), Primeira manhã
(1967), Ponte do Galo (1971), Os habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira
(1978).
29
Como na tela em que se apaga uma imagem e se encontra outra, no
pergaminho em que se raspa um texto e se encontra outro rasurado, Alfredo
palmilha Belém, em conhecimento, reconhecimento, desconhecimento.
Destaco aqui dois momentos para ilustrar essa imagem do palimpsesto
em que duas cidades aparecem superpostas. O primeiro traz Alfredo, o menino
interiorano, que foi estudar em Belém, por meio do favor, agregado a uma
família que teve lá sua importância no auge da borracha, enquanto desfrutava
das benesses do intendente senador Antônio Lemos, no poder entre 1897 e
1911. Em determinado capítulo, ele e a mãe, d. Amélia, visitam o padrinho
Barbosa, muito rico no passado, e que deveria tê-lo acolhido, se ainda tivesse
condições.
O narrador faz um interessante contraponto entre o passado abastado
do padrinho e seu decaído presente por meio de Alfredo, que, na casa dele,
vendo-lhe a decadência financeira e pessoal, costura algumas lembranças de
uma vez em que ali estivera com o que a mãe lhe relatava sobre a casa do
padrinho. Note-se, no excerto, as sensações do afilhado ao aproximar-se da
casa e a notação que o narrador dá à casa:
Ao avistar as palmeiras do largo da Trindade, teve a
emoção de que ia encontrar a mesma menina, o mesmo
tapete no corredor. E ali estava a casa de esquina,
fechada a porta da frente, as quatro janelas, como
também as numerosas (sic) sobre a travessa onde o
capinzal servia de coradouro para a estância vizinha.
Baixa, envelhecida, como se fosse aos poucos se
afundando, a casa parecia consciente da ruína de seu
dono. Talvez por ser pegada naquele palacete. Do
Governador, informou d. Amélia. Com efeito a velha casa
do padrinho sentia o poder e mocidade da outra e
rastejava cada vez mais as suas janelas no calçamento.
(JURANDIR, 2004, p. 99).
Agora, o palacete, pintado de novo, cortina, soldado à
porta, dois pavimentos, olhava do alto a sucumbida
residência. (JURANDIR, 2004, p.100).
Atente-se para o embate entre a casa e o palacete e a forma como o
narrador personifica a ruína: personificação de segundo grau, posto que por
30
meio da casa. Mas, ao contrário do que se possa pensar, esta é uma forma de
amplificar a sensação de ruína, dada a significação da casa para a integridade
física e espiritual do homem. Casa arruinada/ vida empobrecida, este seria um
dístico perfeito a se aplicar às personagens de Extremo Norte, sobretudo na
narrativa em foco e na caracterização do padrinho Barbosa, cuja casa o
narrador segue descrevendo com o campo semântico do ‘não’ e do ‘sem’ para
reiterar o que foi, o que houve. Alfredo vê tudo isso, analisa a decadência e
vislumbra-lhe a origem no “tempo da borracha” (JURANDIR, 2004, p.103).
O segundo momento que trago encontra-se logo no início do livro e se
liga à família Alcântara, um dos núcleos de personagens da obra, em cuja casa
Alfredo vai morar
Com a queda do velho Lemos, no Pará, os Alcântaras se
mudaram da 22 de junho para uma das três casas iguais,
a do meio, de porta e duas janelas, n.º 160, na Gentil
Bittencourt. (...) Ali morando, com uma e outra mão de oca
na parede da frente, a família contava já os seus dez
anos. (JURANDIR, 2004, p. 45).
As mãos de oca na parede de frente da casa, a do meio entre três
iguais, podem ser pensadas como índice do ir e vir da memória da família, por
meio da qual recuperamos suas histórias e as histórias de um tempo de Belém,
regalada pela abastança da borracha. Os Alcântara representam as ruínas do
decaído ciclo da borracha e do período em que, segundo se depreende, se
casava o fausto com a pompa na Belém regida pelo intendente Senador
Antônio José Lemos, responsável pela então modernização da cidade. Ex-
lemistas decaídos, a perda de um passado glorioso, que conferia à família
Alcântara, apesar de não rica, ares de fidalguia, posto haver lugar junto ao
estamento político da cidade, leva seus membros às tensões do presente e à
capitulação final, não havendo clemência a nenhum deles.
Retomo aqui o que já retratei em texto de 20015, no qual utilizei a
metáfora do palácio de cristal para ilustrar a queda da cidade, em Belém do
5
Texto apresentado no Colóquio Dalcídio Jurandir. 60 anos de Chove nos campos de
Cachoeira, 2001 e depois aproveitado na tese de doutorado Universo derruído e corrosão do
herói em Dalcídio Jurandir, defendida na UNICAMP, IEL, em 2002.
31
Grão-Pará. No final da narrativa, a família é assustada com indícios de
desabamento da casa para onde se mudara, na importante estrada de Nazaré,
mas que era uma casa quase em ruínas, a qual fora mascarada com uma mão
de oca também. O mobiliário dos Alcântara é depositado na calçada e o piano
da família fica ao pé da mangueira, diante da ameaça da queda da casa. Se
recortarmos essa imagem, o piano embaixo da mangueira, já noite, em plena
estrada de Nazaré, perceberemos o deslocamento daquele signo de erudição,
de distinção social, que encurtou a distância cultural entre a elite paraense e a
europeia, quando a última erigia e desmontava palácios de cristal6, e a primeira
erigia catedrais culturais para sua burguesia (leia-se Teatro da Paz e Teatro
Amazonas). O senão dessa elite amazônida assenta-se aí. O Palácio de Cristal
foi construído para ser desmontado, porque representante de um capitalismo
consolidado, que constrói para mais tarde derruir; as catedrais culturais,
construídas para emparelhar sociedades, apesar de sólidas, não
representavam um capitalismo consolidado, tanto que, ignorante de suas
regras, essa burguesia não tomou precauções contra a competição e
esboroou-se em meio de seu deslumbramento. Daí o piano e a mangueira,
também cultura e natureza, restarem lado a lado nesse final de narrativa, uma
vez que a Belém renovada por largas avenidas, à imitação dos bulevares
parisienses, a Belém dos mercados de ferro, de arquitetura moderna, cheia de
bosques, grandes praças, com um teatro refinadíssimo derruiu. Caiu o palácio
construído com látex. Belém derruída, recurso metonímico para representar
extensa região e longo período histórico, ostenta signos de “progresso”, de
elevação social, deslocados, assim como deslocados estiveram os Alcântara,
primeiro na Gentil Bittencourt, depois mais ainda na Estrada de Nazaré, uma
vez que não assimilaram o processo histórico pelo qual passaram. Deslocado
começa a se sentir Alfredo porque começa a adquirir consciência de si e do
mundo em que se insere.
6
Referimo-nos ao Palácio de Cristal, edifício criado pelo inglês Joseph Paxton, construído pela
primeira vez no Hyde Park, em Londres, para alojar a Grande Exposição Internacional de 1851.
Desmontado e novamente montado, numa versão ampliada, no centro da cidade, na
Sydenham Hill, em 1854, é considerada a construção mais visionária e ousada de todo o
século XIX, sendo que apenas a ponte de Brooklyn e a torre Eiffel, uma geração mais tarde,
fariam frente a sua expressão lírica das potencialidades da era industrial. (BERMAN, Marshall.
Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. Cia das Letras: São Paulo,
1986, p. 225).
32
A fugacidade e a possível volatilidade referidas por Morais ao retratar
Porto Velho se concretizaram em Belém, um dos principais e mais
movimentados centros urbanos da época da borracha. E Dalcídio Jurandir,
assim como Osvaldo Orico, em Seiva, cujo final assinala com a derrocada
regional, segue o que foi anunciado por Morais.
Interessa assinalar que, dos três autores, apenas Orico bacharelou-se
em Direito e exerceu altos cargos públicos, principalmente fora do Brasil.
Morais e Jurandir foram aguerridos jornalistas e coube ao primeiro exercer
cargo de relevância na imprensa em Manaus, enquanto o segundo foi redator
em vários periódicos esquerdistas e pecebistas. Os três autores, entretanto,
mostram solidez no conhecimento da região a que se propõem figurar, recriar
ou ensaiar em seus escritos.
Se nos voltarmos à bibliografia de Morais e Orico, veremos os variados
livros de ensaio que compuseram, enquanto de Jurandir encontraremos muitos
artigos jornalísticos ou reportagens espalhados na imprensa desde os anos de
1930 até os anos de 1960.
Destaco uma reportagem de 15 de janeiro de 1942, assinada por
Dalcídio Jurandir numa de suas primeiras aparições no semanário Diretrizes,
de Samuel Wainer, para o qual contribuiu até o ano de 1944, com reportagens
e duas colunas: “A inteligência contra o fascismo” e “Front literário”. O texto se
intitula “O drama do seringueiro não é lenda de cobra grande” e é interessante
que o autor assinala a estagnação das cidades da região das ilhas desde a
cidade de Gurupá até a ilha de Marajó. Veja-se:
No tempo da borracha, essa região foi movimentada e
próspera. Se bem que produza uma borracha de qualidade
inferior à do Acre e Tapajós por ser originária de terrenos
alagadiços e das baixas, a região das ilhas povoou-se de
milhares de seringueiros, dezenas de barracões à margem dos
rios, durante o intenso corte de seringa. Breves, Curralinho,
Anajás, Gurupá, Mazagão foram as cidades florescentes das
ilhas. (JURANDIR, 1942, p. 2).
Além de comentar a produção da borracha dos alagados, Jurandir traz à
cena cidades esquecidas pelo memorial da borracha e faz-nos compreender
melhor o trabalho de palimpsesto que elabora no romance Belém do Grão-
33
Pará, escrito anos depois e publicado apenas em 1960. Após retratar o
movimento do período da borracha, vejamos o que ele diz sobre o período da
decadência:
Breves é uma das pequenas cidades típicas da decadência da
borracha. Acha-se à margem de um dos estreitos que se
comunicam com o Amazonas e vive na estagnação muito
peculiar a todas as cidades e vilas que viveram da borracha
nos belos tempos de 1900 a 1914. Breves está mergulhada na
espécie de sesta em que jazem as cidadezinhas paraenses
principalmente as que se deixaram ir na onda do ouro negro.
(JURANDIR, 1942, p. 2).
Sobreleva-se a imagem da estagnação como uma sesta, embora a sesta,
naquelas alturas, já ia longe e virara um sono prolongado. Três anos depois,
em 1945, Jurandir escreveu para a Tribuna Popular um artigo intitulado “Velhice
e ruínas das cidades na Amazônia” em que, além de reiterar as palavras da
reportagem de Diretrizes, estende o foco para Cametá e Abaetetuba. De
Cametá faz um retrato em contraponto do antes e do depois:
Já foi uma cidade próspera, com escolas de humanidades,
banda de música, jornal, boa biblioteca pública, letrados e um
cais no Tocantins. O que vejo, agora, são casas desabando,
montões de tijolo e barro, casas irremediavelmente caindo,
gente morando em ruínas, paredes escoradas por grossos
esteios, o mato viçando onde outrora foram salas, alegres
varandas, alcovas e cozinhas, telhados arriando-se, tristes
calçadas de casas que pertenceram a coronéis mortos e que
se foram com seus donos. O cais caiu. (JURANDIR, 1945, p.
3).
No excerto acima citado, novamente a miséria se atrela às personagens e
se espraia pelo espaço, desvelando uma Amazônia derrotada porque
derrotados foram seus homens impulsionados pela cobiça, pelo
deslumbramento, senão pela falta de ciência. A representação maior de
Jurandir para o que Morais apontou e Orico reforçou se concretiza na busca do
menino pobre e mestiço que tenta entender aquele universo, localizar-se nele e
aceitar sua ascendência. Para que tal aconteça, na organização textual de
Belém do Grão-Pará, o palimpsesto precisa ser acionado e a cidade em
camadas brota da tessitura romanesca, desvelando tempos diversos.
34
Referências
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da
modernidade. Cia das Letras: São Paulo, 1986.
FURTADO, Marli Tereza. Porto Velho, Belém, Manaus, cidades amazônicas. Do
faroeste a torres de Babel, do auge da belle époque às fantasmagorias da
borracha. In: Caderno de resumos Joeel. Anais. Uberaba (MG) UFTM, 2021.
Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/joeel2021/412490. Acesso em:
15/04/2024.
FURTADO, Marli Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio
Jurandir. Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP, 2002.
FURTADO, Marli Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio
Jurandir. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco,
1994.
MORAIS, Raimundo. Uma cidade à Far-west. In: Na planície amazônica.
Brasília: Senado Federal, 2000.
JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão-Pará. Belém: EDUFPA; Rio de Janeiro:
Casa de Rui Barbosa, 2004.
JURANDIR, Dalcídio. O drama do seringueiro não é lenda de cobra grande.
Diretrizes. Rio de Janeiro. 15/01/1942, p. 2-35.
JURANDIR, Dalcídio. Velhice e ruínas das cidades na Amazônia. Tribuna
Popular. Rio de Janeiro, 08/07/1945, p. 3.
ORICO, Osvaldo. Seiva. São Paulo: Cia Editora Nacional,1937.
OSSAME, Ricardo. As cidades na Amazônia pelos viajantes. In: BASTOS, Élide
Rugai; PINTO, Renan Freitas. Vozes da Amazônia. Investigação sobre o
pensamento social brasileiro. Manaus: Editora da Universidade Federal do
Amazonas, 2007.
TOCANTINS, Leandro. Introdução. Um escritor nativista. In: MORAIS,
Raimundo. Na planície amazônica. Brasília: Senado Federal, 2000.
35
“UM BANQUETE DE CORVOS”, DE RODOLFO TEÓFILO
Atilio Bergamini
Universidade Federal do Ceará/ CNPq7
Em maio de 1956, Rachel de Queiroz publica na revista O Cruzeiro uma
crônica intitulada “Rodolfo Teófilo”. A crônica saiu no ano do centenário de
nascimento do escritor e lembra de sua morte em 1932, e da trajetória como
testemunha, historiador e escritor das secas. Especial atenção é dada à
vacinação antivaríola realizada por Teófilo, ao produzir e aplicar doses por
conta própria, em meio à intensa campanha antivacina da oligarquia Accioly,
que governava o Ceará entre o final do século XIX e o início do século XX. O
tom carinhoso da crônica recorda que, até aquele momento, o poste em frente
à casa de Rodolfo Teófilo, no bairro Benfica, em Fortaleza – posteriormente
demolida –, era conhecido como “Parada da Vacina”.
Embora não seja amplamente conhecido no Brasil, e nem mesmo no
Ceará, o nome de Teófilo ecoa, no que se refere ao campo dos estudos
literários, em trabalhos a respeito das obras de José do Patrocínio, Domingos
Olímpio, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida e Graciliano Ramos,
porque tais escritores dialogaram constantemente com formas e temas do
pioneiro romance de autoria dele, A fome: cenas da seca do Ceará, de 1890,
com reedição revista pelo autor em 1922. A fome tem sido objeto de pesquisas
com frequência, porém, ainda em ensaios recentes, atualiza-se uma
perspectiva prescritiva e judicativa, que constrói um Teófilo pequeno burguês,
elitista, higienista, naturalista, mau escritor.
Ao passo que a suposta adesão de Teófilo a perspectivas de elite resta
bem relatada, quase fica desaparecida a incorporação por ele de saberes e
perspectivas abolicionistas – frentes em que participou intensamente, ao lado
de Raymunda Cabral Theophilo, a Raymundinha, sua esposa – e
antioligárquicas, bem como de perspectivas ligadas aos saberes indígenas e
7
O CNPq financia o pesquisador com bolsa de produtividade em pesquisa.
36
sertanejos – como aqueles, para ficar em apenas um entre centenas de
exemplos, a respeito da mucunã, planta, como se verá adiante, tão
fundamental para os retirantes.
Neste ensaio, proponho que o absurdo, o mau gosto, o grotesco, as
hipérboles – se é que são boas categorias para pensar as escritas literária,
histórica, pedagógica e científica de Teófilo –, são, muitas vezes, parte do que
comunidades – premidas por violentas dominações e explorações –
conseguiram elaborar a respeito de suas experiências em torno de eventos tão
agudos quanto a seca política e econômica de 1877 e os sofrimentos dela
decorrentes. Imagens supostamente malfeitas, mal pensadas, mal escritas,
sem estilo, europeias demais, científicas demais, naturalistas demais, ressoam
um pedido de socorro dos sofrimentos que se ligam a estas imagens, um
pedido de socorro que busca novas narrativas, novos ritos sociais de memória,
algum acolhimento simbólico.
***
Em A fome, conforme o enredo se desenvolve, as personagens evocam
fios de memórias de secas cada vez mais longínquas. No início da seca de
1877, Manuel de Freitas, o protagonista do romance, pensa que a seca de
1845 não deixou lições (TEÓFILO, 2011, p. 19); ao passo que, semanas
depois, recorda-se, em meio a conversas com outros retirantes, já no caminho
entre o alto sertão e Fortaleza, que o pai lhe contava episódios de mulheres
que ficaram cegas, mudas e surdas depois de ingerir uma batata vermelha – a
mucunã vermelha – na seca de 1825 (p. 82); e, ao chegar na capital, escuta de
“tia Inácia”, uma descendente do povo indígena Algodão, antilusitana e, já
idosa, ainda muito ligada aos saberes do pai, que lhe contara “muitos fatos”
sobre a seca de 1772 (p. 94). Tia Inácia “arquivava” casos sobre as secas – e
Teófilo sem dúvida escutou muitas tias Inácias para escrever seus livros –,
casos como aquele a respeito da seca em curso – de 1877 – trazido até Inácia
pela “criada do subdelegado” e pela “cozinheira do vigário” (p. 95 e 96).
Falavam ambas do linchamento de um retirante por um lavrador.
37
Se a obra de Teófilo fosse apenas isso, já seria algo: histórias de um pai
para o filho, ambos fazendeiros, sobre a seca de 1825; histórias do mesmo pai
interligadas com histórias de retirantes sobre a seca de 1845; histórias dos
indígenas algodões, passadas de pai para filha, sobre a seca de 1772; e, vindo
ao tempo presente, o urdir de histórias por criadas e cozinheiras.
O ponto de partida de Teófilo foi reunir em diversos gêneros de escrita,
muitas vezes mesclados entre si – a notícia jornalística, o folhetim, a poesia, o
romance, a narrativa historiográfica, o testemunho, a memória, a dissertação
científica –, imagens, cenas, relatos, estatísticas, equívocos, “fatos”, memórias,
casos, narrativas, arquivos orais, lapsos, silêncios, esquecimentos, censuras,
preconceitos, exageros, absurdos e enganos a respeito da fome como
fundamento da expansão do capitalismo no Ceará. É mais ou menos como a
teoria da bolsa de ficção de Úrsula K. Le Guin (2021): tudo o que pode ajudar a
vida a continuar a ser vivida precisa ser narrado, inventado, composto.
Teófilo atribuiu como subtítulo de A fome a expressão “cenas da seca do
Ceará”. Tal expressão esteve na ponta de sua pena durante décadas. Outros
escritores também a mobilizaram, caso de Araripe Jr., que, em 1878, publicou
no Vulgarizador, do Rio de Janeiro, o folhetim O retirante: scenas da secca de
1845 (Ceará). Entre as “cenas da seca” trabalhadas por Teófilo, uma teve
especial destino, por ter sido retomada quatro vezes.
Em 1878, um folhetim anônimo inacabado, Scenas da secca do Ceará,
esquecido nas páginas dilaceradas do jornal conservador Constituição, foi,
embora anônimo, escrito por Teófilo, e traz a versão primeira (A) da cena em
que uma mulher “já bastante idosa” é atacada viva por urubus em um lajedo no
caminho da migração.
Em 1882, um poema assinado por “Rodolpho Theophilo”, no jornal
liberal Gazeta de Norte, refez a cena em versos decassílabos – e a mulher já
bastante idosa passou a ser uma “donzela”, protagonista trágica do poema
“Scenas da secca do Ceará. Um banquete de corvos. (Histórico)”. É a segunda
versão (B) da cena.
Em 1913, entre as “Scenas da secca do Ceará” – título da segunda
parte da Lyra rustica: scenas da vida sertaneja –, não consta “Um banquete de
38
corvos”, embora constem diversas poesias publicadas nos jornais com os quais
Teófilo tinha colaborado.
Em 1890, a cena recebe outra versão (C), tendo, desta feita, uma
“mulher” como protagonista. Esta versão é a mais conhecida, pois foi articulada
ao romance A fome: cenas da seca do Ceará, publicado pelo editor Gualter R.
Silva, um dos pioneiros na venda e edição de livros em Fortaleza, conforme
mostram as pesquisas de Ozângela de Arruda Silva.
Finalmente, em 1922, houve nova reescrita enfeixada em volume
editado pela Imprensa Inglesa (D), com diversas modificações em relação à
edição de 1890. Com as modificações feitas em 1922 e inserções de editores
posteriores, sobretudo novas vírgulas –, a cena chegou aos leitores atuais.
***
A variedade de gêneros nos quais as “cenas da seca do Ceará” são
narradas por Teófilo – folhetim, romance e poemas, além de textos históricos e
científicos –; a mescla de estilos em um mesmo gênero – o poema épico-
dramático –; e a repetição dos mesmos termos e expressões ao longo de mais
de quatro décadas (1878 a 1922), sugerem um persistente trabalho de
simbolização da fome e das secas, que pode também ser percebido pela
sequência de obras em que o autor lidou mais diretamente com os temas da
seca e da fome. Em 1883, História da seca do Ceará (1877-1880); em 1890, A
fome: cenas da seca do Ceará; em 1892, O paroara (romance); em 1895, Os
brilhantes (romance); em 1901, Secas do Ceará: segunda metade do século
XIX; em 1913, Lira rústica: cenas da vida sertaneja (reunindo poemas de três
décadas, entre os quais, na segunda parte, intitulada “Cenas da seca do
Ceará”, poemas que evocam passagens de A fome); em 1919, A seca de 1915;
em 1922, A seca de 1919.
Além dos livros em torno das secas e da fome, publicou o folhetim
provavelmente inacabado ao qual me referi anteriormente e um conto-
testemunho (“O lazareto”) na revista A Quinzena, ambos largamente
39
reaproveitados no romance de 1890. Também abordam as secas e a fome em
dezenas de passagens de outros livros, caso da monografia a respeito da
mucunã, planta de que se falará mais adiante. Tal persistência perfaz um
conjunto raro de práticas de testemunho, denúncia e memória da catástrofe
humanitária que foi a seca mundial durante a segunda metade da década de
1870. A desagregação violenta de comunidades causada pelo avanço mundial
dos latifúndios e das plantations dominados pelo capitalismo britânico; a
interrupção de rotas seculares de migração; a alteração de laços de
solidariedade alimentar causada pela monetarização das mediações sociais; a
especulação inflacionária e a corrupção; a redução de tempo de trabalho para
subsistência; o desmanche dos sistemas de armazenamento de grãos; o uso
de grãos e água para alimentação de grandes rebanhos; e o desmatamento
generalizado, competiram para matar, no Brasil, cerca de 500 mil pessoas (ou
5% da população do país na época e 13,9% da população cearense), e, em
regiões da China, da Índia, do Egito, da África do Sul, e da Austrália, além do
próprio Brasil, mais de 62 milhões (DAVIS, 2002; ALBUQUERQUE JR., 1988;
WYNTER, 1971).
A psicanalista Maria Rita Kehl (2013) interroga “[q]uantos anos, ou
décadas, são necessários para que um fato traumático se incorpore à memória
social sem machucar nem se banalizar?” – e prossegue afirmando que os
sobreviventes e os descendentes de sobreviventes da Shoah “ainda não
fecharam essa conta”. A necessidade de falar e escrever, de “compartilhar o
acontecido com o outro, os outros” parece se fazer presente nas vítimas das
experiências de terror. Tal necessidade é a necessidade de estar “no campo
coletivo da linguagem, como forma de diluir a dor individual na cadeia de
sentido que recobre a vida social” (KEHL, 2013).
Tanto a reflexão de Kehl quanto os trabalhos de duas outras
psicanalistas, estes especificamente a respeito de A fome, Karla Martins (2021)
e Samanta Basso (2022), levam a perguntar: e se a repetição das cenas da
seca, década após década, guardasse uma insistência na necessidade de
narrar apesar da falta de trabalho coletivo de construção de memória sobre as
secas e a fome? E se os “defeitos” do estilo de Teófilo denotassem sintomas de
defeitos da própria organização da comunidade, especialmente da cidade de
40
Fortaleza, para elaborar “sem machucar nem banalizar” a memória das vítimas
das secas e da fome? E se, apesar de todos os defeitos, Teófilo tivesse
escutado, aqui e ali, restos instáveis das narrativas dos retirantes, dos
sertanejos, enfim, e se Teófilo tiver sido uma testemunha no sentido de que
contava uma história, ao mesmo tempo, impossível de ser contada e
impossível de não ser contada?
***
A seguir, o trecho A é uma edição relativamente diplomática da
passagem do folhetim Scenas da secca do Ceará, publicado em 1878 no jornal
Constituição, em que aparece a cena da mulher sendo devorada por urubus. O
trecho D é uma edição relativamente crítica do trecho reescrito para fazer parte
de A fome, tendo como base a edição de 1922 cotejada com a de 1890 e com
uma das edições contemporâneas, a de 2011. Por esta razão, o segundo
trecho vem com a indicação “Versão D cotejada com C”.8
VERSÃO A
Deitada sobre uma pedra estava uma mulher já bastante velha,
tinha os membros estendidos e immóveis pelo cansaço e pela
inanição. Mal lhe chegavam as forças para soltar um rouco
gemido quando o agudo bico dos urubus que a devoravam
mergulhava-se-lhe nos olhos. Os urubus famintos a
rodej[avam], depois de terem lhe furado os olhos, [ilegível]
desesperados pela fome abriam-lhe [ilegível] e devoravam-lhe
os intestinos.
