Tese - o Estauto Moral Dos Animais e o Prblema Da Substituibilidade
Tese - o Estauto Moral Dos Animais e o Prblema Da Substituibilidade
FACULDADE DE LETRAS
2020
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
Júri:
Presidente: Doutor João Miguel Biscaia Valadas Branquinho, Professor Catedrático e Director da Área
de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Vogais:
- Doutor Filipe Miguel Nobre da Silva Faria, Investigador doutorado, Instituto de Filosofia da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;
- Doutora Susana Maria Afonso Fernandes Cadilha, Investigadora doutorada, Instituto de
Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;
- Doutora Maria Adriana Sequeira da Silva Graça, Professora Auxiliar, Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa;
- Doutor Ricardo Jorge Rodrigues dos Santos, Professor Auxiliar, Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa;
- Doutor Pedro Miguel Galvão Lourenço, Professor Auxiliar, Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, orientador.
2020
Índice
Agradecimentos.............................................................................................................i
Resumo........................................................................................................................iii
Abstract.........................................................................................................................v
Introdução.....................................................................................................................1
1. Cepticismo sobre estatuto moral...............................................................................4
1.1 Uma definição útil..............................................................................................5
1.2 Estatuto moral e a igual consideração de interesses.........................................15
2. Graus de estatuto moral..........................................................................................24
2.1 A importância da senciência.............................................................................26
2.2 A importância de ser pessoa.............................................................................32
2.3 A importância da potencialidade para ser pessoa.............................................38
2.4 Graus de estatuto moral e a moralidade do senso-comum...............................47
3. O estatuto moral dos animais..................................................................................49
3.1 O argumento por analogia para a senciência animal........................................50
3.2 Especismo........................................................................................................55
3.3 Antropocentrismo e o Argumento dos Casos Marginais..................................62
4. Contra o estatuto moral dos animais.......................................................................68
4.1 Antropocentrismo contratualista......................................................................68
4.2 Antropocentrismo baseado no infortúnio humano...........................................74
4.3 Personismo Modal............................................................................................78
4.4 A morte é boa para os animais?........................................................................83
5. O problema da substituibilidade.............................................................................93
5.1 Uma nova visão sobre o problema...................................................................93
5.2 Propostas de solução......................................................................................104
5.2.1 Utilitarismo de Existência Prévia...........................................................104
5.2.2 Utilitarismo de Preferências...................................................................109
5.2.3 Utilitarismo Pessoa-Afectivo de Contrapartes Saturadas.......................115
5.2.4 Utilitarismo de Consequências Restritas................................................120
Conclusão..................................................................................................................131
Bibliografia..........................................................................................................134
Agradecimentos
Agradeço aos professores e aos colegas que tive ao longo dos anos na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa e no grupo de investigação LanCog. Devo um
agradecimento especial a todos os membros (regulares!) do grupo de estudantes
Argument Clinic. Sem os nossos encontros saberia muito menos do que sei hoje.
Agradeço ainda à FCT a Bolsa de Doutoramento SFRH/BD/107907/2015.
Filosoficamente, a minha maior dívida é para com o Pedro Galvão, o meu orientador.
Aprendi muito com o Pedro, não só durante o Doutoramento, mas em anos
anteriores, tanto através do seu trabalho publicado, como através das suas aulas. E na
realização desta tese beneficiei imenso das suas críticas e sugestões.
i
Resumo
iii
Abstract
Against a sceptical view about the notion of moral status, I present an account that
relates such status with an action’s permissibility and defend its usefulness. It is
shown that the account admits degrees of moral status as compatible with the equal
consideration of interests. I then assess two significant arguments for attributing
moral status to animals: the analogical argument for animal sentience and the
Argument from Marginal Cases. According to the first argument, and given the moral
significance of sentience, we can infer that mammals, at least, have moral status.
According to the second, a speciesist view that privileges humans –
Anthropocentrism – is false: whatever animals are relevantly like humans to which
we recognise moral status, should also be recognised as having at least an equivalent
moral status. To provide further support for animals’ moral status, I then examine
several anthropocentric views and conclude that all fail. Lastly, I elucidate the
problem of replaceability, which concerns Utilitarianism’s alleged implication that it
is permissible to kill animals, if they are replaced by other animals, given certain
conditions that seem easy to obtain. If Utilitarianism has this consequence, then it is
inadequate to protect individuals’ lives. After considering and rejecting other
proposals to block replaceability, I advance and defend a new proposal: Restricted
Consequences Utilitarianism.
v
À memória dos meus avós paternos
Introdução
Como o título deixa adivinhar, esta tese foca-se em dois tópicos: os limites morais da
acção para com os animais,1 ou o seu estatuto moral, e o problema da
substituibilidade. Quanto ao primeiro tópico, o objectivo principal é defender que os
animais têm um certo grau de estatuto moral. Quanto ao segundo, o objectivo
principal é avaliar algumas propostas que pretendem evitar que é permissível matar
animais sob certas condições, aparentemente fáceis de obter.
De acordo com o que irei defender, saber que um animal (ou outro ser) tem
estatuto moral é importante porque isso significa que não podemos, moralmente, agir
para com ele de qualquer maneira. Alguns filósofos, no entanto, têm questionado a
importância do conceito de estatuto moral. Em parte, estes filósofos estão
justificados, pois afirmar que um animal (ou outro ser) tem estatuto moral não é
como, por exemplo, afirmar que um animal está vivo. Em primeiro lugar, porque a
questão não parece ser determinável apenas por algum exame empírico. Em segundo
lugar, e relacionada com a razão anterior, porque alguns autores têm usado o conceito
de estatuto moral como se o seu significado fosse óbvio e também como se fosse
óbvio que se aplica a este ou àquele tipo de ser.
No entanto, a atribuição de estatuto moral é uma questão sobretudo normativa
e longe de ser óbvia. É por isso que há um desacordo considerável sobre que tipo de
seres têm, ou podem ter, estatuto moral. A extensão deste desacordo é tal que alguns
autores julgam que só uma parte dos humanos (e.g. os que são agentes morais) têm
estatuto moral, enquanto que outros julgam que até objectos naturais sem vida (e.g.
montanhas e oceanos, enquanto parte de um ecossistema) têm tal estatuto. Pelo meio,
1 Usarei ‘animais’ para referir apenas animais não-humanos. Usarei ‘indivíduo’ para referir algo que
possui bem-estar, isto é, algo cuja vida possa correr melhor ou pior para si próprio. Assim, usarei
este último termo para me referir a animais e a humanos indistintamente. Para simplificar o texto,
em geral, quando falo de animais e de humanos estarei a falar daqueles que são indivíduos. O
contexto, ou alguma qualificação explícita, deixará claro quando isto não for assim.
alguns consideram que apenas os indivíduos de certas espécies têm estatuto moral e
outros julgam que todos os seres vivos têm tal estatuto. É também muito provável
que, muitas vezes, o desacordo aparente não seja genuíno. Ou seja, que certos
filósofos usem a expressão ‘estatuto moral’ com sentidos significativamente distintos
e que, por isso, as posições de uns e de outros não sejam, de facto, incompatíveis.
Por conseguinte, para evitar dar uma maior justificação àqueles filósofos que
têm questionado a importância do conceito de estatuto moral, no Cap. 1, irei começar
por apresentar, explicar, e defender a utilidade de uma concepção de estatuto moral.
Creio que esta concepção é suficientemente clara e partilhada para ser posta de parte
como uma confusão. E a sua utilidade, como veremos, depende da relação que tem
com os interesses dos indivíduos e, consequentemente, com o estatuto deôntico de
acções.
Com base nesta concepção de estatuto moral, no Cap. 2 vou sugerir uma
graduação possível de estatuto moral que é compatível com a igual consideração de
interesses. Ou seja, segundo esta graduação, um indivíduo ter estatuto moral superior
a outro não implica que o primeiro tem algum privilégio acerca de interesses
semelhantes. Irei ainda mostrar que esta graduação é bastante coerente com vários
juízos do senso-comum que envolvem estatuto moral.
No Cap. 3 defenderei, a partir de dois argumentos, que os animais têm
estatuto moral. Aqui, para além de alguns detalhes na exposição, pouco será
surpreendente e original. Felizmente, hoje em dia é muito retrógrada a opinião
segundo a qual os animais não têm qualquer importância moral ou, como direi
adiante, que nenhuma acção é moralmente impermissível devido à forma como eles
são afectados. Portanto, há hoje um consenso considerável acerca dos animais terem
estatuto moral neste sentido mínimo.
Contudo, a cultura humana, em geral, e a história da filosofia, em particular,
têm demonstrado que não é assim tão óbvio que os animais têm estatuto moral.
Ainda há vestígios da posição cartesiana segundo a qual os animais não têm
sensações e, por isso, são instrumentos ao nosso dispor. A atestar isto estão as
touradas e outras formas de entretenimento à custa da dor dos animais, a
2
experimentação científica em animais, muitas vezes com resultados inúteis, e,
sobretudo, a pecuária intensiva. Enquanto existirem tais vestígios da posição
cartesiana, valerá a pena insistir em mostrar que os animais têm estatuto moral. Por
um lado, não podemos negar a evidência científica para a senciência animal. Por
outro, não podemos, sem incoerência, deixar de atribuir a mesma importância moral
a indivíduos com capacidades moralmente semelhantes, independentemente da sua
espécie. Fazê-lo é ser especista, isto é, discriminar com base na espécie,
privilegiando alguns indivíduos sem razões moralmente relevantes.
Para reforçar a conclusão de que os animais têm estatuto moral, e que o
Especismo é insustentável, no Cap. 4 avalio algumas posições que procuram, de
diversas formas, defender a maior importância moral dos seres humanos.
Naturalmente, as posições que tenho em conta são apenas uma amostra das que estão
disponíveis na literatura, mas julgo que a amostra é representativa e a sua avaliação é
imparcial. Nenhuma das posições é capaz de sustentar a alegada maior importância
moral dos seres humanos. De certa forma, isto aproxima o estatuto moral dos
humanos e o dos animais. Ao contrário do que a perspectiva tradicional faz parecer,
nalguns casos há dúvidas legítimas acerca de sobrestimarmos a importância moral
dos humanos. Um humano tem estatuto moral a partir de que momento? Desde a
concepção? Ou desde o estado embrionário? Ou será, antes, desde que é um feto?
Estas dúvidas só podem ser legítimas à luz de uma abordagem ao estatuto moral com
base nas capacidades individuais e, logo, negando a abordagem especista.
Em comparação com o objectivo principal dos capítulos sobre o estatuto
moral, o objectivo principal do Cap. 5 – avaliar propostas contra a permissibilidade
matar animais sob certas condições – é mais específico, e em dois sentidos. Desde
logo porque a protecção moral da vida, a existir, implica algum grau de estatuto
moral. Mas, para além disto, porque neste capítulo, ao contrário dos restantes, estarei
a pressupor uma abordagem normativa específica, nomeadamente, o Utilitarismo.
Por outro lado, o objectivo aqui é exploratório uma vez que, apesar do problema ter
vindo a resistir a um tratamento utilitarista, irei insistir em apresentar uma proposta
no mesmo espírito que julgo promissora, embora lhe reconheça algumas limitações.
3
Portanto, aqueles que estão interessados no estatuto moral dos animais, mas
não no Utilitarismo, ou mesmo no consequencialismo, talvez não tenham razões para
ler o último capítulo desta tese. Ainda assim, se o lerem, é provável que encontrem aí
motivos para reforçarem as suas críticas ao Utilitarismo. Em todo o caso, avaliarmos
se uma certa teoria normativa tem tal e tal consequência é a única forma de a
compararmos com outras (excepto, claro, quando há problemas de consistência). Por
isso, avaliar se o Utilitarismo consegue reconhecer uma protecção moral da vida é
útil para podemos decidir entre o Utilitarismo e outras teorias. O que espero mostrar
é que o problema da substituibilidade não é, decididamente, um factor negativo
contra o Utilitarismo em geral.
‘Estatuto moral’ é uma expressão de arte cujo uso tem oscilado substancialmente
entre mera considerabilidade moral e formas específicas de importância moral (e.g.
ter meros interesses, ter direitos). Além disso, por vezes a expressão é usada como se
tal oscilação não existisse, isto é, como se fosse desnecessário tornar claro o que está
em causa. Para alguns filósofos isto suscita dúvidas sobre a importância do próprio
conceito nas discussões acerca da moralidade de diversas práticas. Sachs (2011) e
Horta (2017) são dois desses filósofos. Ambos defendem que o conceito de estatuto
moral não só não nos ajuda a esclarecer a questão sobre como devemos agir para
com diferentes indivíduos, como também que obscurece as discussões éticas nas
quais é empregue. Portanto, ambos julgam que o conceito de estatuto moral é inútil e
prejudicial.2
2 Dada a vasta literatura sobre o estatuto moral dos animais, é estranho que Sachs (2011: 90) afirme
que o discurso sobre estatuto moral “surja quase exclusivamente em textos sobre a ética dos casos
marginais.” (Excepto indicação em contrário, todas as traduções incluídas nesta tese são da minha
autoria.) Os casos marginais são aqueles humanos que não têm certas propriedades que
comummente se considera que conferem importância moral (ver 3.3). Porém, apesar de Sachs se
focar nas discussões sobre os casos marginais, como a sua posição exprime cepticismo acerca da
4
Se estes filósofos tiverem razão, eu não deveria falar sobre o estatuto moral
dos animais. Ora, dado que eu pretendo falar sobre tal estatuto, compete-me iniciar
esta tese mostrando de que forma é que ambos estão errados. Começarei pela posição
de Sachs.
A argumentação de Sachs ataca várias posições sobre o estatuto moral, mas aqui será
suficiente atentar nas suas críticas à posição que ele designa como “perspectiva do
nenhum-facto-adicional”, da qual eu defenderei uma versão. Para começarmos a
perceber em que consiste esta perspectiva, atente-se no que a distingue da
“perspectiva do facto-adicional”, que Sachs também critica. Segundo Sachs,
normalmente há uma ambiguidade na atribuição de estatuto moral a algo: “quando
uma teórica afirma ‘Ter estatuto moral é [. . .]’ dessa forma ela não nos diz se a posse
de estatuto moral é apenas a posse de propriedades morais ou se a posse de estatuto
moral é suficiente para a posse de propriedades morais” (Sachs 2011: 89). A primeira
destas duas hipóteses aponta para a perspectiva do nenhum-facto-adicional e a
segunda para a do facto-adicional.3
Portanto, segundo a perspectiva do nenhum-facto-adicional, uma entidade ter
estatuto moral não é nada mais do ela ter propriedades morais. Mas, diz Sachs, se ter
estatuto moral significa ter propriedades morais, pelo menos uma, então isto não é
significativo para ser usado num argumento acerca de como se deve tratar uma
entidade com estatuto moral (Sachs 2011: 92-93). No entanto, como Sachs observa, o
defensor de tal perspectiva pode alegar que isto é significativo. Primeiro, porque ter
noção de estatuto moral, as suas críticas estendem-se às discussões em ética animal.
3 Obviamente, a primeira perspectiva implica a segunda, mas a argumentação de Sachs é tal que as
suas críticas à segunda pressupõem que não se defende também a primeira. Isto é claro quando ele
questiona a utilidade de “afirmar que a posse de algo que não-sabemos-o-que-é é suficiente para a
posse de alguma(s) propriedade(s) moral(is).” (Sachs 2011: 95, o ênfase é meu.) Mas a posse de
estatuto moral, mesmo segundo uma perspectiva do nenhum-facto-adicional, não tem de ser a
posse de algo que não sabemos o que é.
5
pelo menos uma propriedade moral contradiz não ter qualquer tal propriedade.
Segundo, porque esta última informação pode figurar num argumento acerca de
como se deve tratar uma entidade. Nesse sentido, o argumento que Sachs (2011: 93)
considera é o seguinte:
Infelizmente, Sachs não torna claro nem de que modo é que ao avançar este
argumento o seu proponente pretende dizer algo sobre como devemos tratar uma
entidade, nem qual a relação do argumento com a tese de que ter estatuto moral é ter
pelo menos uma propriedade moral.
Quanto ao primeiro destes dois aspectos, supõe-se que se uma entidade não
tem uma certa propriedade moral, então será permissível tratá-la das formas que são
proibidas apenas pela posse de tal propriedade. Ou seja, se, por exemplo,
substituirmos M por ‘senciência’, então obtemos um argumento cuja conclusão
implica, pela suposição acima, que é permissível tratar a entidade em questão das
formas que requerem senciência para serem proibidas. Mas como podemos escolher
qualquer propriedade moral, então o argumento é uma forma de defender que é
impossível prejudicar uma entidade sem propriedades morais.
Quanto ao segundo aspecto, se uma entidade tem estatuto moral, então a
primeira premissa do argumento é falsa. Por conseguinte, não podemos concluir que
tal entidade não tem M, se esta propriedade for arbitrariamente escolhida. E se não
podemos concluir isto, então, relacionando os dois aspectos, o defensor da
perspectiva do nenhum-facto-adicional pode afirmar que também não podemos
concluir que é permissível tratar a entidade em questão das formas que requerem M
para serem proibidas. Ou seja, se uma entidade tem estatuto moral (possui alguma
M), então não se obtém um argumento tão geral para defender a impossibilidade de a
maltratar.
6
O argumento, contudo, não suporta convincentemente a perspectiva do
nenhum-facto-adicional. O objectivo era suportar a ideia de que uma entidade com
estatuto moral pode ser tratada de formas impermissíveis, pois é impossível maltratar
uma entidade sem propriedades morais, mas o argumento não estabelece esta última
proposição. Como diz Sachs (2011: 93), o argumento é uma petição de princípio pois
só se pode estar justificado a aceitar a primeira premissa se se estiver justificado a
aceitar a conclusão. Ou seja, para defendermos correctamente a primeira premissa
teríamos já de ter aceite a conclusão.4
Assim, não parece que temos forma de defender que é impossível maltratar
uma entidade esquivando-nos de considerar que propriedades são uma base para que
as acções sejam permissíveis ou proibidas. Portanto, até ao momento, parece bem
fundada a crítica de Sachs de que o discurso sobre estatuto moral é inútil uma vez
que está dependente de considerarmos propriedades morais. Ademais, se na
avaliação de argumentos precisamos de “traduzir” ‘estatuto moral’ pelas
propriedades morais em causa, então, para além de inútil, falar de estatuto moral é
prejudicial pois obscurece e complica desnecessariamente as discussões em Ética. A
conclusão de Sachs é que “se as atribuições de estatuto moral somente nos dizem que
o ser em questão tem uma(s) ou outra(s) propriedade(s) moral(is), ou possivelmente
tem uma(s) ou outra(s) propriedade(s) moral(is), então tais atribuições não nos dizem
nada útil” (Sachs 2011: 95).5
4 Talvez se pense que a dialéctica argumentativa através da qual Sachs representa o defensor da
perspectiva do nenhum-facto-adicional é formalmente inválida e, logo, pouco caridosa. A ideia
seria a seguinte: de “Se X não tem propriedades morais, então não há formas impermissíveis de
tratar X.” não se segue que “Se X tem estatuto moral, então há formas impermissíveis de tratar X.”
Porém, eu aceito que se segue, pois aceito que X tem propriedades morais se e só se há formas
impermissíveis de tratar X.
5 Vou ignorar a interpretação de Sachs das caracterizações de estatuto moral dadas por Warren e por
Kamm (cf. Sachs 2011: 93-94), aqui representadas no segundo disjunto. Quando Warren diz que
uma entidade com estatuto moral é “uma entidade a respeito da qual os agentes morais têm, ou
podem ter, obrigações morais”, e quando Kamm diz, semelhantemente, que uma tal entidade
“pode dar-nos razão para fazermos coisas tais como não a destruir ou ajudá-la”, não se está a falar,
como julga Sachs, da possibilidade de possuir propriedades morais. A possibilidade aqui envolvida
7
Concordo com Sachs quanto à inutilidade do conceito de estatuto moral se
tudo o que tivermos para dizer acerca do estatuto moral de X é que X tem alguma
propriedade moral. Creio, contudo, que há uma lição simples, mas significativa, a
extrair do argumento que Sachs atribuiu ao defensor da perspectiva do nenhum-
facto-adicional. Como a hipótese de uma entidade ter estatuto moral implica não
termos um argumento geral para defender a impossibilidade de a maltratar, a lição a
extrair é que precisamos de uma noção qualificada de estatuto moral. E julgo que
podemos apresentar uma noção qualificada e razoável de estatuto moral. Em
especial, podemos dizer algo mais sobre o que é ter propriedades morais.
Eventualmente, vamos querer saber se há diferenças entre ter certas propriedades
morais em vez de outras e também entre um maior ou menor número de tais
propriedades (ver Cap. 2). No entanto, antes de avançar para estes detalhes sobre o
estatuto moral, é importante começarmos com uma noção mínima de estatuto moral
que seja clara e compatível com diferentes posições.
A posição Regan, que Sachs considera, é um bom ponto de partida para uma
noção mínima de estatuto moral: “X tem estatuto moral se e somente se X é um ser
tal que moralmente devemos determinar como X irá ser afectado no decurso de
determinar se devemos realizar um dado acto ou adoptar uma dada política” (Regan
1981: 19, n. 1). Sachs critica esta definição com base em dúvidas sobre aquilo a que
ele chama “obrigações deliberativas – obrigações de ter em conta certos indivíduos
ao decidirmos o que devemos fazer”. Estas dúvidas surgem da possibilidade de se
defender que só somos responsáveis pelas nossas intenções e acções. Ou seja, pode
defender-se que as nossas obrigações não começam no processo de deliberação e,
portanto, que podemos fazer o que é correcto independentemente de como o
não é acerca das propriedades de cada indivíduo, mas sim acerca dos contextos nos quais há mais
factores moralmente relevantes além de tais propriedades (como, e.g. propriedades de outros
indivíduos). Em certos casos, não temos decididamente obrigações para com X, e X não nos dá
decididamente razões para agir de certa forma, porque outros valores suplantam o estatuto moral
de X. Ou seja, em tais casos X tem efectivamente propriedades morais, mas as mesmas são
insuficientes para determinar o que devemos fazer. Como direi abaixo, tais propriedades dão
origem apenas a obrigações prima facie (ou razões pro tanto para agir de certa forma, se
quisermos falar de razões).
8
decidimos fazer (Sachs 2011: 95). A crítica de Sachs parece justa. No entanto,
podemos reformular a definição de Regan, desviando-nos do problema das
obrigações deliberativas. Considere-se então a seguinte definição de estatuto moral:
6 Isto é compatível quer com acções do agente sobre si próprio, quer com as que afectam outros
indivíduos. No entanto, excepto indicação em contrário, irei concentrar-me nestas últimas porque
são as mais relevantes em ética animal. Além disso, creio que as obrigações morais de um agente
para com os outros são essencialmente as mesmas do que aquelas que ele tem para consigo. Mas
isto é assunto que já está fora do âmbito desta tese.
7 Na verdade, podemos dizer que há dois tipos de acções que o Utilitarismo avalia: as do tipo
satisfaz o princípio utilitarista, que são obrigatórias, e as do tipo não satisfaz o princípio
utilitarista, que são proibidas. De qualquer forma, o que importa é que a definição seja compatível
com teorias que não avaliam tipos de acções que não são caracterizados à luz dos princípios das
teorias.
8 Em princípio, com as devidas alterações, a definição é extensível a outro focos avaliativos, como
regras morais ou caracteres. Note-se ainda que está fora do âmbito desta investigação considerar se
9
Por exemplo, apesar de, segundo o Utilitarismo, a tortura não ser proibida,
uma vez que pode, em certas circunstâncias, ser permissível, é precisamente a
necessidade de indagar tais circunstâncias, para sabermos se acção é ou não
permissível, que implica que a possível vítima de tortura tem estatuto moral. De
outro modo não haveria nada a indagar. Por isso, podemos dizer que a tortura é
prima facie proibida.
Talvez se queira insistir que, no caso especial do Utilitarismo, a tortura é
também prima facie permissível e, logo, que não é informativo dizer que a tortura é
prima facie proibida. No entanto, esta crítica assume, erradamente, que a negação de
que todos os actos de tortura têm o mesmo valor deôntico implica negar que pelo
menos algumas acções têm consequências essenciais, isto é, consequências sem as
quais tais acções não existiriam. Causar dor à vítima ou, em geral, prejudicá-la, é
essencial ao acto de torturar. Portanto, mesmo que o Utilitarismo implique que tal dor
possa ser compensada por certas consequências benéficas da tortura, tornando a
acção permissível, continua a ser o caso que, na ausência dos benefícios, a tortura é
proibida. Ou seja, é prima facie proibida. Por outro lado, acções cujas consequências
essenciais têm valor positivo ou neutro são prima facie permissíveis, mas podem ser
proibidas se as consequências negativas não-essenciais suplantarem o valor das
restantes consequências.
Segundo EM, portanto, ter estatuto moral não é ter estatuto moral segundo
esta ou aquela teoria normativa. Aliás, a sua formulação é neutra entre a abordagem
consequencialista, segundo a qual o estatuto deôntico depende apenas das
consequências das acções, e a abordagem não-consequencialista, segundo a qual o
estatuto deôntico não depende apenas das consequências das acções. Uma acção
pode afectar um indivíduo de diversas formas e por isso ser prima facie ou
obrigatória ou proibida. Dependendo da teoria, pode ser porque afecta a quantidade
de prazer ou dor experienciados, porque afecta os seus direitos, porque revela o
carácter do agente, etc. Mas mesmo uma noção mínima e transversal de estatuto
acções obrigatórias e proibidas são interdefiníveis (obrigatório φ se e só se proibido ¬φ?), poisφ?), pois
explicar em que consiste a negação de uma acção é um tópico que merece mais atenção do que lhe
podemos dar aqui. Por esse motivo EM é compatível com ambos os casos.
10
moral é difícil de dissociar da noção de interesses, a qual está normalmente, mas não
exclusivamente, associada ao Utilitarismo. Irei, por isso, explicar a relação entre EM
e interesses, começando por clarificar qual é a noção relevante de interesses.
Há duas noções comuns de interesses que é preciso distinguir: a primeira tem
um sentido psicológico; e a segunda tem o sentido de bem-estar. 9 No primeiro
sentido, um indivíduo tem interesse em x quando quer ou deseja x. Estes interesses
dependem de uma atitude do indivíduo e normalmente ele está consciente dos
mesmos. No segundo sentido, um indivíduo tem interesse em x quando x é melhor
para si ou, mais especificamente, quando x contribui de modo positivo para o seu
bem-estar. Os interesses de bem-estar podem não envolver uma atitude do indivíduo
e ele pode não saber que os tem.
Esta distinção é importante porque, apesar de muitas vezes desejarmos aquilo
que é melhor para nós, ou seja, de termos interesse em x em ambos os sentidos, isso
nem sempre acontece. Em certos casos desejamos algo que afecta negativamente o
nosso bem-estar, e noutros casos não desejamos aquilo que é melhor para nós. Por
exemplo, se desejo beber uma garrafa de vinho, mas ingerir tal quantidade de álcool
é prejudicial, então desejo algo que é pior para mim. Por outro lado, se eu não desejo
comer brócolos frequentemente, e fazê-lo seria mais saudável, então não desejo algo
que é melhor para mim. Por isso, pode parecer enganador dizer que alguém tem
interesse em x, no sentido de bem-estar, quando não tem interesse em x no sentido
psicológico – e.g. “o Ricardo tem interesse em comer brócolos frequentemente”.
Reconhecendo isto, para evitar a ambiguidade, por vezes fala-se em interesses no
sentido de bem-estar de forma impessoal – e.g. “comer brócolos frequentemente é do
interesse do Ricardo”. Não obstante, irei usar indiferentemente ‘ter interesse em x’ e
‘x ser do interesse’ no sentido de bem-estar, explicitando, quando necessário, o uso
no sentido psicológico.
Voltando então à relação entre interesses e a definição EM, apesar desta
última ser silenciosa acerca de teorias normativas específicas, envolve um
9 Veja-se e.g. Regan (1976: 253-254). Para os efeitos deste estudo considero que bem-estar é o
mesmo que valor prudencial, bem pessoal, felicidade, interesse próprio, etc. A opção terminológica
deve-se ao uso mais comum e menos teoricamente carregado de ‘bem-estar’.
11
compromisso com a ideia de que a forma como uma acção afecta um indivíduo
determina o estatuto deôntico da acção. Por sua vez, penso que a maneira mais
intuitiva de entender tal afecção fecha a porta a uma família de teorias acerca de
valor. Em particular, se entendermos que é, pelo menos em parte, por afectar o bem-
estar dos indivíduos que o valor deôntico das acções é o que é, temos de deixar de
parte as teorias que reduzem, ou fazem equivaler, o valor de algo (inclusive bem-
estar) aos indivíduos terem uma atitude apropriada para com esse algo. Isto porque
ter a atitude apropriada é igualmente uma condição normativa e, logo, o bem-estar
não serviria para basear, sem circularidade, o valor deôntico das acções. Por
exemplo, o prazer, segundo algumas daquelas teorias, é valioso porque é desejável,
mas algo ser desejável é ser apropriado ou ser correcto desejá-lo. Assim sendo, a
afirmação “causar prazer é correcto” diz que causar algo que é correcto desejar (o
prazer) é correcto. É claro que assim continuamos sem saber, substantivamente, a
razão pela qual é correcto causar prazer.10
No entanto, mesmo deixando de parte algumas teorias de valor ao assumir
que o estatuto deôntico depende de afectar os interesses dos indivíduos, EM continua
a ser compatível com diferentes teorias de bem-estar, como o Hedonismo, o
Satisfacionismo (ou teoria de satisfação de desejos), o Perfeccionismo e com teorias
de lista objectiva. Segundo o Hedonismo, o bem-estar é constituído por prazer e dor,
sendo que o primeiro tem valor positivo e o segundo negativo. Numa versão simples,
a vida de um indivíduo está melhor quanto maior o saldo entre prazer e dor. Segundo
o Satisfacionismo, é a satisfação e a frustração de desejos que têm, respectivamente,
valor positivo e negativo. Portanto, numa versão também simples desta teoria, um
indivíduo está melhor quanto maior o saldo entre desejos satisfeitos e desejos
frustrados. De acordo com o Perfeccionismo, o que faz com que a vida de um
indivíduo seja melhor é desenvolver as capacidades que são específicas da sua
natureza. E não conseguir exemplificar estas capacidades num certo grau é mau para
o indivíduo. Portanto, uma vida será tanto melhor quanto mais um indivíduo se
aperfeiçoa. Por fim, ao contrário das teorias precedentes, as teorias de lista objectiva
10 Sobre estas teorias e a sua relação com o domínio normativo, veja-se Schroeder (2016: sec. 3.2) e
Zimmerman (2015).
12
defendem que vários tipos de bens tornam as vidas melhores – prazer, conhecimento,
amizade, autonomia, alcançamento,11 etc. Uma vida será melhor (ou pior) na medida
em que contém (ou não contém) estes bens.12
Como deverá agora estar claro, qualquer uma destas teorias de bem-estar
especifica o que é do interesse do indivíduo, ao passo que EM não faz essa
especificação. Assim, vemos que EM não só é compatível com diferentes teorias
normativas, mas também com diferentes teorias de bem-estar.
Presumo que o sentido mínimo de estatuto moral dado por EM é bastante
incontroverso. Por exemplo, DeGrazia (2008: 183) define estatuto moral apelando à
relação entre os agentes morais e os seres cujos interesses fundamentam obrigações
dos primeiros para com os segundos. No essencial a minha definição é equivalente,
sendo apenas mais detalhada porque explicita o que é ter obrigações. Warren (1997:
9), Kamm (2007: 229), McMahan em Edmonds and Warburton (2014: 27-28) e
Jaworska and Tannenbaum (2018) também apresentam definições semelhantes.13
Por conseguinte, contrariamente à conclusão de Sachs sobre a inutilidade da
noção de estatuto moral quando esta significa ter algumas propriedades morais, dada
a definição EM, saber que um indivíduo tem estatuto moral ajuda-nos acerca de
como devemos agir. Ajuda-nos porque saber isso é saber que algumas acções que
afectam o indivíduo são, em princípio, obrigatórias ou proibidas.
Sachs poderá replicar que não sabemos exactamente como agir por sabermos
que algumas acções que afectam um indivíduo são, em princípio, obrigatórias ou
proibidas. Contudo, se não obtermos tal conhecimento de uma definição de estatuto
moral fosse um problema sério, ao ponto de devermos abandonar o conceito de
estatuto moral, então Sachs teria o mesmo problema.
11 Apesar de ‘alcançar’ ser uma tradução apropriada do verbo to achieve, ‘alcançamento’, por ser
muito incomum em português, não é uma boa tradução de achievement. No entanto, vou insistir
nessa tradução porque todas as outras opções me parecem ainda piores. Na secção 2.2 apresento
uma caracterização de alcançamento e considero o papel que desempenha no estatuto moral.
12 Bradley (2015: Secções 2-5) oferece uma discussão acessível destas teorias de bem-estar.
13 Por vezes fala-se de direitos num sentido mais forte do que o do estatuto moral mínimo e, logo,
nesse sentido, a negação de direitos a um indivíduo não implica negar-lhe estatuto moral, mas
apenas negar um estatuto mais elevado.
13
Repare-se que Sachs defende que nas discussões éticas devemos concentrar-
nos nas propriedades moralmente relevantes dos indivíduos, usando argumentos
livres do discurso sobre estatuto moral (Sachs 2011: 92). Porém, o problema é que,
sob qualquer teoria normativa plausível, X ter propriedades moralmente relevantes
(e.g. senciência ou autonomia) não é garantia de que as acções que afectam
negativamente tais propriedades (e.g. causar dor ou desrespeitar a autonomia) são
proibidas. Isto porque, em certas circunstâncias, diferentes propriedades moralmente
relevantes do mesmo indivíduo podem estar em conflito, assim como também podem
estar em conflito propriedades moralmente relevantes de diferentes indivíduos. Por
exemplo, causar dor a X pode ser a única forma de evitar mais dor, ou noutros
indivíduos, ou mesmo em X, no futuro. Mas ninguém dirá que saber que X é
senciente ou autónomo é inútil porque isto não nos diz exactamente como devemos
agir para com X. Consequentemente, ninguém dirá que devemos abandonar o
conceito de propriedade moralmente relevante e usar argumentos livres do discurso
sobre propriedades moralmente relevantes.
Portanto, tal como saber que X tem certas propriedades moralmente
relevantes nos dá uma ideia dos limites que se impõem à nossa acção sem, contudo, a
partir daí sabermos exactamente como devemos agir em várias circunstâncias, o
mesmo se passa com sabermos que X tem estatuto moral. Para respondermos
adequadamente em diversas circunstâncias precisaremos sempre de mais detalhes.
Aquilo que penso sobre isto, e que está pressuposto na definição EM, é que estes
detalhes (além dos circunstanciais) são dados pela teoria normativa, pois é nesta que
encontramos a resposta para quais são as acções obrigatórias e quais são as proibidas.
Concluo, assim, que o cepticismo de Sachs sobre estatuto moral é
ultrapassado quando se considera a relação entre estatuto moral individual e o
estatuto deôntico de acções, como na definição EM. Com esta definição não existe
ambiguidade entre estatuto moral ser a posse de propriedades morais ou, em vez
disso, ser apenas suficiente para a posse de propriedades morais. Não há um facto
adicional à posse de propriedades morais. Contudo, EM explicita o que é possuir tais
propriedades relacionando a utilidade da atribuição de estatuto moral com a teoria
14
normativa em questão. Além disso, como EM é compatível com várias teorias
normativas e de valor, EM pode ser usada para avaliar as implicações diferentes que
elas têm acerca de quais indivíduos têm importância moral. Isto é sem dúvida útil
para as discussões em Ética.
15
associadas a tais interesses. Ainda que sejamos ambos sencientes, talvez eu possa
experienciar graus de dor que são inacessíveis ao rato. Em todo o caso, a questão
relevante para a igual consideração de interesses é apenas que se uma certa
intensidade de dor que eu sinto é equivalente a uma certa intensidade de dor que o
rato sente, então o interesse em não sentir dor não deve servir para nos distinguir
moralmente. Por outras palavras, a igual consideração de interesses implica que o
nosso interesse em não sentir dores equivalentes tem de contar igualmente. Por isso,
apenas nessa base, nenhum de nós deve ser privilegiado em caso de conflito dos
nossos interesses particulares em não sentir uma certa intensidade de dor.14
Voltemos então à posição de Horta. Este autor começa por considerar e
criticar duas peculiares posições sobre o estatuto moral que são compatíveis com a
igual consideração de interesses (Horta 2017: 901-902). A primeira identifica o
estatuto moral com o interesse em viver e a segunda com a capacidade para o bem-
estar. Apesar de também aceitar que o interesse em viver e a capacidade para o bem-
estar são relevantes para estatuto moral, a minha posição distingue-se destas duas.
EM não identifica estatuto moral com algum interesse particular ou com alguma
capacidade particular.15 A minha posição é que o estatuto moral é a protecção moral
que um indivíduo merece tendo em conta a igual consideração de interesses.
Sabemos qual a protecção moral que um indivíduo merece através dos limites
impostos às acções que o afectam, ou seja, através das acções obrigatórias e das
acções proibidas. Contudo, como já referido anteriormente, diferentes teorias
14 De acordo com a famosa expressão de Singer (2008: 19) que diz que “dor é dor”, sugere-se que as
capacidades além da senciência não importam para a moralidade de infligir dor. Porém, um
defensor da igual consideração de interesses não tem de aceitar esta posição particular sobre a
natureza da dor. Uma unidade de dor do rato pode ser diferente de uma unidade de dor de outro
indivíduo e, ainda assim, fazer sentido exigir que o interesse de ambos em evitar dores que os
prejudicam de modo equivalente tenha a mesma importância moral.
15 Parece-me claro que a crítica de Horta não visa teorias que identificam o estatuto moral, sem
qualificação, com a capacidade para o bem-estar. Antes, visa as teorias que identificam graus de
estatuto moral com graus de capacidades relevantes para o bem-estar (veja-se em Horta 2017: 92 o
exemplo que envolve causar sofrimento). De qualquer modo, apesar da minha posição envolver
graus de estatuto moral, tem uma componente normativa para além do bem-estar.
16
normativas podem discordar acerca do que faz com que acções sejam obrigatórias ou
sejam proibidas e, consequentemente, podem discordar acerca do estatuto moral dos
indivíduos. Assim, como estas teorias não podem estar todas correctas, dada a teoria
normativa correcta (ou, se quisermos, a melhor teoria num certo momento), a
definição EM diz que ter estatuto moral é ter as propriedades que tal teoria considera
como as relevantes para determinar o estatuto deôntico de acções.
De que modo é que isto não é identificar o estatuto moral com um interesse
ou capacidade particulares? De forma abreviada, a argumentação é a seguinte.
Quando os indivíduos têm diferentes propriedades não-morais que são moralmente
relevantes, eles têm interesses diferentes; por sua vez, tendo interesses diferentes,
existirão diferentes acções que, afectando-os, são prima facie ou obrigatórias ou
proibidas, ou seja, tais indivíduos impõem limites diferentes à agência moral (têm
diferente estatuto moral);16 mas se podemos distinguir diferentes tipos de estatuto
moral, consoante a posse de diferentes propriedades morais, então o estatuto moral
não é uma capacidade ou um interesse particulares.
Assuma-se que um indivíduo ter direito à liberdade envolve pelo menos ser-
lhe permissível movimentar-se sem limitações impostas por outros, desde que não os
prejudique e mesmo que se prejudique a si próprio. Suponha-se agora que os
indivíduos com as capacidades cognitivas e emotivas típicas de adultos humanos têm
direito à liberdade. Na base deste direito, é permissível, por exemplo, que eu faça
uma caminhada numa montanha sem a preparação adequada, ainda que, como
resultado disso, fique gravemente doente ou morra. Uma consequência disto é que
seria moralmente errado se alguém me prendesse ou se de outra forma me impedisse
de realizar a caminhada, por mais que a sua intenção fosse preservar o meu bem-estar
físico ou a minha vida. Em suma, num caso como o descrito, o direito à liberdade é
incompatível com interferência paternalista.17
16 Isto pressupõe uma forma de individualismo moral, isto é, a tese de que o estatuto moral de um
indivíduo é determinado apenas pelas suas propriedades particulares (talvez intrínsecas) (cf.
Rachels 1990: 173; McMahan 2005: 353-355). Contudo, o debate com Horta não depende
essencialmente desta pressuposição.
17
Mas será que podemos dizer o mesmo acerca dos indivíduos que não têm as
capacidades cognitivas e emotivas típicas de adultos humanos? Julgo que não. E
parece ser a diferença nas capacidades que explica por que razão alguns indivíduos
têm direito à liberdade e outros não. Se assim for, tais capacidades não são apenas
condição suficiente, mas também necessária, para o direito à liberdade.
Para avaliarmos se tais capacidades são condição necessária, pense-se agora
no mesmo cenário mas com um indivíduo que não tem as capacidades cognitivas e
emotivas típicas de adultos humanos, como uma pequena criança, por exemplo. Se
ela fosse fazer a caminhada nas mesmas condições precárias que eu, parece que não
seria incorrecto impedi-la, trancando-a em casa, digamos. Penso que muitos até
julgam que os seus pais seriam profundamente negligentes se não a impedissem. E
talvez o juízo seja o mesmo acerca de outras pessoas que, independentemente de
serem familiares da criança, estivessem em posição de a impedir (dificilmente os pais
da criança ficariam aborrecidos em vez de gratos).
Ao supormos que a criança não tem as capacidades cognitivas e emotivas
típicas de adultos humanos, supomos que ela não é capaz de ponderar
cuidadosamente as razões para agir em variadas circunstâncias. Em particular, em
circunstâncias nas quais o seu bem-estar físico e a sua sobrevivência estão em
conflito com certos desejos, como o de fazer uma caminhada numa montanha. Se a
criança não é capaz de tal ponderação, permitir que ela faça a caminhada seria
permitir que o seu interesse no próprio bem-estar físico fosse posto em causa sem
razão suficiente. Reconhecemos que existe razão suficiente para tal quando é
razoável julgar que o indivíduo atribui maior peso àquilo que está em conflito com o
interesse no próprio bem-estar físico. Por sua vez, para que tal juízo seja razoável é
necessário que o indivíduo considere os seus interesses, avaliando-os
ponderadamente. Mas a pequena criança, por hipótese, é incapaz de fazer isto. Logo,
não temos razão suficiente para que o seu interesse no bem-estar físico seja posto em
causa.
17 Rachels (1990: 185) considera um caso semelhante, embora para um fim diferente. O seu
propósito é mostrar que a autonomia não pode servir para distinguir moralmente todos os humanos
de todos os animais, pois também é relevante para justificar tratamento diferente entre humanos.
18
Por outro lado, é precisamente isto que acontece com os indivíduos que têm
capacidades cognitivas e emotivas típicas de adultos humanos. Nestes casos,
assumimos que os indivíduos serem capazes de avaliar os seus interesses
ponderadamente faz com que a sua escolha suplante o seu interesse no bem-estar
físico. Por outras palavras, faz com que tenham um interesse em não ser alvo de
interferência paternalista capaz de suplantar o interesse no bem-estar físico.
Podemos pensar nestes casos como envolvendo um contrato no qual o
indivíduo autónomo isenta os demais por não agirem em conformidade com a
importância que usualmente os outros devem dar ao seu bem-estar físico. Trata-se de
um reconhecimento tanto da capacidade de agência moral do próprio indivíduo,
como da desresponsabilização dos restantes. Se quisermos entender que nestes casos
o interesse no bem-estar físico está protegido por um direito de beneficência, então o
indivíduo está a abdicar desse direito ou a concordar que o mesmo seja posto em
causa pela observação de outro direito – o direito à liberdade. A diferença, no caso da
criança, é que esta, não sendo um agente moral, não é capaz de abdicar de direitos ou
de assumir contratos morais.
Para chegar então à lacuna da posição céptica de Horta, podemos afirmar que
a posse de capacidades cognitivas e emotivas típicas de adultos humanos é uma base
para distinguir entre os indivíduos que têm e os que não têm direito à liberdade. Mas
assim podemos defender que possuir tais capacidades é uma base para distinguir a
quantidade de direitos que os indivíduos têm – sendo tudo o resto igual, os
indivíduos que possuem tais capacidades têm mais direitos do que aqueles que não as
possuem. Por sua vez, isto parece suficiente para que certos indivíduos mereçam uma
consideração moral maior que outros, ou seja, um maior estatuto moral. A maneira
mais intuitiva de ver isto passa por verificar que alguns indivíduos têm um conjunto
de interesses ou direitos que é subconjunto próprio (doravante apenas ‘subconjunto’)
do de outros indivíduos. Dada esta relação, é razoável afirmar que últimos indivíduos
têm um estatuto moral superior ao dos primeiros. 18 Voltando ao exemplo acima,
18 Tal relação entre os conjuntos de interesses dos indivíduos não parece necessária para
distinguirmos estatutos morais sem infringir a igual consideração de interesses. Se os indivíduos I1
e I2 têm conjuntos de interesses diferentes mas com a mesma cardinalidade, poderá ser o caso que
19
trancar a criança em casa de modo a impedi-la de fazer a caminhada não seria
incorrecto, mas seria incorrecto fazê-lo a mim. Ao contrário da criança, eu tenho
direito à liberdade, ou um interesse na liberdade, que suplanta o meu interesse no
bem-estar físico. Além disto, como os interesses ou direitos que a criança tem, eu
também tenho, segue-se que os seus interesses ou direitos são um subconjunto dos
meus.19
Portanto, a minha posição não identifica o estatuto moral com um interesse
ou uma capacidade particulares, mas sim com um conjunto de interesses ou direitos
que um indivíduo tem, dadas as suas capacidades. O meu interesse em não ser alvo
de interferência paternalista não é o meu estatuto moral, assim como não é por não
ter este interesse que a criança não tem estatuto moral – até porque ela tem estatuto
moral. Porém, é na base de tal interesse que distinguimos a protecção moral que a
criança e eu merecemos.
O que acabei de dizer acerca do direito à liberdade pode, claro, ser dito acerca
de outros direitos ou interesses. Assim, em geral, interesses que dependem de certas
propriedades não-morais que os indivíduos podem ou não possuir, podem servir para
distinguir o estatuto moral dos indivíduos. Contudo, esta forma de distinguir graus de
estatuto moral é compatível com a igual consideração de interesses. Isto pode parecer
o estatuto moral de ambos seja diferente, supondo que os interesses diferentes implicam, por si só,
protecções morais diferentes. Por exemplo, assumindo que o interesse em não sofrer implica uma
maior protecção moral do que o interesse em sentir prazer, se os conjuntos de interesses de I1 e I2
diferem apenas por I1 ter interesse em não sofrer e I2 ter interesse em sentir prazer, então I1 tem
maior estatuto moral do que I2. No entanto, não irei explorar esta hipótese.
19 Plausivelmente, apenas alguns agentes têm o dever de educar uma criança, como os seus pais e
educadores, mas todos os agentes têm o dever de não a maltratar. Os interesses ou direitos
relevantes para o estatuto moral são os que geram obrigações do segundo tipo, que não são
relativas a agentes (sobre esta distinção, veja-se Ridge 2017). Quanto à forma de “individuar”
direitos e interesses, na verdade, estou a pensar em tipos muito gerais como, digamos, o interesse
em não sentir dor (que inclui, e.g. o interesse em não ser atropelado, em receber a anestesia
suficiente numa cirurgia, etc.), ou o direito à vida (que inclui, e.g. o direito a não ser vítima de
homicídio, de ser reanimado em caso de paragem cardíaca, etc.). Portanto, sendo mais específico,
a ideia é que há indivíduos cujo conjunto de tipos de interesses ou direitos é subconjunto do de
outros indivíduos.
20
estranho pois parece comum assumir que graus de estatuto moral implicam negar a
igual consideração de interesses (veja-se e.g. Harman 2003: 175). Mas isto ignora a
hipótese de comparar estatuto moral enquanto extensão dos limites da acção, isto é,
comparar os conjuntos dos interesses dos indivíduos. 20 Como esta maneira de
distinguir estatutos morais diz respeito a interesses que uns indivíduos têm mas
outros não, nada obsta a que os interesses comuns a diferentes indivíduos tenham o
mesmo peso ou importância moral. Retomando o exemplo acima, apesar da
intervenção paternalista ser permissível para com a criança mas não para comigo,
daqui não se segue que eu tenho algum privilégio no caso dos interesses que temos
em comum. A nossa importância moral é igual em interesses iguais, mas, em geral, é
diferente porque eu tenho interesses que a criança não tem.
Acabei de mostrar que a minha posição não exemplifica os tipos de posição
(i) e (ii), que identificam o estatuto moral, respectivamente, com o interesse em viver
e com a capacidade para o bem-estar. Vou agora mostrar que também não
exemplifica a posição (iii), segundo a qual o estatuto moral é determinado pelo peso
dos interesses que os indivíduos têm, nem a (iv), que identifica o estatuto moral com
a considerabilidade moral.
Começando por esta última, a consequência é imediata uma vez que Horta
(2017: 903) aceita que “enquanto que a consideração moral admite graus, a
considerabilidade moral não.” Ora, dado que a minha posição é compatível com a
existência de diferentes graus de estatuto moral, não identifico estatuto moral com a
considerabilidade moral.
Finalmente, a minha posição sobre o estatuto moral não consiste neste
estatuto ser determinado pelo peso dos interesses que os indivíduos têm. De acordo
com a definição EM, o estatuto moral é a protecção moral que os indivíduos
merecem, dadas as suas propriedades moralmente relevantes. Como descrito acima, a
haver uma diferença de estatuto moral entre indivíduos, a mesma deve-se à diferença
20 Tanto quanto sei, esta posição tem sido ignorada na literatura. Jaworska and Tannenbaum (2018:
secção 3) consideram uma posição muito semelhante, na qual os graus dependem da quantidade de
tipos de razões para agir para com os vários indivíduos, mas não a atribuem a qualquer autor.
21
na extensão do conjunto dos interesses que os indivíduos diferentes têm, e não a uma
hipotética diferença no peso dos seus interesses.
Na verdade, é difícil perceber de que modo é que o estatuto moral, sendo
determinado pelo peso dos interesses, é compatível com a igual consideração de
interesses. Para vermos esta tensão, pense-se no seguinte cenário. Suponha-se que o
indivíduo I1 precisa de um transplante de rim para ter uma vida mais saudável e que o
indivíduo I2, apesar de ter um rim compatível, não pretende ser dador. Os seus
interesses particulares no bem-estar estão em conflito: por um lado, I1 ficará melhor
se I2 lhe doar um dos seus rins; por outro, I2 ficará melhor se não doar um dos seus
rins a I1 (se se julgar que o facto de não querer doar um rim é insuficiente para que I2
fique melhor sem fazer a doação, suponha-se, adicionalmente, o seguinte: I2 tem um
insuficiência renal tal que ficará pior vivendo apenas com um rim, mas ainda assim
não tão mal quanto I1 ficará sem a doação).
Num cenário destes, é extremamente intuitivo julgar que seria impermissível
realizar o transplante contra a vontade de I2. Mas então, como a posição sobre
estatuto moral que estamos a considerar identifica o estatuto moral de alguém com “a
medida na qual ela é tida em consideração nas decisões morais que os agentes
tomam” (Horta 2017: 903), tal posição implica que I2 tem maior estatuto moral do
que I1, ou que o interesse de I2 no bem-estar tem mais peso do que o interesse de I1 no
bem-estar. Porém, não parece que isto seja um caso no qual a decisão se fundamente
no peso diferente dos interesses. Uma forma plausível e imparcial de reconhecer
pesos diferentes dos interesses, faz depender o peso de um interesse da magnitude do
benefício (ou prejuízo) que a sua satisfação (ou frustração) determina. Neste caso,
contudo, o prejuízo de I1 é maior que o de I2. Por conseguinte, se quisermos
distinguir o peso dos seus interesses particulares no bem-estar, diremos que é o de I1,
e não o de I2, que tem maior peso. Assim, a impermissibilidade de realizar o
transplante tem de ser fundamentada em factores diferentes do peso do interesse de I1
no bem-estar, pois de outra forma o transplante não seria impermissível.
É desnecessário considerar aqui quais são esses outros factores, mas julgo
que uma forma plausível de estabelecer a existência de pesos diferentes de interesses
22
passa por avaliar situações nas quais os indivíduos estão em posições equivalentes a
respeito do potencial benefício (ou prejuízo). Variando o cenário acima, se I2 tiver a
mesma condição médica que I1 e existir apenas um rim disponível para transplante,
optar por fazer o transplante num deles, sem olhar a outras considerações, parece
depender do reconhecimento de maior peso do interesse desse indivíduo no bem-
estar. Se isto fosse permissível ou, pelo menos, se fosse tão intuitivo que assim fosse
quanto é o juízo do caso original, teríamos aqui um bom indício de pesos diferentes
de interesses. O problema, no entanto, é que para além de não parecer permissível
optar por realizar o transplante sem mais considerações, fazê-lo implicaria negar a
igual consideração de interesses.
Portanto, parece que a posição segundo a qual o estatuto moral é determinado
pelo peso dos interesses que os indivíduos têm nem sequer é compatível com a igual
consideração de interesses. Se isto for assim, a minha posição sobre estatuto moral
não é seguramente um exemplo de tal posição. Mas mesmo que esteja errado acerca
da compatibilidade daquela posição com a igual consideração de interesses, a minha
posição sobre estatuto moral não apela ao peso de interesses, mas sim à extensão do
conjunto de interesses, para determinar o estatuto moral e distinguir diferentes
estatutos.
Neste capítulo debrucei-me sobre duas posições cépticas acerca de estatuto
moral. Tanto Sachs (2011) como Horta (2017) defendem que o conceito de estatuto
moral é inútil e prejudicial e por isso deve ser abandonado das discussões em Ética.
Contra Sachs, apresentei uma definição de estatuto moral que não envolve a
ambiguidade entre ser apenas a posse de propriedades morais ou ser suficiente para a
posse de propriedades morais. Segundo tal definição, um indivíduo ter estatuto moral
é ser tal que impõe limites à agência moral. Mais precisamente, é ser tal que alguma
acção que o afecta é prima facie ou obrigatória ou proibida. Neste sentido, saber que
um indivíduo tem estatuto moral não é inútil porque está relacionado com os juízos
de uma teoria normativa. Para além disso, a definição é compatível com diferentes
teorias normativas e de valor, o que nos permite avaliar as consequências das
mesmas acerca de quais indivíduos têm estatuto moral.
23
Depois mostrei que minha posição sobre estatuto moral não é alvo das
críticas de Horta, uma vez que não é exemplo de nenhum dos vários tipos de
posições sobre estatuto moral que ele critica. Ao fazer isto, esclareci que a minha
posição é compatível com a igual consideração de interesses e também com
diferentes graus de estatuto moral. Estes graus estão dependentes não do peso dos
interesses dos indivíduos, mas sim da extensão do conjunto dos interesses que os
indivíduos diferentes têm. Portanto, segundo a minha posição, um indivíduo ter
maior estatuto moral que outro não implica poder ser privilegiado em circunstâncias
semelhantes (isso contradiria a igual consideração de interesses). Mas implica que
estes indivíduos impõem limites diferentes à acção, ou seja que há acções
permissíveis para com um que são proibidas para com o outro.
24
Apesar de haver espaço lógico para distinções mais finas, para os propósitos
desta investigação é suficiente distinguir três graus de estatuto moral: o básico,
associado à senciência; o intermédio, associado à potencialidade para ser pessoa; e o
pleno, associado a ser pessoa (ou à pessoalidade).21 Na verdade, não subscrevo esta
graduação, em particular porque a potencialidade para ser pessoa não parece conferir
um estatuto moral superior ao básico, ou seja, ao determinado pela senciência. 22
Portanto, não vou defender que esta graduação tripartida de estatuto moral é correcta,
nem melhor ou pior que outras perspectivas sobre graus de estatuto moral. O que
defendo é que esta graduação, que é suficientemente plausível para ser discutida, é
compatível com a minha concepção de estatuto moral. Não obstante, irei considerar
várias razões que podem suportar tal graduação, inclusive para o grau intermédio.
Estes três graus de estatuto moral, como os nomes sugerem, formam uma
ordem de importância do básico para o pleno. Os indivíduos que têm um grau
superior, estritamente também têm o(s) inferior(es), pois também possuem as
capacidades associadas ao(s) inferior(es), mas o inverso não é o caso. Ou seja, os
indivíduos que têm um grau inferior poderão não ter o(s) superior(es), pois poderão
não possuir as capacidades das quais isso depende. (É enganador afirmar
simplesmente que, por exemplo, uma pessoa tem estatuto moral básico. Isso é
verdade, mas uma pessoa também tem estatuto moral pleno. Para evitar mal-
entendidos, que neste assunto têm efeitos muito significativos, devemos por isso
fazer apenas a afirmação mais forte.)
Arguivelmente, a senciência, a potencialidade para ser pessoa e ser pessoa,
são propriedades adequadas para distinguir graus de estatuto moral. A posse de cada
21 Na secção 1.2 considerei que as capacidades cognitivas e emotivas típicas de adultos humanos
eram a base para ter o direito à liberdade e, por isso, para distinguir o meu grau de estatuto moral
do de uma pequena criança. Até à secção 2.2, irei referir-me a tais capacidades de modo abreviado,
mas impreciso, através da propriedade ser pessoa. Portanto, aplicando a distinção tripartida
apresentada, eu tenho estatuto moral pleno, mas isso não é o caso dos indivíduos (como pequenas
crianças) que não têm direito à liberdade. Para distinções mais finas veja-se, por exemplo,
DeGrazia (2008: 192), que considera um modelo no qual os graus de estatuto moral estão
correlacionados com graus de certas capacidades cognitivas, afectivas e sociais.
22 Veja-se a nota 63 e o caso aí mencionado.
25
uma delas parece necessária e suficiente para que algo tenha certos interesses. Se isto
for assim, tais capacidades caracterizam conjuntos específicos de interesses. Suportar
a importância específica daquelas três propriedades é o assunto das próximas três
secções.
26
apenas na sensação da dor. Porém, se prestarmos atenção a outros aspectos
extrínsecos à sensação, como à sua causa e a outros efeitos da mesma, pode ser o
caso que, consideradas todas as coisas, sinta mais prazer do que dor. Se a dor for
causada por sensibilidade dentária quando come algo que aprecia muito, como uma
fatia de bolo de chocolate, é plausível que a sensação de prazer se sobreponha à da
dor. Portanto, evitar a dor de dentes é efectivamente pior, assumindo que isso implica
evitar comer o bolo e sentir o prazer consequente. Ainda assim, evitar a dor não deixa
de ser melhor se atentarmos apenas no seu aspecto intrínseco.
Será, no entanto, que a senciência é suficiente para algum interesse além do
interesse em sentir prazer e do interesse em evitar a dor? Não. Ao considerarmos
indivíduos meramente sencientes, tudo o que contribui para o seu bem-estar é sentir
prazer e evitar a dor. Quaisquer outros interesses terão de depender de outras
capacidades além da senciência.
Por outro lado, parece que a senciência é necessária para se ter interesses de
todo. Se a senciência concede estatuto moral básico, isto tem de ser assim. De outra
forma seria possível ter interesses sem senciência e, por conseguinte, ou alguma
outra propriedade concederia estatuto moral básico, ou não haveria estatuto moral
básico (no sentido de ser o primeiro elemento da ordem de importância moral
individual). Apesar de não ter um argumento muito forte para o suportar, julgo que as
seguintes considerações mostram que é razoável aceitar a necessidade da senciência
para o estatuto moral.
O raciocínio, em suma, é o seguinte. Um indivíduo com interesses mas não
senciente teria de ser tal que (i) possui bem-estar, isto é, algo pode afectá-lo para
melhor ou pior, mas (ii) é incapaz de experiências de prazer ou de dor. Porém, dado o
modo como os animais evoluíram, é implausível que existam animais que satisfaçam
(i) e (ii). Ou seja, não temos razões para aceitar que há contraexemplos à necessidade
da senciência para o estatuto moral.23
23 A tese está epistemicamente qualificada por vários motivos. Primeiro, porque no futuro talvez
venham a existir contraexemplos, tais como robôs capazes de experiência fenoménica sem, no
entanto, terem as bases fisiológicas para a senciência; se tiverem desejos frustrados, por exemplo,
parece que as suas existências serão piores. Em segundo lugar, porque talvez já existam
27
Vejamos agora o raciocínio com mais detalhe. Se um indivíduo não for
senciente, mas tiver bem-estar, então o que torna a sua vida melhor ou pior? Ou, para
colocar a questão de outro modo, como tem de ser a nossa teoria de bem-estar para
dar conta de tal indivíduo? Para respondermos a esta questão, considere-se
novamente as teorias de bem-estar apresentadas em 1.1. Como vimos, de acordo com
as teorias de lista objectiva há diferentes constituintes básicos do bem-estar. Segundo
estas teorias, coisas como prazer, conhecimento, amizade, autonomia, alcançamento,
etc. melhoram a vida do indivíduo. Mas para que as condições (i) e (ii) acima estejam
satisfeitas, o prazer não pode ser um dos valores intrínsecos (assumindo que as
teorias não apresentam itens explicativamente desnecessários – o que é razoável). No
entanto, eliminar o prazer da lista não elimina a senciência como capacidade dos
indivíduos, pois pelo menos algum dos restantes valores intrínsecos implicam
senciência. Ou seja, mesmo que a vida de um indivíduo possa correr melhor ou pior
porque contém coisas diferentes de prazer, as capacidades associadas ao usufruto
dessas coisas dependem de senciência. A senciência tem, ainda assim, valor
extrínseco – tem valor para outras coisas que têm valor.
Ademais, como aquelas teorias são normalmente pensadas de uma
perspectiva antropocêntrica, com excepção do prazer, os restantes valores intrínsecos
captam o bem-estar específico de indivíduos humanos paradigmáticos, ou seja, de
pessoas. Mas as pessoas, para além das suas capacidades cognitivas e emotivas
distintivas, também são sencientes. Logo, as teorias de lista objectiva não suportam a
existência de indivíduos com bem-estar mas não sencientes.
Olhemos agora para as teorias monistas, deixando de parte o Hedonismo, pois
este é incompatível com a condição (ii). Parece que, tanto de acordo com o
Satisfacionismo, como de acordo com o Perfeccionismo, os indivíduos com bem-
estar serão também sencientes. No caso do Satisfacionismo, um indivíduo com bem-
estar mas não senciente seria um indivíduo capaz de ter desejos satisfeitos ou
frustrados, mas não capaz de sentir prazer ou dor. Contudo, como desejos são
contraexemplos dos quais não temos evidência. Por último, porque não é metafisicamente
necessário que não existam seres com bem-estar mas não sencientes; neste sentido mais lato, até
nós poderíamos ter bem-estar sem sermos sencientes (cf. o último parágrafo desta secção).
28
atitudes dos indivíduos para com um estado de coisas – que seja de acordo com o
quer –, os indivíduos capazes de desejos terão de ser conscientes, ter crenças, e talvez
até ser capazes de considerar estados de coisas alternativos. Por conseguinte, estes
indivíduos terão de ser cognitivamente mais desenvolvidos do que aqueles que são
apenas sencientes. Mas pelo menos acerca dos animais que conhecemos, um maior
desenvolvimento cognitivo implica um sistema nervoso, em especial um cérebro ou
partes do mesmo (e.g. neocortéx), que terá também a capacidade para sentir prazer
ou dor.
Além disso, se quisermos oferecer uma explicação para o impacto que um
desejo satisfeito ou frustrado tem no bem-estar, uma explicação plausível apela
precisamente às sensações de prazer e dor. Suponha-se que alguém lhe oferece uma
fatia de bolo de chocolate e por isso forma o desejo de a comer. Suponha-se
adicionalmente que satisfaz o seu desejo, mas que experiencia algo desagradável
uma vez que o bolo está salgado. Apesar do seu desejo ter sido satisfeito, não parece
que esteja melhor, isto é, que o seu bem-estar aumentou. Para dar conta de casos
como este, o proponente do Satisfacionismo deve qualificar a satisfação ou
frustração de desejos. É aqui que entra o apelo às sensações de prazer e dor: a
satisfação ou frustração relevante é a que causa tais sensações.24 Mas então o
Satisfacionismo implica que os seres com bem-estar são sencientes.