Infeliz creatura assistia qual Prometheu as lentas agonias de
uma morte repassada das maiores angustias, sem poder
estender o braço, que tocado da inanição conservava-se
estendido e immóvel.
Quem poderá imaginar o supplício atroz d’aquella desgraçada,
quando ca[hiu] e viu-se cercadas de esfaimados urubus!
Quanta afflição quando via que os seus gritos pedindo soccorro
morriam na solidão d’aquelle deserto e ninguém lhe respondia!
8
Para as práticas da edição diplomática e da edição crítica, cf. Cambraia, 2005, nas
referências.
41
Que dor ao receber n[o]s supplicantes olhos fitos no céu as
bicaradas agudas d’aquellas aves maldictas!
Não pode haver maior tortura!
Aquella infeliz já no fim de uma existencia, quem sabe se feliz
ou malfadada, arrastava-se alquebrada ao peso dos annos e
enfraquecida pelas contrariedades e pela mizeria [ilegível]
procurando augmentar mais um pouco o tempo de sua
perigrinação neste mundo [ilegível] Mal sabia ella que antes de
chegar a seu destino [ilegível] fulminada pelo raio exterminador
da fome [ilegível] [entra]nhas ainda quentes seriam
[r]as[ilegível] por famintos corvos. (Scenas da secca, 1878,
17/10/1878, capítulo III)
VERSÃO D COTEJADA COM C
[Freitas] seguia caminho da fonte, quando9 ao passar pela
ribanceira de um riacho seco, ouviu alguns gemidos. Parou e
pensou logo em alguma desgraça. Os gemidos se repetiam 10;
tomando o rumo de onde lhe11 pareciam vir, caminhou12. Não
foi preciso andar muito para ser espectador de uma cena
terrível. Um grande lajedo estirado ao rés do chão, guardado
por um grupo de angicos desfolhados, servia de palco a um
drama da fome. Deitada sobre a pedra, na postura de
crucificada, uma mulher tão magra como uma múmia, era
devorada ainda viva pelos urubus. Banquete horrível! Como o
Prometeu13, imóvel e sem ação, sente14 rasgarem-lhe as
entranhas as garras e os bicos acerados15 das aves malditas!
Vivia ainda quando estas16, que das alturas devassavam a terra
procurando repasto à fome, veem-na e descem sobre ela17.
9
Na edição de 2011, consta uma vírgula aqui, inexistente na edição de 1922, última em vida do
autor.
10
Na edição de 1890, “se repetiram”.
11
Na edição de 1890, “eles lhe pareciam vir”.
12
Na edição de 1890, “Freitas caminhou”.
13
Na edição de 1890, “como o Phrometeu da mythologia”
14
Na edição de 1890, “ela sente”.
15
Na edição de 2011, “celerados”. Mantive a palavra utilizada na edição de 1922.
16
Na edição de 1890, “gulosos urubus” ao invés de “estas”.
17
A edição de 2011 optou por diversas vírgulas desnecessárias, excluídas aqui, em respeito à
edição de 1922, criticamente cotejada com a edição de 1890.
42
O crocitar18 das aves disputando o melhor quinhão da presa,
seu passo lento e grave, a vestidura negra19, como os convivas
de um préstito fúnebre, aterram a desgraçada, sem forças para
reagir, mas ainda com consciência para temer e sentir; 20 e
como o único e derradeiro esforço da vontade, que se aniquila,
lança21 um olhar súplice para o céu, um olhar cuja luz vacilante
refletem duas lágrimas,22 que tremem entre as pálpebras mal
cerradas.
Os urubus, crocitando sempre, alternando o canto pavoroso
com pios agudos e longos, aproximam-se da vítima,23 e o
banquete começa. Os bicos compridos e aguçados rasgam o
ventre e puxam o intestino que se desenrola à mercê da gula
das aves. As vísceras são arrancadas do tronco e devoradas
com gula famélica! Os mais fracos receiam disputar aos mais
fortes24 um pedaço de intestino, e, covardes, cercam a cabeça
da vítima e lhe vazam os olhos a bicadas! Vivia ainda 25; suas
pupilas se fitavam no azul do céu, quando a luz se apagou de
repente e nas agonias da dor tão cruciante sente que a vida
foge com as últimas ondas da claridade26. (A fome: cenas da
seca, 1922, capítulo VIII, parte I, em cotejo com a edição de
1890)
***
Comparar as quatro versões da cena exige capítulo que ficará para
outro momento. Ficam aqui apenas apresentadas as três versões em prosa,
para que seja possível agora auscultar o aparecer desta cena em outro estilo,
em outro gênero: a poesia.
Se, como sanitarista e como romancista da fome, Teófilo ainda é
conhecido, como poeta, quase não circula. As pesquisas de Charles Ribeiro
18
Na edição de 1890, “o crocitar tétrico”.
19
Na edição de 1890, “e a vestidura negra”.
20
Na edição de 1890, vírgula ao invés de ponto e vírgula.
21
Na edição de 1890, “ella lança”.
22
Na edição de 1890, não consta a vírgula.
23
Na edição de 1890, não consta a vírgula.
24
Na edição de 1890, “aos companheiros” ao invés de “aos mais fortes”.
25
Na edição de 1890, “ella vivia ainda”.
26
Na edição de 1890, não consta a palavra caridade, por aparente omissão na composição
tipográfica. Consta, ao invés, “ondas da do dia que para sempre desapparecem de seus olhos”.
43
Pinheiro (2011) e Otacílio Colares (TEÓFILO, 1979), mesmo tendo como foco
os romances, são das poucas a abordar os versos do escritor. Ao apresentar o
volume em que o autor de A fome reuniu seus poemas até então dispersos ou
inéditos, Lyra rustica: scenas da vida sertaneja, de 1913, Pinheiro também se
refere ao raro Ocaso-versos, póstumo de 1997, reunindo sonetos. Ambos
enfatizam a primeira parte da Lyra rustica, em torno de rituais comunitários
sertanejos como a farinhada e as festas de São João. A segunda e última
parte, “Scenas da secca do Ceará”, receberá atenção a seguir.
Em relação às pesquisas realizadas até aqui, cabe acrescentar que a
poesia de Teófilo foi, em parte, inicialmente publicada em periódicos como o
Cearense: Órgão Liberal; a Gazeta do Norte: Órgão Liberal; e o Libertador:
Órgão da Sociedade Cearense Libertadora, e republicada na Lyra rustica.
Contudo, pelo menos um dos poemas saiu em jornal, mas não foi juntado no
livro. Trata-se de “Scenas da secca do Ceará. Um banquete de corvos.
(Historico)”, veiculado em 29 de outubro de 1882 na Gazeta do Norte, periódico
fundado em 1880 por uma fração do Partido Liberal encabeçada por Tomaz
Pompeu Filho, em meio aos rearranjos nas posições do partido ocorridas
desde a morte, em 1877, do seu pai, o Senador Pompeu, histórica liderança
liberal (FERNANDES, 2004).
Ancorado em uma coluna na terceira página – de quatro ao todo, como
era comum no tempo –, o poema vem assinado no rodapé, em caixa alta, por
“RODOLPHO TEOPHILO”, que, então, era farmacêutico radicado em Fortaleza
e está enquadrado por diversos paratextos, como se pode perceber na figura 1,
a seguir.
Figura 1: Detalhe dos paratextos.
Fonte: Hemeroteca Digital Nacional, jornal Gazeta do Norte.
44
Este conjunto de paratextos apresenta uma mescla dos três gêneros
literários, o lírico, sinalizado no significante “POESIA”; o dramático, na noção
de “scenas”, e o épico, no conceito de “(HISTORICO)” (ROSENFELD, 2011).
A parte da Lyra rustica dedicada às “scenas da secca” apresenta uma
estrutura parecida com a do romance A fome, composto por quatro partes:
“Êxodo”; “A casa negreira”; “Misérias”; “Epílogo”. De modo semelhante à prosa,
Lyra rustica inicia em torno do tema do “êxodo”, palavra que dá título ao
primeiro poema e que é tema do segundo, “Os brincos de cobre”. Os demais
poemas criam um enredo a respeito das agruras do caminho desde o sertão
até o litoral, com foco nos ambivalentes afetos psíquicos e nos sofrimentos
físicos causados pela fome, a começar pelo tocante “Amor filial (Historico)”,
complementado por “Filhicídio (Historico)”, “Canção do retirante” e “A victima
dos vampiros”. Uma ode às chuvas, “O inverno (Epoca 1880)”, datada de 14 de
março de 1880, “dia em que começou o inverno em todo o Ceará depois de
três longos annos de secca”, encerra as “Scenas da secca do Ceará”, sendo
sucedida por um glossário de termos sertanejos (TEÓFILO, 1913, p. 220 e ss.).
***
VERSÃO B
POESIA
SCENAS DA SECCA DO CEARÁ
Um banquete de corvos
(HISTORICO).
01 Ella caminhava, infeliz donzella,
02 Semi-núa, faminta, escaveirada!
03 Fugindo á fome, á seca, ao desespero,
04 Atraz da vida, da morte na estrada.
45
05 Assim seguia medrosa, taciturna,
06 Tendo vasia á cinta uma sacola.
07 A fome a fez parar nos tristes ermos,
08 Onde não tinha a quem pedir esmola.
09 Cahiu sem força á margem da estrada
10 E á Deus seu pensamento fez subir.
11 Mas elle ou não chegou á Divindade,
12 Ou não havia quem podesse ouvir.
___
___
13 Ao immovel solo a fome horrorosa
14 Fracos membros, sem pena, fez chumbar!
15 Apenas o olhar p’ra o céu se volve
16 E da inf’liz se ouve o lento agonisar.
17 Famintos corvos vão pousar grasnando
18 No corpo immovel, vão o devorar!
19 Banquete horrível! scena terrorosa!
20 Vão nos olhos dos bichos mergulhar!
21 Cega arqueja! grasnam as aves négras,
22 como em pagode as furias infernaes.
23 Rasgam-lhe o ventre! as visceras devoram!
24 E o-gemer da infeliz já não se ouve mais.
25 Findou-se o drama: apenas na estrada
26 Ficou um esqueleto unido ao pó!...
27 Qual Prometheu a pobre desgraçada
28 Pediu socorro e no ermo se viu só.
***
46
Provavelmente, os tipógrafos truncaram o verso “Vão nos olhos dos
bichos mergulhar!” (verso 20). O correto talvez seja “Vão nos olhos os bichos
mergulhar!” ou ainda “Vão nos olhos os bicos mergulhar”, opção mais
condizente com a versão A.
As sete estrofes são organizadas em duas partes, divididas no jornal por
um sinal tipográfico ostensivo, que tentei reproduzir com duas barras. A
primeira parte do poema principia com a “donzella” como sujeito de ações
apresentadas com verbos no pretérito imperfeito: “caminhava”, “seguia”. Uma
queda interrompe tais ações, sendo apresentada no pretérito perfeito – “caiu” –
e com a introdução de um novo sujeito, a fome, que “a fez parar nos tristes
ermos/ onde não tinha a quem pedir esmola” (v. 7 e 8). Na teoria narrativa, a
passagem do tempo verbal do pretérito imperfeito para o pretérito perfeito é
também a passagem entre “contar” e “mostrar”, entre um “sumário” e uma
“cena” (cf. LEITE, 1997). As duas primeiras estrofes (v. 1 a 8) preparam a
terceira, que se passa na encruzilhada entre o cair do corpo e o subir dos
pensamentos (v. 9 a 12).
Enfatizado em uma “cena”, o aparecimento da fome como sujeito
sintático confere um traço alegórico ou simbólico a este estado da donzela,
traço que será reforçado a seguir por outros meios. O poema apresenta a fome
como força exterior à personagem – ainda que se possa falar em uma espécie
de exteriorização de um sentimento dela. Teófilo era leitor de Tolstói e não é de
estranhar que – assim como o escritor russo faz o tremor do trem em que está
Ana Karenina ressoar o tremor do coração da personagem, “exteriorizando” no
espaço a interioridade dela –, diversas passagens da obra do cearense sejam
construídas por métodos de composição via “exteriorização”. A entrada da fome
na “cena” sugere outra etapa dos esforços da donzela pela sobrevivência,
assim como enfatiza a solidão forçada nos “tristes ermos” prometeicos nos
quais foi levada a estar.
A ação, antes física (caminhar, seguir), agora é psicológica (pensar em
Deus, ou fazer subir pensamentos), e, entre o físico e o psicológico, há o
gemido, o gemer, que Deus, se existe, não ouve. O “subir” dos pensamentos é
correlato ao gemer – sendo pensar e gemer duas formas de a donzela
expressar a fome e a solidão, o abandono, enfim. O movimento todo leva para
47
o chão (“caiu”, “fez chumbar”), para o céu (“fez subir”) e outra vez para o chão
(“vão pousar” e “unido ao pó”).
O verbo ouvir urde uma espécie de enredo. Inicialmente, talvez “não
havia quem podesse ouvir” o pensamento dirigido a Deus (v. 12); em seguida,
designa um “lento agonisar” que “se ouve” (v. 16); e, por fim, “o-gemer da infeliz
já não se ouve mais” (v. 24). O sujeito literalmente indeterminado desta escuta
– quem ouve? quem não ouve mais? – torna o ato de ler um problema. É a
quem agora lê que a “donzella”, em 1877, 1878, 1879, “pediu socorro e no
ermo se viu só” (v. 28)? Apenas os corvos e a fome ouvem os pedidos de
socorro?
No simbólico mês de março de 1877, retornado do Recife, onde se
formara farmacêutico depois de passar por um período na Bahia, Rodolfo
Teófilo tinha acabado de instalar uma farmácia na rua da Palma, número 80,
centro de Fortaleza (LIRA NETO, 1999). O mês era simbólico porque o dia de
São José, 19, tinha passado sem chuvas, o que, para os sertanejos, é sinal de
mau inverno. Ao conversar com os primeiros retirantes vindos de Uruburetama
e ao ler notícias publicadas por diversos jornais cearenses, Teófilo começou a
tomar notas que se transformariam em um mensário analítico da seca, a
História da seca do Ceará, publicado em 1883. Naquele outubro de 1882,
quando publicado o poema, o fim da seca de 1877-1879 contava cerca de um
ano e meio.
Para o leitor do jornal Gazeta do Norte, a fome e a seca às quais os
versos de “Um banquete de corvos” se referem eram sem dúvidas aquelas de
1877 a 1879 e inícios de 1880. É certo que boa parte do público leitor tinha
testemunhado ou mesmo sofrido com a seca, a fome, o adoecimento e os
desacertos políticos e econômicos da sociedade do progresso. Portanto, o
poema explicitava um pedido de socorro não ouvido pelos sobreviventes. O
último verso, com seus verbos no pretérito perfeito, a indicarem uma ação
concluída, ecoa um tom talvez reivindicatório: “Pediu socorro e no ermo se viu
só” (v. 28). Houve um socorro que os sobreviventes não prestaram.
A primeira parte da “cena”, apresentada com verbos no passado, do
caminhar até a queda, dá-se no “drama” entre a donzela e a fome, à medida
em que a segunda, ao abrir ainda no embate entre a donzela e a fome,
48
apresenta novos personagens, todavia nomeados já no título, os “famintos
corvos”, que agem num futuro inelutável: “vão pousar”, “vão devorar” [o corpo
imóvel], “vão mergulhar” [nos olhos] (v. 17-20).
Do pretérito, nos primeiros versos, ao futuro inexorável nestes, os
“famintos corvos”, “os bichos” (ou bicos, como metonímia de corvos), “as aves
negras” e até mesmo “as furias infernaes” tomam de repente o espaço
discursivo, e grasnam, e rasgam, e devoram (v. 21-24). De fato, são apenas
duas das sete estrofes em que os corvos aparecem. A quantidade de
expressões sinônimas em tão poucos versos (corvos, “bicos”, aves negras,
fúrias infernais) preenche, literalmente, com corvos o espaço discursivo do
poema. Desde o início, a marcação rítmica estabelecia que, a cada dois
versos, haveria uma pausa maior, marcada por um ponto final ou um ponto de
exclamação. O ritmo de cada estrofe vai assim: um, dois, ponto; um, dois,
ponto, até o momento em que os corvos entram em cena. A sintaxe e, com ela,
o ritmo, alteram-se. As representações gráficas do ritmo do poema até a
entrada dos corvos, à esquerda abaixo, e do ritmo do poema no momento do
“pouso” dos corvos, à direita, deixam nítidas tais alterações:
__ __ __ __
__ __. __ __!
__ __ __! __!
__ __. __ __!
A preparada passagem do pretérito (as ações da donzela) para o futuro
e, deste, para um presente avassalador (a donzela “arqueja”, os corvos
“grasnam”, “rasgam”, “devoram”, e “o-gemer não se ouve mais”) faz pensar se
os corvos, assim como os urubus e abutres em diversas caricaturas, metáforas
e símiles do jornalismo do século XIX, não poderiam ser interpretados em
chave alegórica ou pelo menos simbólica (BENJAMIN, 2011). O poema criaria
uma situação em que os corvos da política devoram a donzela; em que os
corvos da exploração econômica devoram a donzela? Ou podemos também
pensar os corvos como um símbolo ou metáfora da fome, a devorar o corpo da
personagem? O que, no próprio poema, levaria a tais leituras?
49
***
A fortuna crítica de A fome aponta a “repetição de fatos e cenas”, a
“linguagem incorreta, pobre, descolorida, pouco artística” e a “despreocupação
com o estilo”, quando não o puro e simples “mau-gosto”, características
estendidas à obra de Teófilo como um todo, conforme se pode ver em resenhas
de Adolfo Caminha, José Veríssimo, Rodrigues de Carvalho e Lúcia Miguel
Pereira (cf. CASTALDI, 2021). O mau-gosto e os problemas de estilo
ocorreriam porque o escritor “descrevia” a “realidade”, ao passo que Rachel de
Queiroz, em O quinze (1930), e sobretudo Graciliano Ramos, em Vidas secas
(1938), tenderiam a ser mais “literários”. Em resumo, parte da fortuna crítica
tende a entender que, na literatura de Teófilo, um corvo é um corvo, sem
metáforas. Porém, o que acontece se se pensa que os corvos no poema – nas
outras versões da cena, os urubus – podem ser lidos não apenas literalmente,
como tem acontecido (ou seja, seriam corvos ou urubus, apenas isso), mas
literariamente (ou seja, sem deixar de ser corvos ou urubus, arquivam também
outras possibilidades de sentido)?
A pergunta me ocorre a partir da leitura do poema de Machado de Assis,
declamado em sarau de 1870, em benefício das vítimas da seca no Alagoas,
no qual aparecem os seguintes versos: “O que é a fome, esse abutre/ Que em
nossas carnes se nutre/ E a fria morte nos traz?”. Nestes versos, o “abutre” é
metáfora para a fome que “se nutre” nas “nossas carnes”. Por que não pensar
que a fome que ataca a personagem nas primeiras estrofes do poema de
Teófilo desliza metonimicamente – conforme a segunda parte do poema se
desenvolve – para os corvos, e, neste deslizar, a condensação entre as duas
imagens, fome-corvos, cria alegorias, símbolos e metáforas de grande
amplitude?
A ideia de que os “famintos corvos” possam ser lidos alegórica,
simbólica ou metaforicamente pode ganhar ainda mais força. A comparação da
donzela com Prometeu, no verso 27, reverbera comparação semelhante, um
topos recorrente nos textos jornalísticos a respeito da seca. A entrada dos
corvos no ritmo do poema marca uma espécie de síncopa. De forma
50
semelhante e ao mesmo tempo diversa, a referência a Prometeu é preparada
com uma exclamação seguida por uma reticência: “Ficou um esqueleto unido
ao pó!.../ Qual Prometheu a pobre desgraçada”, única aparição deste tipo de
marcação ao longo das estrofes, a exigir de quem lê, talvez, um silêncio, uma
pausa, que enfatiza os dois versos finais, como uma chave de ouro. A alusão a
Prometeu recebe uma espécie de ênfase rítmica – é como se a forma do
poema desse importância a ela. Porém, não apenas a forma do poema.
Também o jornalismo da época – em meio ao qual o poema pode ser
inicialmente pensado – não perdia a oportunidade de usar a imagem de
Prometeu.
O político ligado ao Partido Conservador, Joaquim Bento, por exemplo,
publicou paradoxalmente no órgão do Partido Liberal, O Cearense, em 8 de
julho de 1877, artigo de fundo criticando o governo de Dom Pedro II, que não
estaria acreditando que uma seca estava em processo no Ceará. O governo
era composto por um gabinete conservador, liderado pelo primeiro-ministro
Duque de Caxias, que seria rendido no ano seguinte pelo liberal Sinimbu
(HOLANDA, 2004). A crítica conservadora aos conservadores, feita por
Joaquim Bento, coloca as vítimas da seca para sofrer um suplício lento, “assim
como Prometeu” (BENTO, 1877). Em 12 de setembro, no mesmo jornal O
Cearense, artigo anônimo apresenta uma situação calamitosa. As estradas que
apontam para Fortaleza se transformaram, lemos no artigo, em túmulos. O
autor relata aglomerações de pessoas a caminho e exige que elas sejam
dirigidas pelo governo imperial ao trabalho em obras que previnam ou minorem
novas secas. Tendo que lutar contra a fome, a seca e os governos, os
proletários são comparados pelo autor anônimo a um “Prometeu impotente” (O
Cearense, 1877).
Teófilo conhecia bem as imagens recorrentes utilizadas na imprensa
para narrar os sofrimentos dos retirantes. Ao incorporá-las em sua literatura,
estava apresentando aos leitores formas aparentemente familiares. Até mesmo
a opção de estilo pelo futuro do presente composto (“vão pousar”, “vão
devorar”, “vão mergulhar”), bem mais próxima de registros coloquiais do que a
opção pelo futuro do presente sintético, prenuncia uma escrita em busca de um
público amplo, também almejado por Teófilo em livros como A fome. De fato,
51
Ozângela de Arruda Silva analisou um dos anúncios de divulgação da primeira
edição do romance. De acordo com a pesquisadora, a publicidade de A fome
enfatizou que o volume seria bem aproveitado tanto na “choupana do pobre”
quanto no “palácio do rico” (2011, p. 127).
Portanto, a fome-corvos é um elemento de um poema que, por sua vez,
é parte de um jornal liberal, que, finalmente, pode ser pensado no horizonte
maior do jornalismo. Sem ir tão longe, ainda assim é possível aceitar que a
comparação da donzela com Prometeu, na lógica do jornalismo da época,
aproxima a donzela da ideia de povo ou mais especificamente de povo
cearense. O mito de Prometeu na versão trágica de Ésquilo tinha alguma
presença na cultura letrada do segundo reinado, a ponto de ter sido traduzido
em prosa por Dom Pedro II (cf. SANTOS, 2018). O castigo sofrido pelo corpo
“imóvel”, os corvos que descem dos céus – no lugar da águia da tragédia de
Ésquilo –, a margem da estrada nos ermos solitários são apenas algumas das
inúmeras alusões possíveis do poema ao mito grego.
O Prometeu dos jornais não desfaz a importância do Prometeu dos
gregos para a construção de possíveis significados encriptados no poema.
Antes o contrário. A tirania dos deuses gregos foi relida e transformada no
jornalismo do século XIX. Com isso, a tendência alegórica, simbólica ou
metafórica do poema fica cada vez mais estridente. O “Prometeu da mitologia”,
como o classificou o narrador de A fome na versão de 1890, porém, pode
conduzir a leitura atenta do poema a outros dois elementos presentes nele, que
o ligam a milenares narrativas indígenas, depois sertanejas. Estes dois
elementos são a cegueira em que morre a personagem e o local onde caiu, a
“margem da estrada”.
***
No início deste ensaio, mencionei que o protagonista de A fome, Manoel
de Freitas, lembrava histórias contadas por seu pai a respeito de vítimas da
seca de 1825, cegas depois de comer batatas vermelhas. Ao longo de todo o
enredo, pessoas e animais, como caititus, ficam cegos ao comer mucunã sem
52
que antes tenha sido lavada em nove águas. Teófilo voltou ao assunto da
mucunã e de seus efeitos nos organismos humanos e animais com insistência
tocante em praticamente todos os seus livros. Comentou, por exemplo, no seu
Curso elementar de História Natural, um best-seller pedagógico do final dos
anos 1880, que os livros de botânica traziam apenas notícias vagas a respeito
de planta tão importante, e que a conheceu melhor ao escutar os sertanejos
que chegavam a Fortaleza:
A mucunã é uma planta brazileira historica, alimenticia, mas
nociva, conhecida no Ceará desde as secas mais remotas. O
seu nome é tradicional, está na memoria de todos os habitantes
desta provincia, passando assim de geração a geração. E como
poderia ser esquecida se ella é o pão dos famintos, dos
infelizes, durante as secas, calamidades terribilissimas, que de
tempos á tempos assolam o Ceará? Mas esse pão, que o
necessitado procura entre a vida e a morte, illude por momentos
a fome, que roe-lhe as entranhas; alenta um pouco as forças
que a inanição depaupera, em quanto um primeiro toxico,
associado a fecula, que indemnizava o organismo das perdas
que havia sofrido vae lentamente o impossibilitando as funções
da vida organica. [...] A sua abundancia nas regiões assoladas
pela secca, como são a India e as provincias do Norte do Brazil,
é um facto providencial nos parecendo que á esta planta está
reservado um papel importante entre as populações famintas.
Conversando uma vez com um indigente enfermo de anasarca,
maldisiamos a lethal mucunã, e quando suppunhamos que elle
nos ajudasse a praguejal-a, ouvimos surprehendidos dizer-nos:
– “É uma planta abençoada, sem ella peior seria, nos mata a
fome e a sede,” perguntamos-lhes como matava a sêde e elle
referiu-nos o seguinte, que achamos fabuloso, porém, depois
verificamos ser verdade: – “Nos caminhos as aguas são difficeis
e muito distantes umas das outras, a sêde, que é augmentada
pela alimentação de mucunã e pelo sol quente fazia
enlouquecer se não fosse mitigada pela propria mucunã, que a
exaspera. Em toda parte se a encontra, costuma nascer, mercê
de Deus, á beira dos caminhos, e quando as caravanas de
emigrantes não podem mais caminhar a falta d’água,
aproximam-se d’ella decepam a haste em duas partes, agua
corre em abundancia e saciam a sêde”. (TEÓFILO, 1899, p. 117-
118).
Ainda que estudos realizados ao longo do século XX, como as clássicas
abordagens de Josué de Castro (1984) a respeito da fome, tenham posto em
dúvida a ação nociva da mucunã, e sustentado a hipótese de que os males
elencados por Teófilo – cegueira, impedimento das “regras” das mulheres,
53
anasarca etc. – seriam causados pela própria desnutrição, até hoje não há
consenso a respeito dos efeitos negativos da planta quando ingerida sem o
devido preparo. Para Teófilo e outros intelectuais da sua época – Araripe Jr.,
por exemplo –, a fome e a mucunã causavam cegueira e, portanto, não é
estranho que a fome-corvos devore os olhos da personagem do poema.
Os saberes a respeito da mucunã, passados de geração a geração de
sertanejos, saber repetidamente ensinado a Teófilo pelos retirantes, era,
todavia, como ele mesmo salienta, em mais de um momento, parte da cultura
de diversos povos indígenas habitantes do território que veio a ser o Ceará. Um
saber milenar aniquilado ou inutilizado pela dominação capitalista que avança
sobre as comunidades humanas e mais-que-humanas.
Antônio Gomes de Freitas publicou na Revista do Instituto do Ceará em
1970 uma memória a respeito do povo Jucá, que habitava os altos sertões dos
Inhamuns – de onde, por sinal, saem os retirantes ficcionalizados por Teófilo
em A fome. “Nos tempos escassos”, afirma Freitas, “alimentavam-se os Jucás
de comida braba preparada com a rizoma da macambira [...], do carauatá [...],
ou da fécula do inhame [...], e da trabalhosíssima raiz da mucunã, que era,
cuidadosamente, passada em nove águas, da qual retiravam as substâncias
tóxicas” (1970, p. 152). O mesmo ensaio refere-se a outra planta que também
recebe o nome de mucunã – nomeada por Teófilo como mucunã preta – com a
qual os jucás preparavam, com sofisticada técnica de extração do “âmago do
caroço”, um “gostoso bolo” (1970, p. 152).
Logo depois de ouvir os gemidos da mulher crucificada pela fome no
lajedo (versões A, C e D da cena da mulher devorada por urubus), o outro
Freitas, protagonista das Scenas da secca do Ceará e de A fome, vaga pelos
caminhos da migração em busca de alimento. “A seca e a emigração
trouxeram-lhe mui logicamente a ideia da mucunã”, diz o narrador da versão D.
Ele encontra a planta com facilidade, coloca, raspada, em um recipiente com
água. A “farinha” decanta e Freitas então extrai dela a fécula e, quando vê o
líquido decantado pela primeira vez, pensa: “era a goma da mucunã ainda
imprestável aos usos da vida, porque só havia sido lavada uma vez e deveria
sê-lo nove” (p. 70 e ss.).
54
Assim, a fome-corvos do poema, os corvos-política, os corvos-economia
bicando os olhos da donzela, podem remeter à cegueira que as testemunhas
das fomes tanto relataram, seja ou não causada pela mucunã, sendo, sim,
causada pela violenta devastação dos sertões determinada pela economia
capitalista britânica em coalizão com a elite latifundiária cearense. Se esta
leitura a contrapelo é possível, é porque Teófilo, mal ou bem, com ou sem
estilo, anotou saberes a respeito da seca ligados às seculares práticas e
reflexões de povos como os Jucá e os Algodões.
***
Sirvam como conclusão duas palavrinhas a respeito do espaço ficcional
da “margem da estrada” tal como criado no poema. Em A fome, e nos relatos
históricos escritos por Teófilo, os retirantes aparecem realizando um gesto de
cuidado e memória com os mortos, que seria, sempre que possível, enterrá-los
na beira da estrada, em sete palmos de terra encimados por uma cruz. Os que
passassem pela estrada fariam uma oração e outros gestos de enlutamento a
quem morreu. Pode-se vislumbrar a partir disso o quão duro foi para os
retirantes formados em tal cultura deixar mortos insepultos nos caminhos. No
movimento da personagem do poema, de se posicionar no exato lugar para um
mínimo luto, a “margem da estrada”, fica indicado o gesto artístico de Teófilo,
que busca evocar no leitor a solidariedade com aqueles que não puderam,
obviamente, enterrar a si mesmos, nem ser enterrados e enlutados por quem
estava próximo. A donzela pede por água, alimento e, finalmente, por memória.
Se assim for, uma vez mais, o poema se desloca de ser mera cena “grotesca” e
resguarda uma contundência profunda27. A estrada seca, os urubus e o
retirante “imóvel” recobriram com o tempo toda a paisagem ficcional,
preenchida, entretanto, por elementos que formam um todo composicional
repleto de sutilezas temáticas e formais.
A composição do poema seleciona, para a morte da donzela, um lugar
com grande potencial simbólico para a cultura sertaneja, a margem da estrada,
27
Para uma análise do uso do grotesco nas narrativas sobre a seca, ver Barbalho, 2005, nas
referências.
55
que, ainda atualmente, recebe cruzes demarcatórias, por um lado, do lugar da
morte de uma pessoa, e, por outro, do lugar das vidas que, na sua passagem –
sempre breve –, cuidam do lembrar de quem morreu.
Os três elementos visados na análise que aqui se encerra, a fome-
corvos, a cegueira, a margem da estrada, confluem para a ideia de que o
poema esquecido de Rodolfo Teófilo assenta sua forma e suas imagens em
culturas cujos símbolos ficaram inacessíveis, esquecidos ou simplesmente
menosprezados pela cultura letrada, que os recobre com clichês e
classificações. Se esta hipótese de leitura puder ser estendida a outras obras
de Teófilo, pode também ser que a leitura literária esteja em melhor posição
para dar menos espaço para prescrições, julgamentos e classificações e um
pouco mais de espaço para a difícil e sempre provisória compreensão de
formas que tanto trabalho exigiram para serem tomadas ao esquecimento e à
violência generalizados do mundo do capital. É muito ruim quando histórias não
são contadas, e também quando, uma vez contadas, não são escutadas,
ninguém as ouve, nos tristes ermos dos volumes fechados e das memórias
orais caladas.
Referências
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. “Palavras que calcinam, palavras que
dominam: a invenção da seca do Nordeste”. Boletim da ANPUH, 1988.
BARBALHO, Alexandre. “Corpos e mentes dilacerados: o grotesco nas
imagens da seca de 1877”. Em Revista de História UFC. Fortaleza, v. 3, n. 6,
2005, p. 139-150.
BASSO, Samanta. Atravessando sertões: uma abordagem psicanalítica da
fome e do trauma a partir da obra literária de Rodolfo Teófilo. Dissertação.
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2022.
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Barrento. São Paulo: Autêntica, 2011.
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58
HEROÍNAS PROBLEMÁTICAS NEGRAS: DIÁLOGOS ENTRE AS
PERSONAGENS RAINHA GINGA, DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, E LUA
CAMBARÁ, DE RONALDO CORREIA DE BRITO
Kelcilene Grácia
(UFMS/Câmpus de Três Lagoas)
Enedir da Silva dos Santos
(SED/São José do Rio Preto)
Ao estabelecer diálogos entre um romance de um autor angolano e um
conto de autoria brasileira, intenta-se observar como os referidos autores, José
Eduardo Agualusa e Ronaldo Correia de Brito, constroem a partir das figuras
femininas, duas anti-heroínas, faces de resistência ante uma sociedade que
subalterniza e diminui a mulher. Neste trabalho, enviesaremos pela literatura
comparada, pois como reverbera Tania Franco Carvalhal (1998, p. 6),
“[c]omparar é um procedimento que faz parte da estrutura de pensamento do
homem e da organização da cultura”, não se tratando de “um método
específico, mas um procedimento mental que favorece a generalização ou a
diferenciação”.
O texto literário contribui para que se possa repensar a existência do
feminino por essa perspectiva, posto que o estudo crítico faz da comparação
fundamento preferencial da análise, mesmo sendo “um meio, não um fim”, a
ser investigado no “estudo comparado” (CARVALHAL, 1998, p. 7).
Dessa maneira, um olhar mais apurado pelas diferentes sociedades ao
longo do tempo evidencia-nos que para desconstruir a importância do
matriarcado e das mulheres na história, a modernidade lançou mão de um
empreendimento que alcançou e alcança sucesso, ainda hoje: a
despersonalização feminina e seus consequentes desdobramentos.
O patriarcado coloca a mulher na categoria do Outro, como mostra
Beauvoir (2016), posicionando-a como a discrepância diante do um, neste
caso, o homem. Empregando tal perspectiva, ocorre uma articulação complexa
e abrangente que, provavelmente, não se esgota nos exemplos referenciados
59
nesse texto, pois há séculos esse empreendimento vem estabelecendo e
sedimentando lugares.
O que aparentemente é simples, na verdade, envolve tantos itens e
critérios elaborados e presentes em várias dimensões da sociabilidade
humana: discursiva – numa constante tentativa de anulação e
desimportantização da voz da mulher; comportamental – incentivando a
subserviência e a anulação feminina a partir de papéis estereotipados como o
materno, o matrimonial, o filial, entre outros; o físico – o olhar do homem,
dominante para a eficácia dessa despersonalização, condiciona o corpo
feminino para padrões estéticos inalcançavelmente ideais.
Não se trata apenas de apregoar o que é o feminino ou o que é o
masculino, pois, como nos adverte Simone de Beauvoir:
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino
biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea
humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da
civilização que elabora esse produto intermediário entre o
macho e o castrado, que qualificam de feminino. Somente a
mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um
Outro. (BEAUVOIR, 2016, p. 11, grifo no original).
Diante dessa desconstrução engendrada pelo mecanismo social,
propomo-nos, nesta reflexão, contemplar a arquitetura composicional das
personagens nas produções literárias de Agualusa e Brito, pois se trata de
mulheres ousadas, que desafiaram as normativas de suas vivências,
contrapondo-se, muitas vezes com violência, aos ditames que as orientavam,
como direcionam muitas outras mulheres, à reclusão de suas vozes e lugares,
especificamente devido ao gênero de nascimento.
Observamos, inclusive, que as protagonistas rompem com as sinas a
elas destinadas: Lua não será a filha bastarda, excluída pela condição
imputada por seu pai; Ana de Souza, a rainha Ginga, ascende ao trono devido
ao seu caráter estrategista e guerreia, sem conhecer qualquer panorama de
diminuição ou descrédito por ser mulher.
Neste texto, empregamos os liames da literatura comparada para
aproximarmos as criações literárias daqui e de lá para percebermos como as
figuras femininas retratadas nas obras se configuram como rupturas diante dos
60
padrões patriarcais, não sem consequências para elas, como veremos no
decorrer do aprofundamento da análise.
A construção das personagens protagonistas: a arquitetura da resistência
Ainda hoje, poucas são as obras que possuem mulheres negras como
personagens protagonistas, talvez porque realmente não se enxergassem tais
mulheres como possíveis protagonistas – nem de suas vidas, quanto mais de
enredos, talvez porque somente há pouquíssimo tempo, as mulheres, de forma
geral, estejam sendo vistas como protagonistas de suas próprias histórias e
mais do que isso, como propulsoras de histórias.
É fato que o território literário é preenchido por uma imensidão de
autores que são mais publicados, mais visibilizados, logo, mais acessíveis e
acessados. Entretanto, quando pensamos em mulheres negras no território
literário brasileiro, sabemos que o século XX ganhou muito com autoras como
Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e a jovem Kyusam de Oliveira:
essas mulheres contribuíram e contribuem com o modo como seus escritos são
elaborados, com a construção de personagens que são exemplos de
resistência.
Em um panorama em que se relega à mulher um lugar de marginalidade
e desimportância, a literatura torna-se essencial para pensar a problemática
dessa sociedade que mata, estupra e silencia mulheres, negando-lhes o direito
de existir. Nos textos ficcionais escritos por Agualusa e Brito, o protagonismo
de duas mulheres negras, caracterizadas como mulheres fortes, constitui um
ato indicativo de desacordo com as práticas sociais, principalmente se
olharmos para as considerações de Candido (1976) de que os elementos que
um romancista escolhe para apresentar uma personagem, física e
espiritualmente, são por força indicativos.
Indicativos do descompasso entre o real e o que é retratado pela prosa
ficcional podem ser ilustrados pela afirmação de Lukács (2000, p. 14) de que “a
problemática da forma romanesca é a imagem especular de um mundo que
saiu dos trilhos”, condição que parece orientar a construção das personagens
61
protagonistas: Nzinga e Lua. Cada uma, em seu respectivo enredo, parece
ilustrar a oscilação entre a brutalidade corrente e a sondagem mítica do mundo,
da consciência ou da pura palavra, empregando as definições de Bosi (1978).
Tanto o romance de Agualusa quanto o conto de Brito têm uma
característica relevante para a análise proposta neste trabalho; ambos foram
escritos por homens e narrados por duas figuras que exalam certa pureza: A
rainha Ginga tem como narrador um padre brasileiro, Francisco José da Santa
Cruz; enquanto “Lua Cambará” é narrado pelo Doido Guará. São por essas
vozes que conhecemos as protagonistas e percebemos como o viés da
brutalidade das ações choca, principalmente quando tais protagonistas são
mulheres e colocam-se num lugar de poder que afronta o masculino.
O alfaiate e os seus escravos trabalharam noite e dia, sem
descanso, a semana inteira, de forma a cumprir tão importante
encomenda. Quando, na data aprazada, lhe foram entregar os
trajes, a Ginga teve um ataque de fúria. Já antes eu a vira
entregar-se a demonstrações de ira, mas nunca com tal
ímpeto. Rasgou com as mãos e com os dentes os finos
tecidos, enquanto gritava que dissessem ao governador não ter
ela falta do que vestir. Dizei-lhe, insistia, que irei trajada
segundo as minhas próprias leis, inteligência e entendimento.
(AGUALUSA, 2015, p. 31).
Ela cresceu viçosa – contava o Doido [...] – uma força de
homem, um mando no braço igual ao do pai. Do seu sangue
branco herdou a vontade de poder, a desobediência às leis de
Deus. Da mãe recebeu o rosário, que carregava no pescoço.
Tentava negar seu sangue negro, mas a cor da pele não
deixava. (BRITO, 2003, p. 147).
Essas mulheres, à luz de um mundo que saiu dos trilhos, oscilando entre
a brutalidade corrente e a sondagem mítica do mundo, reúnem características
diversas e ainda assim dialógicas com os enredos de que participam,
perpassando uma construção mimética que estabelece a coerência interna no
mundo habitado por tais personagens, que de acordo com as considerações de
Goldmann, poderiam ser ilustradas como “um personagem problemático, cuja
busca degradada e, por isso, inautêntica de valores autênticos num mundo de
conformismo e convenção” (GOLDMANN, 1967, p. 9, itálico do original).
62
A rainha Ginga transita pela África, evidenciando sua fortaleza. E mesmo
envolta por um contexto de guerra, disputa territorial, demonstra destreza no
trato com os homens, revelando a grandeza desse continente e de sua própria
pessoa. “O que levou a rainha a casar-se com Caza Cangola? Já o disse
antes: convinha-lhe o poder e a audácia dos jagas. O que levou o belicoso
soba a aceitá-la como esposa é mais difícil de compreender: talvez o amor”
(AGUALUSA, 2015, p. 83).
Lua, fruto de um estupro, assume o lugar paterno e enfrenta tudo e
todos pelo poder que almeja, sua vivência é árida, sem descanso ou prazer, “-
É filha da Negra Maria, moradeira dos extremos de vossa terra. Vinham na
direção de vossa casa. A mãe morreu de fome. A filha mamou sangue nos
peitos da morta. Tem gênio ruim e raça de branco” (BRITO, 2003, p. 147).
Construídas como mulheres corajosas que assumem a liderança e
enfrentam os homens e os contextos sociais de que participam, reúnem
características que vão da beleza à audácia, perpassadas pela imposição de
suas vontades, desaguando, muitas vezes, em enfrentamentos e violências,
por isso ambas ilustram em diferentes naturezas, a degradação em relação aos
valores autênticos (GOLDMANN, 1967).
A rainha Ginga
O subtítulo do romance de José Eduardo Agualusa “E de como os
africanos inventaram o mundo” já representaria, ante o olhar hegemônico do
colonizador europeu, uma busca degradada, inautêntica diante de um mundo
que, para o colonizador, só ganhou com a dominação europeia. Entretanto,
essa desconstrução proposta pelo autor explana um viés que revela a
organização, a importância e o soerguimento que a historiografia oficial tentou
apagar, promovendo também a desimportantização de um continente e de
seus habitantes para a história da humanidade. Nesse sentido, amparadas em
Goldmann (1967), podemos compreender que esses valores são autênticos
porque organizariam um universo silenciado.
63
A personagem da rainha Ginga dignifica a história de África, porque, se,
por um lado, o romance apresenta uma governante estrategista e até cruel, de
outro, promove um novo olhar sobre o continente, sua organização própria e
sua existência. Dessa forma, a narrativa de Agualusa parece nutrir-se da
intencionalidade de que trata Rosenfeld (1976) sobre a construção da
personagem, para possibilitar um outro olhar sobre a mulher e sobre o
continente, pois ao ficcionalizar uma figura real, a narrativa envereda pela
astúcia da rainha evidenciando que a construção dessa personagem
demoníaca, termo empregado por Lukács, ante a degradação do mundo,
estabelece novos paradigmas para entendê-lo, pois:
Súbito descortina-se então o mundo abandonado por deus
como falta de substância, como mistura irracional de densidade
e permeabilidade: o que antes parecia o mais sólido esfarela
como argila seca ao primeiro contato com quem está possuído
pelo demônio, e uma transparência vazia por trás da qual se
avistavam atraentes paisagens torna-se bruscamente uma
parede de vidro, contra a qual o homem se mortifica em vão e
insensatamente, qual abelhas contra uma vidraça, sem atinar
que ali não há passagem. (LUKÁCS, 2000, p. 92).
Ocorre que a personagem protagonista resiste a toda a subalternização
que desejam imputar à África e a ela própria, traçando planos e aliando-se a
todos aqueles que pudessem auxiliá-la em seus intuitos, inclusive empregando
sua feminilidade para isso. A rainha construída por Agualusa tanto negocia
quanto articula planos de guerra, assumindo a virilidade exigida, como mostra o
trecho: “Ginga discutia em voz alta com o irmão, como se com ele partilhasse a
mesma vigorosa condição de macho e de potentado. Já na altura não admitia
ser tratada como fêmea. E era ali tão homem que, com efeito, ninguém a
tomava por mulher” (AGUALUSA, 2015, p. 13). Porém, sem deixar de lado sua
maior munição a “sutil astúcia de Eva” (AGUALUSA, 2015, p. 84).
Como dito, é pela voz do padre Francisco que vamos conhecendo
Ginga, compartilhando com ele das impressões que ela lhe causa:
Tão viril quanto o homem mais macho. Uma mulher que nunca
vergava; que não tinha amo nem Deus. Uma mulher que
conhecia as artes da guerra, as suas armadilhas e danações
64
[...], pois sabendo cogitar como um homem, possuía a seu
favor a sutil astúcia de Eva. (AGUALUSA, 2015, p. 83-84).
Pela narração do padre, extraímos impressões que vão da admiração ao
medo, evocando um ser quase mítico: “A rainha não se tinha por vassala de
ninguém, muito menos de um soberano remoto que ela nunca vira”
(AGUALUSA, 2015, p. 79).
Lua Cambará
Já no posfácio de Faca (2003), livro que abriga o conto “Lua Cambará”,
Arrigucci Jr nos dá uma ideia acerca do perfil da protagonista, em cuja face o
leitor encontrará a ambígua presença da beleza e da dor, a oposição entre o
claro e o escuro, não apenas da pele, mas do destino que se desenha no ser,
vítima e algoz no cenário da vida:
[...] reprime com crueldade seu lado negro para cumprir,
tirânica, um destino demoníaco de desmandos e punir com
violência sanguinária quem lhe barra o desejo ou não aceita
sua paixão. Acaba como uma imagem alegórica da terra
madrasta que castiga os homens quando bem quer. No fim,
solitária e estéril, amaldiçoada, se transforma no fantasma sem
repouso da imaginação popular, conforme sua aparição inicial:
a beleza de seu corpo dentro da rede, que assombrava os
homens em vida e os encadeia mesmo depois de morta, está
pronta para virar xilogravura num folheto de cordel [...].
(ARRIGUCCI JR, 2003, p. 180).
A personagem protagonista do conto homônimo “Lua Cambará” sofreu
uma série de violências desde seu nascimento: fruto de um estupro, renegada
pelo pai e por sua família, obrigada a rechaçar sua origem negra, rejeitada pelo
homem que ama, enfim, uma soma de violências que se fundem e originam um
ser brutalizado que desconhece manifestações que não sejam imbuídas de
ódio.
Uma força brutalizada que não reconhece outras manifestações que não
sejam as de ordem ou ódio. Nesse cenário, alguns símbolos religiosos, ao
invés de denotar salvação ou temor a algo maior, contribuem para que na
constituição da personagem eclodam mais dor e sofrimento: o rosário, único
65
elo entre ela e a mãe, posteriormente abandonado a pedido do pai, e a
negação do batismo, consequentemente, da paternidade. Na diegese, a
articulação entre esses símbolos parece denotar que até o direito ao “céu” lhe
fora negado, ou seja, para ela não havia salvação.
Filha de ninguém, visto que a mãe morrera logo após o parto e o pai a
renegou, revogando tal decisão em seus últimos momentos de vida, seu
destino foi sentenciado pela crueldade, herança do coronel Pedro Francelino
do Cambará, e Lua continuou sendo filha de ninguém:
– Eu mandei te chamar aqui, na hora da minha morte. Quero
dizer que te reconheço como filha.
[...] Lua fora criada sem crença. O rosário no pescoço era o
umbigo com a mãe.
– Meu irmão não te reconhece como minha herdeira. Ele vai
querer cortar tua cabeça tão logo eu feche os olhos. És o filho
homem que não tive. Prova a coragem que tens, defendendo o
que é teu. Encara o lado do teu pai e renega o sangue de tua
mãe, do teu povo escravo que só faz te rebaixar. Quebra esse
rosário que carregas no pescoço. (BRITO, 2003, p. 148).
A título de exemplo, o quadro abaixo foi produzido para conferir maior
visibilidade às múltiplas formas de violência que moldaram a personagem
protagonista.
[...] Maria tentou gritar, o
vestido de chita rasgado nos peitos,
os mamilos duros. Um rosário de
contas azuis e brancas, pendente do
pescoço clamava proteção dos
santos. – Valei-me nas horas de
Violência sexual agonia e desamparo!
– Pedro Francelino tinha
mais mãos que uma medusa tem
cabeças. A boca mordia e babava.
O desejo sem pudor, expondo a
nudez ali mesmo, a rigidez de um
sexo que a idade não aquebrantava.
O chão era precioso leito. No céu,
66
os urubus que pressentem desgraça
sobrevoam aguardando seu dia.
(BRITO, 2003, p. 145-146).
– Me largue – gritou Maria, soltando
Violência física no chão duas cuias, derramando um
milho que pilara e sacudia ao vento.
[...] A mão de Pedro Francelino
apertava com força. Não seria uma
mulher que iria soltar-se. Quando
ele sustinha o rabo de um boi, entre
as tenazes dos dedos, o animal não
resistia, indo ao chão. (BRITO,
2003, p. 145).
Violência psicológica – Vamos! Qual foi o bocado que
você já provou na vida, melhor que
eu? (BRITO, 2003, p. 145).
Quadro elaborado pelas autoras (2024)
O material utilizado para construir a personagem evidencia a
inautenticidade desse mundo degradado, no enredo, reforçada pela aridez do
sertão nordestino e pela voz do Doido Guará, uma figura fúnebre que transita,
fantástica e fantasmagoricamente, entre a terra e o além.
O Doido Guará recupera a vida de Lua, destacando todo o panorama de
violência que forjou um ser que divaga entre céu e terra sem ser recebida em
nenhum dos mundos, mesmo após toda a agonia de sua morte.
Um cortejo de amortalhados passava ao longe. Homens e
mulheres pressentidos nos vultos. Numa rede alva,
atravessada por um pau, carregada por dois negros montados
a cavalo: Ela.
– É Lua Cambará, que segue seu destino de alma penada! –
gritaram das sombras.
O vaqueiro não se sustentou nos tremores das pernas. Nem os
cachorros estradeiros, sem temor de nada. Seus uivos
aterrorizados apagavam as vozes.
– E aonde vão? – atreveu-se meu pai a perguntar
67
A mão paterna se abria em meu peito, contando as batidas do
coração, mais veloz que as passadas dos cavalos que
carregavam a morta.
– Vamos pelo mundo a vagar, a vagar, a vagar... (BRITO,
2003, p. 143)
Considerações finais
A construção de personagens como Ginga e Lua evidenciam como o
texto literário, aportado em histórias, sejam elas reais, como a de Ana de Souza
que foi ficcionalizada por Agualuza, seja o causo contado nas noites
nordestinas e repassadas entre gerações, como o de Lua Cambará, de
Ronaldo Correia de Brito, conseguem ilustrar a inautenticidade e a degradação
do mundo.
As personagens protagonistas se constituem como rainhas – a primeira,
de África; a segunda, do sertão nordestino – e, nessa constituição, temos a
imagem desconstruída da nobreza exaltada pelo mundo ocidental: duas
mulheres negras, senhoras de seus destinos, inclusive sendo sentenciadas por
suas ações, o que não deixa de ser um apelo ao mundo real, em que as
mulheres que ousam desafiar paradigmas, são castigadas.