É certo que há outras hipóteses para afinar a teoria, apelando por exemplo a
desejos informados ou racionais. Mas estas outras hipóteses, sendo ainda mais
exigentes a respeito de capacidades cognitivas, também implicam indivíduos
sencientes.
No caso do Perfeccionismo, as teorias que em princípio conseguem acomodar
a existência de indivíduos com bem-estar mas não sencientes não podem ter uma
perspectiva antropocêntrica (pela razão já apontada acima acerca das teorias de lista
objectiva). Uma teoria deste tipo é apresentada por Kraut (2009). De acordo com esta
teoria, o bem-estar de plantas, animais e humanos consiste em
24 Isto não implica abandonar o Satisfacionismo, mas apenas aceitar um componente explicativo
hedonista para a teoria. Sobre a distinção entre um componente substantivo e um explicativo de
teorias de bem-estar, veja-se, e.g. Crisp (2003: 52).
29
desenvolver-se completa e apropriadamente, isto é, ao crescer, amadurecer, fazer
uso completo das suas potencialidades, capacidades e faculdades que (sob
condições favoráveis) naturalmente possuem num estádio inicial das suas
existências. (Kraut 2009: 131)
Assim, assumindo que pelo menos as plantas e alguns animais não são sencientes,
esses seres estarão melhor ou pior mesmo não podendo sentir prazer ou dor. Como?
Porque têm outras potencialidades, capacidades e faculdades que se podem
desenvolver – embora talvez não possam ser usadas ou desenvolvidas
intencionalmente. Portanto, esta teoria dá conta de indivíduos com bem-estar mas
não sencientes. Logo, é incompatível com a tese da necessidade da senciência para o
bem-estar.
No entanto, esta teoria dá conta de indivíduos com bem-estar mas não
sencientes porque se baseia no “florescimento”, ou a capacidade de algo vivo se
desenvolver apropriadamente (Kraut 2009: 5). Ao contrário da perspectiva
antropocêntrica, que é demasiado restrita, esta perspectiva “desenvolvimentista” é
demasiado inclusiva. Ou seja, implica que certas coisas têm bem-estar quando,
intuitivamente, isso não é assim.
Considere-se embriões, quer de plantas quer de animais. Mesmo que se aceite
que as plantas e os animais em estádios avançados de desenvolvimento são
indivíduos cujas vidas podem correr melhor ou pior, é muito contraintuitivo que no
seu estado embrionário tenham bem-estar. No entanto, mesmo neste estádio podemos
falar do desenvolvimento apropriado do ser vivo, ou seja, do seu florescimento.
Além dos casos de estádios embrionários de seres vivos, também é altamente
contraintuitivo que seres vivos unicelulares, como bactérias, amibas, diatomáceas,
fermentos, etc. tenham bem-estar. Mas estes seres vivos também se desenvolvem
melhor ou pior. Por exemplo, os seus organelos – os análogos de órgãos em células –
podem não crescer correctamente e por isso realizar pior as suas funções. Por sua
vez, isto irá pôr em causa o desenvolvimento do ser vivo ou sua sobrevivência.
Portanto, nada parece impedir que o desenvolvimento normal destes seres vivos
30
conte como florescimento.25 E a partir daqui parece difícil impedir a conclusão de
que todo o tipo de células (sanguíneas, sexuais, ósseas, etc.) tem bem-estar, pois as
células, em geral, também têm capacidades que se desenvolvem ou degradam. Mas
devemos por isso concluir que estão melhor ou pior? A única forma de impedir esta
conclusão seria apelar à diferença entre células que são um organismo e as que são
apenas parte de um organismo.26 Todavia, mesmo que se estabeleça esta diferença, os
órgãos decididamente não são organismos e, no entanto, também têm capacidades
que se desenvolvem ou degradam. Portanto, uma vez que podemos ver seres
unicelulares, ou células em geral, ou ainda órgãos, como florescendo, a teoria tem
implicações contraintuitivas sobre que coisas têm bem-estar.
Por fim, a teoria de Kraut tem ainda outro problema. É bastante plausível que
certos seres tenham capacidades cujo desenvolvimento é-lhes prejudicial. Suponha-
se que um animal de uma nova espécie, criada a partir de manipulação genética, tem
uma capacidade C tal que desenvolvê-la causa-lhe dor e nenhum outro efeito
adicional ao seu uso pré-desenvolvimento (e.g. respirar melhor causa
sobreoxigenação sem, no entanto, beneficiar o organismo). A teoria de Kraut implica
que este animal estará melhor ao desenvolver C, mas isto é incorrecto. Em resposta,
Kraut talvez dissesse que nesse caso desenvolver C não seria bom para o animal
porque essa capacidade foi assim concebida.
No entanto, a diferença entre uma capacidade ter sido concebida e ter surgido
evolutivamente não é relevante. Um animal que obtivesse C por mutação genética
também não estaria melhor ao desenvolver C. O problema aqui parece residir numa
ligação muito estreita entre realizar melhor uma certa função e bem-estar, pois as
funções, e graus da sua realização, não são necessariamente boas para os indivíduos.
Portanto, se temos de distinguir entre as funções (ou graus da sua realização) cujo
25 Kraut (2009: 7) considera seres unicelulares, mas não se compromete, afirmando que talvez
“sejam demasiado simples para falarmos apropriadamente deles como florescendo”. Isto sugere
que a implicação é contraintuiva para o próprio Kraut.
26 A diferença em causa poderia envolver uma certa noção de autonomia, mas isto parece insuficiente
para distinguir entre parasitas unicelulares de células que dependem umas das outras para
sobreviver.
31
desenvolvimento é bom para o indivíduo e aquelas cujo desenvolvimento não é,
então o desenvolvimento de capacidades, por si só, não é bom para o indivíduo.
Vemos então que, em geral, as teorias de bem-estar não acomodam indivíduos
com bem-estar mas não sencientes. É claro que isto, por si só, não implica que tais
indivíduos não existam. (Talvez deuses, anjos ou marcianos sejam pessoas incapazes
de sentir prazer ou dor.) Por isso, como disse acima, estas considerações não dão
origem a um argumento muito forte para a tese de que a senciência é necessária para
o bem-estar. Ainda assim, constituem evidência que suporta a razoabilidade de
aceitarmos tal tese, especialmente na ausência de evidência para a sua negação. De
qualquer forma, a tese da necessidade da senciência para o bem-estar pode ser falsa
sem afectar o essencial da minha posição sobre graus de estatuto moral: se aquilo que
é do interesse de x é do interesse de y e y ainda tem interesses adicionais, então y tem
um grau de estatuto moral superior ao de x. De acordo com esta concepção, eventuais
seres com interesses mas não sencientes têm um estatuto moral inferior ao que teriam
se também fossem sencientes (ou ao de outros seres que têm os mesmos tipos de
interesses que eles, mais os de senciência). A tese da necessidade da senciência para
o estatuto moral facilita a apresentação da concepção dos graus de estatuto moral,
pois garante um conjunto de intersecção de interesses, mas não é, efectivamente,
essencial. Este reparo deve ser tido em conta quando, doravante, se apelar à tese da
necessidade da senciência para o bem-estar.
32
de razões para agir, ou seja, um tipo de razões que entra na ponderação acerca de
como agir.
Isto concorda com uma perspectiva tradicional e influente sobre o que são
pessoas. Por exemplo, segundo Locke, a pessoa é “um Ser pensante inteligente, que
possui razão e reflexão, e capaz de se considerar a si próprio como si próprio”
(Locke 1985: 335). Mas as pessoas também são “Agentes inteligentes capazes de
uma Lei” (Locke 1985: 346). Ou seja, as pessoas têm uma concepção de si próprias
como sendo algo independente do restante e são capazes de agir autonomamente, isto
é, capazes de determinar os motivos da sua acção. Numa formulação mais
contemporânea, as pessoas são indivíduos capazes de desejos de segunda ordem –
desejos que têm como objecto outros desejos –, os quais são uma marca da avaliação
reflexiva da capacidade para agir autonomamente (cf. Frankfurt 1971). 27 Ao dizer
que as pessoas têm uma concepção do seu próprio bem, julgo que estou apenas a
tornar explícito algo que está pressuposto na perspectiva tradicional sobre o que são
pessoas. Nomeadamente, que pelo menos um tipo de razões que motivam a acção
autónoma das pessoas depende de elas terem uma concepção do seu próprio bem.
Assumindo que as pessoas são agentes racionais e autónomos com uma
concepção do seu próprio bem, o que importa agora perceber é se algumas destas
propriedades distintivas das pessoas são necessárias e suficientes para que um
indivíduo tenha certos interesses para além dos interesses associados à senciência. Se
isto for assim, então ser pessoa é uma base para atribuirmos um grau de estatuto
moral não só distinto do básico, mas também superior.
Começando pelo mais simples, é incontroverso que se alguma coisa tem
estatuto moral, então as pessoas têm estatuto moral. Assim, de acordo com a
necessidade da senciência para o estatuto moral, as pessoas são sencientes. 28 Ou seja,
tal como os seres meramente sencientes, as pessoas têm interesse em sentir prazer e
em evitar a dor. Logo, as pessoas têm pelo menos estatuto moral básico. No entanto,
27 Devo esta referência, assim como a sugestão de uma noção de pessoa menos abrangente do que
outrora tive, a Pedro Galvão.
28 De acordo com o reparo no final de 2.1, mesmo que haja pessoas não sencientes, o que importa é
que tais pessoas têm um estatuto moral inferior ao das pessoas sencientes.
33
adicionalmente à senciência, as pessoas têm uma concepção de si próprias e do seu
próprio bem, assim como a capacidade de agir racional e autonomamente.
Alegadamente, isto faz com que sentir prazer e evitar a dor não sejam tudo o que
contribui para o bem-estar das pessoas.
A ideia, para ser mais preciso, é que às pessoas, por terem uma concepção de
si próprias e daquilo que é do seu interesse, viver as suas vidas como decidem
importa-lhes para além das sensações hedónicas. Parece que o pugilista, por
exemplo, que aspira ser campeão mundial e que treina e luta arduamente para isso,
não ficará necessariamente melhor se abandonar os ringues e se dedicar a outras
coisas nas quais sem dificuldade experienciará mais prazer e menos dor. Se ser
campeão mundial de boxe é um objectivo central na sua vida, alcançá-lo parece
contribuir para o seu bem-estar mesmo que isso implique muito sacrifício.
Podemos então usar a ideia de que o alcançamento contribui para o bem-estar
de modo a distinguir um interesse que as pessoas têm mas que os seres meramente
sencientes não têm: o interesse em alcançar os seus objectivos. Mas em que consiste,
mais concretamente, o alcançamento? Seguindo Bradford (2013: 205), podemos
caracterizar o alcançamento como “um processo difícil que culmina de modo
competente num produto”. Isto significa que as pessoas não alcançam algo nem por
acaso, nem facilmente. O pugilista não alcança o seu objectivo se os adversários
tropeçarem e ficarem knockout ao baterem com a cabeça no tapete, ou então se o
título lhe for entregue em casa pelo correio. Dadas as capacidades cognitivas das
pessoas, alcançar os seus objectivos requer planos complexos cuja execução envolve
muito esforço e ocupa uma parte significativa das suas vidas.
Assim, a capacidade de formar objectivos e o alcançamento distinguem-se da
capacidade de desejar e da satisfação de desejos. Podemos desejar várias coisas sem
qualquer reflexão ou decisão, mas só formamos objectivos ao representarmos um
estado de coisas e a aceitá-lo como objectivo. Isto faz com que os objectivos das
pessoas sejam seus de uma forma especial (autonómica) que os desejos não têm de
ser. Por outro lado, a satisfação de desejos pode ocorrer independentemente do
34
esforço do indivíduo, ao passo que o alcançamento implica um esforço
correctamente direccionado.
Talvez se pense que exemplos tão comuns de pessoas empenhadas em
diversas actividades, como o do pugilista, não chegam para suportar a tese de que o
alcançamento contribui para o bem-estar. Afinal de contas, as restantes teorias de
bem-estar parecem conseguir acomodar a intuição de que o alcançamento é um valor
intrínseco sem lhe atribuir esse papel. O hedonista, o satisfacionista e o
perfeccionista, argumentarão que o alcançamento ou é um componente do valor
intrínseco respectivo, ou então que apenas aparenta ter valor intrínseco porque
normalmente é uma causa próxima de valor intrínseco (ou seja, que apenas tem valor
extrínseco).29 Mas um outro tipo de exemplos, que envolve comparar vidas, é muito
mais forte e difícil de acomodar sem reconhecermos valor intrínseco ao
alcançamento.
Considere-se o seguinte exemplo:
35
É muito difícil negar que a vida do Bill corre melhor num certo aspecto no qual a
vida do Steve não corre. O Bill alcançou o que se propôs a fazer. O Steve não. Como
tudo o resto é igual (o dinheiro, a auto-estima, o sentimento catártico), é o
alcançamento que explica por que razão a vida do Bill corre melhor. Como diz Keller
(2004: 30), o Bill “impõe a sua vontade ao mundo”. O Steve não.
Para além de exemplos como este, julgo que a famosa “máquina de
experiências” de Nozick (1999), pelo menos em parte, suporta a tese de que o
alcançamento tem valor intrínseco. Aceitando que a maioria das pessoas não
preferiria viver ligado a uma máquina de experiências, uma das conclusões anti-
hedonistas e pluralistas de Nozick (1999: 43) é que as pessoas “querem ser de uma
certa maneira, ser um certo tipo de pessoa.” Ora, esta conclusão pode muito bem ser
interpretada à luz do valor intrínseco do alcançamento. Ao querem ser de uma certa
maneira – corajosas, honestas, etc. – as pessoas estão a estabelecer objectivos e a
formar planos para os alcançarem.
Temos assim de reconhecer que ter a capacidade para formar os seus
objectivos, que por sua vez implica a capacidade para agir racionalmente e de forma
autónoma, é o fundamento de um interesse específico que os seres meramente
sencientes não têm.
No entanto, relembre-se que ter um interesse apenas significa que o indivíduo
estará melhor, sendo tudo o resto igual, quando o satisfaz. Neste caso, significa que
estará melhor, nesse sentido qualificado, quando alcança os seus objectivos. Isto não
implica que as pessoas têm de alcançar os seus objectivos para viverem melhor, pois
as suas vidas podem melhorar devido a outros componentes do bem-estar (como, e.g.
o prazer). Além disso, o que foi dito não exige sequer que as pessoas formem
objectivos. Embora para muitos de nós seja difícil imaginar como é uma vida sem
objectivos, é perfeitamente concebível que certas pessoas, pouco ambiciosas e
reflexivas, passem a vida sem estabelecerem objectivos. De muitas formas, as suas
vidas serão radicalmente diferentes das da maioria das pessoas e serão mais pobres
36
em variedade de bem-estar. Mas ter a capacidade para formar objectivos é tudo o que
basta para ser do seu interesse alcançá-los.
Em suma, os indivíduos meramente sencientes não levam vidas piores se
garantirmos que estão hedonicamente satisfeitos. Logo, o seu bem-estar não é
afectado por qualquer acção que envolva essa garantia. Ligá-los a uma máquina de
experiências que os faz sentir prazer constantemente seria o melhor que lhes poderia
acontecer. Mas o mesmo não se passa com as pessoas. Em geral, o bem-estar das
pessoas é afectado, para pior, quando interferimos no alcance dos seus objectivos.
Mesmo quando alcançá-los afecta negativamente outros aspectos do bem-estar. 30 Se,
por exemplo, uma pessoa quer passar a vida toda a deixar crescer as unhas, ela ficará
pior se lhas cortarmos enquanto dorme. Fazer-lhe isso seria forçá-la a viver de uma
forma que ela não pretende, contra o seu objectivo. Mas não há dúvida de que
impedi-la de deixar crescer muito as unhas torna a sua vida hedonicamente melhor.31
Por conseguinte, as pessoas têm interesse em alcançar os seus objectivos,
ainda que isso implique levarem vidas menos prazerosas. Mas os indivíduos
meramente sencientes não têm este interesse. Ora, como as pessoas também têm o
interesse em sentir prazer e em evitar a dor, então o conjunto dos interesses das
pessoas inclui o conjunto dos interesses dos seres meramente sencientes. Isto
significa que o seu grau de estatuto moral é superior ao básico – há mais acções
prima facie obrigatórias ou proibidas por afectarem pessoas do que por afectarem
seres meramente sencientes. Por outras palavras, as pessoas impõem maiores limites
à agência moral do que os seres meramente sencientes.
30 Keller (2004) vai mais longe, defendendo que mesmo o alcance de objectivos aparentemente
insignificantes, como contar folhas de relva, e objectivos imorais, como tornar-se um tirano,
contribuem para o bem-estar.
31 Após deixar crescer as unhas durante 64 anos, Shridhar Chillal obteve o recorde do Guinness para
as unhas mais compridas numa única mão. Mas ter alcançado isto teve também outros efeitos.
Devido ao peso das unhas, Shridhar perdeu a mobilidade da mão e dos dedos e a sua vida envolve
muito mais dor do que de outra forma envolveria: “Tenho dores. Em todo o momento dói-me
muito os meus cinco dedos, o meu pulso, o cotovelo e o ombro, e na ponta das unhas tenho sempre
uma sensação de ardor.” (https://guinnessworldrecords.com/news/indian-news/2015/9/record-
holder-profile-video-shridhar-chillal-and-the-longest-fingernails-ever-398817)
37
No entanto, tudo isto deixa em aberto se o grau de estatuto moral das pessoas
é o maior grau possível de estatuto moral. Para mostrar isto seria preciso argumentar
que as pessoas têm capacidades que fundamentam qualquer tipo de interesse e, por
conseguinte, que impõem a maior restrição possível à agência moral. Não irei
argumentar nesse sentido e, portanto, devo tornar explícito o sentido da designação
‘pleno’ para o grau de estatuto moral das pessoas. Esta designação não é para ser
entendida como capturando a ideia segundo a qual tal grau é o maior grau possível de
estatuto moral (ao contrário da designação ‘básico’, pois argumentei que os
interesses do grau básico são necessários para estatuto moral). É para ser entendida
como um mero nome para um grau superior aos restantes dois.
De qualquer modo, parece razoável que se as pessoas têm interesse em
alcançar os seus objectivos, então também têm interesse em continuar a viver na
medida em que isto for necessário para alcançarem os seus objectivos. Ou seja, ser
pessoa parece garantir igualmente o interesse em continuar a viver. Como veremos
adiante, o interesse em continuar a viver é especialmente importante para a alegada
distinção entre o estatuto moral dos humanos e o dos animais, assim como para a
forma como o Utilitarismo de Preferências lida com o problema da substituibilidade.
Por esse motivo irei adiar a consideração do interesse em continuar a viver (ver 4.4 e
5.2.2). Por agora ficamos com a ideia de que as pessoas terem interesse em alcançar
os seus objectivos é suficiente para que tenham um grau de estatuto moral superior
ao dos seres meramente sencientes.
Nas duas secções anteriores mostrei de que forma podemos fundamentar dois graus
de estatuto moral. Vimos que a senciência confere estatuto básico e apresentei razões
para aceitarmos que esta é necessária para o estatuto moral. Por outro lado, ser
pessoa confere um estatuto superior ao básico, o pleno, uma vez que as pessoas, que
também são sencientes, têm pelo menos um outro interesse adicional, a saber, o
38
interesse em alcançar os seus objectivos. Nesta secção vou considerar as razões que
suportam a existência de um grau de estatuto moral intermédio, isto é, superior ao
básico, mas inferior ao pleno.
Que tipo de seres estão em causa quando falamos de seres com a
potencialidade para ser pessoa? De acordo com a noção de pessoa aqui pressuposta,
o exemplo menos incontroverso é o dos fetos humanos logo após o desenvolvimento
das bases neurológicas capazes de originar e sustentar consciência, mas antes de
terem uma concepção de si próprios e de serem capazes de formar objectivos
(doravante, apenas ‘fetos’). É muitíssimo intuitivo que apesar dos fetos não serem
pessoas, aquilo que lhes falta para serem pessoas é substantivamente diferente
daquilo que falta a grande parte dos animais. O seu desenvolvimento natural fará
com que eles se tornem pessoas. Mas não o de uma mosca, o de uma galinha, ou o de
uma vaca.32 Talvez alguns animais possam ser pessoas, mas os fetos, para além de
poderem ser pessoas, têm a potencialidade para ser pessoas.
Assim, a noção de potencialidade aqui relevante não é equivalente a
possibilidade, nem mesmo a possibilidade física. Ter a potencialidade para ser pessoa
é ter as bases físicas – principalmente um cérebro – que, sob condições normais, após
o desenvolvimento do indivíduo, dão origem a uma pessoa. Estas bases físicas são
propriedades intrínsecas, mas sem dúvida que o processo de desenvolvimento no
qual os fetos se tornam pessoas também envolve alguma interacção ambiental, e até
com pessoas. Contrariamente, no caso da maioria dos animais, o seu
desenvolvimento natural, mesmo aliado a interacção ambiental e a pessoas, não os
torna pessoas.
Ora, se os fetos têm a potencialidade para ser pessoa, e se ser pessoa implica
ter o interesse em alcançar os seus objectivos, então os fetos têm a potencialidade
para ter o interesse em alcançar os seus objectivos. Assim, como vimos na secção
39
anterior que este é um interesse adicional ao interesse em sentir prazer e em evitar a
dor que os seres meramente sencientes têm, a vida dos fetos estará melhor, será mais
rica em bem-estar, se tiverem a capacidade para alcançar os seus objectivos. Ou seja,
é do seu interesse ter o interesse em alcançar os seus objectivos. Se satisfizerem o
interesse de ter interesse em alcançar os seus objectivos, então os fetos terão as
capacidades que permitem formar e alcançar objectivos – serão pessoas.
É deste modo que ter a potencialidade para ser pessoa confere um estatuto
moral intermédio. Os indivíduos que têm esta potencialidade, mas que não são
pessoas, têm o interesse em sentir prazer e em evitar a dor e o interesse adicional em
ter o interesse em alcançar os seus objectivos. Isto implica que o conjunto dos
interesses dos seres meramente sencientes é subconjunto dos interesses dos
indivíduos que têm a potencialidade para ser pessoa. Por outro lado, os indivíduos
que têm a potencialidade para ser pessoa, mas que não o são, não têm o interesse em
alcançar os seus objectivos. Isto implica que o conjunto dos seus interesses é
subconjunto dos interesses das pessoas. Logo, por um lado, os limites que os
indivíduos como os fetos impõem à agência moral são maiores do que aqueles que os
seres meramente sencientes impõem. Por outro lado, são menores do que aqueles que
as pessoas impõem.
Antes de avaliar algumas críticas a esta posição, convém relembrar o tipo de
ser que tem a potencialidade para ser pessoa, uma vez que isto desvia imediatamente
uma crítica que só se aplica a outras posições mais fortes que envolvem tal
potencialidade.
Tenho estado a considerar que os fetos humanos logo após o desenvolvimento
das bases neurológicas capazes de originar e sustentar consciência, mas antes de
serem pessoas, têm a potencialidade para ser pessoa. Disse acima que os fetos são o
exemplo menos incontroverso de seres com a potencialidade para ser pessoa porque
algumas posições consideram que tal potencialidade existe em qualquer estádio de
desenvolvimento de um ser humano antes do nascimento. Ou seja, segundo tais
posições, tanto o feto antes de ser capaz de originar e sustentar consciência, como o
embrião e o zigoto, também são pessoas potenciais. Mas estas posições implicam que
40
nós, que agora temos as capacidades de pessoas, começámos a existir na concepção
ou quando o organismo se formou. Isto porque, se ser uma pessoa potencial é suposto
ter importância para o bem-estar da coisa que tem tal potencial, então essa coisa tem
de ser a mesma que se torna pessoa. Isto é, a potencialidade relevante tem de
preservar a identidade (McMahan 2002: 305). Mas quer a hipótese de termos
começado a existir na concepção, quer a hipótese de termos começado a existir
quando o organismo se formou, têm implicações implausíveis.33
Assim, seguindo McMahan (2002: 66-94), estou a aceitar a Perspectiva da
Mente Incorporada acerca do que nós somos essencialmente e também que ser
pessoa exige capacidades complexas que só obtemos bastante depois de começarmos
a existir (ver 3.2). Ou seja, não somos essencialmente pessoas, mas apenas mentes
capazes de dar origem a pessoas tal como são capazes de dar origem a memórias, por
exemplo.
Por conseguinte, não conta como reductio à importância da potencialidade
para ser pessoa, como aqui é entendida, argumentar que, se os fetos são pessoas
potenciais, e se estes têm certos direitos, então os zigotos e os embriões também têm
tais direitos. Tal como os fetos, os zigotos e os embriões são parte de um processo
que dá origem a pessoas. Mas ao contrário dos primeiros, os zigotos e os embriões
não são pessoas potenciais, no sentido relevante, porque não são o indivíduo que se
torna pessoa.34
Vou agora considerar três críticas à posição aqui apresentada acerca da
importância da potencialidade para ser pessoa. A primeira crítica, mais geral, está
41
relacionada com a própria noção de potencialidade da forma que é usada no debate
sobre a moralidade do aborto. Neste debate, alguns críticos do aborto defendem que
o aborto é moralmente incorrecto ou proibido devido à potencialidade do feto para
ser pessoa. Uma formulação típica do argumento desses críticos é a seguinte:
Vírus. Eu fui exposto a um vírus letal que fica dormente durante uma
semana antes de se poder propagar por contacto físico. O tratamento que
elimina o vírus do meu organismo demora um mês a fazer efeito, mas é
mais eficaz se for iniciado enquanto o vírus está dormente. Após a primeira
semana, quanto mais tarde as autoridades competentes me colocarem de
quarentena e tratarem, mais pessoas irão morrer. É claro que as autoridades
35 Esta formulação difere apenas ligeiramente do argumento considerado por Manninen (2014: 194),
que envolve um apelo à inocência das pessoas. A inocência, contudo, pode ser ignorada uma vez
que não é uma hipótese que o feto não tenha direito à vida porque não é inocente.
42
competentes devem colocar-me de quarenta e tratar-me na primeira semana
pelo menos tanto quanto devem fazê-lo após a primeira semana. No entanto,
na primeira semana eu ainda só tenho a potencialidade para propagar o
vírus.
Julgo que é óbvio que após a primeira semana eu devo ser colocado de quarentena e
tratado porque, tendo um vírus contagioso activo, irei propagá-lo e muitas pessoas
morrerão. Mas mesmo antes de ser efectivamente capaz de propagar o vírus também
devo ser colocado de quarentena e tratado porque isso irá impedir que mais pessoas
morram. Isto significa que ser potencialmente um X (meio de propagar o vírus) faz
com que deva ser tratado, pelo menos em parte, como um X (meio de propagar o
vírus). Aqueles que não têm o vírus no seu sistema não podem ser colocados de
quarentena. Eles não são um meio de propagar o vírus, tal como eu não o sou durante
a primeira semana. Logo, é porque eu sou potencialmente um meio de propagar o
vírus durante a primeira semana que devo ser colocado de quarentena e tratado.36
Talvez algumas pessoas discordem e digam que a razão para me tratar
daquela forma não é a potencialidade para ser um meio de propagar o vírus mas sim
porque, de outra forma, mais pessoas morrerão. Mas por que razão é que mais
pessoas, de outra forma, morrerão? Creio que a resposta a esta questão permite
avançarmos na compreensão do tipo de potencialidade que pode suportar a
importância da potencialidade para ser pessoa. Essa resposta é que, na ausência de
alguma intervenção extraordinária (e isto é a outra forma como as coisas podem
correr), eu tornar-me-ei um meio de propagar o vírus e mais pessoas morrerão. Ou
seja, devemos agir agora na base de uma certa relação entre as minhas propriedades
presentes – um potencial meio de propagar o vírus – e as minhas propriedades
futuras – um meio de propagar o vírus. É difícil de especificar exactamente esta
relação e de apontar todas as suas implicações normativas, mas parece que há aqui
algo mais plausível do que (P) para sustentar a premissa (2) do argumento da
potencialidade do feto contra o aborto.
36 Manninen (2014: 198-202) considera também os casos do direito a um seguro de saúde e à
educação, nos quais a potencialidade parece suficiente para fundamentar o interesse relevante.
43
Uma hipótese nesse sentido é o seguinte princípio:
Contudo, o princípio (P*) está sujeito ao mesmo tipo de contraexemplos que (P). O
príncipe é um potencial rei e é do seu interesse ter os direitos do rei. Talvez, como
sugere Manninen (2014: 203), possamos qualificar que direitos são do interesse de
um indivíduo quando possuí-los é um benefício e não os possuir é um mal. Mas isto
só funciona se defendermos que a mera privação de um bem não é um mal. Esta
parece ser a única forma de compreender Manninen (2014: 203) quando diz que
naquele tipo de exemplos os X potenciais não seriam prejudicados por lhes serem
negados os direitos de X. No entanto, isto é implausível porque se o príncipe pode
agora usufruir dos direitos de um rei, ficando melhor, ao ser privado dos direitos
estará pior do que poderia estar.
Isto leva-me a sugerir que há uma desanalogia entre aqueles exemplos e o que
está em causa na importância da potencialidade do feto para ser pessoa. A saber, o
feto não pode agora usufruir de ser pessoa, tal como o príncipe pode agora usufruir
de ser rei (e.g. se o rei morrer). Assim, a questão relevante acerca da potencialidade
do feto é que o feto pode agora usufruir de continuar a viver e a desenvolver-se
naturalmente para não ser privado de mais tarde ser pessoa. O caso análogo da
potencialidade do príncipe, portanto, é um caso no qual o príncipe pode agora
continuar a viver e esperar que o processo normal de sucessão de desenrole (seja lá o
que isso for) para não ser privado de mais tarde usufruir de ser rei. Interferir com este
processo (e.g. acabando com a monarquia), priva o príncipe de um bem, tal como
interferir no desenvolvimento do feto também o priva de um bem.
37 Cf. Manninen (2014: 202-203), que segue Lockwood (1988). No entanto, note-se que este último
apresenta um princípio semelhante mas apenas enquanto condição necessária para os potenciais X
terem interesses (cf. Lockwood 1988: 199). Mas uma condição necessária não responde à questão
“quando é que a potencialidade para algo gera um interesse em tal potencialidade ser permitida
desenvolver-se?”
44
Podemos, então, apresentar o seguinte princípio plausível que pode sustentar
a importância da potencialidade do feto:
Deverá ser óbvio que (P**) não suporta a premissa (2) do argumento acima contra o
aborto. Muito menos um direito à vida em geral, pois o que implica é que é do
interesse do feto persistir até obter os direitos em causa. Mas (P**) suporta a
premissa (2) do seguinte argumento:
45
argumento suporte a ideia plausível de que o feto tem interesses adicionais aos
interesses dos seres meramente sencientes (mas, novamente, veja-se a nota 63).
Para finalizar esta secção, vou considerar duas críticas relacionadas que
dizem menos respeito à noção de potencialidade do que à minha concepção de graus
de estatuto moral. A primeira diz o seguinte. A minha posição sobre graus de estatuto
moral é que os mesmos distinguem-se através da extensão do conjunto dos interesses
de tal forma que os interesses dos graus inferiores são subconjunto dos superiores.
Logo, os interesses do grau básico são interesses do grau intermédio e estes, por sua
vez, são interesses do grau pleno. Porém – continua a crítica –, o interesse em ser
pessoa, do grau intermédio, não é um interesse do grau pleno. Pessoas não têm
interesse em ser pessoas.