Nesse sentido, pensar na questão do herói problemático, amparados
pelos estudos de Lukács (2000) e Goldman (1967), leva-nos a compreender
como a ficção pode contribuir para refletirmos sobre o dilema da vida
contemporânea. Para os autores, o mundo está em constante desacordo com a
interioridade do ser, de modo que a alma heroica seria mais ou menos ampla
que esse mundo. Pensando nas personagens Ginga e Lua, poderemos atribuir-
lhes uma interioridade de considerável estreiteza em confronto com o mundo
que as recebe: Ginga, a rainha que usa suas artimanhas para governar e Lua
que usa sua rebeldia para ocupar o espaço de filha e proprietária, assim,
ambas ilustram o que Lukács afirma sobre os heróis romanescos “[...] eles
buscam algo” (LUKÁCS, 2000, p. 60).
Em ambas as obras, há certa inovação ao atribuir o protagonismo a
quem sempre esteve à margem. Embora díspares, tanto Ginga quanto Lua
68
estabelecem um diálogo com a representação de mulheres fortes: capazes de
guerrear, de lutar pelo querem e desafiar a ordem imposta.
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69
FLORBELA ESPANCA E ROSIDELMA FRAGA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL
NA POESIA FEMININA DE PORTUGAL E DA AMAZÔNIA28
Cátia Monteiro Wankler29
UFRR
Veronica Prudente Costa30
UFRR
Começando a conversa sobre poetas de Portugal e da Amazônia
Envolvidas em pesquisas que tratam de deslocamentos – físicos e/ou
simbólicos – e diálogos entre Portugal, Brasil e África no que tange às
chamadas minorias, tais como migrantes, indígenas, negros e mulheres,
nossos olhares se espraiam por diversas searas literárias. Um dos nossos
interesses concentra-se na lírica produzida por esses grupos identitários nos
locus em que estão focadas nossas investigações e os possíveis – e, por
vezes, incontroversos – diálogos entre elas. E é sobre isso que este texto se
propõe a “conversar”.
Nossas reflexões têm início a propósito da recente celebração do
centenário do Livro de ‘Sóror Saudade’, de Florbela Espanca, em 2023, que
nos parece oportuna para que atentemos para os olhares de mulheres sobre o
mundo e o meio, o que vem se mostrando como um debate essencial no
âmbito dos Estudos Literários. Afirmamos isso considerando não apenas, mas
sobremaneira, o silenciamento da figura feminina nas literaturas, seja como
personagem, narradora e, sobretudo, como autora.
28
Resultado de pesquisas do projeto “Minorias Sociais e Trânsitos Identitários, Literários e
Culturais entre Amazônia, África e Portugal”, coordenado pela Profa. Veronica Prudente com
financiamento do CNPq.
29
Professora Titular do Curso de Letras da UFRR. Pós-Doutoranda em Letras. Doutora em
Teoria da Literatura. Mestre em Literatura Portuguesa. Lider do GP Estudos de Literatura e
Identidade-UFRR/CNPq. Coordenadora do Projeto de Pesquisa “Vozes femininas na poesia
lírico-amorosa: diálogos possíveis entre Roraima e Portugal”/UFRR.
30
Professora Adjunta do Curso de Letras da UFRR. Pós-Doutora em Letras. Doutora e Mestre
em Literaturas Portuguesa e Africanas. Coordenadora do Projeto de Pesquisa “Minorias Sociais
e Trânsitos Identitários, Literários e Culturais entre Amazônia, África e Portugal” -CNPq/UFRR.
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As reflexões que ora propomos mostram-se oportunas em diversos
aspectos, tendo em vista que o pensar acerca do lugar da mulher na sociedade
por meio da observação histórica, seja a partir das teorias sociológicas, seja do
ponto de vista dos estudos culturais, tem-se tornado prioritário no campo dos
Estudos Literários como forma de questionar as estruturas sociais que vêm
invisibilizando sistematicamente a figura feminina ao longo de séculos. Tanto
do ponto de vista de autoria quanto de construção de personagens femininos, o
que se verifica é a projeção de simulacros estereotipados pelo olhar de um
“outro”, normalmente masculino, ponto que pode ser reforçado pelo que
esclarece Regina Dalcastagnè,
A vida dos grupos marginalizados tende a ser
representada à distância, de forma “monocromática” –
como diria Löic Wacquant (2001, p. 07) – e estática.
Normalmente, seus integrantes nos são apresentados ou
como vítimas do sistema ou como aberrações violentas.
No entanto, sob uma perspectiva menos autocentrada, é
possível vislumbrar, entre eles, uma infinidade de
estratégias de resistência e de deslocamentos, ou
tentativas de deslocamento, no espaço social.
(DALCASTAGNÈ, 2012, p. 55).
Em qualquer dos dois papeis, a mulher é quase sempre colocada em um
lugar de submissão tratado cotidianamente com tanta “naturalidade”, que essa
visão já se tornou arraigada em quase tudo o que vemos, ouvimos e sentimos,
tornando difícil que nos desvencilhemos dela, por mais discordantes e
transgressores que sejamos (LERNER, 2019).
É para conversar sobre duas mulheres, poetas e transgressoras, cada
uma em seu tempo e a seu modo, que decidimos conceber este estudo, tendo
em vista que, paralelamente à leitura do Livro de ‘Sóror Saudade’ – e da
poética florbeliana como um todo – encontramos uma escritora
contemporânea, poeta da Amazônia, parte do escopo de nossas pesquisas,
cuja obra dialoga, em vários aspectos, com a de Espanca. Este trabalho
objetiva apresentar alguns destes diálogos, aproximando espaços e tempos
muito distantes – Portugal, início do século XX e Amazônia brasileira, início do
século XXI – por meio da reflexão sobre a(s) modernidade(s) das obras,
abordando questões que perduram como realidade no universo feminino.
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Devido à peculiaridade do primeiro nome de cada uma das nossas
poetas – Florbela e Rosidelma – e sua aproximação semântica com o lirismo
que praticam, pedimos, desde já, licença a um aspecto da práxis dos textos
científicos que convenciona tratar os/as autores/as pelo sobrenome para tratá-
las pelo prenome.
Florbela Espanca e o Livro de ‘Sóror Saudade’
Florbela Espanca nasceu no Alentejo, Portugal, em 8 de dezembro de
1894. Foi uma das primeiras mulheres a frequentar um curso no Liceu Nacional
de Évora. Posteriormente, cursou Letras, foi uma das 14 alunas da Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa. Profissionalmente, atuou como jornalista
em “Modas & Bordado”, suplemento do jornal O Século, jornal diário
lisbonense, e nos jornais Notícias de Évora e A Voz Pública, também de Évora.
Também como jornalista, trabalhou no periódico Dom Nuno, de Vila Viçosa, no
Portugal Feminino, de Lisboa, na revista Civilização e no jornal diário Primeiro
de Janeiro, estes dois últimos na cidade do Porto. A autora ainda foi tradutora
das editoras Civilização e Figueirinhas, ambas do Porto.
Casada por três vezes, divorciou-se dos dois primeiros maridos, fato
incomum para uma época em que o olhar da sociedade sobre uma “mulher
separada” era extremamente cruel, considerando que o fracasso do matrimônio
era sempre creditado às mulheres, que tinham como dever ser lenientes e
submissas a seus maridos, independentemente da qualidade de sua
convivência e do tratamento que recebessem deles.
A reforçar sua imagem transgressora, os relacionamentos da autora com
o segundo e o terceiro maridos tiveram início antes do encerramento efetivo
dos anteriores e ela não pariu filhos, tendo sofrido um ou mais abortos
involuntários31. Não ter filhos é algo que, até hoje, é socialmente tratado como
um sinal de “fracasso” da existência feminina e, segundo Gerda Lerner, tem
sido fator determinante para a submissão de mulheres a homens:
31
Há divergências entre as biografias de Espanca em relação a esse dado, sobre o qual não
desejamos nos concentrar.
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Para historiadores, a questão mais importante e
significativa é: como, quando e por que a submissão
feminina passou a existir?
A explicação tradicionalista concentra-se na capacidade
reprodutiva feminina e vê a maternidade como a maior
meta na vida das mulheres, definindo, assim, como
desviantes mulheres que não se tornam mães. Considera-
se a função materna uma necessidade da espécie, uma
vez que as sociedades não teriam conseguido chegar à
modernidade sem que a maioria das mulheres dedicasse
quase toda a vida adulta a ter e criar filhos. Assim, vê-se a
divisão sexual do trabalho com base em diferenças
biológicas como justa e funcional. (LERNER, 2019, p. 40).
Considerando particularmente o trecho da citação acima em que Lerner
diz que, tradicionalmente, se “vê a maternidade como a maior meta na vida das
mulheres, definindo, assim, como desviantes mulheres que não se tornam
mães”, podemos inferir, com baixa margem de erro, que Florbela tenha sentido
o peso das exigências maritais e das cobranças sociais acerca da maternidade,
tendo em vista que esse tipo de mentalidade é corrente até hoje, mesmo após
tantas (mas ainda insuficientes) mudanças nas relações de gênero. Por outro
lado, não ter tido filhos propiciou a Florbela um certo grau de “liberdade”
individual – talvez o termo mais adequado seja autonomia –, sobretudo para
dissolver seus casamentos.
Em “O Errante Feminino em Florbela Espanca” (2017), Maria Lúcia Dal
Farra inicia sua explanação referindo um pouco do período em que a poeta
viveu, afirmando que “A curta existência da Poetisa transcorreu num período
muito conturbado da história política portuguesa, pois ela atravessou a
Monarquia, experimentou a passagem desta para a República, tendo
alcançado ainda os primórdios do Salazarismo – o chamado Estado Novo
Português” (p. 01). As mudanças políticas não foram as únicas nesta transição
do século XIX para o XX, período de grandes transformações sociais,
econômicas e de efervescência cultural. Dal Farra esclarece ainda que a
biografia da escritora sofreu inúmeras manipulações de dados, bem como
aponta que sua obra tem passado “por diferentes apropriações ideológicas ao
sabor das conveniências políticas” (2017, p. 01).
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Florbela viveu intensamente, porém, por pouco tempo, tendo cometido
suicídio no dia em que completaria 36 anos de idade, deixando mais de 10
obras publicadas, entre poesia, prosa, epístolas e coletâneas, sendo, hoje, uma
das mais estudadas autoras portuguesas.
O Livro de ‘Sóror Saudade’, de 1923, foi uma das duas únicas obras
publicadas ainda durante a existência física da poeta e, desde então, tem sido
lida e descrita, ao mesmo tempo, como dolorosa, triste, impudica, pagã e
voluptuosa, atraindo certa atenção negativa do público seu coetâneo,
principalmente por tais características estarem vinculadas a poemas escritos
por uma mulher. Tanto a temática quanto a estética dos poemas apontam para
a modernidade da obra de Florbela Espanca em um momento tão profícuo para
quebras de paradigmas quanto foi o Modernismo.
Rosidelma Fraga e AmorAmante
Rosidelma Fraga nasceu em Alto Araguaia, no estado do Mato Grosso,
em 25 de dezembro de 1972. É graduada em Letras pela Universidade do
Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Mestre e Doutora em Letras pela
Universidade Federal de Goiás (UFG) e Pós-Doutora pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Suas primeiras experiências como docente do Ensino Superior
ocorreram na UNEMAT e na UFG, mas, em 2014, migrou para Boa Vista,
Roraima, para atuar como Professora concursada de Literatura do Curso de
Licenciatura em Letras da Universidade Estadual de Roraima (UERR). Em
2019, também por meio de Concurso Público, tornou-se Professora de
Literatura do Curso de Licenciatura em Educação do Campo e, posteriormente,
da Licenciatura em Letras da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Na
UFRR, atua na graduação, na pós-graduação – em Letras (PPGL) e Educação
Inclusiva (PROFEI) –, na extensão e, na pesquisa, coordena o Grupo de
Pesquisa “Africanidades, Literatura e Minorias Sociais”, certificado pelo CNPq,
e o “Laboratório de Africanidades e Minorias Sociais Conceição Evaristo”
(AFRICE).
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Rosidelma casou-se duas vezes, separou-se de ambos os cônjuges, e
tem um filho e uma filha aos quais é muito devotada e a quem faz questão de
dedicar os produtos de seu trabalho, tanto acadêmico quanto literário.
Os estudos de Rosidelma sempre orbitaram a poesia, principalmente
aquela considerada “não-canônica”, como a matogrossense, a roraimense, a
afro-brasileira e as africanas, mas, além de estudar poesia, assunto sobre o
qual tem substancial produção bibliográfica, ela também é autora de poemas,
tendo três títulos publicados, ‘Poiesis’ em verso e prosa, Cantares de amor e
AmorAmante, mas esta conta ainda com pouca fortuna crítica, tento em vista
se tratar de obra recente e “periférica” em relação ao cânone literário brasileiro.
É em AmorAmante, publicado em 2018, que nos concentraremos neste
estudo. O Prefácio da obra aponta que
AmorAmante passeia por mitologias e culturas que vão da
Grécia antiga aos povos indígenas do Brasil, ressoa
músicas de todos os tempos, resfolega tudo quanto pode
estar contido num som, numa imagem, num cheiro, num
gosto, no pressentir um arrepio na espinha. Mas, antes de
tudo, trata-se de Amor, assim, com maiúscula,
personificado. (WANKLER. Prefácio, apud FRAGA, 2018,
p. 10).
Marcadamente, é um livro repleto de influências tanto teóricas quanto
literárias, passando pelo próprio Manoel de Barros, já na epígrafe, por
Fernando Pessoa, Paulo Leminsky, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e
Florbela Espanca.
É em uma – possível e provável – intertextualidade de Florbela e
Rosidelma que pretendemos nos debruçar a partir desse ponto.
Florbela e Rosidelma em Amor e Lírica
Abordar o Livro de ‘Sóror Saudade’ e AmorAmante pela perspectiva
comparativista é um desafio e, ao mesmo tempo, uma dança que ocorre quase
que espontaneamente, no fluxo das leituras de um e de outro.
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Inequivocamente, trata-se de volumes sobre amor, sobre amar, sobre ser/estar
amante, sobre sofrer por amor; podemos começar essa leitura por suas
epígrafes, bastante reveladoras.
Florbela propõe como epígrafes do Livro de ‘Sóror Saudade’ uma
citação de Américo Durão – com quem teve contato em sua passagem pela
Universidade de Lisboa –, a qual inspira o próprio título da obra, e outra, do
escritor belga Maurice Maeterlinck:
Irmã; Sóror Saudade, ah! se eu pudesse
Tocar de aspiração a nossa vida,
Fazer do mundo a Terra Prometida
Que ainda em sonho às vezes me aparece!
Américo Durão
Il n'a pas à se plaindre celui qui attend
Un sentiment plus ardent et plus généreux.
Il n'a pas à se plaindre celui qui attend
Le désir d'un peu plus de bonheur, d'un
Peu plus de beauté, d'un peu plus de justice.
Maeterlinck - La Sagesse et la Destinée32
Ambas as epígrafes são marcadas pelos sonhos que parecem
inalcançáveis, pela quimera, pela ausência, a saudade, o desejo de beleza e
felicidade – “saudade”; “aspiração”; “Fazer do mundo Terra Prometida” que só
aparece em sonho; “plaindre”; “désir”, além do verbo no subjuntivo, que indica
incerteza, mera possibilidade – “ah! se eu pudesse”. Elas evocam uma aura de
abstração, intangibilidade, frustração e tristeza.
AmorAmante já anuncia seu escopo pelo título e se prolonga na
epígrafe, extraída do poema “Amor”, de Manoel de Barros (2001), um dos
poetas vastamente estudados por Rosidelma.
Sendo que não é melhor do que fazer
pessoas na cama
Nem na rede
Nem mesmo no jirau como os índios fazem.
32
Em tradução livre: “Quem espera não tem do que reclamar / Um sentimento mais ardente e
mais generoso. / Quem espera não tem do que reclamar / O desejo de um pouco mais de
doçura, de um / Um pouco mais de beleza. um pouco mais de justiça. Maeterlinck - Sabedoria
e Destino”
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[...]
Para fazer pessoas ninguém ainda não
inventou nada melhor que o amor.
Embora a citação deixe claro o tema do amor, este é trazido a partir de
uma perspectiva mais material, física, aludindo ao sexo através da imagem do
“fazer pessoas”, carregada de erotismo, praticamente sem usar palavras que o
explicitem, sendo as mais sugestivas “cama” e “amor”. Essa obliquidade no uso
do vocabulário sugere leveza ao tema do amor, mesmo deixando claro que se
trata do carnal, do que deixou de ser perspectiva para ser realidade.
Esse caminho é reforçado nos versos de Rosidelma, pelo poema
“Epígrafe Amorosa”, que diz:
Epigrafei tuas iniciais
Em meu corpo de maresia.
Tatuei nossas almas
No verso da cor de poesia.
O poema saiu sem defeito
Igual a nuvem vestida de Deus.
(FRAGA, 2018, p. 68)
Este breve poema parece brincar com a ideia de
materialidade/imaterialidade, utilizando como complementares pares de
palavras que, de alguma forma, se opõem: corpo/maresia; tatuas/almas;
cor/poesia; poema/defeito; nuvem vestida/Deus. E este jogo vem a propósito
de explicar a fixação das “iniciais” do ser amado, sugerindo o amor como este
mesmo jogo, ele é, a um tempo corpóreo e diáfano, sendo que os dois últimos
versos – “O poema saiu sem defeito / Igual a nuvem vestida de Deus” –
aproximam o amor do fazer poético, que só se afigura perfeito se vivenciado
em suas contradições, e contradições sugerem individualidades confluentes.
Na mesma seara da analogia entre o amor e o fazer poético, trazemos o
segundo poema do Livro de ‘Sóror Saudade’,
“O nosso livro”
A A.G.
Livro do meu amor, do teu amor,
Livro do nosso amor, do nosso peito...
Abre-lhe as folhas devagar, com jeito,
Como se fossem pétalas de flor.
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Olha que eu outro já não sei compor
Mais santamente triste, mais perfeito
Não esfolhes os lírios com que é feito
Que outros não tenho em meu jardim de dor!
Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu!
Num sorriso tu dizes e digo eu:
Versos só nossos mas que lindos sois!
Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente
Dirá, fechando o livro docemente:
"Versos só nossos, só de nós os dois!..."
(ESPANCA, 1996, p. 169)
Se o poema de Rosidelma traz o amor como um jogo de
individualidades, este, de Florbela, o apresenta como uma espécie de fusão,
em que ‘eu’ e ‘tu’ se mostram no primeiro verso, que apresenta o “Livro do
meu33 amor, do teu amor”, que se torna o “Livro do nosso amor” no verso
seguinte. A partir daí, os pares ‘eu/tu’, ‘meu/teu’ são sucedidos por ‘nós’ ou
‘nosso’ e demonstram, na última estrofe, acreditar que o “nosso livro” inspirará
outros que, como eles, desejem ‘ser um’. No entanto, há que se observar que,
a despeito da empolgação expressa nos vários pontos de exclamação, a partir
do oitavo verso, este livro, metáfora de um amor, é frágil e precisa ser
vivenciado com cuidado, com delicadeza: “Abre-lhe as folhas devagar, com
jeito, / Como se fossem pétalas de flor.”. A segunda estrofe, no entanto,
manifesta um eu-lírico que se mostra como sujeito da construção do livro-amor:
ele o compôs – “Olha que eu outro já não sei compor” – ele define sua natureza
“triste” e “perfeita” – “Mais santamente triste, mais perfeito” — e indica como
deve ser “manuseado”, comparando as folhas do livro às delicadas pétalas de
um lírio – “Não esfolhes os lírios com que é feito”. No último verso da estrofe –
“Que outros não tenho em meu jardim de dor!” – se concentra todo o temor,
toda a insegurança e a incerteza em relação ao amor, à sua entrega ao outro,
que não se evidencia no resto do poema.
Este aspecto, que praticamente se restringe à segunda estrofe em “O
nosso Livro”, é o que se evidencia com prevalência na maioria dos poemas do
33
Grifos nossos.
78
Livro de ‘Sóror Saudade’: a angústia por uma “falta”, a dor pela busca de uma
completitude só vislumbrada através da vivência de um amor que não se
acabe, elemento muito marcante na produção literária de Florbela. Abaixo,
alguns trechos dos poemas “O que tu és...” e “Fumo”, respectivamente, que
apontam esse aspecto.
És Aquela que tudo te entristece
Irrita e amargura, tudo humilha;
Aquela a quem a Mágoa chamou filha;
A que aos homens e a Deus nada merece.
(ESPANCA, 1996, p. 170)
Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu amor pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos...
(ESPANCA, 1996, p. 173)
Estes dois breves exemplos dão conta de uma temática e uma
abordagem verdadeiramente frequentes em todo o conjunto da obra da autora,
inclusive da produção em prosa. A dor e o vazio existenciais e a busca por algo
que preenchesse este vazio são elementos que agregam melancolia e
profundidade à poética de Florbela que, sob um primeiro e desatento olhar,
pode soar como versos românticos de uma moça sonhadora, o que
rapidamente, com um laivo de atenção, se desmente.
Ao longo de sua leitura, é possível observar a busca por uma identidade,
por uma subjetividade que ora parece ser um “outro”, ora parece ser um “si
mesmo”34. Exemplos extremos de tal dualidade são seus dois poemas
intitulados “Eu”: o primeiro citado abaixo está no Livro de mágoas, de 1919, e o
segundo em Charneca em flor, de 1931 (póstumo).
EU
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...
34
Empregamos aqui a terminologia de Paul Ricoeur em sua obra O si-mesmo como um outro
(1991), em que postula, grosso modo, a existência de uma “identidade idem” – o “eu” em si – e
uma “identidade ipse” — um “eu” fora do si-mesmo, que se constitui como um “outro”.
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Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...
Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
(ESPANCA, 1996, p. 133)
EU
Até agora eu não me conhecia,
julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era Eu não o sabia
mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... e não me via!
Andava a procurar-me - pobre louca!-
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!
E esta ânsia de viver, que nada acalma,
E a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!
(ESPANCA, 1996, p. 215)
É possível observar que no primeiro poema intitulado “Eu”, verifica-se
uma tentativa ativa de este sujeito se definir, de explicar sua existência,
conduzida por um “destino amargo, triste e forte”, e seu lugar num mundo,
onde se considera “a crucificada ... a dolorida ...”, “Alma de luto sempre
incompreendida! ...”; é a que: “passa e ninguém vê ...”, “chamam triste sem o
ser”, “chora sem saber porquê ...”. Encerra o poema vinculando a sua real
existência a um “outro”: “Sou talvez a visão que Alguém sonhou, /Alguém que
veio ao mundo pra me ver/E que nunca na vida me encontrou!”.
No segundo “Eu”, já é possível observar que uma autodefinição não
parece mais uma opção válida, sendo que a compreensão do sujeito poético de
80
si mesma mostra-se muito mais complexa, filosófica, baseada muito mais em
questionamentos e incertezas do que em certezas: “Até agora eu não me
conhecia,/julgava que era Eu e eu não era”, “Mas que eu não era Eu não o
sabia/mesmo que o soubesse, o não dissera...”, “Andava a procurar-me - pobre
louca!- ”. A partir do segundo verso do primeiro terceto do soneto, o ‘eu’ vincula
sua autodescoberta a um ‘outro’, no entanto, os versos comportam a leitura de
que aquele ‘outro’ pode ser um desdobramento dela mesma, sem descartar, de
todo, a possibilidade de ser uma outra pessoa.
Conforme Maria Lucia Dal Farra,
O seu primeiro projeto literário, o Trocando Olhares
(constante do manuscrito homônimo, vindo à luz apenas
na década de oitenta, e que integra poemas produzidos
entre maio de 1915 e abril de 1916), aponta para uma
inaugural representação do feminino. A mulher (e Florbela
tem então 21 anos) é desenhada como um ser carente,
que necessita da luz definidora do homem. Trata-se de
um ente sem identidade, imagem de um espaço vazio que
aguarda ser preenchido, a fim de que possa adquirir
sentido. (DAL FARRA, 2017, p. 77).
E complementa que
Em Charneca em Flor, livro póstumo publicado em 1931,
assistimos ao desfile de uma plêiade de figurações
femininas, que parece comprovar a hipótese de uma
personalidade capaz de desdobrar-se ao infinito, como
uma dramaturga de si mesma, ou, mais que isso, como
um drama cujo palco é a própria mente. A encarnação que
lhes dá sustentação parece ser a de uma mulher que se
concebe emblemática de uma desgraça feminina
exemplar, aquela erigida pela via do sofrimento: a exilada
da vida, a perdida, a rejeitada pela sociedade. Mas esse
corpo assim tão magoado é que permite a escrita e a
poesia, o que a faz poeta em feminino, Poetisa – quando
a dor se converte em potência. (DAL FARRA, 2017, p.
91).
Dessa perspectiva, é possível inferir que, da composição do primeiro
poema para o segundo, houve um processo de mudança na forma de o “eu”
ver o mundo, entender seus desejos, o amor e, sobretudo, a busca e a
compreensão de si. Entretanto, considerando estes dois poemas, o segundo
81
momento é de percepção aguda da fragmentação de si e do entorno, da
impotência humana convertida em potência poética, como nos aponta Dal
Farra.
Entre os dois momentos apontados por Dal Farra acima, encontra-se o
Livro de ‘Sóror Saudade’, que pode ser considerado, para fins deste estudo, a
resultante física do fluxo, o transcurso do movimento de mudança, bastante
marcado pelo sentimento de incompletude, pela busca de um outro, por um
amor que parece quase “de carne e osso”, considerando as tantas vezes que é
invocado como finalidade mesma da existência.
Vemos que em AmorAmante também ocorre uma busca por amor, no
entanto, apesar de desejado, é prescindível, e por isso assume múltiplas
formas, ora centrado no outro, ora em si, o que o torna frequentemente
satisfatório.
“Amor masculino”
Ah, meu amor, eu hoje acordei mais humano
E abri os botões do vestido azul no espelho
E descobri que teu homem sou eu, e eis que teu soluço
Veio me dizer que és ainda todinho meu.
Ah, meu amor, meu amor, não negues nunca...
Porque sensitivamente eu apaguei a luz...
E na epifania de nossas almas gêmeas, ouvi-te
E vi-te à luz negra a adentrar meu quarto
E nos amamos como dois amantes sem gêneros.
Meu ser estremece e cambaleia a tua procura
Inerte, quase sem voz, grito teu nome, AMOR...
E tu vens e me respondes como almas telepáticas.
Ah, meu amor, eu hoje dou mil cambalhotas
E encontro-me aqui a chamar-te: ah, meu amor!
(FRAGA, 2018, p. 84)
“Amor masculino” trata, a princípio, do autoerotismo, em que o amante é
personificado na figura abstrata do Amor, vislumbrado através do espelho,
numa duplicação do eu – feminino – nele projetado e identificado como tal a
partir do “vestido azul”, elemento que assinala o feminino, por ser “vestido”, e o
insinua como masculino, por ser “azul”. Isso se reafirma nos terceiro e quarto
versos, “E descobri que teu homem sou eu e eis que teu soluço / Veio me dizer
82
que és ainda todinho meu.”, numa declaração de autossuficiência erótica,
satisfação afetiva e confiança na exclusividade da parceria. A partir daí, o
poema é só entrega, sem gênero, sem preocupações externas, sem
necessidade de palavras, é só o Amor, em sua mais pura forma.
Considerações finais para iniciar uma conversa
Tratamos aqui de apenas alguns poemas, de obras específicas, de
Florbela Espanca e Rosidelma Fraga, por terem sido as primeiras a despertar
nosso interesse científico. No entanto, isso é só o resultado das primeiras
reflexões, de algo que se inicia, pois, nesse começo, são muitas portas que se
abrem no que diz respeito não só ao Livro de ‘Sóror Saudade’ e AmorAmante,
mas também a outras obras das autoras.
Para além do fato de serem de autoria feminina, os dois volumes de
poemas que nos propusemos a cotejar aqui se entrelaçam no tom
confessional, no erotismo, nas buscas por diferentes formas de vivenciar o
amor, de lidar com as dores e vazios. Eles dialogam no sentido de
modernidade que anunciam, propiciando uma visão significativa sobre a
condição feminina no campo literário e, por meio dele, no entorno, no contexto
em que viveu Florbela e em que vive Rosidelma.
Escolhemos encerrar nossa conversa com o poema “Amor sem cortes”,
de Rosidelma, que nos parece expandir o sentido de amor de que tanto se
ocupam ela e Florbela.
Toco no avesso do mundo para encontrar nos destroços
Do que restou do poema além de amores efêmeros.
Ora a palavra AMOR foi a sutura da humanidade e seu
ódio.
O amor é a falácia global na cama dos desafetos e
enganos.
O amor é esse grito de poder, de corpo ideal e desejo
finito.
O amor tornou-se dividendo e raiz cúbica em matéria
física.
O amor vestiu a roupa midiática e perdeu sua aura.
83
Ninguém viu que o amor virgem se quebrou como um
vidro...
Todos os poetas líricos viram todo o amor jogado na lama.
Mas eu, a poetinha da razão, o guardei no sangue
congelado.
Medi e calculei sua perda e escondi o útero de minha
alma.
Costurei-o em minhas vértebras a vibrar a nudez de
ausências.
Hoje, neste instante metafísico de não saber o que
somos,
O amor é a minha certeza nos lençóis líricos amassados.
Ainda que rasgado, gelo triturado, e aos destroços,
definhando.
Vibro porque congelei a essência do amor em gotas.
Guardei ainda o amor deixado pelo mendigo atrás da
ponte
E recuperado na lama seca de papel atrás do morro e seu
abandono.
Tenho o amor do silêncio que roubei dos poetas
embriagados...
Eis que na audácia furtei o segredo da lacuna do verbo
amar,
pois sei que o amor da ausência é a melhor das
completudes.
Ela, essa ausência corrosiva, é a poesia do vazio
translúcido.
É no espaço dela que o amor bate a orla, explode e
transborda.
(FRAGA, 2018, p. 91)
Referências
DAL FARRA, Maria Lúcia. O Errante Feminino em Florbela Espanca.
ContraCorrente: Revista do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar
em Ciências Humanas, [S.l.], n. 3, maio 2017. ISSN 2525-4529. Disponível
em: <https://periodicos.uea.edu.br/index.php/contracorrente/article/view/493>.
Acesso em: 25 set. 2023.
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território
contestado. Rio de Janeiro: Editora Horizonte/Editora da UERJ, 2012.
ESPANCA, Florbela. Poemas de Florbela Espanca. Estudo introdutório,
organização e notas de Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
84
FRAGA, Rosidelma. AmorAmante. CUIABÁ: Carlini & Caniato Editorial - Tanta
Tinta, 2018.
LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história de opressão das mulheres
pelos homens. Tradução: Luiza Sellera. Edição digital, São Paulo: Editora
Cultrix, 2019.
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Trad. Luci Moreira Cesar.
Campinas: Papirus, 1991.
85
LITERATURA COMPARADA E TEORIA QUEER
Anselmo Peres Alós35
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Literatura comparada, estudos de gênero e teoria queer
A preocupação da literatura comparada com um gesto de leitura crítico
transversal e transnacional não é uma novidade em seu campo disciplinar: tal
preocupação já ocupava um lugar de destaque nas primeiras definições do
campo de atuação do comparatismo, tal como nas discussões de Alfred Owen
Aldridge, Henry H. H. Remak e René Etiemble. Remak definia a literatura
comparada como a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a
comparação da literatura com outras esferas da expressão humana (REMAK,
1961); Aldridge, por sua vez, afirmava que a Literatura Comparada é o estudo
de qualquer fenômeno literário do ponto de vista de mais de uma literatura
nacional ou em conjunto com outra disciplina intelectual, ou até mesmo de
várias (ALDRIDGE, 1969). Etiemble, finalmente, defendia a necessidade de
que os estudos comparatistas dedicassem atenção às literaturas ditas
marginais no debate comparatista, tais como as latino-americanas e as
africanas, partindo do pressuposto de que o projeto de uma Weltliteratur ou
de uma literatura geral jamais poderia ter a pretensão de representatividade
se incluísse apenas as literaturas europeias e norte-americanas (ETIEMBLE,
1975).
Tom Greene, em seu relatório de 1975 acerca dos parâmetros para o
campo disciplinar comparatista, salientou: “[A Literatura Comparada] almeja
também o esclarecimento de grandes questões teóricas da crítica literária a
partir de um ponto de vista cosmopolita privilegiado”. Mesmo em trabalhos
recentes, como no livro Comparative Literature, de Susan Bassnett, a questão
35
Doutor em Letras pela UFRGS. Professor Associado III na UFSM e Docente Permanente do
Programa de Pós-Graduação em Letras dessa mesma instituição.
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da definição dos limites e da definição do objeto do comparatismo é
retomada: ao fim e ao cabo, o que se pode afirmar com segurança é que a
Literatura Comparada envolve o estudo de textos entre culturas, que ela é
interdisciplinar e que ela está voltada para os padrões de relações entre as
literaturas no tempo e no espaço (BASSNETT, 1993). Cumpre ressaltar aqui a
realização, em 2016, do 21st World Congress of the International Comparative
Literature Association (ICLA), na Universidade de Viena, na Áustria. Uma das
Group Sessions programadas para o congresso intitulou-se (Queer)
Relationality: Gender and Queer Comparatists at Work 36. Organizada pelo
Comparative Gender Studies Committee da ICLA, sob a coordenação de
William Spurlin, a presença dessa Group Session no evento ilustra a
pertinência e o lugar privilegiado, no cenário internacional do campo
disciplinar comparatista, das discussões envolvendo a teoria queer no
repensar das práticas comparatistas.
Seria incorreto afirmar a inexistência de estudos problematizando a
interface literatura e homossexualidade no cenário da crítica brasileira e
latino-americana. Todavia, são poucos os estudos publicados, se
comparados, por exemplo, à produção acadêmica na área da crítica literária
feminista e dos estudos de gênero. Assim, faz-se necessário um pequeno
histórico do que vem sendo produzido. João Silvério Trevisan publica em
1986 Devassos no paraíso, dedicado a traçar a história silenciada da
homossexualidade no Brasil, do período colonial até a contemporaneidade.
Esta obra traz também uma das primeiras, senão a primeira, tentativas de
resgate de uma literatura marcada pela homossexualidade no Brasil. Em
1987, surge O lesbianismo no Brasil, de Luiz Mott. Como que uma resposta à
lacuna do trabalho de Trevisan, Mott dedica-se exclusivamente ao
rastreamento dessa história duplamente silenciada: a das lésbicas no
contexto brasileiro.
James Green publica, em 1999, Beyond Carnival. Trata-se de uma
longa investigação acerca das vivências homossexuais no eixo Rio de
Janeiro/São Paulo ao longo do século XX. Seu trabalho inclui algumas notas
sobre literatura e artes visuais, mas, como o interesse de Green é mais
36
Mais informações sobre o evento em <https://icla2016.univie.ac.at/group-sections/>.
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histórico e menos literário, poder-se-ia dizer que seu olhar sobre textos como
Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, reduz o monumento a documento.
Vinculada a essa tendência histórico-antropológica alinham-se outros estudos
nos quais a/s homossexualidade/s é/são pensada/s juntamente com a
questão da epidemia de AIDS. Na esteira do pensamento que Susan Sontag
dedicou à questão em AIDS e suas metáforas (1989) e Assim vivemos agora
(1995), Marcelo Secron Bessa escreve Histórias positivas (1997), um estudo
representativo de outro importante viés de pesquisa: a estigmatização e a
discursivização decorrentes da vinculação entre literatura, AIDS e
homossexualidade. Outros estudos importantes problematizam a construção
da identidade homossexual a partir da epidemia: cabe mencionar Richard
Parker, autor de Beneath the Equator (1999) e Na contramão da AIDS (2000).
As reflexões deste discurso no qual homossexualidade e AIDS emergem
como as duas faces de uma mesma moeda trouxeram efeitos tão fortes na
produção de artefatos culturais que, ainda hoje, este é um viés que instiga os
pesquisadores. Um dos mais recentes estudos nesta linha é o de Severino
Albuquerque, de 2004, Tentative Transgressions, o qual explora as mudanças
provocadas pela epidemia no imaginário homossexual brasileiro, tomando o
teatro como artefato cultural privilegiado em suas análises.
No que diz respeito aos trabalhos publicados fora do Brasil sobre
questões relativas à diversidade sexual e literatura, cabe mencionar as
investigações de David William Foster, em especial Gay and Lesbians
Themes in Latin American Writing (1991) e Sexual Textualities (1997). Mesmo
sendo suas análises profundas e pertinentes, quando dedicadas a uma obra
em especial, sua abordagem carece do mise-en-rélation que caracteriza o
comparatismo como exercício efetivo de diálogo intercultural. Interessa aqui,
particularmente, as experimentações e questionamentos realizados no campo
dos estudos literários pela teoria queer; a crítica aos regimes de normalização
é particularmente produtiva para o questionamento do status de literariedade
como característica imanente ao texto literário. O interesse aqui é o de,
partindo de um conjunto de pressupostos teóricos, seguido da análise do
corpus, buscar uma poética do corpo e da subjetividade, isto é, verificar que
apostas são feitas, na constituição desses artefatos culturais, como modo de
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atuar na constituição de capital cultural através da representação dos usos do
corpo, do exercício dos prazeres e da busca por afeto.
Organizado por Jarrod Hayes, Margareth Higonnet e William Spurlin,
Comparatively Queer, publicado em 2010, configura-se como um importante
livro a sinalizar os fecundos resultados do cruzamento dos queer studies com
a literatura comparada. Se as indagações queer sempre partem de uma
relação de ordem comparativa com o que se cristalizou como
(hetero)normativo, o queer só faz sentido se histórica e culturalmente
contextualizado, a partir de uma mirada de caráter transversal; é importante
ressaltar que os regimes de normalidade são constituídos de diferentes
maneiras em temporalidades distintas e em territorialidades distintas. Um
exercício comparativo que analise as diferentes respostas dadas aos regimes
heteronormativos pelo discurso literário será fundamental para que se
compreenda a própria lógica do poder que perpassa os processos de
constituição subjetiva e de resistência à biopolítica do Estado (HAYES,
HIGONNET, SPURLIN, 2010, p. 2). Logo, confrontar os postulados das
teorizações queer com os postulados basilares do comparatismo no campo
dos estudos literários leva a um questionamento dos próprios dispositivos
analíticos normalizados pelas bases epistemológicas da Literatura
Comparada.
Dá-se aqui um salto temporal, deslocando o contexto da discussão
para o século XIX, período da formação dos Estados Nacionais latino-
americanos, da consolidação do campo literário no Novo Mundo e da
consagração da forma romance como gênero literário privilegiado. Em seu
estudo sobre as ficções de fundação na América Latina oitocentista, Doris
Sommer faz uma alentada reflexão acerca das associações alegóricas entre o
amor pela pátria e o amor romântico, bem como entre o “corpo nacional” e o
“corpo sexual”. Segundo ela:
É possível que as belas mentiras do romance nacional sejam
estratégias para conter os conflitos regionais, econômicos, de
raça ou de gênero que ameaçavam o desenvolvimento das
novas nações latino-americanas. Afinal, esses romances
faziam parte de um projeto burguês geral para promover a
hegemonia na cultura que se formava. Idealmente, seria uma
cultura aconchegante, quase abafada, que unia as esferas
89
pública e privada de tal maneira que criava um lugar para
todos, contanto que cada um soubesse qual era o seu lugar.
(SOMMER, 2004, p. 45). (grifos do autor)
Um pouco mais adiante, Sommer sublinha uma questão importante:
“vale a pena perguntar por que os romances nacionais da América Latina –
aqueles que os governos institucionalizaram nas escolas e que agora não
mais se distinguem das histórias patrióticas – são, todos eles, histórias de
amor” (SOMMER, 2004, p. 46 – grifo meu). Caberia aqui acrescentar às
palavras de Sommer que tais histórias de amor são histórias de amor
heterossexual. Nas raras vezes em que a homossexualidade aparece
explicitamente no romance oitocentista, como em Bom-Crioulo, de Adolfo
Caminha (1995), ou em O cortiço, de Aluísio Azevedo, ela está associada à
degradação dos costumes, à sobredeterminação dos comportamentos pelos
instintos e a um script narrativo que prevê um final trágico para os
personagens homossexuais. Porém, na segunda metade do século XX, na
América Latina, começam a surgir romances nos quais as alegorias da
nacionalidade estão imbricadas a outras histórias de amor, histórias estas
que, parafraseando (e contradizendo) Oscar Wilde, ousam dizer seus nomes.
Já no século XX, Lúcio Cardoso publica, em 1959, o romance Crônica
da casa assassinada, dando destaque, através do personagem Timóteo, a
uma das primeiras travestis que figuram como objeto de representação na
história da literatura brasileira. De maneira semelhante, em 1969, José
Donoso (Chile) publica El lugar sin límites, cujo enredo centra-se na história
de Manuela, uma travesti que, juntamente com sua filha, administra um
prostíbulo em uma provinciana cidadezinha do Chile. Não parece casual que,
ao final do romance de José Donoso, Manuela alcance seu final trágico em
uma espécie de releitura residual da violência colonial, sendo espancada
violentamente e atirada, ainda viva, para ser devorada pelos cães.
Se as histórias de amor heterossexual, tal como afirma Doris Sommer,
foram utilizadas como alegorias que faziam parte de um projeto burguês de
promoção de uma hegemonia nacional, cabe perguntar: que tipo de
interferência é produzida por estas outras histórias de amor nos imaginários
nacionais? As reflexões em torno da mentalidade hetero e do contrato
90
heterossexual (WITTIG, 2002) possibilitam a formulação de algumas
inquietantes questões: as maneiras pelas quais se produz conhecimento não
estariam encobrindo algum tipo de interesse? Cabe perguntar, pois, em nome
de quem o universalismo e a neutralidade falam: seriam eles – o
universalismo e a neutralidade – posições isentas de “contaminação política”,
de “interesses” e de “subjetivismo”, ou seriam apenas posições que
pretendem velar suas implicações ideológicas?
Literatura comparada e teoria queer: diálogos possíveis
Os estudos gays e lésbicos emergem no mundo anglófono –
particularmente na academia estadunidense – a partir do final da década de
1970, e se institucionalizam ao longo da década de 1980. Esta emergência
está relacionada às lutas das décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos,
no mesmo élan que permitiu a gênese da luta pelos direitos civis, das
conquistas do movimento estudantil de 1968 e do feminismo internacional.
Ademais das relações dialéticas possíveis entre as categorias
masculinidade hegêmonica x masculinidades subalternas propostas por
Connell (2000), são de particular interesse as discussões em torno da noção
de homonormatividade (DUGGAN, 2002). O fenômeno da homonormatividade
vem sendo considerado como um dos elementos mais destrutivos e
perniciosos para a consolidação dos direitos da comunidade queer. O termo é
usado para descrever o conjunto de privilégios que uma determinada parte da
comunidade queer transnacional possui, na medida em que – não raro – seus
valores estão pautados no privilégio racial, no sexismo, na transmisoginia e
no cissexismo, o que deixa muitos sujeitos queer fora da agenda política de
luta por direitos civis, liberdade de expressão sexual e igualdade de
oportunidades. A norma homossexual tende a valorizar e tomar como única
(ou, ao menos, como hegemônica) uma dada conformação identitária
interseccional que privilegia uma única variável de classe, de raça e, não raro,
de gênero. Não é à toa que, quase que automaticamente, quando se pensa
91
em uma identidade gay transnacional, vem à nossa mente um homem de
classe média, branco, consumidor em potencial do pink market.
Para Donald E. Hall (2003), o conceito de queer implica, por definição,
a necessidade de pluralização, visto, dado o seu diálogo epistêmico funcional
com a filosofia pós-estruturalista e com a desconfiança de todo o regime de
verdade postulado monoliticamente . A literatura, e em especial o gênero
romanesco, vem se mostrando um espaço privilegiado para a
problematização do status do corpo na contemporaneidade. O romance é um
gênero literário de alta voltagem crítica no que diz respeito ao tratamento, a
partir da enunciação narrativa, de diferentes abordagens para a
problematização do corpo desejante no interior do corpo nacional. Nunca é
demais relembrar o papel que a literatura comparada possui no
desenvolvimento e na consolidação de uma preocupação de ordem ética com
os compromissos do discurso literário com a vida política e social. Do corpo
(biológico e político) ao corpus (textual/literário), é fundamental, para o
comparatista contemporâneo, estar atento às modalidades através das quais
as textualizações contemporâneas do corpo e do gênero interferem e incidem
na constituição da realidade. Entre a diferença textual e a diferença sexual,
faz-se urgente uma política do desejo que redimensione não apenas o papel
da literatura e do escritor na contemplação e no cotejo dos afetos (do texto,
no texto e/ou pelo texto literário) na cena contemporânea, mas que também
redimensione e evidencie o papel do crítico e do comparatista nesse contexto.
Apontamentos sobre tradução e comparatismo
É da própria natureza da linguagem não apreender o real
completamente: lembremos da distinção lacaniana entre o Real (aquilo que é
inapreensível pela linguagem) e a realidade (que é da ordem do simbólico, ou
seja, o real ao qual se pode atribuir sentido através da mediação pela
linguagem). Em outras palavras, se não há correspondência termo-a-termo (i.
e., absoluta) entre linguagem e mundo, tampouco há correspondência absoluta
entre uma língua e outra. Retomo aqui um exemplo já quase lugar-comum: o
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dos itens lexicais utilizados em distintas línguas para “recortar” o espectro
luminoso. Em coreano e em algumas línguas bantu, há uma única palavra para
descrever a faixa espectral que vai do verde ao azul. Em sérvio, há quatro
palavras para descrever o que chamamos (em português) de azul. Em
mandarim, rosa é apenas uma tonalidade de vermelho, enquanto em português
vermelho e rosa são cores-palavras absolutamente distintas (Cf. BERLIN e
KAY, 1969), entidades linguístico-culturais que apontam para campos
semânticos distintos e quase óbvios para um falante nativo de português (o
campo da feminilidade, no caso de rosa; o campo bélico-conflitivo, no caso do
vermelho).
Um segundo ponto a ser levantado é: o que entendemos por tradução?
Apenas para tomar duas das concepções mais extremistas, se levamos em
conta a hipótese Sapir-Woolf (Cf. KAY e KEMPTON, 1984), a tradução sempre
seria distorção e traição, pois cada língua carregaria em seu sistema uma
concepção única de mundo (logo, toda tradução implica perda de sentido
quando confrontada com o original). Se formos um pouco mais além e
adentrarmos os meandros da filosofia derrideana, todo enunciado traduzido
funciona dentro de uma lógica suplementar ao seu respectivo “original” (Cf.
DERRIDA, 1973). Longe de adotar qualquer uma dessas posições mais
extremadas, o que me interessa deixar no ar como questão norteadora aqui é o
seguinte: traduzir o queer implica (ao menos potencialmente) uma perda, ou
um ganho, ou ambos ao mesmo tempo? Logo, devemos manter-nos vigilantes
com o que ganhamos e/ou com o que perdemos quando o “traduzimos”.
Antes de traduzir (ou de não traduzir) o queer, parece-me pertinente
retomar um pouco do contexto do termo. Em inglês, queer possui uma carga
semântica muito pesada, espessa e opaca. Na linguagem ordinária, queer (o
adjetivo) carrega os sentidos de bizarro, estranho, anormal, freak, não natural,
não convencional. Especula-se que o vocábulo tenha surgido no Baixo Alemão,
quer (significando oblíquo, perverso), e teria migrado para o inglês por volta do
século XVI. Como adjetivo, queer não era uma palavra cujo sentido estaria
associado às sexualidades dissidentes. É apenas com a utilização na forma
nominal, the queer, que o termo passa a ser utilizado como substantivo para
designar, pejorativamente, os homossexuais – em um primeiro momento,
93
homens homossexuais e, ao longo dos séculos XIX e XX, todo e qualquer
sujeito de sexualidade indesejável (Cf. ALÓS, 2011 e 2013; LOURO, 2004; e
JAGOSE, 1996).
Queer: o insulto e sua reapropriação política
O termo queer (nesse campo semântico do insulto, da ofensa, e da
palavra-tabu) passa a ser objeto de uma reapropriação retórica e política por
parte daqueles sujeitos que são por ele designados. Se é verdade que o
insulto reduz a objeto a pessoa a quem se dirige, esse insulto, por sua vez, dá
a possibilidade de que a pessoa insultada possa reagir, apropriar-se do
insulto, e o ressignificar politicamente como estratégia de resistência e de
subversão. Se o acusador dedo heterossexual, burguês e branco aponta para
mim enquanto grita “viado, bicha louca!”, isso cria a oportunidade discursiva
para que eu recuse a posição de objeto e me constitua como um sujeito que:
a) se reconhece interpelado pelo insulto; b) que se recusa a ser objeto e
assume a sua condição de sujeito histórico; c) e permite-se revidar: “não sou
viado, sou viadééééééééééésima, meu cu é laico e o sexo anal derrubará o
capital”. Se eu responder “sou um homem homossexual e exijo ser
respeitado”, também estaremos diante de uma resposta de teor político e de
um sujeito que recusa a ser objetificado. Mas essa resposta não tem
absolutamente nada de queer. Saindo do exemplo e indo para o campo de
uma provisória definição: o estratagema utilizado pelos “teóricos queer” na
academia estadunidense, nesse sentido, é o de se reapropriar de uma
categoria cujo uso corrente é da ordem do ofensivo e do pejorativo em um
gesto de autodesignação; esse gesto, ao mesmo tempo em que “desarma” o
discurso homofóbico, reabilita o uso do termo em um contexto não ofensivo.
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Queer, um conceito em trânsito
Via de regra, o início do que hoje denominamos de teoria queer
remonta ao início da década de 1990. Todavia, o que muitas vezes se perde
de vista é que o surgimento do queer não se dá exclusivamente no contexto
acadêmico, mas também, e principalmente, no ativismo e nos coletivos de
gays, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros. Se é verdade que a
teoria queer fala a linguagem das universidades, também é verdade que ela
fala a linguagem das ruas. Frequentemente são mencionados como textos
fundadores da teoria queer um livro de autoria individual, um número de
periódico e um livro coletivo de ensaios, mas se esquece de um feroz, raivoso
e pertinente manifesto, que me parece fundamental no delineamento das
origens da teoria queer. Cabe remontar, portanto, a esses quatro
documentos. Eles não são os únicos, talvez não sejam sequer os mais
importantes (arrisco a dizer que poucos “teóricos queer” enquadrariam os
quatro documentos simultaneamente como “o” conjunto de textos
fundadores), mas sinalizam uma origem heterogênea (ao menos, dupla) para
a mobilização do pensamento queer: o ativismo das ruas e o pensamento
acadêmico. Cumpre que se retome, ainda que brevemente, esses quatro
textos.
O primeiro, seguramente o mais conhecido e o mais referenciado – e
reverenciado (no Brasil) –, é o livro de Judith Butler, intitulado Gender trouble:
feminism and the subversion of identity, publicado pela primeira vez em 1990,
e traduzido no Brasil apenas em 2003, sob o título Problemas de gênero.