Em resposta a esta crítica, reconheço que não é uma forma muito feliz de
falar dizermos que X tem interesse em ser X, ou seja, em ser algo que já é. Por
exemplo, não dizemos que temos interesse em ser honestos, inteligentes, ricos, etc. se
já tivermos tais propriedades. Diremos, antes, que queremos continuar a ser
honestos, inteligentes, ricos, etc. Contudo, só podemos querer continuar a ser X, se
quisermos ser X. Portanto, sendo ou não uma expressão feliz, se temos interesse em
continuar a ser pessoas, temos interesse em ser pessoas.38
A outra crítica alega que esta forma de conceber graus de estatuto moral tem
uma consequência, no mínimo, estranha. A alegada consequência é que as pessoas
têm o interesse em ser pessoas necessariamente satisfeito. E isto é estranho pois
assim tal interesse não tem importância normativa uma vez que não pode ser
frustrado. No entanto, quando dizemos que as pessoas têm o interesse em ser pessoas
necessariamente satisfeito isto é uma forma abreviada e imprecisa de dizer outra
38 Suponha-se que não é do interesse de X ter o interesse em alcançar os seus objectivos. Então, X
não ter o interesse em alcançar os seus objectivos não é pior para X. Mas vimos que ter o interesse
em alcançar os seus objectivos é melhor para um indivíduo e, por isso, não ter tal interesse é pior.
Logo, é do interesse de X ter o interesse em alcançar os seus objectivos. (Note-se que o domínio
da variável individual é determinado pelas capacidades relevantes para os interesses. Isto faz com
que o argumento não se aplique a seres meramente sencientes pois, por hipótese, não têm as
capacidades que lhes permitem ter aqueles interesses.)
46
coisa. O que devemos dizer é que nós, que não somos pessoas essencialmente, temos
o interesse em ser pessoa satisfeito ao longo de todo o tempo em que somos pessoas.
Qua pessoas temos esse interesse sempre satisfeito. Mas como já houve um momento
no qual não fomos pessoas, e também porque podemos deixaremos de o ser, o nosso
interesse em ser pessoas não está necessariamente satisfeito. Não há um indivíduo
que tem tal interesse necessariamente satisfeito.
comum
Os três tipos de estatuto moral distinguidos acima permitem dar conta de algumas
intuições e juízos da moralidade do senso comum, pelo menos a secular, que
dependem do estatuto moral.
É intuitivo que não temos obrigações morais para com artefactos e outros
objectos sem vida. Não temos de evitar serrar um bloco de granito ao meio por causa
do granito. Nem mesmo de evitar serrar uma obra de arte, ou um carro. Se há algo de
errado nestas acções, isso deve-se à forma como afectam outras coisas – e.g. pessoas.
Também parece muito partilhada a intuição de que não temos obrigações para com
alguns seres vivos, tais como bactérias, fungos e plantas. Algo mais controverso, mas
também amplamente aceite, é que também não temos obrigações para com embriões
humanos, ao contrário do que se passa com os fetos (o que gera uma maior aceitação
do aborto durante o período pré-fetal e maior controvérsia após esse período).
A divisão do estatuto moral naqueles três tipos capta estas intuições. Como o
estatuto moral básico depende de senciência, quer as coisas não vivas, quer as
bactérias, os fungos, as plantas e os embriões (assumindo que o desenvolvimento
neuronal é necessário à senciência) não têm estatuto moral. Ao invés, aceitando que
os fetos são sencientes pelo menos a partir de um certo estádio de desenvolvimento,
então eles têm estatuto moral. De muitas formas podemos frustrar o seu interesse em
não sentir prazer e em evitar a dor.
47
A diferença entre o estatuto moral básico e intermédio também parece estar
pressuposta em vários juízos comuns. Por exemplo, mesmo que se reconheça que os
animais são sencientes e que, por isso, têm estatuto moral, em geral aceita-se que
temos mais obrigações para com fetos humanos saudáveis do que para com animais
(e.g. a obrigação de prevenir doenças). E a ideia da potencialidade do feto para ser
pessoa, que contrasta com o caso dos animais, é pelo menos uma das bases para
aquele juízo. Aparentemente, é também na base desta diferença em potencialidade
que se distingue moralmente entre, por um lado, os seres humanos com
incapacidades cognitivas graves, mas talvez não permanentes, e, por outro lado, os
animais. Um ser humano que, por exemplo, sofreu um acidente que o deixou
inconsciente por um período indeterminado parece ter ainda a potencialidade para ser
pessoa. Daí que comummente se julgue que temos a obrigação de o tratar e de
prolongar a sua vida, mesmo que isso acarrete bastantes custos. Ao invés, não se
julga que temos uma obrigação semelhante no caso dos animais.
Por fim, a distinção entre o estatuto intermédio e o pleno capta juízos comuns
que envolvem uma diferença entre as nossas obrigações para com os seres humanos
com diferentes propriedades alegadamente relevantes. Apesar da moralidade do
senso comum reconhecer que os fetos (ou os seres humanos com certas
incapacidades cognitivas), colocam maiores limites à agência moral do que os seres
meramente sencientes, não parece reconhecer limites como aqueles que estão
associados às pessoas. Por exemplo, só a estas é que reconhece o direito à liberdade,
no sentido de estar livre de interferência paternalista.
Não obstante, tenho de admitir duas insuficiências desta tipologia de estatuto
moral. A primeira é que parece ser incapaz de dar conta de alguns outros juízos muito
comuns. Por exemplo, é comummente aceite que pequenas crianças colocam maiores
limites à agência moral do que os fetos – ignorando, claro, que é mais difícil interagir
com fetos. Por um lado, as suas vontades parecem dever ser respeitadas mas, por
outro, não tanto quanto as dos adultos. Assim, apesar de se aceitar que as crianças
não são agentes morais (pelo menos até certa idade e no sentido forte de agir
ponderando razões), aceita-se que têm mais interesses do que os fetos (que possam
48
ser pessoas). O infanticídio, por exemplo, é um acto muito mais condenado do que o
aborto. Isto sugere que talvez faça sentido distinguir um outro grau de estatuto moral,
inferior ao pleno mas superior ao intermédio.
A segunda insuficiência da tipologia apresentada é que a moralidade do senso
comum aceita que distinções de estatuto moral não têm de respeitar a igual
consideração de interesses. Ou seja, à luz da moralidade do senso comum, as
diferenças entre as nossas obrigações para com os indivíduos com diferente estatuto
moral podem não ser apenas uma questão de quantos interesses os indivíduos têm.
Muitas pessoas julgam que ter estatuto moral superior, como o de um adulto humano,
garante que o seu interesse em não sentir dor é mais importante do que o interesse de
um animal em não sentir dor. Uma diferença deste tipo também pode ser o que está
por trás, por exemplo, da prioridade sobre o feto atribuída à mulher grávida quando
há um conflito entre a preservação da vida de ambos. Neste caso, dado que continuar
a viver também é do interesse do feto, parece que a prioridade assenta sobre a maior
força do interesse semelhante da mulher em continuar a viver.
Estas insuficiências, contudo, não afectam de modo significativo os meus
objectivos principais ao distinguir aqueles três tipos de estatuto moral. Tais
objectivos foram, primeiro lugar, mostrar que a minha concepção de estatuto moral é
compatível com graus de estatuto moral; em segundo lugar, mostrar que esses graus
de estatuto moral são suficientemente intuitivos para merecerem discussão; em
terceiro lugar, como esses graus de estatuto moral deixam claro quais são as
propriedades relevantes, facilita a discussão sobre o estatuto moral dos animais.
No capítulo anterior mostrei como podemos ter uma concepção de graus de estatuto
moral compatível com a igual consideração de interesses. Segundo essa concepção,
ficou claro quais são as propriedades que fundamentam que grau e considerei
algumas razões que tornam isto intuitivo. O objectivo principal deste capítulo é
49
defender que os animais têm estatuto moral. Nesse sentido, na secção 3.1 começo por
apresentar um argumento que suporta que os animais são sencientes. Depois, na
secção 3.2 caracterizo a desconsideração do estatuto moral dos animais que é feita
com base na espécie – o Especismo. Isto permitirá, por fim, na secção 3.3, apresentar
e avaliar aquele que é porventura o argumento mais forte e geral contra a forma de
Especismo mais comum, o Antropocentrismo moral, e, consequentemente, em favor
do estatuto moral dos animais.
39 Há várias razões para não defender que os animais são pessoas potenciais ou pessoas. Por um lado,
é incontroverso que a maioria dos animais não são pessoas. Por outro lado, apesar de ter
apresentado a potencialidade para ser pessoa como concedente de um grau específico de estatuto
moral, fi-lo apenas para caracterizar uma posição intuitiva sobre graus de estatuto moral, mas não
é uma tese que subscrevo (ver nota 63). Por fim, o problema da substituibilidade, que é o assunto
do Cap. 5, depende dos animais serem meramente sencientes.
50
O fundamento da minha crença de que os animais são capazes de sentir dor é
semelhante ao fundamento da minha crença de que a criança é capaz de sentir dor.
(…)
Para apoiar a nossa inferência a partir do comportamento animal, podemos apontar
para o facto de os sistemas nervosos de todos os vertebrados, em especial os de
aves e mamíferos, serem fundamentalmente semelhantes. (Singer 2011: 59) 40
51
animais têm tal relação com a senciência. E há evidência bastante forte para a
existência de tal relação.
Baseado em estudos anteriores, Varner (2012) compara seis indicadores
relevantes para a existência de dor em animais e humanos. Esses indicadores são: a
presença de nociceptores; a presença de cérebro; a conexão entre os nociceptores e o
cérebro; a presença de opióides endógenos; reacção modificada por analgésicos; e
reacção a estímulo nocivo análoga à de humanos. A conclusão (provisória) de Varner
(2012: 113) é que “provavelmente todos os vertebrados são capazes de sentir dor,
enquanto que os invertebrados (com excepção dos cefalópodes) provavelmente não.”
Isto porque os vertebrados exibem todos os indicadores como os humanos, mas os
invertebrados falham alguns.
Por que razão é que tais indicadores são relevantes? Considere-se a presença
de nociceptores e a sua conexão com o cérebro. Nociceptores são neurónios
sensoriais que detectam e transmitem estímulos potencialmente nocivos ao
organismo. Os indivíduos humanos com nociceptores funcionais, mas sem ligação ao
cérebro (e.g. devido a paraplegia), têm reacções a estímulos nos membros inferiores
sem, no entanto, sentirem dor (cf. DeGrazia 1996: 99). Isto implica que nocicepção
não é suficiente para dor. A explicação razoável para que tais indivíduos não sintam
dor, apesar da reacção comportamental, é não existir conexão entre os nociceptores
estimulados e o cérebro.
Portanto, é possível que um indivíduo exiba certos comportamentos
tipicamente associados a dor sem, de facto, sentir dor. Isto significa que precisamos
de indicadores independentes de comportamento meramente nociceptivo. Sabemos
que os opióides como a morfina inibem a dor em humanos e, portanto, a presença de
opióides endógenos, juntamente com reacção modificada por analgésicos, sugere que
o indivíduo sente dor. Por exemplo, Varner (2012: 112) reporta que numa experiência
com trutas injectadas com químicos nocivos, o comportamento normal de evitar um
objecto novo diminui, mais é retomado após lhes ser administrada morfina. Ou seja,
a alteração comportamental não parece ser um mero reflexo nociceptivo mas sim
resultado da experiência de dor. A hipótese explicativa é que, tal como nos humanos,
52
a dor “recrutou” a atenção das trutas. Assim, parece que o argumento por analogia é
convincente porque várias propriedades (fisiológicas e comportamentais) partilhadas
por animais e humanos são provavelmente a causa da propriedade de sentir dor.
No entanto, alguns autores julgam que o argumento por analogia é fraco. Em
primeiro lugar, porque mesmo certos comportamentos de aprendizagem podem
resultar apenas da medula espinal sem intervenção do cérebro. Em segundo lugar,
porque, se a análise das propriedades alegadamente partilhadas for mais fina,
veremos que há diferenças, tanto fisiológicas como comportamentais, entre os
humanos e os animais (Allen et al 2005). Aceitando estas críticas, o argumento por
analogia precisa de ser fortalecido com a identificação de alguma propriedade
partilhada que não possa ser facilmente explicada sem o reconhecimento de dor.
Uma hipótese nesse sentido passa por testar formas mais complexas de
aprendizagem em relação a estímulos nocivos. Num estudo com ratos reportado por
Shriver (2006: 437), os ratos tinham a “opção” de escolher entre estar na parte escura
ou na parte iluminada de um compartimento, recebendo choques de acordo com o
lado em que estavam. Se estivessem na parte escura recebiam um choque numa pata
com hiperalgesia (maior sensibilidade a estímulo nocivo) induzida, mas se
estivessem na parte iluminada recebiam um choque de igual intensidade numa pata
sem hiperalgesia. Ora, apesar de usualmente passarem mais tempo no escuro, os
ratos passaram a estar mais tempo na parte iluminada do compartimento. Ou seja,
passaram a estar mais tempo na parte na qual recebiam choques na pata sem
hiperalgesia. Após lesão induzida no córtex cingulado anterior (uma parte do cérebro
que só existe em mamíferos), o comportamento dos ratos normalizou. Isto é,
voltaram a passar aproximadamente o mesmo tempo na parte escura do
compartimento como quando não tinham hiperalgesia. No entanto, mesmo após a
lesão no córtex cingulado anterior, continuaram a exibir reflexos nociceptivos.
Este tipo de estudos é coerente com a ideia de que a dor em humanos e
noutros mamíferos envolve dois sistemas, o lateral e o medial. O primeiro é
responsável pelas qualidades sensoriais da dor (e.g. intensidade e localização), e o
segundo, intimamente ligado ao córtex cingulado anterior, é responsável pelas
53
qualidades afectivas (desagradabilidade). Esta concepção permite explicar por que
razão alguns humanos sob o efeito de morfina reportam que sentem dor mas não se
incomodam com a mesma (ou menos do que sem a morfina), pois o sistema medial
tem muito mais receptores de opióides do que o lateral (Shriver 2006: 437). Ou seja,
naqueles casos de dissociação das qualidades da dor, a capacidade de experienciar as
qualidades sensoriais está a funcionar normalmente, mas não a capacidade de
experienciar as qualidades afectivas.
Voltando então ao estudo com os ratos, a alteração comportamental não
parece ser explicável sem o apelo à dor. Por um lado, porque o comportamento
distinto do usual (permanecer na parte iluminada) cessa com a lesão do córtex
cingulado anterior. Por outro lado, porque os ratos continuam a demonstrar os típicos
reflexos que não envolvem processamento superior – o que despista a hipótese da
lesão ter afectado igualmente a nocicepção. Portanto, a hipótese explicativa é que os
ratos com o córtex cingulado anterior intacto, devido à experiência desagradável da
dor, aprenderam a evitar a parte escura do compartimento, ao passo que os ratos
incapazes de tal experiência devido à lesão, não. Shriver (2006) reporta ainda outros
estudos em humanos e macacos que suportam a importância do papel do córtex
cingulado anterior na dor. Uma das suas conclusões é que “foi dado pelo menos um
passo teórico importante no sentido de fortalecer o argumento por analogia” (Shriver
2006: 438).
À luz disto, temos duas hipóteses para rever o argumento por analogia inicial.
A primeira envolve aceitar que, em geral (excepto mamíferos), o comportamento
animal é facilmente explicado sem apelar à dor. Nesse caso, reformulamos aquela
lista dos indicadores propostos como relevantes para a existência de dor em animais
e humanos. Daqueles seis indicadores, mantemos apenas a reacção a estímulo nocivo
análoga à de humanos e acrescentamos agora a presença de um sistema medial da
dor. Obtemos assim um argumento por analogia convincente apenas acerca de
mamíferos.42
42 Esta parece ser a posição de Varner (2012: 123), que conclui que o argumento que envolve
crucialmente a propriedade de sentir dor é (até à data) mais forte acerca de mamíferos do que
acerca de outros animais.
54
A segunda hipótese envolve afinar o argumento mantendo a analogia com
outras classes de animais. Mas, para isso, existe agora alguma pressão para apontar
para estruturas nos restantes animais que sejam funcionalmente equivalentes ao
sistema medial em mamíferos. Como notam Allen and Trestman (2017: secção 7.1),
já há alguns estudos que indicam tais estruturas em aves. Isto poderá significar que a
falta de evidência convincente para a existência de dor fora da classe dos mamíferos
revela mais sobre a natureza humana do que sobre a dos animais.
Por conseguinte, é pelo menos razoável aceitar que mamíferos sentem dor.
Logo, é pelo menos razoável aceitar que mamíferos são sencientes. Isto implica que
mamíferos têm estatuto moral básico. Eles têm interesse em evitar a dor (e em sentir
prazer, se forem igualmente capazes de experiência afectiva positiva). Como tal,
acções que frustram esse interesse são prima facie proibidas.
Para concluir esta secção, convém notar que a senciência animal,
especialmente para além da classe dos mamíferos, é ainda um tópico de investigação
recente. Como tal, é de esperar alguma controvérsia seguida por um maior consenso
científico. Este consenso pode convergir para a atribuição de dor apenas a mamíferos
ou alargar tal atribuição a outros animais. Alguma evidência deste alargamento surge
em “A Declaração Cambridge Sobre a Consciência” (Low 2012). Segundo esta
declaração, para além dos mamíferos, também as aves e alguns cefalópodes, como os
polvos, são sencientes. De qualquer forma, como veremos adiante (Cap. 5), a
importância de discutir o estatuto moral dos animais não passa apenas por
investigarmos se eles são ou não sencientes, mas também por investigarmos, mais
precisamente, quais os limites que o seu estatuto moral (básico ou superior) impõe.
3.2 Especismo
Em 1949, Albert II, um macaco rhesus, foi enviado para o espaço numa cápsula a
bordo de um foguetão V-2. Os seus batimentos cardíacos foram monitorizados e
indicaram uma reacção às mudanças drásticas nas forças-g. Albert II sobreviveu à
55
viagem ao espaço mas morreu no impacto com o solo, após uma falha no pára-
quedas da cápsula (Burgess and Dubbs 2007: 47-48). Este foi um dos vários testes
com animais que ajudaram a desenvolver condições seguras para a exploração
espacial com tripulantes humanos. Aqueles que julgam que os animais não têm
estatuto moral não vêm algo de moralmente relevante na dor e morte destes animais.
Aqueles que julgam que os animais têm estatuto moral mas, ainda assim, que causar-
lhes dor e matá-los é moralmente aceitável, têm de ter uma justificação para isso. O
tópico que nos ocupa nesta secção é caracterizar uma justificação em particular. A
saber, a ideia de que a diferença entre certas espécies biológicas tem importância
moral.
É trivial que um humano é o melhor modelo para testar o que acontece aos
humanos no espaço. Mas então por que razão usar um macaco? A resposta natural é a
seguinte: dados os riscos envolvidos, usar um humano teria sido moralmente
objectável. Contudo, isto pressupõe que há uma diferença relevante entre humanos e
macacos de tal modo que é imoral fazer a experiência com os primeiros mas não com
os segundos. Essa diferença, julgam algumas pessoas, é a diferença entre as espécies
em causa. Ou seja, julgam que ser da espécie Homo sapiens, mas não da espécie
Macaca mulatta, garante, digamos, protecção moral contra aquelas acções. Em
analogia com o racismo ou o sexismo, conceder uma posição privilegiada aos
indivíduos de uma certa espécie é conhecido como especismo.
O termo ‘especismo’ foi cunhado por Richard Ryder em 1970, que o usou no
título e texto de um panfleto que nesse ano distribuiu junto às faculdades de Oxford.
Embora nesse panfleto surja sem definição, o termo é apresentado numa analogia
elucidativa com o racismo: “A palavra ‘espécie’, tal como a palavra ‘raça’, não é
definível com precisão” (Ryder 2010: 1). A sugestão era que, dada a continuidade
biológica entre os humanos e os animais, as fronteiras entre espécies, assim como as
fronteiras entre raças, não são moralmente relevantes. Pouco depois, Ryder (1975:
16) escreve que o especismo é “A discriminação generalizada que é realizada pelo
humano em desfavor das outras espécies” e, apelando novamente à analogia com o
56
racismo, acrescenta que “tanto o especismo como o racismo são formas de
preconceito baseado em aparências’’.
Porém, não demoraram a surgir outras formas de entender ‘especismo’.
Singer (2008: 6), por exemplo, define especismo como ‘‘um preconceito ou atitude
de enviesamento em favor dos interesses dos membros da própria espécie e contra os
dos membros de outras espécies”.43 Mais recentemente, o próprio Ryder (2012: 215-
216) enumera diversas definições de especismo, algumas de filósofos e outras de
dicionários de Inglês, que mostram que passadas mais de quatro décadas o termo se
tornou corrente mas polissémico. O sentido de ‘especismo’ mais comum, contudo,
preserva a concepção de Ryder de desconsideração moral dos humanos para com os
animais, acrescentando-lhe apenas que a justificação para tal desconsideração é a
superioridade humana.
Comparando este sentido comum com a definição de Singer, vemos que esta
última é mais geral porque não implica que o agente da discriminação especista é
humano. Contudo, tal como a definição de Ryder, a definição de Singer implica que a
discriminação especista favorece os membros da espécie do agente discriminador.
Mas, se levarmos a sério a analogia entre especismo e outros tipos de discriminação,
como o racismo e o sexismo, o favorecimento dos membros do grupo do agente
discriminador não é essencial. Do mesmo modo que se pode ser racista ao favorecer
os interesses de pessoas com tom de pele diferente do seu, também se pode ser
especista ao favorecer os interesses dos indivíduos de uma espécie diferente da sua.
Isto significa que podemos dar uma definição de especismo mais geral do que as de
Ryder e Singer, preservando destas apenas o essencial. Tal definição é a seguinte:
43 A tradução é minha mas refiro a tradução portuguesa apenas para que aí se encontre a passagem
relevante. Neste caso há algo importante no original que escapou à tradução publicada. No original
está ‘members of one’s own species’ e na tradução portuguesa está ‘membros de uma espécie’.
57
Não vamos avaliar aqui o mérito desta definição em contraste com outras. 44 Mas,
idealmente, qualquer definição de especismo deverá ser compatível com um conjunto
de distinções comuns na literatura e associadas ao especismo. Tais distinções
permitem-nos caracterizar vários tipos de especismo, quer sejam meramente
possíveis, pressupostos ou mesmo efectivamente assumidos. Por sua vez, isto
permite compreender e avaliar teses especistas cuja defesa e plausibilidade variam
bastante e que, portanto, não devem ser confundidas.
Comecemos por diferentes formas de explicitar o que é ter diferente estatuto
moral. VanDeVeer (1979a) distinguiu três versões de especismo: a radical, a extrema
e a sensível a interesses. O especismo radical distingue-se dos outros dois por
considerar que os animais não têm interesses moralmente relevantes e, por isso,
garante que eles têm um estatuto moral diferente (nenhum) por serem da espécie que
são – qualquer uma diferente da Homo sapiens. Contrariamente ao especismo
radical, as duas outras versões de especismo distinguidas por VanDeVeer partilham a
ideia, subjacente ainda hoje a grande parte da acção humana, de que os animais têm
alguma importância moral, mas menor do que a dos humanos. Segundo o especismo
extremo, os interesses básicos dos animais podem ser suplantados em favor de
interesses secundários de humanos. Interesses básicos são aqueles sem a satisfação
dos quais a vida não é minimamente boa. Os secundários são aqueles sem a
satisfação dos quais a vida é menos boa, mas ainda é minimamente boa. Por fim, o
especismo sensível a interesses é uma posição na qual os interesses humanos só
suplantam os dos animais quando são do mesmo tipo ou mais básico. Por exemplo,
se o que está em causa é o interesse básico de sobrevivência, quer de um humano,
quer de um animal, o do humano tem mais peso; se estiver em causa o interesse não-
44 Conforme argumentado noutro local (Santos and Miguel 2017: 1497, n. 4) esta definição é, pelo
menos, preferível àquelas que implicam algo de negativo ou injustificado (e.g. Fjellstrom 2002;
Horta 2010). Alguns autores consideram ainda que o especismo pode envolver apenas uma
condição suficiente para se ter um certo estatuto moral (cf. Grau 2010: 396). Mas isto é estranho
porque, se o especismo implica comparar indivíduos com diferente estatuto moral, então deverá
também envolver uma condição necessária. De outra forma não há como discriminar – favorecer
ou desfavorecer – certos indivíduos entre outros.
58
básico de entretenimento de ambos indivíduos, o do humano também tem mais peso;
mas num circo, o interesse não-básico de entretenimento humano não suplanta o
interesse básico em não sofrer de um animal.
Assim sendo, em primeiro lugar, há que distinguir o especismo como
discriminação que nega estatuto moral a certos indivíduos, do especismo como
discriminação que lhes nega um certo grau de estatuto moral. Vamos chamar ‘radical’
ao primeiro e ‘moderado’ ao segundo (note-se que este engloba as versões extrema e
sensível a interesses de VanDeVeer). Ao contrário da concepção apresentada no Cap.
2, o especismo radical e o moderado implicam uma concepção de graus de estatuto
moral incompatível com a igual consideração de interesses.
No que toca à discriminação especista ter por base a espécie, Rachels (1990)
distinguiu “especismo não-qualificado” de “especismo qualificado”.45 No especismo
não-qualificado a discriminação apela simplesmente à pertença à espécie, enquanto
que no especismo qualificado apela à pertença à espécie através de certas
propriedades (alegadamente) típicas dos seus membros. Para esclarecer esta distinção
considere-se a distinção análoga acerca do sexismo. Os sexistas podem julgar que as
mulheres têm menos direitos do que os homens apenas porque são mulheres; mas
também podem julgar que elas têm menos direitos porque têm pouca força, são
bisbilhoteiras, conduzem mal, etc. Assim, o especista não-qualificado dirá, por
exemplo, que o leitor tem estatuto moral superior ao de um rato simplesmente porque
o leitor é da espécie Homo sapiens. Já o especista qualificado, dirá que tal diferença
moral deve-se, digamos, ao leitor ser inteligente, autoconsciente, usar uma
linguagem, etc., mas o rato não. (Uma questão central relacionada com esta
distinção, e abordada na secção seguinte, consiste em perceber se as propriedades
mencionadas pelo especista qualificado são exemplificadas por todos os indivíduos
da espécie privilegiada, e só por estes.)
Por fim, Ryder (2012: 216) considera que o especismo pode ainda distinguir-
se ora pela espécie dos agentes discriminatórios, ora pelos alvos discriminados. A
primeira distinção permite que, para além dos humanos, os animais sejam vistos
45 Ryder (2012) usa os termos “forte” e “fraco”; Timmerman (2017) usa “genuíno” e “coextensivo”.
59
como “agentes” especistas. E segundo a distinção dos alvos discriminados, os
humanos podem ser especistas ora em favor dos membros da sua própria espécie, ora
em favor dos membros de outras espécies. 46 Na literatura não existem designações
para os tipos de especismo associados a estas duas distinções de Ryder, mas é útil
podermos referi-los de modo sintético. Sugerem-se portanto as seguintes
designações: ‘antrópicos’ para os especismos cujo agente é humano; ‘não-antrópicos’
para aqueles nos quais o agente não é humano; ‘reflexivos’ para os especismos que
favorecem os indivíduos da espécie do agente; e, por último, ‘irreflexivos’ para os
que favorecem indivíduos de espécies diferentes da do agente.47
Há assim um leque considerável de distinções a partir das quais se pode
expressar a definição geral de especismo: o especismo pode ser antrópico ou não-
antrópico, reflexivo ou irreflexivo, qualificado ou não-qualificado e moderado ou
radical. No entanto, os tipos de especismo que mais importa discutir e que têm sido
mais defendidos são antrópicos, reflexivos, qualificados e moderados (uma excepção
46 Na verdade, Ryder sugere ainda outras duas dimensões sobre as quais o especismo pode variar:
uma acerca de ser uma crença ou uma prática e outra acerca de ser uma discriminação positiva ou
negativa. Contudo, estas dimensões não parecem captar algo relevante. A primeira porque, se o
especismo for apenas uma crença, sem dar origem a acções, o debate sobre a sua moralidade
reduz-se ao debate sobre obrigações epistémicas (em que condições devemos ter certas crenças?).
E, portanto, contra todos os indícios, a discussão não seria fundamentalmente moral. A segunda
porque, tanto favorecer os interesses de alguns indivíduos implica desfavorecer os de outros, como
vice-versa. Logo, ver o especismo como discriminação positiva ou negativa é arbitrário.
Arbitrariamente, foco-me no favorecimento: um acto que relaciona os indivíduos x e y é especista
se e só se favorece x contra y porque x, ao contrário de y, é de uma certa espécie.
47 Parece que os humanos privilegiam cães e gatos, por exemplo, em desfavor de outros animais,
como porcos ou vacas. Os primeiros, são “de estimação”, ao passo que os segundos até servem de
comida. Se isto for especismo, é de um tipo que eu não caracterizei: irreflexivo, mas que não
desfavorece o agente discriminador. No entanto, parece relevante distinguir as discriminações que
privilegiam todos os indivíduos de uma certa espécie das que privilegiam só alguns indivíduos de
uma certa espécie. Nesse sentido, diria que a relação “de estimação”, de facto, dá origem a uma
discriminação do segundo tipo. Os animais “de estimação” mais comuns são privilegiados devido
à relação próxima que têm com certos humanos, e não por causa de alguma propriedade de todos
os indivíduos de cada espécie em causa. Isto, contudo, não impede que a melhor explicação para a
origem de tal relação próxima seja o especismo.
60
é a posição radical de Carruthers (2011), abordada na secção 4.1). De seguida
considero algumas razões para nos focarmos nos especismos com aquelas
características.
Em primeiro lugar, o especismo não-antrópico tem, quando muito, um
interesse teórico e taxonómico. É possível que os membros de outras espécies
animais sejam especistas, mas, supondo que especismo implica agência moral, isto é,
comportamento orientado pela consideração de razões morais, é duvidoso que haja,
de facto, outros animais especistas.
Em segundo lugar, o especismo irreflexivo, a existir, tem um impacto
pequeno e não representa um problema prioritário. Talvez alguns humanos, por
vezes, favoreçam os membros de outras espécies, mas acções deste género não
parecem constituir práticas com impacto moral significativo. Ou, pelo menos, não
em comparação com os comportamentos que, argumentavelmente, têm origem no
favorecimento da sua própria espécie. Para dar apenas um exemplo expressivo,
considere-se o comportamento de comer carne de animais produzida na indústria
pecuária. Este comportamento, que é generalizado e sistemático, parece favorecer o
interesse humano de satisfação gustativa contra o interesse dos animais em evitar dor
(cf. Singer 2016; Norcross 2004; McMahan 2008). Desconheço exemplos
semelhantes nos quais os humanos sejam desfavorecidos.48
Em terceiro lugar, talvez devido a uma forte implausibilidade intuitiva, não
parecem existir defesas influentes de especismo não-qualificado – a ideia de que a
mera pertença a uma espécie garante estatuto moral (ou um certo grau). Em alguns
autores notáveis, como Nozick (1997: 308) e Williams (2006: 150), encontram-se
afirmações que sugerem este tipo de especismo mas que estão longe de estar
48 Talvez aqui se possa apontar a eutanásia, uma vez que: (i) esta prática é geralmente aceite para
com animais, mas não para com humanos; e (ii) a sua aplicação correcta é melhor para o
indivíduo. No entanto, julgo que a não aceitação da eutanásia no caso de humanos é ainda
motivada pelo privilégio humano, ou seja, em crer que (ii) é falso. Além disto, a quantidade de
humanos prejudicados por não ser eutanasiado deve ser irrisória em contraste com, por exemplo,
os cerca de 5 biliões de mamíferos produzidos na indústria pecuária apenas em 2017. Se quisermos
considerar também a produção de galinhas para carne (ou seja, excluindo a produção para ovos), a
mesma ascendeu, no mesmo ano, os 70 biliões de aves (http://www.fao.org/faostat/en/#data/QA).
61
integradas numa defesa argumentada. É verdade, no entanto, que certos autores têm
defendido posições “humanistas” inspiradas em Williams, mas não é claro qual o seu
contributo para a discussão. Quer porque parecem usar ‘humano’ num sentido não
biológico, quer porque têm recebido pouca atenção na literatura (mas veja-se
McMahan 2005 para uma crítica a algumas dessas posições).