Esse livro é conhecido e reiteradamente citado (em especial no Brasil) como o
texto fundador da teoria queer. Judith Butler não é apenas a autora
considerada “fundadora” da teoria queer (ao menos entre os pesquisadores
brasileiros), mas também uma das filósofas mais importantes e influentes da
virada do século XX para o século XXI. Todavia, Gender Trouble não é “o
primeiro” texto da teoria queer37. Não é possível localizar um texto fundador,
37
A própria Judith Butler, ao longo da década de 1990, não se identificou de imediato como
uma “teórica queer”. Ela apresentava-se como uma filósofa, como uma feminista, como uma
lésbica e como uma judia secular. É justamente a rasura da identidade única, coesa e de
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até porque as quatro publicações às quais remonto e que discutirei
brevemente aqui são de funcionamento distinto, e embora duas datem de
1990 e duas de 1991, não é possível deixar de levar em consideração que as
temporalidades envolvidas na redação de um livro individual, de um manifesto
coletivo, da organização de um número especial de uma revista acadêmica e
da organização e publicação de um livro coletivo, ademais de distintas, são de
duração consideravelmente variável, envolvendo distintas dinâmicas, distintos
interesses, distintos autores e distintas estratégias políticas e textuais.
Também em 1990, emerge no cenário estadunidense um texto quase
desconhecido e quase nada acadêmico: “A Queer Manifesto”, anônimo e
coletivo, foi um texto gratuitamente distribuído nas ruas ao longo da Gay Pride
de 1990, em New York. Trata-se de um panfleto-manifesto, de fundo político
radical, e não de um ensaio acadêmico. Recentemente, foi traduzido e
publicado (em 2016), em Belo Horizonte, e pode ser facilmente encontrado
(tanto o original quanto a versão em português) com uma busca na internet
(MANIFESTO QUEER NATION, 2016). Gostaria de citar um breve trecho (o
texto possui cerca de dez páginas), para trazer à tona o “tom” desse
manifesto. Seu traço mais marcante é que ele “rompe” com o establishment
gay e lésbico estadunidense, que poderia ser representado, por exemplo, com
a visibilidade de gays “higienizados” em programas televisivos como Will and
Grace, ou de comportadas lésbicas que não saíam do armário, tais como
Ellen (interpretada por Ellen Degeneris), do sitcom de mesmo nome:
Odeio heterossexuais que pensam ter algo inteligente a dizer
sobre ‘sair do armário’. Odeio heterossexuais que pensam
que suas histórias são ‘universais’, enquanto as nossas
interessam apenas a homossexuais. Odeio músicos
heterossexuais que fazem suas carreiras decolarem às custas
do povo queer e depois nos atacam, sentindo-se feridos
quando demonstramos raiva e negando terem nos traído ao
invés de se desculparem. Eu odeio o fato de que em vinte
anos de educação pública jamais fui ensinada sobre o povo
queer. (MANIFESTO QUEER NATION, 2016, p. 7).
índole essencializante que, em certo sentido, caracterizaria uma postura ou um gesto analítico-
interpretativo de natureza queer.
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O terceiro documento que eu gostaria de trazer à baila nem é tão
desconhecido quanto o Queer Nation Manifesto, tampouco tão popular quanto
o livro de Judith Butler. Trata-se de um número especial do periódico
acadêmico feminista differences: A Journal of Feminist Cultural Studies. Em
sua edição de verão de 1991 (volume 3, número 2), sob a coordenação de
Teresa de Lauretis, é publicado um volume especial, sob o título “Queer
theory: lesbian and gay identities” (1991). Italiana de nascimento, professora
de semiótica e teoria do cinema, lésbica e feminista, com um doutorado
orientado por Umberto Eco, Teresa de Lauretis atua como professora e
pesquisadora nos Estados Unidos, no Departamento de História da
Consciência da Universidade de Santa Cruz, na Califórnia. O número especial
que ela organiza traz um importante número de pesquisadores das mais
diversas áreas (psicanálise, literatura, cinema e antropologia) que
problematizam e discutem problemas teóricos e metodológicos envolvendo
questões de identidade gay e lésbica a partir de um prisma pós-estruturalista.
Finalmente, também em 1991, é publicada a coletânea de ensaios Inside/out:
lesbian theories, gay theories [Assumidxs/enrustidxs: teorias lésbicas, teorias
gays], editada por Diana Fuss (1991). Os inúmeros trabalhos incluídos nesse
livro coletivo ocupam-se em discutir a questão das identidades gay e lésbica a
partir de lentes interdisciplinares, que articulam em sua metodologia de
trabalho campos diversos tais como a psicanálise, o feminismo, a sociologia e
a semiótica, a partir de uma perspectiva de índole pós-estruturalista. Da
mesma forma que a edição da differences organizada por Teresa de Lauretis,
esse volume é bem pouco discutido e citado entre os pesquisadores
brasileiros que se identificam com perspectivas de investigação que se
alinham a um enquadramento queer.
Uma poeta e pensadora extremamente relevante para a discussão dos
primeiros momentos não apenas da teoria queer, mas para o feminismo da
diferença, articulando em seus escritos postulados interseccionais e queer
avant la lettre, em perspectiva transnacional, é Gloria Anzaldúa. Entre seus
principais trabalhos, encontra-se o livro autobiográfico (por vezes também
descrito como auto-história ou ‘autoteoria’) Borderlands/La Frontera: The New
Mestiza (1987), uma obra que mistura prosa, poesia e pensamento teórico, na
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qual conta sua trajetória como acadêmica e mulher chicana. Anzaldúa articula
em sua dicção sua lesbianidade, seu feminismo, sua condição de
trabalhadora e de migrante, de um modo interseccional e transnacional, o que
é de fundamental importância para explicitar que o pensamento queer, desde
suas origens, está atento e aberto ao diálogo para a discussão de questões
de raça, classe, etnia, nacionalidade, decolonialidade e migração, ademais
das óbvias preocupações com o gênero e a sexualidade.
À exceção do “Manifesto Queer Nation” e do número especial da
revista differences, os outros dois textos não fazem menção ao queer (não
explicitamente, ao menos, em seus respectivos títulos) como vertente teórica.
O termo surge com o peso de vertente teórica a posteriori, por volta da
metade dos anos 1990, justamente para diferenciar o espectro político anti-
assimilacionista dessas discussões quando confrontado com os chamados
“estudos gays e lésbicos”, relativamente consolidados em alguns centros de
ensino e pesquisa estadunidenses desde o final da década de 1980. Veja-se,
a título de ilustração, as discussões de Douglas Crimp (1998), bem como
Douglas Crimp e Adam Rolston (1990). Com fins didáticos, acho que pode ser
interessante estabelecer uma espécie de “quadro comparativo”, de modo a
distinguir as linhas de força preponderantes nos gay and lesbian studies e nos
queer studies.
Primeiramente, é preciso dizer que os estudos gays e lésbicos não
necessariamente dialogam ou pressupõem (e, com certa frequência, ignoram
ou desconhecem) os avanços teóricos e epistemológicos conquistados pelo
feminismo acadêmico, quando tentam desenvolver seus modelos teórico-
críticos. Não raro, os estudos gays e lésbicos são “muito gays e pouco ou
nada lésbicos”, frequentemente esquecendo o quanto compactuaram (ou o
quanto ainda compactuam) com o masculinismo, com a hegemonia euro-
estadunidense e com os privilégios raciais da branquitude, entendida como
grau zero da identidade étnico-racial. O pensamento queer por definição
pressupõe o feminismo (tanto teórico quanto histórico – pois seus nomes
“fundadores” são de lésbicas feministas atuando na academia) e vai além de
uma política identitária afirmativa. O queer é interseccional avant la lettre.
98
Onde a ‘teoria gay’ diz identidade, a ‘teoria queer’ diz fluidez antiessencialista.
Quando a ‘teoria gay’ diz representatividade, a ‘teoria queer’ diz subversão.
Vale ressaltar que os estudos gays e lésbicos são frequentemente
identitários, daí sua aposta em imagens positivas de gays e lésbicas na mídia,
sua insistência em políticas identitárias e de representação, e sua
problemática relação com “a margem da margem” (gays afeminados, lésbicas
masculinizadas, sujeitos transexuais ou transgêneros) e com as
subjetividades “exóticas” (afrodescendentes, latinas, nipônicas, imigrantes,
orientais etc.), independentemente da identidade de gênero reivindicada. A
homossexualidade nem sempre é tratada em conjunto com a problematização
dos binarismos de gênero. Não raro recai-se em universalismos
essencializantes que – me parece – podem ser bastante problemáticos (por
vezes os “estudos gays” reiteram um modelo branco, masculinista e viril de
homossexualidade, quase tão excludente como o modelo branco, burguês e
heterossexual de masculinidade, conforme já foi apontado no trabalho de
Robert William Connel (1995), em especial no que diz respeito à noção de
“masculinidades subalternizadas”). Já os estudos queer, por sua vez, são
pós-identitários, antiessencialistas e consideram a identidade como precária,
histórica, contingente e performativa. Os estudos queer rejeitam as
perspectivas universalistas e celebram o local e o glocal (tudo está localizado
em temporalidades e espacialidades, na história e na geografia, em especial
quando estamos lidando com corpos, desejos, prazeres e afetos).
Já no tocante às questões de integração e assimilação, os estudos
gays e lésbicos buscam a integração na sociedade civil de matriz
heterossexual pautada pelo Estado e pela Nação. Em sua agenda política,
está a luta pelos direitos ao casamento, à adoção, ao ingresso nas forças
armadas, ao reconhecimento do status de família a partir de arranjos
familiares calcados em modelos heterossexuais (monogamia, casais ‘estáveis
e exclusivos’, direitos de propriedade e de transmissão de herança). Já os
estudos queer, por sua vez, são subversivos e anti-assimilacionistas por
definição. Não querem direito ao casamento, pois questionam a monogamia e
o casamento como contratos heteronormativos; não querem o direito de
99
ingresso nas forças armadas, pois são anti-militaristas38; questionam a família
nuclear como modo de organização social39, e pensam em outros arranjos
(‘poliamor’, comunidades, confrarias e ‘fraternidades’) e não desejam ser
reconhecidos pelo Estado40, pois sabem que ser reconhecido pelo Estado faz
parte dos interesses biopolíticos do Estado (Cf. SCHULMAN, 2009).
Os estudos gays e lésbicos não raro são nacionalistas, e projetam as
especificidades do North American gay way of life como modelo universal de
homossexualidade; em sua agenda política, buscam a integração e o
reconhecimento dos sujeitos gays e lésbicas na nação e o seu
reconhecimento frente ao Estado (PUAR, 2007 e SCHULMAN, 2012). Não
raro, as lésbicas são vistas apenas como mulheres gays (ignorando-se
completamente as premissas que hoje chamamos de interseccionais). Já o
pensamento queer é transnacional e não integracionista. Ao invés de desejar
o desejo do Estado, questiona o poder que o Estado tem nas vidas pública e
privada dos sujeitos e das populações (Cf. BUTLER, 2004).
Os estudos gays e lésbicos não apenas aceitam – com certa
frequência e acriticamente – o modelo binário de gênero homem/masculino e
mulher/feminino, como por vezes reiteram esse modelo (travestis, transexuais
e transgêneros, lésbicas masculinizadas e gays efeminados não raro orbitam
nas margens do mundo gay e lésbico, mas também são “indesejados”). Já o
pensamento queer toma como pedra-de-toque o questionamento do sistema
binário de gênero, que é visto como um dispositivo fundamental de
manutenção da heteronormatividade e da heterossexualidade compulsória
(BUTLER, 1990 e 2004; DE LAURETIS, 1991 e FUSS, 1991). O pensamento
queer realiza também uma crítica à objetividade científica, uma vez que os
discursos da Medicina, da Psiquiatria, da Biologia e da Psicologia, científicos
por definição, foram responsáveis por muito tempo pela segregação étnica,
racial, de gênero e de orientação sexual. Basta que se lembre aqui das
38
Cf. PUAR (2007) e a sua discussão em torno da questão do “homonacionalismo” militarista,
em especial no caso de Israel.
39
Cf. SCHULMAN (2009), e a noção de homofobia familiar por ela desenvolvida.
40
Com respeito ao papel regulador do Estado e da heteronormatividade da família nuclear e da
concepção de “parentesco”, Cf. BUTLER (2004).
100
teorias “científicas” utilizadas para justificar o racismo e para patologizar
qualquer expressão sexual fora do interesse do Estado.
Dentro de uma perspectiva queer, a identidade não é uma totalidade,
uma mônada, uma essência, ou mesmo o resultado acabado de um processo.
A identidade, tal como o próprio sujeito, é concebida como performatividade,
isto é, como resultado de processos discursivos iteráveis e reiteráveis ao
longo do tempo. Judith Butler já alertava que essa concepção de sujeito, que
não o vê mais como origem do discurso, mas sim como um efeito de
discursos, não implica nem a morte da política, tampouco a impossibilidade
de intervenção no contexto social (BUTLER, 1990 e 1993). Implica,
entretanto, uma urgente reavaliação de nosso entendimento do que seja ação
política e do que seja intervenção, fazendo-nos ir um pouco mais além, de
modo a adentrar os domínios da ética. O sujeito deve ser lido como a marca e
um interesse socialmente construídos e inseridos no corpo. Tal como alerta
Patrik McGee, “eu tenho de tomar decisões eticamente responsáveis
baseando-me na minha relação ‘vivida’ com o mundo dos interesses. Seria
irresponsável, entretanto, imaginar que tal relação vivida seja o limite final da
minha responsabilidade” (MCGEE, 1992, p. 39 – tradução minha)41.
Considerações finais: queer à brasileira
Em 2001, Mário César Lugarinho já havia tentado responder à
pergunta que, implicitamente, está contida no título desse ensaio. Quase duas
décadas separam nossas tentativas de responder à questão, mas ela ainda
não está de todo esgotada. Quero voltar à questão inicial aqui: como traduzir
o queer? Pergunto-me isso há quase duas décadas e, por ora, a minha
resposta é: talvez o melhor seja não traduzir. Melhor dizendo, minha opção
pessoal, como pesquisador, é por não traduzir o termo. Prefiro não correr o
risco de perder a voltagem política e a história carregada pela espessura
semântica do queer em uma tradução que o domestique, que o pasteurize,
41
“No original: “I have to make decisions that are ethically responsible based on my ‘lived’
relation to the world of interests. It would be irresponsible, however, to imagine that such a lived
relation is the final limit of my responsibility or rather the responsibility of criticism itself”.
101
que o edulcore. Essa é uma opção pessoal. Mas não preciso relembrar aqui
que o pessoal é político. As feministas que vieram antes de nós, que nos
queremos queer, já nos ensinaram isso.
Não acredito que manter o uso do termo queer em português seja uma
postura de subserviência ao imperialismo anglófono. A maior parte da teoria
literária estruturalista, ao longo da segunda metade do século XX, embora
bem e bastante traduzida do francês para o português, não nos livrou de um
certo colonialismo intelectual à francesa, vendo em Gérard Genette o ápice da
narratologia42, ou insistindo na caduca defesa das “altas literaturas”, do
cânone literário, da literatura “de verdade” e da inviolabilidade da literariedade
como ponto de chegada e de partida do nosso trabalho como críticos,
pesquisadores e docentes, no caso específico do campo dos estudos
literários. Não podemos perder de vista que, no atual cenário planetário, para
o bem e para o mal, o inglês é língua franca. Importantes movimentos em
defesa dos direitos humanos no Oriente Médio, como o IraQueer 43, no Iraque,
ou o Al Qwals44, na Palestina, mobilizam o queer como aposta política
transnacional em um contexto linguístico onde o árabe cumpre um importante
papel de resistência linguística anti-imperialista.
Na cena pública brasileira, é frequente o recurso a siglas aglutinantes,
que esboçam uma política de coalizão que se pretende aparentada ao queer,
tais como GLS (gays, lésbicas e simpatizantes), LGBT (lésbicas, gays,
bissexuais e travestis), ou ainda LGBTTTI (lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais). Essas siglas não
traduzem a complexidade das abordagens queer, pois pressupõem e insistem
nas políticas identitárias expressas por cada uma das letras nas siglas. Incluir
um ‘Q’ nas siglas (de forma a marcar a presença do queer nessa “sopa de
letrinhas”) tampouco é uma alternativa, pois o ponto de partida do queer é o
42
Ver, a esse respeito, a recente tradução de GENETTE (2009).
43
Cf. Website do IraQueer. Disponível em: <https://www.iraqueer.org/>. Acesso em: 20 de
outubro de 2018.
44
Cf. Website do Al Qwals. Disponível em: <http://alqaws.org>. Acesso em: 20 de outubro de
2018.
102
questionamento da identidade estável. O queer não pode ser subsumido em
uma política identitária, por mais ampla que ela se pretenda.
O queer não é, nem se pretende, uma identidade. Como lugar de
articulação teórica, como espaço epistêmico de produção de conhecimentos
politicamente situados, o queer é um lugar de crítica, um ponto de vista, um
locus epistemológico para se pensar questões de corpo, sexo, gênero e
sexualidade. Dizer “eu sou queer” diz tanto sobre a minha sexualidade quanto
dizer “eu sou estruturalista” ou “eu sou marxista”. O queer não é uma
identidade sexual, não descreve (tampouco prospecta) uma identidade
calcada em algum desejo desviante. O queer é um gesto analítico, é uma
postura epistêmica, é um espaço de articulação e de produção de
conhecimento, ou ainda, uma possibilidade de enquadramento; ele não é um
mero locus de enunciação.
Todavia, dizer que não se traduz o queer não implica dizer que não
seja possível uma prática ou uma operacionalização da teoria queer à
brasileira. Podemos pensar em alguns exemplos, tais como o resgate do
termo viado ou o uso do termo guei (as guei, no feminino), como feito pelo
Lampião da Esquina (1978-1981), ou pelo Jornal do Nuances (1998-2007).
Esse gesto de autodenominação política pode ser lido como atitude análoga
aos procedimentos epistemológicos do pensamento queer. Todavia, tal como
podemos perceber pela própria materialização textual dos jornais citados a
título de exemplo, corre-se o risco de excluir as mulheres – e, particularmente,
as mulheres lésbicas e transexuais – da discussão.
Para finalizar, gostaria de retomar aqui algumas linhas do “Manifesto
Queer Nation”, que pode ser lido tanto como uma referência às travestis
queer que enfrentaram a polícia no confronto do Stone Wall Inn em 1969, nos
Estados Unidos, como uma referência ao pensamento feminista que está na
gênese dos textos das lésbicas pós-estruturalistas que deram corpo à teoria
queer: “nossas irmãs mais fortes disseram aos nossos irmãos que havia duas
coisas importantes para se lembrar sobre as revoluções que vêm. A primeira
é que vamos apanhar. A segunda é que vamos vencer” (2016, p. 4). Se em
nosso trabalho, seja ele no ativismo das ruas, seja ele na prática intelectual e
acadêmica, mantivermos um pouco que seja do espírito que move a citação
103
acima, é porque definitivamente estamos traduzindo o queer: diariamente,
reiteradamente e conscientemente.
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106
A TRADUÇÃO LITERÁRIA E O DESAFIO DA SINTAXE COMPLEXA: OS
CASOS DE PROUST E WOOLF
Cynthia Beatrice Costa (UFU)
Lenita Maria Rimoli Pisetta (USP)
No ensaio clássico “A tarefa do tradutor”, Walter Benjamin celebremente
defende o apego à sintaxe acima de qualquer tentativa de reproduzir os sentidos de
um texto literário: “Precisamente a literalidade com relação à sintaxe destrói toda e
qualquer possibilidade de reprodução do sentido, ameaçando conduzir diretamente à
ininteligibilidade” (BENJAMIN, 2010, p. 221). Seu argumento parece contraintuitivo:
não seria a obediência à sintaxe algo ruim, então, já que pode conduzir a um texto
ininteligível? Para ele, não. Como aponta Haroldo de Campos (2011, p. 28) em sua
“releitura operacional da teoria benjaminiana”, a fidelidade da tradução como forma
está na literalidade da transposição da sintaxe, ainda que se sacrifique o sentido.
Apesar de ser muito mais filosófica do que prática, a proposta de Benjamin
ecoa quando se enfrenta a tarefa de traduzir textos literários experimentais, de alta
complexidade. De um lado, parece haver a ameaça de que qualquer rearranjo sintático
comprometerá o estilo e arruinará a experiência literário-artística; do outro, surge o
medo da ininteligibilidade caso a manutenção da sintaxe leve ao sacrifício do sentido.
Evidentemente, ninguém traduz um romance – ou qualquer narrativa ficcional
em prosa – sem se importar com o sentido. O enredo, as personagens e os diálogos
conduzem a leitura; é preciso saber o que está se passando, afinal, como E.M. Forster
(2014, p. 42) faz questão de sublinhar, o romance “conta uma história”. 45 No entanto, a
forma como o romance é escrito, tão preciosa do ponto de vista benjaminiano, é de
fato aquilo que o diferencia como obra literária e objeto estético.
A correspondência entre o romance de partida e sua tradução “não pode se
limitar ao plano significado”, como ressalta Paulo Henriques Britto (2010, p. 59). Em
uma abordagem bem mais prática que a de Benjamin, baseada em sua experiência de
tradutor, Britto recomenda ao tradutor observar, primeiramente, quais características
do original devem ser recriadas, separando as que pertencem à língua de partida das
45
Tradução nossa de “tells a story”.
107
que pertencem ao estilo daquele determinado autor. Essa pré-seleção facilitaria a
recriação de traços que de fato caracterizam a obra: “Não cabe ao tradutor criar
estranhezas onde tudo é familiar, tampouco simplificar ou normalizar o que, no
original, nada tem de simples ou de convencional” (BRITTO, 2010, p. 67).
Em outra abordagem prática, Burton Raffel (1994, p. x) argumenta que a prosa,
se comparada à poesia, é tecida muito mais próxima do “osso sintático” (syntactic
bone). Traduzir prosa – o que valeria igualmente para a prosa poética – requer
atenção às estruturas internas do texto, já que seu componente principal é o estilo,
cujos ingredientes básicos são sintaxe e léxico. (Juntos, aliás, estes também
compõem o sentido.) Por outro lado, Raffel também ressalta que haveria um limite de
transgressão linguística possível na prosa, sob o risco de torná-la incompreensível;
cada língua possui regras internas próprias, e a prosa precisa obedecer minimamente
a essas leis para que possa ser compreendida. Sua recomendação geral é transferir o
movimento da sintaxe de uma língua para outra ou, se não for possível, ao menos
transferir o contorno desse movimento.
Nesta breve reflexão, abordamos dois autores considerados difíceis de traduzir,
o francês Marcel Proust (1871-1922) e a inglesa Virginia Woolf (1882-1941), para
exemplificar de que forma a percepção do estilo de cada um e a análise sintática
podem iluminar o processo tradutório.
Frases longuíssimas: o desafio proustiano
Em À la recherche du temps perdu, obra de Proust dividida em sete volumes,
não são incomuns as frases compostas por centenas de palavras. Acredita-se que a
mais longa esteja no início de Sodome et Gomorrhe, quarto livro da série, no décimo
segundo parágrafo (LABBÉ & LABBÉ, 2018). Esta é a frase escolhida para a presente
reflexão tradutória, que contrasta o texto de Proust com duas traduções brasileiras
reimpressas várias vezes, de Mário Quintana (1906-1994) e Fernando Py (1935-
2020).46
46
Uma curiosidade adicional é o fato de Benjamin ter traduzido Proust para o alemão em
parceria com Franz Hessel; Sodome et Gomorrhe ele traduziu sozinho, embora o manuscrito
tenha desaparecido (KAHN, 2012, p. 61). De toda forma, é interessante saber que o próprio
Benjamin, grande admirador de Proust, considerou tal tarefa difícil.
108
Embora a contagem de palavras varie de estudo para estudo – pois as
contrações do francês permitem interpretações diferentes do que se constituiria como
palavra única –, é consenso que a frase proustiana em questão possui mais de 840
palavras. Para o presente cotejo, foi usada a ferramenta de contagem de palavras do
programa Word, que indicou 844 palavras em Proust, 858 em Quintana e 855 em Py.
A quantidade de palavras e de períodos é, porém, menos relevante do que as
dificuldades impostas pela sintaxe. A frase, que está dentro de um parágrafo de várias
páginas, explica a vida dos homossexuais no contexto da alta classe parisiense:
Tabela 1: Comparação da frase mais longa de Proust
Proust Mário Quintana Fernando Py
(2020, n.p.) (PROUST, 2008, p. 25-27) (PROUST, p. 511-512)
Sans honneur Sem honra, que não Sem honra, senão
que précaire, precária, sem liberdade, precária; sem
sans liberté que que não provisória, até o liberdade, senão
provisoire, descobrimento do crime; provisória, até a
jusqu’à la sem posição que não seja descoberta do crime;
découverte du instável, como o poeta sem posição que não
crime; sans acolhido na véspera em seja instável, como
situation todos os salões, aplaudido para o poeta, festejado
qu’instable, em todos os teatros de na véspera em todos
comme pour le Londres, expulso na os salões, aplaudido
poète la veille manhã seguinte de todos em todos os teatros de
fêté dans tous les os hotéis, sem poder Londres e, no dia
salons, applaudi encontrar um travesseiro seguinte, expulso de
dans tous les onde repousasse a todos os quartos, sem
théâtres de cabeça, dando voltas à poder achar um
Londres, chassé pedra de moinho como travesseiro onde
le lendemain de Sansão e como ele repousar a cabeça,
tous les garnis dizendo: “Os dois sexos dando voltas à pedra
sans pouvoir morrerão cada um para de amolar como
trouver un oreiller seu lado”; excluídos, até, Sansão, e como ele
où reposer sa salvo nos dias de grande repetindo: “Os dois
tête, tournant la infortúnio, em que a sexos morrerão cada
meule comme maioria se agrupa em qual por seu lado”;
Samson et disant torno da vítima, como os excluídos até, salvo
comme lui : « Les judeus em torno de nos dias de grande
deux sexes Dreyfus, da simpatia – às infelicidade, em que a
mourront chacun vezes da sociedade de maioria se reúne ao
de son côté»; seus semelhantes, (1) a redor de sua vítima,
exclus même, quem dão a repugnância como os judeus ao
hors les jours de de ver o que são, pintado redor de Dreyfus – de
109
grande infortune num espelho que, não toda simpatia, e às
où le plus grand mais os adulando, acusa vezes da sociedade, de
nombre se rallie todas as marcas que não seus semelhantes, (1)
autour de la tinham querido observar aos quais dão o
victime, comme em si mesmos e lhes faz desgosto de ver que
les Juifs autour compreender que aquilo a são, pintados num
de Dreyfus, de la que chamavam o seu espelho que, não os
sympathie— amor (e a que, jogando adulando mais, acusa
parfois de la com o vocábulo, haviam todas as taras que não
société—de leurs anexado, por sentido tinham desejado notar
semblables, (1) social, tudo quanto a em si mesmos e que os
auxquels ils poesia, a pintura, a faz compreenderem
donnent le dégoût música, a cavalaria, o que aquilo a que
de voir ce qu’ils ascetismo têm podido denominam amor (e a
sont, dépeint acrescentar ao amor) que, brincando com a
dans un miroir dimana, não de um ideal palavra, haviam
qui, ne les flattant de beleza que eles anexado, por sentido
plus, accuse tenham escolhido, mas de social, tudo quanto a
toutes les tares uma enfermidade poesia, a pintura, a
qu'ils n’avaient incurável; como os judeus, música, a cavalaria, o
pas voulu também (exceto os que ascetismo tinham
remarquer chez não querem tratar senão podido acrescentar ao
eux-mêmes et qui com os da sua própria amor) decorre não de
leur fait raça têm sempre nos um ideal de beleza que
comprendre que lábios as palavras rituais e tenham escolhido, mas
ce qu'ils as piadas correntes), de uma enfermidade
appelaient leur fugindo uns dos outros, incurável; como ainda
amour (et à quoi, procurando os que lhes os judeus (salvo uns
en jouant sur le são mais opostos, que poucos que só desejam
mot, ils avaient, nada querem com eles, conviver com os de sua
par sens social, perdoando suas troças, raça, e têm sempre nos
annexé tout ce inebriando-se com suas lábios as palavras
que la poésie, la complacências, mas rituais e os gracejos
peinture, la assim mesmo unidos a consagrados), fugindo
musique, la seus semelhantes pelo uns dos outros,
chevalerie, ostracismo que os fere, buscando os que lhes
l’ascétisme, ont pelo opróbrio em que são mais contrários,
pu ajouter à caíram, (2) tendo acabado que não querem saber
l’amour) découle por adquirir, graças a uma deles, perdoando as
non d’un idéal de perseguição semelhante à suas zombarias,
beauté qu’ils ont de Israel, os caracteres embriagando-se com
élu, mais d’une físicos e morais de uma suas complacências;
maladie raça, às vezes belos, não mas ainda assim
inguérissable; raro espantosos, unidos a seus
comme les Juifs encontrando (apesar das semelhantes pelo
encore (sauf ironias de que o mais ostracismo que os fere,
quelques-uns qui mesclado, mais bem o opróbrio em que
ne veulent assimilado à raça adversa caíram, (2) tendo
fréquenter que e relativamente o menos acabado por adquirir,
ceux de leur race, invertido em aparência, graças a uma
ont toujours à la criva aquele que perseguição idêntica à
110
bouche les mots simplesmente continuou a de Israel, os caracteres
rituels et les sê-lo) um descanso no físicos e morais de uma
plaisanteries convívio de seus raça, às vezes bela,
consacrées) se semelhantes, e mesmo frequentemente
fuyant les uns les um apoio em sua horrível, encontrando –
autres, existência, até o ponto de, apesar de todas as
recherchant ceux ainda negando que sejam troças com que o mais
qui leur sont le uma raça (cujo nome é a mesclado, mais
plus opposés, qui maior injúria), (3) os que assimilado à raça
ne veulent pas conseguem ocultar que adversa, é
d’eux, pardonnant pertencem a ela os relativamente, em
leurs rebuffades, desmascararão de bom aparência, o menos
s’enivrant de grado, não tanto para lhes invertido, cobre aquele
leurs causar dano, coisa que que simplesmente
complaisances; não detestam, como para continuou a sê-lo – um
mais aussi escusar-se, e indo buscar, descanso no convívio
rassemblés à como um médico busca a de seus semelhantes, e
leurs pareils par apendicite, a inversão até até um apoio na
l’ostracisme qui na História, achando um existência, até que,
les frappe, prazer em recordar que negando sempre
l’opprobre où ils Sócrates era um deles, formarem uma raça
sont tombés, (2) como dizem os israelitas (cujo nome é a maior
ayant fini par de Jesus que ele era injúria), (3) os que
prendre, par une judeu, sem pensar que conseguem ocultar que
persécution não havia anormais a ela pertencem,
semblable à celle quando a desmascaram-nos de
d’Israël, les homossexualidade era a boa vontade, não tanto
caractères norma, nem anticristãos para lhes causar dano,
physiques et antes de Cristo, (4) que só coisa que não
moraux d’une o opróbrio faz o crime, detestam, quanto para
race, parfois visto que não deixou de se desculparem, e indo
beaux, souvent subsistir senão para buscar, como um
affreux, trouvant aqueles que eram médico pesquisa o
(malgré toutes les refratários a toda apendicite, a inversão
moqueries dont pregação, a todo exemplo, até na História, tendo
celui qui, plus a todo castigo, em virtude prazer em lembrar que
mêlé, mieux de uma disposição inata Sócrates era um deles,
assimilé à la race até tal ponto específica como os israelitas
adverse, est que repugna aos outros dizem que Jesus era
relativement, en homens (ainda quando judeu, sem pensar que
apparence, le possa vir acompanhada não havia anormais
moins inverti, de altas qualidades quando o
accable qui l’est morais) mais que certos homossexualismo era a
demeuré vícios que se contradizem, regra, nem anticristãos
davantage) une como o roubo, a antes de Jesus Cristo,
détente dans la crueldade, a má-fé, mais (4) que só o opróbrio
fréquentation de bem compreendidos e por no crime, pois só
leurs semblables, isso mais desculpados deixou de subsistir para
et même un appui pelo comum dos homens, aqueles que eram
dans leur formando uma franco- refratários a toda
existence, si bien maçonaria muito mais pregação, a todo
111
que, tout en niant extensa, mais eficaz e exemplo, a todo
qu’ils soient une menos suspeitada que a castigo, em virtude de
race (dont le nom das Lojas, já que repousa uma disposição inata e
est la plus grande numa identidade de de tal modo especial
injure), (3) ceux gostos, de necessidades, que repugna mais aos
qui parviennent à de hábitos, de perigos, de outros homens (ainda
cacher qu’ils en aprendizagem, de saber, que possa vir
sont, ils les de tráfico, de vocabulário, acompanhada de altas
démasquent e na qual os próprios qualidades morais) do
volontiers, moins membros, que não que certos vícios que
pour leur nuire, desejam conhecer-se, se se contradizem, como o
ce qu’ils ne reconhecem roubo, a crueldade, a
détestent pas, imediatamente por signos má-fé, mais bem
que pour naturais ou de convenção, compreendidos e,
s’excuser, et involuntários ou portanto, mais
allant chercher, deliberados, (5) que indica desculpados pelo
comme un ao mendigo um dos seus comum dos homens;
médecin semelhantes no grão- formando uma franco-
l’appendicite, senhor a quem fecha a maçonaria bem mais
l’inversion jusque portinhola do carro, ao pai extensa, mais eficaz e
dans l’histoire, no noivo de sua filha, ao suspeita que a das
ayant plaisir à que havia querido curar- lojas, pois repousa
rappeler que se, confessar-se, numa identidade de
Socrate était l’un defender-se, no médico, gostos, de carências,
d’eux, comme les no sacerdote, no de hábitos, de perigos,
Israélites disent advogado a que recorreu; de aprendizagem, de
de Jésus, sans todos eles obrigados a saber, de tráfico, de
songer qu’il n’y proteger seu segredo, glossários, e na qual os
avait pas mas tendo a sua parte próprios membros que
d’anormaux num segredo dos demais aspiram a não ser
quand que o resto da conhecidos logo se
l’homosexualité humanidade não suspeita reconhecem por traços
était la norme, e que faz com que as naturais ou de
pas novelas de aventuras convenção,
d’antichrétiens mais inverossímeis lhes involuntários ou
avant le Christ, pareçam verdadeiras, já intencionais, (5) que
(4) que l’opprobre que nessa vida novelesca, assinalam ao mendigo
seul fait le crime, anacrônica, o embaixador um de seus
parce qu'il n'a é amigo do presidiário, (6) semelhantes no grão-
laissé subsister o príncipe, com certa senhor que lhe fecha a
que ceux qui liberdade de maneiras que porta de seu carro; ao
étaient dá a educação pai, no noivo da filha;
réfractaires à aristocrática e que um ao que desejara curar-
toute prédication, pequeno-burguês se, confessar-se,
à tout exemple, à medroso não teria ao sair defender-se, no
tout châtiment, en da casa da duquesa, vai médico, no padre, no
vertu d’une confabular com o advogado a quem
disposition innée marginal; parte recorreu; todos
tellement spéciale condenada da forçados a proteger o
qu’elle répugne coletividade humana, mas seu segredo, mas
plus aux autres parte importante, que não tendo a sua parte no
112
hommes (encore se suspeita onde não está segredo dos outros, de
qu’elle puisse manifesta, insolente, que o restante da
s’accompagner impune, onde não se humanidade não
de hautes adivinha, que conta com suspeita e que faz com
qualités morales) adeptos em toda parte, no que os mais
que de certains povo, no exército, no inverossímeis
vices qui y templo, no presídio, no romances de aventuras
contredisent, trono; que vive, enfim, lhes pareçam
comme le vol, la pelo menos grande parte verdadeiros; pois,
cruauté, la dela, em intimidade nessa vida romanesca,
mauvaise foi, acariciante e perigosa anacrônica; o
mieux compris, com os homens da outra embaixador é amigo do
donc plus raça, provocando-os, preso; (6) o príncipe,
excusés du brincando com eles em com uma certa
commun des falar do seu vício como se liberdade de modos
hommes; formant não fora seu, jogo que que lhe confere a
une franc- torna fácil a cegueira ou a educação aristocrática
maçonnerie bien falsidade dos outros, jogo e que um pequeno-
plus étendue, que pode prolongar-se burguês medroso não
plus efficace et durante anos até o dia do teria, ao sair da casa
moins escândalo em que esses da duquesa, vai se
soupçonnée que domadores são entender com o
celle des loges, devorados; obrigados até apache; parte
car elle repose então a ocultar sua vida, a reprovada da
sur une identité afastar seus olhares de coletividade humana,
de goûts, de onde desejariam deter-se, porém parte
besoins, a fitá-los naqueles de que importante, que se
d’habitudes, de desejariam desviar-se, a suspeita onde não está,
dangers, mudar o gênero de muitos ostensiva, insolente,
d’apprentissage, adjetivos em seu impune onde não é
de savoir, de vocabulário, trava social adivinhada; contando
trafic, de leve em comparação com com adeptos por toda a
glossaire, et dans a trava interior que seu parte, no povo, no
laquelle les vício, ou o que se chama exército, no templo, na
membres mêmes impropriamente assim, penitenciária, no trono;
qui souhaitent de lhes impõem, não já a vivendo enfim, ao
ne pas se respeito dos outros, mas menos um grande
connaître aussitôt de si mesmos, e de modo número, na intimidade
se reconnaissent que a eles próprios não cariciosa e arriscada
à des signes pareça um vício. dos homens da outra
naturels ou de raça, provocando-os,
convention, brincando com eles ao
involontaires ou falar do seu vício como
voulus, (5) qui se não fora seu, jogo
signalent un de que se torna fácil pela
ses semblables cegueira ou pela
au mendiant dans falsidade dos outros,
le grand seigneur jogo que pode se
à qui il ferme la prolongar durante anos
portière de sa até o dia do escândalo,
voiture, au père em que esses
113
dans le fiancé de domadores são
sa fille, à celui qui devorados; até então
avait voulu se obrigados a ocultar a
guérir, se sua vida, a desviar os
confesser, qui olhos de onde
avait à se gostariam de fixá-los, a
défendre, dans le fixá-los de onde
médecin, dans le gostariam de desviá-
prêtre, dans los, de mudar o gênero
l’avocat qu’il est de muitos adjetivos em
allé trouver; tous seu vocabulário, leve
obligés à protéger freio social em
leur secret, mais comparação com o
ayant leur part freio interior que seu
d’un secret des vício, ou o que se
autres que le denomina
reste de impropriamente desse
l’humanité ne modo, lhes impõe não
soupçonne pas et mais em relação aos
qui fait qu’à eux outros mas a si
les romans mesmos, e de maneira
d’aventure les que a eles próprios não
plus pareça um vício.
invraisemblables
semblent vrais,
car dans cette vie
romanesque,
anachronique,
l’ambassadeur
est ami du forçat;
(6) le prince, avec
une certaine
liberté d’allures
que donne
l’éducation
aristocratique et
qu’un petit
bourgeois
tremblant n’aurait
pas, en sortant de
chez la duchesse
s'en va conférer
avec l’apache;
partie réprouvée
de la collectivité
humaine, mais
partie importante,
soupçonnée là où
elle n'est pas
étalée, insolente,
impunie là où elle
114
n'est pas devinée;
comptant des
adhérents
partout, dans le
peuple, dans
l'armée, dans le
temple, au bagne,
sur le trône;
vivant enfin, du
moins un grand
nombre, dans
l’intimité
caressante et
dangereuse avec
les hommes de
l’autre race, les
provoquant,
jouant avec eux à
parler de son vice
comme s’il n'était
pas sien, jeu qui
est rendu facile
par l’aveuglement
ou la fausseté
des autres, jeu
qui peut se
prolonger des
années jusqu’au
jour du scandale
où ces dompteurs
sont dévorés;
jusque-là obligés
de cacher leur
vie, de détourner
leurs regards d’où
ils voudraient se
fixer, de les fixer
sur ce dont ils
voudraient se
détourner, de
changer le genre
de bien des
adjectifs dans
leur vocabulaire,
contrainte sociale
légère auprès de
la contrainte
intérieure que
leur vice, ou ce
qu’on nomme
improprement
115
ainsi, leur impose
non plus à l’égard
des autres mais
d’eux-mêmes, et
de façon qu’à
eux-mêmes il ne
leur paraisse pas
un vice.
Fonte: Elaboração das autoras (grifos nossos).
Como se vê, no labirinto de orações entremeadas por tantos apostos,
pode ser difícil localizar o que se refere a quê. Embora toda a frase refira-se
aos homossexuais, do início ao fim, as explicações entre vírgulas com
frequência trazem novos sujeitos e complexificam a sintaxe geral.
Na passagem do grifo (1), está ilustrado o problema de traduzir Proust,
mesmo que para uma língua relativamente próxima do francês, como é o
português: o uso dos pronomes requer minúcia. No contexto, compreende-se
que auxquels refere-se a leurs semblables, que vem logo acima, enquanto ils
substitui uma espécie de sujeito oculto de toda a frase, que são – como
podemos inferir – os homossexuais. Sabemos disso de maneira enviesada,
pois as frases anteriores do parágrafo também não possuem sujeito óbvio; o
narrador inicia o parágrafo falando como o personagem Charlus pertencia a
uma raça (Il appartenait à la race; à raça de seres (à la race de ces êtres); raça
sobre a qual pesa uma maldição (race sur qui pèse une malédiction). Em
seguida, passa a se referir a um grupo, adotando o coletivo representado por
“eles” (ils), sem definir quem seriam, exatamente, esses “eles”. Vê-se como, do
sujeito race, passa-se ao chrétiens (“cristãos”), ou seja, fica subentendido que
a raça é composta por sujeitos que, a partir daí, serão representados por ils ao
longo de todo o longuíssimo parágrafo. São eles os “filhos sem mãe” (fils sans
mère), os “amigos sem amizades” (amis sans amitiés) e assim por diante.
Retomando o caso (1), nota-se que o uso do ils mantém-se em
referência a esse mesmo grupo, mas o problema maior está no pronome
relativo como usado por Py. Em meio a tantos pronomes, a tradução de Py
parece carecer de um complemento (são o quê?), dificultando um
entendimento que, originalmente, já demanda esforço por parte do leitor. Nessa
116
comparação, nota-se, ainda, uma diferença entre as línguas francesa e
portuguesa que também pode, potencialmente, tornar o texto traduzido ainda
mais inescrutável que o de Proust: a supressão dos pronomes pessoais, de
fato menos necessários em português. Sua ausência, todavia, às vezes
obscurece o sentido, como se verá no exemplo (3).
Nas traduções do trecho (2), percebemos interpretações díspares por
parte dos tradutores: Quintana entendeu que os adjetivos (“belos” e
“espantosos”) referiam-se aos “caracteres físicos”; já Py infere que é a raça que
está sendo descrita (como “bela” e “horrível”). Quintana está certo, pois beaux
e affreux, ambos no plural masculino, só podem se referir aos caracterères
phyisiques.
Um dos trechos mais complicados é o (3), com um uso desafiador de
pronomes pessoais. Entende-se que ceux qui e o primeiro ils referem-se ao mesmo
grupo: os que ocultam quem são. A seguir, porém, há uma dificuldade, daí a diferença
entre as traduções. Uma leitura atenta dos períodos anteriores indica que, em ils les
démasquent volontiers, ils substitui os homossexuais que não se ocultam – os sujeitos
“gerais” de toda a frase –, e les, aqueles que se ocultam. A seguir, o leur refere-se aos
que são desmascarados; o próximo ils substitui, novamente, os que desmascaram.
Em Quintana, parece haver uma confusão. Da maneira como está, sem o pronome
“eles” para clarificar e sem vírgula para separar o verbo “desmascararão” do sujeito
“os que conseguem”, pode-se entender que são os que conseguem ocultar que
desmascaram, pois parecem ser o sujeito de todo o período (quando, na verdade, é o
contrário: eles é que são desmascarados). Isso porque há uma inversão no texto
proustiano; para facilitar a análise sintática, se reordenássemos os períodos, ou se
passássemos à voz passiva, ficaria mais clara a ideia:
eles desmascaram de boa vontade os que conseguem ocultar que a ela
pertencem
os que conseguem ocultar que a ela pertencem são desmascarados de
boa vontade
O uso por Py do pronome “nos”, em posição enclítica, colocando a ação entre
vírgulas com sujeito oculto (“desmascaram-nos de boa vontade”), também dificulta o
entendimento, pois não é fácil concluir quem é o sujeito sem que haja um pronome. No
texto de Proust, há uma repetição do sujeito (ils les démasquent volontiers), o que
117
talvez tivesse clarificado também o texto de Py (“eles os desmascaram de boa
vontade”).
De toda forma, percebe-se, nos dois casos, um esforço de manter a
ordenação das palavras, sem racionalizar demais o texto e preservando o estilo
proustiano – o preço disso, como previsto por Benjamin, é por vezes perder o
sentido, ou, ao menos, dificultar sua apreensão.
A tendência de se manter hiperfiel à sintaxe proustiana, percebida nos
tradutores brasileiros, está ausente na clássica tradução para o inglês de C.K.
Scott Moncrieff e Terence Kilmartin47 (2010, p. 19), que rearranjam toda a
sintaxe em favor da clarificação do sentido:
they readily unmask those who succeed in concealing the fact that they
belong to it, with a view less to injuring them,
A reorganização sem dúvida deixa o texto muito mais acessível,
contudo, elimina a inversão que caracteriza o texto de Proust.
No trecho (4), parece ter havido duas más compreensões por parte dos
tradutores. Primeiramente, Quintana e Py entenderam que o que subsistiu (ou
não) foi o “opróbrio”, quando na verdade este permitiu que só os refratários
subsistissem (ou não). A seguir, seu deslize tem relação com o uso arcaico do
pronome y como complemento de contredire (cf. verbete contredire no
Dictionnaire de L’Académie Française). Um esclarecimento sobre o verbo
contredisent – não reflexivo aqui – teria impedido o erro: os vícios não “se”
contradizem, mas contradizem as “altas qualidades morais”, substituídas em
francês pelo pronome y. O sentido, aqui, é de que os homens têm aversão
47
Proust morreu antes de conseguir completar a revisão das provas dos últimos volumes, três
dos quais foram publicados postumamente e editados por seu irmão Robert. O livro foi
traduzido para o inglês inicialmente por C. K Scott Moncrieff, e essa primeira tradução recebeu
o título de Remembrance of Things Past, que foi mantido entre 1922 e 1931. Dos sete volumes,
Moncrieff traduziu do 1º ao 6º, tendo morrido antes de completar o sétimo. Esse último volume
foi vertido por outros tradutores em épocas diferentes. Quando a tradução de Scott Moncrieff foi
revisada (primeiro por Terence Kilmartin, depois por D. J. Enright), o título do romance foi
alterado para o mais literal In Search of Lost Time. Mais adiante, quando nos referirmos à
versão dos volumes de Proust lidas por Virginia Woolf, o nome do tradutor indicado será
apenas Moncrieff, porque Virginia leu a tradução antes de ela ser revisada pelos outros
tradutores. (IN SEARCH, 2024).
118
maior a essa disposição (dos homossexuais), ainda que acompanhada de altas
qualidades morais, do que a vícios que contradizem tais qualidades, que são
listados a seguir. Nas traduções para o inglês, de Moncrieff e Kilmartin e de
John Surrock, respectivamente, o sentido também varia:
by virtue of an innate disposition so peculiar that it is more repugnant to
other men (even though it may be accompanied by high moral qualities)
than certain other vices which exclude those qualities (PROUST, 2010, p.
19)
by virtue of an innate disposition so special that it repels other men more
(even though it may be accompanied by lofty moral qualities) than certain
vices that contradict it (PROUST, local 439)
Na tradução de Moncrieff e Kilmartin, o entendimento parece ser o
mesmo que propomos aqui: os vícios piores contradizem (ou exclude, no verbo
usado por eles) as qualidades morais. Já na tradução de Sturrock, não fica
claro a que se refere o pronome it. O que os vícios contradizem, a disposição
inata (innate disposition)? Não parece fazer sentido ou, no mínimo, está bem
confuso, o que confirma a dificuldade de se mapear os pronomes em Proust.
No trecho (5), cada tradutor parece ter se confundido com uma questão
diferente. Quintana não conjugou o verbo conforme “ involuntários ou
deliberados”; a tradução de qui signalent teria de ser que indicam, na terceira
pessoa do plural. A construção da frase de Py, por sua vez, dá a impressão de
que é o grão-senhor quem abre a porta do carro.
Já no trecho (6), há um novo desafio pronominal. É interessante o que
ocorre aqui, pois não se sabe se os tradutores entenderam o uso do verbo
donner ou não, já que não há prejuízo para o sentido. De toda forma, ambos
atribuem à educação aristocrática o ato de dar certa liberdade ao príncipe,
tomando donner em sua primeira acepção, como verbo “dar” em modo
transitivo direto (nesse caso, teria de ser qui donne l’éducation aristocratique).
No entanto, donner encontra-se em outra acepção, a de ser causa de algo ou
de ter algo por consequência ou resultado (cf. donner/se donner no dicionário
Le Robert), ou seja, une certaine liberté seria consequência de l’éducation
aristocratique, o que poderia ser traduzido como “resultante de”. No entanto,
uma vez preservado o sentido, tanto faz o entendimento correto do verbo
119
nesse caso particular – o que não significa que a confusão entre que e qui não
possa gerar erros tradutórios em outras passagens.
Marcel Proust e Virginia Woolf: Dois grandes escritores e seus níveis de
complexidade
Antes de começarmos a discutir excertos de To the Lighthouse e
contrapô-los a duas traduções para o português brasileiro, é conveniente
comentarmos de forma sucinta sobre níveis de complexidade na obra de um
mesmo escritor ou escritora. Virginia Woolf tem escritas mais e menos
complexas. Orlando, por exemplo, tem menor complexidade sintática se
comparado com To the Lighthouse e Mrs. Dalloway, por exemplo. James Joyce
parece ter ido complexificando sua escrita ao longo dos anos, e é patente a
diferença entre Dubliners e Finnegans Wake no aspecto da complexidade. Ana
Carolina Mesquita, que pesquisou e traduziu o diário de Woolf, ressalta a
grande admiração que a inglesa sentia pelo francês. Revela ainda que Mrs.
Dalloway foi escrito sob a influência direta de O Caminho de Swann, e que
Orlando foi diretamente influenciado por Sodoma e Gomorra (MESQUITA,
2019, p. 119).
Existe, porém, um “detalhe” que torna nossa reflexão também complexa.
Nas palavras de Mesquita:
Woolf leu Proust largamente em tradução porque não confiava em seu
francês [...]. A tradução de que ela se valeu foi a de C. K. Scott Moncrieff,
que segundo Emily Dalgarno “simplificou o extenso vocabulário usado por
Proust para descrever funções mentais, reduzindo tudo a ‘consciente’ e
‘inconsciente’ (...). Essa “tradução problemática” levou Woolf a ver o
inconsciente “como sendo a fonte não de erro e conflito, como na obra de
Freud, mas de acesso singular do artista ao mundo subaquático da mente
(2019, p. 119, grifo da autora).
Depreende-se dessa revelação que Woolf admirava a escrita de Proust
por características que ela adquiriu na tradução de Moncrieff. E de fato, Woolf
registrou várias vezes no diário como prezava a escrita de seu colega de pena.
Segundo Mesquita, ela começou a ler Proust em 1922 e se dedicou a lê-lo
120
pelos próximos doze anos. Logo no início desse período, ela se mostrou
“assombrada” com a escrita dele.
Minha aventura é mesmo Proust. Ora − o que resta a ser escrito depois
disso? Estou apenas no primeiro volume, e deve existir defeitos, mas estou
pasma, como se um milagre fosse realizado bem diante dos meus olhos
(WOOLF, apud MESQUITA, 2019, p. 118-119).