Por último, o especismo radical, apesar do seu interesse histórico devido a
proponentes de peso como Aristóteles, Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes
e Kant, é, hoje em dia, amplamente desacreditado.49 Uma expressão geral deste
descrédito encontra-se na crescente legislação sobre o bem-estar (físico) animal em
variados países (e.g. European Union 1998) e também no consenso científico acerca
da senciência dos animais (cf. 3.1). Esta inadequação à evidência socialmente
reconhecida, ainda assim, não determina o fracasso de qualquer posição especista
radical. Mas é certo que pelo menos aumenta a exigência na defesa de uma posição
deste género. Para ser minimamente plausível, dado que defende que os animais não
têm estatuto moral, uma posição especista radical deverá explicar por que razão
agimos como se tivessem.
Marginais
Acabámos de ver algumas razões para que as posições especistas que mais importa
discutir e que têm sido mais defendidas consistam no favorecimento dos humanos
contra os restantes animais. Mais precisamente, e para distinguir dos outros tipos de
especismo possíveis, tais posições são conhecidas como Antropocentrismo Moral
(doravante apenas ‘Antropocentrismo’).50 O assunto desta secção é um desafio
proeminente ao qual o Antropocentrismo tem de responder. Para tornar claro o que
49 Para as passagens relevantes de Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes e Kant veja-se Regan and
Singer (1989). Para as de Santo Agostinho veja-se Agostinho (2006: I, Cap. 20).
50 O termo parece ter sido importado da ética ambiental, onde um dos significados salientes é o de
que só os humanos (ou os seus interesses) têm valor intrínseco (cf. Minteer 2009).
62
está em discussão, e em linha com o que vimos acima sobre especismo, o
Antropocentrismo é a seguinte tese:
Esta tese, na sua versão radical, implica que só humanos têm estatuto moral. Na sua
versão moderada, implica que os humanos têm um grau de estatuto moral superior ao
dos animais. Ou seja, o Antropocentrismo é a posição segundo a qual os animais, no
máximo, têm um grau de estatuto moral inferior ao dos humanos. Isto talvez não
fosse tão implausível se os graus de estatuto moral fossem concebidos como sugerido
no Cap. 2, pois aí os graus são compatíveis com a igual consideração de interesses.
No entanto, como vimos na secção anterior, o especismo radical e moderado são
incompatíveis com a igual consideração de interesses. Por conseguinte, de acordo
com o antropocentrista, os interesses humanos têm primazia sobre interesses
semelhantes dos animais (moderado) ou até primazia sobre interesses mais básicos
dos animais (radical).
O Antropocentrismo faz parte da moralidade do senso-comum. Com poucas
excepções, foi também aceite ao longo de toda a história da Filosofia. 51 Contudo,
pouco tempo após as primeiras publicações influentes que criticavam o especismo
ou, em geral, defendiam que os interesses dos animais são moralmente relevantes
(e.g. Singer 2008, Regan and Singer 1976), os antropocentristas pareciam ter o ónus
da prova. Uma crítica comummente apresentada por vários defensores da
importância moral dos animais baseia-se no chamado “argumento dos casos
marginais”. Eis uma formulação desse argumento:
(1) Qualquer critério que exclua os animais de terem um certo grau de estatuto
moral, também exclui alguns humanos – os casos marginais.
51 Para além das referências na nota 49, veja-se Singer (2008: Cap. 5).
63
(2) Mas os casos marginais têm um estatuto moral superior ao dos animais.
(3) Logo, qualquer critério que exclua os animais de terem um certo grau de
estatuto moral é inaceitável.52
Para avaliarmos este argumento importa antes clarificar o que são casos marginais.
Estes casos são os daqueles humanos que não possuem as propriedades que uma
certa perspectiva sobre o estatuto moral considera relevantes para que um indivíduo
tenha tal estatuto. Por exemplo, segundo a perspectiva tradicional, um indivíduo tem
estatuto moral pleno se e só se for uma pessoa. Assim, relativamente a esta
perspectiva, há três categorias de casos marginais a distinguir: aqueles que ainda não
são pessoas (e.g. fetos e recém-nascidos); aqueles que já não são pessoas (e.g. idosos
em estado avançado de demência e vítimas de certos acidentes ou doenças); e
aqueles que nunca foram nem serão pessoas (e.g. anencefálicos e outros recém-
nascidos com incapacidades cognitivas graves).
Note-se, no entanto, que diferentes perspectivas sobre que propriedades são
concedentes de estatuto moral determinarão diferentes casos marginais. Segundo
perspectivas menos exigentes que a tradicional não existem aquelas três categorias de
casos marginais. Por exemplo, em perspectivas nas quais o estatuto moral está
associado à posse de uma alma, os fetos e os adultos humanos têm, alegadamente, o
mesmo estatuto.53
Podemos agora olhar para o argumento em detalhe. Suponha-se que ser
pessoa é o critério correcto para estatuto moral pleno. Adicionalmente, suponha-se
que nenhum animal é pessoa. Então, tal critério exclui os animais de terem estatuto
moral pleno, mas também exclui os humanos que não são pessoas (casos marginais).
Ou seja, relativamente a ter estatuto moral pleno, os casos marginais estão excluídos
52 Versões deste argumento recuam até Porfírio (cf. Dombrowski 1984). A formulação aqui
apresentada segue, com algumas modificações, a de Frey (1977: 186-87). O Antropocentrismo
aqui visado é o moderado – o mais plausível –, mas o argumento pode ser adaptado para o radical.
O epíteto ‘casos marginais’ deve-se a Narveson (1977). Alguns autores, contudo, preferem referir
este argumento como “o argumento da intersecção das espécies” (cf. Horta 2014).
53 Sobre estas perspectivas, veja-se McMahan (2002: 7-24).
64
como os animais. Dado que o Antropocentrismo, por definição, implica que todos os
humanos têm estatuto moral superior aos animais, a segunda premissa também é
verdadeira. Mas, então, ou existe um grau de estatuto moral inferior ao pleno que os
casos marginais possuem e os animais não, ou obtemos a seguinte contradição:
alguns humanos têm estatuto moral equivalente ou inferior ao dos animais, mas todos
têm um grau superior ao dos animais. Como parece certo que não existe um grau de
estatuto moral inferior ao pleno que inclua só humanos mas nenhum animal (ou seja,
relativamente à propriedade concedente de um certo grau haverá sempre animais que
a satisfazem pelo menos tanto como algum humano), então obtemos aquela
contradição. Logo, a conclusão a retirar é que, afinal, o critério de ser pessoa é
inaceitável. Ou seja, este caso particular da conclusão é verdadeiro. Por sua vez,
como obtemos um resultado semelhante para todos os outros critérios que os
antropocentristas apresentem para excluir os animais de terem um certo grau de
estatuto moral, então, por generalização, chega-se ao argumento (1)-(3).54
Singer (2008: 221-222) apresenta da seguinte forma uma síntese elucidativa
deste argumento:
54 Este argumento só afecta as versões de Antropocentrismo qualificado uma vez que o critério da
mera pertença à espécie Homo sapiens torna falsa a premissa (1). Ainda assim, esta limitação não
afecta muito a avaliação da discussão contemporânea uma vez que, como observado no penúltimo
parágrafo da secção 3.2, o especismo não-qualificado não tem recebido muita atenção.
65
posse das capacidades cognitivas típicas de pessoas (ou graus de tais capacidades).
Mas a discussão pode ser acerca de outras capacidades plausivelmente relevantes,
como senciência, e mesmo aqui haverá casos marginais (e.g. anencefálicos).
Portanto, o antropocentrista parece ter de abandonar a sua posição: alguns humanos
não têm estatuto moral superior ao de alguns animais.
Um corolário do argumento dos casos marginais diz apenas que os indivíduos
com capacidades relevantes equivalentes, independentemente da sua espécie, têm
estatuto moral equivalente. Por outras palavras, se o que conta para um certo grau de
estatuto moral é uma certa propriedade (que não envolva crucialmente a pertença a
uma espécie), então é arbitrário insistir que os animais têm estatuto moral inferior ao
dos humanos. O que há a fazer é averiguar quais indivíduos têm tal propriedade,
sejam humanos ou animais. Por exemplo, assumindo que o que importa é ter certas
capacidades cognitivas, então, se um chimpanzé tem pelo menos as capacidades
cognitivas de um recém-nascido, o chimpanzé tem pelo menos o estatuto moral do
recém-nascido.
Vemos então que este argumento, ao contrário do argumento por analogia
para a senciência animal (3.1), não envolve a atribuição de uma capacidade
moralmente relevante aos animais. Portanto, o argumento dos casos marginais não
suporta directamente reconhecer-lhes um certo grau de estatuto moral. No entanto,
como suporta reconhecer-lhes um estatuto moral equivalente ao de indivíduos
humanos com capacidades equivalentes, permite reconhecer-lhes qualquer grau de
estatuto moral.55 Neste sentido, o argumento dos casos marginais é muito mais geral
do que o argumento por analogia para a senciência animal.
Assim sendo, assumindo que os interesses de senciência são os mais básicos
que um indivíduo pode ter, as implicações práticas do argumento dos casos marginais
são muito vastas. Pelo menos tão vastas quanto a generalidade das acções que
ignoram ou menosprezam os interesses de senciência dos animais, favorecendo os
interesses semelhantes dos humanos. E no máximo as implicações práticas são tão
vastas quanto a generalidade das acções que têm em conta alegados interesses
55 Se se admitir que há humanos sem estatuto moral, também permite reconhecer que os animais
relevantemente semelhantes não têm estatuto moral.
66
adicionais dos seres humanos, mas que não se distinguem relevantemente dos
animais.
O primeiro género de acções é o daquelas acerca das quais damos uma
resposta negativa à questão “Faríamos isto com um humano com as mesmas
capacidades relevantes?”. O segundo género é o daquelas acções para as quais não
temos uma resposta razoável à questão “Por que razão não fazemos isto com um
animal com as mesmas capacidades relevantes?”.
Exemplos do primeiro género de acções são a indústria pecuária, a
experimentação animal e o uso de animais para moda, entretenimento e companhia.
Parece universalmente aceite que seria errado sujeitar humanos meramente
sencientes àquelas acções.56 Voltando ao exemplo de Albert II, se usar uma cobaia
humana num voo espacial incipiente teria sido impermissível, mesmo que tal cobaia
fosse meramente senciente, então, ceteris paribus, também foi impermissível usar
Albert II. Logo, sujeitarmos animais sencientes a tais acções é apenas uma negação
arbitrária de reconhecer os seus interesses.
Um exemplo daquele segundo género de acções é, digamos, a protecção da
vida de humanos que não são pessoas em certos casos de proibição do aborto e da
eutanásia. Se devemos manter tais humanos vivos, evitando, por exemplo, formas
indolores de terminar as suas vidas, é arbitrário não nos esforçarmos igualmente para
proteger as vidas dos animais, que são até muito mais ricas por envolverem mais
experiências e em maior variedade. Em suma, tanto em relação a interesses mais
básicos, como os de senciência, como em relação a interesses mais sofisticados,
como o de continuar a viver, a forma como agimos para com humanos deve estender-
se aos animais que não se distinguem relevantemente daqueles.
Frey (1977: 189), um dos primeiros filósofos contemporâneos a pôr em causa
a cogência do argumento dos casos marginais, concluiu que “ou a premissa (2) não
admite defesa ou então a premissa (1) é simplesmente falsa, de modo que, em
qualquer caso, este argumento influente em favor dos direitos dos animais falha.” No
entanto, esta conclusão de Frey não impediu que um aceso debate sobre este
56 Muitas pessoas dirão que este juízo depende de algo mais do que a senciência. Algo como estar
numa certa relação (familiar ou outra) com outros humanos. Sobre isto, veja-se a secção 4.1.
67
argumento se tenha prolongado desde então até aos dias de hoje. Como Narveson
(1977: 163), pela mesma altura, admitiu, “a minha impressão é que até agora não
temos muito melhor do que as declarações bastante inconvincentes de Aristóteles,
Aquino, Kant e o resto”. No capítulo seguinte foco-me em algumas posições
antropocentristas que vão, ou pelo menos aspiram ir, além daquelas declarações
bastante inconvincentes.
Na secção 2.1 vimos que a senciência é um fundamento para o estatuto moral básico.
Depois, na secção 3.1, examinámos um argumento que suporta a atribuição de
senciência pelo menos à classe dos mamíferos. Inferimos, então, que pelos menos os
mamíferos têm estatuto moral básico. A posição de Carruthers (2011), que vamos
agora analisar, critica aquela inferência sem negar que os animais são sencientes.
Aliás, na teoria deste autor, como veremos, a senciência animal tem até um papel
muito importante. Assim, segundo Carruthers, um indivíduo pode ser senciente e não
ter interesses que gerem obrigações (não derivadas de outros indivíduos). Por
exemplo, apesar de Albert II ser senciente, isso não implica que era prima facie
proibido causar-lhe dor. Em geral, para Carruthers, nenhuma acção tem estatuto
deôntico por afectar animais. Por conseguinte, de acordo com a definição EM (1.1),
isto significa que, para Carruthers, os animais não têm estatuto moral. Mas ele
também defende que todos os humanos têm estatuto moral. Logo, a posição de
Carruthers é um exemplo de Antropocentrismo radical.
O Antropocentrismo de Carruthers assenta nas seguintes três suposições. (i)
Os animais têm mentes muito semelhantes às nossas (crenças, emoções, dores,
68
consciência, etc.). (ii) Os animais não são agentes racionais – não são capazes de
guiar o seu comportamento de acordo com regras universais e de avaliar a adopção
geral de tais regras numa comunidade de agentes racionais. (iii) A teoria moral
correcta é contratualista: as regras morais ou são aquelas que são acordadas pelos
agentes racionais sob o “véu de ignorância”, isto é, numa situação hipotética
igualitária e imparcial (seguindo Rawls 1999); ou são aquelas que nenhum agente
racional pode razoavelmente negar se a sua maior prioridade for alcançar um acordo
livre sobre as regras que irão governar o comportamento na comunidade (seguindo
Scanlon 2000).
Segundo Carruthers, na teoria Rawlsiana é óbvio que os contratantes,
motivados em obter um estado de coisas mutuamente vantajoso, e ignorantes das
suas características particulares, decidem atribuir estatuto moral a todos os agentes
racionais. De outra forma não estariam seguros de que eles próprios teriam estatuto
moral. Por outro lado, a teoria Scanloniana prevê algo semelhante. Se fosse proposta
uma regra que não atribuísse estatuto moral a um subconjunto dos agentes racionais,
tal regra podia ser razoavelmente rejeitada pelos membros desse subconjunto
(Carruthers 2011: 4-5). Portanto, o contratualismo garante que todos os agentes
racionais têm estatuto moral.
Parece, no entanto, que o contratualismo está sujeito ao argumento dos casos
marginais. Afinal de contas, os humanos que não são racionais não são sequer
intervenientes no contrato. Contudo, Carruthers (2011: 5-6) defende, através do
“argumento da estabilidade social”, que o contratualismo atribui estatuto moral a
todos os humanos. Uma formulação detalhada do seu argumento é a seguinte:
69
familiares serem agentes racionais, então regras que não atribuem estatuto
moral aos seus familiares não seriam psicologicamente suportáveis.
(4) Em geral, as pessoas preocupam-se tão profundamente com os seus familiares
como com qualquer outra coisa, independentemente dos seus familiares
serem agentes racionais.
(5) Regras que não atribuem estatuto moral aos seus familiares não produzem
estabilidade social.
(6) Logo, o objectivo do contrato só é alcançado se os agentes contratantes
atribuírem estatuto moral a todos os seres humanos.
70
porque as partes contratantes têm razões para atribuir estatuto moral a todos os
humanos, mas não aos animais.
Poder-se-á julgar que esta posição tem a consequência implausível de que
qualquer acção para com os animais é permissível. E, a fortiori, que mesmo acções
repugnantes como, por exemplo, atear fogo a um gato por diversão, seriam
moralmente correctas (o exemplo é do próprio Carruthers). Mesmo não
reconhecendo estatuto moral aos animais, Carruthers defende que o contratualismo
não tem tal consequência. A questão não é apenas que temos deveres indirectos para
com os animais que resultam da nossa preocupação com humanos. Mas, mais
precisamente, temos deveres indirectos para com os animais porque acções daquele
tipo revelam o carácter cruel dos seus autores e pessoas com um carácter cruel
provavelmente também agem cruelmente para com outras pessoas (Carruthers 2011:
14-15).
Sublinhe-se que isto é uma explicação da origem dos deveres acerca dos
animais e, por conseguinte, algo independente das consequências que de facto as
acções têm. A teoria de Carruthers consegue assim sustentar algo muito intuitivo que
envolve a suposição (i) acerca da mente dos animais. A saber: que aqueles que têm
um bom carácter e previnem o sofrimento de um animal, fazem-no pelo bem do
próprio animal; “é algo do próprio animal (a sua dor) que consiste no objecto
imediato da emoção e da resposta subsequente.” (Carruthers 2011: 18) Deste modo, o
contratualismo de Carruthers suporta o Antropocentrismo e, ao mesmo tempo, não só
reconhece a importância (derivada) dos interesses dos animais, mas também
acomoda a intuição de que agimos pelo bem deles.
Um problema sério para esta defesa contratualista do Antropocentrismo é que
o argumento da estabilidade social é inválido ou, na melhor das hipóteses, tem uma
premissa falsa. A questão prende-se com a qualificação ‘em geral’ surgir nas
premissas (3) e (4) mas não na premissa (5) nem na conclusão. Para a proposição
condicional (3) ser verdadeira com a restrição ‘em geral’, os indivíduos em causa na
consequente dessa proposição têm de ser os mesmos indivíduos referidos na
antecedente – as pessoas que se preocupam com os seus familiares. Por exemplo, é
71
verdade que se os humanos podem votar, então têm idade para votar; mas não é
verdade que se, em geral, os humanos podem votar (porque, digamos, a maioria
pode), então qualquer humano tem idade de votar. Ou seja, a conclusão do argumento
não se segue para todos os agentes contratantes.
Mas talvez esta interpretação do argumento não seja caridosa e devamos ler
‘em geral’ como ‘todas’. Porém, nesta interpretação a premissa (4) é falsa, uma vez
que há humanos que não são alvo de preocupação profunda por parte dos seus
familiares. Isto é óbvio no caso daqueles humanos que não têm familiares, como os
órfãos. Mas também não são assim tão incomuns os casos de abandono e maus tratos
familiares, quer de crianças, idosos ou de humanos com incapacidades cognitivas.
Portanto, nesta leitura do argumento, a falsidade de (4) é inegável.
Consequentemente, não se pode inferir (5) e assim o argumento é bloqueado.
Isto, por si só, basta para negar que o contratualismo de Carruthers suporte
cogentemente o Antropocentrismo. Mas, para este propósito, talvez o contratualismo
em geral tenha ainda outra falha, pois nalgumas concepções a teoria parece ser capaz
de reconhecer estatuto moral aos animais.
Alguns filósofos (e.g. Vandeveer 1979b, Regan 2004 e Rowlands 1997) têm
considerado que, na versão Rawlsiana, o contratualismo não desconsidera
necessariamente os animais. O raciocínio, em traços largos, é o seguinte. Nada nos
obriga a supor que, na posição original, sob o véu de ignorância, as partes
contratantes sabem a que espécie pertencem ou até que são agentes morais. Portanto,
supondo que o véu de ignorância omite essa informação, as partes contratantes
acordarão atribuir estatuto moral aos indivíduos de todas as espécies ou a todos os
seres sencientes. Dito de outro modo, será do interesse de todos acordar que os seres
sencientes não fiquem aquém das regras morais. Por conseguinte, é por estipulação, e
não por necessidade, que os animais não têm estatuto moral segundo a teoria
Rawlsiana.
Por outro lado, uma certa revisão da teoria Scaloniana parece ainda mais
promissora a respeito de reconhecer deveres directos para com os animais. Na sua
versão original, a teoria é sobre aquilo que devemos uns aos outros e isto, por sua
72
vez, está dependente apenas de razões pessoais – razões associadas ao “bem-estar, às
reivindicações, ou ao estatuto dos indivíduos” (Scanlon 2000: 219). Ou seja, para
Scanlon, a rejeição de regras é razoável devido à preocupação moral para com os
indivíduos com os quais temos uma relação (no limite, todos os que existem em
algum momento). Mas o que dizer acerca dos indivíduos possíveis, que podemos
afectar, mas cuja existência depende das nossas acções?
Avaliar a moralidade das nossas acções para com tais indivíduos é conhecido
como o problema da não-identidade (veja-se Roberts 2019). Para dar conta deste
problema, mantendo o essencial da teoria Scanloniana, devemos rever a teoria
original de modo a admitir que uma acção pode ser errada por razões impessoais
(Parfit 2011: 217). Ou seja, quando a teoria diz que uma acção é errada porque segue
uma regra que pode razoavelmente ser negada, devemos incluir razões impessoais no
conjunto das razoáveis. Mas então, ao fazermos isto, abrimos a porta ao estatuto
moral dos animais. Como Scanlon (2000: 181) aceita que a dor dos animais é má e
dá-nos uma razão impessoal para agir (para aliviá-la, por exemplo), então
Assim, nesta revisão da teoria, os animais têm estatuto moral. Porém, note-se que o
próprio Scanlon, ao considerar os casos marginais, inclina-se para o
Antropocentrismo. Acerca tais humanos, ele afirma que, apesar de serem incapazes
de participar no processo de justificação mútua de princípios, faz sentido pensar
naquilo que “eles poderiam razoavelmente rejeitar” se fossem capazes de o fazer
(Scanlon 2000: 185-186). Contudo, ele não faz uma afirmação semelhante acerca dos
animais. Isto sugere que Scanlon, na melhor das hipóteses, aceita uma versão de
Antropocentrismo moderado. Os animais têm algum estatuto moral, mas inferior ao
dos humanos.58
58 Sobre o Antropocentrismo de Scanlon, veja-se McMahan (2002: 217-218).
73
Em conclusão, apesar da posição de Carruthers (2011) negar que a senciência
seja suficiente para o estatuto moral, é incapaz de evitar o argumento dos casos
marginais. Se o critério correcto para o estatuto moral é ser um agente moral, então
alguns humanos não têm estatuto moral. Por outro lado, mesmo ignorando os
problemas com o argumento da estabilidade social, o contratualismo é insuficiente
para defender o Antropocentrismo. Como vimos, em algumas versões da teoria, quer
de inspiração Rawlsiana, quer de inspiração Scanloniana, os animais têm estatuto
moral.59
59 Mas veja-se Carruthers (2011: 10-11), e também Garner (2012), acerca da incompatibilidade entre
contratualismo e o estatuto moral dos animais.
74
Suponha-se que o leitor está a ter uma vida apenas ligeiramente boa, ou seja,
que a sua vida contém um saldo positivo, mas quase nulo, entre as coisas que tornam
vidas boas as que as tornam más. Mas agora imagine que, no espectro de pior para
melhor vida humana possível, a qualidade da sua vida está no extremo superior.
Diremos então que, apesar de o seu bem-estar quase não ser positivo, a sua vida é
afortunada para o tipo de ser que o leitor é. Isto é uma comparação entre o seu bem-
estar e os graus de bem-estar possíveis para a sua espécie. Adicionalmente, esta
explicação também é sensível à comparação do seu bem-estar com a proporção de
vidas actuais com o mesmo grau de bem-estar. Se muito poucos humanos tiverem
vidas tão boas quanto a sua, o leitor será mais afortunado do que se praticamente
todos tiverem um bem-estar equivalente ao seu (cf. McMahan 2002: 146).
O antropocentrista pode então usar a ideia de infortúnio, associada à norma
da espécie, para discriminar moralmente entre humanos e animais com capacidades
semelhantes.60 Por exemplo, dirá que apesar de um chimpanzé estar ao nível
cognitivo de um humano com incapacidades cognitivas graves, este último tem um
estatuto moral mais elevado porque, ao contrário do chimpanzé, ter tal nível
cognitivo é um infortúnio para ele. Ou seja, mesmo que, de facto, tal humano não
seja uma pessoa, se não fosse o infortúnio de estar aquém da norma da sua espécie,
ele seria uma pessoa. Ao invés, não diremos o mesmo do chimpanzé pois ser pessoa,
por hipótese, não é a norma da sua espécie. Por conseguinte, estamos justificados a
60 Cigman (1981) faz um apelo semelhante à noção de infortúnio mas concentra-se no infortúnio da
morte. Segundo a autora, ter desejos categóricos é necessário e suficiente para ter direito à vida e
sem tais desejos a morte não é um infortúnio. Assumindo que apenas humanos têm tais desejos,
apenas estes têm direito à vida. Contudo, sobre os casos marginais, Cigman (1981: 61) apenas
menciona que “talvez seja plausível” que tenham a capacidade para ter tais desejos e então que se
pode defender, contrariamente aos animais, que eles são possivelmente sujeitos do infortúnio da
morte. Na secção 4.4 considero uma posição que também apela à necessidade de desejos
categóricos para o mal da morte. Para uma crítica convincente da importância de desejos
categóricos veja-se Bradley and McDaniel (2013). Cohen (1986, 2001), apesar de não falar em
infortúnio, também defende algo relacionado ao considerar que o relevante não são as
características particulares dos indivíduos mas sim as características do tipo de ser que os
indivíduos são. O essencial desta posição é captado, e melhor, pela posição da secção seguinte.
75
reconhecer que certas acções, e.g. experiências científicas não dolorosas sem o
consentimento dos indivíduos, são erradas quando envolvem um humano, mas
permissíveis quando envolvem um chimpanzé cognitivamente equivalente. Por
outras palavras, estamos justificados a ser antropocentristas, pois não havendo
diferenças nos interesses dos humanos e dos animais, protegemos preferencialmente
os primeiros.
Note-se, porém, que isto não implica que o próprio infortúnio concede um
certo grau de estatuto moral. Conforme observa Kaufman (1998: 157), os animais
também podem sofrer o infortúnio de ter incapacidades cognitivas e nem por isso
diremos que merecem um estatuto moral elevado. O crucial é que o infortúnio de um
humano que não é pessoa é maior do que o infortúnio de um animal com
incapacidades cognitivas pois apenas o primeiro foi privado de ser pessoa.
Um alegado problema para esta defesa do Antropocentrismo é que a
Explicação da Norma da Espécie está sujeita a contraexemplos. Um desses
contraexemplos é o do superchimpanzé, apresentado por McMahan (2002: 147).
Suponha-se que através de terapia genética aplicada num chimpanzé recém-nascido,
o seu cérebro desenvolve-se de modo semelhante ao de um humano e, por isso, em
adulto o chimpanzé tem capacidades cognitivas e emotivas semelhantes às de uma
criança humana de dez anos. Suponha-se também que, depois de algum tempo com
tais capacidades acima da norma da sua espécie, o superchimpanzé sofre um dano
cerebral na sequência do qual volta a ter as capacidades típicas de chimpanzés. Ora,
segundo a Explicação da Norma da Espécie, o superchimpanzé sofre um infortúnio
ao ter perdido tais capacidades mas, dada a norma da sua espécie, não fica numa
situação de infortúnio. Contudo, se um humano sofrer um declínio semelhante das
suas capacidades, deixando de ser pessoa, consideramos que ele ficará numa situação
de infortúnio. Isto, diz McMahan (2002: 148), parece arbitrário: “ou são ambos
infortunados ou nenhum é.”
Um outro contraexemplo envolve não um resultado contraintuitivo acerca de
indivíduos cujas capacidades se alteraram, mas sim acerca de indivíduos que
mantiveram as suas capacidades. Se imaginarmos que a condição de melhoramento
76
cognitivo do superchimpanzé é hereditária e se o número de superchimpanzés se
tornar maior do que o dos restantes chimpanzés, a Explicação da Norma da Espécie
implica estes últimos se tornaram infortunados. O que isto tem de contraintuitivo é
que não houve qualquer alteração nas suas capacidades congénitas e as suas vidas
continuam boas comparativamente às melhores vidas acessíveis a chimpanzés com
tais capacidades. “Parece irrazoável supor que eles se tornaram infortunados apenas
porque uma escala alargada de bem-estar se tornou possível para uma maioria dos
membros da sua espécie.” (McMahan 2002: 148)
Em resumo, por um lado, a Explicação da Norma da Espécie implica juízos
diferentes sobre estados de infortúnio quando há uma diferença de espécie mas o
declínio de capacidades é idêntico. Por outro, implica que os indivíduos se tornam
infortunados apesar de não haver qualquer alteração nas suas naturezas e terem vidas
boas comparativamente à melhor vida que lhes é acessível. Sem grande surpresa, as
intuições sobre estes casos divergem. Talvez estas consequências sejam previstas
pela moralidade do senso-comum (Grau 2015: 222) e não sejam decisivas para
abandonar a Explicação da Norma da Espécie.
Segundo Kaufman (1998: 159), uma versão mais plausível da Explicação da
Norma da Espécie, para além de considerar a posição de um indivíduo relativa à sua
espécie, envolve também avaliar quanto é que um indivíduo é prejudicado por estar
numa certa posição relativa à sua espécie. Como os infortúnios que estamos a
considerar são disfunções e incapacidades de ordem biológica, o tipo de ser em
questão é relevante para determinar tais disfunções e incapacidades – e.g. um
humano não tem uma disfunção por não voar. Assim, parece que para determinar o
infortúnio de um indivíduo é relevante considerar o tipo de ser que ele é. Mesmo não
sendo suficiente para determinar o infortúnio de um indivíduo, a comparação com a
norma da espécie é necessária para sabermos que condições são infortúnios. Se a
norma da espécie humana é ser pessoa, e supondo que pessoas acedem uma
qualidade de vida superior à dos indivíduos que não são pessoas (algo que é
amplamente aceite), os humanos que não são pessoas são infortunados, prejudicados,
de uma forma que os animais não podem ser.
77
Todavia, ser vítima de infortúnio não parece suficiente para justificar estatuto
moral distinto entre os indivíduos cujas capacidades cognitivas e emotivas são
equivalentes. Se um humano adulto tiver incapacidades ao ponto de ser
cognitivamente equivalente a um recém-nascido, ninguém dirá que devemos dar
preferência aos interesses do adulto por causa do seu infortúnio. E se isto é o caso
para os indivíduos da mesma espécie, aceitar que é falso entre os indivíduos de
espécies distintas (por exemplo, entre o mesmo adulto e um chimpanzé) é pressupor
o especismo.61
Há algo intuitivo na ideia de que os humanos que não são pessoas estão numa
condição que os prejudica de uma forma que não prejudica os animais. Mas
acabámos de ver que é difícil sustentar que tal infortúnio concede estatuto moral
superior. Um indivíduo que tem o infortúnio de não ser pessoa não parece, só por
isso, experimentar a dor de forma diferente de um animal cognitivamente
equivalente. E ele também não parece ser mais beneficiado do que o animal quando
evita uma certa dor ou quando sente prazer. Por outro lado, se um humano que não é
uma pessoa e um animal possuem capacidades semelhantes, então eles têm interesses
semelhantes. Ou seja, ambos impõem os mesmos limites à agência moral. Em suma,
mesmo aceitando que os animais não têm o infortúnio de não ser pessoa – o que é
discutível, como veremos na próxima secção – parece que esse infortúnio não é
moralmente relevante. No mínimo, é muito menos intuitivo que tenha essa relevância
do que a senciência e ser pessoa.
61 Kaufman (1998: 160) apresenta um raciocínio semelhante, embora mais fraco. Ele afirma que o
infortúnio é insuficiente para que os interesses da vítima suplantem os dos indivíduos
paradigmáticos da mesma espécie e, logo, que seria petição de princípio se assim não fosse entre
espécies distintas.
78
forma de sustentar uma diferença moral entre os humanos e os animais. O
Personismo Modal, de certo modo, é semelhante à perspectiva do infortúnio humano.
Nomeadamente, também faz um apelo à natureza do tipo dos indivíduos. Mas
veremos que no caso do Personismo Modal este apelo é mais básico e com menos
compromissos. Além disso, a posição de Kagan parece imune ao argumento dos
casos marginais e aos contraexemplos que McMahan apontou à Explicação da
Norma da Espécie.
Expectavelmente, o Personismo Modal considera que ser pessoa é
moralmente relevante. Aquilo que distingue a posição de Kagan é considerar que a
propriedade modal de poder ter sido pessoa também é moralmente relevante.
Segundo Kagan, é porque um humano com incapacidades cognitivas graves tem esta
propriedade que os seus interesses contam mais do que os dos animais. “Pois apesar
de ela não ser uma pessoa, é ainda assim verdade sobre ela que poderia ter sido uma
pessoa – e, pelo menos intuitivamente, este facto sobre ela tem importância moral.
Em contraste, é claro, um mero animal não tem esta propriedade.” (Kagan 2016: 16)
Kagan não tenta explicar por que razão esta propriedade modal tem
importância moral. Sugere, no entanto, que talvez possa ser integrada “numa
explicação mais geral de bens modais”, já que a razoabilidade de lamentar que um
certo bem não ocorreu de facto, assim como do grau do lamento, parecem depender
da possibilidade do bem ter ocorrido e de quão remota é essa possibilidade (Kagan
2016: 20). Não há aqui referência ao infortúnio humano de não ser pessoa, mas este
infortúnio, como vimos na secção anterior, também depende do indivíduo ser tal que
podia ter sido uma pessoa e não aceder ao bem-estar que pessoas acedem. Ou seja, a
perspectiva do infortúnio humano é uma forma de explicar a importância moral da
propriedade modal de poder ter sido pessoa. Logo, aceitando as dificuldades
apresentadas à Explicação da Norma da Espécie, para que a posição de Kagan seja
correcta não pode depender daquela explicação. Assuma-se, portanto, que o
Personismo Modal assenta numa “explicação mais geral de bens modais” diferente
da Explicação da Norma da Espécie. Se o Personismo Modal estiver correcto, é
suficiente para responder ao argumento dos casos marginais, pois a propriedade
79
modal em questão, ser uma pessoa modal, exclui os animais, mas não os humanos,
de ter um certo grau de estatuto moral.
Neste momento é necessária uma qualificação acerca do modo como o
Personismo Modal suporta o Antropocentrismo. Diferentemente das outras posições
consideradas neste capítulo, Kagan não nega que cães ou marcianos inteligentes
possam ter estatuto moral pleno (cf. Kagan 2016: 13). Por outras palavras, não
defende o Antropocentrismo tal como foi definido (que implica que só os humanos
podem ter estatuto moral pleno). Não obstante, o Personismo Modal atribui a todos
os humanos um estatuto moral superior ao de todos os animais conhecidos. É neste
sentido mais limitado que exclui os animais de ter estatuto moral pleno. Por
conseguinte, o caso do superchimpanzé, apresentado por McMahan, não constitui um
contraexemplo ao Personismo Modal. Se preferirmos, podemos dizer que, na prática,
pelo menos enquanto desconhecermos outras espécies inteligentes, o Personismo
Modal suporta o Antropocentrismo.
Poder-se-á, agora, perguntar: o que tem de especial a relação entre, por um
lado, as pessoas e os indivíduos que poderiam ter sido pessoas e, por outro lado, a
espécie humana? A resposta de Kagan (2016: 12) é que os humanos pertencem a uma
espécie pessoal, isto é, uma espécie cujos membros adultos típicos são pessoas. Dado
que isto, aparentemente, não passa de um apelo à Explicação da Norma da Espécie,
de que modo é que o Personismo Modal é imune ao segundo contraexemplo
apresentado por McMahan a tal Explicação? Este contraexemplo, recorde-se,
envolvia supor que o número de superchimpanzés ultrapassava o dos chimpanzés.
Como o bem-estar derivado das capacidades dos superchimpanzés seria a nova
norma da espécie, os chimpanzés tornavam-se infortunados apesar de manterem
vidas boas acessíveis às suas capacidades congénitas (que em nada se alteraram). A
resposta de Kagan é, então, a seguinte. Neste exemplo, ‘membro típico’ é
interpretado estatisticamente, mas o sentido relevante dessa expressão não é acerca
de “como é a maioria dos membros da espécie, mas antes de como é o membro
genérico da espécie.” (Kagan 2016: 14) Se aceitarmos que há um sentido de
‘membro genérico’ suficientemente independente do número de membros da espécie
80
e respectivas características num dado momento, então a ideia de que a espécie
humana é uma espécie pessoal não está ameaçada. No entanto, não é fácil de antever
como sustentar tal sentido e o próprio Kagan não o faz, limitando-se a dar exemplos
de características do leão genérico (cf. Kagan 2016: 14).
Entretanto, o Personismo Modal tem outros problemas mesmo que se
conceda que os humanos pertencem a uma espécie pessoal. Um deles é apresentado
pelo próprio Kagan (2016: 18) e reiterado por DeGrazia (2016: 24). O Personismo
Modal implica que poder ter sido pessoa confere um estatuto moral superior ao
daqueles indivíduos que não poderiam ter sido pessoas. Mas então, supondo que a
anencefalia de um recém-nascido é-lhe essencial – que não poderia ter existido sem
tal condição –, mas que a anencefalia de outro recém-nascido não lhe é essencial, isto
implica que o segundo tem um estatuto moral superior ao do primeiro apesar de
nenhum deles ser consciente.62 Tal como muitos outros, julgo que isto é altamente
contraintuitivo. Primeiro, porque reconhece-se uma diferença de estatuto moral entre
dois humanos cujas capacidades actuais são equivalentes. Depois, porque implica
que a senciência nem, na verdade, qualquer outro componente de bem-estar
comummente considerado, é condição necessária para estatuto moral. Por
conseguinte, isto elimina a relação plausível entre estatuto moral e bem-estar,
subjacente à definição EM (1.1).
Um outro problema que McMahan (2016: 26) considera é que Kagan
restringe injustificadamente a categoria de pessoa modal àqueles indivíduos que
podiam ter sido pessoas mas que já não podem. E a razão para evitar esta restrição é
simples: se poder ter sido pessoa concede estatuto moral, ter ainda o potencial para
ser pessoa (como um feto saudável tem) também concede. Eventualmente, até em
maior grau. Mas então, à luz desta categoria alargada de pessoa modal, que inclui
aqueles que têm o potencial para ser pessoa, segue-se da posição de Kagan que “os
interesses de um feto humano desenvolvido importam mais do que os interesses
semelhantes de um adulto com incapacidades cognitivas graves”, pois o primeiro tem
62 A objecção assume que a base genética é essencial aos indivíduos. Apesar de haver algumas
dúvidas, é mais provável que a anencefalia seja causada por factores não genéticos (cf. Liao 2010:
166).
81
o potencial de se tornar pessoa mas o segundo apenas poderia ter sido pessoa
(McMahan 2016: 29). Por sua vez, isto parece sugerir, contra a moralidade do senso
comum que o Personismo Modal pretende acomodar, que um aborto tardio é mais
objectável do que a morte de um adulto com incapacidades cognitivas graves.63
Tanto McMahan (2016: 29) como DeGrazia (2016: 24-25) objectam ainda
que o Personismo Modal tem uma consequência que vai contra a motivação da
própria posição. A objecção baseia-se no melhoramento cognitivo de animais através
de tratamento genético que preserve a identidade. Como isto parece expectável no
curso actual de desenvolvimento tecnológico, os animais que poderão ser sujeitos a
tal melhoramento cognitivo parecem ser pessoas modais uma vez que eles têm o
potencial para ser pessoas. Assim, ao atribuir a tais animais um estatuto moral
superior àquele que atribui aos indivíduos humanos que não têm o potencial para ser
pessoas, o Personismo Modal acaba por ser revelar inadequado para defender o
Antropocentrismo. Por outras palavras, relativamente à motivação inicial, o
Personismo Modal é demasiado inclusivo acerca de estatuto moral.
Poder-se-á argumentar que os indivíduos não-humanos que podem ser
pessoas, através de melhoramento cognitivo, têm apenas a potencialidade extrínseca
para ser pessoa (porque necessitam do melhoramento), ao passo que os humanos têm
a potencialidade intrínseca para ser pessoa (já possuem as propriedades relevantes,
bastando-lhes o desenvolvimento natural). Mas isto tem também uma implicação
muito contraintuitiva. Imagine-se que um feto, cuja potencialidade para ser pessoa é
intrínseca, tem uma condição médica, cardíaca, por exemplo, da qual morrerá in
utero se não for tratada. Imagine-se também que um outro feto tem apenas a
potencialidade extrínseca para ser pessoa devido a uma malformação cerebral da qual
também morrerá in utero se não for tratada. Agora, se supusermos que só é possível
realizar o tratamento num deles, deveria ser claro que o primeiro feto tem prioridade,
pois tem a potencialidade intrínseca para ser pessoa. No entanto, não é nada claro
63 Este mesmo caso parece levantar sérias dúvidas contra a importância da potencialidade do feto
para ser pessoa. Se, conforme vimos na secção 2.3, o feto tem um estatuto moral superior ao de
seres meramente sencientes, então não pode ser o caso que a morte de um adulto meramente
senciente é incorrecta como um aborto tardio.
82
que haja tal prioridade. Se tudo o resto for igual, inclusive os custos para os
tratamentos, o feto que tem a potencialidade extrínseca tem tanto a perder quanto o
outro – uma vida futura enquanto pessoa.64
Ainda assim, conforme diz Kagan (2016: 18), o Personismo Modal parece ser
a posição que faz mais justiça às intuições comuns acerca do estatuto moral dos
humanos e dos animais. E apesar das críticas que acabámos de ver, isto é
reconhecido por McMahan (2016: 27) quando afirma que “os argumentos de Kagan
oferecem a melhor defesa até à data da importância moral de pertencer à espécie
humana.” Reconhecer este mérito, no entanto, é reconhecer que o Antropocentrismo
carece ainda de uma defesa convincente.
Nas três secções anteriores discutimos defesas do Antropocentrismo que falham por
diversos motivos. Ora porque não conseguem atribuir estatuto moral a todos os
humanos (5.1), ora porque a propriedade alegadamente relevante, afinal, é irrelevante
(5.2), ora ainda porque implicam que alguns animais têm pelo menos estatuto moral
equivalente a alguns humanos (5.3).
A posição de Belshaw (2016), que vou agora avaliar, não é, na verdade, uma
defesa do Antropocentrismo. Contudo, como procura defender que, em geral, a morte
dos humanos importa moralmente, mas não a dos animais, pode muito bem ser usada
para defender o Antropocentrismo. Além disso, se for verdade que, em geral, a morte
dos animais não tem importância moral, então isso diz-nos algo importante sobre o
estatuto moral dos animais. Nomeadamente, que as suas vidas estão aquém da
obrigação moral. Por sua vez, esta posição aproxima-nos da discussão, no próximo
capítulo, acerca da substituibilidade dos animais. Portanto, por um lado, a posição de
Belshaw pode ser integrada numa defesa do Antropocentrismo. Por outro lado, tem
64 Este caso é inspirado em vários casos que McMahan (2002: 312-316) apresenta como críticas à
relevância da diferença entre potencialidade intrínseca e extrínseca.
83
uma importância preliminar para a discussão acerca do estatuto moral dos animais
implicar ou não a obrigação de não os matarmos.
Uma posição antropocentrista baseada nas ideias de Belshaw (2016) surge
muito naturalmente: se, em geral, a morte é boa (ou, pelo menos, não é má) para os
animais, mas é má para os humanos, então é prima facie permissível matar os
primeiros, mas não os segundos. Dito de outra forma, temos obrigações para com
humanos – e.g. evitar matá-los – que não temos para com animais, mas,
supostamente, não o inverso. De acordo com a posição de estatuto moral defendida
no capítulo 1, isto implica que os humanos têm um estatuto moral superior aos dos
animais, dado que impõem maiores limites à agência moral. Todavia, note-se à
partida que Belshaw admite que a sua posição não é sobre todos os animais nem,
também, sobre todos os humanos e, por isso, não é antropocentrista (veremos adiante
quais são os animais e os humanos em causa).
Antes de chegarmos à tese de que a morte é boa para os animais, vejamos
primeiro a razão pela qual Belshaw considera que a morte não é um mal para os
animais. Se estivermos a considerar uma morte indolor, Belshaw não vê diferença
entre as plantas e os animais. Mortes precoces são más para os animais (e para as
plantas), mas “do facto da morte ser má para os animais não se segue que temos
qualquer razão de todo para os salvar da morte” (Belshaw 2016: 33). Surge, assim, a
questão: como pode a morte ser má para os animais e, ainda assim, não nos dar
razões para os salvarmos da morte? Quanto à primeira parte da questão, Belshaw é
um privacionista acerca do mal da morte, ou seja, ele aceita que a morte é má
“quando priva a vítima de uma vida boa” (Belshaw 2016: 37). Mas a parte mais
difícil e interessante da questão pede uma explicação para que tal mal não exija a
nossa acção.65 Eis a resposta de Belshaw:
65 Uma fonte de dúvida para que tal mal não exija a nossa acção pode residir na ideia de que maiores
privações de vidas boas não importam necessariamente mais. Isto é, embora seja certo que “sendo
tudo o resto igual, quanto mais cedo for a morte, maior será a perda”, também parece certo que a
morte aos trinta anos é pior do que a morte aos três anos, pois a pessoa de trinta anos tem mais
coisas por que viver (Belshaw 2016: 36). Todavia, sem mais, isto não nos diz que as mortes dos
animais não importam. Ao invés, apenas indica que outros factores para além da perda de vidas
84
a morte é má, para aquele que morre, do modo que importa, apenas quando priva a
vítima de uma vida que, para a vítima, importa. Como continuar a viver não
importa para os animais, porque não é algo que eles queiram, no sentido relevante,
morrerem não é mau eles. (Belshaw 2016: 37)
85
algum entendimento do futuro e de si próprio ao longo do tempo. Bradley and
McDaniel (2013) levantaram algumas dúvidas sobre os animais não terem desejos
categóricos sob várias concepções da noção. Estes autores argumentaram que a
relação forte de Williams entre a frustração de desejos categóricos e o mal da morte
envolve “defender uma perspectiva actualista de satisfacionismo de desejos” que é
bastante implausível em contraste com uma perspectiva possibilista (Bradley and
McDaniel 2013: 131-132). No entanto, como mostrarei de seguida, para criticar a
posição de Belshaw não é necessário determo-nos em questões empíricas sobre
psicologia animal nem em questões sobre versões diferentes de Satisfacionismo.67
Passemos então à tese de que a morte é boa para os animais, aceitando que a
morte não é má para os mesmos. Comecemos por considerar os seguintes três casos
de Belshaw (2016: 41-42) acerca de gatos, dor e morte. No primeiro caso, um gato é
atropelado por um carro, está com muitas dores e morrerá depois de uma semana
dolorosa se nada fizermos; não conseguimos parar a dor do gato, mas conseguimos
matá-lo sem causar qualquer dor adicional. No segundo caso, tudo é como no
primeiro excepto que agora conseguimos submeter o gato a uma cirurgia que lhe
permitirá recuperar por completo depois de passar um mês com dores. No último
caso, um é gato diagnosticado com um tumor que não lhe causa dores neste momento
mas que causará daqui a um mês; nós conseguimos matá-lo agora de forma indolor
mas não daqui a um mês. O desafio sobre estes casos é o seguinte: o que devemos
fazer em cada caso?
Julgo que Belshaw dá a resposta intuitiva ao primeiro caso: devemos matar o
gato uma vez que a dor importa e quanto mais cedo o matarmos, melhor. No entanto,
surpreendentemente, a sua resposta ao segundo caso é igual: devemos matar o gato
porque quanto mais dor evitarmos, melhor. Isto implica que, mesmo assumindo que o
67 Note-se que Belshaw (2016: 38-39) reconhece que talvez alguns animais sejam capazes de ter
desejos categóricos. Contudo, um detalhe curioso é que parece ser psicologicamente menos
exigente desejar algo simpliciter, ou seja, sem qualquer condição, do que desejar algo sob tal e tal
condição. Como diz Bradley (2016: 55), “Aqueles que duvidam das vidas mentais das vacas, se
devem duvidar de algo, deveriam duvidar mais de elas terem desejos condicionais do que de elas
terem desejos categóricos.”
86
gato viria a ter uma vida boa depois de recuperar, como a morte não é má para ele,
mas a dor é, será pior para o gato se for sujeito à cirurgia. Por fim, a resposta de
Belshaw ao terceiro caso é ainda mais surpreendente. Ele diz que não temos razão
para matar o gato antes de estar com dores, mas dado que não teremos hipótese de o
fazer quando as dores começarem, devemos matá-lo agora. Antes de avançar as
minhas objecções à perspectiva de Belshaw, quero clarificar por que razão ele julga
que devemos matar os gatos no segundo e terceiro casos.
Belshaw admite que a dor é má, de um modo que importa, para os gatos e,
logo, que constitui uma razão para aliviarmos as suas dores. Porém, ele aceita que a
morte não é má para os gatos, de um modo que importa, porque eles não têm desejos
categóricos. Assim, tomando apenas estes dois factores em conta, é óbvio que
devemos matar os gatos naqueles casos.
Contudo, temos o seguinte problema. Intuitivamente, no segundo caso
devemos ter em conta a recuperação do gato e a vida boa que ele experienciará
depois. Especialmente se aceitarmos, como Belshaw, a perspectiva privacionista
acerca do mal da morte. Ou seja, parece possível que a vida boa que o gato
experienciará no futuro suplante a dor que o gato tem no momento ao ponto de nós
devermos realizar a cirurgia em vez de o matar. Contra esta intuição, a ideia de
Belshaw é que a recuperação do gato e a vida boa que ele experienciará depois não
pesam nada contra a experiência dolorosa pela qual o gato está a passar no momento.
Porquê? Dado que o gato não possui uma psicologia complexa como a de um
humano, ele não está conectado com o seu “eu” futuro de uma forma tal que torne
possível que prazeres futuros sejam algo bom para ele agora. Por outras palavras, e
de um modo mais geral, devido à natureza da psicologia do gato, seja o que for que
importa para ele, apenas importa no momento presente. Logo, se a qualidade de vida
que teria posteriormente não tem peso na sua situação actual, a decisão resume-se a
prevenir mais dor no presente. Algo que se alcança com uma morte indolor o mais
cedo possível.
Quanto ao terceiro caso, a decisão foca-se, novamente, em evitar dor – algo
que é mau de um modo que importa – e desconsidera a morte – algo que não é mau
87
de um modo que importa. Aqui também parece que Belshaw ignora a vida boa que o
gato poderia ter antes da dor começar. Mas talvez isso não seja justo. Recorde-se que
neste caso o gato tem um tumor que lhe causará muitas dores apenas daqui a um mês
e que tal dor só pode ser evitada matando-o agora. Apesar de Belshaw nada dizer
sobre o valor da vida que o gato teria até as dores começarem, ele diz que
se um animal, num momento, está a viver uma vida que não vale a pena ser vivida,
então seria melhor se ele não existisse naquele momento, mesmo que isso implique
ser privado em momentos posteriores (e também em momentos anteriores) nos
quais os prazeres predominariam (Belshaw 2016: 42).
Ou seja, Belshaw talvez concorde que neste caso haja uma razão para manter o gato
vivo, a saber, a privação do prazer que ele está a experienciar. A questão é que há
uma razão mais forte para o matar – evitar a dor futura.
Os três casos que acabámos de examinar exemplificam a afirmação de
Belshaw de que a morte é boa para os animais “não apenas quando há dor agora e
mais dor depois, mas também quando há dor agora, mas prazer depois, e ainda
quando há prazer agora, mas dor depois” (Belshaw 2016: 43). Estas hipóteses
correspondem, respectivamente, às situações dos três gatos.
Julgo que muitos concordarão com o juízo de Belshaw sobre o primeiro e
terceiro casos, mas discordarão acerca do juízo de que devemos matar o gato quando
tem dor agora mas terá uma vida boa no futuro. A base para este desacordo é que é
usualmente aceite que o prazer e a dor contam aproximadamente o mesmo, um
contra o outro, quando consideramos o valor de momentos mais alargados numa vida
ou mesmo o valor de vidas inteiras. Nestes casos, o prazer futuro de um animal pode
compensar a sua dor presente. Intuitivamente, quando isto é assim, a morte não é
boa. Como referido acima, Belshaw rejeita isto porque julga que os animais, em
geral, e ao contrário dos humanos, não estão conectados a si próprios ao longo das
suas vidas de uma forma que torne possível que o prazer compense a dor.
88
Portanto, a posição de Belshaw sobre o mal da morte pode resumir-se num
brevíssimo slogan: “a psicologia importa” (Belshaw 2016: 45).68 Logo, há que
qualificar a distinção sob consideração. Os indivíduos em causa na distinção entre,
por um lado, a morte ser boa e, por outro, a morte ser má, são, respectivamente,
aqueles (animais e humanos) que não são capazes de desejos categóricos e aqueles
(animais e humanos) que têm tal capacidade. Ou seja, em princípio, a posição de
Belshaw não é antropocêntrica porque aceita que alguns humanos podem não ter
desejos categóricos e também que alguns animais podem ter tais desejos. Não
obstante, podemos levantar alguns problemas mesmo para aquela distinção não-
antropocêntrica entre o mal da morte para os animais e para os humanos.
Uma crítica que podemos apresentar à posição de Belshaw diz respeito à
seguinte assimetria: uma certa complexidade psicológica é necessária para a morte
ser má mas não para a morte ser boa. Como tal, em última análise, a sua posição
acerca do mal da morte assenta em teorias de valor diferentes para dar conta de
valores possíveis da morte – má e boa. Por um lado, uma versão de Satisfacionismo
determina quando a morte é má. Por outro lado, uma versão de Hedonismo determina
quando a morte é boa.69 Em contraste, os hedonistas podem afirmar que o mesmo
tipo de factos – privação de prazer e privação de dor – determinam o valor da morte.
Apesar desta crítica ser insuficiente para abandonar a posição de Belshaw, em
princípio é uma desvantagem teórica não ter uma teoria simples e unificada para o
valor da morte.
Chegando então à minha objecção principal à posição de Belshaw, creio que
o problema não é tanto sobre o seu conteúdo como sobre a sua coerência a respeito
68 Uma outra posição sobre o mal da morte que dá importância à psicologia é a Explicação de
Interesse Relativo a Tempo, de McMahan (2002: 105-106). Esta posição tem consequências muito
mais plausíveis do que a de Belshaw. Não a considero aqui porque não suporta qualquer forma de
Antropocentrismo.
69 Dado que Belshaw discorda que o prazer possa compensar a dor quando consideramos as vidas
completas dos animais, ele não está a apelar a uma teoria hedonista comum. Mas preserva ainda
um aspecto essencialmente hedonista pois é o predomínio, em certos momentos, da dor sobre o
prazer que faz com que a vida não valha a pena viver nesses momentos e, consequentemente, que
faz com que a morte seja boa (ver Belshaw 2016: 42).
89
do objectivo pretendido. Ele diz que a morte é boa para os animais naqueles três
tipos de casos que envolvem prazer e dor. O que eu afirmo é que o seu raciocínio
para suportar a afirmação controversa de que a morte é boa para os animais no
segundo tipo de caso – dor agora, mas prazer depois –, também suporta a falsidade
da morte ser boa para os animais no terceiro tipo de caso – prazer agora, mas dor
depois. Ou seja, Belshaw não consegue suportar que a morte é boa para os animais
naqueles três tipos de casos, como pretende.
Para vermos isto com detalhe convém atentarmos antes numa objecção que o
próprio Belshaw considera e responde. A objecção é a seguinte. Se o aspecto crucial
que impede que o prazer futuro compense a dor presente é que “as vidas dos animais
não estão unidas da forma que as vidas humanas estão”, então, podemos,
razoavelmente, pensar em tais vidas como “uma série de vidas discretas” (Belshaw
2016: 43). Assim, diz o objector, a resposta de Belshaw ao caso de prazer agora, mas
dor depois, consiste em terminar uma vida boa para evitar a existência de uma nova
vida má. Mas isto é errado, tal como vemos no caso dos humanos. Portanto, conclui
o objector, a posição de Belshaw deve ser rejeitada porque implica a falsidade de que
é permissível terminar uma vida boa de modo a evitar que uma vida má venha à
existência.
Tal como seria de esperar, Belshaw aceita parcialmente a conclusão e diz que
a mesma só é indesejável no caso dos humanos, nos quais os compromissos entre
vidas distintas são controversos precisamente porque a morte é má para eles. Não
vou discutir o mérito desta resposta. Em vez disso, estou interessado num problema
mais profundo que assenta na ideia de as vidas dos animais serem como séries de
vidas discretas.
Aceite-se, então, que as vidas dos animais são como séries de vidas discretas
e reconsidere-se agora o caso do gato que terá dores apenas daqui a um mês. Se a
vida do gato é como uma série de vidas discretas, vagamente conectadas, então por
que razão importa para o gato-presente (o da vida discreta no presente) que um gato-
futuro (algum gato das vidas discretas no futuro) venha a sofrer? Em particular,
parece que, dada a desconexão psicológica, as experiências que qualquer gato-futuro
90
terá não podem ser más para o gato-presente. Ou seja, não é do interesse do gato-
presente que a dor de qualquer gato-futuro seja evitada. Consequentemente, que um
gato-futuro irá certamente ter dores, se o gato-presente não for morto, não constitui
uma razão para matar o gato-presente. Se o fizermos, de acordo com a posição de
Belshaw, estaremos a terminar uma vida boa de modo a prevenir a existência de uma
vida má. Tendo em conta algum outro factor – do ponto de vista do universo? –, isto
pode ser bom, mas certamente não é bom para o gato-presente. Mesmo assumindo
que a sua morte não pode ser má para ele porque ele não tem o desejo de continuar a
viver, ter a sua vida presentemente prazerosa terminada por causa do mal que
aconteceria a outro gato é certamente mau para ele.
A objecção, em suma, é a seguinte. Se os animais são seres desconectados e,
por isso, o prazer futuro não pode compensar a dor presente e, consequentemente, a
morte é boa, então a dor futura também não pode contar contra o prazer presente de
modo a que a morte seja boa. Assim, Belshaw falhou ao tentar defender que, em
geral, a morte é boa para os animais, sendo que ‘em geral’ aqui significa pelo menos
naqueles três casos que ele considerou. Tal como argumentei, as razões de Belshaw
para suportar que a morte é boa num dos casos, suportam que a morte não é boa
noutro.
Como resposta à minha objecção, talvez Belshaw queira abandonar a tese de
que a morte é boa no caso de prazer agora, mas dor depois. Isto deita por terra a
minha acusação de incoerência a respeito do objectivo inicial, mas a que custo?
Antevejo dois problemas aqui. O primeiro é que tal resposta apenas mantém uma
tese controversa – que a morte é boa no caso de dor agora, mas prazer depois – à
custa de perder uma tese amplamente partilhada – que a morte é boa no caso de
prazer agora, mas dor (inevitável) no futuro. Aliás, se há casos permissíveis de
eutanásia, esta última tese desempenha um papel importante na sua permissibilidade.
Ou seja, abandonando tal tese teríamos de suportar a permissibilidade da eutanásia de
outra forma ou rejeitá-la. O segundo problema de aceitar que a morte não é boa no
caso de prazer agora, mas dor depois, é que esta resposta não está disponível dada a
posição de Belshaw acerca da desconexão psicológica dos animais. Se a morte não é
91
boa, então ou é neutra (nem boa nem má) ou é má. Mas a única forma da morte ser
neutra ou má implica negar a desconexão psicológica, pois só assim é que a dor
futura pode contar contra o prazer presente.
Resumindo, vimos que o argumento de Belshaw em favor da morte ser boa,
em geral, para os animais depende principalmente das seguintes teses: desejos
categóricos são necessários para a morte de um indivíduo ser má; os animais, em
geral, não têm desejos categóricos; e a dor é má para os animais. Se a morte não é
má, mas sentir dor é, então, no caso de dor, é melhor matar um animal. A minha
objecção não envolveu negar nenhuma destas teses (apesar das duas primeiras serem
controversas) e, por isso, dei tanto crédito quanto possível à posição de Belshaw. A
alegada desconexão psicológica que faz com que o bem-estar futuro de um animal
não possa compensar o seu mal-estar presente também suporta a tese, mais
controversa, de que o mal-estar futuro não conta contra o bem-estar presente. Ou
seja, a morte pode ser boa quando só há prazer no futuro, mas apenas à custa de não
poder ser boa quando só há dor no futuro. E isto é de rejeitar.
Para concluir, a posição de Belshaw não consegue estabelecer uma diferença
significativa entre os humanos e os animais na base da morte ser boa para estes, mas
nem sempre para aqueles. A morte parece ser boa para os animais nos mesmos tipos
de casos nos quais parece ser boa para os humanos: dor agora e mais dor no futuro; e
prazer agora e dor inevitável no futuro. Além disso, dada a nossa discussão no
capítulo anterior, deverá ser óbvio que a posição de Belshaw, se integrada numa
defesa do Antropocentrismo, não responde ao argumento dos casos marginais. Aliás,
a sua base para rejeitar que a morte pode ser má para os animais aplica-se igualmente
a humanos com incapacidades cognitivas graves – nem uns nem outros têm a
complexidade psicológica necessária para terem desejos categóricos. Assim, se
Belshaw estivesse correcto sobre a morte ser boa para os animais, também estaria
correcto sobre ser boa para tais humanos. Contudo, um aspecto interessante da
posição de Belshaw, o qual se liga intimamente ao problema do próximo capítulo, é a
ideia de que muitos animais (talvez os que não têm certos desejos) são tais que não
têm interesse em continuar a viver, apesar de serem sencientes. Ou seja, mesmo
92
tendo interesse em sentir prazer, este interesse, de alguma forma, não é frustrado se
as suas mortes forem indolores.
5. O problema da substituibilidade
93
O Utilitarismo é uma teoria recorrentemente criticada por acomodar apenas
os interesses de senciência dos animais, não implicando que as suas vidas estão
igualmente protegidas. Na sua versão clássica, a teoria diz o seguinte:
Apesar daqueles que comem carne serem responsáveis pela morte do animal que
comem, e pela perda do prazer experienciado por esse animal, eles também são
responsáveis pela criação de mais animais, pois, se ninguém comesse carne, não
existiriam mais animais criados para engorda. A perda que aqueles que comem
94
carne infligem num animal é, assim, compensada, na perspectiva total, pelo
benefício que conferem ao próximo animal. Podemos chamar a isto o argumento da
“substituibilidade”.
95
Assim, aquilo a que chamo “o problema da substituibilidade” consiste em
saber qual a melhor forma de o proponente do Utilitarismo lidar com o AS. Vários
outros autores têm usado aquela expressão em relação com o AS, mas nem sempre é
claro em que consiste exactamente aquele argumento nem, consequentemente, quais
as dificuldades particulares que coloca. Nesse sentido, o objectivo desta secção é
apresentar uma descrição precisa do problema. Tendo esta descrição feita, irei depois
avaliar criticamente algumas propostas de solução (5.2.1-5.2.3) e, por fim, apresentar
a minha solução (5.2.4).
Considerem-se as seguintes duas questões sobre substituibilidade: (i) é
permissível substituir um animal? (ii) o Utilitarismo (em alguma das suas versões)
implica o AS? Julgo que a questão (i) não levanta um problema interessante na
medida em que a sua resposta, em geral, surge facilmente ao aceitarmos uma ou
outra teoria normativa. Por exemplo, sob qualquer teoria que não conceda estatuto
moral aos animais, substituí-los será permissível. Por outro lado, qualquer teoria que
reconheça que os animais têm um conjunto de direitos bastante semelhante ao dos
humanos irá também implicar que têm direito à vida e, logo, que não é permissível
substituí-los. Entre estas teorias está o Utilitarismo, que concede estatuto moral aos
animais sem, aparentemente, lhes garantir algo semelhante ao direito à vida (como o
interesse em continuar a viver).
Daí que a questão mais interessante daquelas duas seja a (ii). Aliás, como irei
argumentar (5.2.4), julgo que o UC não está comprometido com o AS se lhe
acrescentarmos uma restrição acerca de consequências. Se isto for correcto, quando
comparamos o mérito de diferentes teorias sobre o estatuto moral dos animais, o AS
não pode contar contra o Utilitarismo em geral. Assim, é naquela segunda questão,
mais específica, que vejo uma formulação mais precisa do problema da
substituibilidade. O que queremos saber é se está ao alcance dos utilitaristas uma
defesa coerente das vidas dos animais, pelo menos de uma forma mais forte do que
aquela que o AS parece admitir.