Voltando à questão da diferença de complexidade entre obras do
mesmo autor, temos que Woolf, que obteve grande sucesso de público (e com
isso conquistou maior segurança financeira) com Orlando, parecia prezar mais
obras anteriores e mais complexas, como Mrs. Dalloway e To the Lighthouse,
que foram aclamadas pela crítica, mas não tiveram tanto apelo popular. Pelo
que se pode depreender do diário e como aponta Mesquita, Woolf considerava
Orlando uma obra mais “rasa” que as duas anteriores. Vamos, então, analisar
alguns trechos de To the Lighthouse, para ver se a complexidade dessa escrita
se espelha na do autor tão admirado por Woolf ou se traça outros caminhos.
Com certeza, existem em Woolf parágrafos muito longos e com vários
“desvios” que podem exigir que os leitores (pelo menos os mais neuróticos)
releiam certas passagens para entender “direito” ou pelo menos entender
“melhor” o que acabaram de ler. Mas provavelmente Woolf não tem frases de
mais de 800 palavras. Como foi feito na análise do excerto de Proust, aqui
também serão colocadas duas traduções brasileiras dos excertos em questão,
a saber, a de Denise Bottmann e a de Paulo Henriques Britto.
Tabela 2: Comparação do primeiro excerto de Woolf48
Woolf Denise Bottmann Paulo Henriques Britto
(WOOLF, 2020, p.13- (WOOLF, 2013, p. 13-14) (WOOLF, 2023, p. 45-47)
14)
But here, as she Mas então, quando virava Mas neste ponto, ao virar a
turned the page, a página, de súbito a busca página, de repente sua
48
As tabelas foram confeccionadas de acordo com a singularidade da escrita complexa de
cada autor. Na tabela 1, julgou-se necessário localizar os pontos mais detidamente analisados
por números, para uma melhor localização por parte do leitor. Nas tabelas referentes a Virginia
Woolf, não se julgou necessário proceder da mesma forma (numerando os trechos).
121
suddenly her search de uma imagem de busca pela figura de um
for the picture of a ancinho ou cortador de ancinho ou uma cortadora
rake or a mowing- grama foi interrompida. O de grama foi interrompida.
machine was murmúrio rouco, rompido Os murmúrios ásperos,
interrupted. The gruff irregularmente pelos entremeados de modo
murmur, irregularly intervalos de pôr cachimbo irregular pelo som de tirar o
broken by the taking e tirar cachimbo que cachimbo da boca e lá
out of pipes and the tinham continuado a lhe recolocá-lo, que até então
putting in of pipes assegurar, embora não lhe garantiam, embora ela
which had kept on conseguisse ouvir o que não conseguisse ouvir o
assuring her, though diziam (sentada à janela), que diziam (estando ela
she could not hear que os homens estavam sentada junto à janela),
what was said (as conversando alegremente; que os homens estavam
she sat in the window esse som, que agora conversando
which opened on the durava fazia meia hora e animadamente; este som,
terrace), that the men ocupara de maneira que já se prolongava há
were happily talking; reconfortante seu lugar na meia hora e ocupava seu
this sound, which had escala dos sons que se lugar, de modo
lasted now half an comprimiam a seu redor, tranquilizador, na gama de
hour and had taken como as leves tacadas nas sons que se impunham a
its place soothingly in bolas, de vez em quando o ela, como o ruído dos tacos
the scale of sounds grito agudo e inesperado, acertando bolas, o grito
pressing on top of “Como foi? Como foi?”, dos súbito e intenso, de vez em
her, such as the tap filhos jogando críquete, quando, de “Ô juiz! Ô juiz!”,
of balls upon bats, tinha cessado; de forma das crianças jogando
the sharp, sudden que o tamborilar monótono críquete, tinha cessado;
bark now and then, das ondas na praia, que também cessara o quebrar
"How's that? How's em geral marcava um ritmo monótono das ondas na
that?" of the children cadenciado e tranquilizante praia, que a maior parte do
playing cricket, had para seus pensamentos e tempo era um tam-tam
ceased; so that the parecia repetir consolador ritmado e tranquilizador no
monotonous fall of quando estava sentada fundo de seus
the waves on the com os filhos os versos de pensamentos, e parecia
beach, which for the alguma velha cantiga de repetir vez após vez, num
most part beat a ninar murmurada pela consolo, quando ela estava
measured and natureza, “Estou velando sentada junto das crianças,
soothing tattoo to her por ti – Sou teu apoio”, a letra de alguma antiga
thoughts and seemed porém outras vezes, de canção de ninar,
consolingly to repeat súbito e de inopino, sussurrada pela natureza:
over and over again sobretudo quando sua “Eu vos protejo — eu vos
as she sat with the mente se afastava apoio”, mas em outros
children the words of ligeiramente da tarefa que momentos, de modo
some old cradle estava fazendo, não tinha repentino e inesperado,
song, murmured by esse sentido benévolo, principalmente quando
nature, "I am mas, como um seus pensamentos se
guarding you—I am fantasmagórico rufar de distanciavam um pouco da
your support," but at tambores batendo tarefa que a absorvia,
other times suddenly implacavelmente o ganhava um sentido nada
and unexpectedly, compasso da vida, fazia benévolo, e era como um
especially when her pensar na destruição e no rufar de tambores espectral
mind raised itself engolfamento da ilha pelas e implacável, marcando o
122
slightly from the task águas do mar e advertia a compasso da vida, e a
actually in hand, had ela cujo dia se escoara fazia pensar na ilha sendo
no such kindly numa rápida sucessão de destruída e engolida pelo
meaning, but like a afazeres que tudo era mar, e lembrava a ela, que
ghostly roll of drums efêmero como um arco-íris passara o dia numa
remorselessly beat – esse som que fora sucessão de tarefas
the measure of life, obscurecido e encoberto rápidas, que tudo era tão
made one think of the pelos outros sons de efêmero quanto um arco-
destruction of the repente trovejou íris — esse som até então
island and its surdamente em seus obscurecido e escondido
engulfment in the ouvidos e fez com que por debaixo dos outros
sea, and warned her erguesse os olhos num sons de repente ribombava
whose day had impulso de terror. em seus ouvidos, fazendo-
slipped past in one a levantar a cabeça movida
quick doing after por um impulso de terror.
another that it was all
ephemeral as a
rainbow—this sound
which had been
obscured and
concealed under the
other sounds
suddenly thundered
hollow in her ears
and made her look up
with an impulse of
terror.
Fonte: Elaboração das autoras. (grifos nossos).
Aqui, se fôssemos condensar o excerto nas orações principais, sem os
“desvios” que a todo tempo irrompem nas frases, teríamos a seguinte narrativa:
A Sra. Ramsay estava folheando um catálogo em busca de figuras. De repente,
um murmúrio rouco que a tranquilizava (e que se impusera sobre outros sons
de sua rotina) cessou e ela teve um impulso de terror. Mas sem essas
intercorrências de outras frases, não é possível sabermos a causa do impulso
de terror. Assim, as frases intercorrentes são necessárias à construção do fluxo
de consciência woolfiano.
Note-se, também, que Woolf “colabora” com o leitor, no sentido de
recuperar seu tema principal. No texto em inglês (vejam-se os grifos), ela indica
o sujeito primeiro como the gruff murmur, mas depois o retoma com this sound
123
para, um pouco mais à frente, atribuir-lhe um verbo had ceased. Logo após o
ponto-e-vírgula, o narrador woolfiano passa a se referir ao outro som, com the
monotonous sounds of the waves, que por sua vez é retomado com this sound
which had been obscured and concealed under the other sounds para que
receba a atribuição de um complemento, que é justamente suddenly thundered
hollow in her ears and made her look up with an impulse of terror.
Percebe-se que os dois tradutores seguiram as pegadas de Woolf e
também retomaram os dois sujeitos, embora Britto tenha se confundido e
atribuído ao segundo sujeito um outro verbo que não está no texto em inglês. É
como se, talvez para deixar o texto mais claro, ele tivesse “adiantado” o verbo,
atribuindo-o ao sujeito, embora esse verbo não conste no original e essa
intervenção do tradutor tenha criado uma ação que não ocorreu (“também
cessara o quebrar monótono das ondas na praia”), quando, na verdade, o que
está descrito no texto de partida é que esse segundo som suddenly thundered
hollow. Provavelmente a presença de “so that” tenha induzido a um erro o
tradutor, que provavelmente interpretou esse “so” como um “também”.
Passemos à análise de mais uma passagem para exemplificarmos
nossas inquietações sobre a tradução de textos literários complexos, a
importância de atentar para a sintaxe e o fato de essa prática nem sempre
oferecer uma solução mágica. No próximo excerto, a aspirante a pintora Lilly
Briscoe está pensando sobre a tortura do fugaz instante entre o que ela
observa e o que efetivamente pinta.
Tabela 3: Comparação do segundo excerto de Woolf
Woolf Denise Bottmann Paulo Henriques
(WOOLF, 2020, (WOOLF, 2013, p. 16) Britto
p.17) (WOOLF 2023, p.
49-50)
It was in that Era naquele momento Era naquele voo
moment's flight fugidio entre a imagem e a momentâneo entre a
between the picture tela que se via atacada imagem e a tela que os
and her canvas that pelos demônios que tantas demônios a atacavam,
the demons set on vezes a levavam à beira muitas vezes levando-
her who often brought das lágrimas e faziam a quase às lágrimas,
her to the verge of desse trânsito da fazendo com que a
tears and made this concepção à execução passagem do conceito
passage from algo tão assustador para a obra se
conception to work as quanto, para uma criança, tornasse tão terrível
124
dreadful as any down seguir por um corredor quanto a passagem
a dark passage for a escuro. Assim se sentia por um beco escuro
child. Such she often muitas vezes – lutando para uma criança. Era
felt herself— contra uma superioridade assim que via a si
struggling against esmagadora para manter a própria muitas vezes
terrific odds to coragem, para dizer: “Mas — lutando num
maintain her courage; é isto o que eu vejo; é istocombate muitíssimo
to say: "But this is o que eu vejo”, e para desigual, tentando
what I see; this is agarrar junto ao peito manter a coragem;
what I see," and so to algum mísero resquício de para dizer: “Mas isto é
clasp some miserable sua visão, que um milhar o que eu vejo; isto é o
remnant of her vision de forças se empenhava que eu vejo”, e desse
to her breast, which a em lhe arrancar. E foi modo apertar contra o
thousand forces did então também, naquele peito um mísero
their best to pluck caminho gélido e ventoso, vestígio de sua visão,
from her. And it was quando começou a pintar, que mil forças faziam o
then too, in that chill que sentiu o peso de possível para lhe
and windy way, as outras coisas, sua própria arrancar. E era
she began to paint, inadequação, sua também nesses
that there forced insignificância, cuidando dainstantes, como se no
themselves upon her casa e do pai na Brompton frio e no vento, em que
other things, her own Road, e tinha de fazer um ela começava a pintar,
inadequacy, her grande esforço para conter que outras coisas se
insignificance, o impulso de se lançar impunham a ela, sua
keeping house for her (graças aos céus incompetência, sua
father off the conseguira resistir até insignificância, a
Brompton Road, and agora) aos joelhos da sra. obrigação de cuidar da
had much ado to Ramsay e lhe dizer – mas casa para o pai perto
control her impulse to o que se podia dizer a ela? da Brompton Road, e
fling herself (thank “Estou apaixonada por era necessário
Heaven she had você”? Não, não era esforçar-se para conter
always resisted so verdade. “Estou o impulso de se jogar
far) at Mrs. Ramsay's apaixonada por tudo isso”, (graças a Deus, até
knee and say to abrangendo num gesto a aquele momento ela
her—but what could sebe, a casa, as crianças. havia resistido) aos
one say to her? "I'm Era absurdo, era pés da sra. Ramsay e
in love with you?" No, impossível. Não se podia lhe dizer… mas o que
that was not true. "I'm dizer o que se tinha se podia dizer a ela?
in love with this all," vontade. “Eu amo a senhora?”
waving her hand at Não, isso não era
the hedge, at the verdade. “Eu amo tudo
house, at the isso”, indicando com a
children. It was mão a sebe, a casa, as
absurd, it was crianças? Era um
impossible. absurdo, era
impossível. Não se
podia dizer o que se
queria dizer.
Fonte: Elaboração das autoras. (grifos nossos).
Aqui, o primeiro detalhe que salta aos olhos é a omissão de uma frase
no texto de partida, “One could not say what one meant”, que por algum motivo
125
não consta nessa edição específica com que estamos trabalhando. Isso nos
faz concluir que a possibilidade de errar é constante e real, e que se pode errar
em várias fases da produção de um livro.
Não é difícil calcular o que Woolf quis dizer com “a moment’s flight”. Um
tempo muito curto. Mas teria o substantivo flight nesse trecho relação com
“fuga” ou com “voo”? A tradução de Britto é mais “colada” no texto em inglês e
mantém um certo estranhamento que causa o texto de partida. A fuga de um
momento? O voo de um momento? Já Bottmann apresenta uma solução eficaz
e mais convencional, alterando um pouco as classes gramaticais dos termos e
trazendo “momento fugidio”. Ambas as opções expressam a ideia de “momento
fugaz”, ou de “um átimo”, cada uma à sua maneira, ambas sendo válidas na
nossa opinião.
Esse trecho retoma várias vezes a ideia da “passagem”, e nem sempre
as traduções recuperaram essa recorrência. Temos, então, um moment’s flight,
em seguida passage from conception to work, que é comparada a any [...]
down a dark passage for a child. Subentende-se que em “as any [...]” temos a
elipse de passage, o que gera um efeito interessante e complexo em inglês,
que é prejudicado pela repetição de passage logo em seguida. Esse segundo
passage poderia ser substituído por vários termos como corridor, way, ou
pathway entre outros, que, somados a dark/escuro(a), poderiam ter gerado um
efeito melhor em inglês. Mais adiante, o narrador woolfiano volta a mencionar a
ideia de uma passagem (que reverbera a primeira passagem, da cena para a
tela), em in that chill and windy way, que é retomada na versão de Bottmann
com “naquele caminho gélido e ventoso”, mas não por Britto, que escolheu
“como se no frio e no vento”.
Considerações finais
A análise sintática, que, à primeira vista, pode parecer até mesmo
escolar, faz-se necessária na tradução da literatura experimentalista, de alta
complexidade, como já argumentou Raffel (1994). Os exemplos aqui mostrados
confirmam tal necessidade, pois mostram que é fácil se perder na prosa
126
labiríntica de autores como Proust e Woolf. Com suas frases longas e repletas
de inversões e de pronomes que retomam sujeitos e objetos que nem sempre
estão explicitados, a pergunta quase infantil “quem está fazendo o quê com
quem?” pode ser bastante útil ao longo do processo tradutório, ainda que não
se queira rearranjar a sintaxe nem clarificar – como certamente o fazem as
traduções para o inglês de Proust –, mas simplesmente escolher pronomes que
permitam o entendimento por parte do leitor.
A semelhança sintática entre francês e português com frequência parece
atrapalhar a construção de um texto inteligível e que, ao mesmo tempo,
respeite o estilo proustiano. Por ser possível manter praticamente todas as
palavras no mesmo lugar – em um aparente ideal benjaminiano de soberania
da sintaxe sobre o sentido –, Quintana e Py permanecem “colados” em Proust
quase o tempo todo, mas escorregam quando se faz necessária uma análise
mais atenta, sobretudo dos pronomes.
Quanto aos excertos de Woolf, várias questões se colocaram. Se
aceitarmos a ideia de que Sodome et Gomohrre inspirou a concepção de
Orlando, e se levarmos em conta que Woolf leu Proust em tradução para o
inglês, seria possível imaginar que o texto de Orlando, que a própria Woolf
considerava mais acessível (chegando até mesmo a algumas vezes colocá-lo
numa posição inferior à de seus outros livros), se inspirou na sintaxe mais
“simplificada” de Moncrieff?
Em 18 nov. 1924, Woolf registra no seu diário:
“Não admira que Proust tenha conseguido expressar o que eu gostaria de
dizer – esse grande autor que não consigo ler quando estou revisando, tão
persuasivo ele é. Graças a ele se tem a ilusão de que é fácil escrever bem;
o que significa apenas que estamos meramente deslizando em patins
emprestados” (WOOLF, apud MESQUITA, 2019, p. 119).
Toda essa admiração pelo romancista francês pode ter gerado em Woolf um
desejo de emulação, que talvez tivesse resultado na escrita de Orlando, uma obra
menos complexa em termos de trabalho com a linguagem. Isso se confiarmos na
hipótese de que essa obra foi influenciada por Sodome et Gomorrhe. Mas qual
característica teria atraído Woolf na prosa de Proust: algo que tenha sido recriado na
tradução ou traços da intervenção de Moncrieff? Refletir sobre a concepção, as
127
influências e a tradução de textos literários complexos é uma tarefa igualmente
complexa.
Referências
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HEIDERMANN, Werner (Org.). Clássicos da Teoria da Tradução. Volume I:
Alemão-Português. 2ª Edição, Revisada e Ampliada. Florianópolis: UFSC,
2010. p. 202-233.
CAMPOS, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação
tradutora. Belo Horizonte: Viva Voz/FALE/UFMG, 2011.
CONTREDIRE. Dictionnaire de L’Academie Française, 9e édition. Disponível
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<https://dictionnaire.lerobert.com/definition/donner>. Acesso em 20 mar 2024.
FORSTER, Edward Morgan Aspects of the Novel. New York: Harcourt, 2014.
IN SEARCH of Lost Time. Wikipedia – The Free Encyclopedia. Atualizado em 2024.
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KAHN, Robert. Benjamin leitor de Proust. Alea, v. 14, n. 1, jan-jun 2012, p. 60-77.
RAFFEL, Burton. The Art of Translating Prose. University Park: The Pennsylvania
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LABBÉ, Cyril; LABBÉ, Dominique. Les phrases de Marcel Proust. Anais da 14a.
Conferência Internacional de Dados Textuais e Análise Estatística.
Departamento de Matemática e Estatística da Universidade de Roma, junho de
2018, pp. 400 - 410. Disponível em: <https://shs.hal.science/halshs-
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MESQUITA, Ana Carolina Cardoso. O Diário de Tavistock: Virginia Woolf e a
Busca pela Literatura. Tese de Doutorado defendida junto ao programa de
Teoria Literária e Literatura Comparada, Universidade de São Paulo, 2019.
Disponível em:
https://teses.usp.br/index.php?option=com_jumi&fileid=17&Itemid=160&id=17A
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PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Volume 2. Sodoma e Gomorra.
Trad. Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Volume 4. Sodoma e Gomorra.
Trad. Mário Quintana. São Paulo: Biblioteca Azul, 2008. E-book.
128
PROUST, Marcel. Sodom and Gomorrah: In Search of Lost Time. Trad. John
Sturrock. New York: Penguin Classics, 2005. E-book.
PROUST, Marcel. Sodom and Gomorrah. In Search of Lost Time IV. Trad. C.K.
Scott Moncrieff e Terence Kilmartin. London: Vintage Books, 1996.
PROUST, Marcel. The Project Gutenberg eBook of Sodome et Gomorrhe –
Première partie. Última atualização: 14/12/2020. Disponível em:
https://www.gutenberg.org/cache/epub/15288/pg15288-images.html. Acesso
em 10 abr 2024.
WOOLF, Virginia. To The Lighthouse. Little Griffin Press. Edição do Kindle.
WOOLF, Virginia. Ao farol. Trad. Denise Bottmann. Porto Alegre, RS: L&PM,
2013. Edição Kindle.
WOOLF, Virginia. Passeio ao farol. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2022.
129
Sobre as organizadoras
LEILA CRISTINA DE MELO DARIN
Tradutora do português/inglês/espanhol e Professora Titular da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos
da Tradução e da Interpretação (ESTI). Suas linhas de pesquisa são:
Formação de Tradutores; Tradução Literária; Literatura Comparada e Tradução
Cultural.
GERMANA ARAÚJO SALES
Professora titular do Instituto de Letras e Comunicação (ILC), da Universidade
Federal do Pará - UFPA, com atividade docente na Graduação e Pós-
Graduação e Pesquisadora 1D do CNPq. Possui Graduação em Letras pela
Universidade Estadual do Ceará - UECE (1989), Especialização em
Investigação Literária na Universidade Federal do Ceará - UFC (1994),
Mestrado em Letras: Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará - UFPA
(1997) e Doutorado em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de
Campinas - UNICAMP (2003). Líder do Grupo de estudos em História Literária
(CNPq), atua na área de Letras e possui experiência em Literatura, com ênfase
na História da Literatura, História do Livro e da Leitura, ensino de Literatura e
Literatura Portuguesa, com destaque nos seguintes temas: comércio de livros;
estudos do romance; crítica ao romance, literatura e direitos humanos e
literatura e sociedade.
Sobre os autores
ANSELMO PERES ALÓS
Doutor em Letras pela UFRGS. Professor Associado III na Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM) e Docente Permanente do Programa de Pós-
Graduação em Letras dessa mesma instituição. Realizou Estágio Pós-Doutoral
no PPG-Letras da UFPE como bolsista PNPD/CAPES, autor de A letra, o corpo
e o desejo: masculinidades subversivas no romance latino-americano (2013),
Leituras a contrapelo da narrativa brasileira: redes intertextuais de gênero, raça
e sexualidade (2017). Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ-2) do CNPq.
Ganhador do Prêmio Pesquisador Gaúcho, outorgado pela Fapergs, em 2023,
na categoria Linguística, Letras e Artes.
ATILIO BERGAMINI
Professor do Departamento de Literatura e do Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Ceará. Pesquisa narrativas de crimes contra
a humanidade, com ênfase atual nas narrativas a respeito das secas no
Nordeste. Também pesquisa a obra de Machado de Assis, tendo como foco
fontes primárias e questões relativas à escravidão.
CÁTIA MONTEIRO WANKLER
Professora Titular do Curso de Letras da UFRR. Docente Colaboradora do
PPGL/UFRR, Pós-Doutoranda em Letras. Doutora em Teoria da Literatura.
130
Mestre em Literatura Portuguesa. Líder do GP Estudos de Literatura e
Identidade-DGP/CNPq e membro dos GP-DGP/CNPq Literaturas,
Africanidades e Minorias Sociais-UFRR e Cátedra Amazonense de Estudos
Literários e da Cultura Coordenadora do Projeto de Pesquisa “Vozes femininas
na poesia lírico-amorosa: diálogos possíveis entre Roraima e Portugal”/UFRR.
CYNTHIA BEATRICE COSTA
Tradutora literária inglês/português. Professora adjunta do curso de Tradução
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e membro dos programas de
pós-graduação em Estudos Literários (PPGELIT/UFU) e Estudos da Tradução
(PGET/UFSC). Sua pesquisa tem por foco a Tradução Literária, a Narratologia
e a Adaptação Cinematográfica.
ENEDIR DA SILVA DOS SANTOS
Doutora em Estudos de Literatura pela Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul, do Câmpus de Três Lagoas. É docente, atualmente atua como diretora,
na rede de ensino da Secretaria Municipal de Educação de São José do Rio
Preto. Como pesquisadora, vem se dedicando especialmente às investigações
de literatura de autoria feminina e personagens protagonistas.
KELCILENE GRÁCIA
Doutora em Estudos Literários pela Unesp/Araraquara e Professora de
Literatura Brasileira e Teoria Literária da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul, do Câmpus de Três Lagoas desde 1998, onde atua na graduação e na
pós-graduação. Desenvolve pesquisa na área de literatura brasileira
contemporânea (poesia e prosa). Suas publicações voltam-se para os
seguintes temas: poesia brasileira contemporânea, ressignificação das formas
composicionais e dos temas clássicos, Manoel de Barros, Literatura de Mato
Grosso do Sul e literatura de autoria feminina.
LENITA MARIA RIMOLI PISETTA
Tradutora do inglês-português e Professora Titular de Teoria e Prática da
Tradução do Departamento de Letras Modernas, FFLCH/USP. Entre seus
interesses de pesquisa estão Tradução é Ética, Historiografia da Tradução,
Literatura Brasileira Traduzida para o Inglês e Aplicação das Novas
Tecnologias à tradução.
MARLÍ TEREZA FURTADO
Professora titular do Curso de Letras (FALE), do Instituto de Letras e
Comunicação (ILC) da UFPA; Doutora em Teoria e História Literária, 2002,
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); mestrado em Literatura
Brasileira, 1982, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Pesquisadora na área de literatura amazônica, especialista na obra de Dalcídio
Jurandir; membro do grupo de pesquisa Topus.
REGINA ZILBERMAN
Doutora pela Universidade de Heidelberg, é professora do Instituto de Letras,
na UFRGS, pesquisadora 1A do CNPq, pesquisadora sênior da UEMA e
pesquisadora visitante emérita da FAPERJ. É autora, entre outros livros, de
131
Estética da Recepção e História da Literatura, Literatura infantil brasileira, A
leitura e o ensino da literatura e Brás Cubas autor Machado de Assis leitor.
VERONICA PRUDENTE COSTA
Professora Adjunta do Curso de Letras da UFRR. Docente Permanente do
PPGL/UFRR e do PPGICH/UEA. Coordenadora do PPGL/UFRR e
Coordenadora Institucional do Parfor Equidade UFRR. Realizou Estágio Pós-
doutoral na UFF, com fomento do PROCAD Amazônia. Doutora e Mestre em
Literaturas Portuguesa e Africanas pela UFRJ. Colíder dos GP-DGP/CNPq:
Estudos de Literaturas e Identidades-UFRR e Literaturas, Africanidades e
Minorias Sociais-UFRR e membro do grupo de pesquisas Patrimoni Indigeni,
musealizzazione e decolonialità- Università di Bologna. Coordenadora do
Projeto de Pesquisa “Minorias Sociais e Trânsitos Identitários, Literários e
Culturais entre Amazônia, África e Portugal” - financiado pelo Edital Universal
do CNPq 2023.