Tendo agora o foco na questão (ii), há que fazer algumas distinções. A
primeira diz respeito à objecção dos receptáculos de valor. Esta objecção, apesar de
96
estar relacionada com o AS, é distinta do mesmo. Tal objecção surge como reacção à
seguinte passagem:
Segundo Chappell (2015), esta objecção admite três formulações, cada uma
associada às seguintes consequências indesejáveis da teoria subjacente: (1) a morte é
má apenas porque causa a existência de menos bem no futuro; (2) é a utilidade que
tem importância moral e não os próprios interesses dos indivíduos; (3) os interesses
dos indivíduos são meios fungíveis para o bem agregado. No entanto, nenhuma
destas consequências envolve imediatamente a substituibilidade presente no AS.
Neste argumento, a substituibilidade está para além do mal da morte e também para
além daquilo a que Chappell (2015: 325) chama “fundamentalismo da utilidade”.
Aquelas três consequências parecem, mas não são, condições necessárias implícitas
no AS.
Vejamos isto por partes, começando pela primeira consequência acerca do
mal da morte. Assuma-se uma versão de Utilitarismo de Preferências, no qual o valor
e o desvalor consiste na satisfação e frustração de preferências (e não no prazer e na
dor, como no UC). Assim, parece que a morte não é má apenas porque causa a
existência de menos bem futuro. Acerca daqueles indivíduos cujas preferências
podem ser frustradas pela morte, podemos dizer que a sua morte não impede apenas
que se criem novas preferências que serão satisfeitas. Além disso, a sua morte
“também é positivamente desvaliosa na medida em que envolve a interrupção e a
frustração de planos, projectos e objectivos de vida importantes.” (Chappell 2015:
323) No entanto, ainda que Utilitarismo de Preferências consiga evitar a
consequência (1), dificilmente consegue evitar o AS. Isto porque podemos
97
argumentar que o valor perdido com a morte pode ser compensado pela criação de
outras vidas que envolvem satisfação de preferências suficientemente valiosas (cf.
Uniacke 2002: 215-216). Ou seja, parece que há formas de evitar a consequência (1)
sem, contudo, evitarmos o AS.
Olhemos agora para a alegada necessidade da consequência (2) para o AS,
isto é, que é a utilidade que tem importância moral e não os próprios interesses dos
indivíduos. Assuma-se que as acções são fundamentalmente correctas porque são
boas para os indivíduos, e não apenas porque promovem a utilidade. Além disso,
suponha-se agora que os animais são o único recurso nutritivo acessível a um grupo
de humanos. Num tal contexto, substituir animais parece correcto porque é bom para
alguns indivíduos – os humanos – e não apenas porque promove a utilidade. Isto
significa que exigir que a correcção das acções dependa de estar de acordo com os
interesses dos indivíduos não nos diz nada sobre os casos nos quais tais interesses
estão em conflito. Logo, é possível que os próprios interesses dos indivíduos tenham
importância moral sem, contudo, se evitar o AS.71
Para compreendermos a particularidade do AS temos de compreender que
substituir implica matar e criar para compensar a morte. De um modo impreciso,
podemos dizer que os indivíduos são substituíveis devido à consequência (3), acima.
Ou seja, porque o bem agregado tem prioridade sobre todos os interesses dos
indivíduos e, a fortiori, sobre o alegado interesse em continuar a viver. Porém, isto
significa que o AS é uma preocupação mais específica do que aquela terceira
formulação da objecção dos receptáculos de valor. Deste modo, para avaliarmos o
AS, não temos de considerar se os interesses dos indivíduos são ou não fungíveis.
Basta considerarmos se o bem agregado pode suplantar o alegado interesse em
continuar a viver. Fazendo uso da metáfora em questão, ser um mero receptáculo de
alguns valores, mas não de todos, é compatível com ser insubstituível.
71 Poder-se-á argumentar que isto não é caridoso, pois a ideia é que os interesses dos indivíduos a
substituir importam fundamentalmente e é isso que impede o AS. Mas esta perspectiva tem de
reconhecer que os interesses dos humanos também importam fundamentalmente. De qualquer
modo, podemos pensar que é do interesse de alguns humanos substituir outros humanos, por
exemplo, para criar um banco de órgãos.
98
Em segundo lugar, também temos de distinguir o AS de situações de “bote
salva-vidas”. É comum julgar-se que alguns indivíduos são substituíveis em tais
situações. Por exemplo, se mulheres e crianças têm prioridade no salvamento e
alguém tem de ir pela borda fora, então os homens são substituíveis (assumindo que
não há outros princípios de prioridade que os distinga). Deverá ser claro que esta
forma de “substituibilidade” é problemática para muitas teorias para além do
Utilitarismo. Podemos até considerar que os indivíduos têm valor intrínseco, mas,
ainda assim, será razoável aceitar prioridades entre eles, isto é, que é melhor que
alguns vão pela borda fora em vez de outros (cf. Regan 2004: 324). Ademais, esta
“substituibilidade” não envolve qualquer compensação para a morte. Logo, falar de
substituibilidade em tais situações é apenas uma forma imprecisa de dizer que alguns
indivíduos, em certos contextos, têm uma importância igual para um certo fim (e.g.
minimizar o prejuízo).
Como o AS está no centro do problema que temos em mãos, e como têm sido
apresentadas diferentes versões do argumento, convém considerar a sua versão mais
plausível. Tanto quanto sei, a primeira versão detalhada deste argumento foi
apresentada por Miller (1982: 1):
99
(e) a sua morte não causa desvalor não compensado;
(f) o animal será substituído, ao morrer ou depois, por outro animal, que
de outra forma não existiria, e cujo valor da vida é pelo menos
equivalente ao valor da vida futura que o primeiro animal teria se não
fosse morto.72
100
aos seus produtores por lhes terem dado vidas boas. Este argumento, apesar de ter
algumas semelhanças com o AS, não envolve compensação para a morte. Uma outra
diferença consiste em implicar que podemos beneficiar um animal ao criá-lo, mas o
AS é silencioso sobre isto (embora compatível). Além disso, como não envolve
compensação para a morte, e também porque envolve a noção de dívida, o
argumento da lógica da despensa não parece ser implicado pelo Utilitarismo (mas
veja-se Višak 2013: 129-133). Por fim, tal como mencionado por Višak (2013: 48-
49), distinguir estes dois argumentos também explica que esta a segunda versão do
AS não seja sobre a permissibilidade de usar e matar animais, mas apenas sobre a
permissibilidade de matar animais.
A segunda melhoria do argumento, relacionada com a condição (f), envolve,
na verdade, duas partes. A primeira diz respeito à condição (c) reiterar a condição (a)
e (b) para o novo animal. Mas acabámos de ver que (a) foi melhorada por (d) e
também por que razão devemos abandonar (b). A segunda parte da melhoria é que (c)
dá origem a um argumento não-utilitarista. Para ser utilitarista, a substituição tem de
maximizar o prazer e, portanto, o valor da vida futura do animal tem de ser
compensado. Mas a condição (c) apenas exige que o novo animal tenha uma vida que
vale a pena viver e isto não garante a compensação do valor evitado com a morte. Ou
seja, a condição (c) pode ser satisfeita mesmo quando o valor da vida futura não é
compensado. Por exemplo, se um animal tiver uma morte precoce, então, se o animal
criado para o substituir tiver uma morte ainda mais precoce que o primeiro,
plausivelmente não tem uma vida cujo valor compense a morte daquele.
Apesar destas melhorias, julgo que aquela segunda versão do argumento não
é ainda a mais forte e plausível que podemos considerar. Em primeiro lugar porque a
condição (e) é algo redundante. A motivação para incluir esta condição é dar conta de
efeitos colaterais negativos, tais como, e.g. causar dor a outros animais ou mesmo a
humanos. Isto não está explícito no argumento, mas não é preciso surgir como uma
condição separada. Parece suficiente que se exija que o valor da nova vida compense
qualquer desvalor causado por se matar um animal, e não apenas o valor da vida
futura do animal que foi morto, como se faz na condição (f). Ou seja, podemos obter
101
uma versão mais simples e geral do AS com uma pequena modificação na condição
(f) que tenha (e) em conta. Em segundo lugar, a condição (d) presta-se a confusões
porque, ceteris paribus, o Utilitarismo permite a morte de um animal cujo valor da
vida futura é negativo. Ainda que o AS não seja sobre estes casos, que são muito
menos controversos (cf. 4.4), devemos tornar claro que a conclusão diz respeito
apenas ao subconjunto dos animais que satisfazem a condição (d). Além disso, em
terceiro lugar, estritamente falando, nenhuma destas duas versões do AS apresenta
um argumento, mas tão-só uma afirmação condicional. A saber, que a conjunção das
condições (a)-(c) ou (d)-(f) implicam a permissibilidade de tal e tal. Logo, como o
objectivo do AS é suportar a permissibilidade da morte de um animal, o AS tem de
ter uma conclusão na qual surge a afirmação de permissibilidade. Para obtermos tal
argumento temos, portanto, de adicionar a premissa de que aquelas condições estão
satisfeitas.73 Eis, então, aquela que me parece a melhor versão do AS:
(1) Se matar animais cuja vida futura teria valor positivo dá origem à
criação de outros animais que de outra forma não existiriam e cujas
vidas terão, pelo menos, valor equivalente ao que foi perdido com os
animais mortos, então matar animais é permissível.
(2) Matar este animal exemplifica o antecedente de (1).
(3) Matar este animal é permissível.
102
menos animais com vidas igualmente prazerosas. Por conseguinte, na interpretação
apropriada, o argumento só suporta matar animais quando a quantidade de animais
existentes é tal que a vida de um novo animal não seria boa (ou quando, para ser boa,
prejudicaria ainda mais a vida de outros).
Julgo que isto limita bastante a aplicação do argumento. Só em situações de
recursos muito limitados, em geral, ou então no caso de pequenos produtores, é que
parece que matar um animal, para substituição, pode maximizar o prazer. Assim
sendo, não é só a pecuária industrial que não encontra justificação neste argumento,
dado que envolve causar muita dor desnecessária aos animais. Formas
“conscienciosas” de criar animais, nas quais estes têm vidas boas que depois são
terminadas de modo indolor e sucedidas por outras vidas igualmente boas, também
não estão imediatamente justificadas pelo AS. Mesmo nestes casos, o Utilitarismo
exige que matar maximize o prazer e, portanto, que esteja excluída a hipótese de
simplesmente se criar novos animais.
Porém, esta limitação do argumento não responde ao problema da
substituibilidade. A facilidade com que as condições do argumento podem ser
reunidas é uma questão empírica. A questão mais substantiva é: reunidas tais
condições, o Utilitarismo permite a morte de animais? Se permitir, então o
Utilitarismo, enquanto teoria que acomoda o estatuto moral dos animais, está em
desvantagem para outras teorias que lhes atribuem uma protecção moral mais
robusta. Na secção que segue considero e avalio algumas formas de responder
negativamente àquela questão.
103
5.2 Propostas de solução
104
população contém um maior valor total apesar da vida de cada indivíduo nessa
população ser pior do que a vida de cada indivíduo na menor população. Logo,
obtém-se
105
Conclusão Repugnante, pois é apenas um caso mais extremo no qual, intuitivamente,
um maior valor agregado de um estado de coisas não nos obriga a dar-lhe origem.
A moral disto é que o UC não é coerente com a noção comum de bem-estar,
na qual os compromissos interpessoais (como os do casal e da filha) não são vistos
como obrigatórios, mesmo dando origem a um estado de coisas com um maior saldo
de prazer. Por outras palavras, parece que temos opções de não maximizar prazer
interpessoal.
Um diagnóstico do problema aponta para a impessoalidade do UC, ou seja,
para a tese segundo a qual o que importa é aumentar o saldo de prazer como que da
perspectiva do universo – importa todo e qualquer indivíduo senciente,
independentemente de onde ele esteja e até de quando ele existe. Portanto, isto
sugere que o utilitarista precisa de uma forma de restringir aquela tese impessoal.
Apontado para tal restrição de um modo expressivo, Narveson (1973: 80) disse que
“somos a favor de fazer as pessoas felizes, mas neutros acerca de fazer pessoas
felizes.” Ora, o Utilitarismo de Existência Prévia é uma teoria que pretende fazer
justiça a esta ideia. Segundo esta teoria, na nossa avaliação de acções, estamos
preocupados “apenas com os seres que existem e com aqueles que existirão
independentemente do que fazemos” (Singer 2011: 88). Assim, é agora simples
vermos de que forma é que o Utilitarismo de Existência Prévia dá conta da liberdade
de procriação e da Conclusão Repugnante. Tanto num caso, como no outro, o
Utilitarismo de Existência Prévia não considera o bem-estar dos seres que dependem
da acção que estamos a avaliar, pois tais seres não existirão independentemente do
que fazemos.
A ideia geral por trás desta teoria consiste em dar importância moral ao saldo
de benefício (benefícios mais prejuízos), por oposição ao saldo de prazer. E o saldo
de benefício requer indivíduos de uma forma que o UC não requer. Em particular, o
Utilitarismo de Existência Prévia aceita a seguinte restrição:
106
Restrição Indivíduo-Afectiva: um estado de coisas X é melhor (ou pior)
que um estado de coisas Y se e só se é melhor (ou pior) para algum
indivíduo (sendo tudo o resto igual).
Como no exemplo do casal a possível filha não fica pior quando eles não concebem,
mas eles ficam pior por conceber, então, de acordo com a restrição acima, conceber é
pior do que não conceber. Logo, é permissível não procriarem. (Obtém-se a mesma
consequência no caso de conceber não ser pior nem melhor para o casal.) De modo
semelhante, apesar da população B conter mais bem-estar do que a população A,
nenhum indivíduo em B está melhor do que qualquer indivíduo em A. Logo, a
Conclusão Repugnante também é bloqueada.
Assim sendo, podemos agora ver que o Utilitarismo de Existência Prévia não
implica o AS. A existência do novo animal depende da acção que estamos a avaliar, a
saber, a de matar o animal que se pretende substituir. Logo, o bem-estar do animal
possível, tal como o da filha do casal, não tem importância para avaliar a acção em
causa. E como não tem importância, não pode compensar o prejuízo causado por
matar um animal.
O Utilitarismo de Existência Prévia tem demasiadas objecções para
considerá-las todas aqui (veja-se Parfit 1984: 394-395). Para os propósitos desta tese,
é suficiente considerar as seguintes objecções.
Apesar de não implicar que temos o dever de procriar, o Utilitarismo de
Existência Prévia implica que não há nada de errado em trazer à existência uma vida
que será miserável (cf. Parfit 1984: 390). Pense-se novamente no exemplo do casal,
mas supondo agora que a vida da sua possível filha irá ser miserável, por exemplo,
por causa de uma condição genética herdada dos pais. Neste novo exemplo, é
extremamente intuitivo que o casal não deve conceber (ou, pelo menos, que deve
evitar que surja um indivíduo senciente depois da concepção). No entanto, pelo
mesmo motivo que, no exemplo original, não considera o bem-estar possível como
uma razão para procriar, neste último exemplo não pode considerar o mal-estar
possível como uma razão para evitar procriar.
107
Uma tentativa de resposta a esta objecção insiste que o que há de errado neste
caso não é o mal-estar possível da filha, mas sim o carácter dos pais. Apesar de o
Utilitarismo ser usualmente apresentado como uma teoria sobre a correcção de
acções, pode muito bem ser usado para avaliar o carácter dos agentes. Por exemplo, a
teoria dirá que um carácter é correcto se e só se maximiza o prazer. Assim, podemos
dizer que “a intenção do casal em conceber e manter viva a criança miserável pode
ser condenada, numa base utilitarista, como um sinal de mau carácter” (Višak 2013:
121).
No entanto, esta resposta não dá conta do problema. Contra o que Višak
(2013: 119) afirma, é falso que “O problema restringe-se aos casos nos quais os pais
querem conceber a criança miserável.” O exemplo envolve conceber uma criança
miserável, mas não envolve, necessariamente, saber que a criança será miserável.
Logo, que os pais concebam a criança miserável deve ser considerado errado mesmo
que se admita que, por ignorância, eles são (epistemicamente) desculpáveis. Mas
então, nesse caso, não pode ser o mau carácter que explica o que há de errado na
situação. É claro que para muitas pessoas a situação só envolve intuitivamente algo
de errado quando os pais têm conhecimento que a criança será miserável, mas o que
estamos a avaliar é se, e de que forma, uma teoria utilitarista consegue acomodar
aquela intuição.75
Outra objecção aponta que o Utilitarismo de Existência Prévia desconsidera o
estatuto moral das gerações futuras se se estiver a avaliar uma acção da qual a
existência das mesmas depende. Este problema, na verdade, é apenas uma
generalização do anterior. Se o bem-estar da criança miserável não importa quando
os pais estão a considerar concebê-la, o bem-estar das gerações futuras também não
importa quando aquelas dependem de alguma acção que lhes dá origem. O oponente
75 Aceite-se, no entanto, que os pais sabem que a criança será miserável. O que diremos se o casal,
até à concepção da criança, tinha bom carácter? Não faz sentido, nesse caso, dizer que o que há de
errado naquela acção é o mau carácter dos pais. Afinal, eles têm um bom carácter mas, como é de
esperar para humanos, fizeram algo incorrecto. Por outro lado, se quisermos afirmar que uma só
acção pode manchar o carácter, parece que saímos do terreno utilitarista ou, pelo menos, do
utilitarismo que avalia directamente acções e não regras ou tipos de acções.
108
talvez pretenda responder que não há situações tais que a existência de gerações
futuras dependa de uma acção. No entanto, esta resposta exige uma explicação
adicional. O oponente terá de explicar por que razão conceber uma criança é
relevantemente diferente de, por exemplo, aplicar uma medida política que, passados
muitos anos, dá origem a uma população completamente diferente daquela que
existiria se a medida não fosse adoptada (cf. e.g. a “política arriscada” em Parfit
1984: 371).
Por fim, o Utilitarismo de existência prévia continua a implicar, em parte, a
Conclusão Repugnante. Ainda que não implique que um estado de coisas com a
enorme população Z é melhor do que um estado de coisas com a menor população A,
implica que o primeiro estado de coisas não é pior do que o segundo (cf. Parfit 1984:
394). Assim sendo, parece que a teoria não tem um fundamento para condenar dar
origem à maior população.
109
em relação aos seres meramente conscientes, matá-los sem dor e administrar-lhes
uma anestesia parecem equivalentes. Matá-los não frustra mais desejos do que pô-
los a dormir. O ser será capaz de continuar a satisfazer as suas preferências depois
de acordar, mas a partir da sua perspectiva subjectiva é como se um novo ser, com
novas preferências, viesse à existência. (Singer 2011: 86)
110
tem desejos categóricos (se houver uma diferença entre estes e aquelas). A morte de
um ser meramente senciente quando ele está a experienciar prazer é má porque
frustra a sua preferência momentânea em permanecer naquele estado. Contudo, não é
má de uma forma que não possa ser compensada pela criação de outro ser meramente
senciente que satisfaça a sua preferência momentânea em experienciar prazer. Logo,
enquanto que o Utilitarismo de Preferências exige compensar a morte de um ser
meramente senciente, a posição de Belshaw não exige.
Um aspecto interessante desta forma relativa de abordar o AS é que consegue
capturar a diferença entre o estatuto moral das pessoas e o dos seres meramente
sencientes. É permissível substituir estes últimos mas não aquelas. E isto concorda,
em grande medida, com a moralidade do senso-comum acerca de termos uma
obrigação mais forte a respeito da vida das pessoas, e.g. adultos humanos
paradigmáticos, do que a respeito da vida de seres meramente sencientes, e.g. fetos. 76
Ou seja, o Utilitarismo de Preferências é uma teoria que reconhece às pessoas o
interesse em continuar a viver.
Porém, o Utilitarismo de Preferências é alvo de várias objecções
convincentes. Uma dessas objecções está relacionada com a explicação do valor da
satisfação e da frustração de preferências. Tal como brevemente mencionado em 2.1,
uma explicação plausível de tal valor apela às sensações de prazer e dor que surgem,
76 O Utilitarismo de Regras também é capaz de implicar que os humanos têm direito à vida, mas não
os animais. Contudo, chega a esta conclusão essencialmente da mesma forma que Carruthers
(2011). A adopção de um código moral que não reconhece direitos aos animais não coloca em
causa a estabilidade social. Por outro lado, tal estabilidade é colocada em causa com a adopção de
um código que não reconhece direitos a um conjunto de humanos maior do que o daqueles que são
agentes morais (cf. Galvão 2016: 12-13). No entanto, aplica-se aqui a mesma crítica do que ao
argumento da estabilidade social de Carruthers (4.1). Alguns humanos, inclusive alguns que são
sencientes, não terão direitos de acordo com o código moral ideal. Tais humanos seriam
substituíveis como os animais. Além disso, o Utilitarismo de Regras parece ser uma teoria moral
relativa a sociedades num certo momento, pois o código ideal depende de custos de interiorização.
Se estes custos forem muito diferentes de sociedade para sociedade, a teoria pode implicar códigos
morais bastante distintos. Nalguns nem teremos obrigações para com animais (e.g. numa sociedade
de Kantianos), enquanto que noutros teremos obrigações muito fortes para com os mesmos (e.g.
numa sociedade de Reganianos).
111
respectivamente, com a satisfação e a frustração de preferências. Isto é uma forma de
qualificar quais as preferências que importam pois a satisfação de certas preferências
parece não contribuir positivamente para o bem-estar. Por exemplo, se alguém tiver a
preferência de beber ácido sulfúrico, satisfazê-la não só não parece melhor para si,
como parece pior. Outros casos que forçam o utilitarista de preferências a qualificar a
sua posição são os de preferências aparentemente insignificantes, como a de contar
todas as folhas de relva num jardim ou a de observar continuamente uma parede.
Ora, como a satisfação destas preferências não parece melhorar a vida dos
indivíduos, o utilitarista de preferências normalmente propõe que as preferências que
importam são “aquelas que teríamos se estivermos completamente informados, num
estado mental calmo e a pensar correctamente” (Singer 2011: 14). O problema,
contudo, é que isto não se pode aplicar aos seres meramente sencientes. Ao contrário
do que aceitámos provisoriamente no início desta secção, parece que as preferências
não são desejos de facto, mas sim desejos ideais que se teria sob certas condições.
Deste modo, como os seres meramente sencientes não têm as capacidades cognitivas
de pessoas, não podem estar completamente informados nem a pensar correctamente.
Consequentemente, os seres meramente sencientes, afinal, não têm estatuto moral
porque nenhuma das suas preferências é tal que eles as teriam se estivessem
completamente informados e a pensar correctamente.77
Uma objecção ainda mais forte e convincente diz que o Utilitarismo de
Preferências, apesar de tudo, implica que as pessoas são substituíveis. Ou seja, que a
respeito do AS, esta teoria, afinal, não se distingue do UC. Nem uma, nem outra,
77 Julgo que é inaceitável replicar que a afirmação é verdadeira, no caso de tais seres, porque a
antecedente é falsa. Ao apresentar a qualificação, o utilitarista de preferências pretende explicar
quais são as características das preferências que as tornam importantes, e não apenas fazer
depender a verdade da afirmação de uma certa propriedade lógica da condicional. Note-se, no
entanto, que talvez haja uma excepção à crítica apresentada se aceitarmos que a possibilidade aqui
envolvida é intemporal. Intemporalmente, alguns seres meramente sencientes, como os fetos
saudáveis, podem tornar-se pessoas. Assim, não é impossível estarem completamente informados e
a pensar correctamente (ou pelo menos, tanto quanto as pessoas), dado que eles, um dia, serão
pessoas. Ainda assim, ficam de parte os seres meramente sencientes que não podem ser pessoas de
todo.
112
garante um interesse em continuar a viver que constitua uma protecção equiparável
àquela que intuitivamente julgamos que as pessoas merecem.
A única forma de evitar esta objecção parece envolver uma concepção de
preferências tal que, elas próprias, sejam insubstituíveis. Ou seja, uma concepção na
qual a “frustração de uma preferência (ou conjunto de preferências) não possa ser
moralmente compensada pela criação e satisfação de outra preferência (ou conjunto
de preferências)” (Lockwood 1979: 160). Mas tal concepção não está à disposição do
utilitarista de preferências. As preferências, tal como os prazeres e as dores, variam
em função da sua intensidade. Satisfazer uma preferência mais forte será melhor,
sendo tudo o resto igual, do que satisfazer uma menos forte. Do mesmo modo,
satisfazer mais preferências será melhor, sendo tudo o resto igual, do que satisfazer
menos preferências. Mutatis mutandis para as frustrações. Logo, ainda que se admita
que matar uma pessoa é normalmente pior do que matar um ser que não é uma
pessoa, pois aquela terá mais preferências frustradas, e eventualmente mais intensas
do que as daquele, é irrelevante qual o indivíduo que possui tais preferências. Por
isso, tal frustração pode ser compensada por preferências de outras pessoas, desde
que sejam suficientemente valiosas. Em suma, ainda que cada pessoa tenha
preferências fortes sobre o seu futuro, a criação de novas pessoas com preferências
igualmente fortes compensa a frustração das primeiras.
Numa tentativa de resposta a esta objecção, Singer considera que satisfazer
preferências existentes é bom, mas que criar e satisfazer preferências não é
necessariamente bom, pois depende da criação e satisfação da preferência ser ou não
desejável à luz de outras preferências. Por exemplo, satisfazer a sede é bom, mas não
provocamos a sede para a satisfazermos. “Isto sugere”, diz Singer (2011: 113), “que a
criação e satisfação de uma preferência, em si mesma, não é boa nem má”. Porém, se
o utilitarista de preferências pudesse responder assim à objecção, o proponente do
UC também poderia distinguir a criação de um novo ser do prazer que ele
experienciará. Criar um novo ser não é bom nem mau em si mesmo. O que é bom é o
prazer que o ser experiencia.
113
Obviamente, isto não bloqueia o AS porque o mesmo assume que o novo ser
terá uma vida suficientemente feliz. Da mesma forma, a objecção para o utilitarista
de preferências assume que as novas preferências serão satisfeitas. Ou seja, não
podemos, sem mais argumentos, negar que podemos trazer à existência um novo ser
sem que isso traga igualmente mais valor. Afinal de contas, a teoria é
consequencialista e, por isso, ainda que criar um novo ser não seja, em si mesmo,
nem bom, nem mau, parece que a satisfação de preferências é uma das suas
consequências. Logo, tem importância para avaliarmos a acção de criar um novo ser.
Assim, há que concluir que o Utilitarismo de Preferências é insuficiente para
bloquear o AS, até no caso de pessoas. Mas ainda que se concedesse que as pessoas
são insubstituíveis devido às suas preferências direccionadas para o futuro, para que
a teoria fosse minimamente aceitável, o utilitarista de preferências teria de defender
que muitos animais são pessoas. Singer (2011: 94-100) sugere isto mesmo ao
considerar evidência para a existência de autoconsciência, assim como de uma noção
do seu próprio futuro, em vários animais, especialmente em símios. No entanto,
reduzir o âmbito de aplicação do AS aos seres sencientes sem preferências para o
futuro parece ser ainda uma desvantagem no debate entre os defensores dos
interesses dos animais.78
Finalmente, deverei tornar explícito que as objecções acima já não se aplicam
à posição actual do próprio Singer. Ao considerar algumas dificuldades do
Utilitarismo de Preferências, Singer abandonou esta posição, que foi defendida pelo
menos até à 2ª edição de Practical Ethics (Singer 1999). Na 3ª edição desta obra,
refere que para lidarmos com tais dificuldades temos de reconhecer que existe valor
independente de preferências, tal como o proponente do UC. Contudo, ao contrário
deste último, o defensor de uma teoria de valor pluralista enfrenta maiores
dificuldades ao lidar com casos nos quais os valores distintos estão em conflito (cf.
Singer 2011: 115-119).
114
5.2.3 Utilitarismo Pessoa-Afectivo de Contrapartes Saturadas
A proposta que vou considerar agora assume que existir, em vez de não existir, não é
melhor nem pior para um indivíduo. Isto é independente de aceitarmos ou não
alguma versão de Utilitarismo, mas é razoável se aceitarmos uma perspectiva
contrafactual comparativa de benefício e prejuízo individuais. Segundo esta
perspectiva, “um evento ou um estado de coisas beneficia-me se, devido a tal evento
ou estado de coisas, eu ficarei melhor do que, de outro modo, ficaria.” (Višak 2016:
119) Por exemplo, o evento de comer bolo de chocolate beneficia-me porque,
comendo bolo de chocolate, estou melhor do estaria se não o tivesse comido.
A perspectiva é contrafactual porque envolve pensarmos como as coisas
seriam se não fossem como são – num mundo possível diferente do actual. 79 E é
comparativa porque envolve comparar a forma como as coisas são com a forma
como elas seriam. No exemplo acima, o mundo actual é melhor para mim porque o
meu bem-estar no mundo actual é superior ao meu bem-estar no mundo contrafactual
(sendo tudo o resto igual). Assim, de acordo com esta perspectiva, precisamos de
pensar em mundos nos quais um indivíduo existe para podermos compará-los e,
assim, determinar qual é o melhor estado de coisas para o indivíduo. Se existir fosse
melhor do que não existir, estaríamos a negar aquela perspectiva, pois estaríamos a
comparar um mundo no qual um indivíduo existe e tem algum bem-estar, com um
mundo no qual não existe e, logo, não tem bem-estar.80
O Utilitarismo Pessoa-Afectivo de Contrapartes Saturadas (doravante apenas
‘Utilitarismo de Contrapartes’),81 é uma versão de Utilitarismo que se afasta da
79 Para simplificar vou usar apenas ‘mundo’, ‘mundo possível’ ou ‘mundo actual’, mas não pretendo
com isto sugerir qualquer teoria sobre mundos possíveis.
80 Isto pode ser objectado afirmando que a não existência de um indivíduo num certo mundo implica
que o mesmo tem bem-estar neutro. Mas julgo que esta discussão é desnecessária para avaliarmos
a proposta sob consideração.
81 Uso a designação com ‘Pessoa’, em vez de ‘Indivíduo’, apenas para ser fiel ao nome da teoria, mas
esta, na verdade, é acerca de indivíduos.
115
impessoalidade do UC como o Utilitarismo de Existência Prévia. Ambas as teorias
aceitam a perspectiva Pessoa-Afectiva:
82 Logo, também se aplicam alguns dos problemas apontados ao Utilitarismo de Existência Prévia:
e.g. a criança miserável e, acerca da Conclusão Repugnante, não implicar que Z é pior que A.
116
De acordo com o Utilitarismo de Contrapartes, a correspondência de
indivíduos entre mundos possíveis faz-se da seguinte forma:
117
Contrapartes, “diz-nos que B é correcto e que A é errado. As contrapartes das pessoas
OKAY são as pessoas ÓPTIMAS. As pessoas ÓPTIMAS em B estão melhor em B do
que as pessoas OKAY estão em A.”
Concordo com a conclusão, mas não parece que a teoria a implique porque a
forma como se está aqui a considerar benefícios e prejuízos é artificial e não capta o
mesmo tipo de coisa quando digo que se não tivesse comido bolo de chocolate
estaria pior. O problema, julgo, reside nas populações serem disjuntas. É certo que
temos uma forma de fazer corresponder uns indivíduos a outros, mas por que razão
esta correspondência autoriza a falar de benefício ou prejuízo? É decididamente o
caso que “as pessoas ÓPTIMAS em B estão melhor em B do que as pessoas OKAY
estão em A.” Mas esta afirmação é independente de uma comparação em termos de
benefício ou prejuízo e, em particular, do sentido destas noções que está presente na
perspectiva contrafactual comparativa de benefício e prejuízo.
Para vermos melhor isto, considere-se agora um caso semelhante ao anterior,
mas no qual existe um indivíduo, o Fred, que existe tanto em A como em B, mas que
tem um bem-estar maior em A. Também neste caso, segundo Višak (2016: 129), a
teoria implica que B é correcto e que A é errado. Supostamente, isto é assim porque,
apesar de o Fred ser prejudicado, pois estaria melhor se A fosse o caso, o benefício
para os restantes indivíduos em B, que estariam pior em A, suplanta o prejuízo para o
Fred. Mas isto é errado porque o Fred é prejudicado em B de uma forma que os
indivíduos em B não seriam se A fosse o caso (porque não podem ser). Logo, parece
que temos a seguinte conjunção incompatível de proposições:
118
Dado (i) e (ii), nem as pessoas ÓPTIMAS são beneficiadas por B, nem as pessoas
OKAY são prejudicadas por A. Como o Fred é beneficiado em A, pois estaria pior em
B, (iii) é falso pois é A que maximiza o benefício.
Este problema de comparar benefícios e prejuízos em populações disjuntas é
ainda mais claro em casos nos quais as populações não têm o mesmo número de
indivíduos. Para simplificar, suponha-se agora que em A temos dois indivíduos, o
Alfa e o Beta, e em B temos três, o Gama, o Delta e o Épsilon. Ao contrário do caso
anterior, em A temos pessoas ÓPTIMAS e em B temos pessoas OKAY. Ora, de
acordo com Višak, o Utilitarismo de Contrapartes diz-nos para fazer corresponder o
Alfa e o Beta, cada um deles, a apenas um dos indivíduos em B. Seja qual for a
correspondência escolhida, temos uma função um-para-um e saturamos as
contrapartes (condições 1 e 3). Qual é, então, o juízo da teoria? “A é correcto
enquanto que B é incorrecto. Isto porque as contrapartes da população A estão pior
em B. Os outros indivíduos em B não são prejudicados nem beneficiados, pois a
alternativa para eles seria a não-existência.” (Višak 2016: 129)
Os “outros indivíduos em B”, suponho, são aqueles que não fazem parte da
relação, ou seja, aqueles que não são contraparte de nenhum indivíduo em A.
Suponha-se que tínhamos escolhido a correspondência f(Alfa) = Gama e f(Beta) =
Delta. Assim, Épsilon não seria uma contraparte e, alegadamente, é por isso que não
é prejudicado nem beneficiado, uma vez que ele, não sendo uma contraparte, só
existe em B. E se escolhermos f(Alfa) = Gama e f(Beta) = Épsilon? Nesse caso
diremos que é Delta que não é uma contraparte e que, portanto, não é prejudicado
nem beneficiado porque só existe em B. Porém, deverá ser claro que não podemos
estipular, através da escolha da correspondência, quem é prejudicado ou beneficiado
e quem não é. Se acrescentarmos o Fred a A e a B, é óbvio que não podemos dizer
que ele é prejudicado em B como o Alfa e o Beta. Seja qual for o indivíduo de B que
sobra, após a saturação, não é por não fazer parte da relação que ele não é
prejudicado. Na melhor das hipóteses, é o inverso: é por não existir num certo mundo
que um indivíduo não é prejudicado relativamente a esse mundo (cf. Parfit 2011:
235-236). Mas isto aplica-se a todos os membros de B em relação a A. Ou seja, a
119
correspondência deve seguir a existência, e não determiná-la. Sendo assim, o
Utilitarismo de Contrapartes, apesar de não implicar a Conclusão Repugnante,
também não rejeita que Z é melhor que A.
Em suma, estabelecer uma correspondência de indivíduos de acordo com as
condições do Utilitarismo de Contrapartes não garante a aplicabilidade contrafactual
das noções de benefício e prejuízo. A forma proposta para identificar contrapartes
não torna plausível que os indivíduos relacionados possam ser ditos como
beneficiados ou prejudicados em mundos distintos. E falhar nisto é crucial, dado o
propósito de querermos saber, entre várias alternativas, “que relações de contrapartes
devemos usar ao avaliar afirmações morais” (Meacham 2012: 266).83 Por
conseguinte, temos de esquecer o Utilitarismo de Contrapartes como uma solução
para o problema da substituibilidade. Esta teoria bloqueia o AS da mesma forma que
o Utilitarismo de Existência Prévia (com a Restrição Indivíduo-Afectiva), mas o
aspecto central no qual se distingue desta última torna-a implausível e incapaz de
suportar outras consequências desejadas.
83 Meacham (2012) também avalia vários casos de modo implausível. Por exemplo, acerca do caso
de Parfit (1984: 357) da jovem mãe de 14 anos, ele diz que saturar exige fazer corresponder as
duas filhas da rapariga (Meacham 2012: 269-70). Mas as duas filhas da rapariga são, justamente,
dois indivíduos diferentes, em mundos diferentes e com bem-estar diferente. Uma tem um início
de vida duro, pois a sua mãe é muito precoce, e outra tem um início de vida melhor, pois a sua mãe
esperou uns anos para conceber. Esperar para conceber, que é a acção intuitivamente correcta, não
é correcta porque a sua filha, de outra forma, estaria pior. De outra forma, não há tal filha. A
avaliação plausível deste tipo de casos relativos ao problema da não-identidade, sugere fortemente
que a Restrição Indivíduo-Afectiva é falsa: há acções que são erradas sem serem piores para
qualquer indivíduo.
120
Suponha-se que um certo valor, v, não é consequência de uma certa acção, φ. Então v
não determina, ou contribui para determinar, o estatuto deôntico de φ (porque a teoria
é consequencialista). Portanto, quando um valor compensa um desvalor que é
consequência de uma acção φ, o primeiro também tem de ser consequência de φ. Isto
significa que o sucesso do AS implica que o valor da vida do novo animal, que é o
candidato a valor compensatório, tem de ser consequência de matar outro animal,
que é a acção com a consequência desvaliosa. 84 Contudo, como argumentarei, há
boas razões para não considerarmos aquele valor como consequência de matar outro
animal. Mas antes de prosseguir, vou ilustrar por que razão o consequencialista está
comprometido com esta relação íntima entre o valor compensatório e o valor a
compensar.
Em Novembro de 2017 um Lince que escapou de um parque de animais no
País de Gales foi morto a tiro. Imagine-se que logo a seguir a isto um novo lince
nasceu no parque e que a sua vida será pelo menos tão boa quanto a vida futura do
lince que foi morto seria, se não tivesse sido morto. Assim, o saldo entre o valor da
vida do novo lince e o valor perdido com a morte do outro não é negativo. Porém, o
valor da vida do novo lince não compensa a morte no sentido exigido pelo AS – não
torna a morte permissível. Porquê? Dado que a existência do novo lince é
independente da morte do outro lince, seja qual for o valor da sua vida, este valor não
é uma consequência da morte do outro lince. Logo, tal valor não pode determinar o
estatuto deôntico da morte do outro lince. Ademais, este exemplo torna claro que,
quando uma acção desvaliosa é independente do alegado valor compensatório, a sua
omissão teria dado origem a melhores consequências (sendo tudo o resto igual).
Deste modo, para além do requisito óbvio de o valor compensatório não ser
negativo, temos outras duas condições necessárias: por um lado, o valor
compensatório tem de ser uma consequência da acção desvaliosa (via
consequencialismo); por outro lado, omitir a acção desvaliosa e realizar a acção que
produz o valor compensatório tem de ser inacessível ao agente (via maximização).
84 Esta acção também pode ter, e normalmente tem, consequências valiosas. Irei, contudo, usar
‘acção desvaliosa’ para significar a acção com a consequência desvaliosa relevante – o que é
compatível com tal acção ser, em certos casos, permissível.
121
Em suma, a compensação utilitarista de valor exige o seguinte: (i) que uma acção ψ
dê origem a um valor pelo menos equivalente ao que foi perdido com a acção
desvaliosa φ; (ii) que o valor de ψ seja uma consequência de φ; e (iii) que realizar φ e
ψ maximize o bem.
Segundo julgo, todas as posições que têm discutido este assunto têm aceite
que o AS satisfaz a condição (ii).85 Julgo que estão errados neste aspecto e vou
argumentar em favor de uma restrição de acordo com a qual o AS falha a condição
(ii). Considere-se a seguinte restrição sobre consequências:
(1) Se matar animais cuja vida futura teria valor positivo dá origem à
criação de outros animais que de outra forma não existiriam e cujas
vidas terão, pelo menos, valor equivalente ao que foi perdido com os
animais mortos, então matar animais é permissível.
Para isto ser verdade e, como argumentei atrás, fiel ao Utilitarismo, ‘dar origem’ tem
de relacionar a acção de matar com as suas consequências. No entanto, matar
animais, por si só, não “dá origem à criação de outros animais que…”. São precisas
algumas outras acções adicionais, tais como fazer com que os animais se
85 Por exemplo, Singer (2011), Regan (2004), Višak (2013, 2016), Chappell (2015) e Delon (2016).
86 Estou a usar, para os meus propósitos, uma versão do “Princípio de Não-Desagregação”, de Diogo
Santos (manuscrito), e que ele usa para lidar com o problema da falta de indícios ( cluelessness;
veja-se adiante). Após ler Bratman (2006) sobre a relação entre “o efeito acordeão” da acção e o
Princípio da Intervenção Voluntária, de Hart and Honoré (1959), percebi que (R) também tem
alguma relação com aquele princípio. Infelizmente, não a consigo explorar aqui.
122
reproduzam, tratar suficientemente bem da cria, etc. Assim, o sentido plausível no
qual matar animais dá origem a tais coisas é enquanto uma acção, entre outras, numa
sequência de acções que tem tais consequências. Contudo, neste sentido, (R) diz-nos
que o valor da vida do novo animal não é uma consequência de matar outro animal
(nem de nenhuma das outras acções isoladas). Portanto, dado que a teoria é
consequencialista, o valor da vida do novo animal, tal como no caso do novo lince, é
irrelevante para o estatuto deôntico da acção de matar. Logo, a premissa (1) do AS é
falsa, pois embora matar um animal dê origem (no sentido acima especificado) a um
estado de coisas com um valor equivalente ao que foi perdido, isto não tem impacto
na sua permissibilidade.87
Surge, não obstante, uma questão óbvia: por que razão deve o
consequencialista aceitar (R)? Bem, para os utilitaristas preocupados em bloquear o
AS, isto já conta a favor de (R). Mas é claro que isto, sem mais, parece ad hoc. Além
disso, sem qualquer outro suporte para (R), a restrição parece uma afirmação
demasiado forte apenas para lidar com um problema que só preocupa os utilitaristas.
Todavia, julgo que podemos dizer algo mais em favor de (R).
Uma motivação adicional para aceitar (R) é que, sem uma restrição
semelhante, o consequencialista permite algo axiologicamente estranho. Chame-se
‘condicionadas’ a acções que são realizadas sob a condição de outras o serem. E
chame-se ‘condicionantes’ a estas últimas. Então o consequencialista permite que o
valor de acções condicionadas influencie trivialmente o valor de acções
condicionantes. E julgo que isto é insustentável.
Considere-se um exemplo de sabotagem de valor. Imagine que realizou uma
acção intuitivamente permissível, tal como, digamos, salvar a vida de uma pessoa.
87 Se o argumento fosse expresso explicitamente com a relação de consequência, ou seja, se dissesse
que matar tem a consequência tal e tal, então (R) implica que a antecedente da premissa (1) é falsa.
Isto, por sua vez, torna falsa a premissa (2). Curiosamente, Persson (2017) chega ao mesmo
diagnóstico sobre o AS. Ele diz que a acção de criar boas vidas não pode compensar a acção de
matar boas vidas, “pois, ao passo que a última pode ser realizada por meio de um único acto, a
primeira não pode” (Persson 2017: 78). Mas Persson não torna claro o motivo pelo qual realizar
vários actos não pode compensar um único acto. A minha proposta é um passo para explicar isto
mesmo.
123
Agora suponha-se que alguém matou outra pessoa sob a condição de que a sua acção
de salvamento fosse bem-sucedida. Então, parece que, para o consequencialista, a
sua acção de salvar uma pessoa poderá, afinal de contas, não ter sido permissível.
Isto porque o seu estatuto deôntico depende do valor conjugado da acção
condicionante e da condicionada. Mas é muito estranho que o valor de uma acção
dependa não apenas daquilo a que dá origem, mas também daquilo que é escolhido
que dê origem. (Mutatis mutandis para situações de melhoria de valor, nas quais a
acção condicionada alegadamente melhora a acção condicionante.) Deverá ficar
claro que, nestes casos, condicionalizar uma acção a outra é, ela própria, uma acção
que envolve agência. Logo, ao contrário de eventos condicionais não-agenciais
como, por exemplo, um maremoto a seguir a um terramoto com epicentro no mar, a
acção condicionante (e.g. salvar uma pessoa) pode ocorrer sem a acção condicionada
(e.g. matar uma pessoa).
Esta forma de influenciar o estatuto deôntico das acções é demasiado trivial
para ser aceitável. Mesmo que todas as consequências não-agenciais de uma certa
acção nossa fossem boas (ou más), a possibilidade de condicionalizar acções, se
irrestrita, torna possível que o saldo de consequências seja, afinal, mau (ou bom). Por
conseguinte, a não ser que estejamos preparados para abandonar uma concepção de
agência como estando intimamente ligada a responsabilidade individual, as
consequências de outras acções não podem ser tratadas a par das consequências não-
agenciais.
A sugestão é que os consequencialistas podem distinguir, de um modo
relevante, entre, por um lado, consequências de sequências de acções e, por outro
lado, consequências que têm origem numa única acção.88 (R) faz precisamente isto,
evitando que as consequências de sequências de acções tenham impacto no estatuto
deôntico das acções isoladas. Ainda assim, (R) não se afasta da ideia básica do
88 Por exemplo, empurrar uma pessoa na rua não é permissível porque alguém decide beneficiar essa
pessoa se ela for empurrada; contudo, seria permissível se, digamos, por ela ser empurrada,
acontece que um tiro não lhe acerta. Neste caso, mas não no primeiro, a consequência valiosa é
resultado apenas do empurrão. Note-se ainda que tudo o que disse até agora é compatível quer com
sequências de acções com múltiplos agentes quer com apenas um único.
124
consequencialismo, segundo a qual, para avaliarmos acções, as consequências são
tudo o que importa. Neste sentido, embora (R) restrinja a posição convencional
acerca do que conta como consequência de uma acção, permanecemos em terreno
consequencialista.89
Uma outra motivação para aceitar (R) é que tem outras aplicações úteis para
o consequencialista. Vou apontar duas dessas aplicações.90 A primeira diz respeito a
uma objecção relacionada com o chamado “efeito acordeão” da acção. Em resumo,
segundo o efeito acordeão da acção, o mesmo conjunto de eventos pode ser
apropriadamente descrito de formas distintas de tal maneira que, de acordo com uma
descrição, a acção contém alguns eventos que, de acordo com outra descrição, são
suas consequências, Adaptando um exemplo de Miller (1987), considere-se as
seguintes duas descrições daquilo que o Túlio fez:
Se (a) e (b) são descrições apropriadas da acção do Túlio, então, assumindo que o
valor relevante está em (b), os consequencialistas só conseguem dar conta do estatuto
deôntico da acção através da descrição (a); ao invés, os não-consequencialistas estão
preocupados se (b) está de acordo, ou não, com uma certa regra (e.g. “mentir é
errado”). Assim sendo, à semelhança de um acordeão, parece que podemos
“estender” a acção (ou melhor, as suas descrições) de modo a incorporar algumas
consequências que são evidentes quando a “contraímos”. Portanto, o problema, como
Oldenquist (1966: 183) o colocou, é que “apelar a regras ou a consequências para
89 Smart (1956) distingue Utilitarismo “extremo” e “restrito” através de, respectivamente, avaliar
actos singulares directamente pelas suas consequências ou avaliar conjuntos de acções por regras e
estas, por consequências. A minha proposta envolve uma distinção semelhante, mas estou a
distinguir actos singulares de sequências de tais actos, independentemente de regras. Portanto, no
sentido de Smart, o Utilitarismo de Consequências Restritas é extremo.
90 O objectivo aqui é apenas motivar a aceitação de (R) para além do AS e não fazer uma avaliação
exaustiva da sua aplicação. Mas antevejo outras aplicações como, por exemplo, numa explicação
consequencialista de culpabilidade que esteja mais de acordo com o senso-comum.
125
determinar a correcção ou incorrecção de uma acção particular não tem importância
moral.” Se isto for assim, a noção de consequência não tem relevância normativa
distintiva e, logo, não há uma motivação especial para o consequencialismo.
Porém, aceitando (R), o acordeão não pode ser estendido indefinidamente.
Apesar de podermos concordar que, por exemplo,
é uma descrição correcta daquilo que o Túlio fez, não podemos dizer o mesmo da
descrição (b). A razão é que (b), mas não (c), obriga-nos a reconhecer uma
multiplicidade de acções, pois, neste caso, salvar ou não salvar uma vida também
depende da acção do assassino. Assim, (R) evita que o acordeão se estenda para além
de descrições que envolvem uma única acção.
Uma outra aplicação útil de (R) diz respeito à objecção da falta de indícios
(cluelessness; ver Lenman 2000). Esta objecção diz, sucintamente, o seguinte. Dado
que as consequências das nossas acções estão normalmente dispersas no espaço e no
tempo de um modo que ultrapassa o nosso conhecimento, então não temos indícios
sobre como devemos agir. Algo que parece ser uma acção perfeitamente permissível
como, digamos, poupar a vida a uma mulher grávida, pode, na verdade, ser
impermissível. Se tal acção tiver como consequência não evitar o nascimento de um
futuro ditador e as suas atrocidades, então parece que salvar a mulher grávida é
impermissível. No entanto, também não sabemos se não ter impedido a existência de
tal ditador, assim como das suas atrocidades, impede a existência de outros ditadores
e maiores atrocidades. Portanto, parece que se as consequências das nossas acções
são imperscrutáveis, estamos às escuras acerca dos nossos deveres.
Novamente, com (R) à disposição, o consequencialista tem uma forma de
responder a esta objecção: as consequências das acções do ditador não são
consequências de se ter poupado a vida da sua progenitora. É verdade que podemos
permanecer sem indícios acerca das consequências de sequências de acções que
contêm as nossas acções. Contudo, dado que tais consequências não são
126
consequências apenas da nossas acções isoladas, não temos o dever de as conhecer
(não as podemos conhecer). E como tais consequências não têm impacto no estatuto
deôntico das nossas acções, não as conhecermos não implica que estejamos às
escuras acerca dos nossos deveres relativos a acções isoladas.91
Para finalizar, vou considerar algumas objecções ao Utilitarismo de
Consequências Restritas. Uma objecção considera que, de algum modo, podemos
automatizar a sequência de acções que, em conjunto, dão origem à vida valiosa do
novo animal. Fazendo isto, parece que teríamos uma única acção, e.g. carregar num
botão, que dá origem à morte de um animal e à criação de outro que satisfaz as
condições do AS. Assim, o valor daquilo que, de outra forma, seria uma sequência de
acções é, no caso da automatização, o valor de uma única acção. Como isto,
aparentemente, não envolve sequências de acções, (R) não se aplica e, portanto,
parece que matar animais deste modo é permissível (assumindo, claro, que carregar
no botão é permissível).92
Esta objecção não é procedente porque ignora uma acção (ou sequência de
acções) crucial. Nomeadamente, ignora a preparação da automatização, fazendo
parecer que (R) não se aplicaria quando, de facto, se aplica. Logo, o valor da vida do
novo animal seria ainda uma consequência de uma sequência de acções.
Uma objecção mais séria considera que o AS pode ser reformulado de uma
maneira que contorna (R). A ideia consiste em afirmar que não importa se o alegado
valor compensatório é ou não consequência apenas de matar um animal. Desde que a
sequência de acções dê origem àquele valor, então substituir um animal, isto é, a
sequência de acções, é permissível. Por outras palavras, podemos mudar o foco
avaliativo das acções para as sequências de acções. E dado que eu não nego que o
91 Isto pode ser replicado se for possível não termos indícios sobre como agir mesmo quando não
estão em causa sequências de acções. Mas o ónus da prova está do lado daqueles que julgam que
acções particulares podem ter ramificações causais massivas e que a maior parte das nossas acções
é assim. Note-se, contudo, que a minha posição é modesta: se (R) pode mitigar este problema,
(assim como o do efeito acordeão), então a aceitação de (R) está para além de bloquear o AS.
92 Já tinha pensado nesta objecção, mas agradeço a Melinda Roberts por tê-la mencionado e, assim,
confirmado a minha intuição de que faria sentido considerá-la.
127
alegado valor compensatório é uma consequência da sequência de acções, então
parece que tenho de concordar que o mesmo determina (ou contribui para) o estatuto
deôntico da sequência de acções.
Mas será isto uma objecção à minha proposta? O objectivo, relembre-se, é
argumentar, contra a concordância de vários autores, que uma teoria como o UC não
implica o AS. Afinal de contas, tal teoria é o alvo daqueles que usaram o AS contra o
Utilitarismo (e.g. Pluhar 1982 e Regan 2004). Para alcançar aquele objectivo, propus
uma nova forma, com a adição de (R), de bloquear o AS. Mas não afirmei que
qualquer teoria utilitarista com (R) bloqueia o AS. É bastante plausível que uma
perspectiva utilitarista global, isto é, que permite qualquer coisa como foco
avaliativo, implique o AS. No mínimo, o proponente desta objecção tem de
argumentar que um utilitarista deve aceitar sequências de acções como foco
avaliativo. Mas julgo que isto envolve algumas dificuldades.
Ao mudarmos o foco de avaliação de acções para sequências de acções,
temos de assegurar que completamos e damos sentido ao novo princípio da teoria:
A resposta natural envolve completar o espaço em branco com ‘sequência’, mas será
que os agentes podem escolher entre sequências alternativas? Talvez apenas em
sequências de um único agente, pois um agente não pode escolher uma sequência
que envolve acções de outros agentes (de outra forma, ele saberia como os outros
iriam agir).93 E embora sequências de um único agente sejam suficientes para
formular o AS (com sérias limitações práticas na sua aplicação), precisaríamos ainda
de uma explicação sistemática da relação normativa entre sequências e as acções que
93 Aqui há um problema sério para o qual não tenho resposta. Nos casos de acções coordenadas,
parece que é possível escolher uma sequência que envolve as acções de outros agentes porque
todos concordaram agir de tal e tal maneira. Assim, parece que o agente está razoavelmente
informado de modo a permitir que a sequência de acções seja uma alternativa à sua disposição.
128
as compõem. Na ausência de uma tal explicação, tanto quanto sabemos, as
consequências de uma sequência maximizarem o prazer não é suficiente para ser
permissível, pois poderá ser o caso que uma única acção impermissível manche a
sequência da qual é parte.
E o que diz o Utilitarismo de Consequências Restritas acerca dos outros
problemas apontados acima às restantes propostas? Em primeiro lugar, a teoria não
implica que o casal, que está a ponderar ter uma filha cuja vida será boa, é obrigado a
procriar. Pelo mesmo motivo que bloqueia o AS, a teoria não considera que o valor
da vida da filha seja uma consequência da procriação. E isto é muito intuitivo. Trazer
um novo indivíduo à existência é uma condição necessária para que o ser tenha um
certo grau de bem-estar. Mas é apenas uma acção, entre outras, que contribuem para
o bem-estar do indivíduo. Aliás, na generalidade dos casos, procriar é já uma
sequência de acções e, logo, mesmo a existência de um embrião não é consequência
de uma só acção.
Mas então, em segundo lugar, parece que o Utilitarismo de Consequências
Restritas implica que não há nada de errado em conceber uma criança que terá uma
vida miserável. O valor da sua vida, afinal de contas, é consequência de uma
sequência de acções. Em resposta a isto, devo notar que, ao contrário do Utilitarismo
de Existência Prévia, a criança possível importa moralmente. Se, de alguma forma,
pudermos trazê-la à existência através de um único acto (tal como a acção de matar
pode eliminar da existência através de um único acto), então as consequências desse
acto determinariam o seu estatuto deôntico. Se, por exemplo, esse acto tivesse como
consequência a criança sentir dor agonizante, então a teoria implicaria que esse acto
é prima facie proibido. Ou seja, a criança não tem estatuto moral apenas quando
existe independente da acção que estamos a avaliar.
Assim sendo, apesar de o Utilitarismo de Consequências Restritas não
implicar que conceber a criança miserável é proibido, deixa em aberto a hipótese de
tal sequência de acções ser proibida por causa do estatuto moral da criança. Sem
dúvida que, como referido acima, o Utilitarismo de Consequências Restritas será
mais robusto se estivermos na posse de uma explicação sistemática da relação
129
normativa entre sequências e as acções que as compõem. Idealmente, tal explicação
indicará que há alguma acção na sequência de procriar a criança miserável que torna
esta sequência impermissível. Até ao momento, não tenho uma tal explicação para
apresentar e, por isso, tenho de reconhecer esta limitação da minha proposta.
Por fim, o diagnóstico sobre a Conclusão Repugnante é semelhante ao que
acabámos de ver no caso da criança miserável. A restrição (R) também evita que o
Utilitarismo de Consequências Restritas implique aquela conclusão. O problema é
que também não implica que dar origem a Z, em vez de A, é proibido. Ainda assim,
note-se a diferença tanto para o Utilitarismo de Existência Prévia, como para o
Utilitarismo de Preferências.
Para o Utilitarismo de Existência Prévia, Z não é pior (ou melhor) do que A
porque ninguém está pior (ou melhor) em Z do que em A. Mas o Utilitarismo de
Consequências Restritas não aceita a Restrição Indivíduo-Afectiva e, por isso, da sua
perspectiva impessoal considera que Z é melhor do que A. Contudo, a passagem de
uma população actual para outra envolve sequências de acções cujo valor, de acordo
com (R), não determina o estatuto deôntico dos seus actos isolados nem, em
particular, daqueles que são especialmente salientes, como certas decisões políticas,
por exemplo. Assim, apesar da comparação entre Z e A, o valor maior de Z não torna
permissível dar origem a Z.
Por outro lado, para o Utilitarismo de Preferências, a Conclusão Repugnante
depende das preferências das pessoas (cf. nota 78). Como tal, a sua
impermissibilidade, quando é impermissível, não está directamente relacionada com
as vidas quase miseráveis das pessoas em Z, nem com a passagem de A a Z. Mas de
acordo com o Utilitarismo de Consequências Restritas, está em aberto que tal
passagem seja impermissível, em particular, se a impermissibilidade de algumas
acções for suficiente para tornar impermissíveis as sequências das quais são parte.
130
Conclusão
Algo ter estatuto moral não é ter alguma propriedade misteriosa. Ao invés, é ter
certas propriedades tal que algumas acções, por afectarem esse algo, são prima facie
ou obrigatórias ou proibidas. Por outras palavras, quando algo tem estatuto moral, a
sua natureza tem importância deôntica e, logo, sabemos que não temos carta-branca
para agir, tal como temos (não-derivadamente) acerca de coisas sem estatuto moral.
Uma das propriedades que fundamentam o estatuto moral é a senciência.
Quando um ser é capaz de ter experiências de dor ou de prazer, é do seu interesse
evitar aquelas primeiras experiências e sentir as segundas. Isto significa que, sendo
tudo o resto igual, esse ser está melhor ou pior consoante a satisfação ou frustração
de tais interesses de senciência. Ora, a evidência científica suporta que pelo menos os
mamíferos são sencientes, sugerindo ainda que é muito provável que as aves e alguns
cefalópodes o sejam. Por conseguinte, tais animais têm estatuto moral.
Isto não significa que tais animais imponham os mesmos limites à agência
moral que os humanos impõem. Podemos distinguir vários graus de estatuto moral,
relativos a outras propriedades que uns indivíduos têm e outros não. No entanto, esta
graduação não pode seguir-se do Antropocentrismo, uma vez que esta forma de
discriminação é negada, de um modo convincente, pelo Argumento dos Casos
Marginais. Assim, uma graduação de estatuto moral deve respeitar a igual
consideração de interesses. Ou seja, ainda que alguns indivíduos, como aqueles que
são pessoas, imponham maiores limites à agência moral que outros, como os animais
e os humanos meramente sencientes, os primeiros não têm qualquer privilégio a
respeito de interesses semelhantes. Por exemplo, se uma certa intensidade de dor
prejudica um rato como uma certa intensidade de dor prejudica um humano, o
interesse de ambos em não sentir tais dores tem de contar igualmente. Logo, ao
aceitarmos que as pessoas têm um maior estatuto moral do que o dos seres
meramente sencientes, estamos apenas comprometidos com um conjunto de deveres
maior para com as pessoas. Mas não com ter certos deveres particulares mais fortes
para com elas comparativamente a indivíduos que não são pessoas.
131
Quanto a consequências práticas, ao reconhecermos o estatuto moral dos
animais, temos de repensar seriamente a moralidade de uma grande parte das nossas
acções. O nosso uso de animais, como reporta Singer (2008), é muito extenso e
profundamente enraizado. Mas tal uso permanece injustificado se não explicarmos,
de um modo cogente, por que razão não usamos humanos meramente sencientes em
vez de animais. Assim, o reconhecimento do estatuto moral dos animais coloca o
ónus da prova sobre aqueles que querem usá-los para os mais variados fins.
Enquanto não apresentarem uma justificação racionalmente aceitável, tais usos serão
imorais.
Por fim, embora tenhamos obrigações relativas à senciência dos animais, não
é claro que tenhamos obrigações relativas à preservação das suas vidas quando é
possível terminá-las de um modo indolor. De acordo com a teoria privacionista sobre
o mal da morte, esta é má, para o próprio indivíduo, porque priva-o das coisas boas
da vida. Assim, a morte é má para os animais quando, e na medida em que, se não
morressem, teriam uma continuação de vida boa para eles. Quando isto é assim,
plausivelmente, temos uma objecção contra matar animais. Isto é, ser impedidos de
continuar a ter uma vida que será boa parece ser contra o seu interesse. Portanto,
parece também que uma teoria normativa plausível tem de acomodar este interesse.
No caso do Utilitarismo, contudo, a questão é complicada. Apesar de
acomodar (com a teoria privacionista) o mal da morte dos animais, dada a sua
concepção impessoal de obrigação moral, aparentemente é permissível matar animais
quando, ao fazê-lo, damos origem a outros animais cujo valor das vidas compensa o
desvalor causado pela morte dos primeiros. Então, de acordo com o Argumento da
Substituibilidade, as vidas dos animais têm, quando muito, uma protecção moral
precária. Esta alegada consequência do Utilitarismo tem servido de crítica àqueles
que defendem o estatuto moral dos animais. E mesmo alguns utilitaristas têm
procurado evitar tal consequência. Encontro-me entre este último grupo.
Julgo que o valor da vida de um novo animal tem de ser uma consequência de
matar outro animal para que aquele argumento seja bem sucedido. Contudo, defendi
que tal valor, de acordo com o Utilitarismo de Consequências Restritas – uma versão
132
do Utilitarismo Clássico com a restrição (R) sobre consequências – não é uma
consequência de matar outro animal. Por isso, o argumento tem uma premissa falsa.
Uma vez que a restrição (R) é bastante forte e, aparentemente, ad hoc, apresentei
duas motivações distintas para a sua aceitação: uma axiológica e outra relativa à sua
aplicabilidade a outros problemas que preocupam os consequencialistas.
Não obstante, ao responder a algumas objecções ao Utilitarismo de
Consequências Restritas, reconheci algumas limitações da teoria: precisa de dizer
algo sobre acções coordenadas e também sobre a relação normativa entre sequências
e as acções que as compõem. No entanto, deve ser também reconhecido que, ao
contrário das restantes propostas para bloquear o Argumento da Substituibilidade, o
Utilitarismo de Consequências Restritas não abre mão dos suspeitos do costume. A
teoria é hedonista, maximizante, impessoal e aceita a perspectiva total sobre
agregação de valor. Suponho que se podem levantar outros problemas ao Utilitarismo
de Consequências Restritas, mas julgo que esta nova proposta para lidar com aquele
argumento merece ser discutida em detalhe e, eventualmente, ser desenvolvida.94
94 Entretanto, após comentários de Theron Pummer, Bruno Jacinto, José Mestre e de Pedro Galvão,
estou agora ciente de outras dificuldades da teoria, assim como de desenvolvimentos possíveis.
Espero no futuro conseguir apresentar uma versão mais robusta da mesma.
133
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